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MARIA PAULA PIOTTO DA SILVEIRA GUIMARÃES O Político Nos Corpos Da Política SÃO PAULO - SP 2012

O Político Nos Corpos Da Política · 2017. 2. 22. · âmbito da comunicação, para os estudos da dimensão política da linguagem corporal não restrita a uma grade de significação

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MARIA PAULA PIOTTO DA SILVEIRA GUIMARÃES

O Político Nos Corpos Da Política

SÃO PAULO - SP

2012

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MARIA PAULA PIOTTO DA SILVEIRA GUIMARÃES

O Político Nos Corpos Da Política

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Professora Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.

SÃO PAULO - SP

2012

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Banca Examinadora

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Ao meu pai (in memorian) e a minha mãe,

corpos que me deram vida!

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AGRADECIMENTOS

Essa história começou no verão de 2002, portanto, há uma década, em algum ponto na serra

de Cunha, em Paraty, mais precisamente no bar da Marlene, um lugar ordinário em que o

viajante pode degustar de um pastel feito na hora acompanhado da tradicional cachaça da

região. Foi ali que a minha ansiedade em deixar o país foi desestimulada numa conversa

informal com dois pesquisadores, médicos, que insistiam que o Brasil era um lugar muito

promissor. O Nelson e a Sueli são dessas pessoas que passam pela vida da gente, nunca mais

as reencontramos, mas que se tornam presenças inesquecíveis... Eis o tempo, o espaço e a

pessoa que só têm sentido se lhes atribuímos sentido!

De lá prá cá foi uma trajetória incansável - tentativa quase insana de pautar a vida numa

estratégia e de assentar os dias nos trilhos da programação. Que engano! Antes eu tivesse feito

da vida poesia, porque, como disse o poeta, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto

desencontro pela vida”. Acho que o maior desafio é sempre encontrar o equilíbrio e,

querendo privilegiar de igual modo a família, o trabalho e a pesquisa, sempre me vi às voltas

com a angústia de ver meus filhos crescendo e os meus pais envelhecendo. É por isso que eu

tenho que agradecer ao Jorge, por ter me ajudado, e estar me ajudando, com o começo e o fim

da vida. Também tenho que dizer ao João Pedro e ao Vinícius, os meninos, que eu sou muito

feliz porque eles estão sabendo fazer muito melhor do que eu achei que sabia. Obrigada a

minha mãe, sempre tão generosa, mais vez teve o cuidado de esperar-me, e ao meu pai, que

partiu antes, coisa que eu tento entender todos os dias...

Quem primeiro me recebeu no programa de Comunicação e Semiótica foi a Cida Bueno, dona

de uma maneira muito assertiva de dizer o que precisa ser feito, a ela eu devo o gesto da mão

amiga. E o COS é também Ana Claudia de Oliveira, Eugênio Trivinho, Jerusa Pires, Jorge

Albuquerque Vieira, Leda Tenório e Lucrécia D’Aléssio Ferrara, meus mestres, dos quais eu

só posso falar com orgulho.

Se a questão é de orgulho e de gratidão não posso deixar de mencionar Anamelia Bueno

Buoro – uma esteta ela! – e a Valdenize Leziér Martyniuk pela generosidade e pelas

contribuições valiosas ao examinarem a minha qualificação. Também ao Rafael Lenzi e a

Graziela Rodrigues, que formaram a audiência amiga naquela noite gelada do exame! Essa é

sem dúvida uma trajetória em que se torna comum encontrar pessoas impecáveis e, entre elas,

devo agradecer ao Alexandre de Almeida e a Danielle Ardaillon da fundação Instituto

Fernando Henrique Cardoso, pelo modo como me atenderam e viabilizaram meu acesso ao

acervo.

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Nos últimos dias eu tenho me perguntado se é verdade, diante de tantas vicissitudes, eu ter

chegado até aqui, e aí, não tem jeito, só poderia ter sido pelas mãos da Ana Claudia. Também

me indago como é que ela consegue, e aí, só tem um jeito: é questão de saber arar a terra, de

perceber qual é o melhor momento de lançar a semente para que germine e, então, não

descuidar do broto. Assim, entre o inteligível e o sensível, à Ana Claudia de Oliveira eu devo

o chão.

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SUMÁRIO

Lista de Figuras 09

Lista de Filmes 11

Resumo 12

Abstract 13

INTRODUÇÃO 15

I - ENTRE O POLÍTICO E A POLÍTICA, O CORPO 41

1.1. A geração do corpo político 41

1.2. Simulacros de príncipes e sapos 45

1.3. O que pode o corpo do poder político 50

II - ANATOMIAS DO CORPO POLÍTICO 54

2.1. Brasília, centro do planalto e planalto do poder 55

2.2. O centro do centro do poder 61

2.3. O corpo na galeria dos presidentes 63

2.4. Corpos de presidentes 77

III - ATOS NO CENTRO DA CENA DO PODER 84

3.1. Ato I – João Figueiredo 86

3.2. Ato II – Tancredo Neves 99

3.3. Ato III – Fernando Collor 104

3.4. Ato IV – Fernando Henrique Cardoso 111

3.5. Ato V – Lula da Silva 115

3.6. Ato VI – Dilma Rousseff 122

3.7. A passagem da faixa: a política na transição do político 126

IV - ENTREATOS DAS PRESENÇAS DO PODER 145

4.1. Figueiredo: presidente militar linha-dura e a sanção pueril de uma menina 147

4.2. Tancredo: aspirante a presidente na orientação do sagrado 149

4.3. Sarney: presidente por acaso e a política por profissão 150

4.4. Collor: astro midiático de uma trágica presidência 151

4.5. Itamar Franco: a presidência de surpresa 154

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4.6. FHC: intelectualizando a presidência brasileira 156

4.7. Lula: líder sindical e a vedetização da presidência 160

4.8. Dilma Rousseff: a presidente aquém da mudança de gênero 164

V - ATO DOS ATOS, À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS 171

REFERÊNCIAS 178

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Vista aérea de Brasília, 2011 56

Figura 2: Palácio do Planalto (fachada) 57

Figura 3: Palácio do Planalto (perspectiva) 59

Figura 4: Vista aérea do percurso em carro aberto (parte) 62

Figura 5: Dilma Rousseff. Época, 16.ago.2010 66

Figura 6: Dilma Rousseff. Veja, 24.fev.2010 68

Figura 7: Galeria dos presidentes da República, 1979 – 2011 70

Figura 8: Dilma Rousseff, Lula e José Serra, 2010 73

Figura 9: Dilma Rousseff. Solenidade na Academia de Agulhas Negras, 2011 75

Figura 10: Ernesto Geisel e João Figueiredo, 1979 80

Figura 11: João Figueiredo, imagens do corpo político 82

Figura 12: João Figueiredo, cortejo em carro aberto, 1979 88

Figura 13: Tancredo Neves, o corpo político em ato (vários) 100

Figura 14: Collor de Mello e Itamar Franco, cortejo em carro aberto, 1990 105

Figura 15: Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, Excerto da solenidade de posse no Congresso Nacional 106

Figura 16: Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel, cortejo em carro aberto, 1995 111

Figura 17: Luiz Inácio Lula da Silva e José Alencar, cortejo em carro aberto, 2003 119

Figura 18: Celebração popular durante a posse de Lula, 2003 122

Figura 19: Dilma Rousseff e Paula Rousseff Araújo, cortejo em carro aberto, 2011 125

Figura 20: Faixa presidencial e detalhes da faixa 128

Figura 21: Transmissão da faixa presidencial, de João Figueiredo à Dilma Rousseff 137

Figura 22: João Figueiredo, “braço forte, mão amiga” 147

Figura 23: Tancredo Neves, corpo sagrado 149

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Figura 24: José Sarney, triângulo político 150

Figura 25: Collor de Mello, no mar, na terra e no ar 152

Figura 26: Collor e Roseane, despedida 153

Figura 27: Itamar Franco, no palanque e no plenário 154

Figura 28: Fernando Henrique Cardoso, candidato 156

Figura 29: Fernando Henrique e Lula, encontro político 158

Figura 30: FHC, intelectual e estadista 159

Figura 31: Luiz Inácio Lula da Silva, o corpo em ato 160

Figura 32: Luiz Inácio Lula da Silva, o gesto do corpo 162

Figura 33: Luiz Inácio Lula da Silva, encenações da cena 164

Figura 34: Dilma Rousseff, na passarela do samba 166

Figura 35: Dilma Rousseff, entre corpos políticos 168

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LISTA DE FILMES

Filme 1: Posse do presidente João Baptista de Figueiredo, 1979 89

Filme 2: Pronunciamento do presidente João Figueiredo sobre o projeto

de lei da anistia, 1979 90

Filme 3: Posse do presidente Fernando Collor de Mello, 1990 106

Filme 4: Posse do presidente Fernando Henrique Cardoso, 1995 112

Filme 5: Posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 2003 119

Filme 6: Posse da presidente Dilma Rousseff, 2011 123

Filme 7: Transmissão do cargo, de FHC para Lula 139

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RESUMO

O estudo aborda o corpo do político coletado em um corpus de discursos midiáticos que

versam sobre política, essa definida como o espaço de organização, condução e administração

do Estado, enquanto o político é entendido na acepção de Landowski (2001) como o sentido

em ato. A política e o político são o cerne desta pesquisa de natureza documental, que

objetiva depreender as práticas significantes do corpo da política que desvelam e explicitam o

político. Pressupõe-se que as figuras políticas dão visibilidade a traços distintivos que,

assumidos da perspectiva de um discurso em ato, permitem compreender como se organizam

o sentido e a interação entre os sujeitos do enunciado e da enunciação. A hipótese primeira é

que o regime de interação basilar do poder político segue a lógica da intencionalidade

(manipulação), que é articulada à lógica da sensibilidade (ajustamento). Dessa dinâmica, que

só pode ser operada passando constantemente pela dêixis do procedimento da programação,

segue a lógica da regularidade (LANDOWSKI, 2005), a hipótese decorrente é que um

ajustamento reativo (LANDOWSKI, 2004) encontra-se dominantemente nas manifestações

discursivas. A hipótese maior é que as práticas interativas articulam dinamicamente as

dimensões do inteligível e do sensível e são os mecanismos dessa articulação que permitem

compreender a construção do sentido do político e da política. Para testagem dessas hipóteses

a linguagem do corpo do político é analisada a partir da recuperação do gesto, da proxêmica,

da postura, da movimentação cinética, do olhar, em suma, de um percurso que vai da

figurativização política no enunciado à presença corpórea na enunciação. A fundamentação é

a da gramática narrativa de Greimas e os desdobramentos realizados por Landowski, que

postulou, ao lado do regime de junção, o regime de união. O corpus de estudo é constituído de

textos fotográficos e vídeográficos postos em circulação nas grandes mídias impressa,

televisiva e digital, para dar visibilidade ao corpo dos governantes da República Federativa do

Brasil do 22º ao 29º períodos de Governo Republicano, ambos inclusive. Tal delimitação tem

no escopo a campanha política, o ato de tomar posse e de deixar o governo, os encontros

oficiais e o dia-a-dia do governante, o que configura um percurso imagético construído pela

pesquisa do que foi o governo realizado. Espera-se que este trabalho possa contribuir, no

âmbito da comunicação, para os estudos da dimensão política da linguagem corporal não

restrita a uma grade de significação pré-concebida, mas também à sua organização semi-

simbólica ou de teor de esteticidade e, no âmbito da semiótica, para as investigações das

práticas interativas.

Palavras-chave: corpo, política, figuratividade, visibilidade, presença, regimes de interação e

de sentido

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ABSTRACT

The study addresses the political body is collected in a corpus of media discourses that deal

with politics, defined as the space organization, conduct and administration of the State, while

the policy is understood as meaning Landowski (2001) as the sense in act. Politics and policy

are the core of this nature documentary research, which aims to deduce the signifying

practices of the body politic that reveal and explain the political. It is assumed that the

political figures give visibility to the distinctive features that made the prospect of a speech

act, allow us to understand how to organize the direction and the interaction between the

subject of the utterance and enunciation. The first hypothesis is that the basic regime of

interaction of political power follows the logic of intentionality (manipulation), which is

hinged to the logic of sensitivity (adjustment). This dynamic, which can only be operated

constantly passing by deixis programming procedure follows the logic of regularity

(Landowski, 2005), the hypothesis is that an adjustment resulting from reactive (Landowski,

2004) is dominantly in the discursive manifestations. The hypothesis is that the largest

interactive practices dynamically articulate the dimensions of the intelligible and the sensible

and are the mechanisms that joint, allow to understand the construction of the meaning of

politics and policy. To test these hypotheses the body language of politics is analyzed from

the recovery of gestures, proxemics, posture, kinetic drive, look, in short, a route that goes

from figurativization policy statement in the corporeal presence in the enunciation. The

reasoning is that of narrative grammar of Greimas and developments carried out by

Landowski, who postulated, beside the junction regime, the regime of union. The study

corpus consists of texts photographic and videographic put into circulation in large print

media, television and digital, to give visibility to the body of the government of the Federative

Republic of Brazil from 22º to 29º periods of Republican Government, both inclusive. Such a

definition has the scope to political campaign, the act of taking possession and leaving the

government, official meetings and day-to-day ruler, the imagery that sets a course built by

research than the government was conducted. It is hoped that this work can contribute as part

of the communication to the studies of the political dimension of body language is not

restricted to a grid of preconceived meaning, but also to your organization or semi-symbolic

content aesthetic and in field of semiotics, the investigations of interactive practices.

Key words: body, politics, figuration, visibility, presence, regimes of interaction and sense

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Eu só acreditaria num deus que soubesse dançar. Apenas na dança eu sei como contar a parábola das coisas mais elevadas. Aqueles que eram vistos dançando, eram tidos como insanos, por aqueles que não conseguiam ouvir a música. Dou como desperdiçado todo dia em que não se dançou. Dançar em todas as suas formas não pode ser excluído do currículo da educação nobre. Dançar com os pés, com idéias, com palavras e preciso acrescentar que também se deve dançar com a caneta.

Friedrich Nietzsche

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15

INTRODUÇÃO

Da curiosidade intelectual de querer depreender as fronteiras do corpo1 do

político, mais precisamente da dimensão política do corpo do sujeito que se dedica ao

exercício da atividade política, surge a iniciativa desta pesquisa. Os corpos presentificados nas

mídias têm sido examinados à exaustão e parece não se ter mais nada a dizer deles, senão que

se tratam de simulacros da ordem da repetição, da ausência de sentido e do próprio

aniquilamento. Diante dessa programação à qual os sujeitos são submetidos, quer seja nos

objetos da semiótica ou nos percursos da vida, que por si só já é um texto, possivelmente só

há um sentido de “novo” a desvelar e, parece, no plano do sensível. Por terem sido dessa

ordem as últimas proposições de Greimas, é nesse horizonte que o presente trabalho se propõe

a recuperar o gesto político a partir do corpo, uma vez que é esse estudioso quem ensina que:

(...) As paixões, a força da repetição, se fixam em papéis patêmicos, isto é, finalmente, em simulacros passionais representáveis. O espírito se degrada para acabar em seqüências de brincadeiras gastas. O amor murcha, gasta-se, para se converter em indiferença, ou, no melhor dos casos, em uma ‘estética das cenas domésticas’. Último avatar de nossas sociedades de consumo da vida: a dança dos dervixes que, em seus giros, perseguem a aniquilação como forma suprema de conjunção com o divino, esgota-se nos confins das cerimônias ‘libertadoras’ de sábado à noite. A usura, que noutros tempos provocava o esplim ou a rebelião, resulta agora em uma busca exaurida que se detém no umbral da insignificância.2

Considerado o estado da arte, a despeito de à primeira vista a temática do corpo

do político parecer redundante, a relevância e o interesse repousam no prisma de observação

adotado neste estudo. Sabe-se que a partir dos anos sessenta a semiótica começou “(...) a

afirmar sua vocação à autonomia, simultaneamente enquanto reflexão geral sobre condições

da produção e da apreensão da significação e enquanto conjunto de procedimentos

aplicáveis à análise concreta dos objetos significantes.”3 Esse registro, tomado aqui de um

momento em que Greimas discorre sobre a ampliação do domínio da pesquisa semiótica e do

interesse dos semioticistas “(...) por organizações significantes que comportam um grau

crescente de complexidade e de abstração.”4, em menos de uma década vai ao encontro de

outra proposição, também de Greimas, que orienta como forma de superar o “umbral da 1. Remissão ao estudo de Eric LANDOWSKI, Fronteiras do corpo. Fazer signo, fazer sentido, p. 271-286. 2. A. J. GREIMAS, Da imperfeição, p. 82. 3. A. J. GREIMAS e E. LANDOWSKI, Análise do discurso em ciências sociais, p. 11. 4. Ibid., p. 11.

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insignificância”, “(...) ressemantizar a vida trocando ‘os signos por gestos’ (...)” 5. Pois, esse

intróito ratifica a autonomia que a disciplina alcançou e corrobora o estatuto de “edifício em

construção” dispensado pelo estudioso à semiótica discursiva.

No que concerne ao arcabouço teórico e metodológico da semiótica discursiva e à

investigação que ora se empreende, importa ter em conta a contribuição dada por Eric

Landowski no seu desenvolvimento. À guisa de se estabelecer um fio condutor, uma breve

incursão na pesquisa liderada por Greimas permite encontrar um primeiro “político” na

investigação de Landowski no artigo entitulado “Do político ao politológico”6, de 1979.

Coincidente ao momento de ampliação da pesquisa e aos interesses mais complexos por parte

dos semioticistas, como mencionado no parágrafo subseqüente, o trabalho consiste na análise

de um artigo de André Siegfried, o qual, dado a ver pela obra, é descrito pelo semioticista

“como o principal fundador de um dos maiores ramos da ciência política francesa:

sociologia eleitoral ou, mais precisamente, a análise ecológica das atitudes e dos

comportamentos políticos.” 7 Numa outra perspectiva, em que é feita uma menção de

Bergeron a esse estudo de Landowski, encontra-se a seguinte observação: “Pour une vue

plutôt réservée sur la politologie d’André Siegfried, voir une contribution d’Eric Landowski:

‘Du politique au politologique : analyse d'un article d’André Siegfried’ ” 8. Não se trata,

todavia, de discutir as considerações que resultaram dessa análise e, tampouco, as suas

reverberações, mas de pontuar que a “visão mais reservada” implica o olhar de um

semioticista que se debruça sobre o texto verbal de um discurso político científico, então, isso

pode ser uma pista nesta investigação.

Em “A sociedade refletida” observa-se que a aproximação entre a teoria e

metodologia semiótica e as temáticas das ciências sociais ganha envergadura. Nessa obra

Landowski faz um preâmbulo sobre “ciências da linguagem e do texto” no âmbito dos

estudos em ciências sociais. Em seguida, ao explanar sobre o texto e o discurso, registra que

este, tomado como objeto de conhecimento, “atesta uma nova sensibilidade e abre

perspectivas inovadoras”. Ainda no intróito o semioticista explica que:

Os estudos de que se compõe este volume atestam a evolução que acabamos de traçar. Os domínios nele abordados – político ou jurídico, ideológico ou

5. A. J. GREIMAS, Da imperfeição, p. 84. 6. A. J. GREIMAS e E. LANDOWSKI, Análise do discurso em ciências sociais, p. 117. 7. Ibid., p. 117. 8. Gerárd BERGERON, Quand Tocqueville et Siegfried nous observaient…, p. 12.

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“midiático” – são seguramente diversos, quase tanto quanto os tipos de material levados em consideração: alocuções políticas, campanhas publicitárias, escritos jornalísticos, respostas a um questionário de sondagem, reflexões de práticos e de teóricos, notadamente em matéria de direito e de estratégia, assim como diversas práticas decorrentes de encenação do “si” na comunicação e na interação cotidianas. Conjunto de manifestações bastante heteróclitas, sem dúvida, mas que contribuem, todas, para a construção de um mesmo espaço social de significação. Esse espaço construído não “reflete”, por natureza, algum dado societal preexistente. Ele representa, ao contrário, o ponto de origem a partir do qual o social, como sistema de relações entre sujeitos, se constitui pensando-se. Daí o título Sociedade refletida, de aparência demasiado literária talvez, mas que remete, na verdade, à gramática, da qual tiramos o conceito relacional de reflexividade: especularmente, a comunidade social se oferece como espetáculo a si mesma e, ao fazer isso, dota-se das regras necessárias a seu próprio jogo. 9

Sob o prisma conceitual de ato de linguagem, o “político” em “A sociedade

refletida” é depreendido a partir da análise dos mecanismos operatórios e das articulações

discursivas que o constituem. Ao introduzir a obra Landowski explica que o objetivo é “dar

conta do discurso do ponto de vista da sua capacidade de “agir” e de “fazer agir”,

moldando e, na maior parte dos casos, modificando as relações entre os agentes que ele

envolve a título de parceiros lingüísticos, ou seja, compreender como o sentido é

construído.”10 É relevante observar nesse trabalho a orientação teórica e metodológica focada

no âmbito da enunciação, que é a instância da interação entre os sujeitos do fazer e do fazer

fazer que engendram o sentido. Mas também é importante considerar a elaboração do estudo

em partes, as quais constituem uma trajetória que se dá a partir da construção identitária dos

atores sociais, passa pela encenação e culmina na interação. E é Landowski, ao descrever essa

organização, quem a explica:

(...) Procuraremos, na primeira parte, dar conta da construção das unidades dependentes da referida gramática, isto é, das entidades semióticas que, cumprindo a função de simulacros actanciais em relação aos atores sociais, possibilitam que estes últimos constituam para si uma identidade (seção I) no âmbito de relações sintáxicas definidas (seção II). A segunda parte tratará da encenação [mise em scène] dos elementos assim construídos, esboçando sucessivamente uma sintaxe das posições a partir das quais se negociam as modalidades da comunicação intersubjeitva (seção I) e uma tipologia dos dispositivos de figuração mediante os quais os sujeitos comunicantes e interativos se oferecem em representação uns aos outros (seção II). Esses diferentes esclarecimentos possibilitarão, enfim, na última parte, traçar as linhas mestras de uma abordagem semiótica da interação propriamente dita. A partir dos mecanismos implicados no exercício do fazer crer (seção I),

9. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 13-14. 10. Ibid., p. 10.

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tentaremos circunscrever as formas elementares da manipulação entre sujeitos, individuais ou coletivos, e, com isso, estabelecer as bases de uma problemática geral do fazer fazer (seção II).11

Ainda na apresentação desse estudo Landowski defende que o estatuto de

“discurso político” não se restringe aos textos que versam sobre política, porque o “político”

não é exclusivamente semântico e tem maior relevância a articulação do fazer. E, é ao “falar

de política” que se “(...) realiza certos tipos de atos sociais transformadores das relações

intersubjetivas (critérios sintáxico e pragmático), estabelece sujeitos “autorizados” (com

“direito à palavra”), instala “deveres”, cria “expectativas”, instaura a “confiança”, e assim

por diante.”12. Pois, ao cabo do trabalho, o semioticista vai poder postular como “ dimensão

política todo “fazer” discursivo cuja efetuação vise, ou simplesmente acarrete, algum efeito

de poder, entendendo, com isso, a transformação das competências modais das partes

integrantes da comunicação e, por conseguinte, a transformação das condições de realização

de seus respectivos programas de ação.” 13

E, com o propósito de compreender a produção desses efeitos de sentido, sem

refutar a dimensão passional, surge o que o autor define como o desafio de lançar uma

“sociossemiótica”. Nessa orientação, Landowski explica que o discurso é assumido como um

espaço de interação e “(...) procurar-se-á, antes de mais nada, captar as interações

efetuadas, com a ajuda do discurso, entre os “sujeitos” individuais ou coletivos que nele se

inscrevem e que, de certo modo, nele se reconhecem.” 14. É desta forma, que esse semioticista

vislumbra a possibilidade “de abordar, de um modo que não seja meramente intuitivo, a

análise das condições de existência e de exercício do poder no que elas têm de socialmente

mais evanescente e, sem dúvida, ao mesmo tempo, de mais profundo (...).”15 Eis, então, que a

disciplina semiótica, vocacionada à autonomia e ampliação, recebe a visada de uma

“enunciação concebida como um ato”, o ato enunciativo. Mas o que constitui um ato

enunciativo?

No que concerne a essa questão, sem deixar o território de “A sociedade

refletida”, Landowski, antes de qualquer definição, discorre sobre a opção pela análise da

dimensão enunciativa. Ele explica que até meados da década de 60 por escolha metodológica

11. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 15. 12. Ibid., p. 10. 13. Ibid., p. 206. 14. Ibid., p. 10. 15. Ibid., p. 10.

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a enunciação foi “descartada” dos discursos, visando eficácia e, segundo esse semioticista,

“(...) a precisão, no quadro de uma “primeira semiótica”, de um conjunto de procedimentos

ditos de normalização, que visam fornecer à análise um plano de trabalho homogêneo,

reduzido ao que um texto enuncia, uma vez aliviado das “marcas enunciativas” que o

emolduram.”16 Ele reitera o privilégio dado à objetivação da análise, assim como, à

normalização do procedimento e salienta que a pertinência da perspectiva de análise da

dimensão enunciva ou enunciativa era reconhecida previamente, mas seguia-se a “norma”, a

menos que o parâmetro da “subjetividade” se fizesse por questão metodológica. Landowski

explica que “se tratou de uma verdadeira eliminação (mais que da suspensão) de uma das

dimensões essenciais do discurso”17 e que o privilegiar a dimensão enunciva em detrimento

da dimensão enunciativa ia ao encontro do aporte da teoria da informação, na qual “a

comunicação era considerada uma simples transferência de sinais, codificados e

decodificáveis, entre dois espaços semanticamente neutros, o do emissor e do receptor, a

enunciação não tinha nenhum lugar dentro do esquema informacional e só a “mensagem”

enunciada era levada em conta.”18 O semioticista ensina ainda, que esse posicionamento é

antagônico se comparado ao que propõe a “vanguarda da especulação filosófico-linguística”,

na qual, diz ele, “descobrimos, ao contrário, um “sujeito enunciante” onipresente,

hipertrofiado, mesmo que nenhum enunciado saia da sua boca.”19 Na acepção de Landowski,

é “(...) a boa distância tanto do reducionismo positivista como do substancialismo dos “pós-

modernos”, que uma semiótica “racional” – para retomarmos uma expressão que tem

sozinha valor de programa – deveria abrir caminho.”20

É no mínimo curioso o conceito de uma “semiótica racional”, ainda mais porque o

autor faz menção de relacioná-la a um procedimento da ordem da programação. Tem-se desta

forma uma perspectiva da dimensão enunciativa da ordem do inteligível, mas o isso significa?

Pois é Landowski quem explica que o sentido não está nas “coisas”, ao contrário, ele resulta

da relação com o sujeito, que por sua vez, tem competência para fazer ser o sentido. Esse

“fazer-ser”, diz o semioticista, é o ato que pode vir a corroborar “a idéia de construção

dinâmica, de operação e de geratividade”, porque “o sentido, longe de ser recebido ou

16. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 165. 17. Ibid., p. 165. 18. Ibid., p. 165 - 166. 19. Ibid., p. 166. 20. Ibid., p. 166.

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percebido, é pensado como fruto de um ato semiótico gerador, que o constrói.”21 Landowski

ensina também que é essa lógica que permite, por exemplo, distinguir “em profundidade”, o

“gesto semiótico do gesto fenomenológico”. Ademais, ele diz que, se na relação sujeito-

sentido esse fazer for assumido como a função de “enunciar”, a enunciação assume o estatuto

de “ato pelo qual o sujeito faz o sentido ser” e, em contrapartida, o enunciado “o objeto cujo

sentido faz o sujeito ser.” 22

Sobre isso, importa observar a perspectiva teórica considerada por Fiorin que, em

“As astúcias da enunciação”, defende que:

(...) se a enunciação for considerada como ato singular, daí decorre logicamente sua impossibilidade de constituir um objeto científico. Conforme mostra Todorov, ela será “o próprio arquétipo de incognoscível” (1970, p.3). Como demonstra Catherine Kerbrat-Orecchioni, opera-se aqui um deslizamento semântico (1980, p. 29-30). O lingüista não mais opõe “a enunciação ao enunciado como o ato a seu produto, um processo dinâmico a seu resultado estático”, mas, impossibilitado de estudar diretamente o ato da enunciação, busca “identificar e descrever os traços do ato no produto.”

Tem razão Kerbrat-Orecchioni, quando mostra a impossibilidade de descrever o ato de enunciação em si mesmo. A descrição do ato em si violaria o princípio de imanência, base da constituição da Linguistica como ciência autônoma. É preciso, no entanto, matizar a questão da descrição da enunciação.23

e, após citar Landowski, argumenta que:

O primeiro ponto leva a ver a enunciação como um ato qualquer e, portanto, passível de ser estudada por uma teoria narrativa. Com efeito, uma narrativa é um simulacro de ações humanas e uma teoria narrativa é, antes de mais nada, uma teoria da ação. O segundo ponto, de larga tradição no domínio da semiótica, permite, por operação de catálise, reconstruir o ato gerador do enunciado. A catálise é a explicitação, efetuada graças às relações de pressuposição que os elementos manifestos no discurso mantêm com os que estão implícitos, dos elementos deixados elípticos nos diferentes níveis da articulação discursiva (Greimas e Courtés, 1979, p. 33). As marcas da enunciação presentes no enunciado permitem reconstruir o ato enunciativo.24

Posto isso, e de volta a conceituação subseqüente de “A sociedade refletida”, é

necessário recuperar que, diante da amplitude do conceito Landowski adverte que “Talvez

21. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 167. 22. Ibid., p. 167. 23. José FIORIN. As astúcias da enunciação, p. 31-32. 24. Ibid., p. 31-32.

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achem essas fórmulas cômodas, sem, é claro, se deixarem enganar por elas!” e, ao retomar o

raciocínio para defender a sua pertinência, exemplifica para ensinar que:

(...) podemos distinguir esquematicamente o seguinte procedimento canônico: num primeiro momento, o pesquisador se faz historiador, sendo o objetivo em primeiro lugar elaborar, com toda a minúcia possível, o quadro de uma conjuntura de referência (...); depois disso, chega o “lingüista” e empreende, não menos minuciosamente, a identificação dos diversos indícios lexicais que traem a presença do “enunciador” na organização frástica do discurso enunciado. Uma questão simples se coloca então: ou essas duas fases da pesquisa não mantêm entre si nenhuma relação lógica, ou (se seu encadeamento corresponde a uma ordem racional, como devemos supor) que papel devemos atribuir aos resultados da pesquisa sócio-histórica inicial sobre a inteligibilidade das estruturas enunciativas descritas em seguida? A resposta cabe em três palavras, “condições de produção”: a conjuntura e a posição social, política, institucional etc. do locutor condicionam (influenciam? Determinam?) as posturas lingüísticas adotadas pelo sujeito enunciador e fornecem, com isso, um meio de compreendê-las, enquanto “reflexos” da estrutura das relações intersubjetivas “reais” (fossem essas deformadas ou mesmo invertidas no plano discursivo).25

A elaboração de um raciocínio lógico a partir desse exemplo permite, então, que

esse estudioso postule que o sujeito semiótico é uma “forma” e não uma “substância”, “ou o

produto de uma organização formal (discursiva), um efeito de sentido que tomaremos, à

vontade, como o pressuposto ou a resultante do discurso realizado.” Cabendo ao

semioticista, dirá Landowski, “(...) descrever a organização e o funcionamento destas

[coisas], contando pelo menos que as “coisas” a serem levadas em consideração existam

também (ou primeiramente – pouco importa) “na linguagem”, isto é, desde que elas

signifiquem. O “sujeito” é bem dessa ordem.”26 Depois de ratificar a opção por uma

“gramática translinguística”, ou seja, uma gramática cujas proposições dêem conta de explicar

as ações “contadas ou vividas”, Landowski ensina que a depreensão do “ato enunciativo”

pode ser sustentada pelo procedimento descritivo e pelo referencial teórico do modelo

actancial. Em síntese, ele complementa dizendo que se trata de uma teoria orientada para a

ação, independente de ter como objeto o fazer dos personagens ou dos enunciadores que

fazem o discurso ser. No postulado de Landowski, no que concerne à problemática da

enunciação, tem-se a perspectiva:

(...) do “vivido”, enquanto sentido para os sujeitos “interativos” e como sentido produzido por sua interação (verbal ou não), (...).” [de forma que] “(...) os fenômenos a serem levados em conta concernem, uns, ao que

25. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 168. 26. Ibid., p. 169.

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podemos chamar, em termos mais sugestivos do que técnicos, de encenação dos actantes, sujeitos da enunciação, os outros à assunção dos enunciados, objetos da comunicação.27

No que concerne à “encenação dos actantes”, Landowski traz à tona o conceito de

“cenografia” que, segundo ele, tanto para as ciências da linguagem quanto em sociologia não

constitui ineditismo. Nessa acepção, Goffman, que é mencionado pelo semioticista, “(...) faz

várias referências às formas indiretas de interação, como em programas de rádio e televisão

em que ocorre a participação do espectador. Os momentos da performance teatral em que os

atores se dirigem à audiência, “quebrando” a distância entre palco e platéia (...).”28. É nesse

viés que Landowski problematiza sobre “as condições da interação semiótica entre os

sujeitos”. O pesquisador ensina que determinadas relações se concretizam no “contexto do ato

da palavra” e exemplifica que isso é recorrente em discursos como o da promessa, da ordem,

do apelo e da advertência, nos quais as relações são calcadas na prescrição e na expectativa

entre partes. Ademais, ele observa que a noção é articulada de formas divergentes e ensina

que:

Na maioria dos casos, é uma concepção referencial que domina: para que a ordem proferida por A coloque de fato B diante da alternativa de obedecer ou desobedecer, é preciso, considera-se, que exista previamente, entre A e B, uma relação efetiva, ou pelo menos, implícita, de subordinação (e uma concepção mais restritiva exigirá inclusive que essa relação seja explicitamente formulada, - por exemplo, por alguma regra de direito). Como, nesse caso, o ato de linguagem tira toda a sua eficácia da própria estrutura das relações intersubjetivas preexistentes – que ele apenas manifesta ocorrencialmente -, ele não saberia, por si só, nem transformar o estado das relações entre parceiros da comunicação nem, a fortiori, criar entre eles novos tipos de relações.29

Em contrapartida, Landowski dirá que há atos de palavra que concretizam seus

efeitos, quer sejam da ordem da subordinação ou da expectativa, e que fogem à regra descrita

anteriormente. É nesse viés que a proposição desse pesquisador se orienta e ele ensina que:

Trata-se de substituir a concepção restritiva do “contexto referencial” pela noção ampliada de contexto semiótico, entendendo com isso o conjunto dos traços (lingüísticos ou não) pertinentes para a atribuição de uma significação – notadamente, de um valor “ilocutório” determinado – ao ato de enunciação considerado. (...) O que chamamos de contexto semiótico seleciona no “real” (referencial) precisamente os elementos significantes que entram, caso a

27. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 170. 28. Jordão Horta NUNES. Interacionismo simbólico e dramaturgia: a sociologia de Goffman, p. 170. 29. Ibid., p. 171.

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caso, na colocação de tais formalismos eficazes: o próprio enunciado, claro, mas também a maneira como o enunciador se inscreve (gestualmente, proxemicamente etc.) o tempo e no espaço do seu interlocutor, do mesmo modo que todas as determinações semânticas e sintáxicas que contribuem para forjar a “imagem” que os parceiros enviam um ao outro no ato da comunicação. Nem todas essas determinações são legíveis no mesmo nível de profundidade, nem todas pertencem tampouco à mesma substância de expressão (o verbal combina-se com o gestual etc.), mas todas concorrem para produzir um só e único efeito global de encenação dos actantes do discurso e condicionam, com isso, o grau de credibilidade dos enunciados intercambiados.

Portanto, a análise será conduzida, nesse caso, por reconstituição, sob a forma de modelos actanciais e temáticos, das coordenações de papéis que pressupõe, entre os atores em presença, a efetivação do ato discursivo considerado (a “promessa”, “ordem”, etc.). Se invertermos a perspectiva e considerarmos a interação como processo em curso de efetuação, teremos os mesmos tipos de investimentos, mas considerados, desta vez, como constitutivos de simulacros em construção.30

No que tange ao procedimento de análise, Landowski assinala para a possibilidade

de o contexto se oferecer demasiadamente amplo, o que pode dificultar os limites da descrição

e ratifica o quanto é importante a noção de pertinência semiótica nesse caso. Para esse

semioticista as fronteiras de análise do contexto enunciativo são comparáveis às do discurso

enunciado e a delimitação será garantida pelos princípios de pertinência dados pela gramática

narrativa, portanto, “uma vez reconstituídos os principais programas narrativos que os

governam, o contexto semiótico se esgota; ele acaba simplesmente, onde se detém as

necessidades da narração.”31 Landowski prossegue ensinando que “o sentido de espetáculo”

é do âmbito da gramática narrativa e articulado pelo procedimento de programação, na lógica

da regularidade, e os sujeitos interagem sob um procedimento de manipulação, na lógica da

intencionalidade. No entanto, o estudioso reitera que no âmbito da gramática discursiva há

outro constituinte do “aparelho formal da enunciação”, não no nível da relação

interactancial, mas da “colocação em discurso”. Landowski postula que nesse estágio a

descrição deverá dar conta dos mecanismos de:

(...) “desembreagens” enunciativas e produção de discursos “objetivados” ou, ao contrário, “embreagens” e assunção do enunciado-texto pela instância enunciadora (quer se trate do enunciador, quer do enunciatário) – fazem parte das condições de produção (semioticamente redefinidas, é claro) do discurso verdadeiro, ou pelo menos considerado como tal: no mesmo título que os efeitos da encenação anteriormente evocados (e aos quais se

30. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 171. 31. Ibid., p. 172.

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articulam diretamente). De fato, para que a enunciação tenha sentido, é preciso que seja enunciada. E o papel da colocação em discurso é precisamente transformar as posições virtuais que o componente narrativo oferece aos actantes da comunicação em posições “reais”, reconhecidas e assumidas por eles. Então, enquanto os simulacros encontram quem os adote, nascem os “sujeitos” que os assumem.32

Eis, portanto, que a curiosidade concernente a uma “semiótica racional”,

manifestada neste estudo no parágrafo que introduz a “A sociedade refletida”, foi dada à

compreensão. O cerne da proposição de Eric Landowski é de que a dimensão enunciativa, à

guisa da dimensão do enunciado que é fundamentada nos pilares conceituais da gramática

narrativa, pode ser descrita sob o mesmo aporte metodológico. É esse o aporte adotado por

Oliveira que, ao passo que o esquadrinha para tratar da interação no contexto das mídias,

ensina que:

Se a adoção da perspectiva imanentista permite à teoria semiótica conhecer, descrevendo e analisando os mecanismos gerais de estruturação discursiva e sêmio-narrativa, essa compreensão da enunciação embasa os estudos das determinações e formações sócio-histórico-cultural. Todo discurso constrói em si mesmo a situação comunicativa que o constitui ao plasmar no seu interior as condições de produção e as de sua apreensão. Por pressuposição recíproca, essas condições de interlocução montam a dialética dentro e fora do texto, ou da prática social que a semiótica elege como objeto de seu estudo para entendimento dos processos de construção da significação dos sujeitos por eles mesmos.33

E é essa semioticista quem prossegue explicando que no arcabouço teórico de

Greimas e seus colaboradores, a significação não é depreendida “da ordem do mundo”, mas

“da ordem da cultura”. Pelo que, ela ensina que “as linguagens não são só meios, mas elas

são, sobretudo, criação de possibilidades de mundos para além dos existentes, envolvendo os

que poderão ainda vir a ser.”34 Pois, é nessa perspectiva, que Oliveira argumenta sobre o

lugar do fazer do semioticista, como partícipe do processo de construção da significação e não

apenas observador, mas também vivenciando a significação. E no que tange ao proceder dessa

experiência no âmbito das mídias, essa pesquisadora orienta que:

Examinado na sintaxe discursiva, o processo interativo ou comunicativo está instalado nos textos prontos e acabados, como aqueles da mídia impressa, de um documentário, de um filme, de um site, cuja configuração orienta o que vemos, ouvimos, tocamos, na elaboração do fazer interpretativo que recebeu

32. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 171. 33. Ana Claudia de OLIVEIRA. Interação nas mídias. In: Comunicação e interações, p. 27. 34. Ibid., p. 28.

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um ponto final das instâncias enunciativas ao findar a montagem do enunciado. Mas ainda restam aquelas configurações comunicacionais que estão em processamento, assim como os enunciados que elas produzem, cuja marca distintiva são as suas instâncias enunciativas continuarem a se desenrolar ao mesmo tempo em que com elas interagimos no nosso fazer interpretativo. Assim o destinatário é levado enquanto enunciatário a feicionar na interatividade com o destinador, o enunciador, o enunciado. Uma interação participativa do tipo interlocucional que é vivida torna o enunciatário um dos constituintes do sentido da configuração em processo e os efeitos desse tipo de processamento são os de promover uma aliança entre corpos sensíveis, corpos racionais e estados de alma, que fazem o texto ser. Nas duas acepções desses tipos de discursos quer nos textos acabados, quer nas práticas sociais em processamento, a semiótica tem aprimorado o desenvolvimento de procedimentos de análise para dar conta das totalidades de sentido a partir dos procedimentos textuais específicos desses distintos tipos de manifestação.35

Em continuidade à tessitura teórica da semiótica, sob a postulação de Landowski,

pode-se dizer que o “político” deixa a condição de “corpo de papel”36 e assume o estatuto de

uma “presença”. Em “Presenças do outro” o semioticista ensina que “a única coisa que, sob

uma forma ou outra, poderia realmente nos estar presente, é o sentido. Nunca estamos

presentes na insignificância.”37 O semioticista prossegue argumentando que a presença do

tempo se dá na ruptura da sua continuidade, quer seja na “tensão de uma espera” ou na

“irrupção do inesperado”. E, por conseguinte, explica que o mesmo acontece com o espaço,

o aqui, que não tem sentido senão pela figuratividade que se lhe atribui, o que o torna passível

de reconhecimento e cujo rearranjo é condição sine qua non para que não se esvaneça. Em

contrapartida, o pesquisador defende que o que acontece na relação entre os sujeitos não é

diferente, a “rotina da comunicação” corrobora a não presença para o outro e para si, ao

passo que “só uma práxis enunciativa capaz de ressemantizar a expressão das relações inter-

ou mesmo intra-subjetivas pode substituir uma forma de presença do outro (em geral) para

si, de si para o outro (este ou aquela em particular) e finalmente de si para si.” Na

apresentação da obra, a medida que desconstrói o título para explicá-lo, Landowski desvela o

constructo teórico, cuja síntese pode ser assim apreendida:

(...) se o “discurso” (verbal, claro, mas também o do olhar, do gesto, da distância mantida) nos interessa, é porque ele preenche não só uma função de signo numa perspectiva comunicacional, mas porque tem ao mesmo tempo valor de ato: ato de geração de sentido, e, por isso mesmo, ato de presentificação. Daí essa ambição talvez desmedida: a semiótica do discurso

35. Ana Claudia de OLIVEIRA. Interação nas mídias. In: Comunicação e interações, p. 29. 36. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 167. 37. Expressão emprestada de Eric LANDOWSKI, Presenças do Outro, p. 127.

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que gostaríamos de empreender a do discurso como ato -, deveria ser, no fundo, algo como uma poética da presença. (...) Por trás do título, um texto que se baseia em outros textos, os da nossa cotidianidade, ela própria tecida por uma infinidade de discursos sociais e de imagens, de usos estratificados e de práticas singulares em cujo entrelaçamento o sentido ora se faz, ora se dissolve. 38

Em citação ulterior, no estudo sobre a interação nas mídias, e as mídias são a

origem do corpus coletado para esta investigação, Oliveira argumenta sobre uma interação

vivida. Segundo a semioticista, é essa “vivência” “que torna o enunciatário um dos

constituintes do sentido da configuração em processo e os efeitos desse tipo de

processamento são os de promover uma aliança entre corpos sensíveis, corpos racionais e

estados de alma, que fazem o texto ser”. É evidente que se está no âmbito da “condição de

produção” e na dimensão enunciativa, no entanto, o que são os “corpos sensíveis” e os

“corpos racionais” aos quais se refere essa pesquisadora?

Mesmo intuindo que esses corpos constituem presenças, é na tentativa de

compreendê-los enquanto tal que recupera-se aqui a proposição de Oliveira e observa-se que a

apresentação do estudo situa os corpos na perspectiva dos:

Discursos interativos montados em torno de si mesmo, esses atuam como outros mundos possíveis, sustentados no e pelo jogo enunciativo que é espetacularizado nas mídias com o propósito de devolver o sujeito a um mundo da significação e do sentido. Ao mesmo tempo em que esse sentir é a possibilidade do advir do sujeito, esse é imediatamente lançado em novos percursos de busca de si, de suas faltas e de encontros efêmeros.39

Obviamente, tanto Oliveira quanto Landowski tem suas postulações encetadas no

legado de Greimas, mais precisamente em “Da Imperfeição”, que é a obra em que o fundador

da disciplina tece em filigrana uma perspectiva teórica abarcando a irrupção do sentido e as

ordens sensoriais. É Greimas quem ensina que “A coalescência das sensações pode ser

considerada como um enriquecimento da comunicação.”40 e para afirmar isso ele parte de

uma elucubração sobre a finalidade da arte, na qual, a despeito do que se possa dizer sobre o

artista e suas intenções, é possível afirmar que o objeto da arte é ela mesma e que ele se

constrói na experiência estética do observador. A partir dessa proposição e depois de ter

examinado um exemplário de excertos literários que dão conta de manifestações da ordem da

experiência sensível, Greimas explica que: 38. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 10. 39. Ana Claudia de OLIVEIRA. Interação nas mídias. In: Comunicação e interações, p. 8. 40. A. J. GREIMAS, Da imperfeição, p. 72.

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Estas referências metafóricas à ordem gustativa das sensações não são inocentes: englobada pela cotidianidade pragmática ou cognitiva, a apreensão de uma outra coisa, daquilo que é não-sujeito para o sujeito, efetua-se sobre o plano sensorial. O espaço organizado da percepção se converte em uma extensão biomática em que todas as espécies de sinestesias são possíveis. Admite-se facilmente que as ordens sensoriais estão dispostas em estratos de profundidade, segundo uma hierarquia instituída, de certo modo, pela distância que separa o sujeito do objeto alvo. Assim, inclusive no mundo racionalizado da visão – o mais superficial dos sentidos -, distinguem-se os níveis escalonados do eidético, do cromático e, em última instância, da luz. 41 (...) a figuratividade não é uma simples ornamentação das coisas, ela é esta tela do parecer cuja virtude consiste em entreabrir, em deixar entrever, graças ou por causa de sua imperfeição, como que uma possibilidade de além (do) sentido. Os humores do sujeito reencontram então, a imanência do sensível.42

Esse referencial teórico comporta o conceitual dos corpos sensíveis, que podem

ser, por exemplo, aqueles no estado de fruição da experiência estética. Mas também os corpos

racionais, para os quais, também a título de exemplo, a arte só tem sentido cognoscível e isso

só será rompido no insólito de outra possibilidade de sentir, ou seja, a visão de “outra ilha”.

