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Sam Kean Tradução: Claudio Carina Revisão técnica: Denise Sasaki O polegar do violinista E outras histórias da genética sobre amor, guerra e genialidade

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Sam Kean

Tradução:Claudio Carina

Revisão técnica:Denise Sasaki

O polegar do violinistaE outras histórias da genética sobre amor, guerra e genialidade

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Introdução

É melhor dizer logo no início, no primeiro parágrafo. Este é um livro a respeito do DNA – de histórias soterradas no nosso DNA há milhares e até milhões de anos, e de como usar o DNA para resolver mistérios sobre os seres humanos cujas soluções pareciam perdidas para sempre. E, não, o fato de estar escrevendo o livro não tem nada a ver com o nome de meu pai, Gene. Nem com o nome de minha mãe: Gene e Jean. Gene e Jean Kean. Além de ser um absurdo rimado, os nomes de meus pais me causa-ram um bocado de encrenca ao longo dos anos. Todos os meus defeitos e erros decorriam de “meus genes”; e, quando eu fazia alguma coisa idiota, as pessoas me gozavam dizendo que “meus genes me haviam levado a cometer aquilo”. O fato de o sexo estar necessariamente envolvido quando meus pais me transmitiram os genes também não ajudava. As gozações eram ainda mais cáusticas e absolutamente irrespondíveis.

Resumindo, quando eu era garoto, temia as aulas de ciências sobre genes e DNA, pois sabia que alguma gracinha viria dois segundos de-pois que a professora virasse as costas. Mesmo que não viesse, algum espertinho estaria pensando alguma coisa. Guardei comigo parte desse medo pavloviano, mesmo quando (ou principalmente quando) comecei a entender quanto era importante a substância do DNA. No ensino médio, consegui superar as gozações, mas a palavra gene ainda evocava um bando de reações simultâneas, algumas agradáveis, outras nem tanto.

Por um lado, o DNA me entusiasma. Não há tema mais ousado na ciência que a genética, nenhum campo que prometa impulsionar tanto o conhecimento. Não estou me referindo apenas às promessas comuns (em geral exageradas) de curas médicas. O DNA revitalizou todos os

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campos da biologia e reformulou o próprio estudo dos seres humanos. Ao mesmo tempo, sempre que alguém começa a escavar a biologia hu-mana básica, nós resistimos à intrusão – não queremos ser reduzidos a um mero DNA. E quando alguém fala em remexer na biologia básica, isso pode ser muito assustador.

De forma mais ambígua, o DNA representa uma poderosa ferramenta para explorar nosso passado, e a biologia se transformou numa espécie de história. Mesmo na última década, ou algo assim, a genética abriu uma verdadeira Bíblia de histórias cujos enredos imaginávamos desaparecidos – por ter se passado muito tempo ou porque havia muito poucos fósseis ou indícios antropológicos que pudessem ser interpretados de forma coerente. Acontece que estávamos levando essas histórias conosco o tempo todo, com trilhões de textos fielmente registrados, que os pequenos monges em nossas células transcreveram durante todas essas horas e dias sobre as eras passadas do nosso DNA, esperando que acertássemos o ritmo certo da linguagem. Essas histórias incluem as grandes sagas sobre o lugar de onde viemos e como evoluímos da sopa primordial até a espécie mais dominante que o planeta já conheceu. Mas as histórias voltam para casa de forma surpreendente e específica.

Se pudesse ter um desejo realizado no tempo de estudante (além de dar nomes mais comuns aos meus pais), eu teria escolhido um instrumento dife-rente para tocar na banda escolar. Não só por ter sido o único clarinetista nas 4a, 5a, 6a, 7a, 8a e 9a séries (ou não somente por isso). Era mais por me sentir tão desajeitado com todas aquelas válvulas, alavancas e furos do clarinete. Nada a ver com falta de prática, sem dúvida. Eu punha a culpa na deficiência dos meus dedos, com as juntas duras e os polegares desajeitados. Tocar clarinete trançava tanto os meus dedos que eu vivia com vontade de estalar as juntas, e elas bambeavam um pouco. Às vezes um dos polegares chegava a ficar preso, imóvel, e eu precisava usar a outra mão para soltá-lo. Meus dedos simples-mente não faziam o mesmo que os das garotas clarinetistas. Meu problema era hereditário, pensava eu, um legado do estoque genético de meus pais.