No entanto, ainda é preciso compreender o que constitui o “jogo enunciativo” do qual trata

Oliveira ao explicar que ele é espetacularizado pelas mídias.

No capítulo “Explorações estratégicas”, de “A sociedade refletida”, há uma

alusão ao jogo quando Landowski trata das estratégias do fazer fazer. A discussão inicial é em

torno da definição de “estratégia”, termo que é usual nos discursos de guerra e nas relações de

enfrentamento. Mas, Landowski ensina que embora o uso em geral seja dessa ordem, a

“estratégia evolui no que concerne a uma prática da comunicação e da relação fiduciária, o

estrategista tradicional acaba ele mesmo se tornando semioticista.”43 Mesmo admitindo que

há várias outros possibilidades para definir estratégia, é com base nos raciocínios de indução e

de dedução que Landowski traça uma analogia para falar de “percurso estratégico” e de

“competência estratégica”. E, posto isso, ele explica que a orientação do estudo não é “a

palavra, mas a noção que ela engloba”, ou seja, entende-se que a sua disposição não é

voltada para o significado do nome da “coisa”, mas para conhecer essa “coisa” cujo nome é

estratégia. O pesquisador explica também que a idéia de ação objetivando a vitória e

conseqüente relação de enfrentamento entre adversários que a palavra circunscreve, dá lugar a

41. A. J. GREIMAS, Da imperfeição, p. 70 - 71. 42. Ibid., p. 74. 43. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 173.

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“noção semiótica de confronto entre actantes”44. Em seguida, com o propósito de dar conta

dessa questão, Landowski postula e orienta a realização de um percurso dedutivo, portanto

estratégico, que demanda competência do analista, e, segundo o estudioso, o “(...)

conhecimento, a que se resume nosso próprio potencial “estratégico” ou heurístico, nos é

fornecido, mais uma vez pela gramática narrativa.”45 Na continuidade da investigação, esse

semioticista, tendo em consideração as condições de produção e apreensão da significação e

como objeto de exame a “confrontação interactancial”, dispõe as relações possíveis entre

actante e antactante, o que resulta “em dois tipos elementares de condutas estratégicas” . No

caso de um actante “parceiro-sujeito no plano cognitivo: o caminho está aberto para as

estratégias ditas de manipulação”. Em contrapartida, Landowski explica que “(...) se a parte

adversária for apreendida como um actante dotado apenas de competência pragmática –

como pura “força” sem “consciência” (de si mesma, do outro) –, a única conduta de

interação possível pertencerá ao contrário ao que nos propomos chamar de estratégias de

manobra.”46 Com o que, tem-se de um lado as “estratégias operacionais (pragmáticas)” e,

de outro, as “estratégias fiduciárias (cognitivas)”, sobre as quais é Landowski quem segue

explicando que:

Desse ponto de vista, há lugar, portanto para uma epistemologia da estratégia: de um lado, as condutas comandadas pelo princípio meta-estratégico de apropriação, pelo sujeito, dos determinismos físicos, inscritos “nas coisas” (fazer tecnológico), ou passionais, inscritos na “natureza humana” (fazer tecnocrático): de outro, as estratégias de interação fundadas na manipulação do “livre arbítrio” – razão dos sujeitos (fazer político) ou mana que habita os elementos (fazer mágico).47

Concernente a essas estratégias, Landowski explica ainda que se trata de uma

configuração de princípios de racionalidade sujeita a variações de acordo com o caso a ser

examinado. No entanto, ele acrescenta que “devemos prever, ao contrário, que, ao menos na

maioria dos casos, teremos de nos haver com práticas interacionais que combinam, ou

articulam em níveis diferentes, dois ou vários desses princípios de racionalidade.” 48 Para

discorrer sobre isso ele retoma o caso do jogo de xadrez, que constitui uma “tática enunciva”

atualizante, no qual “o antactante se apresenta como um material maleável, com base em

certas regularidades de comportamento cujo conhecimento define a competência operacional

44. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 174. 45. Ibid., p. 174. 46. Ibid., p. 176. 47. Ibid., p. 177. 48. Ibid., p. 178.

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do “estrategista”, na medida em que modelizam adequadamente a competência pragmática

da parte a manobrar.”49 Então, Landowski explica que numa relação de interação entre

“sujeitos falantes” isso também pode ser depreendido, mas também há a possibilidade de, a

partir do jogo de linguagem, os parceiros em interlocução transgredirem as regras e alterarem

o jogo. Tratam-se de “estratégias enunciativas” virtualizantes e nas palavras de Landowski,

“(...) se um só sujeito operador e algumas regras bastam para as manobras “táticas”, o

conceito de estratégia aparece, aqui abarcando uma relação actancial mais equilibrada, pois

a competência estratégica só se concebe, como vemos, distribuída no plano enunciativo entre

dois “calculadores”.”50 Admitindo-se que esse seja o “jogo enunciativo”, antes de retomá-lo

no âmbito do contexto midiático investigado por Oliveira, parece producente compreender o

que “faz ser” a manipulação.

O pressuposto é que a noção de estratégia “opera no estágio da virtualização dos

programas narrativos manipulando a competência decisional (isto é, cognitiva) do anti-

sujeito”51, no entanto, o que faz com que isso seja possível? Ao enveredar nessa questão

observa-se que se está na dêixis das estratégias “fiduciárias” na tipologia descrita por

Landowski e, de acordo com Greimas e Courtés,

(...) o contrato fiduciário põe em jogo um fazer persuasivo de parte do destinador e, em contrapartida, a adesão do destinatário: dessa maneira, se o objeto do fazer persuasivo é a veridicção (o dizer-verdadeiro) do enunciador, contra-objeto, cuja obtenção é esperada, consiste em um crer-verdadeiro que o enunciatário atribui ao estatuto do discurso-enunciado: nesse caso, o contrato enunciativo (ou contrato de veridicção) que garante o discurso enunciado; se o contrato fiduciário sanciona um programa narrativo no interior do discurso, falar-se-á então de contrato enuncivo.52

De volta ao estudo de Landowski em “A sociedade refletida”, é importante

recuperar o que ele explica no capítulo entitulado “Sinceridade, confiança e

intersubjetividade”. Trata-se da problemática da “encenação do raciocínio”, a qual consiste

num fazer-crer, que é um procedimento de persuasão e, portanto, manipulatório. Landowski

introduz duas categorias de base dessa ordem, que são a argumentação versus persuasão, e

propõe discuti-las não enquanto categorias, mas nas suas articulações. Entre a crença no que

se diz e a crença em quem diz, ou seja, o argumento e a dicção de quem produz o discurso,

49. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 177. 50. Ibid., p. 177. 51. Ibid., p. 177. 52. A. J. GREIMAS e J. COURTÉS. Dicionário de semiótica, , p. 208-209.

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para esse semioticista tratam-se “apenas de diferentes meios disponíveis para produzir, em

função da diversidade das culturas, um só e mesmo efeito de sentido, o de “verdade”.53

Acorda-se que numa situação de comunicação, a priori, existem três actantes: o

sujeito do fazer persuasivo e ao mesmo tempo enunciador competente que quer e pode ser

acreditado (questão de credibilidade), o objeto no qual se crê ou não (questão de

verossimilhança), e o sujeito do fazer interpretativo e enunciatário competente que quer e

pode crer (questão de credulidade). Entretanto, Landowski diz que há discursos cuja

organização interna constrói “ilusões referenciais”54, como, por exemplo, a construção

objetivada do discurso científico. E, em contrapartida, há os discursos construídos a partir de

“ilusões enunciativas”55 e são esses que mais importam à investigação desse estudioso.

Cingido no conceito de “ilusões enunciativas”, duas configurações são

examinadas por Landowski: a promessa e a aposta. No primeiro caso, sobre a promessa,

Landowski explica que “O essencial do fazer persuasivo do enunciador consiste, pois, nesse

caso, em fazer o enunciatário aderir à imagem de si mesmo que lhe é proposta enquanto

árbitro (“real” ou simulado) dos valores, isto é, enquanto destinador construído.”. 56 Então,

ele demonstra, tomando como exemplo as promessas eleitorais, de que modo, na relação entre

os parceiros, o enunciador se coloca na posição de promitente, com base na construção de um

enunciatário que se reconhece desejoso. Sobre isso, Landowski dirá: “(...) o que importa,

antes de mais nada, não é que a coisa prometida se realize ou não, mas sim o próprio ato de

adesão pelo qual os sujeitos, identificando-se com os simulacros que lhe são propostos,

passam a confiar nos mesmos que, sob a roupagem de “promessas”, na realidade moldam o

“desejo” deles.”.57 Por conseguinte, no caso da aposta, Landowski demonstrará que a relação

é inversa, em lugar de um enunciador-sujeito visando um destinador, tem-se um enunciador-

destinador em busca de um sujeito. E, com base nisso, esse pesquisador dirá que:

Apostar na existência de Deus talvez não pertença a uma estrutura absolutamente diferente. (...) No entanto, os mesmos dispositivos parecem também agir em todas as espécies de situações que nada têm de “metafísicas”. (...) para que eu me fie, é preciso que eu tenha certa “representação” positiva daquele a quem me dirijo: é preciso que meu parceiro, S1, se me apareça notadamente, ao mesmo tempo, como capaz de realizar o que lhe peço e como desejoso de fazê-lo “por mim” (em outra

53. A. J. GREIMAS e J. COURTÉS. Dicionário de semiótica, , p. 208-209. 54. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 155. 55. Ibid., p. 155. 56. Ibid., p. 157. 57. Ibid., p. 157.

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palavra, como “devotado”) – isto é, mais uma vez, em termos semióticos, como um sujeito competente. Ora, é claro, essa “representação”, esse simulacro do sujeito, só eu posso construir, ainda que o “fazer interpretativo” que exerço antes de tomar minha decisão – isto é, apostar ou não na credibilidade de S1 – tome por base e, em certo sentido, sancione o “discurso persuasivo” (verbal ou outro) que me dirige (explicitamente ou não). 58

Entende-se que essas são competências da ordem do poder e do saber fazer, ou

seja, modalidades atualizantes no regime de credibilidade, no entanto, como se articula o

querer ou dever fazer?

De acordo com Landowski, ao examinar na instância da enunciação as

modalidades virtualizantes, ou seja, da ordem do querer e do dever fazer, pressupõe-se que o

enunciador e o enunciatário “convergem numa só figura sincrética – “o sujeito da

enunciação” – que, encontramos aliás, em superfície, no caso da “confiança em si”59 O

estudioso ensina também que não se trata mais de um contrato, mas de uma confrontação, a

qual é sine qua non para examinar a “confiança”. Ele exemplifica dizendo que está implicada

em toda promessa a “realização de um programa”, mas que só se constitui dessa forma porque

existe a possibilidade da “realização de outro programa”, do contrário, não seria uma

promessa. Da mesma forma o juramento, uma vez que só é possível jurar fazer algo quando

existe a possibilidade de não fazê-lo. Dito isso, e tendo em conta os interesses que movem

cada um dos parceiros, Landowski dirá que são questões de confiança que regem essas

relações.

O que se segue no estudo é uma sistematização, na qual Landowski dispõe numa

tipologia as condições que remetem à “confiance” (confiança), “méfiance” (desconfiança, por

suspeitar de uma má intenção, que é um termo previsto no vocabulário da língua francesa) e

“défiance” (desconfiança, por temer ser enganando). Mas é importante a observação dele ao

dizer que o código social tem por pressuposição a confiança ritualizada. E, de fato, é possível

corroborar isso quando se pensa no “princípio da presunção de inocência” do código penal

brasileiro e no uso dessa expressão, licencioso ou não, nos discursos do cotidiano social. No

entanto, esse uso também é examinado por Landowski e pode ser localizado no subcapítulo

“Estereotipias da sinceridade”, quando o estudioso ensina que:

(...) Entre todos os códigos de referência que permitem a um enunciatário interpretar a conduta – e não só o discurso – de outrem e finalmente, saber

58. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 158. 59. Ibid., p. 158.

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com maior ou menor certeza, que “esperar” dele, há um que, ao contrário do código de honra, sempre ligado ao “estado moral” de uma sociedade e de uma época dadas, sobrevive a todas as variações ético-culturais: é o código de verossimilhança, identificável com a “doxa” do grupo social. Sistema convencional entre outros, permite, efetivamente, entre membros de uma comunidade que compartilham seu domínio, assegurar certa regularidade da comunicação. Identificando-se desse ponto de vista com o “universo de crenças” do grupo considerado, ele fornece aos enunciadores em busca de credibilidade uma parafernália de estereótipos expressivos adaptados às mais diversas situações e, paralelamente, outros tantos estereótipos de leitura à disposição dos enunciatários.60

e prossegue orientando que:

(...) o que pertence à análise semiótica e que poderia reorientar o estudo do “crer” e de seus avatares sociais, é o jogo que sua própria coexistência autoriza. Na realidade, a alternativa que se apresenta não é tão nova assim, ainda que hoje assuma formas agudas. Toda busca de “sinceridade” (em relação ao outro) ou de “autenticidade” (em relação a si mesmo) pressupõe, de fato, a colocação em relação de dois discursos, um concebido como o discurso do não-sujeito (é o verossímil de tipo formulário, explicitamente escorado pelo social), o outro recebido – não menos convencionalmente, aliás – como o “discurso do sujeito”, aquele em que ele “crê”. Ficaria para ser explorado, nessa perspectiva, todo leque de estratégias discursivas, a começar por diversas formas de desembreagem enunciativa, como a ironia e o gracejo, por exemplo, pelos quais o enunciador produz um discurso defasado em relação a seu próprio verossímil, em relação ao que se espera de sua “personagem” ou de sua “imagem. São todos esses recursos estratégias para reforçar no enunciatário, através do desvio interpretativo que eles lhe impõem, o sentimento de que o enunciador “adere de fato” ao espírito, quando não à letra do que enuncia. Num plano mais geral, toda infração às “conveniências”, toda ruptura em relação à estereotipia das condutas socializadas pode, sem dúvida, induzir o mesmo efeito de sentido. Acaso não se diz, a contrário, de alguém, que esse alguém é “muito cortês” para ser “honesto”? Correlativamente, o recurso aos procedimentos de embreagem enunciativa só poderia, então, remeter, ao contrário, a uma radical a-socialidade do sujeito: não contente de persuadir outrem da verdade convencional dos papéis que assume, ele ainda quer se persuadir de que, no enunciado, não é apenas a “linguagem”, o “social”, que fala por ele, mas que é mesmo o “eu” – Ego – que, sem mediação, diz sua “verdade”.61

Observa-se, então, que o “jogo enunciativo”, do qual este estudo se ocupou até o

momento, constitui uma estratégia que pode ser depreendida e, compreendê-la implica a

recuperação do percurso de raciocínio dos actantes numa relação de confronto na dimensão

enunciativa. Tal relação, engendrada por modalidades virtualizantes e atualizantes, ou seja,

questões de confiança e de crença que regem o mise em scène do raciocínio nas relações

60. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 163. 61. Ibid., p. 163.

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intersubjetivas, tem sua discussão teórica ampliada em “Presenças do outro”. Nessa obra,

que tem por objeto o “outro”, Landowski realiza uma investigação tripartite; primeiro,

focalizando a alteridade, o “não-si”, ele investiga possibilidades de identificações, em

seguida, examina o “si”, que são as presenças, “aquele que diz, e que diz ‘eu’”62, para então,

na última parte, se ocupar da figura do “outro”, do terceiro. E, sobre isso, esse pesquisador

observa que “Não, todavia, a de um simples “Ele” situado à distância, mas aquela forma

específica do Outro que tem por função enviar ao sujeito sua própria imagem,

‘representando-o’”63. Esse semioticista ainda destaca a importância de as análises das

relações e dos processos se desenvolverem na perspectiva da dimensão vivida, o que, no que

tange às mídias, é ensinado por Oliveira:

A partir desse regime sintático de vivências, experiências, o destinatário-enunciatário-interlocutário tem sido levado a provar com todo o seu corpo, com os seus sentidos em sinestesia, o todo de sentido. O destinatário tornou-se parte constitutiva das grandezas de sentido e toma parte em seu desenrolar significante. Na medida em que o destinatário enquanto sujeito vive a construção da interação, ele vai provar o seu gosto, provando o gosto do outro e, também, o da interação, e ainda o gosto das coisas e das gentes. Nessa experiência de vida partilhada ele se mostra aos outros. Assim, a vida das mídias concretiza os possíveis caminhos para, ao degustar, saborear, provar o outro pelos seus modos de presença, o sujeito comum, o destinatário, vá aprendendo modos de ser si mesmo. Nas mídias, inclusive, ele aprende os modos de se expor para ser visto, por mecanismos de ensaio e erro, de imitação mimética, de dedução, de intuição. Tanto a razão quanto a sensibilidade levam a depreender essas manifestações comportamentais e as suas apreensões estruturam-se como modos de aumentar a compreensão dos fenômenos e contextos midiáticos, assim como dos sujeitos e de seu viver nas e pelas mediações.64

Sobraçado no legado de Greimas, dando ênfase à “Da Imperfeição” 65 e ao

conceito de estesia contido nessa obra, em continuidade à pesquisa na perspectiva de uma

sociossemiótica, a proposição de Landowski em “Passions san nom” é de um regime de

interação da ordem do sensível. Depois de investigar as condições de emergência do sentido a

partir de uma distância objetivante e do ponto de vista da relação intersubjetiva entre os

sujeitos do enunciado e da enunciação, é o estudioso quem explica que esse terceiro “Ensaios

de Sociossemiótica” objetiva:

62. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. XI. 63. Ibid., p. XI. 64. Ana Claudia de OLIVEIRA. Interação nas mídias. In: Comunicação e interações, p. 37. 65. A. J. GREIMAS. Da imperfeição.

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(…) uma conceitualização de tipo interativo que permita descrever semioticamente a maneira pela qual o componente sensível – estésico – intervém na apreensão do sentido in vivo, ou seja, em ato e em situação. (...) A dimensão estésica de nossa relação com o mundo é aquela através da qual nos é dado experimentar o sentido como presença: formulação deliberadamente provocadora em face das proposições de uma “semiótica racional”. Até o presente, analisávamos as significações articuladas, consideradas como da ordem do inteligível e do cognitivo, e eis que agora a questão é tomar por objeto um sentido que será da ordem do sensível e do afetivo. Imaginamos facilmente com isso duas semióticas distintas e pertencentes a escolas rivais, que, na pior das hipóteses se ignorariam mutuamente e, na melhor, entrariam em conflito aberto: de um lado os especialistas do discurso, do cognitivo, do racional, do articulado, do categórico, do formalizável (e hoje do tensivo), do outro os amadores do pré-discursivo, do sensitivo, do afetivo, do amorfo, do estésico, do impressivo (e, veremos, do contagioso)... Mas na realidade, se uma semiótica “do sensível” – ou antes, uma semiótica capaz de dar conta dos princípios de eficiência do sensível no processo de construção do sentido em geral – deve se constituir, isso não poderá ser nem se justapondo à semiótica “do inteligível” em diferentes formas de se revestir, nem prendendo colocar-se em seu lugar.(...)66

A contribuição de Eric Landowski para o edifício teórico da semiótica discursiva

delineia-se no âmbito da interação entre os sujeitos e se dá em continuidade ao postulado na

gramática narrativa greimasiana. Esse pesquisador desloca-se do nível abstrato da

narratividade, a fim de empreender suas proposições teóricas na esfera do discurso em ato e

na dimensão do sensível. É relevante considerar que na síntese proposta por Landowski as

dimensões que remetem ao sentido de estesia não destituem as precedentes, que são a

manipulação e a programação, mas sim complementam o rigor da disciplina. De forma que,

da ordem do inteligível e do cognitivo, os regimes de manipulação e de programação tratam

da junção, a qual se estabelece entre dois sujeitos e um objeto de valor. Decorre daí o estado

de conjunção, determinado pelo sujeito que está junto do objeto de valor, ou o estado de

disjunção, quando o sujeito e o objeto de valor estão disjuntos. Em contrapartida, é pertinente

levar em consideração uma dimensão estésica, portanto, sensível, na qual o que se vê

transformar é a relação do sentir do outro, que se processa nos regimes de ajustamento e de

acidente, os quais tratam da união e conclamam dois actantes. Com isso, Landowski propõe

um esquema lógico, cuja síntese dispõe os quatro regimes e as categorias que os definem, ou

seja, a programação, a manipulação, o acidente e o ajustamento; categorizados em

continuidade vs. descontinuidade, inteligível vs. sensível, segurança vs. aventura, nas dêixis

positiva e negativa respectivamente.

66. Eric LANDOWSKI. Passions sans nom, p. 5, tradução nossa.

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O regime de manipulação é marcado pela descontinuidade e pressupõe a

intencionalidade e dois papéis actanciais, a do actante manipulador, que irá transformar e, a

do actante manipulado, que sofrerá a transformação, portanto, da competência cognitiva. O

programa narrativo da manipulação é modalizador, ou seja, um sujeito que modaliza outro

sujeito, a fim de torná-lo competente para fazer, o que por sua vez requer a performance do

sujeito manipulado e implica num objeto de valor. A manipulação pode ser articulada a partir

do sistema de valores no qual o destinatário está inserido, ou seja, trata-se de reconhecer a

capacidade cognitiva do destinatário; sempre se cria uma situação “virtual”, na qual o

manipulado é “convidado” a reavaliar seus valores. A razão de manipular não é outra, senão a

de desviar o sujeito daquilo para o qual ele está programado e a significação mais profunda da

manipulação é a avaliação e a reavaliação dos valores, ou seja, o valor do valor.

Ao explanar sobre as estratégias de manipulação, Landowski diz que há dois

modos fundamentais de manipular, em ambos, pode-se privilegiar a dimensão econômica ou

identitária, a valorização dos objetos, os custos moral e físico e os simulacros de ambos os

sujeitos. Uma dimensão econômica, porque se trata de comparar o valor do objeto, e também

uma dimensão identitária, que é a questão do simulacro (a imagem), a posição de quem faz a

promessa, ou seja, o fazer persuasivo do sujeito manipulador, no intuito de valorizar o objeto.

Daí, a construção do simulacro que vai designar a confiança e a credibilidade, o contrato

fiduciário. Com relação ao contrato de fidúcia, por exemplo, o excesso de garantias por parte

do destinador pode produzir a suspeita, ou a desconfiança, por parte do destinatário. As

estratégias de manipulação constituem formas de fazer o sujeito fazer. Por exemplo,

Landowski diz que, na sedução e na provocação, observa-se a construção do simulacro do

sujeito incapaz, mas a intenção é a de impulsioná-lo a fazer. A dimensão do status do

destinador também vai determinar o patamar dessa provocação, por exemplo, no duelo,

afrontamento restrito aos homens da nobreza, no qual o nível social e o reconhecimento são

os determinantes. De um lado, o desejo de ser reconhecido por alguém com autoridade, faz

com que o destinador se coloque em posição de superioridade perante o destinatário; de outro,

o destinatário seduzido que irá se esforçar para corresponder ao simulacro positivo que lhe é

atribuído pelo destinador na relação intersubjetiva.

O regime de programação é marcado pela continuidade, pressupõe a regularidade

e um papel actancial, ou seja, contempla o comportamento regular do sujeito e sua expectativa

inteligível. O programa narrativo não é transformador da identidade do sujeito, ao contrário,

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trata de confirmá-la por meio de um fazer repetitivo e de manter o actante programado para

desempenhar sempre o mesmo papel temático.

E, no âmbito dos fazeres inscritos nos regimes de manipulação e de programação,

de outra feita, no que concerne às experiências dos sujeitos no mundo, é Greimas que, em “Da

Imperfeição”, orienta para outra possibilidade do advir do sentido ao escrever que:

Se o uso, transformando os gestos sensatos em insignificância, comporta, apesar de tudo, certos efeitos libertadores, a usura, tomando seu tempo, ataca os momentos da vida que o homem desejaria consagrar a outra coisa – outra coisa a que ele chama ‘vida’ – e põe-se a corroê-los. Pois embelezar a vida procurando ‘saídas’ não é por acaso reconhecer que este lugar de onde se sai ‘não é a vida’, e criar para ele um alhures imaginário nutrido de espera e esperança?67

Sobraçado no legado de Greimas, Landowski propõe, em complemento ao estado

da arte da teoria semiótica, o regime de ajustamento, que é predominantemente da ordem do

sensível e pressupõe uma competência estésica. Trata-se do sentir as qualidades estésicas e

parte das escolhas do sujeito, sem mediação entre um sujeito e outro, ou entre um sujeito e um

objeto. A interação entre os sujeitos pode se dar de forma bilateral ou unilateral, contudo, o

ajustamento tende a provocar o encontro entre os sujeitos, de modo que o efeito de sentido

seja convergente a ambos. O contágio é um mecanismo pelo qual se processa o ajustamento,

nesse caso, um sujeito sente o sentir do outro. Por essa razão, é de especial importância o

sentir do sujeito a partir das apreensões sensíveis, pelos canais sensoriais: a visão, a audição, o

paladar, o olfato e o tato, e inclusive, a percepção corporal do espaço. Sobre isso, Landowski

define explicando que:

A acepção que damos ao termo ‘contágio’ diverge, em partes, dos usos comuns oriundos do campo medical e mais especialmente epidemiológico, e acessoriamente, hoje, o vocabulário da informática. Em termos epidemiológicos, ou sob o ângulo viral, o contágio se analisa como um processo de comunicação que obedece perfeitamente à lógica da junção. Ao contrário, redefinido conforme a ótica que procuramos consolidar, o termo designa um caso exemplar de processo de união. (...) No caso do contágio por impressão, embora a interação se desenvolva no plano sensível (portanto, no modo do contágio intersomático), tudo se passa, do ponto de vista do resultado, como se nos encontrássemos ainda sob o regime da junção. Em situações semelhantes, a interação acaba com a reprodução, mais ou menos calculada conforme o caso, de processos predefinidos, nada mais, nada menos que no quadro da clássica ‘manipulação’ esquematizada pela gramática narrativa. (...) No caso oposto, em um encontro regido pelo princípio do contágio semio-estésico stricto sensu, nada poderia aparecer

67. A. J. GREIMAS, Da imperfeição, p. 23 – 30.

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como definido de antemão, nem mesmo como verdadeiramente previsível, pois é na própria confrontação interactancial que podem então devir à existência, no plano do ser e do agir em conjunto, formas, figuras (como se diz no universo da dança) e processos inéditos. Em outros termos, sob o regime da união segundo sua forma mais pura, o encontro cessa de repetir o mesmo e se torna, enfim, criador de sentido.68

E, ancorado nas últimas postulações de Greimas, a quem Landowski atribuirá o

mérito de inventar, ou reinventar,

(...) a estesia, a sensibilidade, o corpo, em suma, as condições mesmas do que chamamos de ajuste: com ajuda de algum acidente que permita a negação ou a superação dos programas fixados de antemão, se produzirá o trânsito de uma cotidianidade marcada pelo máximo de segurança possível e, correlativamente, pela insignificância e o cansaço, a uma vida “outra” na qual as relações entre actantes não serão nada seguras, porém na qual, em contrapartida, farão sentido. 69

Dessa perspectiva, nota-se, o regime de acidente proposto por Landowski remete

à descontinuidade, corresponde ao acaso e ao aleatório, cuja concepção mais geral é a

irregularidade. Portanto, tem-se a programação (previsível) versus o acidente (imprevisível);

de um lado, o homem que se dá conta de que pode organizar a vida (programar) e, do outro, a

rotina que faz com que as coisas percam o valor (o sentido). De repente, ele se deixa captar

por um outro sentido, a exemplo de “Da Imperfeição”, quando o sujeito programado é

interrompido pela gota70 e se deixa captar pela ilha, um novo sentido. Landowski também

ensina que a produção do efeito de sentido se dá a partir do encontro do sujeito com o objeto

ou com outro sujeito, não permitindo a prioridade de uma dimensão cognitiva como nos

regimes de programação e manipulação. Por sua vez, a repetição pode ser uma manifestação

no regime do acidente, no entanto, ela se dará de forma aleatória e não programada.

A união, que reúne o regime de acidente e o regime de ajustamento, é a

denominação de um estado de interação e não se constitui numa fusão, uma vez que, não se

trata da interação de dois que se reduzem a um. Pois, são autônomos, diferentes e vão manter

uma certa distância, sem que um se imponha ao outro, porque se existe uma resistência

recíproca é possível criar algo de novo, mas se fossem idênticos não seria.

Esta incursão da pesquisa, ao passo que delineia o arcabouço teórico e

metodológico da semiótica discursiva proposta por A. J. Greimas e seus colaboradores, situa o

68. Eric LANDOWSKI, Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa, p. 20 - 21, 50. 69. IDEM. Interacciones arriesgadas, p. 70, tradução nossa. 70. A. J. GREIMAS. Da imperfeição, p. 81.

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objeto de investigação no quadro teórico de referência. O estudo é uma abordagem do corpo

do político coletado em um corpus de discursos midiáticos que versam sobre política, ou seja,

observado sob a perspectiva do discurso social que trata de assuntos políticos ou, como

escreve Landowski, “os discursos e as práticas que, simplesmente, fazem referência à ‘coisa

política’ (...)” 71; de outra feita, não apenas, mas também o corpo na sua dimensão política,

dado a ver num espaço de interação e, seguindo a proposição desse semioticista, apreendido

num “conjunto de práticas significantes não-verbais que se manifestam na diversidade dos

espaços e das situações de interação micro e macrossocial.” 72 De forma que, o político e a

política são o âmago desta pesquisa de natureza documental, que objetiva depreender as

práticas significantes do corpo da política que desvelam e explicitam o político.

Dispostos nas matrizes do quadrado semiótico, os regimes de manipulação, de

programação, de ajustamento e de acidente, que inscrevem-se respectivamente nas lógicas da

intencionalidade, da regularidade, no estado de junção, e da sensibilidade e do aleatório, no

estado de união, constituem o postulado teórico que cinge esta investigação do corpo do

político na sua função política. Parte-se da premissa que as figuras políticas dão visibilidade a

traços distintivos, os quais, assumidos da perspectiva de um discurso em ato, permitem

compreender como se organizam o sentido e a interação entre os sujeitos do enunciado e da

enunciação. A hipótese fundante é que o regime de interação basilar do poder político segue a

lógica da intencionalidade do procedimento de manipulação, que é articulada à lógica da

sensibilidade do procedimento de ajustamento. Dessa dinâmica entre os procedimentos, que

só pode ser operada passando constantemente pela dêixis do procedimento da programação,

segue a lógica da regularidade73. A hipótese decorrente é que um ajustamento reativo74

encontra-se dominantemente nas manifestações discursivas. Desta forma a hipótese maior é

que as práticas interativas articulam dinamicamente as dimensões do inteligível e do sensível

e são os mecanismos dessa articulação que permitem compreender a construção do sentido do

político e da política. Para testagem dessas hipóteses a linguagem do corpo do político,

doravante corpo político neste trabalho, é examinada, descrita e analisada a partir da

recuperação do gesto, da proxêmica, da postura, da movimentação cinética e do olhar. Em

suma, de um percurso que vai da figurativização política no enunciado à presença corpórea na

enunciação. Essas duas instâncias são relacionadas com os regimes de interação e de sentido

71. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 206 – 207. 72. Ibid., p. 206 – 207. 73. IDEM. Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa, 2005. 74. IDEM. Passions sans nom, 2004.

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propostos por Landowski que dão os esteios teóricos e analíticos à investigação, uma vez que

é esse semioticista quem ensina que:

(...) podemos precisar nossa posição no que refere às diferentes opões estilístico-epistemológicas possíveis (se é permitido forjar essa expressão híbrida) relativamente ao estatuto semiótico do sensível. Na verdade, a distinção de regimes de sentido e de interação que nos serve para apreender a competência dos sujeitos analisados, que constroem duplamente o sentido do seu estar-no-mundo (ao mesmo tempo segundo a junção e segundo a união), se aplica também, ou deveria também se aplicar aos meta-sujeitos que são os próprios semioticistas, quando pretendem analisar o vivido dos sujeitos colocados no nível precedente. Isso significa que a teoria semiótica deveria poder se construir simultaneamente – mesmo que, na prática, as tarefas sejam repartidas entre pesquisadores distintos, como é atualmente o caso – em “união” com o que ela descreve (segundo um regime de relação sensível plenamente assumido) e em relação de exterioridade objetivante no que tange a seu “objeto” (segundo o vocabulário do outro regime, de tipo juntivo ou, hoje, tensivo). É a partir daí que se constitui a diferença constatável entre um estilo semiótico que procura esquematizar e objetivar o real – e que, nessa medida, permanece na esfera de uma semiótica “racional” –, e o não olhar, não “irracional”, certamente, mas mais compreensivo que, por nossa parte, queremos promover.75

A fundamentação teórica é a da gramática narrativa de Greimas e os

desdobramentos realizados por Landowski, que postulou, ao lado do regime de junção, o

regime de união. Por outro lado, vale-se dos mecanismos enunciativos, dos percursos

figurativos e temáticos na análise dos procedimentos discursivos e axiológicos investidos em

um corpus de estudo constituído de textos fotográficos e vídeográficos postos em circulação

nas grandes mídias impressa, televisiva e digital, para dar visibilidade ao corpo dos

governantes da República Federativa do Brasil do 22º ao 29º períodos de Governo

Republicano, ambos inclusive.

Cabe registrar que a pesquisa teve início a partir de um levantamento bastante

amplo e de caráter exploratório, que significou a aproximação com a corporeidade desses

governantes. Essa primeira visada, que foi na galeria dos presidentes da República, deu

visibilidade aos “retratos cosméticos”76, os quais, mesmo que uma análise

superdimensionada fosse factível, eram inócuos em termos de significação para a perspectiva

encetada neste estudo. Observou-se que o traço distintivo, na postura quase invariante das

figuras de presidentes dispostos na galeria, era no máximo a barba e a farda, talvez uma

75. Eric LANDOWSKI. Aquém e além das estratégias, a presença contagiosa, p. 19 – 20. 76. Essa expressão alude à tipologia construída por Landowski em Flagrantes delitos e retratos e tem sua

acepção sistematizada no segundo capítulo deste trabalho.

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fisionomia mais ou menos soturna, mas sempre alinhada à dimensão do retrato oficial77. Por

sua vez, no decorrer da pesquisa deparou-se também com uma gama de imagens que não

eram propriamente “oficiais”, mas constituíam uma variante delas, o retrato pseudo-oficial,

que também demonstrou ser pouco significativo para sustentar uma investigação que pudesse

dar conta da enunciação. Consonante à idéia de ruptura e irrupção do sentido, num segundo

momento, observou-se que a dicotomia governos militares e civis, embora se desse a ver

frágil para tratar o corpo, se constituía significativa quando tomada na perspectiva do corpo

político em relação com o outro no espaço social. Então, numa terceira etapa, optou-se por

investigar em que situações esses corpos políticos se davam a ver de maneira reiterada, com o

que, foi possível circunscrevê-los em atos.

Tal delimitação tem no escopo a campanha política, o ato de tomar posse e de

deixar o governo, os encontros oficiais e o dia-a-dia do governante, o que configura um

percurso imagético construído pela pesquisa do que foi o governo realizado. A pesquisa, que

tem uma aspectualidade cronológica, não tem o objetivo de realizar uma trajetória individual

do político e, tampouco, de descrição de regimes políticos; exclusivamente fundada no

arcabouço da semiótica, entende-se que essas perspectivas competem a outras áreas do

conhecimento. A expectativa é que este trabalho possa contribuir, no âmbito da comunicação,

para os estudos da dimensão política da linguagem corporal não restrita a uma grade de

significação pré concebida, mas também à sua organização semi-simbólica ou de teor de

esteticidade e, no âmbito da semiótica, para as investigações das práticas interativas.

77. Os termos “retrato oficial” e “pseudo-oficial” são acepções de Landowski, pertinentes ao ensaio Flagrantes

delitos e retratos e também serão sistematizados no capítulo II deste estudo.

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I – ENTRE O POLÍTICO E A POLÍTICA, O CORPO

Os homens em geral julgam mais com os olhos que com as mãos; porque todos são capazes de ver, mas poucos, de sentir;

todos vêem aquilo que você parece, poucos tocam aquilo que você é.

Nicolau Maquiavel78

1.1 – A geração do corpo político

O corpo dicionarizado é a “estrutura física dos animais e do ser humano” e “no

ser humano, o conjunto da cabeça, tronco e membros”, e é também “cadáver”. Em outra

acepção o corpo é a “parte essencial ou principal de algo”. No sentido figurado, ele é a

“materialidade do ser”, remissivo à alma, que no sentido religioso é “a parte imortal do

homem; espírito” e numa outra perspectiva é a “natureza moral e emocional de uma

pessoa” 79. A materialidade mortal do corpo em relação de oposição à metafísica imortal, a

ética e a estética da alma são categorias circunscritas no discurso platônico e dada a ver, por

exemplo, na elocução de Sócrates, em Fédon, que diz que:

(...) ao divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel e que sempre mantém identidade consigo mesmo, o que há de mais semelhante é a alma, enquanto, ao humano, mortal, não inteligível, multiforme, dissolúvel e que nunca se mantém idêntico a si mesmo, o que é mais semelhante é por sua vez, o corpo.80

À luz do cristianismo “a alma do corpo”, na perspectiva platônica, assume os

valores do ascetismo medieval e sobre isso Aranha explica que:

Partindo do princípio de que o corpo é sinal de pecado e degradação, a sua purificação é feita por práticas de ascetismo. A palavra ascese em grego significa “exercício” e inicialmente, na Grécia antiga, apenas se referia ao treinamento de atletas; aos poucos, adquire o sentido de disciplina espiritual de autocontrole. Com o cristianismo o termo passa a significar o controle dos desejos pela renúncia aos prazeres do corpo, o que podia ser feito pela

78. Nicolau MAQUIAVEL. O príncipe, p. 106. 79. Antonio HOUAISS e Mauro de Salles VILLAR. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, elaborado no

instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Portuguesa S/C Ltda. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 388.

80. PLATÃO. Diálogos. Seleção, introdução e tradução direta do grego: Jaime Bruna. 9ª. Edição. São Paulo: Cultrix, 2006., p. 166.

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mortificação por meio do jejum, abstinência e flagelações, por exemplo, chicoteando o próprio corpo.81

Na perspectiva agostiniana, alma e corpo constituem uma unidade, sendo o corpo

mortal, terreno, efêmero e guiado pela alma, que é imortal. Para Santo Agostinho, o corpo é a

possibilidade de concretização do pecado, uma vez que ele é o lugar do “desejo intenso de

bens ou gozos materiais, inclusive o apetite sexual”. No entanto, Agostinho explica que o ser

humano é dotado de livre–arbítrio e é auxiliado pela graça divina, de modo que, a alma pode

evitar o mal porque pode governar o corpo. Isso significa dizer que a liberdade em Agostinho

é o estado de um sujeito de volição, competente e subordinado ao discurso prescritivo de um

destinador maior. De forma que a alma, a serviço da lei divina, nega o gozo e engendra o

corpo na programação do sagrado, de forma que a isenta de quaisquer riscos. Talvez esse seja

um exemplo de “aniquilação como forma suprema de conjunção com o divino” no postulado

de Greimas e, ao mesmo tempo, o que justifica a crença de Nietzsche num Deus que soubesse

dançar; prismas distintos que tem um mesmo ancilar: a “busca da significação” e do sentido.

Saído da escuridão da caverna e das trevas do cristianismo, o corpo é

reinaugurado pelo pensamento filosófico e, no exemplário do discurso da mudança, o que

renasce é:

(...) Um corpo inquieto que, arrancando-se do grande corpo coletivo, paga muito caro esta sua emancipação. Porque esse corpo que o ser humano faz agora passar para o primeiro plano de suas preocupações, para protegê-lo, cuidar dele, prolongá-lo encontra-se só no momento da morte, sem a assistência moral do corpo da linhagem, desse grande corpo coletivo que, este sim, não morre jamais.82

Nesse simulacro o corpo não é mais da esfera do ideal e tampouco o parecer da

perfeição, embora ainda pertença de alguma forma à lógica das coisas ordenadas de modo

divino. À guisa do dualismo platônico, ao postular o corpo moderno o método cartesiano

marca outra ruptura. Trata-se agora de um ser humano constituído de um corpo imaterial de

natureza espiritual e de um corpo material. Sobre isso quem explica é Descartes:

(...) mostrei como deve ser a fabricação dos nervos e músculos do corpo humano, para fazer com que os espíritos animais, estando dentro, tenham a força de mover seus membros: assim se observa que as cabeças, um pouco depois de serem cortadas, ainda se mexem e mordem a terra, embora não sejam mais animadas; também mostrei que mudanças devem ocorrer no

81. Maria Lúcia de Arruda ARANHA e Maria Helena Pires MARTINS. Idem, p. 327. 82. Jacques GÉLIS, O corpo, a igreja e o sagrado. In: História do Corpo: Da Renascença às Luzes, p. 130.

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cérebro para causar a vigília, e o sono, e os sonhos; de que maneira a luz, os sons, os cheiros, os sabores, o calor e todas as outras qualidades dos objetos exteriores nele podem imprimir diversas idéias por meio dos sentidos; de que maneira a fome, a sede e as outras paixões inferiores também podem lhe enviar as suas; (...) O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo quantos autômatos, ou máquinas moventes, a indústria dos homens pode criar, utilizando poucas peças em comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, hão de considerar esse corpo como uma máquina, a qual, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e possui em si movimentos mais admiráveis do que nenhuma das que podem ser inventadas pelos homens.83

Somado ao pensamento de Descartes o de David Hume, observa-se que se está

diante da transformação do corpo. Um corpo objeto, à imagem e semelhança da lógica

produtiva foi dado a ver no discurso cartesiano e vai ser reiterado na descontinuidade dos

modos de vida da era industrial. E é Hume quem explica que:

A pele, os poros, os músculos e os nervos de um operário diferem dos de um homem de qualidade, assim como os seus sentimentos, suas ações e suas maneiras. As diferentes condições de vida influenciam toda a estrutura, externa e interna, e essas diferentes condições provêm necessariamente, porque uniformemente, dos princípios, também eles necessários e uniformes, da natureza humana. 84

Antes, um percurso narrativo potencializado, no qual o não crer que o corpo é

imagem e semelhança do criador corrobora para a profanação; depois, um percurso

atualizado, em que o poder e o saber admitem o corpo que se assemelha a uma máquina. E, na

esteira do pensamento filosófico, este percurso culmina na afirmação nitzscheneana de que

“Tudo é corpo, e nada mais; a alma é apenas nome de alguma coisa do corpo.”85

A despeito da concepção do corpo idealizado, sagrado ou máquina e da sua

figurativização, é importante ter em conta a experiência do encontro com esse corpo. Para

Vigarello, em O corpo do Rei, “a superioridade impõe tradicionalmente uma vertente física.”

e, na sequência, esse autor complementa que são:

(...) indícios corporais que ajudam a perceber melhor, ou até a pensar melhor, a força obscura do poder, esta emanação essencialmente particular cujo exemplo é o tocar as escrófulas, após a sagração: “Deus te cura, o rei te toca”. Ato físico, ele manifesta quase visualmente o poder do monarca,

83. René DESCARTES, Discurso do método, p. 70 – 95. 84. Citação de Nicole PELLEGRIN. Corpo do comum, usos comuns do corpo. In: História do Corpo: Da

Renascença às Luzes, p. 131. 85. Friedrich NIETZSCHE. Assim falava Zaratustra, p. 47.

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concretizando um a instância quase divina: aquela que transforma o curso das coisas pelo simples contato do corpo. 86

Ora, mas são só signos que marcam o encontro com a corporeidade do poder? De

que forma a semiótica examina o corpo? É no estudo de Landowski, “Fronteiras do corpo.

Fazer signo, fazer sentido” que parece repousar a resposta e a explicação para estas questões.

O pesquisador inicia esse trabalho dizendo que o interesse da semiótica por investigar o corpo

consiste numa abordagem senão recente pouco sistematizada e prossegue discorrendo sobre a

ambigüidade que o estudo da significação do corpo constitui. O semioticista explica que o

corpo está próximo demais e a familiaridade dada por essa perspectiva subjetiva é um óbice

para se distinguir a identidade e, a despeito da proximidade, tem-se uma estranheza pelo fato

de não se compreender objetivamente o seu funcionamento. Ao que Landowski explica:

(...) Porque aquilo que nós conhecemos de mais perto, e num certo sentido, que melhor conhecemos, é ao mesmo tempo aquilo que nos parece menos redutível ao estatuto de um obcjeto de conhecimento comum: como se este corpo que somos nós próprios tivesse por natureza, ou por um qualquer inexplicado privilégio (ou talvez, precisamente, pelo simples facto que ele é nós próprios), vocação para escapar aos poderes de investigação da ciência.87

Então, empenhado numa investigação que dê conta do corpo, do sentido e da

relação entre ambos, pressupondo um olhar externo e objetivante em oposição a uma

apreensão interior, “fundada num ‘vivido’ que pode em si mesmo, de imediato, subjetivamente

e talvez mesmo intersubjectivamente significar, ou melhor (se tal expressão for permitida)

fazer sentido.” 88, Landowski estuda a problemática do sentido na dimensão do corpo.

Primeiro o pesquisador descreve o “corpo dessemantizado” e o exemplifica como o corpo

retalhado e paciente da medicina, cuja redução do sentido à função permite reconhecê-lo

como o parâmetro de corpo das ciências naturais. Em contraposição, ele examina o “sentido

desincarnado”, ou seja, o sentido desligado do corpo, apreensível de fora e peculiar às

ciências humanas, que pode ser observado da semiologia à teoria do comportamento

psicológico. Então, sem dissociar o inteligível e o sensível, ao contrário, articulando-os, esse

semioticista postula um “corpo a corpo, fazer sentido”, de forma que em lugar de uma

relação “exclusivamente unilateral” tem-se a “partilha do sentido” na interação de pelo menos

dois corpos.

86. George VIGARELLO. O corpo do rei. In: História do Corpo: Da Renascença às Luzes, p. 503-504. 87. Eric LANDOWSKI, Fronteiras do corpo. Fazer signo, fazer sentido, p. 271. 88. Ibid., p. 271.

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Em “Fronteiras do Corpo” Landowski reconhece o fato de o corpo “emitir

intencionalmente determinadas ‘mensagens’ por combinação de ‘signos’ corporais

codificados.”89 e admite, não sem ressalva, que essa seja uma perspectiva adotada pelas

ciências, porém, dado que “o nosso corpo está permanentemente, em si próprio e por si

próprio, a fazer sentido”90, o estudioso postula o exame de um “fazer sentido” diferente ou

além do “fazer signo”. A proposição do pesquisador sobrepõe a perspectiva reducionista do

corpo como espaço de codificação, para dar lugar a presenças sensíveis e à noção de que o

sentido é apreendido de forma inteligível e sensível ao mesmo tempo. Sobre isso Landowski

também ensina que:

(...) o estatuto semiótico do corpo não é o de uma substância de expressão disponível para ser articulada com vista a traduzir conteúdos que lhe são exteriores. Importa encará-lo antes como uma forma indefinidamente em construção, cujo sentido e valor não podem ser apreendidos senão relacional e dinamicamente, numa relação permanentemente movente do sujeito a si próprio ao mesmo tempo que ao outro.91

Eis, portanto, nesta investigação, o frontispício rumo ao corpo do poder. Corpos

de muita ou pouca alma, corpos que são “a prisão da alma”, corpos de “movimentos

admiráveis”, corpos de “diferentes condições de vida”; corpos inteligíveis e sensíveis, com os

quais se acredita que é possível dançar92, o que constitui um legítimo ato semiótico. E, sobre

os atos semióticos, Landowski ensina que são:

(...) operações enunciativas realizadas mediante a articulação de uma matéria de expressão de qualquer outra ordem (por exemplo, gestual ou proxêmica). Mas em todos os casos, aquele sentido do qual dizem que ele “advém”, ou que emerge do processo em curso, não pode ser visto como um objeto dotado de uma existência em si, nem como uma realidade ligada a tais ou tais marcas textuais particulares que teriam adiantadamente e de um modo geral por função ou, ao menos, por efeito de o objetivar.93

1.2 – Simulacros de príncipes e sapos

89. Eric LANDOWSKI, Fronteiras do corpo. Fazer signo, fazer sentido, p. 280. 90. Ibid., p. 280. 91. Ibid., p. 285. 92. Friedrich NIETZSCHE. Assim falava Zaratustra, p. 59. 93. Eric LANDOWSKI. Aquém e além das estratégias, a presença contagiosa, p. 19 – 20.

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Sabe-se, ainda que intuitivamente, que alguém, ou alguma coisa, é capaz de

exercer uma ação sobre outrem, ou sobre algo, de maneira a fazê-lo fazer. O que permite

comparar a ação destruidora de uma onda gigante ou a precipitação de gotas d’água sobre a

superfície da terra, com uma pessoa ou uma mídia capaz de influenciar a opinião e a conduta

de um indivíduo, de um grupo ou de uma coletividade. Em quaisquer dos casos é indiscutível

que se está sob uma mesma dimensão, a do poder, no entanto, o que parece diferenciá-los é de

outra ordem.

O poder substantivado significa “direito ou capacidade de decidir, agir e ter voz

de mando; autoridade”94 e sobre o verbo de transitividade que permite que o primeiro se

estabeleça e se mantenha, é Greimas quem explica que:

“1. Poder pode ser considerado, no quadro de uma teoria das modalidades, como a denominação de um dos predicados possíveis do enunciado modal*, que rege um enunciado descritivo* (de fazer* ou de estado*). Conceito indefinível, é ele, contudo, suscetível de ser interdefinido em um sistema de valores modais escolhido e postulado axiomaticamente. 2. Estando os enunciados modais por definição destinados a reger outros enunciados, duas estruturas* modais do poder devem ser consideradas: a que comporta um enunciado de estado e que é denominada, por comodidade, poder-ser, a que tem por objeto um enunciado do fazer: o poder-fazer. Por sua vez, estas duas estruturas podem ser projetadas sobre o quadrado* semiótico e produzir categorias modais correspondentes: (...)”95

Tendo em conta que o poder em questão é de caráter político, o enveredar com

Landowski nas estruturas modais do poder, do poder político, permite dizer que o poder-fazer

é a ação do sujeito que detém a voz de mando e, como explica este semioticista, de dimensão

pragmática. Mas qual é ou quais são as competências que garantem o estado de autoridade do

sujeito? Greimas ensina que também existe a dimensão cognitiva, “(...) definível como a

assunção das ações pragmáticas pelo saber (...)”, o que permite falar que um sujeito dotado

de saber pode-ser a voz de mando. Mas como depreender a edificação do poder político na

sua dimensão pragmática e cognitiva?

No território das ciências políticas o filósofo Leo Wolfgang Maar ensina que:

“Falar em Grécia é falar em democracia. Atenas, a “Constituição” de Sólon, os grandes debates na ágora – praça em grego -, a época de

94. Antonio HOUAISS e Mauro de Salles VILLAR. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, elaborado no

instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Portuguesa S/C Ltda. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 547.

95. A. J. GREIMAS e J. COURTÉS. Dicionário de semiótica, , p. 372.

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Péricles, etc. De vez em quando, lembra-se Esparta, o seu espírito bélico e o ascetismo da sua vida cotidiana, “espartana”. (...) O termo “política” foi cunhado a partir da atividade social desenvolvida pelos homens da pólis, a “cidade-estado” grega. (...) a atividade política desenvolver-se-ia como cimento da própria vida social. O que a política grega acrescenta aos outros Estados é a referência à cidade, ao coletivo pólis – e o prefixo póli possui este sentido, que corresponde ao multi latino.”96

E complementa explicando que enquanto a atividade política grega se estabelece no espaço

público e com a participação de Estado, governante e cidadãos, a romana “concentra-se na

disputa pelo poder de tutela do Estado, como Instituição a serviço de interesses privados.”,

ao passo que a política medieval prima pela dicotomia “poder político” e “poder civil”, ou

seja, o fazer dominador coercitivo dos nobres e o fazer dominador persuasivo do clero. E,

ainda segundo Maar, (...) Para atender a estes papéis, a atividade política exigiria uma nova

forma: uma nova concepção de Estado, a um tempo dominador e dirigente. Para

corresponder a esta nova forma seria necessário um novo agente, que Maquiavel

denominaria de “Príncipe”, o governo do Estado.” 97

Com Maquiavel, um dos primeiros pensadores a assumir uma atitude dita

científica ao estudar as artes da política e do governo na prática, a política começou a ser

analisada como a matemática, a física ou a astronomia, ou seja, mediante deduções lógicas;

isenta do amparo da ética e da jurisprudência. Trata-se da política na perspectiva das relações

entre os homens e, principalmente, com vistas à conquista e à conservação do poder. A

essência da política na obra do filósofo italiano é o poder, e o exercício do poder é a

dominação. No legado maquiavélico consta que:

“(...) Ao Príncipe torna-se necessário, porém, saber empregar convenientemente o animal e o homem. Isso foi ensinado veladamente aos Príncipes, pelos antigos escritores, que relatam o que aconteceu com Aquiles e outros Príncipes antigos, entregues aos cuidados do centauro Quíron, que os educou. É que isso (ter um preceptor metade animal e metade homem) significa que o Príncipe sabe empregar uma e outra natureza. (...) Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Os que se fazem unicamente de leões não entendem de Estado. Por isso, um Príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram cessem de existir. Se os homens todos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado que são maus e que não a observariam a teu respeito, também não és obrigado a cumpri-la para com eles. Jamais faltaram aos Príncipes razões

96. Leo Wolfgang MAAR. O que é política, p. 31 – 33. 97. Ibid., p. 31 – 33.

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legítimas para dissimular o descumprimento da palavra empenhada. Disso poder-se-iam dar inúmeros exemplos modernos, mostrando quantas convenções e quantas promessas se tornaram írritas e vãs pela deslealdade dos Príncipes. E, dentre estes, o que melhor soube valer-se das qualidades da raposa saiu-se melhor. Mas é necessário disfarçar muito bem essa qualidade e ser bom dissimulador. (...) Contudo, o Príncipe não precisa possuir todas as qualidades acima citadas, bastando que aparente possuí-las. (...) Príncipe deve, no entanto, ter muito cuidado em não deixar escapar da boca expressões que não revelem as cinco qualidades acima mencionadas, devendo aparentar, à vista e ao ouvido, ser todo piedade, lealdade, integridade, humanidade, religião. Não há qualidade de que mais se careça do que esta última. É que os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir.”

98

Neste fragmento de “O Príncipe”, destacam-se expressões pertinentes à estrutura

modal prescritiva que é própria do discurso doutrinário e não surpreende que tenha sido o

pensamento fundante do termo “maquiavélico”. Nele enuncia-se o simulacro dos Príncipes

antigos, a tipologia do leão e da raposa como modelo a ser simulado, a pedagogia para

realizar a performance do “jogo da verdade”99 e, portanto, a dissimulação. O argumento ético

preconiza a ação política e não a moral cristã, o que é próprio do seu contexto espaço

temporal. Prova disso é que, ao passo que o pensamento de Maquiavel postula o fazer político

sem sujeição à moral religiosa, nos croquis de Leonardo Da Vinci os corpos dissecados dão

visibilidade da profanação do corpo humano. Enquanto o primeiro se ocupa das expressões da

matéria, o outro se debruça sobre a constituição dela, trata-se de um corpo violado do ponto

de vista religioso e um organismo sem alma na perspectiva da ciência, mas sensível e

inteligível em todos os casos. No entanto, com vistas a não perder o foco do que se pretende

examinar, parece que o extraordinário seria depreender o gesto desse humano categorizado

raposa ou leão; ou então, a proxêmica desse corpo mesmo que dito sem alma.

Ao longo das gerações100 edificaram-se vários modelos de dominação e submissão

políticas. O “principado”, por exemplo, constitui um simulacro de governo. Assim como um

dia se falou no poder exercido pela nobreza e pelo clero medievais, numa sociedade dita

moderna fala-se em classes dominantes e dominadas. No entanto, como se estabelece essa

98. Niccolo MACHIAVELLI. O príncipe; e, Escritos Políticos, p. 40. 99. A expressão “jogo da verdade” é utilizada neste parágrafo a partir de Greimas, quando ele explica que “ (...)

A categoria de veridicção é constituída, percebe-se, pela colocação em relação de dois esquemas*: os esquemas parecer/não-parecer é chamado de manifestação*, o do ser/não-ser, de imanência*. É entre essas duas dimensões da existência que atua o “jogo da verdade”: estabelecer, a partir da manifestação, a existência da imanência, é decidir sobre o ser do ser.”, in: A. J. GREIMAS e J. COURTÉS. Dicionário de semiótica, p. 533.

100. Cf. Eric LANDOWSKI, A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 45-55.

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interação entre governantes e governados? Parece que além de atribuir termos que

classifiquem aqueles que detêm o poder e os que são destituídos dele, é possível considerar a

ação entre esses sujeitos. Trata-se do governante que tem como par pressuposto governados,

ou seja, o sujeito do poder político em relação de interação com outros sujeitos transcende um

simulacro de príncipes ou de sapos.

Falar em simulacros de príncipes e sapos significa falar das figuras que encenam o

discurso político, as quais no nível narrativo cumprem papéis actanciais e, sobre isso,

interessa conhecer a proposição de Landowski, que ensina que:

“O termo actante tem todavia um traço ambivalente (e, por vezes, incômodo): ele serve para designar tanto as partes do ato de enunciação (enunciador e enunciatário), quanto os protagonistas (sujeitos, destinadores, etc...) da “narrativa”, isto é, as figuras actanciais do discurso enunciado, encarregadas de cumprir diversos programas narrativos “objetivados”. (...) examinando certas configurações que põem indissociavelmente em jogo, a uma só vez, as relações inscritas no enunciado-texto e as relações enunciativas entre interlocutores, como acontece cada vez que os actantes (enunciativos) da comunicação, comprometidos na produção do discurso, assumem ao mesmo tempo, num segundo, plano, um estatuto e papéis de actantes (enuncivos) da narração. Isso equivalerá a desenvolver sistematicamente as conseqüências da idéia de que as instâncias actanciais da enunciação, longe de serem simples pólos, neutros de certa forma, de uma relação de comunicação concebida como puramente funcional (do tipo emissor versus receptor), interagem umas com as outras enquanto figuras investidas de significação, isto é, notadamente, dotadas de competências modais e empenhadas em certos programas. (...)”101

Com base nessa explicação e no ensinamento de que “a significação não está

‘nas coisas’, mas resulta da sua colocação em forma” 102, vale pensar no imperativo, e por

que não dizer no extraordinário, de observar esses sujeitos em ação. Nas palavras de

Landowski, “não é mais a consistência da mensagem, nem sua boa transmissão que estão em

jogo, mas a inefável, a indizível presença de um sujeito substancialmente fundado antes de

toda linguagem.”103 Então, poder-se-ia, ao contrário dos teóricos da comunicação que têm nos

enunciados seus objetos, debruçar-se na enunciação e apreender o sentido em ato. De forma

que, tudo o que venha a ser dito sobre os governantes e os governados resulte do encontro

101. Eric LANDOWSKI, A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 156. 102. Ibid., p. 167. 103. Ibid., p. 166.

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entre sujeitos da enunciação e do enunciado; uma análise corpo à corpo do modelo no qual

eles se edificaram. Isso corrobora com a máxima de que “o sentido, longe de ser recebido ou

percebido, é pensado como fruto de um ato semiótico gerador, que o constrói.” 104

Em síntese, não objetivasse este estudo depreender o “corpo político” a partir do

rigor metodológico da semiótica, ou seja, tomar “a prática semiótica” sobre a qual Greimas

salienta que “(...) cobre, entre outras coisas, os discursos gestuais* e as estratégias

proxêmicas*(...) os prolegômenos de uma semiótica da ação*” 105, à guisa do que ensina Eric

Landowski e que foi introduzido anteriormente, seria o bastante examinar no discurso de “O

Príncipe” a construção de um simulacro de governante e de governado. Mas, vislumbra-se a

possibilidade de ver que há um “príncipe” além daquele inscrito na obra inaugural do

pensamento político de uma geração. No simulacro do corpo político, entre o poder e a

política há um corpo sensível. Trata-se de uma mirada mais racional, para quem não o

emoldura na emergência do pensamento médio, e mais sensível, porque a média é medíocre, o

olhar mediano é ingênuo e talvez seja preferível “julgar pelas mãos”, “erguer o olhar”106 e

recuperar o gesto, para então depreender o sentido.

1.3 – O que pode o corpo do poder político

A mobilidade dos atores políticos na morfologia social e o fazer desses sujeitos, o

“direito ou capacidade de decidir, agir e de ter voz de mando; autoridade” 107 de uns em

relação à “submissão” de outros, é próprio de um fazer manipulatório. A “ação do homem

sobre outros homens”108 com vistas a estabelecer certa regularidade na dominação política

obedece a um programa narrativo. Ora, quem reconhece a programação pressupõe na

complementaridade a manipulação, e, por conseguinte, a estratégia, ou seja, “o exercício do

“fazer-fazer” que conduz os anti-sujeitos a construírem e a realizarem os programas

104. Eric LANDOWSKI, A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 167. 105. A. J. GREIMAS e J. COURTÉS. Dicionário de semiótica, p. 380. 106. Expressão emprestada de Landowski, que por sua vez a atribui à Greimas e faz a seguinte remissão em nota

de rodapé: “Cf. ‘A propôs du jeu’, Actes sémiotiques – Documents, II, 1980, p. 30, texto em que veremos que vários de nossos desenvolvimentos encontram sua fonte.”, em A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 179.

107. Antonio HOUAISS e Mauro de Salles VILLAR. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, elaborado no instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Portuguesa S/C Ltda. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 585.

108. A. J. GREIMAS e J. COURTÉS. Dicionário de semiótica, p. 300.

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narrativos queridos na realidade pelos sujeitos”.109 No entanto, no que consiste a estratégia

dessa manipulação? Como se articula esse “exercício do fazer-fazer” manipulatório? É

possível pensar em outros regimes de interação imbricados nessa estratégia?

No intróito de “A sociedade refletida”, Landowski explica que um “conjunto de

manifestações bastante heteróclitas” constitui os estudos daquela obra e afirma que eles

contribuem “para a construção de um mesmo espaço social de significação”, em seguida,

defende que: “Esse espaço construído não “reflete”, por natureza, algum dado socioletal

preexistente. Ele representa, ao contrário, o ponto de origem a partir do qual o social, como

sistema de relação entre sujeitos, se constitui pensando-se”.110 A proposição desse

semioticista é ambivalente, porque a medida que ele dá conta da orientação metodológica, ele

também escreve o aporte teórico. É, por exemplo, o que se pode depreender nas linhas

subseqüentes, quando ainda no intróito, ele ensina que:

“(...) nada do que vai nos reter é dado a priori, nem a existência de um “campo social”, nem a realidade das “relações sociais”. Tudo o que faz sentido é construído e, por conseguinte, pressupõe um fazer de ordem “cognitiva”, remetendo nos sujeitos, ao que chamaremos sua “competência semiótica”. Por conseguinte, formulado em termos ingênuos, o objetivo da sociossemiótica será compreender melhor “o que fazemos” para que, de um lado, o “social”, o “político” ou ainda o “jurídico” existam enquanto tais para nós como universos relativamente autônomos (isto é, de que modo construímos seus objetos) e para que, de outro lado, as relações que aí se estabelecem entre atores sociais sejam, elas próprias, carregadas de significação para os sujeitos que as vivem ou que as observam e, conseqüentemente, dotadas de certa eficácia quanto à determinação de suas próprias práticas.”111

E a partir do grifo em “objetos”, “sujeitos” e “práticas”, Landowski elenca, no dizer dele de

forma mais técnica, três ordens de problemas: a de semântica, a de sintaxe e a de pragmática.

No delinear teórico e metodológico de “A sociedade refletida”, não sem antes

advertir que: “para que a sociossemiótica ganhe existência, será necessário ainda que o que

ela se propuser a dizer de seu objeto não seja simplesmente redundante em relação ao

discurso sociológico (ou mesmo psicossociológico)” 112, Landowski descreve a noção de

estratégica. Mas, em lugar de uma definição acabada, ele doa competência pragmática e

cognitiva ao apresentar outra possibilidade em relação ao objeto; “não a palavra, mas a noção

109. A. J. GREIMAS e J. COURTÉS. Dicionário de semiótica, p. 182. 110. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 14. 111. Ibid., p. 11. 112. Ibid., p. 12.

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que ela engloba” 113. Num raciocínio encetado na gramática narrativa, na forma da

“confrontação interactancial”, o estudioso demonstra a construção de um modelo e descreve

uma tipologia do fazer estratégico nas matrizes do quadrado semiótico. Posteriormente, ele

traça um distintivo entre o fazer tático e o fazer estratégico. Explica que no tático há “um só

sujeito operador e algumas regras bastam”, ao passo que “a competência estratégica só se

concebe (...) distribuída no plano enunciativo entre dois ‘calculadores’.” 114 Em seguida, faz

ver na “perspectiva de Sirius” 115 que:

“(...) essa dualidade só é apreensível em função de uma certa acomodação do olhar. Visto bem de perto, o confronto – por exemplo, a batalha que se desenrola – se decompõe numa poeira de movimentos sem seguimento nem significação aparente (Fabrice em Waterloo). Para se perceber a massa das forças em presença e a rede de comunicações que as mobiliza, bem como para se compreender a evolução de suas relações, é preciso, evidentemente, que o observador se dê um mínimo de campo. Há, pois, uma boa distância de observação estratégica – a mesma que, nos embates esportivos, define o lugar do árbitro. A partir daí, o olhar pode, ao mesmo tempo, apreender uma lógica de conjunto e identificar o respectivo papel que nela assume cada um dos campeões postos face a face. O confronto, no entanto, também pode ser visto ainda de mais longe, ou de mais alto. Então, o espetáculo aparente não será mais o de duas individualidades ou de dois campos bem diferenciados e que sucessivamente se fustigam, mas, antes, a unidade dialética de um só corpo a corpo, totalizando as intervenções pontuais; não mais o espetáculo dos choques sucessivos e alternados de duas partes que conservam sua autonomia, mas o equilíbrio íntimo de seus movimentos acoplados, como se, a uma distância suficiente, a luta se tornasse uma dança.” 116

Posto isso, importa retomar o que escreve Oliveira em “Da Imperfeição”. A obra,

que constitui o último legado individual de Greimas, devotada às questões da experiência

estética, é prefaciada pela semioticista, que a certa altura intervém da seguinte forma:

“Se, por um lado, esses direcionamentos propiciam um estudo do papel da estesia na experiência humana – o que conduz à análise dos vários modos de recepção estética, de estruturação do gosto, das formas e estilos de vida em nossa sociedade, por outro, indicam a urgência da edificação de uma semiótica da corporeidade. A relação entre sujeito e objeto é articulada pelo corpo. Em razão desse papel operador, para a investigação semiótica tornou-se da maior relevância o tratamento do corpo e do seu fazer na interação do sujeito com outros sujeitos, com os objetos e consigo mesmo.” 117

113. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 174. 114. Ibid., p. 180. 115. Ibid., p. 180. 116. Ibid., p. 180. 117. Ibid., p. 13.

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É nessa perspectiva, no rastro da estrela mais brilhante do céu noturno, “Sirius”

na escritura de Landowski e “Mehr Licht” 118 nas palavras de Greimas, retomando as de

Goethe, que se reconhece o estado da arte e se ratifica o quanto é imperioso assumir a

corporeidade política sob foco da experiência sensível. Apostar que, diante de um corpo, a

despeito do poder que detenha, quer seja um príncipe, um sapo ou uma anta119 na sua

singularidade, sempre se pode mais em termos de significação.

118. Trata-se da expressão atribuída a Goethe e utilizada por Greimas em Da Imperfeição, p. 91. 119. Alusão ao título do livro de Diego MAINARDI, Lula é minha anta.

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II – ANATOMIAS DO CORPO POLÍTICO

(... )Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,

Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície (...)

Álvaro de Campos [heterônimo Fernando Pessoa]120

As investigações sobre o corpo político no âmbito das ciências humanas

constituem matéria há muito examinada. Observa-se que na maioria das vezes não se trata de

um corpo para ser sentido e sim um sentido no corpo homologado pela grade de significação.

Para dar conta dessa diferença de enfoque, por exemplo, do edifício político e do poder

ambicionado por Hitler, bastaria reconhecer no Heil Hitler, usado na saudação nazista, uma

reiteração da expressão do imperialismo romano, o Ave César. Ou então, seria suficiente

perceber que a figura da águia romana está reiterada no discurso do imperialismo ianque para

se falar delas como o símbolo das legiões romanas e dos Estados Unidos da América. Mas,

importa também depreender que a figura de uma ave grande, carnívora e de acuidade no

olhar, ao passo que presentifica a força e o poder deixa ver que tipo de dominação esses

governantes exercem. De forma que, quando o presidente Barack Obama numa referência ao

presidente Lula, diz “esse é o cara” 121, o sentido que circula nessa frase não se reduz a uma

descontração no protocolo, porque o “cara” é a “presa”. Ora, é muito mais plausível a

devoração do que a adoração na mira de uma ave carnívora que, de sua espacialidade, objetiva

o cone da América do Sul e vê uma economia emergente e um chefe de Estado de

popularidade global. Afinal, sabe-se que nenhum império dura para sempre, então, é questão

de sobrevivência.

Por conseguinte, é possível observar que o ato de levantar o braço direito num

ângulo de quarenta e cinco graus com a mão levemente inclinada é uma marca do discurso

nazista e também do império romano que, segundo os historiadores, tem origem no gesto dos

cavaleiros medievais. Sobre isso esclarece Chevalier:

120. Fernando PESSOA. Obra poética, p. 362. 121. A frase do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, dita durante uma conversa informal entre os

líderes do G-20 reunidos em Londres em março de 2009, foi captada e veio à público pela rede de TV britânica BBC, conforme noticiou o jornal Estado de S. Paulo no dia 3 de abril de 2009. Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje. Acesso em 04 de junho de 2011.

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Poder-se-ia dizer que o ideal da cavalaria se resume em um acordo de lealdade absoluta para com as crenças e compromissos aos quais toda vida está submetida. (...) Melhor conviria, pois, caracterizar o cavaleiro como sendo o senhor de sua montaria, esta última podendo ser, evidentemente, quer seu cavalo, quer seu próprio eu, ou o serviço do rei, ou o devotamento à dama eleita, ou ainda o exercício de uma função, ou a liderança de uma guerra etc. 122

Posto isso, não há estranhamento em relacionar esse gesto de lealdade e

comprometimento do cavaleiro medievo com o ato enunciativo de uma criança que, liderando

o jogo, levanta o braço e com a mão espalmada conclama: “quem quer brincar coloca o dedo

aqui!”. A despeito dos atores, quer seja o imperador, o ditador, o cavaleiro ou a criança,

persiste o gesto que aglutina os sujeitos e dá a ver o objetivo comum desses corpos que,

inegavelmente, estão cingidos pelo poder.

2.1 – Brasília, centro do planalto e planalto do poder

Se é fato que a presença constitui um sentido que se faz presente, ou seja, “(...) de

repente, o ‘presente’ se torna efetivamente presente, porque uma diferença começa a fazê-lo

significar”123 e, se o que é factível em relação ao “tempo” é plausível no que concerne ao

“espaço”, objetiva-se o lugar onde esses corpos políticos se presentificam. É em Brasília, a

capital federal da República e o centro do poder, que se inicia a trajetória visando a

depreensão da política do corpo.

A construção de uma cidade planejada para abrigar a nova capital do país foi

iniciativa do presidente Juscelino Kubitschek, o projeto urbanístico, denominado Plano Piloto,

foi elaborado pelo urbanista e arquiteto Lúcio Costa e o espaço que pertencia ao Estado de

Goiás deu lugar, em 1960, ao Distrito Federal. Vista do alto a cidade de Brasília tem a forma

de uma grande ave de asas abertas124 pousada no centro geográfico do Brasil. No dorso do

pássaro está o Eixo Monumental, que abriga os pontos turísticos, edifícios e espaços públicos

122 Jean CHEVALIER. Dicionário de símbolos, p. 201. 123. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 10. 124. Sobre isso importa recuperar que “Numa entrevista de 1986, Lucio Costa aborreceu-se quando a imagem

do P.P.B. [Plano Piloto de Brasília] foi comparada a um avião. Ele respondeu que seria ridículo fazer uma cidade com forma de avião. Para ele, o desenho se parece mais com uma borboleta. Mas e se, mesmo assim, muita gente continuar vendo um avião na planta baixa do P.P.B.? Será que a expressão “plano piloto” tem alguma coisa a ver com isso? (...) O desenho de Lucio Costa para o P.P.B. lembra uma cruz pode sugerir o encontro do céu com a Terra, do divino com o homem...” BUORO, Anamelia Buoro; KOK, Beth; ATIHÉ, Braga Aloia. Abre as asas sobre nós, p. 21-22.

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e, ao dividir um eixo transversal em duas partes, forma numa curva suave a Asa Norte e a Asa

Sul. Nas asas estão distribuídos os setores bancário, hoteleiro, comercial, residencial e

universitário. No eixo central está uma grande praça gramada em meio aos edifícios culturais,

catedral, palácios e edifícios que compõem a administração, os ministérios e os três poderes

da República: o Congresso Nacional, sede do Legislativo; o Supremo Tribunal Federal, sede

do Judiciário e o Palácio do Planalto, sede do poder Executivo.

Fig. 1 – Do alto, uma grande ave de asas abertas, pousada em pleno sertão brasileiro, harmoniza-se com a geometria curvilínea que Niemeyer escolheu para dar forma ao concreto dos palácios.125

Posicionar-se defronte aos espectros mais importantes de Brasília significa estar

diante da escritura arquitetônica de Oscar Niemeyer que, além dos edifícios dos três poderes,

projetou: a residência provisória do presidente da República, o Catetinho, uma casa de

madeira que serviu de apoio a Juscelino durante a construção da cidade; a Catedral de

Brasília; o Palácio da Alvorada, residência oficial da presidência, o Teatro Nacional de

Brasília e o Palácio do Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores. O que Niemeyer

enuncia em linhas curvas, imprime leveza e movimento ao concreto armado desses edifícios,

125. Vista aérea de Brasília. Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/1,,EMI133812-15223,00.html.

Acesso em 08 de outubro de 2011.

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que distribuídos em espaços muito amplos se estendem e se harmonizam à horizontalidade do

cerrado. E, isso quem explica, em tom de depoimento, é esse arquiteto:

Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida. De curvas é feito todo o universo, o universo curvo de Einstein.126

Fig. 2 – Uma caixa retangular revestida de janelas de vidro divide-se em três pavimentos de lâminas de concreto sustentadas por colunas que, nesse prisma de visão, deixam ver de forma modesta parte da lateral de suas colunas, no mais, a rampa e o parlatório. Observado nessa perspectiva, o Palácio do Planalto assume sua função de uso como sede da soberania nacional.127

Há uma série de reiterações que dão conta dessa posição central da cidade, que

construída em forma de cruz tem no entorno a compleição de um resplendor formado pelas

cidades satélites. Observa-se que a ave, vista do alto, pousada no planalto central remete à

figura do Divino, que é visto no alto e no seu resplendor. As asas estão reiteradas nas marcas

126. Oscar NIEMEYER, Minha arquitetura, p. 17. 127. Fonte: http://www.senado.gov.br/noticias/agencia/internacional/fotos/palacio_planalto.jpg. Acesso em 10

de outubro de 2010.

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arquitetônicas dos espectros, cuja estética divinal ocupa a centralidade do planalto. Assim

como Deus ocupou o centro do universo, legitimando também um poder político, ainda que

no invólucro da fé religiosa, no centro do planalto central está o edifício do poder executivo

republicano. Ele divide harmoniosamente com os edifícios do Congresso e do Supremo o

espaço da Praça dos Três Poderes. A praça forma a moldura do resplendor que acolhe no seu

centro a “santíssima trindade”. Eis um simulacro do corpo sagrado na construção e na

disposição desse exemplário arquitetônico.

Em contrapartida, importa retomar que é Niemeyer quem, numa referência ao

Palácio do Planalto, explica:

Primeiro separei as colunas do edifício e imaginei-me a caminhar entre elas. E senti que as devia fazer diferente, criando novos pontos de vista. As regras limitadoras de pureza estrutural não me preocupavam. A liberdade plástica me possuía e as fiz com as pontas finas e os palácios como apenas tocando o chão.128

O arquiteto, destituído de qualquer doutrina maniqueísta ou religiosa, experimenta

outra possibilidade. Sente-se atraído pela curva livre e sensual das montanhas, dos rios, das

ondas do mar, dando prova de “que a única presença concebível da significação no mundo é

sua manifestação no interior da “substância” que engloba o homem, isto é, no mundo

sensível, que é uma virtualidade de sentido por pouco que esteja submetido a uma forma.”129

e termina possuído pela “liberdade plástica”. A voz do arquiteto a respeito do processo de

criação desvela a inteligibilidade do cálculo preciso e a presença sensível e “contagiosa” que é

“o corpo da mulher preferida”, plasmado nas colunas, cujas “pontas finas” dão a ver esse

corpo “apenas tocando o chão”. E o que poderia ser tratado como a profanação do corpo no

edifício do sagrado, dá lugar ao “objeto estético que se transforma em ator sintático que,

manifestando de tal modo sua “pregnância” avança sobre o sujeito observador.”130

128. Fonte: http://www.niemeyer.org.br/. Acesso em 10 de outubro de 2011. 129. Maria Cecília de Moraes LEONEL; Edna M. F. Santos Nascimento, O sertão de Guimarães Rosa, in:

Sociedade e Literatura no Brasil, p. 92. 130. A. J. GREIMAS, Da imperfeição, p. 33-34.

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Fig. 3 – O valor estético do Palácio do Planalto é resultado do traço de Niemeyer, que numa explícita demonstração da experiência sensível, recupera as formas do mundo natural para emoldurar a arquitetura dita funcionalista. A produção de sentido de fluidez está no movimento curvilíneo dado pela luz que reverbera no espelho d’água e que as colunas dispostas em seqüência reiteram. O que poderia ser apenas da ordem da funcionalidade, prolonga o olhar, amplia o horizonte e faz sentir na dureza do concreto a leveza da forma e, num fazer que desafia a gravidade, faz ver a robustez do edifício sustentar-se nas “pontas finas” das colunas. Como o corpo que dança na ponta dos pés: inteligível e sensível.131

O extraordinário da estética que pode ser experimentada diante do Palácio do

Planalto que, como visto suplanta a dicotomia do sagrado e do profano, não permite, contudo,

prescindir da significação desse espaço como domínio de território e sob domínio do

soberano. O observador pode escolher postar-se ao lado de “Os candangos”, a obra de Bruno

Giorgi, na qual figuram dois corpos em pé, situados no centro da Praça dos Três Poderes e em

relação de equidistância com cada edifício. Na corporeidade chapada e assexuada desses dois

sujeitos presentificam-se os migrantes da construção civil, movidos pela esperança e unidos

ipsis litteres pelo discurso da promessa do “Brasil do futuro”. Sobre isso, importa recuperar a

reflexão de Holston, que analise que:

131. Foto: Sérgio Lima / Folhapress, 2009. Fonte: http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/774-reabertura-do-

palacio-do-planalto. Acesso em 10 de outubro de 2010.

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(...) A campanha de recrutamento para Brasília identificava o novo construtor da nacionalidade como o “homem comum”. Colocou no palco principal, na ribalta das atenções e da fé nacionais, aqueles que antes haviam sido excluídos dos papéis principais no desenvolvimento brasileiro: os trabalhadores etinerantes, sem qualificação e sem instrução do interior; os déclassés e os empobrecidos; as massas de nordestinos, mineiros e goianos; os cultural e racialmente não-europeus; os trabalhadores avulsos de origem tanto rural quanto urbana que migram sazonalmente por todas as regiões do Brasil, conhecidos por termos como “cabeça-chata”, “pau-de-arara” e “baiano”. A campanha designou todos estes candangos como sendo participantes-chave de um novo pacto de desenvolvimento nacional. Alegando que Brasília iria “marcar a alvorada de um povo”, como a fábrica de pneus Pirelli colocou em um anúncio comemorativo, promoveu os candangos a heróis nacionais. 132

O Planalto é na sua nomeação um palácio, que tem sob a sua concepção o plano

de uma cidade com vistas ao povoamento do centro oeste brasileiro e à proteção dessa

fronteira e, apesar de não ter a aspectualidade de uma fortificação de alto grau, guarda certas

similaridades com um castelo. Concernente a esse tipo de edificação, lê-se em Baschet que

“O castelo é o coração a um só tempo prático e simbólico do poder da aristocracia, de sua

dominação sobre as terras e os homens. (...) domina, assim, o território, como o senhor

domina seus habitantes”.133 De modo que, embora não exista uma muralha, as colunas do

Palácio do Planalto formam uma proteção no corpo principal do edifício. E, ainda que a

rampa não seja movediça, ela faz a conexão da praça com a porta principal e se estende sobre

um espelho d’água que, a exemplo de um fosso, limita a aproximação. Observa-se também

que o parlatório, na sua construção cilíndrica e verticalizada, guarda similaridade com uma

torre.

O palácio na sua descrição simbólica é “a morada do soberano, o refúgio das

riquezas, o lugar dos segredos. Poder, fortuna, ciência, ele simboliza tudo o que escapa ao

comum dos mortais. (...) ele é o centro do universo, para o país em que é construído, para o

rei que o habita, para o povo que o vê. O edifício possui sempre uma parte em que a vertical

é dominante: o centro é igualmente eixo.”134, daí a pertinência de o Planalto ser um palácio.

Em contrapartida, observa-se que enveredar na discussão sobre a sua nomeação em relação as

suas marcas arquitetônicas e ao seu uso, não recrudesce sem a presença de um soberano. No

que tange a isso, há uma passagem de Godard que serve de ilustração: 132. James HOLSTON. Cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia, p. 210. 133. Jérôme BASCHET. “Ordem senhorial e crescimento feudal”, in: A civilização feudal, p. 112-113. 134. Jean CHEVALIER. Dicionário de símbolos, p. 679.

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Em 1938, Heisenberg e Bohr passeiam pelo interior da Dinamarca. Eles passam diante do castelo de Elsinore. O sábio alemão diz: ‘Esse castelo não tem nada de extraordinário.’ O físico dinamarquês responde: ‘Sim, mas... basta dizer ‘o castelo de Hamlet’ e ele se torna extraordinário.’ Elsinore o real. Hamlet o imaginário. Campo e contracampo. Imaginário: certeza. Realidade: incerteza. O princípio do cinema: ir até a luz e apontá-la para a nossa noite. Nossa música.135

Da mesma forma que o Castelo de Elsinore pode parecer ordinário sem um

Hamlet, o Palácio do Planalto enquanto centro do poder executivo brasileiro, requer a

presença de um soberano e de um povo, que a exemplo dos candangos, façam-no significar. A

semiótica não se interessa pelo “real” ou pelo “imaginário”, o seu objeto é a depreensão do

sentido a partir das diferenças, que pode ser, por exemplo, a relação de oposição entre “o

campo” e “o contracampo” citados por Godard. Então, se a metáfora do cinema é “ir até a luz

e apontá-la para a nossa noite. Nossa música.”, a metáfora de Goethe, recuperada por

Greimas, é “Mehr Licht!” 136, o que neste estudo significa “mais luz” sobre o corpo em ato. E,

no lugar da música, a dança.

2.2 – O centro do centro do poder

O deslocamento entre o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto acontece em

aproximados seis minutos numa velocidade não superior a 40 quilômetros por hora e é o

primeiro encontro do presidente empossado com o povo. Ao deixar o Congresso, por direito

presidente da República, esse corpo que passa em carro aberto e em público inicia a escritura

da cerimônia de transição do poder, o que constitui o início de um novo governo. Ao fazê-lo,

começa a desvelar a política desse corpo político passante. Numa reiteração da forma e da

repetição, que são marcas distintivas do discurso dito ritualístico, observa-se que a trajetória

do corpo do político na cerimônia de posse reescreve o planejamento da cidade e a sua

arquitetura. A movimentação do político ao longo do eixo central que ocupa o centro do país,

com os principais espectros governamentais inseridos nessa mesma centralidade, dá

visibilidade à política do controle e da ordem, da coesão social, da promessa de continuidade

e da convencionalidade.

135. Nossa Música. Dir. Jean-Luc Godard. França. São Paulo, 2004. 136. Trata-se da expressão atribuída a Goethe e utilizada por Greimas em Da Imperfeição, p. 91.

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Fig. 4 – O percurso para a posse parte da Granja do Torto, que é a residência oficial de campo da presidência da República, o presidente eleito acompanhado do vice-presidente e comitiva seguem com destino à Catedral de Brasília, de onde, após participarem de uma missa, se dirigem para o Congresso Nacional. Ali são recebidos pelo presidente do Congresso, assinam o termo de posse e o presidente profere o seu primeiro discurso. Em seguida, num cortejo que dura cerca de seis minutos, o presidente e o vice-presidente empossados desfilam em carro aberto até a rampa do Palácio do Planalto, onde são recebidos pelo presidente em fim de mandato para a transmissão do cargo. Os momentos de maior visibilidade pública são a subida da rampa e a passagem da faixa presidencial.137

O Rolls-Royce, modelo Silver Wraith, serve às cerimônias oficiais da presidência

da República há quase 60 anos. O veículo de fabricação inglesa, indústria à qual se atribui a

produção dos carros mais luxuosos do mundo usados por monarcas e chefes de Estado, é um

conversível preto, com capota de lona clara e detalhes cromados, tem o interior revestido em

madeira envernizada e o estofamento em couro, ambos claros. A despeito de uma série de

especulações em torno da aquisição do automóvel, o fato é que ele já conduziu governantes

ilustres, como o rei Balduíno da Bélgica, o presidente Charles Gaulle da França e a rainha

Elizabeth II da Inglaterra.

O carro foi utilizado pela primeira vez numa cerimônia pública pelo presidente

Getúlio Vargas, por ocasião das comemorações do Dia do Trabalho, em 1º de maio de 1953,

na cidade de Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Luiz Inácio Lula da Silva foi o último

presidente a subir no veículo nas festividades do Dia da Independência, em 7 de setembro de

2010, em Brasília, no DF. Lula, o ex-operário e sindicalista, que governou o Brasil por dois

137. Fonte: http://g1.globo.com/politica/posse-de-dilma/noticia/2011/01/posse-neste-sabado-no-congresso-faz-

de-dilma-primeira-mulher-presidente.html. Acesso em 10 de outubro de 2010.

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mandatos consecutivos, além de eleger a sua sucessora, garantiu a uma mulher sentar-se pela

primeira vez, na condição de governante, no automóvel presidencial. Talvez essa pareça uma

perspectiva política um tanto romântica, senão mediana. No entanto, é esse o prisma de visão

que reúne a grande maioria dos espectadores da cerimônia. Se a estratégia política do governo

Vargas tinha como foco conquistar o apoio das massas populares e o controle do setor

operário, daí, suas ações de cunho trabalhista a favor do operariado lhe renderem a fama de

governo paternalista, é na esteira da política paternal que está a estratégia do ex-líder sindical:

Lula, oriundo da massa operária, é aclamado pela massa popular em decorrência de sua

política assistencialista. De forma que, o sentido não está no valor de tradição e de

luxuosidade do automóvel, mas na narrativa que esses sujeitos realizam nesses espaços que,

cada um a seu tempo, deixa ver num encadeamento lógico.

À guisa da imagem sacra que segue no andor da procissão, da urna que acomoda e

leva o corpo do passamento, do atleta que os companheiros carregam nos ombros, do Momo

equilibrado no carro alegórico do desfile carnavalesco e da plebéia conduzida na carruagem

real ao se casar com o príncipe, observa-se o corpo do presidente conduzido em carro aberto

no cortejo da posse. Trata-se de um corpo cujo regime de visibilidade articula um querer ser

visto e um querer ver e, ainda que essa visibilidade não seja da ordem da veneração, há

alguma deferência, ou algo que o valha, com relação a esse corpo que passa. É um corpo que

pode prescindir de vida e se fazer presente, à exemplo da languidez do corpo santo que, sendo

o alento daquele à espera do milagre, é uma ausência de vida que presentifica a fé. E, não é

senão a fé o sentimento que aglutina esses corpos num só prisma de visão.

2.3 – O corpo na galeria dos presidentes

Em meio a insígnias, faixas, barbas, bigodes, fardas, ternos, casacas, colarinhos,

gravatas, rostos tesos, semblantes plácidos, sorrisos, meios sorrisos, sorrisos largos e sorriso

algum, eis os corpos presentes na galeria dos presidentes da República Federativa do Brasil do

22º ao 29º períodos de Governo Republicano. Os homens da República são na maioria

advogados, seguidos por um número significativo de militares marechais e generais, um

médico, um engenheiro, um sociólogo, um metalúrgico e uma economista. Nesse caso, mais

importante é ser economista, embora o fato de ser mulher tenha sido evidenciado durante toda

a campanha eleitoral de Dilma Rousseff; enfatizando o valor de ser mulher e a primeira a

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ocupar esse escalão do governo. Mas que tipos de “presença” constituem esses corpos na

galeria?

Em “Flagrantes delitos e retratos”138 Landowski postula que a “espetacularização

generalizada” consiste num fazer recorrente do discurso publicitário comercial e da

comunicação política, ambos pautados numa visibilidade que objetiva a construção de um

simulacro do “dizer verdadeiro”. O estudioso explica que as imagens disseminadas pelas

mídias intermedeiam a relação do sujeito com o real e que o advento da reprodução técnica

serviu para consolidar essa noção de realidade, ou seja, a crença na objetividade das imagens

mediatizadas. Nesse viés, e sempre de acordo com esse semioticista, o que deveria ser o

espaço de discussão pública dá lugar à “propagação de um manto de imagens que lustra e

unifica uma visão de mundo, à qual somos instigados a aderir, a crer, a aquiescer, pelo

menos com o olhar”139. Com o que, a análise das ideologias circulantes e dos discursos

subordina-se à “cobertura visual que em todos os domínios mediatiza doravante nossa

apreensão do mundo”140.

Sustentado por investigações precedentes141 e tendo como ancilar um corpus de

imagens pertencentes à iconografia do discurso publicitário e do noticiário político veiculados

nas mídias, Landowski defende que, diferentemente da comunicação publicitária, a análise da

informação política demanda certo refino. O estudioso esclarece que, no domínio da

publicidade a colocação em cena de corpos, aos quais ele irá se referir como “quase puros

‘corpos de papel’”, obedece a um fazer estratégico que:

(...) consiste em associar de maneira quase sistemática à encenação das mercadorias realmente propostas a de corpos imaginariamente ofertados. Mas entendemos que isso encontra sua razão de ser na esperança de que os receptores transfiram para aquelas o valor que não podem não reconhecer nos últimos, a saber, o de objetos de gozo fantasioso. 142

Pois, as articulações da comunicação publicitária que engendram os sujeitos nesse

prazer imaginoso corroboram o reencantamento do mundo ou alguma forma de gozo nesse

modo de estar em relação com o outro, o que, no entender desse semioticista, é a condição

pressuposta e limítrofe para o ingresso no território do político. E, segundo o pesquisador,

138. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 31-70. 139. Ibid., p. 32. 140. Ibid., p. 32. 141. Sobre isso LANDOWSKI consta uma remissão do autor, em forma de nota, às obras A sociedade refletida e

Presenças do outro In: Flagrantes delitos e retratros, p. 35. 142. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 33.

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explicitam-se dois regimes de figuração, de um lado, os “corpos sem nome, mas desejantes”

dos textos imagéticos da publicidade, do outro, os “atores reconhecíveis, mas quase sem

corpos”143 quando esses mesmos textos têm como enfoque a política. Pois, tendo em conta

que as imagens mediatizadas de corpos políticos não são necessariamente vinculadas ao

desejo, Landowski lança mão de “‘ilustrações’ articuladas ao conteúdo da ‘informação’,

cenas ‘ao vivo’ ou documentos de arquivos, fotos saídas de reportagens ou (...) retratos de

personalidades políticas mais ou menos conhecidas e que poderíamos, se surgir a ocasião,

encontrar pela frente.”144, a fim de investigar quais tipos de lógica e de estratégias articulam

os discursos midiáticos “na construção da imagem do político e dos políticos” 145.

Depois de esquadrinhar imagens de corpos políticos coletados das mídias,

Landowski constrói uma tipologia na qual descreve “as quatro dimensões específicas”146 do

retrato, a saber: mimética, cosmética, hermenêutica e estética. O pesquisador valida a

proposição de que “sob o nome de ‘discurso público’ – publicidade comercial e comunicação

política conjuntas uma à outra para formar um único e mesmo discurso abrangente –

encontra sua realização numa imagem comum, em que nada mais permite distingui-los.”147 e

sua investigação culmina em ratificar a “consagração da abordagem publicitária como

princípio geral de visão do mundo e, correlativamente, cosmetização do político”148.

É sob o amparo das postulações elencadas em “Flagrantes delitos e retratos” e

inicialmente num tipo de retrato bastante elementar, contando que seja possível se expressar

dessa forma, mas, elementar no sentido de que ele se reduz ao essencial do sujeito retratado,

que a presente investigação opta por uma testagem. Em efetivo, tendo como exemplário

figurações de Dilma Rousseff, trata-se aqui de experimentar a tipologia proposta por

Landowski, com o objetivo específico de compreender como se pode depreender a política a

partir do retrato do corpo político.