Só dez anos depois que desisti de tocar na banda, tive bons motivos para refletir sobre minha teoria a respeito de destreza manual e habilidade

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musical, quando soube da história do violinista Niccolò Paganini, um homem tão talentoso que a vida inteira precisou desmentir boatos de que teria vendido a alma ao diabo em troca do talento. (A igreja de sua ci-dade até se recusou a enterrar seu corpo durante décadas depois de sua morte.) Acontece que Paganini tinha feito um pacto com um mestre mais sutil: com o seu DNA. É quase certo que Paganini apresentava alguma disfunção genética que lhe conferiu dedos absurdamente flexíveis. Seus tecidos conectivos eram tão elásticos que ele podia esticar o mindinho de lado até formar um ângulo reto com a mão. (Tente fazer isso.) Conseguia também abrir os dedos num ângulo anormal, vantagem incomparável para quem toca violino. Minha hipótese simples em relação a pessoas

“nascidas” para tocar (ou não tocar) certos instrumentos parece justificada. Eu deveria ter desistido antes. Continuei investigando e descobri que a síndrome de Paganini pode causar graves problemas de saúde, como dor nas juntas, visão fraca, problemas respiratórios e fadiga, coisas que per-seguiram o violinista por toda a vida. Eu reclamava de minhas juntas enrijecidas pelos ensaios da banda na parte da manhã, mas Paganini tinha de cancelar apresentações no auge da carreira, e nos últimos anos de vida não conseguia mais tocar em público. Em Paganini, a paixão pela música tinha se juntado a um corpo perfeitamente afinado para tirar vantagem de todos os seus defeitos, o que talvez seja o destino mais grandioso que um homem pode desejar. Mas esses defeitos apressaram sua morte. Paganini talvez não tenha escolhido esse pacto com os genes, mas estava envolvido com ele, assim como todos nós, e o pacto o fez e o desfez.

O DNA também tinha outras histórias para me contar. Alguns cien-tistas elaboraram um diagnóstico retrospectivo de Charles Darwin, de Abraham Lincoln e de faraós egípcios que possuíam disfunções genéticas. Outros pesquisadores sondaram o próprio DNA tentando articular suas profundas propriedades linguísticas e sua surpreendente beleza matemá-tica. Aliás, enquanto eu ziguezagueava no colégio entre música, biologia, história, matemática e estudos sociais, as histórias sobre o DNA começa-ram a pulular em diversos contextos, relacionando os assuntos mais dispa-ratados. O DNA explicava histórias de sobreviventes de bombas nucleares,

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o fim precoce de exploradores do Ártico. Histórias sobre a quase extinção da espécie humana, de mulheres grávidas que transmitiam câncer aos filhos ainda não nascidos. Histórias em que, como no caso de Paganini, a ciência esclarece a arte. E até histórias nas quais – como no caso de estu-diosos rastreando defeitos genéticos em retratos – a arte esclarece a ciência.

Um fato que se aprende nas aulas de biologia, mas ao qual não se dá muito valor, a princípio, é a espantosa extensão da molécula de DNA. Apesar de compactada num minúsculo armário em nossas já diminutas células, o DNA pode se desenrolar até comprimentos incríveis. Existe DNA em algumas células vegetais que podem chegar a 00m; DNA num corpo humano que se estende mais ou menos de Plutão até o Sol, ida e volta; DNA na Terra que enlaça muitas e muitas vezes o Universo. E quanto mais eu ia atrás de histórias sobre o DNA, mais percebia que essa capacidade de se estender – de se desenrolar cada vez mais, até para trás, no tempo – era algo intrínseco a ele. Qualquer atividade humana deixa traços forenses no nosso DNA. Se esse DNA registrar histórias sobre mú-sica, esportes ou micróbios maquiavélicos, as narrativas, juntas, contam uma história mais intrincada sobre o surgimento dos seres humanos na Terra: por que somos uma das criaturas mais absurdas da natureza, bem como sua maior glória.

Subjacente a meu entusiasmo, porém, encontra-se o outro lado dos ge-nes: o medo. Enquanto pesquisava para escrever este livro, submeti meu DNA a um serviço de teste genético. Apesar do preço (US$ 44), fiz isso com um estado de espírito leviano. Sabia que testes de DNA apresentam sérias falhas, e, mesmo quando a ciência é sólida, em geral não ajudam muito. Pelo meu DNA, sei que tenho olhos verdes, mas para isso dispo-nho de um espelho. Descubro que não metabolizo bem a cafeína, mas já passei muitas noites agitadas depois de uma Coca-Cola ingerida tarde da noite. Além disso, foi difícil levar o processo de teste de DNA a sério. Recebi pelo correio um frasco de plástico com uma tampa cor de laranja, e as instruções me diziam para massagear as bochechas com as juntas