O rosto de uma mulher de fisionomia jovem, cabelos curtos, portando óculos de

lentes espessas, camisa xadrez e sem investimentos que acentuem sua feminilidade, ocupa o

centro do retrato em preto e branco sobre o fundo cinza. Numa tomada que se estende até

parte do tronco, ela segura sobre o busto uma plaqueta com a inscrição numérica 3023 e,

143. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 36. 144. Ibid., p. 34. 145. Ibid., p. 36. 146. Ibid., p. 31. 147. Ibid., p. 67. 148. Ibid., p. 67.

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privado de qualquer outra marca que possa guiar seu olhar, cabe ao enunciatário reconhecer

nesse retrato o sujeito “fichado” pela polícia. Numa outra situação, quando essa mesma

imagem aparece na capa de Época, a menos que o texto explique que tratam-se de

“documentos inéditos” de uma ativista contra o regime militar e que essa jovem é Dilma

Rousseff, então candidata à presidência da República, nada, ou quase nada, nesse retrato pode

desvelar sua atuação. Imagens dessa natureza, na qual invariavelmente o fotografado ostenta

um número sobre o peito, servem para registrar as marcas de identificação de um rosto, nesse

caso “aquilo com o que um sujeito ‘parece’ depende menos do que ele ‘é’ que da maneira

como ele é representado”149. No papel fotográfico, não há nada além das manchas de

ferrugem dos grampos agora ausentes, que, nota-se, serviram para fixá-lo em algum

documento, e do semi-círculo de um carimbo, o qual possivelmente servia para indicar o

órgão expedidor responsável por tal registro. O que se vê são apenas marcas temporais do

referido “passado de Dilma” que, segundo a chamada verbal, ela prefere esquecer e o retrato

não registra.

Fig. 5 – O olhar fixo de uma mulher muda num corpo de papel e um conjunto de marcas identitárias, cujo nome é Dilma Rousseff, na página da revista; o reconhecimento do sujeito e a impossibilidade de desvelar o passado da ex-militante política, eis o corpo objeto na dimensão mimética do retrato.150

149. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 41. 150. Foto de Dilma Rousseff no arquivo do Dops – Departamento de Ordem Política e Social. Época, 16 de

agosto de 2010.

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Talvez seja o caso de substituir a imagem e deparar-se com uma Dilma Rousseff

“atualizada” no retrato. A mulher madura, que mantém os cabelos curtos, mas evidentemente

modelados numa escova, agora usa brincos e colar, delineia os olhos e apara as sobrancelhas.

Ela abandonou os óculos e é possível que os tenha trocado por lentes de contato ou se

submetido a alguma cirurgia de correção, procedimento da mesma natureza que deu outra

aparência ao seu nariz. Tratam-se de arranjos como o que permitiu, por exemplo, colocar a

estrela do PT como pingente do colar que ela leva no pescoço. Essa imagem, também em

preto branco da mulher candidata à presidência, agora com grande investimento na sua

feminilização e emoldurada no vermelho do Partido dos Trabalhadores, dá a ver que o sujeito

moveu a cabeça e que está observando algo que se passa alhures, talvez o futuro. A imagem

em preto e branco corrobora uma marca temporal e espacial em ambas as imagens. No

primeiro caso (Fig. 5), uma embreagem enunciativa é a estratégia utilizada pelo enunciador

para evidenciar “o passado de Dilma”, com o que, produz-se o efeito de sentido de delação.

Posteriormente, o texto fala de mudança (Fig. 6), mas no retrato em preto e branco é no gesto

de Dilma, que presentifica-se nesse ato de olhar alhures, que está a concomitância. Significa

que o presente no qual se enuncia que “A realidade mudou, e nós com ela”, está em relação a

um futuro figurativizado no cromatismo vermelho que emoldura Rousseff e dá a ver essa

realidade. De acordo com o que ensina Landowski, “somente podemos reconhecer um

“sujeito” na imagem de um indivíduo a partir do momento em que o vemos entrar em relação

com um “objeto” qualquer, quer se trate do mundo que o envolve, de um parceiro, ou até, no

limite, simplesmente dele próprio”151, por isso é possível depreender a realidade através desse

retrato.

A essa altura, para que se possa falar com fundamento desses dois retratos de

Dilma Rousseff, convém retomar as descrições de Landowski, pois, é ele quem ensina que a

dimensão mimética do retrato é da ordem da identificação e do tornar factível o

reconhecimento do modelo fotografado. Nesse caso, o que está em jogo é a semelhança entre

o sujeito e a imagem retratada, portanto, sob a diretriz de identificar e de reconhecer o

retratado está o que esse semioticista denomina de “clichê antropométrico”. Pode-se dizer que

é exatamente isso que Época faz ao estampar essa efeméride de Dilma, afinal, o que está no

retrato documental são as marcas fisionômicas de uma jovem que lutou contra o regime

militar. Mas, o que pode revelar esse corpo que tinha a ex-militante?

151. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 49.

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Fig. 6 – A realidade muda e está plasmada no corpo que, “num sopro de vida”, desvela-se numa presença a caminho da construção de um modelo de Dilma Rousseff candidata a presidente, eis o corpo do sujeito na dimensão cosmética do retrato e não mais na mimética.152

No desenvolvimento do ensaio em questão, Landowski recupera a figura do

“camaleão” para falar do sujeito que se transforma, pelo menos no nível da manifestação,

quer seja por interesse ou por conveniência. Então, esse pesquisador argumenta que “somos

todos, mais ou menos, ‘camaleões’, isto é, mutantes na superfície (quer queiramos quer não)

à medida que nos tornamos nós mesmos”153 e é precisamente isso que está dito na

contemporaneidade de Veja na voz de Dilma. Contudo, o que mais é possível desvelar a partir

do “corpo que tem” a candidata retratada na capa dessa revista?

Colocadas as figuras 1 e 2 em relação, observa-se que a mudança no nível mais

superficial é inquestionável. Contudo, o que a define não se limita ao reducionismo diacrônico

da jovem guerrilheira à atual candidata a presidente. Dada a semelhança entre Dilma, sujeito

capturado pelas forças da repressão militar, e a imagem da sua constituição fisionômica, o que

a torna passível de reconhecimento na ficha criminal, pode-se afirmar que a imagem de Dilma

152. Veja, 24 de fevereiro de 2010. Fonte: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em 17 de

julho de 2011. 153. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 39.

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na capa de Época inscreve-se na dimensão mimética do retrato. Mas, se “uma boa foto de

identidade é aquela que permite associar com o mínimo de erros um nome próprio a um

conjunto de traços fisionômicos necessários e suficientes para reconhecer o indivíduo

portador desse nome”154, a figura de Dilma na capa de Veja, ratifica a mudança. E, a

fundamentação sobre o traço distintivo entre os dois retratos está cingida na proposição de

uma variante “pseudo-oficial”, sobre a qual Landowski explica ensinando que:

(...) [a variante pseudo-oficial] implica retificações cosméticas do modelo, mas as subordina exclusivamente às supostas expectativas da opinião. Estamos aqui bem próximos da construção das “imagens de marca” no âmbito da publicidade comercial e do marketing. Esse tipo de figuração alcança a difusão em massa na forma do “retrato eleitoral”, tal como o vemos nos cartazes de campanha dos candidatos. Embora nesse plano certo grau de “feminilização” das silhuetas, expressões e atitudes seja certamente hoje uma estratégia em voga, essa parece ainda longe de substituir as receitas clássicas, essencialmente fundadas na procura do look sério.155

Em suma, trata-se de um corpo em dois retratos, que dispostos em relação

remetem à dicotômica do passado versus o presente ou da manutenção versus a mudança, o

que desvela um sentido de descontinuidade na manifestação e, possivelmente, de continuidade

na imanência. Na figuração do primeiro (Fig. 5) não há indícios de que uma política do corpo

possa ser depurada, o retrato tem características de fato “antropométricas”; no segundo (Fig.

6), é no mínimo curiosa a possibilidade de ver que os olhos de Dilma olham para um novo

tempo. E, assim como é implausível que as marcas no retrato mimético permitam o

reconhecimento da “identidade política”, parece que o corpo na publicização eleitoral não está

próximo de desvelar a política do corpo no retrato “pseudo-oficial”, que é da dimensão

cosmética e da ordem do não reconhecimento. No postulado de Landowski, o conceito de

cosmetização da imagem do sujeito vai ao encontro das normatizações sociais, num arranjo

que visa tornar a aparência do sujeito retratado convergente ao estatuto que ele ocupa na

sociedade. Pelo que, com os retratos na galeria dos presidentes não é diferente, uma vez que

eles são da ordem dessa última figuração e, a preposição de Landowski sobre a função de

cosmeticidade do retrato oficial é que:

(...) ele trabalha o “perfil” do sujeito retratado — o engrandece, o “embeleza” se quisermos, ou antes o normaliza — de maneira a tornar sua aparência tão conforme quanto possível a um cânone de representação da função ou do estatuto que ele assume na sociedade. Ao impor assim ao

154. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 39. 155. Ibid., p. 59.

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indivíduo um modelo identitário pré concebido, espécie de traje prêt-à-porter no interior do qual ele deverá se deixar moldar, tal regime iconográfico reserva, por definição, um lugar apenas marginal para a exploração das singularidades individuais. É preciso de fato apagar tudo o que possa destoar na pessoa para que o personagem, elemento de uma classe — política, social, profissional ou outra —, possa entrar na galeria dos retratos que celebrará “oficialmente” sua memória (ou, em outra escala, segundo a tradição das boas famílias, no álbum ou nos porta-retratos decorativos nos ambientes da sala).156

a b c d

e f g h

Fig. 7 – Nas figuras dispostas na galeria dos presidentes observa-se a cosmetização dos corpos políticos retratados, que nessa dimensão convergem para as normatizações sociais e o “não reconhecimento”, entretanto, na seqüencialidade dessas imagens há traços distintivos que podem desvelar a política desses sujeitos.157

156. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 48. 157. a) Dilma Rousseff (01.01.2011), b) Luiz Inácio Lula da Silva (01.01.2007 a 01.01.2011) segundo mandato e

(01.01.2003 a 01.01.2007) primeiro mandato, c) Fernando Henrique Cardoso (01.01.1999 a 01.01.2003) segundo mandato e (01.01.1995 a 01.01.1999) primeiro mandato, d) Itamar Franco (02.10.1992 a 01.01.1995), e) Fernando Collor (15.03.1990 a 02.10.1992), f) José Sarney (15.03.1985 a 15.03.1990), g) Tancredo Neves (presidente eleito e não empossado) e h) João Figueiredo (15.03.1979 a 15.03.1985). Fonte: http://www.presidencia.gov.br/info_historicas. Acesso em 08 de julho de 2011.

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Por conseguinte, ao examinar os corpos políticos dispostos na galeria dos

presidentes, observa-se que ao contrário de seus antecessores Fernando Henrique Cardoso

optou pela visibilidade defronte os livros, ao passo que Lula e Dilma Rousseff escolheram

postar-se diante das colunas do Palácio da Alvorada. E, de fato, tem algum significado Dilma

ter escolhido se abrigar na parte interna das colunas, ao passo que Lula optou por mostrar-se

no lado externo delas. Ainda concernente à significação, observar que Sarney e Collor tenham

preferido a casaca e o fundo cromático neutro, enquanto Itamar Franco tem a bandeira ao

fundo e veste um terno convencional e, assim como Tancredo Neves, não porta faixa de

presidente, concorre para uma análise que redunda nas variantes do retrato “cosmético”. E,

sobre isso há precedente teórico, uma vez que:

No caso do retrato oficial, será tipicamente a biblioteca, motivo convencional até recentemente quase obrigatório (...), cujo papel é sublinhar que a atividade e, primeiramente, o horizonte de reflexão de um homem de Estado (ao menos no estilo “velha Europa”) superam as peripécias da atualidade e se inscrevem na História...158

Acredita-se, todavia, que estes elementos são modos de visibilidade desses

políticos, talvez insuficientes para uma elucubração sobre a política do corpo, mas, que por

darem a ver a escolha desses sujeitos, desvelam seus valores. Nesse caso é Oliveira quem

ensina que:

Os objetos existem com um propósito, têm uma função, um uso, que igualmente os apresenta ou os impõe ao sujeito, os faz ser cobiçados, amados ou desprezados. Esse conjunto de traços é que define e coloca o objeto no mesmo nível que o sujeito, como um parceiro competente para a instauração entre ambos de uma relação eminentemente interativa. (...) Aquilo que o objeto faz sentir, sem que se perceba bem esse seu fazer, cria, pouco a pouco, entre sujeito e objeto, um elo mais ou menos forte em função da valoração que lhe é conferida e pela qual ele passa a ser considerado e apreciado. Mas o valorar, que aqui se dá em nível individual, está em conformidade com o sistema que organiza a vida coletiva; por isso, ele é circunstancial e historicamente marcado, o que imprime aos julgamentos de gosto um teor de temporalidade. Mais complexamente, nos julgamentos interatuam os valores que os estruturam, organizados, por sua vez, em conformidade com o sistema de valoração estabelecido no contexto sócio-econômico-político-cultural em que os sujeitos e as coisas se inserem e desempenham seus papéis.159

158. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 49. 159. Ana Claudia de OLIVEIRA. O “bom” gosto do café, p. 237.

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A imagem apreendida sob essa perspectiva não oferece muitas possibilidades de

investigação e remete, por exemplo, ao simulacro ambicionado por Getúlio Vargas, o qual

pode ser apreendido no texto de sua carta testamento. Getúlio, na eminência de tornar-se um

derrotado político, interrompe sua trajetória em detrimento da própria vida, o suicido para

preservação da memória, como se o percurso de um governante pudesse ser limitado a um

retrato na galeria. Daí, as condições de postular nesta investigação que é “em ato” e no âmbito

das “situações” que o corpo do político, quer seja o corpo que ele “tem” ou o corpo que ele

“tinha”, jovem ou antigo, vivo ou morto, dá lugar ao que o político “é” e isso significa dizer:

dá lugar à política do corpo do político.

À guisa das considerações formuladas por Landowski, se as imagens dos sujeitos

“em situação” na diretriz do retrato oficial são abalizadas pelas convenções sociais que

moldam o sujeito retratado, nos “flagrantes delitos” as figuras estão em condições abertas,

livres de esteriótipos do gênero e do enquadramento dos cenários. E, se a imagem

“antropométrica” do criminoso opõe-se radicalmente aos arranjos cosméticos que solapam os

“olhos esbugalhados diante da objetiva”, o ato de surpreender um sujeito em transgressão

implica em posições que admitem, de um lado, o detrator, e de outro o cúmplice. Eis,

portanto, no nível da enunciação, a relação intersubjetiva, na qual se colocam em ato, vis à

vis, e em situação, corpo à corpo, governantes e governados. Cabe nesse caso, à título de

ratificação, recuperar a descrição explicativa de Landowski, quem argumenta que:

(...) a vocação que atribuímos hoje em dia à fotografia (profissional ou amadora) é, exatamente ao contrário, privilegiar, segundo a conhecida expressão de Cartier-Bresson, o “momento decisivo”, isto é, a captura dos sujeitos “em situação”. Na verdade, essa atenção dirigida aos elementos situacionais ou contextuais como componentes do sentido da imagem caracteriza não apenas o flagrante delito (na acepção que aqui conferimos ao termo), mas até mesmo o retrato oficial, ainda que em termos mais limitados em razão das convenções que o restringem. Um e outro se empenham, em geral, a captar o modelo em um contexto, freqüentemente colocado em segundo plano, suficientemente evocador para permitir situar, no tempo e no espaço, um mínimo de características pertinentes próprias ao universo do sujeito fotografado e, se for o caso, a seu campo de ação.160

Concernente a isso, como ensina esse mesmo semioticista, “ao contrário do

clichê antropométrico que, literalmente, ‘tira a palavra’ do sujeito – boca fechada e olhar

fixo -, o flagrante delito (e em menor grau, conforme visto, o retrato oficial) coloca em cena

160. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 49.

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‘sujeitos enunciantes’, ou de forma geral corpos em estado de comunicação”.161 Então,

defronte dos três corpos políticos (Fig. 8), o observador é capaz de surpreender e de se

surpreender com situações tão adversas se comparadas às anteriores.

Fig. 8 – Às boas maneiras aliam-se maneiras de ser do corpo; no flagrar esses sujeitos em ato, emerge a possibilidade de conhecimento, eis nesse flagrante delito a dimensão hermenêutica do retrato. 162

Flagrar o presidente Lula conversando ao pé do ouvido com sua ministra-chefe da

Casa Civil não é lá tão surpreendente, causa mais inquietação, e não necessariamente

estranhamento, o olhar de ressaibo de José Serra, numa expressão que revela

descontentamento com aquilo que vê. Esse é um episódio que acontece mais ou menos assim:

um encontro que reúne políticos importantes, mas de facções distintas, uma situação que

aparentemente requer, senão pompa, alguma circunstância e, de repente, o primeiro homem

do país infringe as regras das boas maneiras. Ou será que ele não aprendeu que não é de bom

161. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 52. 162. Foto: Epitácio Pessoa / Agência Estado. Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL1513539-

5601,00-DILMA+TEM+DOS+VOTOS+DE+QUEM+RECEBE+BOLSA+FAMILIA+DIZ+DATAFOLHA.html. Acesso em 14 de janeiro de 2011.

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tom cochichar? Todavia, pior do que o ato transgressor é a situação de desconhecer o que

confidencia a dupla política. Aliás, o sorriso irônico do sujeito que está sentado logo atrás

denuncia, o que, pelo menos para Serra, é digno de reprova. E, aí incomoda menos o ato de

fofocar do que o seu teor, ou seja, o motivo do conchavo. Seria essa imagem delatora de uma

conspiração política que se organiza com vistas a uma sucessão presidencial orquestrada

quando Lula ainda está no governo? Agora, mais importante do que encontrar uma resposta, é

a possibilidade de situar esse “flagrante delito” no que Landowski denomina dimensão

hermenêutica do retrato e dar destaque à observação do pesquisador, ao dizer que:

(...) é sobretudo quando a imagem captura o sujeito em relação com o outro que ela apresenta um interesse particular do ponto de vista político, ao menos se admitimos que na raiz de todo comportamento político há, antes de tudo, uma determinada maneira de experimentar a si mesmo na presença do outro e, conseqüentemente, de dirigir-se a ele.163

A seara política é cheia de meandros, ainda mais no Brasil que, além de ser

“gigante pela própria natureza”, é um território que carrega não só o estigma, mas a herança

cultural da colonização. O exercício do poder numa República Federativa Democrática

Presidencialista, que esse país é, implica a política na esfera de uma Nação que conserva a

autonomia de várias lideranças políticas nos Estados, e isso constitui uma Federação. Numa

democracia, e o sistema político brasileiro nem sempre foi esse, o chefe de Estado é eleito

pelo povo e, como a autoridade emana desse conjunto de cidadãos, é o povo quem governa.

No presidencialismo, a ação predominante no governo cabe ao presidente que foi eleito

representante do povo. Os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, pela Constituição

brasileira, são independentes e harmônicos entre si, mas devem controlar uns aos outros a fim

de obter o equilíbrio.

No que tange ao equilíbrio das forças políticas, o corpo de Dilma Rousseff sendo

atingido por uma espada (Fig. 9) desvela exatamente o contrário, pois, se existem “atores

reconhecíveis, mas quase sem corpo”164, definitivamente, não é isso o que acontece nessa

imagem. Ao vislumbrar esse desequilíbrio na esfera do poder, o observador sente com o

próprio corpo a cadência ritmada na imagem do corpo de Dilma Rousseff sendo perpassado

por uma lâmina. Um “drama” que envolve, antes, sentir a ponta do objeto tocar e perfurar

suas costas e o metal deslizar na sua carne, depois, a dor dilacerante a ponto de fazê-la perder

163. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 50. 164. Ibid., p. 36.

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os sentidos e, no momento seguinte, apostar que esse corpo que se dá a ver declinando, estará

tombado no chão. É pérfido, sem dúvida, o ato de apunhalar pelas costas, mas o requinte

dessa imagem é a identidade velada do algoz. Velada e desvelada, porque na medida em que

só é dado a ver parte do braço, nele se nota a farda do sujeito que desferiu num só golpe a

sentença de morte. Ato conspirativo, diametralmente oposto ao observado na Fig. 8, como se

agora fosse o momento da vingança ou justiça de antigos poderes. Pouco importa: é dessa

forma, com uma estaca cravada no coração, que se exterminam não só os vampiros, mas

também as bruxas e toda ordem de criaturas indesejáveis.

Fig. 9 – Na coalescência dos sentidos, ver o corpo no corpo e sentir a ruptura da continuidade no movimento ritmado dessa imagem que permite “ouvir o silêncio” e imaginar a luva ilibada borrar-se de sangue. Eis, na deformação da realidade, a experiência estésica na dimensão estética do retrato.165

Na aproximação estésica entre o enunciatário e o corpo de Dilma Rousseff,

percebe-se também o movimento célere no segundo plano dos sujeitos que batem em retirada.

Seriam eles corpos omissos? Na continuidade ritmada dessa imagem, concomitante ao tombo

do corpo será sentido o movimento da espada sendo retirada e, na visão turva do segundo 165. Foto: Wilson Júnior / AE. Fonte: http://blogs.estadao.com.br/radar-politico/2011/08/23/estadao-desmente-

foto-montada/. Acesso em 09 de fevereiro de 2012.

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plano desfocado, será sentido o profundo silêncio que se instala quando se é tocado por esse

ato inesperado. Desse modo, e de novo, mais importante do que encontrar respostas agora, é o

dar prova de que se pode sentir através da imagem.

Esse tipo de retrato se enquadra no que Landowski denomina de dimensão

estética e deve ser observado que os termos cosmético e estético, os quais correntemente

acabam sendo empregados com o mesmo significado, tem acepções distintas no que concerne

a tipologia construída por esse semioticista. Enquanto os retratos na sua dimensão cosmética

dão conta do revestir dos modelos de forma a torná-los “ilustres” desconhecidos, na dimensão

estética a prática do retrato destaca-se pela plástica. Trata-se nesse caso da dimensão poética,

sobre a qual Landowski, na sua descrição analítica pontua que “além do flagrante delito (pois

aqui não há nada de transgressivo a ser observado), é verdadeiramente um ‘momento

decisivo’ que foi fixado: momento de graça em que o fazer poético alcança à dimensão

poética”.166 O retrato estético é dotado de uma ordenação rítmica e pode ser sentido

estesicamente, tal qual o que se experimenta diante de um corpo golpeado (Fig. 9). Ao ser

inserido, tornar-se partícipe, se está em condições de aplaudir, deplorar ou negligenciar, como

se nota que alguns já o fizeram, então, o extraordinário nos retratos que ocupam essa

dimensão é o fato de eles não passarem despercebidos, o que redunda da “combinação de

elementos que, além dos componentes plásticos e rítmicos do enunciado-imagem, fazem

intervir a dimensão enunciativa”.

Diante do explanado nos parágrafos subseqüentes, cujas breves análises dos

retratos de Dilma Rousseff serviram para sumarizar o postulado em “Flagrantes delitos e

retratos”, cabe aqui, antes de retomar o eixo desta pesquisa, recuperar que a consideração de

Landowski é sobre a cosmetização do político e a conseqüente generalização da visão de

mundo acomodando os sujeitos na vala comum. Daí, que a maior probabilidade de depreender

a política do corpo político é examinando os “flagrantes delitos” e a “dimensão poética” dos

retratos colocados em circulação nas mídias. Landowski argumenta que “a iconografia

política simplesmente renunciou a tematizar o ‘poder como drama’”, mas ele também ensina

que:

Se o jornalismo tem por missão, entre outras, nos ajudar a melhor conhecer nossos representantes e dirigentes, compreendemos a partir desses elementos por quais razões de fundo a fotografia ocupa hoje tanto espaço inclusive na parte redacional dos jornais – um espaço (os

166. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 64.

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repórteres fotográficos com razão são os primeiros a sublinhá-lo) que não mais pode ser considerado como simples “ilustrações” subordinadas à “informação”. É que a imprensa dispõe hoje em dia de recursos técnicos que lhe permitem não apenas nos informar, pela escrita ou pela fala, sobre as “posições” políticas que exibem os homens de poder. Graças à fotografia, mesmo a imprensa “escrita” está em condições de captar, além disso, e de nos fazer sentir diretamente as “posturas” – também elas políticas, mas em um nível mais profundo – que eles adotam corporalmente. E com esse propósito, a imagem é sem nenhuma dúvida o melhor instrumento tanto de investigação quando de demonstração. 167

Por isso, neste trabalho, não se cogita confinar a análise das “posturas políticas”

ao retrato na parede ou à esteira da “programação” das instituições. São pressupostos

contrários a esse prisma que fomentam este estudo, e instigam a uma aproximação capaz de

romper a perspectiva reducionista, manipuladora e programada do político e dos políticos no

“jogo enunciativo”. Pensando assim, talvez, antes de o corpo de Dilma tocar o solo, seja

possível compreender que o poder do soberano congrega o poder de outros sujeitos, que

política e político não são unívocos e que governar consiste num fazer estratégico; de modo

que, a morte do corpo pode constituir um mecanismo de permanência, ao menos política, e a

interrupção da vida, na esfera política, não significa necessariamente a morte do corpo.

Afinal, subsistir acaba se tornando uma experiência política.

2.4 – Corpos de presidentes

A partir de uma breve incursão temporal, observa-se que, proclamada a República

no Brasil, foi um governo militar que assumiu o poder no lugar de um monarca. No período

que ficou conhecido como República Velha, o voto universal e aberto, do presidencialismo

republicano teve como viés o coronelismo e o voto de cabresto. No governo civil da

República das Oligarquias, a “política do café com leite” marcou a dança entre paulistas e

mineiros ao redor da cadeira do poder. O Golpe de 30, ao passo que sepultou a Velha

República, celebrou o nascimento da Era Vargas. O governo civil, populista e ditatorial de

Getúlio Vargas se estendeu por 15 anos, deu nome e viu encerrar, num golpe militar, o Estado

Novo. Como fênix, após um ínfimo governo civil de deposição e um período de governo

167. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 52.

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militar, eleito pelo voto direto, Getúlio Vargas voltou para marcar aquela que ficou conhecida

como a mais longa permanência de um mesmo presidente no poder da República brasileira. E,

cumprindo a programação reservada ao pássaro mitológico, Getúlio, diante da eminente morte

na vida política, garantiu a sua autocombustão: “Deixo a vida para entrar na história” foi o

que ele escreveu em carta testamento e depois suicidou-se com um tiro no peito. Essa é a

tática de um sujeito que, ao se dar conta de que não tem mais chances de sucesso na partida,

opta por subverter a narrativa abandonando o jogo. Portanto, esse sentido de imortalidade, que

na voz de Getúlio o coloca na condição de mártir, com nada se assemelha senão com o

axioma da covardia.

Depois de Getúlio, destacam-se os governos de Juscelino Kubitschek e de Jânio

Quadros. Esse último deve ser lembrado pelo fato de ter renunciado ao cargo após seis meses

e vinte sete dias no poder; o primeiro não deve ser esquecido porque plasmou no seu período

de poder, sob o discurso de “50 anos em 5” e na trajetória da “marcha para o oeste”, a

construção de uma nova capital federal.

À exemplo do fazer megalomaníaco de um faraó, JK deixou como legado uma

edificação grandiosa. E, embora em Brasília não exista um sarcófago no qual o seu rosto

figure, há uma efígie de Juscelino em frente ao Memorial JK, lugar no qual estão os restos

mortais e diversos pertences do ex-presidente, incluindo a sua biblioteca pessoal, medalhas,

fotos, entre outros objetos. Além da remissão à arquitetura, ressoa em Brasília a pilhagem às

tumbas dos antigos governantes egípcios, considerando que não são inopinadas as notícias e

os escândalos de corrupção nessa esfera do governo.

A trajetória de Jânio Quadros de vereador à presidente demandou pouco tempo,

nada que se compare a sua permanência no governo da República, mas o suficiente para que

ele se construísse na fidúcia de um discurso ambíguo. De modo que, ao passo que se

expressava verbalmente de maneira formal, Jânio exibia caspa no terno e comia sanduíches de

mortadela durante os comícios. Ademais, calcado nos valores de dinamismo e honestidade,

ele se agarrou à figura de uma vassoura e fez da sua campanha a promessa de um governo que

varreria a corrupção. A política do político foi dar visibilidade a um sujeito de fala difícil,

aspecto simplório e decisões práticas, contando com a credibilidade, principalmente, da classe

média operária. No seu breve governo, Jânio teve tempo, entre outras coisas, de proibir o uso

do biquíni nas praias brasileiras e de condecorar o líder guerrilheiro Che Guevara, com a

Ordem do Cruzeiro do Sul, ou seja, decisões ditas excêntricas que reiteram as marcas de um

governo populista. Por isso, as “forças ocultas”, às quais Jânio se refere na carta de abdicação,

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nada tem de místico em se tratando de um governante afeito a polêmicas e que desagradava as

elites conservadoras, os militares e o governo norte-americano. Ao deixar o poder, quer tenha

sido um blefe ou não, Jânio deixou a brecha para que os militares, sujeitos organizados e

ávidos para conduzir o país o assumissem.

O poder político na República brasileira, com foco no seu mais elevado cargo, foi

assumido, tomado e retomado por governos militares. Castelo Branco, o primeiro, se dá a ver

numa fisionomia austera, que é uma estereotipia comum às figuras militares. Foi ele quem

depôs o presidente civil João Goulart, que era o vice de Jânio e suspendeu os direitos políticos

de centenas de pessoas através do Ato Institucional nº 1. Já João Baptista de Oliveira

Figueiredo, o último, um presidente apaixonado por cavalos, foi o responsável pela abertura

política iniciada por seu antecessor, anistiou os punidos pelo Ato Institucional nº 5, e também

perdoou os crimes de abuso de poder, tortura e assassinato cometidos por órgãos de segurança

do governo. Em contrapartida, o “João do Povo”, expressão com a qual se tentou dar

visibilidade a Figueiredo por ocasião de sua candidatura à presidência, registra uma série de

passagens que dão a ver um político peculiar. Uma delas, por exemplo, diz respeito ao fato de

um repórter ter perguntado ao futuro presidente se ele gostava do cheiro do povo, ao que

Figueiredo respondeu: "O cheirinho do cavalo é melhor (do que o do povo)" 168. De forma

que não surpreende que o presidente Figueiredo, em marcha na rampa do planalto, logo após

tomar posse e receber a faixa do seu antecessor, Ernesto Geisel, se dê a ver como no trote de

um animal.

Eis um indicador de que na anatomia do corpo do político há algo que pode ser

desvelado sobre a política, que não se restringi à forma e à estrutura, e tampouco à

compleição. Ainda que para Aristóteles, “(...) o que desde os tempos antigos, como agora e

sempre, constitui o eterno objeto de pesquisa e o eterno problema: que é o ser [...]” 169, não

parece que se esteja aqui diante uma questão ontológica e, mesmo sem deixar a seara

filosófica, Reale explica que:“(...) enquanto o caminho da ontologia vai das aparências ao

ser (seja para os físicos, seja para os metafísicos), ao contrário, Pirro volta do ser às

aparências, negando decididamente que exista ser, e, portanto, que seja possível qualquer

juízo sobre o ser, e, reconhecendo, conseqüentemente, só o parecer. Portanto, segundo Pirro,

não é o ser que domina, mas o aparecer: O fenômeno domina sempre, onde quer que

168. Folha de S. Paulo, “Figueiredo disse que preferia o cheiro do cavalo”, em 02/11/2000.

http://www1.folha.uol.com.br. Acesso em 05 de julho de 2011. 169. ARISTÓTELES. Metafísica, p. 325.

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apareça.” 170 E, é esse viés que corrobora a prerrogativa de que “(...) a semiótica se interessa

pelo “parecer do sentido”, que se apreende por meio das formas de linguagem e, mais

concretamente, dos discursos que o manifestam (...).” 171

Fig. 10 – Ainda que o ex-presidente Ernesto Geisel e o recém empossado presidente João Figueiredo se dêem a ver caminhando na mesma direção, é indiscutível que o fazem de maneiras diferentes. Na marcha de Figueiredo, o 5º presidente da Revolução de 64, está impresso o governo que ele exercerá: são passos firmes, que não perdem de vista a orientação da academia militar, e angulosos comparados ao de Geisel, portanto, serão capazes de realizar a transição democrática.172

No arcabouço teórico da Semiótica Discursiva, o ser, numa de suas acepções, é “o

termo positivo do esquema da imanência: está, então, em relação de contrariedade com o

parecer”173. Por sua vez, “Denomina-se parecer o termo positivo do esquema da

manifestação”174, a qual, “(...) concebida como presentificação da forma na substância,

pressupõe, como condição, a semiose (ou o ato semiótico) que conjunge a forma da

expressão e a do conteúdo antes mesmo, por assim dizer, de sua realização material.”175 E,

170. Giovanni REALLE. História da Filosofia Antiga, p. 400. 171. Denis BERTRAND. Caminhos da Semiótica Literária, p. 11. 172. Posse do General João Batista de Oliveira Figueiredo, 14 de março de 1979. Fonte:

http://drummerman.sites.uol.com.br. Acesso em 11 de março de 2011. 173. A. J. GREIMAS e J. COURTÉS, Dicionário de semiótica, 2008, p. 458. 174. Ibid., 2008, p. 361. 175. Ibid., 2008, p. 458.

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ainda no que tange ao parecer, é Greimas também quem ensina que “a figuratividade é a tela

do parecer”176

Diante da postulação greimasiana e de um corpo político que beira o

antropomórfico, numa anatomia em que o cavalo, o homem, o militar e o presidente parecem

não se distinguir, opta-se por retomar a proposição de Landowski que explica que:

Para captar desta forma, isto é, estruturalmente (ou, semioticamente), o que alguma coisa significa – por exemplo, para dar conta dos possíveis significados de um gesto ou de uma expressão, de um texto escrito ou de uma imagem, de uma cerimônia ritual ou de um movimento de massa – não basta reconhecer nisto os traços genéricos de um tipo já conhecido. Pois nada conheceríamos, se procurássemos trazer tudo o que se apresenta para dentro de uma série limitada de casos já repertoriados, ocupando cada um o seu lugar no quadro de uma tipologia dos discursos, ou, por que não, dos caracteres, ou ainda das fisionomias ou das neuroses, das mentalidades ou das práticas, dos estilos ou dos gêneros, e assim por diante. Pelo contrário, para compreender, caso por caso, aquilo que nos interessa ou, no caso de práticas, para captar “o que se passa”, o único meio é simplesmente descrever e analisar o material de que dispomos, isto é, tentar resgatar, na sua singularidade e sua especificidade, os efeitos de sentido resultantes da própria organização estrutural do objeto ou da prática em questão.177

E qual é a alternativa para se escapar do reducionismo de uma dita generalização a

partir de um repertório a priori? É indiscutível que há algum desconforto, porque a águia e a

saudação imperiais preencheriam com folga o sentido de alguns dos corpos políticos

submetidos ao exame. Mas, opta-se pelas “conchas vazias” 178, ou seja, em lugar da “dança

dos dervixes” 179 se escolhe “dançar com a caneta” e, a orientação de como fazer isso, também

é do postulado metodológico de Landowski. Ao sugerir que “complexifiquemos!”, este

pesquisador ensina que:

Na perspectiva da semiótica, tal slogan toma imediatamente um sentido técnico preciso. Complexificar será, no mínimo, duas coisas. Primeiro, na análise dos sistemas de representações e de valores que nos interessam (porque eles sustentam discursos e práticas), evitar se ater aos termos polares, isto é, aos contrários (do tipo vida versus morte, dentro e não fora, mesmo ou outro, etc.), utilizados para manifestar as categorias semânticas de base, e, em compensação, concentrar a atenção nas estratégias de sentido fundadas na exploração do termo chamado justamente complexo (ao mesmo tempo, isso e seu oposto), que subsume os precedentes, mas também do termo neutro (nem um nem outro), que torna possível sua superação e,

176. A. J. GREIMAS, Da Imperfeição, p. 74. 177. Eric LANDOWSKI, O olhar comprometido, p. 23. 178. Expressão utilizada por Eric Landowski em O olhar comprometido, p. 23, quando argumenta,

metaforicamente, sobre as escolhas do analista no seu fazer semiótico. 179. Ibid., p. 22.

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talvez, sobretudo, dos termos subcontrários que regem estados instáveis e designam espaços de transição (já não totalmente isto, mas ainda não verdadeiramente o oposto) (Landowski, 1997c:66-67). Em seguida, tratando-se de dar conta dos processos de construção do sentido em ato (portanto, do que “se passa”), isto significará abster-se de considerar qualquer elemento de uma relação isoladamente dos outros, por exemplo um “sujeito” – enunciando, agindo ou sofrendo – independente do “objeto” (ou, mais geralmente, do “Outro”) que o faz ser enquanto tal, hic et nunc (Landowski, 1997c: 68-70). Em outros termos, evitar-se-á, por princípio, reduzir os actantes a entidades predefinidas em substância e como que reificadas. Em compensação, será focalizar a atenção sobre a dinâmica das relações que as partes envolvidas na interação mantêm umas em relação às outras (da manipulação ao contágio, passando pela persuasão), considerando-se que unicamente desta dinâmica dependem tanto a definição, a cada momento renegociáveis, dos estados e dos papéis respectivos dos protagonistas, quanto a especificidade dos efeitos de sentido que resultarão das modalidades de seu encontro ou mesmo, mais radicalmente, de sua simples co-presença.180

a b c

Fig. 11 – A paixão do presidente João Figueiredo por cavalos é notória, assim como é evidente o seu cuidado determinado e de deleite com o corpo. O general que marcou a transição do governo militar rumo à abertura política afirmou preferir o cheiro do cavalo ao do povo e não passou a faixa para o seu sucessor.181

Na esteira do explanado nos parágrafos anteriores, tendo como intróito o corpo do

presidente João Figueiredo, observam-se algumas possibilidades de depreender o sentido do

corpo político “em ato”. O General Figueiredo é o presidente incumbido de realizar a

transição política para o regime democrático e, diante desse corpo que aparece de calção ou

de terno, que é uma indumentária civil, as marcas da ditadura militar não passam

despercebidas. Na figura do homem sobre a montaria está um Figueiredo sorridente acenando

para o povo do alto de um cavalo que faz menção de rebelar-se. Trata-se de um discurso que

instaura três presenças: o animal, um sujeito que ao passo que se rebela olha para o

180. Eric LANDOWSKI, O olhar comprometido, p. 37. 181. Fonte: Nosso Século. Memória fotográfica do Brasil no século 20, p. 279.

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interlocutor e faz com que ele, o observador, veja esse outro sujeito, no alto, controlando-o e

ao mesmo tempo olhando, sorrindo e acenando para um outro, ou seja, governando-o e

governando. De forma que, o sujeito da enunciação se reconhece a partir da relação com os

sujeitos do enunciado. Ele sabe que a saudação amistosa do presidente é dirigida ao povo, a

figura ausente que esse gesto presentifica, e ele se vê no fazer daquele que serve de montaria,

que é um sujeito governado e controlado. Nesse ato que desvela que “Todos os bichos são

iguais, mas alguns bichos são mais iguais que outros” 182, a diferença que homologa o gosto

confesso do presidente Figueiredo pelo cheiro do cavalo ante o do povo, é a sua competência

de adestramento.

A imagem do corpo político desnudado ou minimamente vestido não é algo

corriqueiro, uma vez que, à guisa do que o percurso histórico e cultural consagram como a

estereotipia do governante, é a farda ou o terno e gravata que constitui a figuratividade da

indumentária do homem no exercício da atividade política. De modo que, esse homem que é

visto fazendo um exercício físico, se presentifica num momento insólito se comparado às

atribuições de um governante. Diante da postura rígida e da orientação disciplinada, a nudez

do corpo dá visibilidade à envergadura do poder, de forma que não é a indumentária, mas a

ausência dela que desvela a política no corpo. E, muito embora esse corpo tenha a

“impressão” de um animal de grande porte ele não é “nem” militar “nem” civil. O

condicionamento físico e o controle desvelam a política num país que “já não” está

exclusivamente sob as rédeas da ditadura e “ainda não” vive a liberdade democrática. Eis uma

amostragem do lugar de observação e do grau de envolvimento assumido pelo analista, que,

na tentativa de dar conta “talvez, sobretudo, dos termos subcontrários que regem estados

instáveis e designam espaços de transição”, se coloca na posição de sujeito implicado no que

“se passa”.

182. George ORWELL. A revolução dos bichos: um conto de fadas, p. 106.

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III – ATOS NO CENTRO DA CENA DO PODER

L'esprit emprunte à la matière les perceptions d'où il tire sa nourriture, et les lui rend sous forme de mouvement,

où il a imprimé sa liberté

Henri Bergson183

Ao correr os olhos sobre um emaranhado de corpos políticos, recortes nos quais

figuram presidentes da República nas mais diversas situações, nota-se que há estofo para uma

investigação, mas, ao passo que parece viável dizer algo sobre essas figuras, predomina a

incerteza quanto à direção a avançar. O exercício de uma primeira triagem permite identificar

as imagens que remetem ao clichê, ou seja, ao corpo político engendrado na mesma lógica da

imagem publicitária que, como discutido anteriormente, é da ordem do cosmético e do

estético. A incursão cronológica e seqüencial dos eventos poderia ser uma opção, mas é

bastante provável que essa seja uma trilha já adotada pela pesquisa histórica. Tendo em conta

“(...) focalizar a atenção sobre a dinâmica das relações que as partes envolvidas na

interação mantêm umas em relação às outras (...)”184, em uma retomada à teoria tem-se a

orientação, também de Landowski, quem explica que:

“(...) como se, passando de uma foto à outra, passássemos do universo do visível ao do sensível, da superfície do papel à textura da pele, da ‘representação’ à ‘presença’ – da abstração esquematizante ao semblante vivo. E, muitas vezes, (...) são sobretudo os olhos, ou melhor, é o olhar (aquele que a imagem cria) que, conjugado a outros procedimentos cenográficos, consegue produzir esse milagre: o simulacro de uma presença.”185

Há cada quatro anos os brasileiros, homens e mulheres maiores de 16 anos,

alfabetizados ou não, elegem em primeiro e segundo turnos através do voto direto e secreto, o

presidente do país. Ele constitui a autoridade máxima do Poder Executivo e da República e,

no Brasil, pelo fato de ser uma República presidencialista, é também o responsável pela

condução das tarefas como Chefe de Estado e de Governo. No entanto, é importante notar que

até 1932 o voto não era direto nem secreto e as mulheres não tinham o direito de votar,

mudanças que vieram com o 1º Código Eleitoral após a Revolução Constitucionalista de 183. Henri BERGSON. Matière et mémoire. Essai sur la relation du corps à l’esprit, p. 147. 184. Eric LANDOWSKI, O olhar comprometido, p. 37. 185. IDEM, Presenças do outro, p. 130.

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1932. Ademais, até 1988 não votavam os analfabetos e os menores de 21 anos. Por sua vez,

para que um indivíduo possa concorrer ao cargo de presidente é obrigatório ser brasileiro

nato, ter no mínimo 35 anos completos até a data da posse, estar em pleno exercício dos

direitos políticos, ser eleitor, ter domicílio eleitoral no Brasil e estar filiado a algum partido

político. O que se observa nesse extrato é que o discurso prescritivo da legislação eleitoral é

passível de rupturas, como a promovida pela Revolução de 32. Na continuidade, nomeada de

processo de democratização, a irrupção do sentido nesse caso marca a descontinuidade de um

fazer manipulatório e programado, a geração de uma nova continuidade, que uma vez

rompida dá lugar a um novo sentido; a continuidade de um processo que talvez chamem de

redemocratização. O que o discurso da legislação eleitoral prescreve e os atores da eleição

cumprem como dever cívico é sancionado nas urnas com o nome de “exercício da

democracia” e celebrado na forma pública e ritualística da solenidade de posse.

Constantes do decreto 72.274, de 9 de março de 1972, dentre as normas aprovadas

para o cerimonial público das solenidades oficiais realizadas na capital da República, no

capítulo dois, do artigo 37 ao 49, estão elencadas as que dizem respeito à posse do presidente

da República. A primeira ação normatizada consiste em prestar o compromisso constitucional

e é quando “O Presidente da República eleito, tendo a sua esquerda o Vice-Presidente e, na

frente, o chefe do Gabinete Militar e o Chefe do Gabinete Civil dirigir-se-á em carro do

Estado, ao Palácio do Congresso Nacional (...)”186. Em seguida, o presidente da República e

seus acompanhantes se deslocam do Palácio do Congresso ao Palácio do Planalto, onde serão

recebidos à porta pelo presidente em fim de mandato. Nesse momento estão presentes os

membros do antigo e do futuro ministério, bem como, os Chefes do Gabinete Militar, do

Gabinete Civil, do Serviço Nacional de Informações e Estado-Maior das Forças Armadas. E,

“Após os cumprimentos, ambos os Presidentes acompanhados pelos Vices-Presidentes,

Chefes do Gabinete Militar e Chefes do Gabinete Civil, se encaminharão para o Gabinete

Presidencial e dali para o local onde o Presidente da República receberá de seu antecessor a

Faixa Presidencial. (...)”187

A cerimônia da posse presidencial consiste numa prática ritualística e, como tal,

está estruturada num conjunto de preceitos estabelecidos e caracterizada pela repetição. Na

acepção antropológica, Lévi-Strauss ensina que “a oposição entre o rito e o mito é aquela do 186. Decreto 72.274, de 9 de março de 1972. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D70274.htm.

Acesso em 22 de outubro de 2011. 187. Decreto 72.274, de 9 de março de 1972. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D70274.htm.

Acesso em 22 de outubro de 2011.

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viver e do pensar, e o ritual representa um abastardamento do pensar consentido as

servitudes da vida”.188 No “contexto semiótico”, que é a orientação tomada neste trabalho, a

cerimônia de posse é um “ato enunciativo”, uma narrativa da celebração que se alterna no

âmbito do público e do privado, um fazer performático balizado no caráter prescritivo de um

decreto, portanto, regulado e da ordem da continuidade. As gerações de governantes que se

sucedem no poder realizam esse percurso de transição numa visibilidade pública assim

orquestrada: o trajeto em carro aberto até o Palácio do Congresso e, dali, até o início da rampa

do Palácio do Planalto, depois, a subida da rampa, a recepção e a passagem da faixa

presidencial. Por conseguinte, ao abranger quase todos os presidentes do período investigado,

é inevitável que dentre as práticas significantes a posse presidencial seja uma boa

oportunidade para o primeiro encontro com esses corpos políticos.

3.1 – Ato I – João Figueiredo

Reafirmo: é meu propósito inabalável (...) fazer deste País uma democracia. (...) Reafirmo o meu gesto: a mão estendida em conciliação. Para que os

brasileiros convivam pacificamente. Para que as divergências se discutam e resolvam na harmonia e na boa vontade, tão da índole de nossa gente.

João B. Figueiredo, presidente da República, 1979 - 1985189

Na manhã de 15 de março de 1979, dia da posse do General João Baptista de

Oliveira Figueiredo, o presidente do 22º período de governo da República, a cidade de

Brasília está a um mês de completar 18 anos e na iminência de dar lugar à 6ª posse

presidencial. A Capital Federal já teve 6 governantes empossados, mais 4 governos

provisórios e 1 interino e, apesar de muito jovem, registra uma série de ocorrências e de

intercorrências políticas. Primeiro, a renúncia de um presidente, depois, o golpe militar de

1964 com a deposição de outro governo e a cessão dos direitos políticos de centenas de

pessoas. Na seqüência, sucedem-se a instituição do bipartidarismo, a ARENA, Aliança

Renovadora Nacional, partido que apóia o governo, e o MDB, Movimento Democrático

188. Claude LÉVI-STRAUSS, L’homme nu. Mythologiques, p. 603. 189. Excerto do discurso proferido pelo presidente Gel. João Baptista de Oliveira Figueiredo ao receber a faixa

presidencial das mãos do presidente Gel. Ernesto Geisel, no dia 15 de março de 1979, no Palácio do Planalto, em Brasília – DF.

Fonte: http://www.planalto.gov.br/infger_07/presidentes/joao_figueiredo%20.htm. Acesso em 09 de fevereiro de 2011.

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Nacional, em oposição; a suspensão de eleições diretas para cargos executivos; a cassação de

vários deputados federais e, em represália por ter protestado, o fechamento do Congresso por

um mês; a organização de uma frente ampla por líderes de oposição ao governo militar e, em

resposta aos oposicionistas, o endurecimento do regime militar, agora uma ditadura explicita

que reprime com violência e institui o Ato Nº 5. Posteriormente, por motivo de saúde, outro

presidente se afasta e, na esteira dos acontecimentos, a oposição se intensifica contra o regime

por meio da guerrilha na cidade e no campo, ao que os militares reagem nos “porões da

ditadura”, que é o lugar das torturas, das mortes e dos desaparecimentos. Por fim, a repressão

vence a guerrilha e, concomitante a isso, se o povo já tem bons motivos para permanecer

calado, acaba sendo tragado pelo clima eufórico de desenvolvimento econômico do Brasil. A

expressão “milagre brasileiro” cunha esse período, que tem, de um lado, o governo que se

constrói no discurso “verdadeiro” de uma economia ascendente, do outro, o povo, que adere a

esse simulacro. Ora, a aposta no progresso advinda de uma atitude ordenada, não constitui a

fé na síntese do ideal republicano?

À guisa de uma política edificada na relação entre governantes milagrosos e

governados milagreiros, sedimentada na promessa e na confiança de uma extraordinária

ascensão, a ilusão do milagre econômico brasileiro permite ignorar a preservação ambiental e

a dependência do petróleo importado e do capital externo. De forma que, ao primeiro sinal de

crise diante da alta do preço do petróleo e da crescente dívida externa, não causa

estranhamento que o discurso político seja orientado para outro norte. Então, um general, a

quem se atribui pertencer à ala moderada dos militares, assume o poder; o MDB vence de

forma significativa nas eleições legislativas; a sociedade passa a reivindicar direitos

democráticos, decreta-se o fim do AI-5 e o “milagre econômico” dá lugar à promessa de

democracia. Cabe, pois, examinar como o simulacro da liberdade política brasileira pode ser

depreendido a partir desse corpo que passa.

É no horizonte político de um processo de abertura iniciado pelo presidente

Geisel, de uma economia em crise e de uma sociedade que “deseja” a abertura, que o

presidente João Figueiredo se dirige em carro aberto para a cerimônia de posse, com o

objetivo de “fazer desse país uma democracia”. O carro, que é escoltado pelo 1º Regimento

de Cavalaria, desliza sobre o asfalto na cadência ditada pelas montarias. Sentado, com o braço

repousado sobre a lona do capô na borda do veículo, tendo a sua esquerda, também sentado, o

vice-presidente Aureliano Chaves, e à frente os Chefes do Gabinete Civil e Militar,

Figueiredo mantém-se na postura formal de um membro das forças armadas. O semblante

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plácido esboça um sorriso, possivelmente de orgulho, de um homem que está a poucos metros

de assumir o cargo político mais importante do país. A musculatura da face e os sulcos que a

delineiam são os indícios da compleição viril de um homem maduro que, a exemplo de um

soldado espartano, respeitadas as proporções, vem de uma formação encetada na técnica, no

treinamento, na organização e na disciplina do exército. Na metade da década de 70 a cidade

de Brasília se dá a ver em grandes porções de espaços vazios interrompidos pelas imensas

construções de concreto. Nessa espacialidade, os homens posicionados atrás do carro do

presidente cumprem o papel temático de guarda-costas e, possivelmente, ladeados por

candangos curiosos. A assistência, formada por populares e estudantes, se aglomera atrás do

cordão de isolamento e saúda o novo governante sem grandes arroubos ou correrias, ao que o

presidente retribui levantando o antebraço e acenando.

Fig. 12 – Na presença do general João Figueiredo sendo conduzido em carro aberto para tomar posse como presidente da República, observa-se que o “pulso firme” de seus antecessores começa a dar lugar a uma “mão conciliadora”.190

190. Foto: Pedro Martinelli, Veja, 21 de março de 1979. Fonte: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx.

Acesso em 17 de julho de 2011.

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Durante o trajeto do carro oficial que conduz Figueiredo191, é impossível não notar

um grande número de pessoas usando boné amarelo e vestindo camisetas brancas, alguns

empunhando bandeiras também amarelas. Em plena ditadura militar, sabe-se que a

organização popular em movimentos partidários é coibida, então, ao deter o olhar sobre esses

corpos, observa-se que são jovens cujas camisetas estampam a inscrição “Caravana de

Integração Nacional” 192. Essa caravana que chega à Brasília há quase duas décadas, foi

incentivada por JK pouco antes da inauguração da cidade e, salvo arranjos discursivos, trata-

se da jornada empreendida por um sujeito confiante, que por acreditar nas benesses do

progresso, faz a aposta.

Na posse do presidente Figueiredo uma parte do povo brasileiro sabe que muito

do que foi prometido desde o golpe não se realizou, mas é prudente calar porque a parte que

contestou vive no exílio agora. Esses meninos e meninas de amarelo são jovens advindos das

mais variadas regiões do Brasil, estudantes da escola pública que, pelo bom desempenho,

foram escolhidos e vieram em caravana para saudar o presidente no dia da sua posse. São a

parte que aprendeu que “Este é um país que vai prá frente” 193, ou seja, eles não aprenderam

nada. Pelo menos nada do que não devesse ser aprendido, porque o papel actancial da escola

no período de governo militar é engendrar o jovem estudante na vida cívica e fazê-lo absorver

os conteúdos programáticos. No que concerne ao civismo, os símbolos nacionais são

conhecidos nas salas de aula e assimilados nos pátios escolares em jograis ou outras formas

ufanistas. Portanto, não é à toa que os bonés e as bandeiras desses jovens sejam amarelos, o

que, simbolicamente é uma remissão ao amarelo do pavilhão nacional e, por conseguinte, ao

ouro, que a essa altura não é mais a riqueza do Brasil. No que tange aos conteúdos

programáticos, como a nomeação evidencia, eles constituem a programação dos assuntos a

serem ministrados nas grades disciplinares e, por relação, nesse período o que não é grade e

aprisionamento, é disciplina. Eis, portanto, a política do presidente João Figueiredo, o corpo

191. Filme 1: Posse do presidente João Baptista de Figueiredo. Edição Especial. Arquivo Nacional. Produção:

Agência Nacional, 1979, 6’55’’. 192. Dois meses antes da inauguração da nova Capital Federal, o presidente Juscelino Kubitschek, apoiado pelos

fabricantes de automóveis instalados no país, incentivou a primeira “Caravana de Integração Nacional”, da qual participaram expedicionários dos quatro cantos do país, que viajaram à Brasília em carros, caminhões e ônibus. Confluente à noção de integração de território está o ideal de desenvolvimento econômico, com base numa indústria automobilística nacional ainda incipiente, na construção de estradas interligando o Brasil à nova capital e a ocupação do oeste. Na narrativa caravaneira, um sujeito de espírito corajoso, desbravador e, por decorrência, confiante que será recompensado no seu fazer, uma jornada que é a reiteração da expedição bandeirante do período colonial brasileiro. NEGRO, Antonio Luiggi. A fome e a vontade de comer.Opções de desenvolvimento e conflitos sociais e políticos. In: História: cultura e sentimento: e outras histórias do Brasil, p. 323 – 340.

193. Os incríveis. Este é um país que vai pra frente (Heitor Carillo). RCA 102.0159, 1976.

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político programado e disciplinado de um general do exército de cavalaria, circunscrito na

marcha de um governante que se confunde com a marcha de um cavalo.

Grotesco? Levando em consideração a política de duas décadas sob o regime

ditatorial dos militares, que tomaram o governo com a promessa de combater a corrupção,

estabelecer a ordem e devolver o poder no mais curto prazo, talvez o sentimento de aversão

recrudesça. Na figura dos cinco generais que se sucederam na política dos “anos de chumbo”

é possível depreender os sujeitos de fazer intimidador que decretaram atos institucionais,

controlaram o congresso, calaram a imprensa, prenderam, torturaram e mataram em nome da

liberdade e da segurança nacional. Enquanto o Brasil contabilizava o maior contingente de

refugiados políticos de todos os tempos, os jovens estudantes de “boné amarelo” cantavam

um hino e freqüentavam as aulas de OSPB194; crédulos de que a lealdade e a obediência à

pátria são mais importantes do que qualquer outra coisa, uma vez que eles foram ceifados de

uma dita consciência política. Ora, a exemplo do que Landowski ensina sobre a escolha do

método estratégico, não seriam eles sujeitos de um “fazer tecnocrático”195, subordinados à

pragmática de um regime de governo cuja estratégia é manobrar os homens como coisas?

No curso do processo de redemocratização, num ato que vai ao encontro da luta

de políticos, jornalistas e estudantes, ao menos dos estudantes que não usam boné amarelo, o

presidente Figueiredo decreta a lei196 na qual:

“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

194. “Disciplina que, de acordo com o Decreto Lei 869/68, tornou-se obrigatória no currículo escolar brasileiro a

partir de 1969, juntamente com a disciplina de Educação Moral e Cívica (EMC). Ambas foram adotadas em substituição às matérias de Filosofia e Sociologia e ficaram caracterizadas pela transmissão da ideologia do regime autoritário ao exaltar o nacionalismo e o civismo dos alunos e privilegiar o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e da análise. O contexto da época incluía a decretação do AI5, desde 1968, e o início dos ‘anos de chumbo’ - a fase mais repressiva do regime militar cujo ‘slogan’ mais conhecido era ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’”. Dessa forma, as duas matérias foram condenadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, por terem sido impregnadas de um “caráter negativo de doutrinação”. Fonte: MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. “OSPB (Organização Social e Política Brasileira)” (verbete). Dicionário Interativo da Educação Brasileira - EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2002, http://www.educabrasil.com.br/eb/dic/dicionario.asp?id=365. Acesso em 18 de dezembro de 2011.

195. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 176-177. 196. Filme 2: Pronunciamento do presidente João Figueiredo sobre o projeto de lei da anistia. Produção

Agência Nacional, 1979, 4’07’’.

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§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.”197

E, a mesma lei que anistia os exilados políticos permitindo que eles retornem ao

Brasil se estende aos militares participantes da repressão. Subjacente ao discurso legal que

concede a anistia, em posições prescritivas diametralmente opostas, o poder retornar ao país,

que é a situação do sujeito exilado político, redunda na condição de sujeito que figura o

militar da repressão: não poder ser incriminado politicamente. Essa é a política de um

governo intimidador, que no uso de suas atribuições, ao conceder a liberdade isenta-se da

prestação de contas e, ao fazê-lo, desvela-se devedor. No arcabouço desse texto legal

despertam a atenção três figuras, cada uma delas sujeito de uma narrativa de base com vistas à

transformação social e política do país: o professor universitário e o líder sindical, que são

anistiados, e a guerrilheira, que de acordo com o parágrafo terceiro da lei, configurava caráter

de exceção e não podia ser beneficiada. A partir de um valor comum, da visibilidade

adquirida no grupo de pertencimento e do desdobramento das narrativas, essas figuras

políticas protenderam-se no discurso político, de forma que serão retomadas nesta

investigação na perspectiva de corpos políticos presentificados.

Por ora, importa observar que os exilados retornam ao Brasil e, com os direitos

políticos restaurados, dão a ver disposição para prosseguir na luta contra a ditadura. Eis uma

boa oportunidade neste momento, para entender, do ponto de vista da semiótica, o significado

da anistia. Obviamente os historiadores, os cientistas políticos, os sociólogos e os sujeitos

competentes de outras áreas do saber científico, e até os adivinhos que são páreas desse

arcabouço, já o fizeram. No entanto, interessa a “dimensão política” do discurso da anistia e o

efeito de poder decorrente, retomando o que ensina Landowski, a “transformação das

competências modais das partes integrantes da comunicação e, por conseguinte, a

transformação das condições de realização de seus respectivos programas de ação.”198.

O discurso prescritivo e doutrinário é uma idiossincrasia de todo período em que o

Brasil esteve sob o regime do governo militar, basta pensar no número de atos institucionais

197. Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6683.htm. Acesso

em 19 de dezembro de 2011. 198. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 206.

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promulgados e na reforma educacional que excluiu a sociologia e a filosofia da “grade”

curricular. Também vale para isso notar expressões do tipo “Brasil, ame-o ou deixe-o”199, que

é um bordão que desvela a opção de escolha num território sem escolhas. Mas a ordem

expressa, a determinação, a norma, a regra são constituintes de um fazer manipulatório que,

sabe-se, num primeiro momento se deu sob o véu do progresso brasileiro. No entanto, a

trajetória para a descontinuidade teve início com a crise econômica, quando, como também já

visto, o discurso passa a ser orientado para a redemocratização. E isso encerra a questão da

confiança, exatamente como Landowski explica sobre a configuração da promessa e da

aposta. A promessa pressupõe o fazer persuasivo do enunciador governo e a adesão do

enunciatário governado ao simulacro proposto de “ordem e progresso”, no qual o modelo de

progresso é dado como valor a ser arbitrado. De forma que, na relação intersubjetiva, os

sujeitos manipulados, confiantes na ordem, não se reconhecem na anarquização daqueles que

se opõem ao governo. Então, no momento de crise, quando a credibilidade do governo se

fragiliza, ele já não pode mais falar de projetos desenvolvimentistas e, para piorar, já circula

como adjuvante nas denúncias sobre a repressão. Na qualidade de destinador que necessita

firmar-se novamente como sujeito competente, ampara-se no discurso da paulatina

redemocratização, com isso instaura uma nova promessa que, por implicação, tem o povo

brasileiro, fiado na aposta, como o espectador dos primeiros fazeres com vistas à instauração

de um novo regime.

Dois eventos interferem na programação da ditadura militar, o fim do

bipartidarismo e a Lei da Anistia; não a lei em si, mas o que ela viabilizou, ou seja, a

possibilidade de os exilados políticos poderem retornar ao Brasil e, com isso, o

desencadeamento de outras narrativas. A volta para casa do sujeito exilado não é um regresso

qualquer, ela ganha um contorno mais significativo, um fazer carregado de paixões que

supera, e muito, o que se pode chamar de “saudades do feijão”. O estado de alma daqueles

que fugiram do país se sobrepõe à nostalgia de quem se afastou da mesa de refeições e

adquire o relevo do sujeito escorraçado, que foi impedido de viver na sua pátria e ao voltar

clama por justiça. No viés de “O Conde de Monte Cristo”, em que a justiça ou a vingança

dependem do ponto de vista do observador, esses sujeitos aos poucos vão retornando, são

199. “Frases de efeito como ‘Pra frente Brasil’, ‘Ninguém segura este país’, ‘Este é um país que vai pra frente’

e ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’ faziam parte do ufanismo alimentado pelo regime militar, principalmente entre 1970 e 1974. (Acervo Iconografia).”. In: História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. Coordenador-geral da coleção Fernando A. Novais: organizadora do volume Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 323.

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festejados, se comovem, mas não se acomodam. A celebração da volta é a discursivização da

liberdade política que, reiterada em cada retorno, consiste na política de democratização, cujo

efeito de sentido é o engajamento desses corpos políticos.

Posto isso, é imperioso observar a tática do governo militar que, ao lançar mão de

sua “competência operacional”, concede a anistia e, na seqüência, põe fim ao bipartidarismo.

Uma manobra para a desintegração dos opositores, que agora podem falar, mas estarão

diluídos nas múltiplas legendas originárias dos extintos ARENA e MDB, até então o único

partido de oposição ao governo. Isso significa que o governo da ditadura, ao identificar a

possibilidade de se tornar impotente perante a alteridade, articula o discurso do perdão legal e

viabiliza o pluripartidarismo apostando na “competência pragmática” dos opositores de

reorganização, ou seja, uma manobra política que visa à diluição do poder da alteridade.

Ocorre que, nesse caso, o encadeamento lógico da narrativa foi subvertido por uma

manifestação popular pedindo eleições diretas, um fazer da ordem do inteligível e do sensível.

Não faltam registros que documentem a apresentação no Congresso Nacional,

pelo deputado Dante de Oliveira, da emenda estabelecendo as eleições diretas para a

presidência da República, em janeiro de 1983, assim como a rejeição dela na Câmara dos

Deputados em abril de 1984 e as manifestações políticas que se sucederam nesse intervalo de

tempo. Da proposição à rejeição da emenda, que contou com o engajamento de líderes

políticos e sindicais, intelectuais, artistas e estudantes, os números somam: a atitude de 1

parlamentar, 15 meses, 15 mil participantes no primeiro comício, mais de 1 milhão no

comício que antecedeu a votação e 22 votos faltantes, num universo de 298 a favor, 65 contra,

3 abstenções e 112 deputados ausentes. Muitos defendem que o movimento das “Diretas Já”,

como ficou conhecido, envolveu a maior participação popular da história do Brasil, mas, há os

que digam que os números eram inflacionados a fim de repercutir o movimento. Há relatos de

que a imprensa foi mais silenciosa do que deveria, inclusive existe a acusação de omissão, ou

a tentativa dela, por parte de um veículo da grande imprensa. Acredita-se que isso aconteceu

num primeiro momento porque que as mídias eram intimidadas pelos órgãos de segurança e

de inteligência do governo militar, sempre atentos a tudo o que acontecia, afinal, os tempos

haviam mudado, mas não a ponto de transformar os militares em sujeitos passivos. Na opinião

do cientista político Octaciano Nogueira:

“(...) o movimento teve efeito político praticamente nulo e representou uma grande frustração para sociedade brasileira que lutava por eleições diretas. É que apesar de ter mobilizado líderes políticos, artistas e intelectuais em comícios realizados nos principais centros urbanos do país, o movimento não

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conseguiu fazer com que o Congresso Nacional aprovasse a emenda constitucional que restabelecia as eleições diretas.”200

É notório que o movimento das “Diretas Já” foi um fazer estratégico, de cunho

manipulatório, no qual os opositores ao governo tinham por objetivo fortalecer a

reivindicação pelo voto direto para presidente, o que não obteve sucesso. A oposição havia

impetrado uma emenda e sabia do risco dela não ser aprovada por interferência do governo,

de forma que investiu na convocação do povo para somar forças, apostando que o clamor

popular pudesse contribuir para a sua aprovação no Congresso. Observa-se que, se a manobra

do governo foi aprovar o pluripartidarismo e com isso enfraquecer o poder da oposição, dessa

feita ocorreu o contrário: a oposição dividida em legendas se junta e faz com que o povo se

“una”, na tentativa de persuadir os parlamentares. Ao promover as concentrações populares

em torno do valor do voto direto para presidente, desvela-se o “fazer político”201 como

método estratégico da oposição. Afinal, o ato de conclamar os sujeitos e reiterar-lhes os

deveres e os direitos como cidadãos, de modo a incitar-lhes a pedir direitos políticos, e dessa

maneira seduzir os sujeitos que tem poder de deliberar sobre as leis, equivale a “manipular os

homens”.

Em termos objetivos, o movimento das “Diretas Já” de fato não correspondeu aos

anseios da sociedade brasileira. No entanto, não são de se desprezar alguns aspectos no

processo estratégico que se sobrepõem ao discurso reducionista de “movimento de maior

participação popular brasileira”. E, apenas para que se possa pensar, reverberam do

movimento: o sentido de aglutinação como exercício político popular, a concretização do

regime democrático e a visibilidade de três dos próximos governantes que seriam eleitos.

O povo já havia aderido à programação do regime militar, o tempo era de mídias

tradicionais, ou seja, não havia a internet e tampouco redes sociais, além do que, os veículos

de comunicação não estavam totalmente engajados com o movimento. Então, o que faz o

povo ir às ruas? E não é só o fato de ir às ruas e se expressar, mas as proporções atingidas, o

número de pessoas que se mobilizaram foi muito significativo. Na tentativa de responder a

essa questão e entender a articulação das “Diretas Já”, retoma-se o contexto:

200. Octaciano NOGUEIRA apud SOARES, Regiane. Diretas-Já foi frustrante e não contribuiu para eleições,

diz cientista político. Folha Online, 24/01/2009, 10:03h. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u492526.shtml. Acesso em 26 de novembro de 2011. 201. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 176-177.

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O cenário é a Praça da Sé, centro da cidade de São Paulo. O Brasil ansiava pela democratização e pelas eleições diretas. Movimentos se espalhavam por todo país, mas a campanha das diretas somente conquista as ruas depois do histórico comício de 25 de janeiro. Marcado para o dia do aniversário da cidade de São Paulo, o primeiro grande comício da campanha por eleições diretas para presidente foi organizado por Franco Montoro, governador paulista. Participaram também diversos partidos políticos de oposição, além de lideranças sindicais, civis e estudantis. A expectativa era das mais tensas. O governo militar tentava minar o impacto do evento. O dia estava chuvoso. Aos poucos, a praça foi lotando e, no final, cerca de 300 mil pessoas gritavam por "Diretas já!" no centro da cidade. Além de políticos também estiveram presentes artistas como Christiane Torloni, Fernanda Montenegro, Gilberto Gil, Alceu Valença, Regina Duarte, Bruna Lombardi, Fafá de Belém e Chico Buarque de Holanda. O jornalista Osmar Santos anuncia a presença do governador Franco Montoro. O idealizador do comício pelas diretas estava acompanhado dos governadores Iris Resende, José Richa, Nabor Junior e Leonel Brizola. Os presidentes do PMDB, Ulisses Guimarães, e do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, também estão presentes. Também estavam presentes o senador Fernando Henrique Cardoso, presidente regional do PMDB, e o prefeito de São Paulo, Mário Covas, (...) Logo após o discurso de Montoro o Hino Nacional começa a ser cantado na Praça, que agora era só do povo. Com o sucesso do comício em São Paulo todos os governadores de oposição resolveram fazer o mesmo. Foi com o evento paulista que ficou comprovado o anseio popular. A partir de fevereiro, os comícios pelas eleições diretas foram se sucedendo nas principais capitais do país. No dia 16 de abril, pouco antes da votação das diretas, realizou-se um último comício em São Paulo. Só que desta vez, a Praça da Sé parecia muito pequena. Foi escolhido o vale do Anhangabaú, que recebeu uma multidão estimada em mais de 1,5 milhão de pessoas. Foi a maior manifestação política jamais vista no país.202

Com esse excerto é possível depreender que as “Diretas Já” são um exemplário da

política que tem como basilar uma estratégia manipulatória. A sagacidade dos organizadores

do comício da Sé consiste no fato de a reunião não se concentrar num evento político, mas na

política de fazer da comemoração do aniversário da cidade de São Paulo um evento

“contagioso”. Via de regra, as festividades que acontecem no espaço público constituem o

tipo de celebração que conta com a adesão popular, dessa forma, esses sujeitos que ocupam o

palanque, são enunciadores-estrategistas que investem na oportunidade de serem vistos e

ouvidos pelo povo e juntos se constituirão actantes coletivos. A noção de estrategista coletivo

nesse caso compreende os sujeitos que exercem atividades políticas, os líderes políticos,

assim como os sujeitos que circulam nas mídias, que são figuras de grande visibilidade como

o artista da novela, o músico e o locutor esportivo, por exemplo. Há também uma extensão

202. Diretas. História. Conheça SP. Portal do Governo do Estado de São Paulo. Fonte: http://www.saopaulo.sp.gov.br/conhecasp/historia_republica-diretas. Acesso em 27 de novembro

de 2011.

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bastante significativa formada pelos sujeitos que se reconhecem no grupo de referência, que,

no comício da Sé, pode ser apreendida nas figuras do líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva,

e do operariado. A fim de dar respaldo a essa elucubração, importa ter em conta que todos

esses sujeitos em praça pública têm suas singularidades fundidas no ato de clamar por

eleições diretas. E, como ensina Landowski, “(...) toda estratégia, enquanto procedimento de

interação concertada visando a produção de um fazer (ou de uma transformação de estado),

procede, em seu princípio essencial, de um ato totalizador que funde as singularidades.”203

Eis, portanto, como se dá a construção do que num primeiro momento se chamou de “força”,

que não deve ser entendido como algo que surge num passe de mágica, mas que consiste na

estratégia da oposição, que, fragmentada em múltiplos partidos, se reorganiza num fazer

coletivo. Landowski, sobre isso, ainda explica que:

(...) organizar na hora certa as boas conjunções e as disjunções adequadas entre singularidades, de modo a fazê-las “funcionar” numa totalidade que oferece “gosto” (ou valor, ou sentido). Na medida em que a aplicação desses feitos passa pela efetuação de séries de operações que tendem a fazer as partes concorrerem à produção de um todo, podemos falar aqui de estratégias participativas, ligadas à construção de actantes coletivos “sintagmáticos”.204

O “milagre brasileiro” já não existe mais e a recessão econômica que assola o país

culmina para o esgotamento do regime, mas um novo discurso aponta para a esperança no

horizonte brasileiro. As lideranças políticas e os demais membros de oposição ao governo,

organizados de forma suprapartidária, colocam em circulação a promessa de transformação

política, econômica e social a partir do voto direto para presidente. Ainda na Sé, é possível

escutar do governador Franco Montoro, o idealizador do comício, a seguinte colocação: “Me

perguntaram se aqui estão 300 ou 400 mil pessoas. Mas a resposta é outra: aqui estão

presentes as esperanças de 130 milhões de brasileiros." Pensando que até recentemente

predominava o silêncio e o debate político estava confinado ao espaço privado, não parece

plausível falar de exclusiva competência cognitiva dos sujeitos reunidos nessa praça pública.

Diante do que, a primeira questão que pode ser colocada concerne ao anseio do povo

brasileiro por eleições diretas, e é inevitável considerar que o clamor pelo voto direto constitui

um simulacro. Trata-se de um desejo moldado a partir de uma estratégia manipulatória e,

estando em jogo “as esperanças de 130 milhões de brasileiros”, significa que o que mobiliza

203. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 181. 204. Ibid., p. 182.

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esses sujeitos é a “crença” na mudança. De um lado, são as “ilusões referenciais”, afinal,

menos importante do que o número de pessoas ali presentes é o sentido que cada uma delas

experimenta, quando instalada no discurso como o sujeito que presentifica o “desejo” de toda

uma nação; de outro, são as “ilusões enunciativas”, pois se a visibilidade política e midiática

dos sujeitos-enunciadores garante o pronto reconhecimento do enunciatário, é no valor

circulante de nação que está o “crer no que diz”205 o discurso das “Diretas Já”. Pois, a nação

está em oposição ao governo autoritário e é dotada de poder transformador uma vez que é

maior do que a soma das partes na qual cada enunciatário-sujeito se reconhece, e, por isso,

permite que esse enunciatário edifique um destinador digno de confiança.

Ignorando o clamor de 1 milhão de brasileiros, ou 130 milhões como sugeriu

Montoro, a sanção foi dada por 22 votos faltantes. A estratégia do governo junto aos

parlamentares resultou na ausência de 112 deles no plenário, as faltas neste caso constituíram

uma manobra para que o Congresso não pudesse sancionar a emenda por falta de quórum, em

termos semióticos, uma presença dada pela ausência. Com isso, a transição para o regime

democrático foi através de eleição indireta, mas de fato, a passagem do regime político

ditatorial para o regime democrático, não aconteceu, assim como Tancredo Neves, o primeiro

presidente civil depois de 20 anos de ditadura, foi eleito, mas não tomou posse.

No que tange à incursão que acaba de ser realizada, observa-se que é tênue a linha

divisória entre o entendimento estratégico do movimento das “Diretas Já”, como exercício

popular democrático de um actante coletivo, e a estratégia da campanha eleitoral Tancredo

Neves, enquanto simulacro construído. Depois de 21 anos de ditadura, presente na vida

política desde a Era Vargas e diante da rejeição à emenda pelo voto direto, Tancredo faz da

experiência nos palanques das “Diretas Já” um modelo para colocar em circulação os

comícios de sua campanha à presidência da República. Independente de as eleições serem

indiretas, ele dá corpo, o próprio corpo, como esperança à privação democrática do povo

brasileiro. Portanto, se a mobilização pelo voto direto havia levado um milhão de pessoas à

praça pública, agora, entre a democracia e a multidão há um corpo. A eleição indireta é

decidida por um Colégio Eleitoral, o adversário de Tancredo Neves, Paulo Maluf, é um

sujeito que, por acreditar nas chances de vitória na disputa em eleições indiretas, foi um

grande adversário das “Diretas”. Pois, é nesse contexto que Tancredo soma o apoio popular às

estratégias partidárias junto ao colegiado e às lideranças políticas das “Diretas”, ou seja, a sua 205. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 154.

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campanha, assim como aconteceu com o movimento para o voto direto, está calcada na

estratégia participativa, visa construir um actante coletivo. No entanto, ao dar a ver a

democracia brasileira numa presença corpórea fomentada pelo anseio popular, é possível

afirmar que a esperança do povo é dada pela crença “naquele que diz”?

Sobre isso, Landowski, depois de postular a possibilidade de “crer (ou não crer)

no que diz” ou “crer (ou não crer) naquele que diz”, ou seja, ao dizer que o “crer” funciona

com certa autonomia em dois níveis, ensina que:

O primeiro caso – crer no “discurso” – opõe-se ao segundo pelo fato de que tudo sucede aí como se o fato de “crer” dependesse unicamente da presença, no enunciado, de certas marcas ou propriedades que tenham por si sós o efeito de fazer parecer verdadeiro o que é dito, independentemente das qualidades próprias ou do estatuto daquele que se exprime. 206

O semioticista prossegue explicando que, se a produção do efeito de sentido de

verdade estivesse única e exclusivamente restrita ao âmbito da boa argumentação, “a análise

do “crer” pertenceria, então, simplesmente (se assim podemos dizer), a uma ciência do

enunciado: ao mesmo tempo a uma lógica e a retórica da argumentação, e a uma poética do

discurso.”207 Em seguida, a fim de explicar que a nossa crença não está circunscrita à lógica,

Landowski recupera Pierce, quem escreve que “(...) a maioria de nós se inclina para a

confiança e a esperança, mais do que a lógica nos autorizaria” , e propõe uma investigação

que não se atenha ao “formalismo (lógico)” e nem ao “substancialismo (psicológico)”. O

estudioso propõe “outro princípio explicativo, que permita esclarecer em termos racionais o

que efetivamente, nos “leva” à confiança ou à esperança, ‘mais que a lógica nos

autorizaria’.” , orientado para o exame de uma “sintaxe actancial da enunciação”.

Com foco nas questões de “Sinceridade, Confiança e Intersubjetividade”,

constantes na abordagem teórica realizada no intróito deste trabalho, observa-se que a

estratégia fiduciária é peculiar ao modelo das “Diretas Já” e ao simulacro da campanha

eleitoral de Tancredo Neves, cujo fazer estratégico consistiu em “incorporar” a estratégia

participativa da primeira. Tratam-se de enunciações que têm como basilar a promessa e a

aposta respectivamente. Por conseguinte, contam com a adesão do enunciatário ao valor

circulante de democracia e com a fiança desse enunciatário de que há um sujeito “capaz e

206. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 154. 207. Ibid., p. 154.

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desejoso” de implantar a democracia. O fazer democrático guarda na imanência a liberdade e,

sendo esse o anseio singular a todos os sujeitos, os funde e os constitui actantes coletivos.

Ocorre que, no fazer político das “Diretas Já” o objeto é a restauração do voto

direto para presidente, cujo valor, colocado em circulação por enunciatários-sujeitos nas

figuras dos líderes políticos e sindicais, artistas, locutores esportivos, jogadores de futebol,

etc., é a democracia. Mas, na campanha eleitoral para presidente, ainda em eleição indireta, a

candidatura de Tancredo Neves figurativiza a democracia que, tendo sido frustrada pela

rejeição da emenda no Congresso, surge como a esperança presentificada por esse sujeito.

Antes, uma estratégia participativa, na qual os actantes coletivos visavam o poder votar para

presidente, dessa feita, uma participação coletiva. A figura de um candidato à presidência em

eleições indiretas e a estratégia participativa consiste no investimento de confiança nesse

actante-sujeito pelo fato de ele ser capaz de promover a democracia, ou seja, de restaurar o

poder de voto desses actantes coletivos. Mas isso não significa que a crença “no que diz” dá

lugar à crença “naquele que diz”, portanto, a partir de uma relação corpo à corpo, objetiva-se

dar conta de depreender a política do corpo de Tancredo Neves.

3.2 – Ato II – Tancredo Neves

Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão. Se todos quisermos, dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, poderemos

fazer deste País uma grande Nação. Vamos fazê-la.

Tancredo Neves, presidente eleito, 1985208

Colocar-se frente a frente com Tancredo em pleno ato de mobilização das

“Diretas Já” (Fig. 13-a) é ter a sensação de estar diante da própria resignação materializada.

Ao passo que Brizola e Ulisses Guimarães confabulam, num dueto em que a explicação do

primeiro parece contar com a audição atenta do segundo, que dona Mora, mulher de Ulisses, e

Franco Montoro acompanham a movimentação e que Fernando Henrique olha com atenção

para o entorno, Tancredo não faz nada. Ele mantém as mãos em forma de concha sobre o

208. Excerto do discurso proferido por Tancredo Neves, após sua eleição à Presidência da República no Colégio

Eleitoral, no plenário da Câmara dos Deputados, no dia 15 de janeiro de 1985, em Brasília – DF. Fonte: http://www.tancredo-neves.org.br/presidente-eleito. Acesso em 03 de fevereiro de 2011.

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ventre, a postura corporal relaxada, a fisionomia conformada e o olhar perdido no vazio. Por

ocasião de um comício de sua campanha eleitoral, tem-se a impressão que essa visada se

ergue do nada para uma incógnita e, enquanto Montoro, que está ladeado por Fernando

Henrique e Ulisses numa escuderia solidária, faz um gesto de conclamação e brada, Tancredo

se resigna numa postura impassível.

a b

c d e

f g h

Fig. 13 – Na figura impassível de Tancredo Neves desvela-se o corpo político cujo fazer discursivo, balizado na narrativa dos heróis da inconfidência, visava transformar o Brasil numa grande nação. A estratégia participativa dos movimentos democráticos foi habilmente “incorporada” aos seus anseios políticos, no entanto, a programação do corpo contaminado pela bactéria coincidiu com a trajetória política que Tancredo intencionava descrever.209 209. a) Leonel Brizola, governador do Rio de Janeiro, Ulysses Guimarães, deputado federal, Tancredo Neves,

governador de Minas Gerais, Franco Montoro, governador de São Paulo, e Fernando Henrique Cardoso,

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A impassividade corpórea de Tancredo Neves é recorrente em diversas situações

e, salvo momentos em que esse sujeito se dedica a um fazer banal, a um olhar de sosláio ou a

uma pose fotográfica, não há rupturas. Postado na linha de frente com as lideranças políticas é

tão corriqueiro para esse corpo acostumado ao exercício dessa atividade estar diante da

multidão, quanto trivial limpar os óculos com um lenço que, pressupõe-se, Tancredo tira do

bolso num gesto despreocupado independente da ocasião. Não há dúvida que esse corpo

político tem nas sobrancelhas em forma de arcos arredondados sua aliada natural, uma vez

que elas corroboram para a produção de sentido de sua languidez fisionômica. Mas, se de

repente esse sujeito dirige o olhar para o observador, não há como dizer que ele o faz tomado

de surpresa e, se ao contrário, a mirada é numa outra direção, não se tem como postular sobre

o que ele vê ou dizer que o gesto é para disfaçar sua cumplicidade com o que acontece ao

redor. No modo de olhar de Tancredo pouco importa se ele se direje para o interlocutor ou

para o outro, porque a sensação ao encontrá-lo, quer ele esteja só, em pé, abraçado ou sentado

ao lado do outro, é sempre um encontro com uma presença inquebrantável.

A demonstração de não perturbação do corpo político de Tancredo Neves pode ser

atribuída à figura de um homem discreto, de um sujeito criterioso que represa as suas

emoções ao contrário de deixar que elas transpareçam. No máximo, e isso em virtude da

expressão fisionômica, pode-se atribuir a Tancredo o estado de alma de um sujeito terno.

Porém, tratando-se de um corpo político, essa falta de expressividade não corrobora o excesso

dela? Em outras palavras, significa estar aqui e agora, em ato, diante do corpo político, do

homem dedicado ao exercício da atividade política e do sujeito que visa não dar a ver suas

posições e, para isso, assume o “fazer discursivo” de recobrir as marcas distintivas de seu

senador, em passeata pelas Diretas Já (16/4/1984). Fonte: Arquivo/Folha Imagem; b) Tancredo Neves, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Ulisses Guimarães, em comício durante a campanha de Tancredo Neves à presidência, mesmo com eleições indiretas. Fonte: http://welbi.blogspot.com/2011/05/especial-fhc-80-anos-senado.html. Acesso em 11 de janeiro de 2011; c) Tancredo, José Sarney, Ulysses Guimarães, Marco Maciel (papel nas mãos) e Aureliano Chaves. Fonte: http://www.nosrevista.com.br. Acesso em 18 de julho de 2011; d) Tancredo e a mulher, Risoleta durante missa na igreja Dom Bosco, em Brasília, na véspera da posse que não aconteceu. Fonte: http://www.institutojosejorgemaciel.org.br. Acesso em 18 de julho de 2011; e) Homem em banca de jornal no Vale do Anhangabaú em SP, observa a capa da Folha da Tarde com notícia sobre a morte de Tancredo. Fonte: http://www.institutojosejorgemaciel.org.br. Acesso em 18 de julho de 2011; f) Tancredo Neves, presidente do PP (esquerda), em ato de apoio ao então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva (à direita), ao lado dos presidentes do PDT, Leonel Brizola, e do PMDB, Ulysses Guimarães, em Brasília. Fonte: http://www.institutojosejorgemaciel.org.br. Acesso em 18 de julho de 2011; g) Tancredo e José Sarney em 25 de setembro de 1984. Fonte: http://fotos.estadao.com.br. Acesso em 18 de julho de 2011; h) Antonio Carlos Magalhães (à direita) durante reunião com o então candidato à presidência da República, Tancredo Neves (13/9/1984). Fonte: Arquivo/Folha Imagem.

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corpo. Eis, a “situação”, comumente atribuída aos conterrâneos de Tancredo, a qual se critica

ao dizer que “o mineiro fica em cima do muro”.

É depreensível que Tancredo Neves se dê a ver sempre impassível, é fato que o

seu nome tenha sido escolhido para concorrer indiretamente à presidência, mesmo com outros

sujeitos capazes e desejos de realizar esse percurso, e, é lógico que esse “efeito de poder”

decorra de sua atuação nos bastidores. Possivelmente, Tancredo, ao ter se dado a ver na

posição de imparcialidade, fez da ocultação de “não parecer” e da mentira de “não ser” as

habilidades estratégicas diante do oponente, mas, de que forma se construiu o simulacro do

mártir da Nova República?

A promessa de mudança colocada em circulação no discurso das “Diretas Já”,

como visto, é um simulacro assumido pelo povo. E, refutada a restauração do voto direto, esse

mesmo povo vê naufragar, com o nome de democracia, toda e qualquer possibilidade de

mudança política, social e econômica. Então, o que até recentemente era o palco do discurso

político democrático que a coletividade selaria nas urnas, no contexto de eleições indiretas, dá

lugar ao corpo político no qual a coletividade deposita toda a esperança de alcançar a

democracia. E que corpo é esse? O corpo de um político que se dá a ver inabalável, numa

presença que não é nem eufórica nem disfórica, mas plácida. Não tendo um posicionamento

desvelado, Tancredo se coloca à margem do bem e do mal, com o dever de transformar a

situação e, para isso, ele se dá a ver um corpo competente e desejante de restabelecer a

democracia. Portanto, o que está em jogo não é mais a crença no discurso democrático das

“Diretas” que ressurge como promessa renovada, e sim a fé naquele que veio para concretizar

a mudança. Essa é uma narrativa que o repertório cultural permite o fácil reconhecimento,

uma vez que na figura do político, está o corpo do sujeito que presentifica o salvador. Porém,

não se trata “unicamente de uma presença”, mas da articulação estratégica da salvação.

Na condição de presidente eleito, Tancredo é internado na véspera da posse

presidencial e sua morte é anunciada 39 dias depois, no dia 21 de abril. A política de

Tancredo, cuja presença serviu de fiança para uma dita democracia, desloca-se para a

figurativização do martírio na agonia que durou cerca de uma quarentena, e 193 anos depois

de Tiradentes, que presentifica o corpo político da Inconfidência, toma lugar o mártir político

da Nova República. A programação política de Tancredo é interrompida pela morte e a

estratégia que o edificou como “o salvador”, uma vez rompida pelo aleatório, é engendrada

numa nova programação, cuja estratégia, que já não pode ser a presença política, é articulada

pela política do corpo presente.

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Ao dar visibilidade à urna funerária de Tancredo Neves em cortejo nas ruas de

três importantes cidades do país, desvela-se uma estratégia cognoscível, da ordem da

manipulação, no fazer ver que ali está um corpo político do presidente eleito, infligido pelo

sofrimento e não empossado. A reiteração do suplício, veiculada de maneira exaustiva pelas

mídias, engendra o povo na programação decorrente desse fazer manipulatório e, Tancredo,

que foi vítima fatal de uma doença se transforma no mártir da democracia, ou seja, no sujeito

que morre por um ideal. É inegável a dimensão sensível dessa presença política, dada pelo

corpo presente assistido por milhares de enunciatários. Instaura-se o sentimento de comoção,

num viés proporcional ao do clamor popular deflagrado pela estratégia participativa das

mobilizações anteriores. E, por esse motivo, talvez não seja coerente afirmar que o

movimento das “Diretas Já” e a campanha eleitoral de Tancredo tenham sido exclusivamente

da ordem do inteligível.

Antes, o desejo de liberdade política sob o estatuto da democracia fez com que

milhares de pessoas, de maneira racional, se demovessem às praças públicas para expressar

seus anseios num gesto sensível: o clamor. Agora, milhares de pessoas se amontoam nas ruas

sensibilizadas: a comoção. Eis a massa orgânica, sobre à qual, Landowski ensina que:

(...) enquanto o público do teatro ou do concerto (ou, até mesmo, às vezes, da reunião política, ou ainda, da manifestação de rua) tem vocação para se tornar uma “totalidade integral” – todos em conjunto constituindo uma massa orgânica unida na experiência presente de alguma paixão comum (...) o contágio concebido como partilha imediata dos afetos do corpo e da alma – implica, ao contrário, um contínuo da paixão que só poderá ser da ordem da união entre corpos sujeitos. Isso supõe unidades que por princípio nada isola, mas que une um sentir recíproco ao menos potencial, e teoricamente ilimitado quanto à sua extensão: reciprocidade do sentir que poderá fazer nascer, no mínimo, casais, ou reunir multidões inteiras.

No ato de cantar o hino, proferir palavras de ordem ou chorar os sujeitos se unem

num fazer discursivo e, nesse caso, o “efeito de poder” alcançado é o de “nação”. Não é à toa

que Tancredo Neves, após eleito pelo Colégio Eleitoral, encerra o seu discurso proferindo a

seguinte frase: “Se todos quisermos dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele

herói enlouquecido de esperança, podemos fazer deste País uma grande Nação.”210 Pois uma

nação é exatamente assim, simples assim, e, co-mover significa “mover junto com”, de

maneira que o povo é “contagiado” e comovido pelo sentimento de luto que é presentificado

por esse corpo que passa “enlouquecido de esperança”. Isso faz crer que mesmo com a morte

210. Lucilia de Almeida Neves DELGADO (Organização e ensaio introdutório). Tancredo Neves, p. 49.

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do sujeito, ao mártir é reservado o dever de manter o valor em circulação, ou seja, “fazer deste

País uma grande Nação”. Com isso, há uma razão que explica essa interação sensível

plasmada no gesto político da urna funerária, que é conduzida em cortejo e sobe a rampa do

Palácio do Planalto com o corpo impassível de Tancredo Neves, um herói em potencial.

3.3 – Ato III – Fernando Collor

Vencerei ou falharei na medida em que esse desafio for enfrentado, sem demora e sem trégua. Mas tenho certeza de que, com o apoio resoluto do povo e do Congresso, ainda este ano haveremos de ferir de morte,

de destruir na fonte, a inflação no Brasil.

Fernando Collor de Mello, presidente da República, 1990 - 1992211

É final de verão na última década do século no qual os brasileiros passaram mais

de trinta dessas estações sem ver, eleito de forma direta, um presidente da República ou de

pelo menos, assistir à cerimônia oficial da posse de um governante civil. Com a morte de

Tancredo o vice-presidente José Sarney foi empossado em seu lugar, num ato cujas marcas

desvelam muito mais o objetivo de garantir que a transição do regime fosse consumada, do

que qualquer intenção de celebrá-la. Isso explica porque o tempo tem um aspecto tão

significativo no discurso do enunciador Veja que, na edição do primeiro dia do outono de

1990, noticia a posse de Collor cronometrando seus atos:

Às 9 da manhã da última quinta-feira, Fernando Collor de Mello saiu de casa a bordo de um Galaxie cinza-escuro, vestido com terno azul e gravata bordô, saltou para o banco traseiro de um Rolls Royce conversível e dirigiu-se para o edifício do Congresso Nacional, em Brasília. Ali era aguardado por uma platéia de 2 000 pessoas, onde se encontravam parlamentares, representantes de governos estrangeiros, centenas de jornalistas e figurões do mundo dos negócios. Às 9h58, com a mão direita erguida na altura do peito, Collor leu um juramento que durou menos de um minuto – encerrado por uma demorada salva de palmas.212

211. Excerto do discurso proferido pelo presidente Fernando Collor de Mello, na cerimônia de posse no

Congresso Nacional, no dia 15 de março de 1990. Fonte: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/fernando-collor/discursos-1/1990/01.pdf/at_download/file. Acesso em 09 de fevereiro de 2011.

212. Collor sobe a rampa. Veja, 21 de março de 1990, nº 1122, p. 76. Fonte: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em 17 de julho de 2011.