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dos dedos para soltar algumas células na boca. Depois tive de escarrar no tubo várias vezes até encher dois terços dele com saliva. Isso demorou dez minutos, pois as instruções diziam, com toda a seriedade, que não servia qualquer saliva. Teria de ser coisa boa, espessa como um xarope; assim como cerveja tirada da torneira, não podia ter muita espuma. No dia seguinte enviei minha cusparada genética pelo correio, esperando alguma agradável surpresa a respeito de meus ancestrais. Não me en-volvi em nenhuma reflexão sombria até chegar a hora de registrar meu teste on-line e ler as instruções e algumas informações assustadoras. Se sua família tiver um histórico de câncer de mama, Alzheimer ou outras doenças – ou se o simples pensamento de sofrer essas doenças o assusta –, o serviço de teste permite que você bloqueie essa informação. É possível ticar uma caixa para mantê-la em segredo até de você mesmo. O que me pegou de surpresa foi a caixa para doença de Parkinson. Uma de minhas primeiras lembranças, e certamente a pior, é de estar no corredor da casa de minha avó e enfiar a cabeça na porta do quarto onde meu avô viveu seus últimos dias, abatido pela doença de Parkinson.

Quando eu era menino, as pessoas sempre diziam quanto meu pai era parecido com meu avô – e ouvi comentários semelhantes sobre ser pare-cido com o meu velho. Por isso, quando espiei aquele quarto do corredor e vi uma versão de cabelos brancos do meu pai estirado numa cama com grade de segurança, enxerguei uma projeção de mim mesmo. Lembro de muitas coisas brancas – as paredes, o tapete, os lençóis, o avental aberto atrás que ele usava. Lembro de meu avô inclinado para a frente a ponto de quase cair, o avental solto como uma franja branca.

Não sei se meu avô me viu, mas, quando vacilei à porta, ele gemeu, e eu comecei a tremer, o que fez a voz dele falhar. De certa forma, meu avô teve sorte por minha avó ser enfermeira e cuidar dele em casa, e de os filhos o visitarem com regularidade. Mas ele regrediu física e men-talmente. Minha lembrança mais vívida é o fio de saliva espessa como calda pendurada de seu queixo, cheio de DNA. Eu tinha uns cinco anos, era novo demais para entender. Até hoje sinto vergonha de ter fugido às pressas.

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Agora, pessoas estranhas – e pior, eu mesmo – poderiam ver se a cadeia de moléculas reprodutivas que poderiam ter disparado o Parkinson no meu avô estava à espreita nas minhas células. Havia boa chance em contrário. Os genes do meu avô foram diluídos em Gene, cujos genes por sua vez tinham sido diluídos em mim por Jean. Mas também havia uma possibilidade real. Eu poderia encarar um câncer ou outras doenças degenerativas às quais eu pudesse ser suscetível. Mas não Parkinson. Apaguei aquela informação.

Histórias pessoais como essa fazem parte da genética, tanto quanto seus empolgantes relatos – talvez até mais, pois todos temos ao menos uma dessas histórias soterradas em nós. Esta é a razão deste livro: além de relatar as narrativas históricas, refletir sobre essas narrativas e relacioná- las com o trabalho realizado hoje com o DNA e com o que será feito no futuro. Essas pesquisas genéticas e as mudanças delas decorrentes foram comparadas a uma alteração na maré oceânica, grande e inevitável. Mas suas consequências chegarão à praia onde estamos não como um tsunami, mas em minúsculas ondas. São as marolas individuais que iremos sentir, uma a uma, quando a maré chegar à praia – não importa se pensamos que ainda estamos distantes dela.

Contudo, nós podemos nos preparar para essa chegada. Como reco-nhecem alguns cientistas, a história do DNA substituiu as antigas aulas sobre a civilização ocidental como a grande narrativa da existência hu-mana. A compreensão do DNA pode nos ajudar a entender de onde vie-mos e como nosso corpo e nossa mente funcionam; entender os limites do DNA também nos ajuda a conhecer como nosso corpo e nossa mente não funcionam. No mesmo sentido, teremos de nos preparar para tudo que o DNA disser (e não disser) sobre problemas sociais intratáveis, como relações de gênero e raça, ou se características como agressividade e in-teligência são fixas ou variáveis. Também devemos decidir se confiamos em ansiosos pensadores que, mesmo reconhecendo que não entendemos completamente como o DNA funciona, já falam sobre oportunidades, ou até a obrigação, de incrementar nossos 4 bilhões de anos de biologia. Desse ponto de vista, a história mais notável sobre o DNA é que nossa espécie sobreviveu tempo suficiente para (potencialmente) dominá-lo.

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A história que há neste livro ainda está sendo construída. O polegar do violinista foi estruturado de maneira que cada capítulo comece no remoto passado microbial, passe para nossos ancestrais animais, paire sobre pri-matas e concorrentes hominídeos, como o homem de Neandertal, e cul-mine com o surgimento dos seres humanos modernos e cultos, com sua linguagem florescente e seus cérebros hipertrofiados. Contudo, à medida que o livro avança, veremos que as questões ainda não estão totalmente resolvidas. As coisas ainda são incertas – em especial o problema de como vai acabar esse grande experimento de desenterrar tudo que há para saber sobre o nosso DNA.