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Fig. 14 – A postura eufórica do presidente eleito Fernando Collor sendo conduzido em carro aberto será reiterada em diversas ocasiões na cerimônia de posse e se desvelará também na forma de decisões estremadas que culminarão na interrupção do seu governo. Nesse retrato, as saudações diametralmente opostas desses corpos políticos irão reverberar na política efusiva de Collor e, após o seu impeachment, no empossamento de Itamar Franco como presidente da República.213

O Brasil amanhece lindo nessa manhã e a posse do novo presidente, um civil

eleito pelo povo, é o motivo que os cidadãos brasileiros têm para ver, finalmente, o “dia

nascer feliz”214 e esse texto reverbera a ansiedade de um povo em estado de espera. O Rolls

Royce presidencial se aproxima, dentro dele estão Fernando Collor, presidente eleito, e Itamar

Franco, o vice-presidente, além da comitiva protocolar. Collor é um homem de aparência

jovem e de porte altivo, uma figura esguia que se dá a ver sempre bastante alinhado. Ele acaba

de descer do carro presidencial, cumprimenta algumas autoridades que estão próximas do

veículo, faz uma saudação para o povo e, lépido, inicia a subida da rampa do Congresso

Nacional. Enquanto caminha com determinação, subindo a rampa num passo sempre

acelerado, Collor desabotoa uma casa do paletó, toca no prendedor da gravata, mexe no

colarinho, ajeita o bolso do terno e, novamente, cumprimenta o povo. O presidente eleito e o

213. Foto: Mila Petrilo / Folhapress_1990. Fonte: http://noticias.uol.com.br/album/20110107_itamar_franco_

album.jhtm. Acesso em 09 de fevereiro de 2012. 214. Na noite de 15 de janeiro de 1986, enquanto Tancredo Neves era eleito presidente da República pelo

Colégio Eleitoral, em Brasília, na Cidade do Rock, no Rio de Janeiro, a acontecia a primeira edição do Rock’in Rio, “Quando um Cazuza bronzeado e musculoso se enrolou na bandeira brasileira e desandou a discursar, no meio de “Pro dia nascer feliz”, os telejornais da noite chegaram ao esperado momento histórico, à imagem de encerramento perfeita: “Que o djia nasça filij amanhã pra todo mundo! Um Brasil novo... uma rapaziada ishpeeertaa!”. Edmundo BARREIROS e Pedro SÓ. 1985: o ano em que o Brasil recomeçou. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 16 - 17..

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vice são conduzidos até a porta do Salão Negro e ali são recebidos pelos líderes da Câmara e

do Senado. São esses homens que caminharão com eles até o plenário e, com certeza, estarão

presentes durante o seu mandato. Definitivamente é nesse momento que começa o governo e,

sem dúvida, analisar a presença de Fernando Henrique Cardoso, líder do PMDB, é no mínimo

curioso.

Fig. 15 – Na ante-sala do plenário, enquanto aguardam a chamada para a cerimônia de posse, Collor desenvolve uma conversa amistosa com o senador Fernando Henrique Cardoso e, Itamar Franco, dono de uma postura política dita ingênua, apenas observa. Eis um “flagrante delito”, no qual os senadores da República, dispostos na galeria sobre suas cabeças, e aos quais Collor parece fazer remissão, são presenças auspiciosas do percurso que esses corpos políticos, sentados no sofá vermelho, descreverão em breve..215

Collor e Itamar recebem instruções de uma funcionária do cerimonial enquanto se

aproximam da ante-sala do plenário; importa notar como a figura feminina ocupa uma função

ordinária nesse território ainda predominantemente masculino. Eles estão em pé e começam a

ser cumprimentados pelos membros da comissão de líderes partidários, são aproximações

bastante formais e é visível o clima de ansiedade nesse momento. Collor tira um lenço branco

do bolso para secar o suor do rosto e repete gestos, como o de ajeitar o botão do terno, passar

a mão sobre o cabelo e sobre a sobrancelha. Itamar parece mais confortável com a situação,

215. Filme 3: Posse do presidente Fernando Collor de Mello. Produção: Rede Manchete, 1990, 7’43’’.

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ambos sentam-se no sofá vermelho. Nesse momento, depois de já tê-los saudado, Fernando

Henrique Cardoso se reaproxima e Collor o convida para juntar-se a eles. Abre-se o espaço no

assento e, eis o enquadramento político mais significativo desse final de século, no qual os

brasileiros, tão observadores quanto os senhores congressistas que estão retratados sobre suas

cabeças, verão:

O mais jovem presidente do Brasil a tomar posse, um governante de articulação

política restrita, que constituiu seus ministérios com sujeitos de pouca visibilidade ou

competência política; a implementação de um plano econômico baseado na alta de impostos,

a abertura dos mercados nacionais às importações, a criação de uma nova moeda e, o mais

impactante, o confisco de dinheiro privado, que gerou insatisfação popular, principalmente

dos pequenos e médios investidores; um plano econômico que não emplaca e a proliferação

nas mídias de notícias sobre práticas de corrupção. Então, a publicização midiática, que

exortara a candidatura Collor, principalmente para assegurar que as rédeas do país não

passassem às mãos de um operário, descreve o caminho contrário. O que era crise econômica

se transforma em crise política, as denúncias de irregularidade dão lugar à CPI (Comissão

Parlamentar de Inquérito, a massa de estudantes constitui-se numa multidão de “Caras

Pintadas”, diante do que, Collor é afastado e, embora renuncie minutos antes de sofrer o

impeachment, é impedido de exercer atividade política durante oito anos.

Importa ter em contata que esse sujeito que chega acompanhado do seu vice-

presidente descreveu um percurso político bastante significativo. Collor emergiu de um dos

menores estados do país, Alagoas, onde disputou e venceu eleições para cargos políticos

relevantes, mas a estratégia para sua visibilidade em âmbito nacional não foi dotada de

nenhum ineditismo. Na figura de um “caçador de marajás” agindo em benefício dos

“descamisados” Collor alcançou projeção política, a qual foi intensificada durante a disputa à

presidência com Luiz Inácio Lula da Silva. Se fosse um herói, Collor de Mello seria o Robin;

a despeito de sua aparência muito próxima a do “homem morcego” suas atitudes se alinham a

de um “menino prodígio”, ao passo que a figura de Lula remete a um primata. Embora os

gestos altivos do corpo de Collor produzam um efeito de sentido de autoconfiança, observa-se

que na interlocução com Fernando Henrique, em lugar de dar a ver seus superpoderes, esse

corpo desvela a ingenuidade do discípulo. E é assim que, rompendo toda a programação da

cerimônia de empossamento, Collor se dá a ver adentrando o plenário do Congresso e,

tomado pela presença dos parlamentares que o ovacionam, ergue os braços, cerra os punhos,

dá um golpe no ar e faz o “v” da vitória. Depois, como que lembrando-se do caráter formal da

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cerimônia, retoma a postura comedida da programação e assume a expressão plácida ao

interagir com os seus colegas parlamentares. E, esse mesmo gesto político, ele repete até com

mais euforia quando já está no platô, próximo à mesa dos trabalhos, prestes a fazer o

juramento depois do qual ele esboçará um sorriso de satisfação. Collor é dono de uma

expressão facial agressiva e é dessa forma que ele se dá a ver vitorioso, ao passo que

demonstra preocupação com a sua visibilidade política; de repente, se deixa levar pela

situação e assume uma fisionomia de fera: franze o cenho, infla as narinas, ergue o braço com

o punho fechado e golpeia o ar. Eis o comportamento recorrente que produz o efeito de

sentido de ingenuidade.

Desde o fim do militarismo, com a anistia e o regresso dos exilados políticos,

constituiu-se no país um pluripartidarismo tangenciado pelo ideal democrático. Havia uma

série de possíveis nomes à sucessão presidencial oriundos do celeiro político das “Diretas Já”.

Com a morte de Tancredo, o seu vice, José Sarney, assumiu o governo e concretizou a

democracia; o seu sucessor, também civil, seria eleito pelo voto direto e de certa forma, esse

assunto tornava-se obsoleto, mas havia uma grande missão a cumprir: salvar a economia

brasileira. Collor, na qualidade de “jovem príncipe”, articulando-se nas questões de

“sinceridade e confiança”, ou seja, calcado na tradição, assumiu um discurso político que

remetia à inovação e era coerente com a figura do corpo de um “caçador de marajás”, o que

lhe conferiu visibilidade política perante os concorrentes. Mas o que é a tradição política, na

perspectiva do sujeito que almeja o poder, senão o rearranjo discursivo do simulacro da

promessa e da aposta? Conta, e muito, o apoio que Fernando Collor recebeu das mídias, mas é

imperativo considerar que elas aderiram ao simulacro do “caçador” não para elegê-lo, mas

para derrotar os seus concorrentes, no caso Brizola e Lula, cujas orientações políticas eram

temidas por alguns setores. Em suma, o discurso do virtual presidente poderia ser qualquer

um que, naquele momento, contasse com a asserção popular e não resvalasse os interesses das

instituições empresariais e econômicas. Daí, esse governante efusivo que se aproxima em

carro aberto (Fig. 14), sancionado positivamente nas urnas e crente detentor do poder, ter o

seu exercício de governo interrompido. Essa expressão de agressividade de Collor que, num

primeiro momento está em conformidade com o sujeito aguerrido, determinado a transformar

a situação de crise econômica que se arrasta pelo país, logo nos primeiros dias de mandato dá

lugar a um governante de “fazer tecnocrático” o qual, diante de uma performance mal

sucedida e sem contar com o apoio do Congresso, acaba não se sustentando no poder.

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Com a renúncia de Fernando Collor de Mello, o percurso da política brasileira é

reorientado e, pela segunda vez consecutiva desde a restauração da democracia, um vice-

presidente assume o governo. Itamar Franco, o homem de cabelos grisalhos, sentado à

esquerda de Collor no cortejo em carro aberto (Fig. 14), que se dá a ver na saudação comedida

e em sentido oposto à de Collor, assume a presidência. O mesmo homem que estava na

posição central no sofá vermelho da ante-sala do Congresso ocupa agora a primeira posição

no governo do país. E, nesse mesmo espaço do sofá vermelho, à esquerda de Itamar, é

possível ver o corpo do político cuja política colocará o país em outros rumos:

Este [o Presidente Itamar] me perguntou, brincando, se eu estava sentado ou em pé e colocou a questão:

_ Você aceita ser ministro da Fazenda? 216

A trajetória política de Fernando Henrique Cardoso teve início muito antes de ele

se tornar ministro da Fazenda, cargo para o qual teve o nome anunciado antes de dar o aceite

ao presidente Itamar Franco. Senador da República e nomeado duas vezes ministro, das

Relações Exteriores e da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso assumiu o cargo público mais

importante do país também por duas vezes consecutivas, através do voto direto e em primeiro

turno. Não é preciso um repertório apuradíssimo para racionalizar que a atuação de Fernando

Henrique no ministério da Fazenda, através do plano de estabilização econômica, o Plano

Real, foi a prova qualificante para o seu primeiro mandato, o qual constituiu a prova

glorificante para mais um exercício, o segundo mandato. A síntese do governo de Fernando

Henrique Cardoso consiste no fato de um sociólogo, intelectual e não profissional, assumir a

Fazenda num momento em que a inflação beirava 30% ao mês. Não apenas eram

elevadíssimos os índices inflacionários, o que colocava a economia brasileira em processo de

deterioração e o povo em estado de constante insatisfação, como era um cargo ministerial de

alta rotatividade, o que fragilizava a situação política do seu ocupante.

Se a nomeação de Fernando Henrique Cardoso tem um traço peculiar,

principalmente porque ele não era um economista e foi muito bem sucedido na estratégia de

estabilidade, não é menos idiossincrásica a sua estratégia. Afinal, havia sim, da parte desse

governante e de muitos outros que o antecederam, um discurso comprometido em normalizar

a situação econômica e, por parte da população brasileira, que como um todo ansiava por isso,

216. Fernando Henrique CARDOSO, A arte da política: a história que vivi, p. 42.

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não era menor a esperança na concretização dessa estabilidade. Mas, a menos que se queira

atribuir à fortuna, o que de certa forma significa acomodar-se às circunstâncias, importa

esquadrinhar o corpo político de Fernando Henrique Cardoso, no intuito de depreender a

política de transformação econômica que ele instaurou no governo na passagem do século XX

para o século XXI.

Oriundo de uma família de gerações de militares de carreira, não surpreende que

Fernando Henrique se dê a ver num corpo político disciplinado, rígido e formal por sua

própria constituição genética. Em contrapartida, essa visibilidade regular acaba constituindo-

se um óbice no momento em que se examina a compleição política desse corpo, porque ele se

dá a ver em atos meticulosamente orquestrados com as situações em que se encontra. A

problemática num primeiro momento está centrada na presença do governante, cuja

formalidade reiterada funciona como uma blindagem do corpo; mas não pode ser comparada,

por exemplo, com a imagem do corpo de Figueiredo. Dito de outra forma, Fernando Henrique

é um corpo político que dificilmente se deixa apreender num “flagrante delito”.

No encontro com Fernando Henrique Cardoso em dois momentos distintos, como

por exemplo, na manifestação das “Diretas Já” (Fig. 13-a) e na campanha de Tancredo Neves

à presidência (Fig. 13-b), tem-se a visibilidade do corpo de um sujeito comprometido.

Observa-se que, tanto na primeira quanto na segunda imagem, Tancredo e ele estão

praticamente na mesma posição, no entanto, ao passo que Tancredo se deixa ver apático,

Fernando Henrique mostra-se compromissado em acompanhar a conversa, de sentido um

tanto matreiro, entre Brizola e Ulisses Guimarães. O mesmo Ulisses que na segunda imagem

observa de braços cruzados, e a diferença drástica é justamente cruzar os braços nesse

momento em que o orador conclama a todos de braço erguido. O sociólogo, professor e

pesquisador que teorizou sobre transformação social, desenvolvimento e democracia, desvela-

se na postura desse sujeito em estado de vigília durante os movimentos políticos, ao passo

que, no sofá vermelho, recepcionando Collor e Itamar no dia da posse, está a síntese desse

homem de dimensões políticas, que é senador, será duas vezes ministro e o futuro presidente

da República. Não totalmente confortável, mas protegendo o corpo de Itamar Franco na

posição central, quando deveria ser o de Collor, a apreensão do modo de estar de Fernando

Henrique é do sujeito que dá a orientação.

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3.4 – Ato IV – Fernando Henrique Cardoso

Quando os brasileiros puderem ser mais informados; quando puderem ser mais críticos das políticas postas em prática do que do

folclore dos fatos diversos da vida cotidiana; quando puderem pôr mais em perspectiva os acontecimentos e cobrar mais a

coerência da ação do que fazer julgamentos de intenção, mais capacitados vão estar para o exercício da cidadania.

Fernando Henrique Cardoso, presidente da República, 1995 - 2003217

Fig. 16 – A organização observada na disposição do retrato do cortejo em carro aberto por ocasião da posse do presidente eleito Fernando Henrique Cardoso, dá a ver o seu modo de governar. Ele, em sincronia com o seu vice-presidente, Marco Maciel, ele dirige-se numa saudação pública que desvela algo da ordem da igualdade. O primeiro presidente civil eleito de forma direta que cumprirá seu mandato até o fim e se reelegerá, o político que concretizará a estabilidade econômica, eis a política no corpo político de um intelectual.218

217. Excerto do discurso proferido pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, ao tomar posse do primeiro

mandato (de 1995 a 1999) no Congresso Nacional, no dia 1º de janeiro de 1995. Fonte: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/fernando-henrique-cardoso/discursos-de-posse/discurso-de-posse-1o-mandato/view. Acesso em 03 de fevereiro de 2011.

218. Fonte: Portal Luiz Nassif, http://blogln.ning.com/profiles/blogs/marco-maciel-um-marco-zero. Acesso em 11 de novembro de 2011.

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É assim que a nação brasileira assiste à posse do intelectual Fernando Henrique

Cardoso à presidência da República, que chega acompanhado de seu vice, Marco Maciel, em

carro aberto trafegando no eixo monumental de Brasília, dentro dos melhores padrões

republicanos. Por direito, e de fato, desde a posse de JK, o primeiro presidente civil eleito

pelo voto direto a cumprir seu mandato, Fernando Henrique Cardoso, agora FHC, se dá a ver

ladeado pela escolta de motociclistas num retrato que reitera a imagem do seu governo.

Um conjunto de linhas segmentadas e paralelas que dão forma às faixas na

avenida pela qual são conduzidos o presidente eleito e o seu vice no cortejo da posse; e as

intermitências das linhas brancas em contraste com o asfalto negro produzem um efeito de

sentido de movimento, de forma que o Rolls Royce presidencial vai se aproximando numa

velocidade, talvez moderada, mas constante. Há quem possa sugerir que o carro presidencial

esteja parado, mas se fosse assim FHC e Marco Maciel não teriam necessidade de segurar na

barra de apoio do veículo enquanto acenam, e provavelmente, os motociclistas que os

escoltam apoiariam os pés no chão. De qualquer maneira, está explicitada no enquadramento

fotográfico a concentração de elementos à direita, o que significa dizer que o peso do corpo

político que passa e acena para a direita, está à esquerda. Fernando Henrique, ao contrário de

seus ascendentes, descobriu que a sua vocação era a academia: optou pela Sociologia e fez

dessa área do conhecimento a sua formação como pesquisador e professor na cátedra de

Ciências Políticas e, do espaço universitário, se deu sua inserção no território da política.

Após o golpe de 64 foi perseguido e obrigado a exilar-se fora do país, de forma que ele está

entre os tantos corpos políticos que deixaram o Brasil pela porta dos fundos durante a ditadura

militar, e, como tantos outros, que celebraram o regresso encetando o discurso da liberdade

política. É dessa forma, pela esquerda e da esquerda, que o corpo de Fernando Henrique

Cardoso vai delineando-se no processo político de redemocratização brasileira. No entanto, há

uma forma de se dar a ver nesse corpo que, sem se reduzir à complacência, se aproxima do

efeito de sentido de contenção e prioriza a racionalidade. Dito de outra forma: trata-se de mais

virtú do que fortuna.

Descrever os cerca de sete minutos do percurso em carro aberto219 na posse do

presidente FHC, do momento em que ele entra no Rolls Royce até sua chegada e subida pela

219. Filme 4: Fonte: Documento: reportagem, Brasília (DF), 01/01/1995. Referência: CARDOSO, Fernando Henrique. Discurso de posse no Congresso Nacional. Brasília (DF), 1 jan. 1995. (16 min 28 s), Betacam, son., p&b. Autor: Fernando Henrique Cardoso; Humberto Lucena; Marco Maciel; Wilson Campos. Evento/Atividade: posse. Especificação: Posse de Fernando Henrique Cardoso no cargo de presidente do Brasil. Local: Brasília (DF), 01/01/1995. Descritores: Congresso Nacional; Humberto Lucena (presidente do

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rampa do Congresso Nacional, equivale à assistir a um frame de seu exercício de governo.

Brasília, vista do alto, intensifica-se na vastidão em forma de planície e, no dia da posse

presidencial, as grandes porções de terreno que separam um edifício do outro, são agigantadas

pelas câmeras, que à medida que documentam a passagem do novo governante vão dando

visibilidade desses espaços. Se por um lado explicita-se o corpo político diminuto em relação

às fartas extensões do território e volume das edificações, por outro, evidenciam-se nessa

mesma relação as dimensões políticas desse corpo. Ali, separados pelo cordão de isolamento,

estão também os corpos dos sujeitos que formam a audiência da passagem da liderança

política. Alguns empunham bandeiras, cantam, aplaudem ou apenas testemunham silentes,

outros correm tentando acompanhar o carro presidencial. Fernando Henrique ora se vira para

um lado, ora se volta para o outro lado, e assim, alternando as direções dos cumprimentos ele

se dirige ao povo e ao mesmo tempo mantém uma conversação com o vice-presidente que

está sentado ao seu lado. Ao longo do trajeto Fernando Henrique se mantém em pé, ampara-se

na barra de apoio do veículo e estende o braço, o que ele faz de forma a não desalinhar o

paletó, e sempre na altura da cabeça. Quando o cortejo estaciona em frente à rampa do

Congresso, FHC, sorrindo, mas sem arroubos, com certa apreensão denunciada pelas vezes

em que retrai os lábios e comprime-os no interior da boca, desce do carro e, olhos no olhos,

cumprimenta com apertos de mão o grupo que vem em sua acolhida. São seguranças,

políticos e funcionários do cerimonial que estão ali para recepcioná-lo. Então, passado um

instante depois de terem iniciado a subida da rampa, de onde FHC ainda faz saudações

públicas, o observador divisará na comitiva a figura de uma mulher. A antropóloga Ruth

Cardoso, na eminência de ser empossada primeira dama da República, compôs o cortejo até a

porta do Congresso num veículo separado, mas agora soma-se ao grupo na subida da rampa

passo a passo ao lado de Fernando Henrique. Importa observar que tão significativo quanto

uma presença feminina na seara política, o que não constitui ineditismo, é o modo como essa

presença desvela-se, o que até então era eminentemente masculino, porque o que o

enunciatário distingui agora são dois intelectuais que caminham ombro a ombro, não na

disputa de gêneros e sim com as cabeças elevadas na mesma altura.

Congresso Nacional); Inocêncio de Oliveira (presidente da Câmara dos Deputados); Marco Maciel (vice-presidente do Brasil); Ruth Cardoso (primeira-dama do Brasil). Código: 13/0000011-004. Observação: Reportagem incompleta. O acesso às imagens da cerimônia de posse do presidente Fernando Henrique Cardoso que foram descritas nesse parágrafo também podem ser acessadas no site da Fundação iFHC. http://acervo.ifhc.org.br/ModuloPesquisador/documentacao/visualizar.do?acao=abrirDocumentoDoContent&anexo=6778&fichaId=10288&iframe=true&width=100%&height=100%. Acesso em 26 de janeiro de 2012.

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Na tentativa de compreender o que isso significa, basta dizer que nesse encontro

com Fernando Henrique Cardoso se está diante de um modo de presença muito diverso

daquele que se avista na aparente estabilidade do governo militar (Fig. 12), cuja política

consiste em solapar as marcas do corpo. Ao passo que não se pode depreender a expressão

dos olhos de Figueiredo porque eles estão cobertos pelas lentes escuras dos óculos (Fig. 11-c),

a lente translúcida da câmera fotográfica faz a oposição, ou seja, na exposição figurativa da

dupla identidade presentifica-se a situação de ambigüidade na dimensão estética do retrato.

Em contrapartida, a política desvelada nessa passagem de FHC em carro aberto é algo

também muito distinto da inquietação política de Collor, a qual foi responsável por dar a

conhecer vez ou outra a ira no corpo desse político. O efeito de sentido produzido na

passagem do corpo político de FHC é algo da ordem do equilíbrio e, lançando um pouco de

luz sobre o que foi a sua atuação como governante, o que se observa não é menos do que a

justa combinação de forças. Para dizer de outra maneira e numa comparação bastante pontual:

a atuação política de Fernando Henrique Cardoso no ministério da Fazenda, durante o

governo Itamar, e posteriormente nos seus dois mandatos como presidente da República

caracteriza-se pelo equilíbrio. Da reforma monetária com vistas a combater a inflação, o que

constitui a política de estabilização econômica do país, passando pela privatização das estatais

e a implantação de uma política neoliberal, que consistem num fazer discursivo no contexto

da globalização, ao corpo em ato de Fernando Henrique Cardoso. O corpo do político é

apreendido sem oscilações ou desvios nas mais variadas situações e reitera o planejamento e a

implantação da política econômica do seu governo, ou seja, confirma a estabilidade da moeda.

A política do equilíbrio econômico é a política do corpo de FHC, ou seja, está

plasmada no corpo do político. O corpo político que é apreendido sem oscilações ou desvios

nas mais variadas situações, e reitera o planejamento e a implantação da política econômica

do seu governo. A condução do Brasil não desligado do mundo e a retórica do governante

constituem as duas faces de um homem de virtú e, talvez, o fator de maior distinção, que é

ratificado pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, na escritura da sua biografia após deixar

o poder. Nesse caso, não só no viés de quem narra a sua própria trajetória na vida política,

mas do que sujeito que o faz sob a égide das ciências políticas e aqui, numa alusão a

Landowski, o político e o politólogo reiteram o que a sociossemiótica acaba de descrever:

A nova política, e por conseqüência os políticos, tem de se haver com “bichos novos”, atores interagindo em novas situações. Tudo isso altera o exercício democrático do mando. Tão logo eleitos, os representantes do povo, sobretudo quando do Executivo, sentem como é insuficiente o apelo à

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base racional-legal para legitimar o exercício do poder (a Constituição, a eleição, os fundamentos jurídicos da decisão tomada). É preciso explicar e convencer a opinião pública sobre a justeza de cada decisão, em uma busca incessante de consentimento genérico, de legitimidade difusa, em um processo contínuo de interação entre os poderosos e a população. Deixou de ser suficiente ter obtido dezenas de milhões de votos em uma eleição. No dia seguinte, o eleito recomeça do zero. E o instrumento para obter a aprovação democrática é a palavra, sempre ao lado da imagem.220

Em outras palavras, o que Cardoso, professor e pesquisador, ensina à luz do

repertório sociológico e das ciências políticas, e de certa forma sob a perspectiva histórica,

afinal é também o depoimento do político sobre a sua experiência como servidor público, é o

que se pretende sobraçar sob o amparo da semiótica. Portanto, com o propósito de dar

continuidade a esta investigação, à guisa de “bichos novos”, o próximo corpo a divisar é o de

Luiz Inácio Lula da Silva.

3.5 – Ato V – Lula da Silva

“O que nós estamos vivendo hoje, neste momento, meus companheiros e minhas companheiras, meus irmãos e minhas irmãs de todo o Brasil, pode ser

resumido em poucas palavras: hoje é o dia do reencontro do Brasil consigo mesmo. Agradeço a Deus por chegar até aonde cheguei. Sou

agora o servidor público número um do meu país. Peço a Deus sabedoria para governar, discernimento para julgar, serenidade para

administrar, coragem para decidir e um coração do tamanho do Brasil para me sentir unido a cada cidadão e cidadã deste país no

dia-a-dia dos próximos quatro anos. Viva o povo brasileiro!”

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, 2003 - 2011221

Nas eleições presidenciais de 2002, após oito anos no poder, o governo do

presidente FHC enfrentava severas turbulências. A despeito de o desenvolvimento econômico

ter ser concretizado, durante o segundo mandato de Fernando Henrique a desvalorização da

moeda interferiu na sua credibilidade, que sempre esteve apoiada no discurso de estabilidade

220. Fernando Henrique CARDOSO, A arte da política: a história que vivi, p. 62-63. 221. Excerto do discurso proferido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao tomar posse do primeiro

mandato (2003 - 2007) no Congresso Nacional, no dia 1º de janeiro de 2003. Fonte: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/luiz-inacio-lula-da-silva/discursos/1o-mandato/pdfs-2003/1o-semestre/01-01-2003-pronunciamento-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-na-sessao-solene-de-posse-no-congresso-nacional/view. Acesso em 03 de fevereiro de 2011.

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da economia. O bloco governista chegava ao fim do mandato com o endividamento dos

Estados, o aumento no índice de desemprego e a significativa desigualdade na distribuição de

renda. Nesse contexto, Luiz Inácio Lula da Silva, que havia amargado três derrotas

consecutivas concorrendo a eleições presidenciais, uma vez com Collor e duas vezes com

FHC, assume aquela que será a sua estratégia derradeira. E o que ele faz? Em síntese, Lula

busca o apoio de diversos setores políticos com o objetivo de constituir uma chapa que possa

agradar os mais diferentes setores da sociedade brasileira.

O Partido dos Trabalhadores, pelo qual Lula sempre foi candidato, é originário da

aproximação dos dirigentes dos movimentos sindicais, dos intelectuais de esquerda e dos

católicos ligados ao movimento da Teologia da Libertação. No jogo político, mesmo tendo

vencido um número significativo de eleições em âmbito municipal, estadual e federal, a

derrota em eleições presidenciais marca metade da existência da legenda. Portanto, nessas

eleições, no alto dos seus 22 anos, o PT não é apenas o discurso no viés socialista democrático

de um partido que se notabilizou por ser a esquerda oposicionista, mas é a soma das

experiências adquiridas no jogo. Dentre as estratégias, estava travar relações com os partidos

tradicionais e eliminar o estigma de “governo baderneiro”, o que sempre foi suscitado quando

Lula concorria a uma eleição, principalmente, por parte do empresariado brasileiro. Esse fazer

começou no final de 2000, quando:

(...) Alencar fechou o Palácio das Artes em BH para comemorar seus cinqüenta anos de empresariado. Mandou convidar governadores, senadores, deputados federais, estaduais e os presidentes de todos os partidos políticos. A moça que organizava os convites teve uma dúvida:

_ Senador, o PT tem dois presidentes.

_ Como assim, dois presidentes?

_ O deputado federal José Dirceu é o presidente executivo e o Lula é o presidente de honra. O que eu faço?

_ Convida os dois.

Para disfarçar seu objetivo. Alencar disse à moça que, se houvesse outros partidos na mesma situação, que convidasse sempre os dois presidentes. Na verdade, ele queria falar para aquele nordestino de São Bernardo do Campo. Encantara-se com a história de Lula e notara muitas afinidades com ele. O interesse era tanto que decidiu fazer algo que o sindicalista adorava. Ele deixou o discurso preparado de lado e falou de improviso. Queria fisgar Lula pelo coração. Contou sua vida e, não por acaso, falou da união do capital e do trabalho.

(...) E começou a desfiar o longo novelo da sua história. De Itamuri a Belo Horizonte, da infância pobre ao maior conglomerado têxtil do país. Arrancou lágrimas da platéia.

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Lula, que chora até em parque de diversão, ficou emocionado com a história do empresário e identificou no sujeito uma série de afinidades com ele: “Era uma coisa tão semelhante à minha vida, tão próxima, nós éramos duas figuras que tiveram uma infância parecida, pobre, que se sacrificaram pra caramba na vida e que se encontraram cinqüenta anos depois. Um, grande empresário, e o outro, político saído da vida sindical”.

Além das similaridades de vida, Lula também percebeu naquele empresário uma característica familiar, o pragmatismo. Para resolver algo é preciso dialogar, seja com quem for. Virou-se para José Dirceu, sentado a seu lado, e disse: “Zé, acabei de encontrar o meu vice”.222

Sem dúvida existe um Lula seduzido pelo discurso manipulatório de Alencar antes

do diálogo travado entre esses dois sujeitos, que por sua vez, tem na base o fazer político de

Lula em tornar o corpo político de Alencar o seu vice na chapa. Isso significa uma estratégia

fiduciária vislumbrando a aproximação e o trânsito do PT junto aos setores empresariais e aos

mais conservadores. Alencar, político mineiro, que naquele momento era senador pelo

PMDB, Partido do Movimento Democrático Brasileiro, desliga-se do partido e filia-se ao PL,

Partido Liberal, a fim de compor com Lula. Dessa feita, é um fazer tecnológico, basilar de

uma estratégia operacional, ou seja, o ato de manobrar as coisas a fim de viabilizar tal

parceria política. Mas, para que Lula pudesse concretizar suas intenções ele também

precisaria da anuência do partido e, diante dos protestos quando a questão foi colocada em

debate no PT, presume-se que prevaleceu o fazer tecnocrático, que é da ordem do pragmático

e significa, na subjacência, manobrar os homens.

A similaridade do percurso narrativo de Lula e de José Alencar pode ter sido

responsável por despertar a empatia entre esses dois sujeitos e a adesão do empresário na

chapa provavelmente atenuou a resistência que os setores mais refratários tinham com relação

ao PT, contudo, havia ainda um óbice a ser transposto. Lula sempre foi dono de um discurso

intransigente, o que resultou em grandes embates com seus adversários e, indubitavelmente,

essa política sempre esteve reiterada em seu corpo político. Para se ter uma idéia, uma das

imagens mais emblemáticas é o corpo a corpo de Lula e Collor de Mello durante a campanha

eleitoral de 1989, no qual a rudeza do corpo do petista vai se destacar em relação à figura

polida de seu adversário. Todavia, essa aspectualidade tosca do corpo político de Lula não é

pontual; ela pode ser depreendida em várias outras situações, a exemplo do que se observa na

imagem na qual Lula está com Tancredo, Brizola e Ulisses Guimarães (Fig. 13). Sobre o

modo de se dar a ver e de ser visto Landowski ensina que:

222. José Roberto BURNIER. Os últimos passos de um vencedor: entre a vida e a morte, o José Alencar que

conheci, p. 205 – 207.

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Como toda estrutura de comunicação, a que designa o verbo ver implica a presença de ao menos dois protagonistas unidos por uma relação de pressuposição recíproca – um que vê, o outro que é visto – e entre os quais circula o próprio objeto da comunicação, no caso a imagem que um dos sujeitos proporciona de si mesmo àquele que se encontra em posição de recebê-la. O fato de que os dois actantes entre os quais se efetua a transmissão da mensagem – aqui icônica ou, mais simplesmente, figurativa – possam ora ser confundidos num único e mesmo ator, como no caso do “narcisismo”, em que o observador contempla o seu próprio reflexo, ora corresponder a dois atores distintos que dividem entre si os papéis de emissor e receptor (numa relação de comunicação, nesse caso, transitiva) não modifica em nada a organização da sintaxe inter-actancial subjacente, que, por definição, permanece indiferente às variações mais superficiais concernentes à organização do dispositivo actorial.223

Pois, é assim que rusticidade do corpo de Lula remete à figura do retirante

nordestino que, galgando degraus sociais, aperfeiçoa-se no operário da indústria metalúrgica.

Depois, transforma-se no líder sindical desse operariado, o que significa ser o sujeito

responsável pelo fazer transformador da situação de um grupo de trabalhadores junto às

autoridades empresariais. Então, na condição de candidato à presidência da República, o

mediador da massa operária, sob o discurso da promessa de mobilidade social, dá lugar à

esperança dos grupos mais oprimidos. A construção da imagem do Lula estadista, que contou

com o maior aporte de capital de uma campanha do PT e com a gestão do marketing político

de Duda Mendonça, teve como estratégia de aproximação aos partidos do centro, um discurso

menos radical e intimidador. A ordem era falar de uma política de negociação e não enveredar

por temas polêmicos e, foi dessa forma, que surgiu o mote da campanha: “Lulinha não quer

briga. Lulinha quer paz e amor”. A figura do “sapo barbudo” já não existia mais quando

Lula, desvinculado dos discursos intimidadores, “(...) fez visitas à Febraban (Federação

Brasileira dos Bancos), à Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), à Fiesp (Federação das

Indústrias do Estado de São Paulo), à Fierj (Federação das Indústrias do Estado do Rio de

Janeiro) e à Escola Superior de Guerra. Em todos os encontros, recebeu elogios e

aplausos.”224, numa mostra de que, finalmente, era aceito pelos grupos mais reacionários.

O cortejo em carro aberto de Lula e de José Alencar, na qualidade de presidente e

de vice-presidente eleitos, seguindo da Catedral de Brasília até o Congresso Nacional,

constitui um dos momentos mais significativos da cerimônia de posse, cujas imagens remetem

a uma espécie de catarse popular. Percebe-se que o deslocamento do veículo é muito lento e o

223. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 88 - 89. 224. Após três eleições, Lula chega à Presidência da República. Folha Online, 27/10/2002. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u41521.shtml. Acesso em 13 de janeiro de 2012.

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compasso é ditado pela massa de pessoas que se aglutinam ao redor dele. Cerca de duas

décadas após o fim da ditadura no Brasil, assiste-se à apoteose225 que tomou conta de Brasília

no dia da ascensão, ao poder máximo da República do primeiro presidente de um partido de

esquerda. Alencar e Lula, que descreveram percursos tão simétricos, ou, para citar Fiorin,

“(...) tão ao gosto de setores conservadores de nossa sociedade, do menino pobre que, com

trabalho ingente, torna-se muito rico”226 deleitam-se na consagração da “co-incidência “ de

seus percursos narrativos realizados até então.

Fig. 17 – O cortejo em carro aberto na posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva é apoteótico. Lula, tendo ao lado o seu vice-presidente José Alencar e diante de milhares de espectadores em frenesi, desvela-se num corpo político performático. Enquanto Alencar estende o braço num gesto que dá visibilidade de obediência numa expressão fisionômica entusiasmada, Lula, expressando satisfação, na maleabilidade do seu corpo político e com os braços suspensos no ar, prepara-se para realizar o movimento acrobático, espetáculo que será reiterado durante os seus dois períodos de governo.227

Envergando o vermelho do Partido dos Trabalhadores, a assistência popular se

espalha e colore os gramados no entorno da Praça dos Três poderes, forma uma moldura

humana ao redor do veículo que conduz Lula e Alencar ao Congresso Nacional. A escolta do

carro é feita por seguranças de terno e óculos pretos, assim como de policiais, a cavalo e a pé,

225. Filme 5: Posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Produção: Central Globo de Jornalismo, 2003,

4’10’’. 226. José Luiz FIORIN. Elementos de análise do discurso, p. 22. 227. Foto: Orlando Kissner / AFP / CP Memória. Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca. Acesso

em 09 de fevereiro de 2012.

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vestidos de uniforme cinza e capacetes pretos e brancos. Há também uma gama de repórteres

empunhando câmeras e, tudo o mais, é o corpo do povo, que salta, pula, acena, agita

bandeiras e corre, em matizes coloridas, ao encontro desse corpo político. Sancionado

positivamente nas urnas, “eleito com 52,79 milhões de votos (a segunda maior votação

absoluta de todo mundo até então)”228, Lula carrega um semblante de satisfação e expressa-se

erguendo ora um braço, ora o outro, acenando e mandando beijo. Alencar, em alguns

momentos é um corpo mais reticente, talvez assustado com tamanha aglomeração, mas vai

desdobrando-se também em sorrisos e acenos. O vice-presidente eleito é dono de uma

fisionomia acolhedora, produção de efeito de sentido construída pela articulação de sua figura

senil em relação ao seu modo sereno de se dar a ver. Esse “jeito mineiro de ser” que, de um

lado, foi responsável pela aceitação do presidente eleito junto aos grupos mais resistentes, e

de outro, corrobora essa outra imagem de Lula; que surgida em 2002, se transforma num ato

espetacular ao tomar posse.

Com a barba aparada e os cabelos bem cortados, Lula, em pé, dentro do Rolls

Royce presidencial, desvela-se numa maturidade grisalha. Se os seus gestos não são tão

comedidos, pelo menos nota-se que o movimento do seu corpo político está muito distante

daquele que se observava nos palanques das assembléias sindicais e dos comícios eleitorais.

E, a despeito de uma compleição desproporcional, dada pela protuberância do abdômen em

relação aos braços e pescoço curtos, Lula enverga confortavelmente o terno de talhe bem

dimensionado. Sobre o peito, a gravata de modelo tradicional rompe com o vermelho da sua

tradição petista. Lula incorpora ipsis litteris o verde, amarelo, azul e branco da pátria. Nas

listras em sentido diagonal, de forma semi-simbólica está descrita a orientação de uma

trajetória política obliqua de Lula, a qual vai se reiterar durante o seu governo por ocasião dos

maiores escândalos de corrupção na política brasileira. Essa orientação perpendicular está

reverberada na política de Lula, que, mesmo tento o seu governo envolvido em contundentes

acusações de propina e lavagem de dinheiro, tem o corpo político preservado, sai incólume e

reelege-se para um próximo mandato.

À medida que o povo se dá a ver numa crescente e festiva agitação, os atos de

Lula vão se concretizando em sucessivas quebras de protocolo e incidentes. Primeiro, “um

cavaleiro dos Dragões da Independência, que perdeu o controle do seu cavalo que empinou

228. Ralph MACHADO. Lula A.C. – D. C.: política econômica antes e depois da “Carta ao povo brasileiro”, p.

95.

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as patas, entrando na frente do carro presidencial e obrigou o motorista a dar uma freada

que quase derrubou Lula e seu vice.”229; depois, um fanático que, inopinadamente, agarra-se

ao pescoço do presidente, que, entre esses e outros eventos, estende o braço e gesticula um

“jóia” com o polegar em riste. Na rampa do Congresso é a vez de Lula sair da trajetória e,

interrompendo seu percurso, abraçar com um afago uma popular que furou o cordão de

segurança. A “co-incidência” na programação do carro presidencial e na do cavalo, assim

como dos abraços inesperados, é a oportunidade de observar que, diferente de seus

antecessores, e, nota-se que até os cavalos são diferentes, esses encontros aleatórios estão

sempre reiterados no modo de governar de Lula.

A posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva constitui o discurso de celebração

da democracia brasileira e, de acordo com o próprio Lula, esse é “o dia do reencontro do

Brasil consigo mesmo”. Conforme o Rolls Royce presidencial vai passando deixa o rastro da

euforia popular: o povo, cuja presença durante mais de quarenta anos esteve plasmada na

figura dos “Candangos”, ou seja, observadores quase inertes e mudos, reinventa-se nessa

festividade da posse. É um dia de passagem, o primeiro, de um século recém inaugurado, que

tem como marca a transição do poder para as mãos de um operário e pelas mãos de milhões

de outros operários, portanto, não è à toa que Delacroix viesse a “flagrar” essa Marianne dos

trópicos (Fig. 18). Ora, e não é esse o reencontro do Brasil consigo mesmo?

Mas, se o extraordinário do tempo da democracia faz com o que os sujeitos sejam

percebidos nessa outra maneira de se manifestar, não é menos excepcional observar que, à

rigor do que se descreveu em capítulo precedente, o espaço também é apreendido de modo

diferente. Lula, como um deus no centro do universo, ocupa agora o centro do poder, que é o

edifício da soberania, das riquezas e dos segredos, mas, subvertendo toda consagração política

à qual se assistiu no Brasil, agora o lugar “do poder, da fortuna e da ciência não escapa ao

comum dos mortais”. É a crença desses sujeitos, que numa remissão a um dos mais antigos

rituais de passagem, o sacramento de asserção e purificação dado pela imersão do corpo na

água, que ressemantiza esse espaço como o lugar da fé. E é a confiança nesse governante, no

candango que passa e dos candangos que o vêem passar, que incita ao ato de consagração,

então, os sujeitos adentram os espelhos d’água, banham-se nas águas dos “Três Poderes” em

sagração do corpo político de Lula.

229. Alan MARQUES, Lula MARQUES, Sérgio MARQUES. Caçadores de luz: histórias do fotojornalismo, p.

159.

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122

Fig. 18 – A celebração popular no centro da Praça dos Três poderes durante a cerimônia de posse do presidente Lula culmina num ato de sagração, um espécie de “liberdade guiando o povo” como marca da sagração da democracia. No sem número de flâmulas e bandeiras vermelhas do Partido dos Trabalhadores, destacam-se uns poucos estandartes da pátria, o que dá a ver a ascensão da esquerda no governo do Brasil.230

3.6 – Ato VI – Dilma Rousseff

“Pela decisão soberana do povo, hoje será a primeira vez que a faixa presidencial cingirá o ombro de uma mulher. (...) É com esta coragem que vou governar o Brasil. Mas mulher

não é só coragem. É carinho também. Carinho que dedico a minha filha e ao meu neto. Carinho com que abraço a minha

mãe que me acompanha e me abençoa. É com este mesmo carinho que quero cuidar do meu povo, e a ele - só a ele -

dedicar os próximos anos da minha vida. Que Deus abençoe o Brasil!

Que Deus abençoe a todos nós!”

Dilma Rousseff, presidente da República, 2011231

230. Foto:Wanderlei Almeida / AP. Veja, 8 de janeiro de 2003. Fonte:

http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em 17 de julho de 2011. 231. Excerto do discurso proferido pelo pela presidente Dilma Rousseff, ao tomar posse no Congresso Nacional,

no dia 1º de janeiro de 2011. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/853564-leia-integra-do-discurso-de-posse-de-dilma-rousseff-no-congresso.shtml. Acesso em 05 de setembro de 2011.

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A escolhida de Lula e eleita pelo povo, Dilma Rousseff, despede-se com um

abraço da funcionária do cerimonial em frente ao Congresso.232 A chuva que desabou em

Brasília dá uma trégua, num gesto providencial da natureza, e Dilma pode, finalmente, entrar

no Rolls Royce com a capota arreada para cumprir a última parte da sua posse como

presidente. Há uma oficial da Marinha Brasileira sentada a sua frente e o carro é conduzido

pelo motorista particular de Dilma, que está em pé e tem ao seu lado, à esquerda, também em

pé, sua única filha, Paula. Bandeiras vermelhas com a inscrição do Partido dos Trabalhados

são empunhadas por alguns militantes em meio à assistência, demarcando o território político

e dando a ver, nas suas dimensões avantajadas em relação às duas pequenas bandeiras

brasileiras fixadas sobre a lataria de cada farol do carro presidencial, o poder que detém. O

povo grita, acena, fotografa e Dilma retribui levantando o braço pesado e rijo num corpo que

ora se volta para a esquerda, ora se vira para a direita, depois segura por um instante na barra

de apoio no carro, suspende os dois braços, alterna-os e até manda beijo. São gestos eufóricos,

há certa energia na sua reciprocidade em relação ao povo, ainda mais se comparada a de sua

filha. Paula mantém uma postura ereta, um sorriso comedido e o corpo sempre voltado para

frente, algumas vezes vira a cabeça em direção às pessoas que saúdam e direciona um aceno

para elas, mas sempre com o braço mais próximo do tronco e numa expressão de

comedimento. Há um gesto mecânico nessa jovem senhora, que alguém até poderia atribuir às

boas maneiras recém adquiridas com o cerimonial, mas é um corpo acanhado, que destoa,

senão para a filha da primeira governante mulher do Brasil, para a da guerrilheira.

A presidente prossegue numa marcha reduzida e continua acenando para o povo,

que por sua vez, persiste em correr, acenar, gritar, fotografar e se espreme diante da barreira

de proteção que separa os seus corpos do corpo da presidente. Vão mais de oitenta anos desde

que o Código Eleitoral permitiu o voto feminino, portanto, esse é sem dúvida um dia para ter

a marca da descontinuidade. O carro pára diante da rampa do Palácio do Planalto. A porta é

aberta, Dilma se apóia na barra e na borda do veículo, ignora a oferta de ajuda do cerimonial

que acaba de chegar para ampará-la, e desce. Ela dá a ver movimentos firmes, mas que na

seqüência demonstram certa apreensão; alinha o corpo, estica a blusa, ainda acena para

alguém a sua esquerda e faz um movimento com os braços, um gesto dirigido para Lula, que

está no topo da rampa, como quem diz “pronto, aqui estou”.

232. Filme 6: Posse da presidente Dilma Rousseff. Produção: Central Globo de Jornalismo, 2011, 3h20’.

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Nesse final de tarde de verão Dilma está no início da rampa e aguarda o sinal para

prosseguir. Para a ocasião ela escolheu o que parece ser um vestido sem mangas e um blazer,

ambos de cortes retos e na cor pérola. Os sapatos, de salto não muito alto, são da mesma cor

da roupa. O blazer, uma espécie de casaqueto, com dois botões e num tecido de leve

transparência com um trabalho que lembra uma renda, tem mangas 3/4 e vai até a altura dos

quadris. Brincos e gargantilha de ouro e pérolas grandes e solitárias, além de uma pulseira

com um olho grego encerram os adornos da presidente. Por certo a vestimenta não favorece a

silueta da mulher madura e de formas arredondadas. Dilma tem sobrepeso, braços um tanto

curtos, busto grande e pescoço grosso e curto, um corpo rotundo que se dá a ver sempre em

desajuste com as formas angulares da roupa. Ademais, um corpo grande e pesado que se

equilibra sobre pés pequenos aumenta a impressão dos passos muito duros. Mas, o que para

alguns são passos duros, para outros são passos firmes.

Nesse momento, ela, que escolheu fazer um trajeto solitário até o Congresso,

marcando auto-suficiência e explícita quebra de protocolo do seu corpo guerrilheiro que a

chuva serviu para acortinar, e que depois optou pela companhia da filha, inicia a subida da

rampa ao lado do vice-presidente Michel Temer. E, o que poderia ser o registro da ruptura

feminina na vida política brasileira, se observado sob outro prisma, é o resgate de valores

cristalizados. Dilma sobe a rampa numa marcha cadenciada, senão como uma jovem nubente,

como a mulher consciente da realização no cortejo matrimonial. Na ausência de um cônjuge

legal, porque a presidente é divorciada, ela leva a filha, mãe do seu único neto, como forma de

reiteração dos valores sociais pertinentes à família. Vestida de branco, na ausência do símbolo

religioso, as pérolas constroem o efeito de sentido do feminino incólume. E, em lugar do

buquê com flores de laranjeira, o amuleto na pulseira para afastar a inveja. Diante do olhar do

observador, que ao passo que testemunha também realiza, está um corpo político cuja política

é a do corpo que se entrega à Lula.

O presidente Lula aplaude a chegada de Dilma ao topo da rampa, ao que

acompanham sua mulher, Marisa Letícia, e o vice-presidente, esse talvez por falta de

alternativa, uma vez que Dilma retribuiu de imediato ao gesto de Lula devolvendo-lhe o

aplauso. E, Michel Temer, o vice-presidente que durante todo o trajeto ocupou um espaço

muito próximo do figurativo no Cadilac que seguia o carro de Dilma, pela primeira vez tem a

oportunidade de demonstrar alguma coesão nesse espaço político. Isso desvela que a política

de cada um desses corpos tem orientações distintas, eles se comunicam de forma protocolar, e

isso exclui certamente Lula e Dilma, ou seja, são corpos no exercício de uma atividade

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política, que não interagem politicamente. E essa distância abismal, quase em tom de

indiferença, entre Dilma e Temer, é acentuada ainda mais pela presença da vice-primeira-

dama, cuja juventude e beleza figurativizam-na como uma “flor de estufa” ao lado do marido

e recrudescem o ideal de feminilidade que Dilma e a filha não tem. Mas, embora Marcela

Temer não seja uma presença efusiva, e essa também não era a posição interação política

estabelecida entre os corpos da assistência e o corpo político que Temer constitui, o seu olhar

observador e a sua postura altiva não a reduziram a um objeto feminino de observação. No

entanto, à guisa de dar prosseguimento, cabe registrar que a política do corpo político

feminino será retomada em análise específica neste estudo. Por ora, observa-se que essa

distância entre a governante e o vice recém empossados tem uma primeira tentativa de quebra

quando Lula, tomando cada um pela mão, ergue os braços e se volta para o público mostrando

os corpos da vitória, e mostrando-se como corpo central dessa vitória.

Fig. 19 – A presidente eleita, Dilma Rousseff, segue em cortejo acompanhada pela filha e ladeada por um corpo de seguranças femininos. Essa reiteração da figura feminina, a primeira mulher a governar o país, a mãe da mulher que a companha, a mulher escoltada por mulheres corrobora um simulacro passional. Então, a figura de Dilma Rousseff, em lugar de presentificar a mulher sujeito competente para decidir sobre o governo do país, assume um papel patêmico.233

233. Foto: Flávio Florido, UOL. Fonte: http://pautandosemprepm3.blogspot.com/2011_01_01_archive.html.

Acesso em 09 de fevereiro de 2012.

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De peito aberto e com os braços estendidos para o povo, Dilma Rousseff se dirige

para o topo do poder na condição de “primeira mulher” a ocupar o cargo de presidente do

Brasil, o que serviu de mote para sua campanha. Mas, não sendo a compleição da figura

feminina, como se observa, qual é a política desse corpo? É à noção de estratégia postulada

por Landowski e abordada na introdução deste trabalho, que se recorre na tentativa de

encontrar uma resposta. A priori postula-se que eleger uma presidente do sexo feminino

corrobora os valores de emancipação da mulher, em contrapartida, se isso é colocado como

valor distintivo do voto, significa que esse feminino é antes de tudo discriminado. Pensando

essa estratégia como noção, e sempre de acordo com esse semioticista, cabe observar se essa

mulher presidente não é parte de um processo democrático que à medida que vai se

consolidando, também vai perdendo sentido e, por isso, precisa ser reinventado. De forma

que, a partir do processo de transição política iniciado nos anos 70, que o General de Exército

João Baptista Figueiredo verbalizou em forma de promessa como seu “propósito inabalável

[de] fazer desse país uma democracia” e na altura dos ombros de Dilma Rousseff, passa-se ao

exame dos corpos políticos na passagem da faixa presidencial.

3.7 – A passagem da faixa: a política na transição do político

“Como distinctivo de seu cargo o Presidente da Republica usará, a tiracollo, da direita para a esquerda, uma faixa de seda com as cores nacionaes, ostentando o escudo da Republica bordado a ouro.”

Hermes R. da Fonseca, presidente da República, 1910234

A faixa presidencial foi concebida no final da primeira década do século 20 por

decreto do Marechal Hermes da Fonseca (1910–1914). O primeiro governante a portá-la no

retrato da galeria dos presidentes foi Arthur Bernardes (1922-1926), depois dele, Getúlio

Vargas (1930–1934) aparece com um modelo da faixa já atualizado no retrato oficial. De lá

para cá se observa que com raras exceções, a exemplo dos presidentes que assumiram em

caráter provisório ou interino, tornou-se regular envergar esse símbolo da pátria na fotografia

oficial, nas festividades de 7 de Setembro e na cerimônia da posse presidencial. E, mais

234. Decreto 2.299, de 21 de dezembro de 1910, Crêa um distinctivo do cargo de Presidente da Republica.

Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D2299.htm. Acesso em 18 de fevereiro de 2012.

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recentemente, nota-se essa insígnia sendo utilizada com terno, sendo que antes recomendava-

se que fosse sempre sobre o fraque.

A faixa, que deve ser colocada sempre da direita para a esquerda235, foi concebida

como uma tira de tecido de seda com uma faixa verde central ladeada por outras duas faixas

amarelas. Posteriormente, essa organização foi alterada, a cor amarela passou a ocupar o

centro e a verde o periférico. Atualmente, recuperando as dimensões da época em que foi

idealizada, a faixa tem 15 centímetros de largura, 1,67 metro de comprimento, é

confeccionada em tecido de chamalote de seda e termina em franjas de ouro de 10 centímetros

de comprimento. No seu centro está bordado em fios de ouro o escudo das Armas Nacionais

que, ao lado da bandeira, do hino e do selo, constitui um dos quatro símbolos da República e,

de acordo com o glossário de termos de Paulo César Fulgêncio, está assim descrita:

É um escudo redondo, pousado sobre uma estrela de cinco pontas com bordas em ouro e vermelho. Cada uma das pontas está dividida em dois gomos: o da esquerda verde e o da direita ouro. O escudo possui, no centro, cinco estrelas de prata, formando a constelação do Cruzeiro do Sul; na borda do círculo, debruado em outro, há 27 estrelas de prata. O escudo e a estrela repousam sobre uma espada na vertical, com punho em outro e guardas azuis (exceto o centro da guarda, que é vermelho e contém uma estrela de prata) e que está disposta sobre uma coroa formada por um ramo de café frutificado (à direita) e outro de fumo florido (à esquerda), ambos verdes com frutos vermelhos, unidos por uma faixa azul. O conjunto fica sobre um resplendor de outro, cujos contornos formam uma estrela de 20 pontas. Numa faixa azul estendida sobre o punho da espada aparece, em ouro, a legenda “República Federativa do Brasil” no centro, e as expressões “15 de novembro” (na extrema direita” e “de 1889” (à esquerda).236

Na extremidade, onde as duas pontas da faixa se cruzam, há uma medalha, forjada

em ouro maciço, presa a um broche sobre uma roseta. No broche estão incrustados 21

diamantes, numa remissão à antiga divisão política do Brasil, na sua formação de 20 estados e

o Distrito Federal. No centro figura uma mulher portando o barrete frígio e, preso a ele, na

medalha em ouro maciço consta a inscrição “Presidente da República do Brasil” e no verso

está gravado o escudo da República.

235. Decreto 8.421, de 11 de maio de 1992, que altera a Lei n° 5.700, de 1° de setembro de 1971, Dispõe sobre a

forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8421.htm#art1. Acesso em 18 de fevereiro de 2012. 236. Paulo César FULGÊNCIO, Glossário Vade Mecum: administração pública, ciências contábeis, direito,

economia, meio ambiente: 14.000 termos e definições, p. 603-604.

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a b

c

Fig. 20 – A faixa presidencial (Fig. 20-a) é um ornamento utilizado por ocasião da cerimônia de transmissão do cargo na posse do presidente e também no desfile do Dia da Independência. Confere caráter distintivo ao envolver o dorso do governante da República e consiste numa tira de tecido em chamalote de seda nas cores verde e amarelo, com o escudo das Armas Nacionais no seu centro bordado em filigrana (Fig. 20-b) e conta com adorno em ouro maciço de um broche cravejado de diamantes, uma corrente e medalha com o escudo estampado (Fig. 20-c). O brasão, que está entre os quatro símbolos nacionais, faz remissão ao ideal revolucionário francês, ao passo que a figura de mulher com o barrete frígio presentifica a liberdade republicana.237

237. Foto: Fellipe Bryan, IG Brasília. Fonte: a) http://i0.ig.com/fw/bn/cx/qe/bncxqeatj5gc20i4j4ylyfakb.jpg, b) http://i0.ig.com/fw/dv/wq/ko/dvwqko4ac6s16rpqnm4phzkz5.jpg, c) http://i0.ig.com/fw/dp/b5/ma/dpb5maxcz2yt052rrnxkkfvt3.jpg. Acesso em 19 de fevereiro de 2012.

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O escudo é uma figura distintiva que data da idade média, período no qual os

cavaleiros nas Cruzadas eram identificados por seus brasões. Chevalier, no “Dicionário de

símbolos”, ensina que:

O escudo, ou broquel, é o símbolo da arma passiva, defensiva, protetora, embora às vezes possa ser também mortal. À sua própria força (como objeto de metal ou de outro), ele associa magicamente forças figuradas. Efetivamente, o escudo é em muitos casos uma representação do universo, como se o guerreiro a usá-lo opusesse o cosmo ao seu adversário, e como se os golpes deste último atingissem muito além do combatente à sua frente e alcançassem a própria realidade representada nos ornatos do broquel.238

Por sua vez, o barrete frígio, que na Roma Antiga era usado para distinguir o

homem livre do escravo, aparece na figura feminina numa remissão à República francesa que,

tendo-o recuperado da cultura romana, constrói o símbolo da liberdade republicada após a

queda do absolutismo em 1789. Sobre isso quem explica é Lynn Hunt ao escrever que:

Em setembro de 1792, abolida a monarquia e proclamada a República, a escolha de uma nova insígnia parecia quase automática. O arquivista propôs que escolhessem a Liberdade, e nenhum dos relatos sobre o debate menciona polêmicas acerca do tipo eleito para o novo selo. Em seu estudo sobre a “alegoria cívica feminina”, Maurice Agulhon apresenta várias razões para essa identificação praticamente reflexiva: na tradição iconográfica, a maioria das qualidades e, em particular, os diferentes princípios de governo, inclusive a monarquia, eram representados por figuras femininas; o barrete frígio, ou gorro da liberdade da deusa, oferecia um contraste especialmente gritante com a coroa da autoridade régia (um contraste que a figura feminina reforçava); o catolicismo tornava os franceses mais receptivos a uma figura mariana (o apelido Marianne sem dúvida era semanticamente próximo ao nome de Maria, mãe de Jesus), e a República Francesa podia encontrar na alegoria feminina uma figura convenientemente distante dos heróis da vida real que no processo revolucionário se transformaram em vilões. Enquanto Mirabeau, Lafayette e muitos outros decepcionaram seus seguidores e saíram do cenário histórico, Marianne perdurou, graças à sua abstração e impessoalidade.239

Inventariadas as marcas discursivas que constituem a “faixa presidencial” é

plausível investigá-la na perspectiva de “objeto do poder”, numa tentativa de depreender o

significado dos seus traços distintivos. A priori essa análise parece que, invariavelmente, se

realiza pelas homologações dadas no sistema da grade cultural, uma vez que o que está em

jogo nesse caso é o edifício de um símbolo e o seu uso na liturgia cívica. Da adoção desse

objeto ao seu fazer simbólico, passando pelo que define a sua utilização, bem como pelos

238. Jean CHEVALIER, Dicionário de símbolos, p. 386-387. 239. Lynn HUNT, Política, cultura e classe na Revolução Francesa, p. 120.

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atributos da sua constituição, a faixa presidencial que, pode ser vista como “objeto do poder”,

pode ser sentida como objeto mágico.

Numa época em que a exposição midiática é insuficiente para dar visibilidade do

governante, observa-se que a adoção de uma marca corrobora o reconhecimento da identidade

de poder, com o que, a faixa para envolver o dorso do presidente da República tem na origem

o caráter de distingui-lo. Trata-se de um objeto tecido em seda e adornado em filigrana,

portanto, um aparato que pela sua constituição matérica remete à “fina estampa” daquele vai

portá-lo. Essa marcação se faz com traços simbólicos, de forma que é na perspectiva de quem

olha a constelação que vai ser definido o lugar do observador, o qual, situado fora da esfera

celeste, vê o escudo recobrir o peito do governante: “o campo azul-celeste, contendo cinco

estrelas de prata, dispostas na forma da constelação Cruzeiro do sul, com a bordadura do

campo perfilada de ouro, carregada de estrelas de prata em número igual ao das estrelas

existentes na Bandeira Nacional”240. E, sob o hemisfério celestial sul, observa-se a espada

como a síntese das armas, ela que “é o símbolo do estado militar e de sua virtude, a bravura,

bem como de sua função, o poderio”241. A bravura e o poder estão no cerne do extrativismo

mineral brasileiro, figurativizados nas estrelas em prata e ouro e materializados nos diamantes

incrustados no ouro. Em torno, está a vocação agrícola de um país para o qual se olha do chão

e nessa dimensão territorial o que se vê é o fruto e a florada em forma de laurel.

A efígie de uma “Marianne” na medalha ligada ao broche fixado na roseta no

encontro das pontas da faixa é uma reiteração do ideal revolucionário francês e, portanto, tem

sua significação impregnada do sentido de busca de liberdade que moveu esse ideário. Quanto

a essa manifestação, vinda do além trópico e reverberante no ideal da República brasileira,

parece suficiente recuperar a noção de Agulhon, quem, numa síntese, ensina que “a

liberdade, em certo sentido, é a essência da República” 242, o que vai ser reiterado no

juramento que os presidentes fazem no Congresso. A partir dessa afirmação, cujas

homologações até aqui se fizeram com as grades de significação pré concebidas, é coerente

enveredar por outros rumos, em lugar dos simbolismos, que pouco ou quase nada têm a

acrescentar ao que já foi dito, e orientar está investigação na lógica da ação política. Pois, é no

240. Decreto 8.421, de 11 de maio de 1992, que altera a Lei n° 5.700, de 1° de setembro de 1971, Dispõe sobre a

forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8421.htm#art1. Acesso em 18 de fevereiro de 2012. 241. Jean CHEVALIER, Dicionário de símbolos, p. 392. 242. Maurice AGULHON, Marianne au combat. L’imagerie et la symbolique républicaines de 1789 à 1880, p.

30.

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âmbito da ritualização da passagem do poder, mas visando a depreensão dos gestos nesse ato

enunciativo, que se passa à observação da transmissão da faixa presidencial.

Equivalente à coroação do rei, a passagem da faixa é uma liturgia cívica que pode

compreender um momento de grande visibilidade do governante que acaba de chegar e

também daquele que se despede. Trata-se de um ritual, no qual o presidente em fim de

mandato retira do corpo a tira de tecido verde e amarelo adornado em filigrana, que é a marca

do poder dada por essa insígnia, e coloca transversalmente sobre o corpo do presidente

empossado. No que concerne a esse sujeito que consuma a transição do cargo, há um fazer

relevante que diz respeito à própria noção de passagem: o ato de poder daquele que se destitui

da marca de autoridade incorporando-a no outro, que, por sua vez se dá a ver num corpo que

acolhe. Em síntese, a passagem da faixa compreende o gesto em que o governante se despe do

poder e, imediatamente após, já na condição de ex-governante, veste o corpo do novo

governante, ou seja, investe-o de poder. Eis uma ocasião oportuna para depreender a política

desses corpos no ato enunciativo de cingir o corpo do político com a faixa presidencial,

momento em que se dá a assunção dos valores plasmados nesse pedaço de tecido, atributos

conferidos pelas riquezas minerais e agrícolas, pela extensão e unidade territoriais e, não

menos significativo, pela liberdade, figurativizada no barrete frígio ao qual a República está

ligada. Situação em que o corpo político destitui-se da faixa, ou seja, retira do corpo esses

atributos e, como corpo glorificado coloca o objeto mágico sobre o corpo do novo governante,

investindo-o de poder no instante em que ele inicia a prova qualificante.

É nessa perspectiva que o presidente Ernesto Geisel está deixando o governo, e o

presidente João Figueiredo foi recém empossado no Congresso, ambos aproximam-se para

realizar a liturgia da transmissão do cargo. O espaço reservado para a passagem da faixa

presidencial é no interior do Palácio do Planalto e está delimitado por um tapete de cor ocre,

em cujo centro forma-se um patamar mais elevado e sobre o qual está colocado um pedestal.

Em torno, do lado de fora do tapete, está a audiência formada pelos ministros, por um grupo

de senhoras, entre elas as primeiras damas, do presidente que sai e do que toma posse, e pelos

convidados nacionais e estrangeiros. Sobre o tapete, no canto à esquerda, está o vice-

presidente empossado, Aureliano Chaves, e simetricamente oposto, está um representante do

governo. Desse lugar central o presidente Geisel entrega o poder declarando: “Faço-o com

profunda e justificada satisfação por vossa excelência ascender à suprema magistratura do

Brasil, cargo que tenho plena convicção exercerá brilhantemente com suas aptidões pessoais

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provadas e confirmadas ao longo de toda uma existência dedicada à causa pública.”243, e,

depois de receber a faixa de um ajudante de ordens, ou de alguém que o valha, Geisel a coloca

sobre o corpo de João Figueiredo. O ritual encerra-se num abraço forte (Fig. 21-a), no qual

percebe-se a cumplicidade entre esses dois corpos que comungam dos mesmos princípios para

governar.

A despeito de a faixa presidencial não ser, por direito, o que legitima a posse do

presidente, pois é ao ler o termo e jurar sobre a Constituição no Congresso Nacional que se é

empossado, é a passagem dessa insígnia de um corpo para o outro que, de fato, consuma a

transição do poder. Por isso o empossamento de José Sarney tornou-se tão emblemático, uma

vez que, em virtude da doença de Tancredo Neves, ele assumiu interinamente e o general João

Figueiredo deixou a presidência sem passar a faixa para o seu sucessor. As circunstâncias

desse ato estão narradas no livro “A arte da política: a história que vivi”, por Fernando

Henrique Cardoso, que explica que:

Leitão de Abreu era ministro-chefe da Casa Civil da Presidência e figura-chave do governo Figueiredo, além de, como vimos no Capítulo I, ministro aposentado do STF. Saímos sorrateiramente, Ulysses, o general Leônidas e o senador Frageli e, no automóvel do general, nos dirigimos a toda velocidade para a Granja do Ipê, residência oficial do ministro. Somente um jornalista se apercebeu da manobra, Jorge Bastos Moreno, de O Globo, que nos viu entrar nos portões do Ipê.

Passava da meia-noite, e aparentemente o Dr. Leitão de Abreu se recolhera. Esperamos bom tempo até que viesse ter conosco, mas ele surgiu na sala trajando paletó, gravata e colete. Colocada a questão, continuavam as dúvidas. Recordei-me do livro de Afonso Arinos, Rodrigues Alves: Apogeu e Declínio do Parlamentarismo, no qual há referências a situação semelhante, quando o Presidente Rodrigues Alves, que governara de 1902 a 1906, não pôde tomar posse do segundo mandato, em 1918, abatido pela gripe espanhola. O vice Delfim Moreira assumiu e tornou-se Presidente efetivo dois meses depois, com a morte de Rodrigues Alves. A biblioteca do professor Leitão, porém, já estava encaixotada, não poderíamos consultar o livro. Havia disponível apenas um exemplar da Constituição. Foi lido com cuidado por todos nós. O general Leônidas disse que não era jurista e acataria qualquer decisão. Leitão de Abreu parecia pender para a interpretação que favorecia o presidente da Câmara como sucessor constitucional, posto que ainda não ocorrera a posse do vice. Ulysses Guimarães, no entanto, secundado pelo presidente do Senado, alinhou-se com a tese de Arinos e convenceu o professor Leitão da validade de sua exegese. O ministro do Exército e eu ficamos a ouvi-los, sem credenciais para discutir o mérito. A certa altura alguém perguntou:

_ E a faixa, o Presidente Figueiredo vai transmiti-la?

243. Filme 1: Posse do presidente João Baptista de Figueiredo. Edição Especial. Arquivo Nacional. Produção:

Agência Nacional, 1979, 6’55’’.

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O chefe da Casa Civil redargüi com firmeza:

_ Presidente só transmite faixa a outro Presidente. Assunto encerrado.

Está aí a verdadeira razão que levou o Presidente Figueiredo a não transmitir o cargo – e a faixa – a Sarney. Diferentemente do que diz a lenda, segundo a qual Figueiredo “saiu pelos fundos do palácio” para não passar a faixa porque não suportava Sarney, houve uma discussão prévia a respeito do assunto com o chefe da Casa Civil e renomado jurista Leitão de Abreu, em que se levantou uma questão constitucional que incluía outra, de protocolo. Figueiredo podia, efetivamente, não tolerar Sarney, a quem não perdoava a deserção do PDS, mas a realidade dos fatos é a que agora descrevo.244

Com certeza Fernando Henrique é um sujeito competente e crível para reproduzir

o que presenciou quase dez anos antes dele mesmo se tornar presidente. No entanto, é preciso

ter conta que:

O general Walter Pires, ministro do Exército do ainda presidente João Figueiredo, procurou o ministro Leitão de Abreu, Chefe da Casa Civil, tão logo soube que Tancredo seria operado. Disse a Leitão que iria para o prédio do Ministério do Exército. E que sondaria seus colegas de farda para tomar uma posição. Era favorável à prorrogação do mandato de Figueiredo - pelo menos até que Tancredo pudesse assumir o cargo. Desistiu de qualquer idéia quando Leitão lhe disse que, por engano, a demissão dos atuais ministros já fora publicada no Diário Oficial.

_ Então não sou mais ministro? – espantou-se o general.

_ Nem o senhor, nem eu – respondeu Leitão.245

Obviamente muitas verdades podem ser construídas e colocadas em circulação.

No entanto, há uma situação notória nessas enunciações: Sarney não era o presidente eleito,

era o vice, portanto, não poderia receber a faixa de Figueiredo, e Leitão já não era mais

ministro para redarguir como chefe da Casa Civil. Isso explica o gesto e a forma como Ulisses

Guimarães, na qualidade de presidente da Câmera dos Deputados, e José Sarney, como vice-

presidente eleito, se dão a ver no parlatório (Fig. 21-b). A presença política dos corpos

políticos no momento em que o Brasil aguardava pela posse do presidente eleito Tancredo

Neves, um corpo ausente.

Se o ritual se caracteriza por um fazer da ordem da repetição, ou seja, a

continuação de uma determinada narrativa a cada intervalo de tempo, a marca da ritualização

se dá na descontinuidade. E, é dessa forma que a rotina de 21 anos de ditadura militar, ou seja,

de continuidade de um sistema político que, como visto, estava desgastado principalmente

244. Fernando Henrique CARDOSO. A arte da política: a história que vivi, p. 102-103. 245. Ricardo NOBLAT. A posse que não houve – Parte II. Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts.

Acesso em 07 de setembro de 2011.

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pelo desequilíbrio da economia, deveria ser interrompida no dia 15 de março de 1985. Fruto

de um processo, que de certa forma havia sido lento, a Nova República ancorava-se em dois

importantes momentos de ruptura: de um lado, a anistia, que pôs fim ao exílio político e, de

outro, a eleição de um presidente civil, que sucederia o governo militar instaurado em 64. Ao

observar o abraço solidário entre os generais Geisel e Figueiredo (Fig. 21-a), selado logo após

a transmissão do cargo, não há como negar que a produção de efeito de sentido desses corpos

em ato está na esfera da cumplicidade. Nessa situação confirma-se a continuidade do sistema

político no fazer discursivo com vistas à democratização, que é a promessa de Figueiredo ao

tomar posse como presidente diante da missão que Geisel lhe confere. Nesse prisma de visão,

a não presença do povo ratifica a continuidade do sistema, diferente da aglutinação e da

visibilidade dos sujeitos que será percebida no movimento das “Diretas Já” e na campanha de

Tancredo Neves, ou seja, o oposto da formação de um actante coletivo que desejava a

mudança. A mudança que já tem o nome de democracia, será presentificada por Tancredo

Neves que, como visto, se construirá na figura de Tiradentes, mas, de repente o espaço de

realização democrática, que tinha dia e hora marcados para realizar-se, está sem sujeito?

De mãos dadas e com os braços erguidos, Ulisses Guimarães e José Sarney (Fig.

21-b) estão no alto do parlatório, alocados no centro do poder e bastante visíveis diante da

multidão que ocupa a Praça dos Três Poderes. Cada um desses corpos políticos se dá a ver

numa metade desse espaço, com o que, desvela-se a política de suprir a lacuna do corpo

político de Tancredo. No palácio está o governante, na praça estão os governados, e entre eles

a ausência do corpo político de Tancredo constrói a presença da democracia como o novo

regime a ser instalado. As mãos entrelaçadas e os braços suspensos formam uma espécie de

corrente, que o corpo de Ulisses blinda ao presentificar a Constituição, a lei é o argumento

garantidor da transição do sistema político. Porém, há de se supor que o percurso narrativo de

Sarney não o homologa como figura democrática diante do povo que o assiste, afinal, ele se

presentificou como aliado do regime militar por mais de vinte anos, dos 21 em que a oposição

lutou pela volta da democracia. A posse de José Sarney como presidente interino é o advento

do inesperado, o resultado do rompimento da programação do corpo de Tancredo Neves.

Passado pouco mais de um mês dessa data, com a morte de Tancredo, Sarney deixa a

condição de governante interino e assume em definitivo o exercício da presidência, todavia,

sem a marca distintiva da transmissão do cargo, ele colocará a democracia brasileira em

estado de latência.

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Concluído o seu período de mandato, o presidente José Sarney dá visibilidade à

consolidação do processo democrático brasileiro no ato da transmissão do cargo para

Fernando Collor de Mello. O momento, que é o ápice da carreira desse jovem político

alagoano, que se construiu na figura política de um “caçador de marajás” com a promessa de

acabar com a corrupção, culmina na posse do primeiro presidente eleito pelo voto direto.

Nesse caso, importa observar o modo cuidadoso com que a insígnia é colocada sobre o dorso

de Collor; a atenção dispensada por Sarney e pelo sujeito que vem em auxílio deles (Fig. 21-

c), dá prova do quanto é significante consolidar a democracia nesse momento. A redor deles

notam-se figuras de políticos, de um oficial e de um cardeal, além das silhuetas das duas

primeiras damas, da que chega e da que parte. No interior do Palácio do Planalto a assistência

desses sujeitos presentifica a sociedade, mas chama a atenção o corpo político do vice

presidente, quase resignado entre eles, e o fato de o povo estar do lado de fora. E, se por um

momento passa-se de uma tomada à outra, como passa o tempo no qual a mudança se

processa, vê-se que a presença circunspecta do vice-presidente (Fig. 21-c) dá lugar ao sujeito

da ação (Fig. 21-d), o agora presidente, Itamar Franco.

Antes, tinha-se o vice-presidente do governo Figueiredo, Aureliano Chaves,

posicionado no canto delimitado pelo poder, sequer aparecendo no enquadramento

fotográfico; depois, Ulisses, conduzindo a figura de Sarney a fim de presentificar a

democracia e ocupar os espaços vazios; agora, no centro do poder está presente Itamar. Esse

corpo político de Itamar Franco se dá a ver numa presença quase ausente que, por vezes, será

percebida na figura de um sujeito abstraído, mas, quando examinado sob o prisma da

narrativa é depreendido de outra forma. Observa-se que não havia lacuna no corpo à corpo

dos militares (Fig. 21-a), o espaço vazio deixado por Tancredo Neves foi rearranjado pelo

corpo político de Ulisses e Sarney sob o amparo legalidade (Fig. 21-b), no entanto, é o corpo

de Itamar que vai se descolar da posição central (Fig. 21-c), entre Collor e Sarney, assumir a

presidência e transmitir o cargo para Fernando Henrique Cardoso (Fig. 21-d), mas, é

imperioso atentar que é um corpo político que já estava posicionado na centralidade no sofá

vermelho (Fig. 15). Eis uma prova de que a estratégia de movimentação dos corpos políticos

pode ser apreendida no jogo enunciativo que está na subjacência do discurso da política.

A despeito de tudo que pode ser depreendido a partir dessas imagens do ato de

passagem da faixa presidencial, percebe-se que até então, elas se concentraram na dimensão

cosmética do retrato e, muito provavelmente, por darem conta de retratar a “realidade” de

uma solenidade oficial. Em contrapartida, essa regularidade não se confirma nos atos de

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transmissão do cargo de Itamar para FHC, de FHC para Lula e desse para Dilma Rousseff. É

possível dizer que nessas três situações (Figuras 21-d, 21-e e 21-f) o mesmo ato pode ser

percebido em dimensões distintas. Dessa forma, nota-se que o presidente empossado,

Fernando Henrique Cardoso, deixa o corpo político da normativa social para ser flagrado na

política do engalfinhamento com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva que por sua vez, face

à face com sua eleita, é surpreendido num momento de afeto no ato de transição.

O ponto de partida nesse caso é o prisma de visão de um observador situado na

Praça dos Três Poderes e o objeto é o perfil dos corpos de FHC e de Itamar Franco que,

posicionados frente à frente, oferecem-se à contemplação no alto do parlatório (Fig. 21-d).

Nesse momento Itamar arranja um detalhe da faixa que acabou de colocar sobre o corpo de

FHC, que, por seu turno, deixa-se apreender numa postura receptiva. O espectador assiste a

esse ato de transmissão do cargo e, nessa situação, a colocação da faixa presidencial desvela o

caráter de condecoração, num gesto que se circunscreve no tornar distintivo o corpo do poder.

Fernando Henrique foi o sujeito de transformação no Ministério da Fazenda do governo

Itamar, começou a realizar a performance da estabilização da economia do país e, na metade

do percurso, tendo dado prova de competência, orientou-se para a campanha presidencial com

a promessa de concluir a implantação do Plano Real, aposta na qual foi sancionado

positivamente nas urnas e, nesse momento, se dá a ver na qualidade, recém assumida, de

governante. Itamar Franco foi quem dotou FHC desse poder transformador e, nota-se que está

longe de figurativizar aquele que as mídias, como se observará mais adiante, darão a ver

comicamente. Na condição de governante que transmite o cargo, Itamar foi quem possibilitou

a construção desse simulacro, no qual os governados são sujeitos de fé diante da presença

desses dois sujeitos. Corpos políticos, na política daquele que recebe o título e se posta de

forma comprazente, e daquele que o confere e o faz na figura de um estadista orgulhoso

diante da assistência de uma nação.

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a b

c d

e f

Fig. 21 – A transmissão do cargo presidencial consiste na cerimônia ritualística da passagem da faixa. Instituída por um decreto governamental, a faixa deve cingir o corpo do presidente eleito, depois de ele ter tomado posse no Congresso Nacional, trata-se de uma tira de tecido chamalote, ornamentada em ouro e diamentes, marcando as dimensões territorias e as riquezas do país, bem como o ideal de

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liberdade. Símbolo programado do poder que desvela a política do corpo contagioso na visibilidade assumida pelos corpos políticos.246

Como espectadora, essa nação resgata as proposições teóricas de “A sociedade

refletida”, mais precisamente do capítulo “Explorações estratégicas” que está sistematizado

na parte introdutória desta pesquisa. Notar-se-á que Landowski trata das situações de

confronto e de afrontamento entre os actantes e, tendo em conta o que esse semioticista

ensina, é pertinente revisitar as situações dos atos de passagem do poder. Depois do que,

observa-se que a visibilidade da posse de Sarney, promovida por Ulisses Guimarães, ao

colocá-lo numa relação de confrontação247 pública, é um fazer que compreende uma estratégia

política da partilha do poder entre esses dois actantes e o povo, como actante coletivo, a fim

de poder transitar para o regime democrático. A participação do povo, como par pressuposto,

ou seja, o ato do povo “participar da ação” consiste num fazer político que vai se repetir na

posse de FHC, na de Lula e na de Dilma, casos em que a visibilidade pública ratifica o ideal

democrático. Contudo, no ato de transição do poder entre Fernando Henrique e Lula o povo se

confronta com um “flagrante” de afrontamento e, advém desse flagrante do actante coletivo, a

possibilidade de por à prova e ratificar o argumento de Landowski sobre a dimensão

hermenêutica do retrato.

A nação assiste da praça, diante do Palácio do Planalto, ao embate de dois corpos

políticos (Fig. 21-e), Lula e FHC, dois oponentes posicionados corpo à corpo que se dão a ver

digladiando-se. A despeito de os punhos serem iguais, de um lado está o homem tosco numa

corporeidade que alude a certa rudeza, que com o passar do tempo já se vê cosmetizada (Fig.

13-f), do outro, o homem erudito num corpo de estadista. Nesse prisma de visão a implicação

recai sobre o flagrante do observador, que torna-se partícipe, e, na condição de actante

246. a) Foto: Pedro Martinelli, Veja, 21 de março de 1979. Fonte:

http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em 17 de julho de 2011; b) Foto: Orlando Brito, Veja, 20 de março de 1985. Fonte: Fonte: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em 17 de julho de 2011; c) Foto: Ana Carolina Fernandes, AE; d) Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/dilma-toma-posse-depois-de-amanha-e-fernando-henrique-descreve-as-emocoes-do-dia-em-que-ele-assumiu-a-presidencia/; e) Foto: Joedson Alves, AE. Fonte: http://blogs.estadao.com.br/olhar-sobre-o-mundo/imagens-da-decada/; f) Foto: Flávio Florido, UOL. Fonte: http://noticias.uol.com.br/album/dilmaesp_album.jhtm#fotoNav=45. Acesso em 07 de julho de 2011.

247. O termo confrontação aqui empregado tem sua acepção no conceito de confrontação interactancial, sobre o qual Landowski ensina que “Com a variedade de modulações possíveis, a noção semiótica de confronto entre actantes, que toma lugar da de afrontamento entre adversários ou ‘inimigos’, possibilita precisamente a aproximação do nível de generalidade requerido. Ela fornece uma base comum a partir da qual vão se diferencial configurações particulares.”. Eric LANDOWSKI. Explorações estratégicas. In: A sociedade refletida, p. 175.

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coletivo, participa do ato como crítico do delito. Se essa mesma imagem for analisada na

sequência cronológica do texto videográfico248, notar-se-á que FHC ao retirar a faixa para

passá-la a Lula derruba os óculos e, cumprindo o rigor do cerimonial, não interrompe o seu

fazer. Lula, ao contrário, precipita-se prontamente para pegá-los no chão. No ato da

passagem, enquanto Lula estende o braço para entregar os óculos a FHC, esse mantém os

braços estirados, segurando a faixa e realizando o movimento para colocá-la em Lula. O

julgamento agora pode tomar outra orientação, no lugar do sujeito rude, o homem prestativo,

numa figura que se dá a ver quase que em subserviência para a testemunha da ação, o outro.

Contudo, mantido o foco na situação retratada, ou seja, na imagem do conflito que circulou

nas mídias, nota-se que o papel de cada um desses corpos consiste num fazer discursivo cuja

única visada é a ocupação do poder. Duas trajetórias políticas que se delineiam distintamente,

dois políticos que dividiram o espaço dos palanques no movimento para a redemocratização

do país e, nesse exato momento dois punhos iguais que partilham o governo em animosidade.

O actante e o antactante que, numa remissão à proposição de Landowski, dão provas de que

“a dura estratégia conduz paradoxalmente ao mesmo resultado: duas potências rivais, um só

actante coletivo, uma estrutura comum para regê-los – o Duelo”.249

Embora a transmissão do poder consista num dos gestos mais significativos da

posse presidencial, talvez no que tange à cerimônia de posse, o mais emblemático, é também

um dos atos mais efêmeros. Na passagem da faixa para Dilma Rousseff250, do momento em

que o presidente Lula inclina o corpo para que a primeira dama retire a faixa que ele irá

colocar no corpo Dilma, passaram-se cerca de 50 segundos. Mas, é preciso convir que foi

tempo suficiente para registrar a passagem da estratégica do duelo à estesia do dueto. O gesto

da primeira dama de retirar a faixa do corpo do marido não é usual, Marisa Letícia Lula da

Silva, diferente de todas as posses aqui examinadas, será a primeira a fazer isso. A esposa de

Lula, a pedido dele, parece cumprir o papel actancial reservado às mulheres de sua geração, o

que acaba destacando-se diante do contraste de ser a posse de Dilma, a primeira mulher a

conduzir os passos da nação brasileira. Lula coloca a faixa sobre o corpo de Dilma (Fig. 21-f)

e, a exemplo de seus antecessores arranja os detalhes do tecido, mas nesse fazer, para o qual

ele conta com a ajuda de Dilma, os corpos se dão a ver num ato sensível. Na estesia da

passagem do poder, que constitui a partilha dos valores plasmados na insígnia, os corpos

248. Filme 7: Transmissão do cargo, de FHC para Lula. Produção: TV Record, 2003, 00:55”. 249. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 182. 250. Filme 6: Posse da presidente Dilma Rousseff. Produção: Central Globo de Jornalismo, 2011, 3h20’.

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políticos de Lula e de Dilma se dão a ver num fazer junto, o que desvela a política de governo

que esses sujeitos deverão empreender. O estigma de segundo sexo, porém, ainda será

reiterado em outros gestos. Lula, imediatamente após ter colocado a faixa na presidente,

estende a mão em cumprimento à Dilma, beija-lha a face, abraça-a e encerra tomando-a pela

mão e erguendo o braço dele e o dela no ar e, com os lábios contraídos para dentro da boca,

dirige à Dilma um olhar de visível promessa cumprida. Levantando o braço direito e

inclinando a mão, ela deixa-se apreender num gesto de visível gratidão. Eis um momento em

que os corpos políticos de Lula e de Dilma, encimados no parlatório e diante do olhar da

multidão, se dão a ver na “estética” do dueto, da mesma forma que davam-se a ver os corpos

apaixonados, no alto do balcão, antes do epílogo das tragédias românticas.

Quando se passa da descrição de cada um desses corpos no ato de posse ao exame

do conjunto, relacionando-os, pelo menos dois aspectos devem ser considerados: o contínuo e

o descontínuo na visibilidade pública do corpo político no ato de transmissão do cargo e o

modo como esses corpos se deixam apreender. No movimento de descontinuidade, a posse de

Sarney, embora não tenha contado com o ato de transmissão da faixa presidencial e tenha se

dado no espaço privado do Palácio do Planalto, vai ser mostrada em praça pública por Ulisses

Guimarães ungido de poder. Isso significa que, na figura do vice-presidente eleito foi dada a

visibilidade pública do governante empossado interinamente, numa forma de presentificar a

mudança do sistema político que reforça a percepção de que Figueiredo realmente saiu pela

porta dos fundos sem passar o cargo para o seu sucessor; de fato, e também por direito,

Sarney, o vice de Tancredo, era o substituto do presidente Figueiredo. Na sucessão

presidencial, Collor, o primeiro civil eleito pelo voto direto depois da ditadura, retoma a

continuidade ao assumir o cargo longe do olhar do povo, ainda que o seu discurso de

campanha tivesse a visada de um grande apelo popular. Itamar, por sua vez, assume a

presidência “à toque de caixa”, o país e o governo encontram-se numa situação caótica, não

há tempo para o espetáculo público, e, cabe a ele, “homem de ação”, notoriamente da política

do espaço privado, dar conta de transformar esse cenário. Em face da mudança que já começa

a ser percebida, Fernando Henrique Cardoso, o primeiro governante eleito pelo povo e que,

efetivamente, cumprirá o mandato, recebe o cargo diante do olhar público como quem celebra

a ruptura, o que, a seu tempo, será repetido por Lula e Dilma Rousseff. A visibilidade pública

da transmissão do cargo, que é uma pratica adotada pelo cerimonial na posse constituiu o

Estado mostrando a mudança. Por isso, a sucessão de governos no período de

redemocratização do país se deu a ver publicamente, exceto no caso de Collor, o que, além de

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somar às inúmeras atitudes pouco populares que elencam o seu período de governo, dá

mostras de que a transição do sistema político ainda estava em curso. Deriva desses modos de

visibilidade observar que no sistema político, que tem a democracia como forma de governo,

a participação do actante coletivo povo alterna-se em situações estratégicas, ora de confronto

e ora de afrontamento. Isso pode ser notado, por exemplo, quando Collor, eleito pelo voto

popular, vive a adversidade da contestação no momento em que a coletividade sai às ruas para

pedir o seu impeachment. Por oposição, nos governos militares, nota-se que o povo figura

numa audiência disciplinada, o que faz todo sentido, afinal a forma autoritária de governar

pressupõe a “aposta” na obediência.

No que tange à percepção do sentido de continuidade do sistema de governo

autoritário e à descontinuidade que se nota no sistema democrático, é pertinente considerar

que o ritual de posse marca o limiar de uma nova geração de governo. E, no arcabouço da

semiótica a noção de geração constitui uma formalidade, que não obedece à ordem natural das

coisas e se constitui num movimento de transformação perpassado pela cultura. Dessa forma,

o que referencia uma geração se organiza num sistema de categorias vinculadas ao espaço e

ao tempo na esfera do vivido e, sobre isso, é Landowski que esclarece que:

É evidentemente num segundo eixo, correspondente à outra superfície de projeção da oposição fundamental “continuidade” versus “descontinuidade” – o da temporalidade -, que vão atuar as figuras de vida e de morte, de permanência e mudança, de contemporaneidade e sucessividade que estão ligadas à própria idéia de “geração”. Assim como no plano espacial, em que a constituição do “nós aqui” ia necessariamente acompanhada da projeção de um “eles lá” (o “outro”, o estrangeiro, o “bárbaro”), a emergência, na dimensão temporal, da consciência do “nós agora” pressupõe a instalação de uma alteridade situada, desta vez, ou genealogiacamente num antes, ou escatologicamente no depois. É com essa dialética elementar do mesmo e do outro que o discurso sobre as “gerações” – que é, a nosso ver, um discurso mítico em seu princípio – encontra sua origem primeira.251

Concernente à presença dos governantes no ato de passagem da faixa presidencial,

ambos situados num lugar destacado no edifício do parlatório no Palácio do Planalto e diante

dos governados, postados no espaço da Praça dos Três Poderes, tem-se uma tríade. Nesse ato,

a produção de efeito de sentido de poder é a política de partilhar o poder. Em suma, o poder

de transmitir o poder, do ponto de vista daquele que deixa o governo, o poder de incorporar o

poder, na perspectiva de quem o assume, e o poder de testemunhar a transição do poder, na

visada do governado. No simulacro da cumplicidade, está o corpo daquele que vê o corpo

251. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 52.

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político incorporar o corpo do país e, portanto, a política. Sobre isso, é relevante que se faça

uma nova ancoragem em “Presenças do outro”, em cujas proposições sobre os “Regimes de

Presença e Formas de Popularidade”, na parte em que aborda as questões de

“representações”, Landowski lança mão do teatro, como “espaço de reflexão” social, para

falar das “cenas” políticas. O semioticista descreve o espaço da dramaturgia e a disposição

dos sujeitos no palco e na sala de espetáculos, explana sobre a colocação em presença dos

atores e do público, para ensinar que:

(...) tal como o palco fica diante da sala, duas classes de sujeitos se interdefinem nesse quadro, pela complementaridade de seus estatutos e de suas funções: de um lado, um grupo restrito de atores que as luzes da ribalta permitirão identificar um a um enquanto intérpretes de tantos papéis distintos; do outro, uma classe mais numerosa (em geral) de indivíduos anônimos, confundidos na posição de receptores e testemunhas, e tendo vocação para endossar coletivamente as funções do público: olhar, escutar, sentir, avaliar, e finalmente sancionar, nem que seja pela própria qualidade de uma “presença” que jamais é inteiramente adquirida de antemão, o valor do espetáculo considerado sob seus diversos aspectos, ao mesmo tempo como ação representada e como comunhão vivida.252

Por conseguinte, em face das análises realizadas nesta pesquisa, no que tange a

“comunhão vivida”, prenuncia-se outra perspectiva. Nela, os atos de transmissão do poder,

que se consumavam em abraços solidários e em retoques e ajustes da faixa, sobre o corpo do

governante empossado, são gestos protocolares que, no retrato da posse de Lula e,

principalmente, no de Dilma Rousseff, vão ser percebidos na forma de ruptura. A visibilidade

midiática do corpo do político, que podia ser depreendida no âmbito da regularidade, como é

o que se observa na postura meticulosamente previsível do corpo de FHC, encontra

correspondência inversamente proporcional no corpo de Lula. Nesse, por exemplo, além de

uma sucessão de quebras da instrução normativa do cerimonial, nota-se que a faixa depois de

colocada permanece retorcida numa das extremidades253. A despeito dos regimes políticos,

existe uma proximidade nas condutas de Figueiredo e de FHC ao serem empossados, assim

como entre desses dois governantes e Collor de Mello. O fato de Tancredo não ter sido

empossado e de a posse de Itamar ou de Sarney não ter acontecido de modo público, não

impede observar que todos eles detêm uma postura de visibilidade bastante estreita à prática

normativa. Entretanto, no caso de Lula e de Dilma, chama a atenção justamente o fato de eles

252. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 186. 253. Filme 5: Posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Produção: Central Globo de Jornalismo, 2003,

4’10’’.

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romperem com a programação. Com isso, é possível postular que a análise de todos esses

corpos políticos em situação permitiria depreender o modo como eles governam, ou seja, a

política.

Na mira do olhar do observador, de um lado tem-se a presença política no âmbito

da regularidade, por exemplo, a que é dada pela postura e pela conduta rigorosa do corpo

político de FHC, de outro, tem-se o imprevisível, à exemplo das atitudes de Lula. Mas, é

imperioso desviar o olhar para que, de um ato a outro, seja possível depreender a carga de

dramaticidade e de estesia com que esses corpos circulam nas mídias. E, é nesse viés do

espaço das representações, que Landowski, não se limitando à metáfora do espaço e dos

sujeitos da dramaturgia, serve-se deles para fundamentar sua argumentação sobre o espaço da

cena política. O lugar de fala no edifício teórico desse semioticista não é o da

espetacularização da política, fundada nos discursos da saturação midiática, tampouco se

limita à ancoragem que defende a representatividade democrática e fala da “crise do político”.

O cerne da investigação semiótica no postulado de Landowski é o “jogo do poder”, ilustrada

pela metáfora da presença dos atores no espaço do palco e do público na platéia, mas a

dimensão do olhar do observador, com foco para uma “semiótica das práticas políticas”, é

assim orientada por esse pesquisador:

A política é, com efeito, ao mesmo tempo sistema de relações entre sujeitos – entre representados e representantes -, e encenação – colocação em representação – dessas relações. À lógica da representação contratual que supostamente liga eleitores e eleitos uns aos outros, ela superpõe figurativamente a estética de um jogo teatral cotidiano em que cada “representante” se afirma e, em última instância, constitui-se como tal, dando a ver teatralmente ao público que ele o representa. A política, nesse sentido, é representação (dramática) de uma representação (jurídica).254

Posto isso, sem perder de vista que a política é um fazer discursivo e o discurso é

um espaço de interação política, o que significa colocar o olhar na mira da “ação

representada” e a alma na dimensão da “comunhão vivida”, assenta-se a presente investigação

em outro prumo. A iniciativa visa empreender a busca da política do corpo entre um ato

político e outro, no qual as presenças oferecem-se em suas dramatizações, em síntese,

presenças políticas em atos políticos. A questão não é só observar os corpos que as mídias

colocam em circulação, mas também apreendê-los como atores em cena, atuando com outros

atores e diante de outros atores. O que talvez pronuncia-se mais audacioso, mas o ímpeto é da

254. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 186.

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teoria, consiste no método do investigador atuar como platéia, uma presença objetiva na busca

da figura do terceiro, incluído na instalação enunciativa, que ainda nos resta abordar como as

presenças entreatos.

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IV – ENTREATOS DAS PRESENÇAS DO PODER

Infelizmente, meus caros, por mais que vocês façam sempre me darão uma realidade a seu modo, mesmo crendo de boa-fé que seja a meu modo.

E talvez seja, não digo que não, quem sabe; mas a um “meu modo” que eu desconheço e que jamais poderia conhecer, o qual somente

vocês, que me vêem de fora, reconheceriam: portanto, um “meu modo” a seu uso, não um “meu modo” para mim.

Luigi Pirandello255

Um presidente militar linha-dura e a sanção pueril de uma menina; um aspirante a

presidente orientado pelo sagrado; um presidente por acaso e a política como profissão; um

astro midiático e uma presidência trágica; uma presidência de surpresa; um intelectual na

presidência brasileira; um líder sindical e a vedetização da presidência; a presidente aquém da

mudança de gênero; eis o que podem ser as chamadas para os corpos coletados nesta

investigação no momento em que tem lugar o espetáculo político. Da composição fotográfica,

que revela um corpo de papel, ao olhar implicado do espectador que dá corpo ao corpo à

medida que o sente. A dramatização como política que se organiza no “flagrante” e na

“estesia” do corpo encarnado do político, ou seja, a política na carne do corpo político.

Tendo como fio condutor as proposições de Landowski sobre as fronteiras do

corpo, à princípio, tem-se o corpo predominantemente dessemantizado, que se dá a ver

objetivado ao olhar exterior, portanto, objetivante, como o corpo do paciente ou do cadáver

dissecado, que, tendo o seu sentido reduzido à função meramente intelectual, dá lugar a uma

outra possibilidade de corpo. Do corpo desligado de sentido, próprio das ciências da natureza,

ao sentido desligado de corpo, que são os conformados nas ciências das humanidades, caso no

qual o que se observa é um “corpo-signo”, ou seja, “um corpo presente em carne e em osso

mas uma simples superfície de inscrição explorável, ora para emitir informações, em

particular relativamente a si próprio, ora para lê-las nas “expressões” corporais de

outrem”.256 A outra possibilidade que se avizinha, e que norteia esta investigação no que

tange às “fronteiras do corpo político”, dá conta de um corpo apreendido fora da relação de

interação unilateral. Não se trata mais de um corpo do “fazer-signo”, que se via como o corpo

do outro na perspectiva do olhar médico por exemplo, mas de um vivido corporal e sentido. 255. Luigi PIRANDELLO, Um, nenhum e cem mil, p. 57-58. 256. Eric LANDOWSKI, Fronteiras do corpo. Fazer signo, fazer sentido, p. 281.

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Daí, a configuração inteligível de um corpo político apreendido na ação e na interação entre

os sujeitos que, na relação de intersomaticidade desvela-se na presença de um corpo

contagioso.

Essa presença sensível dos corpos políticos é também examinada a partir de um

corpus de imagens coletadas das mídias e, sobre esse espaço midiático, é Oliveira é quem

ensina que:

As mídias têm assumido nas suas mediações a (re)proposição de ser ou ter a aparência de ser um dos alcances possíveis do mundo fenomenológico, para nele e por ele o ser tornar-se um tipo de sujeito que, ao deixar o mundo da objetalidade, do ser consumido transforma-se no sujeito condenado à espetacularidade vazia e à beira da insignificância que ele encontra ainda força de combate. Assim é que estão organizadas para entrar em circulação no fluxo das programações diárias quer nas rádios, nos blogs, nos sites, na mídia impressa e áudio visual, ofertas de vida a ser vivida, só e somente se, o contato inter-acional for estabelecido. Decorrem dessas condições propositivas, a extrema importância do estar conectado em nossa sociedade tecnológica, uma vez que significa o ato da conectividade, o ato de estar em permanente condição de fazer sentido para si e para o outro. Como o sentido se constrói como uma prática significante ao alcance de todos, é a sua construção que fica em aberto ser empreendida pelos sujeitos destinatários em cada re-ligação do sujeito à mídia. 257

Considerando que a publicidade comercial e a comunicação política comungam

de uma semelhança discursiva, como propõe Landowski, nessa interação que se dá através das

mídias se organiza uma forma de ver, sobre qual, é esse semioticista quem explica que:

Um grau de sofisticação a mais é por conseguinte requerido para que nós entremos, pelo menos fantasiosamente, no jogo: é preciso que o objeto que se supõe emocionar o modelo apareça verdadeiramente como a metonímia, a parte de um todo que, em última instância, só pode ser nós, destinatários inumeráveis e, no momento, visados um a um, cada um pessoalmente, como poderia sê-lo um interlocutor escolhido entre mil.258

De maneira que, da poltrona da sala de espetáculos o observador é platéia e, a

medida que assiste ao drama, constrói a relação em presença corpo à corpo, o que consuma a

interação sensível para construir o corpo sensível do político. Os entreatos das presenças no

poder são cenas fora do “paço” oficial, elas acontecem fora do centro do poder e dão a ver o

político na supressão da distância entre o palco e a platéia.

257. Ana Claudia de OLIVEIRA. Interação nas mídias. In: Comunicação e interações, p. 34-35. 258. Eric Landowski. O triângulo emocional do discurso publicitário. In: Comunicação midiática, p. 28.

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4.1 – Figueiredo: presidente militar linha-dura e a sanção pueril de uma menina

a b

Fig. 22 – No corpo político de João Figueiredo está plasmado o “Braço forte, mão amiga”, que é o lema do exército brasileiro, e nesse flagrante da menina que se recusa em dar mão ao presidente, está o gesto inocente que faz remissão aos opositores do regime militar. Em resposta, é a ironia, que é sentida no corpo político que se dá a ver ressentido da culpa diante da sanção pueril e que se desvela como a política do corpo político diante desse ato delituoso.259

Uma pequena seqüência narrativa em dois atos, primeiro, o presidente João

Figueiredo estende a mão para uma menina que, de maneira determinada, cruza os braços

recusando-se a cumprimentá-lo (Fig. 22 –a); depois, a menina com as mãos na cintura, de

modo intrépido, interpela o presidente que, por sua vez, dá mostras de indignação diante da

acusação (Fig. 22-b). Uma atitude inesperada que, em plena ditadura, poucos ousariam

deliberar, e, nesse caso, só pode ser explicada por uma manifestação pueril. Contudo, menos

importante do que averiguar os fatos que culminaram na atitude da menina, a fim de justificar

os atos retratados, é pensar como eles se organizam e tornam-se significativos nesse contexto.

259. Foto: Guinaldo Nicolaevsky, 1979 Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-que-a-menina-

disse-ao-general,732450,0.htm. Acesso em 15 de junho de 2011.

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Em meio a um grupo de pessoas ao redor do presidente Figueiredo, que é o corpo

do poder, vê-se o braço do general estendido no sentido oblíquo na centralidade do retrato,

dividindo-o em duas partes. No canto superior esquerdo, em vestes oficiais, no

prolongamento do corpo de Figueiredo, portanto, como parte do poder, está um oficial com a

cabeça inclinada para o alto, como quem pede proteção divina, ainda que com certa

jocosidade, para a represália que a atitude irreverente da menina pode deflagrar. Na metade

direita do retrato, à esquerda do corpo do poder, ao passo que nota dois olhares de espreita, o

observador, que acredita estar flagrando o ato, é surpreendido pelo olhar do homem de

bigode.

A dicotômica direita e esquerda vai ser reiterada na imagem seguinte, quando a

menina, de costas e com as mãos na cintura, parece bater o pé ao pedir explicações, numa

relação face à face com Figueiredo. O prisma de visão é de um observador colocado ao lado

do corpo do sujeito na parte lateral, à esquerda do retrato, do qual só se vê o braço. Dessa

forma, sabe-se que o testemunho se dá entre os que se colocam à direita e à esquerda do

presidente, ou seja, entre a situação e a oposição ao regime. Então, quando aquele que olha

instala-se na cena, ele como o próprio inquisidor, tem lugar o corpo à corpo e o que se

depreende dessa relação não é uma resposta inteligível, mas uma justificativa sensível por

parte daquele que está no poder. Num modo de abismar-se que é pouco peculiar, visto que o

regime militar pressupõe a disciplina, do contrário, a correção dos sujeitos, o gesto de

Figueiredo desvela que o político foi tomado de surpresa pela crítica da menina. Nessa

situação tudo não passou de brincadeira? É por isso que o senhor de bigodes já se virou e

pode sorrir tranquilamente?

O contraste está exatamente nesse gesto, na forma de se comportar de Figueiredo,

que se sabe que não é o modo de pensar do governo, em síntese, é a ironia como política do

corpo político. O que se flagra no retrato à direta, que é o efeito de sentido de liberdade

ansiada pelo cidadão brasileiro presentificado no corpo da menina, está desarticulado no

retrato à esquerda, quando, o gesto de Figueiredo dá a ver que somente a inocência de uma

criança permitiria tal indisciplina. Nesse ato enunciativo, corpo à corpo com o poder, é da

ordem do inteligível a convocação para testemunhar a transgressão e da dimensão da

experiência sensível a possibilidade de transgredir junto.

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4.2 – Tancredo: aspirante a presidente na orientação do sagrado

Fig. 23 – A presença do corpo de Tancredo Neves articula-se com a presentificação do corpo do Cristo crucificado, de modo que o corpo político, sob o efeito de sentido desse alo de luz, é dado a ver na passagem para o alto, ou seja, a política na esfera do sagrado.260

Há também uma dicotomia nesse caso, mas o que se apreende dessa vez está em

outra dimensão, trata-se de uma articulação entre o profano e o sagrado. Tancredo Neves, o

corpo político que ocupa a metade inferior do retrato (Fig. 23), está sentado, mantém um

semblante compenetrado, a cabeça voltada para a direita do seu interlocutor, olha e faz olhar

para o alto. O interlocutor de Tancredo é levado por seus olhos até o ponto onde está a cabeça

de Cristo, pendida para o lado esquerdo, e lá, pregado na cruz sobre a parede clara, está o

corpo crucificado do salvador, cujo sofrimento do corpo remete ao sacrifício do homem. No

baixo, sobre o couro da cadeira em que está o político, diante da materialidade da madeira

escura, a luz reverbera ao redor da cabeça de Tancredo e produz o efeito de sentido de

santificação desse corpo. Traços distintivos que permitem observar que Tancredo Neves está

nessa passagem para o alto, marcas de uma presença sagrada depreendida na grade de

260. Foto: Sérgio Beresovski. Fonte: Veja, 09 de março de 1983.

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significação cultural, porém, o elemento estético que distingue o corpo santo é a luz. Longe de

ser apreendido apenas na sua dimensão hermenêutica, é a estesia do sujeito diante da

organização estética do retrato que produz o efeito de sentido do milagre que se presentifica

no corpo santo de Tancredo.

Em “Da imperfeição”, Greimas ensina que “(...) a linguagem poética, se não dá

ainda acesso direto ao sagrado, é certamente uma linguagem não-profana. Para passar do

figurado ao próprio, nossas nostalgias, observadas mais de perto, não são senão recordações

de esperas abortadas”261. É dessa ordem o simulacro que essa presença de Tancredo Neves

tenta construir, apenas observando que aqui não se trata do passado, da nostalgia, mas da

promessa, portanto, de um sagrado que está no devir.

4.3 – Sarney: presidente por acaso e a política por profissão

Fig. 24 – O retrato oficial do presidente Ernesto Geisel ao passo que presentifica o poder do governo, forma uma triangulação e, quer seja na perspetiva do sujeito da enunciação ou na de João Figueiredo, sujeito do enunciado que está simetricamente oposto ao enunciatário, desvela a política do corpo de Sarney como um prolongamento do corpo político do governo.262

261. A. J. GREIMAS, Da imperfeição, p. 86. 262. Foto: Luiz Saez Parra / Folhapress, 1979. Fonte: http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/2045-jose-

sarney#foto-39242. Acesso em 07 de julho de 2011.

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Dessa vez é de outro ângulo que o observador se depara com o corpo político,

nesse caso, o de José Sarney (Fig. 24), também no contexto da ditadura militar. Em pé,

ladeado por correligionários, que parecem muito menos entusiasmados que o orador, Sarney

profere um discurso apaixonado. O presidente Ernesto Geisel tem sua presença cosmética

marcada no retrato oficial na parede, ao lado dele está Figueiredo, num semblante deveras

amistoso para um general, o que é compreensível por tratar-se do retrato, também cosmético,

da campanha sucessória de Geisel. Parece não haver dúvidas de que lado Sarney está, mas, ao

mesmo tempo, é curioso notar como essa articulação está construída.

A triangulação desses corpos coloca o sujeito observador face à face com o corpo

político de Geisel, numa relação simetricamente oposta com o corpo de Figueiredo. De forma

que ambos, o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado, estão voltados para o corpo da

política vigente, e, concomitantemente, vêem o perfil do corpo de José Sarney. Mas o corpo

de Sarney está em movimento, e a figura da sua mão tremida é que opera esse deslocamento,

de forma que o seu braço pode ser depreendido como uma extensão do corpo de Geisel e,

nessa compleição, ele mesmo se constitui o corpo do poder na galeria dos retratos.

Há um aspecto bastante relevante, percebido a partir da descrição desses corpos,

no que concerne à política das mãos do corpo político. Se no corpo de João Figueiredo a

“mão amiga” é uma ironia, no de Sarney há uma estesia da mão que remete à política de um

corpo hábil em trocar de papéis, portanto, é estratégico e não aleatório ele ter se tornado

presidente. Em contrapartida, se as mãos de Tancredo são sempre tão discretas, a ponto de

sequer aparecerem, é porque, de fato, o sentido produzido é o de um corpo guiado pelas mãos

de Deus.

4.4 – Collor: astro midiático de uma presidência trágica

A abordagem com relação às mãos no corpo do político, que, como visto,

incorrem inevitavelmente na política do corpo, não é uma questão extraordinária. Landowski,

em “O triângulo emocional do discurso publicitário”, em forma de nota, faz a seguinte

elucubração:

Como você segura “a coisa”? E, de modo mais geral, as coisas, ou mesmo o outro? Um dos capítulos essenciais de uma semiótica do sensível ainda por ser escrita seria uma semiótica da preensão. Mão que imobiliza ou, ao contrário, que dá impulso, que acompanha, simplesmente suscita, ou tenta

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forçar o movimento, mão frouxa ou que dá sustentação: tantas modalidades diferentes do tomar, do agarrar, do segurar, do sustentar – em uma palavra, da foria – por meio das quais um sujeito se ajusta, ou não, a um outro, favorecendo, ou não, o desabrochar de relações mutuamente gratificantes na interação (Landowski, 2004: 124-137), “Coordinations”, e 2005: 39-47, “le regime de l’ajustement”). E nós mesmos, como nós “nos sustentamos”? O regime de sentido de nosso estar-no-mundo está por inteiro em jogo nessa questão banal.263

Esta pesquisa não tem a ambição de enveredar numa discussão sobre a “semiótica

da preensão”, cujo aporte teórico já pertence ao estado da arte264, mas, cabe registrá-lo tendo

em conta que é indiscutível a presentificação das mãos na compleição do corpo sensível do

político. Por exemplo, as mãos do corpo político de Fernando Collor de Mello, que ao

impulsionarem o seu corpo, permitem que ele se de a ver como um astro num filme de

aventuras.

a b c

Fig. 25 – A opção de Fernando Collor de Mello foi dar visibilidade a um corpo político viril, na água, na terra e no ar. Daí, a política do corpo político de encenar os mais diversificados modos de presença, a fim de legitimar sua popularidade.265

263. Eric Landowski. O triângulo emocional do discurso publicitário. In: Comunicação midiática, p. 25. 264. Pentencem às mais recentes contribuições de Eric Landowski ao arcabouço da semiótica discursiva, os

estudos sobre a preensão, que dão conta das práticas vividas. O trabalho desse pesquisador, entitulado “Avoir prise, donner prise”, encontra-se publicado em Nouveaux Actes Semiotique, nº 112, Limoges: Pulim, publicado em 12 de fevereiro de 2009 e pode ser consultado em: http://revues.unilim.fr/nas/document.php?id=2812. Acesso em 11 de março de 2012.

265. Foto: AE, 1999. Fonte: http://www.terra.com.br/noticias/especial/pc/galeria03.htm. Acesso em 15 de março de 2011. Fonte: Veja, 20 de setembro de 1992. Fonte: http://www.senado.gov.br/senadores/senador/FernandoCollor/f_presidencia.asp#, 1992. Acesso em 15 de março de 2011.

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Sem dúvida a política depreendida no corpo de Collor (Fig. 25) é digna do

reconhecimento da academia cinematográfica. Porte altivo, compleição atlética, semblante de

quem está sempre de bem com a vida, é dessa forma que o presidente Collor de Mello surge

pilotando o seu jet ski e figurativizando a mudança, ou melhor, a descontinuidade. Ele poderia

estar numa fragata, mas o efeito de sentido do objeto náutico que ele escolheu para se dar a

ver deslizando sobre a água, reitera de modo muito mais significativo a política adotada pelo

seu governo. A velocidade é o termo axiológico que vai permear os modos de presença de

Collor, de forma que, no momento seguinte, o dominador dos mares já pode ser visto saltando

em terra firme como conquistador do território. Nesse caso é literalmente o corpo camuflado

do personagem, afinal, não há guerra e, ainda que houvesse, o presidente não pertence ao

corpo militar. No entanto, o que se observa é que Collor continuamente investe na ruptura dos

limites e, dessa feita, ele vai viver o piloto de um avião supersônico, ou seja, quebrar a

barreira do som.

Fig. 26 – Há um efeito de sentido sensível e ambiguo na “união” dos corpos de Collor e de Roseane, de modo que o observador “impressionado” não pode afirmar que eles acenam em despedida, até que saiba que eles não estão pedindo trégua.266

A presença acelerada de Collor é proporcional à crise econômica e política do país

e isso fará com ele interrompa a sua performance de “vedete”. O termo é emprestado de

266. Foto: Roberto Stuckert Filho / Ag. O Globo, 1992.

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Landowski e faz remissão a uma forma de popularidade adotada pelos políticos no início da

década de 80. Esse semioticista explica que “os políticos ‘responsáveis’, preocupados em ver

sua função de tal modo desacreditada, da esquerda à direita se puseram implicitamente de

acordo sobre a necessidade de fazer urgentemente tudo o que era possível para reabilitar aos

olhos do público ‘a política’ enquanto tal.”267 Na iminência de ser impedido de governar,

Collor renúncia e o gesto derradeiro, é o corpo político do ex-presidente unido ao da mulher

(Fig. 26), Roseane Collor, cada qual com um braço erguido na construção de uma única

saudação. Gesto de despedida? Certamente, mas também de corpos que se fortalecem um ao

outro, uma vez que o que as mãos deixam apreender está muito próximo de um pedido de

trégua.

4.5 – Itamar Franco: a presidência de surpresa

a b

Fig. 27 – Itamar Franco, adepto à política orquestrada nos bastidores e avesso aos grandes espetáculos, justamente por insistir na distância entre o público e o palco, acaba se tornando um corpo “vedetizado” pelas mídias e dessa forma visto com frequência de modo delituoso pelos espectadores.268

267. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 203. 268. Foto: Sérgio Marques, 1997. Fonte: http://www.abi.org.br/primeirapagina.asp?id=2954 . Acesso em 07 de

julho de 2011.

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O presidente Itamar Franco ocupa a frente do palanque do carnaval carioca entre

duas mulheres (Fig. 27-a). A sua direita está uma modelo com o braço levantado, como se

embalada pela música e vestida só de camiseta. Esse “flagrante delito”, que está em “o X da

questão”, quando estampado na primeira página da revista semanal de maior circulação do

país, servirá de projeção para mulher de poucas roupa e expressão midiática, e de escárnio

para o presidente. O gesto de Itamar, ao estender o braço e juntar as mãos em forma de

receptáculo, como quem conserva um segredo, que talvez seja a veste faltante da moça,

desvela um corpo completamente obsedado com a atmosfera da festa. O presidente,

observado pela mulher a sua esquerda e através das lentes posicionadas a sua frente, pensa

que conduz o jogo enunciativo, mas é ele o jogo na enunciação.

Com uma grande diferença, no que tange à figuratividade, mas extrema

similaridade no que concerne à organização da enunciação, Itamar dessa vez é flagrado numa

espécie de palco (Fig. 27-b), diante dos espectadores, como quem está perdido e não sabe para

onde ir. Esse corpo político que conserva a mão no queixo, parecendo estar em dúvida ou

desnorteado, vai ser reiterado dessa maneira em muitas outras situações. No entanto, essa

visibilidade do corpo político de Itamar Franco não é análoga ao seu estilo de governo, de

modo que, ora ele se dá a ver como “o herói mediador”, ora ele é visto como “vedete” e

“bufão”.

É Landowski que, ao tratar dessas duas categorias, explica que:

O herói, para impor-se como tal, deve por conseguinte beneficiar-se de uma conjuntura que lhe permita figurar ao mesmo tempo tanto o “ser” como o “fazer” da coletividade – sua identidade para si mesma e seu devir -, ou melhor, um através do outro, com a possibilidade de que as duas funções sejam ora distribuídas em duas figuras distintas (a soberana, que reina – que “representa” -, e um primeiro-ministro que “governa”), ora cumuladas num único ator capas de dizer o estar junto através do discurso de uma ação comum. (...) Aquele ao qual damos o apelativo de “herói” aparece assim, em definitivo, como exercendo a função de um mediador: longe de monopolizar por conta própria ou em seu proveito exclusivo a atenção geral (como fará daqui a pouco a “vedete”), ele a mobiliza para remetê-la imediatamente a um outro plano, que engloba e ultrapassa sua pessoa: aquele de uma aventura política que é também a do próprio corpo social.269

Posto isso, o “bufão” em Itamar diz respeito justamente a esse modo com o qual

ele se deixa apreender transgredindo a normativa social esperada para um governante. Tendo

em conta a afirmação de Landowski de que “na realidade vedetes e bufões reúnem-se numa

269. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 200-201.

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só e única figura”, não parece que Itamar aja dessa forma no sentido de desafiar o poder, mas

como uma política de se distinguir como um político de poder. Sobre isso, é pertinente

recuperar a descrição feita pelo semioticista, na qual explica que:

(...) para que os atores políticos não possam mais, como usualmente lhes é censurado, ocultar-se atrás de suas máscaras, congelando-se em papéis convencionais, a solução proposta consiste em privilegiar um novo espaço de visibilidade abrindo, ao lado da cena institucional, uma outra cena, mais “íntima”, menos “formal”. (...) vedetes reconhecidas – os políticos saberão logo tornar-se pessoalmente presentes a cada um de seus destinatários, deixando de estar somente “em representação” diante de um auditório anônimo.270

4.6 – FHC: intelectualizando a presidência brasileira

Fig. 28 – Ao som do berrante e montado num jumento Fernando Henrique Cardoso desvela sua intenção de popularizar-se, mas, se por um lado ele se deixa ver como um nordestino “ajustado” ao lombo do animal, por outro, a forma como ele faz isso não remete a nenhum dispositivo sensível, a política racional de um corpo político inteligível.271

270. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 202. 271. Foto: José Varela / Agência Estado, 1994. Fonte: http://especiais.ig.com.br/zoom/fernando-henrique-

cardoso-80-anos-de-vida/. Acesso em 06 de julho de 2011.

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A probabilidade de flagrar o corpo político do presidente Fernando Henrique

Cardoso é quase nula e isso, mais do que evidenciar uma dita fidalguia do seu corpo, acaba

por dar visibilidade de seu modo de governar. Nessa imagem (Fig. 28), FHC surge na rua de

alguma cidade do nordeste, em meio a população local, montado num jumento durante sua

campanha à presidência da República. Com um chapéu de nordestino, camisa de manga curta,

calça e sapatos sociais, sobre um pelego com motivo de onça, o futuro presidente

cumprimenta o povo. Chama atenção a fita amarrada no seu pulso direito. Muito comum

nessa região do país, é um amuleto de tecido que tem a medida de um santo e, o sujeito ao

colocá-la no pulso pede uma graça, a qual acredita-se irá se realizar quando a fita se romper. É

um detalhe no mínimo curioso para um sujeito que se diz declaradamente agnóstico, ainda

mais porque o corpo político de Fernando Henrique é um corpo em que se observa a

preocupação com a visibilidade. Ora, se a fita é um amuleto pouco convencional nesse corpo,

as calças de fibra sintética também não são as mais adequadas nesse espaço. Diante do que, é

possível afirmar que Fernando Henrique se dá a ver no corpo de um “estrangeiro” buscando

sua identidade, e, sobre isso, Landowski ensina que:

(...) sendo as atitudes e comportamentos que fazem a “diferença” do dessemelhante vistos, mais ou menos, como puros acidentes de natureza – e não como elementos que assumiriam sentido no interior de (outra) cultura -, o Outro se encontra de imediato desqualificado enquanto sujeito: sua singularidade aparentemente não remete a nenhuma identidade estruturada. E é finalmente este desconhecimento – ingênuo ou deliberado – que fundamenta a boa consciência do Nós em sua intenção assimiladora: não só o estrangeiro tem tudo a ganhar ao se fundir de corpo e alma no grupo que o acolhe, mas, além disso, o que ele precisa perder de si mesmo para aí se dissolver como lhe recomendam não conta, estritamente falando, para nada.

272

O jegue é considerado um animal de estimação das famílias nordestinas, ele é o

companheiro de trabalho e o meio transporte dessas famílias, e em virtude de sua resistência

na caatinga constitui o modo ideal para carregar o bem mais precioso nessa região, a água.

Daí, desvela-se a “intenção assimiladora” do corpo político de FHC, ele também surge como

um bem precioso, sendo anunciado pelo berrante do nordestino que o acompanha lado a lado,

ambos montados em seus jumentos.

Ainda que seja num momento inusitado, quase vinte anos antes da eleição de FHC

e quase trinta da de Lula, quando os dois políticos podem ser vistos conversando tête-à-tête

272. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 202.

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num restaurante (Fig. 29), o nusitado é se deparar com a postura de Fernando Henrique

Cardoso. O semblante compenetrado, todo ouvidos ao seu interlocutor, sentado e com as

pernas cruzadas e, sentar-se e cruzar as pernas é típico dos retratos dos meninos da infância de

FHC, quando essa postura estava intimamente relacionada à pose de “bons modos” que os

garotos de família deveriam assumir. Os bons modos foram incorporados aos modos do

intelectual e os modos do intelectual plasmaram o do estadista. Mas a questão é muito menos

de saber se os modos são bons ou não bons, e sim de investigar o ponto de vista do

observador. E, ao que parece se está, novamente, diante de uma questão de assimilação.

Fig. 29 – No diálogo “flagrado” entre Fernando Henrique e Lula destaca-se a regularidade na postura de ambos: Lula sempre se dará a ver numa política engajada, a despeito de um corpo político de postura negligente, ao posso que em FHC a política e o corpo do político sempre serão articulados no no eixo da programação.273

273. Foto: Antonio Carlos Peccino / Agência O Glogo, 19 de setembro de 1978. Fonte:

http://especiais.ig.com.br/zoom/fernando-henrique-cardoso-80-anos-de-vida/. Acesso em 09 de julho de 2011.

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Onde quer que seja o espaço seguinte (Fig. 30) ele está sob o céu dos quadros

colocados na parede branca, que articula um contraste com a madeira, predominantemente

escura e grossamente torneada dos móveis, a qual produz o efeito de sentido de solidez desse

lugar. Os objetos devem ser lembranças de viagens, enquanto a cadeira vazia, com certeza,

marca a ausência de Dona Ruth, a companheira de uma vida toda de FHC274. Esse olhar um

tanto poético do observador, talvez se dê em virtude de a imagem ser em preto e branco, o que

permite de algum modo preencher as matizes. Ali, na poltrona da esquerda, bem assentado,

com as pernas cruzadas e distintamente vestido, está o corpo político de Fernando Henrique

Cardoso, o intelectual e o estadista, homem de virtude e de fortuna, cujo modo de fazer

política ele dá a ver assim: sólido, bem assentado e articulado num discurso distintivo. E é

alinhado a essa política do corpo que FHC não deixa dúvidas de que ao mover a cabeça para a

esquerda ele esteja instaurando outra presença.

Fig. 30 – Na figura do octagenário Fernando Henrique Cardoso, a maturidade do intelectual vai “unir-se” ao corpo do estadista de forma a presentificar-se num corpo político sensível, mas, sempre à distância segura com a platéia. 275

274. A antropóloga e ex-primeira dama Ruth Cardoso morreu em 24 de julho de 2008. 275. Foto: Kiko Ferrite / G1, 10 de maio de 2008. Fonte:

http://g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL463645-15530,00-E+ANTIDOTO+CONTRA+INTOLERANCIA+MUNDIAL+DIZ+FHC.html. Acesso em 09 de julho de 2011.

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4.7 – Lula: líder sindical e a vedetização da presidência

E, de repente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva entra em cena (Fig. 31). O

corpo roliço e maleável desse político que, súbito, passa por debaixo da cerca sem que

ninguém estivesse esperando por tal atitude. Mas será que ninguém esperava mesmo?

Definitivamente Lula não é um político afeito à rigidez dos cerimoniais, de forma que, o gesto

inesperado do presidente é sempre um ato esperado. É o flagrante que a objetiva do fotógrafo

deve estar preparada para captar, é esse ato que reorganiza o espaço do espetáculo do ator que

descobriu, em tempo, onde termina o papel do líder sindical em relação com o operariado e

onde começa o do presidente em interação com o povo. Assim, de um momento para o outro,

a distância que separava o palco da platéia, o ator do público, o governante dos governados

foi suprimida, e, a retórica do fazer fazer deu lugar ao corpo à corpo do fazer junto (Fig. 32).

Fig. 31 – O corpo de Lula articula-se num fazer discursivo que orquestra a encenação de gestos programados e atos inesperados, em outras palavras, um fazer manipulatório que anula a distância

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entre o palco e a platéia, entre o ator e o público, entre líder sindical e os operários, para culminar numa relação de interação corpo à corpo entre o governante e os governados.276

Nesse caso trata-se da “vedetização” do político, e a respeito disso Landowski

explica que:

Posto que o espetáculo político, representado segundo as formas clássicas, não consegue mais reter a atenção do público, é preciso com efeito inventar um novo regime de relações entre atores e espectadores: coisa de estilo e de linguagem, sem dúvida, mas também mais que isso. Pois, para instaurar uma comunicação mais “direta”, mais “viva”, mais “verdadeira”, o que é preciso reordenar é o próprio contexto no interior do qual se enuncia a palavra política, ou pelo menos aquela suscetível de ser reconhecida como tal num determinado momento histórico. É o que se vê hoje, quando, para que os atores políticos não possam mais, como usualmente lhes é censurado, ocultar-se atrás de suas máscaras, congelando-se em papéis convencionais, a solução proposta consiste em privilegiar um novo espaço de visibilidade abrindo, ao lado da cena institucional, uma outra cena, mais “íntima”, menos “formal”.277

Pois, não é exatamente isso o que se observa no momento seguinte? Ao deparar-se

aqui com o corpo político de Lula, banhado de suor, em meio a essa multidão de populares,

em algum lugar do Brasil, não se está experimentando essa informalidade?

Enquanto do lado esquerdo do “palco” (Fig. 32), próximo ao centro e para cima, o

segurança do presidente Lula tenta ordenar a encenação que se desenrola, uma mão estendida,

no canto inferior direito, aguarda o momento de poder tocar o presidente. De um lado o corpo

de Lula, do outro, o corpo do povo; no centro, orquestrando a cena, como extensão dessa

pequena multidão, o corpo de um menino liga um lado e outro lado, eliminando a distância

entre o que está em cima, o poder, e o que está embaixo, o povo. O presidente tem o corpo

banhado e a face brilhante de suor, por isso carrega um lenço branco numa das mãos, o que se

torna desnecessário à medida que as pessoas vão se ungindo dessa presença “milagrosa”. Ele

mesmo, Lula, nordestino e operário como eles, se dá a ver na política do político cujo corpo é

parte do povo, e nessa imagem produz, em ato, a síntese do seu discurso de posse: “o

reencontro do Brasil consigo mesmo”. Hábil em conduzir o espetáculo, no caso do

presidente, parece que é preciso mais para uma boa “representação”, por isso, o que se

observa é a imersão do ator, que se dá a ver em êxtase, contagiado e contagiando; numa

276. Fonte: Alan Marques / Folha Imagem, 12 de março de 2008. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/inde12032008.shl. Acesso em 04 de março de 2011.

277. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 202.

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relação em que o corpo de Lula e do menino se ajustam num fazer recíproco para formar o

corpo da política.

Fig. 32 – Quando os sujeitos passam a fazer juntos anulam-se as distâncias, então, a relação de interação que se estabelece corpo à corpo é da ordem da estesia e o observador, contaminado por essa “presença contagiosa” passa a sentir de forma partilhada. 278

No que concerne a essas presenças contagiosas, que se articulam no “regime de

ajustamento” sobre o qual se explanou em parágrafos precedentes, importa ter em conta a

presença do Outro. Têm-se, de um lado, as mãos em preensão na interação entre o corpo do

governante e os corpos dos governados, e de outro, a apreensão sensível por parte do

observador, que é dessa forma instalado nesse ato, também na condição de governado. Mas, a

questão é: como isso se engendra?

É Landowski quem ensina, que o regime de sentido da “junção, supõe a

existência de critérios de avaliação que permitem ao sujeito mensurar o valor socialmente

admitido dos objetos nas diversas ordens a que eles podem pertencer” ao passo que,

278. Foto: Ricardo Stuckert / PR, 9 de maio de 2008. Fonte: http://especiais.ig.com.br/zoom/lula-e-o-povo/.

Acesso em 16 de julho de 2011.

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“segundo um outro regime, a proximidade, senão a imediaticidade, e a participação senão a

união, substituem essa objetivação e a distância que ela supõe.”279 Então, esse semioticista,

depois de explicar o “contágio” como uma “transformação dinâmica e recíproca em ato”,

dirá que a primeira forma de contágio situa-se na perspectiva epidemiológica, que é regulada

pelo fazer como e prescinde da presença dos sujeitos, ao passo que a segunda, baseada em

termos semióticos, articula-se no fazer junto, diante do que, a presença dos sujeitos é

imprescindível.

Posto isso, cabe a afirmação de que a política do corpo de Lula é construída a

partir de um corpo que, transpondo as estratégias inteligíveis, se deixa apreender na interação

sensível de sua relação com o povo. Dessa forma, o sujeito observador é “contaminado” por

essa presença sensível, politicamente articulada numa relação que se dá “in absentia”, o que,

para Landowski, “(...) só pode existir mediada no espaço (...) tende, do ponto de vista

temporal, a operar de forma defasada, em curto, longo ou mesmo muito longo prazo. (...) o

contato, mesmo direto, entre os sujeitos não é nele mesmo uma condição suficiente para a

que a contaminação aconteça.”280. Essa contaminação se realiza à medida que esse

observador, que é parte do povo, se identifica como partícipe na relação contagiosa de Lula, a

qual é “concebida em termos semio-estésicos, por se atualizar somente in praesentia (...) é a

própria presença do sujeito – rindo, desejando, etc. - junto ao seu outro que faz com que o

segundo, quer de bom grado quer não, se encontre comovido, transformado, contaminado

pelo primeiro.”281

E, de fato, como Landowski postula, as “vedetes”, e também os “bufões”, a fim de

que possam ser sempre reconhecidos e amados pelo povo, precisam se reinventar. É nesse ato,

sine qua nom para a construção de popularidade, que Lula e Sarkozy são flagrados (Fig. 33),

no aperto de mãos como presenças contagiosas diante do espelho. Contagiando um ao outro e,

depois, contaminando aqueles que os observam no alto da rampa, os que os vêem do piso

superior, que são vistos presentificados no espelho, e os que se colocam na observação do

corpo à corpo, face à face com a política desses corpos. Eis, dessa forma, com base no edifício

de Landowski:

(...) a acepção da palavra popularidade que tomamos como referência: o fato de ser conhecido e amado pelo povo. Todavia, se esta é, sem dúvida, a mais

279. Eric LANDOWSKI, Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa, p. 33. 280. Ibid., p. 39. 281. Ibid., p. 40.

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banal das definições que se apresentam, é paradoxalmente, ao mesmo tempo, a mais exigente: em relação aos atores da política primeiramente, razão da estatura e do saber-fazer que ela pressupõe por parte deles; mas também, e provavelmente mais ainda em relação ao público ou, mais globalmente até, à sociedade política em seu conjunto. Pois essa acepção só pode remeter a um modo de relação efetivamente vivido entre governantes e governados em situações históricas nas quais a existência de um crer coletivo possibilita a adesão do corpo político (ou, pelo menos, de grupos importantes em seu seio) ao tipo de grandes figuras heróicas que evocamos.282

Fig. 33 – Na demonstração de “como fazer” à expriência estésica e estética vivida se organiza a partir da união entre corpos sujeitos que, contagiam-se e se dão a ver contagiando-se num ajustamento recíproco, e, por concomitância, organizam-se em processos de interação actancial direta.283

E, talvez, menos heróica, mas empenhada na construção de sua popularidade, e

para isso contando com a doação de competência de Lula, Dilma Rousseff entra na cena

política brasileira.

282. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 201. 283. Foto: Ricardo Stuckert / PR, 9 de maio de 2008. Fonte: http://especiais.ig.com.br/zoom/lula-e-o-povo/.

Acesso em 16 de julho de 2011.

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4.8 – Dilma Rousseff: a presidente aquém da mudança de gênero

Poucos políticos se dedicaram à cosmetização do corpo como Dilma Rousseff. De

ministra, braço direito do governo Lula, à presidente, posicionada a sua direita no parlatório

(Fig. 21-f), somando as implicações do corpo doente284, Dilma se submeteu a uma série de

transformações. Contudo, mais do que um rosto para ser apreciado no retrato, um corpo para

ser sancionado nas urnas; e a sanção nesse caso consistia em converter em votos a aceitação

popular da escolhida de Lula. Ao posso que Dilma Rousseff foi recebendo investimentos

concernentes à construção de sua feminilidade, suas atitudes foram orientadas para um novo

modo de ser vista, ou seja, para a construção de uma figura política e não só a de gestora. No

que diz respeito à sucessão presidencial, há um aspecto político bastante lógico e relevante;

afinal, no processo sucessório era necessário um político à altura de substituir Lula,

propagado na mídia como “o político mais popular do mundo”.285

É dessa forma que Dilma Rousseff, meses antes da oficialização de sua campanha

à presidência, vai ser vista na passarela do samba (Fig. 34): cabelos ainda curtos, depois da

queda em virtude das sessões de quimioterapia, calça jeans e camiseta, complementadas pelo

abadá, pelas sapatilhas e pelos colares dourados. Da mesma forma que a baiana figurativizada

na túnica de Dilma faz remissão a um dos personagens mais significativos das alas

carnavalescas, o figurino de Dilma, aparentemente sem grandes pretensões, constrói um traço

de identificação entre o povo e ela, portanto uma estratégia inteligível. No entanto, essa

presença pública de Dilma Rousseff não é só da ordem da racionalidade, ou seja, a mulher

que está aí, em meio ao povo, não é apenas para ser vista é também para ser sentida.

Dessa vez a percepção das mãos se dá de outra forma, aqui não é a mão amiga do

braço forte; a mão ocultada ou ágil; as mãos que impulsionam o corpo ou que parecem pedir

trégua; a mão que oculta algo ou que desvela dúvida; a mão que saúda ou a que confabula ou

simplesmente a mão que descansa sobre o corpo como a emoldurá-lo; a mão que suporta o

peso do corpo e o faz deslizar sob a cerca ou as mãos que “ensaiam” um possível acordo entre

284. Em 25 de abril de 2009, quando ainda era ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff

anunciou através das mídias a retirada de um tumor de 2,5 centímetros de sua axila esquerda e o início do tratamento de um câncer no sistema linfático.

285. Trata-se de uma remissão à matéria entitulada “The most popular politician on earth”, sobre o governo do presidente Lula, publicada pela revista Newsweek em 21 de setembro de 2009. Fonte: http://www.thedailybeast.com/newsweek/2009/09/21/the-most-popular-politician-on-earth.html. Acesso em 04 de junho de 2011..

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as nações no retrato do retrato (Fig. 22 – 31; 33). Nessa perspectiva a apreensão do sentido

está muito próxima daquela situação em que as mãos formavam o elo entre os corpos (Fig.

32), talvez aqui menos sagradas, visto que a cerimônia é laica, mas, contagiosas na mesma

proporção.

a b

Fig. 34 – Na dança entre Dilma Rousseff e o gari está a interação sensível entre o corpo político e o povo, a política que lança mão da experiência estésica e estética desse ato contagioso, a fim de contaminar a multidão. 286

Nesse ato, o “cavalheiro”, com o braço erguido e a mão posicionada em forma de

gancho, descreve um movimento com o corpo, e a “dama”, também com o braço erguido, à

medida que se deixa conduzir, se movimenta em concomitância com o seu par. O

“ajustamento” entre os corpos, que tem como ponto de equilíbrio as mãos unidas, desvela um

“(...) um sentir recíproco ao menos potencial, e teoricamente ilimitado quanto à sua

286. Foto: Agência Estado, 15 de fevereiro de 2010. Fonte: http://noticias.r7.com/carnaval2010/noticias/dilma-

danca-com-garis-na-sapucai-20100215.html. Acesso em 15 de julho de 2010.

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extensão: reciprocidade do sentir que poderá fazer nascer, no mínimo, casais, ou reunir

multidões inteiras”287. Daí, a articulação política na dimensão do sensível, desse ato que se dá

a ver na união do corpo de Dilma Rousseff e o corpo do gari, como parte do povo para formar

a multidão. O gari, que é visto aprazendo-se e aprazendo, é o sujeito que instaura a presença

do Outro, também povo que, afetado pela dança, deixa a condição de sujeito observador e

passa a “fazer junto”. Como Landowski propõe, “atuando tanto no plano intersomático

quanto no plano intersubjetivo, tais processos são neles mesmos geradores de sentido e, por

isso mesmo, suscetíveis de fazer nascer novas identidades, individuais ou coletivas.”

No “fazer político” do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a escolha de Dilma,

um corpo político feminino a fim de substituí-lo na presidência, se alinha a uma estratégia

fiduciária com vistas a fazer crer numa identidade, que é a de Lula, colocada lado à lado, ou

melhor, corpo à corpo com Dilma Rousseff. Algo que Landowski, ao explicar sobre as marcas

sensíveis de uma semelhança identitária entre sujeitos dirá que “é como se o fato de

participar cotidianamente certa maneira de estar no mundo conduzisse por si só a uma forma

de ajuste recíproco entre elementos em presença, independente das vontades”.288 Pois, é

desse modo que, ao por em circulação o discurso da promessa de sua sucessão na presidência,

Lula engendra o discurso mítico, afinal, que outro corpo senão o divino teria competência

para “criar” essa primeira mulher no governo do país? Porém, além dessa presença

manipulatória do “Deus” que governa e que figura como tutor do próximo a governar,

destacam-se duas questões, dessa vez da ordem da imprevisibilidade: a primeira, diz respeito

à imagem de Lula quando o ex-presidente, também vítima de um câncer289, aparece no retrato

sem cabelos, barba e bigode, a segunda, decorrente dessa, implica na maneira como o corpo

de Lula vai se reconstruir, uma vez que ele perde suas características “miméticas” e, a partir

desse evento, vai articular outra forma de visibilidade do seu corpo político.

Deparar-se com as situações de “afeto” entre Lula e Dilma nunca foi algo

extraordinário, mesmo antes da homologação da candidatura de Rousseff à presidência, era

recorrente “flagrá-los em delito” através das mídias. De forma que, falar ao pé do ouvido,

fazer caretas e um tocar o corpo do outro enquanto conversavam eram gestos não poupados

por esses dois atores em cena. Por isso, é curioso esse sorriso meio encabulado da presidente

287. Eric LANDOWSKI, Aquém ou além das estratégias, a presença contagiosa, p. 39. 288. Ibid., p. 46. 289. Em 29 de outubro de 2011, foi anunciado através das mídias o diagnóstico de um câncer na laringe do ex-

presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a decisão da equipe médica de dar início ao seu tratamento quimioterápico.

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(Fig. 35-b), mas compreensível, uma vez que com Lula os atos são inesperados, ou assim

devem parecer.

a b

c d

Fig. 35 – A medida que Dilma Rousseff vai construindo a sua popularidade ela se dá a ver, ora num corpo à corpo “apaixonado” com Lula, ora num corpo atento na escuta do que a cerca, de todas formas um corpo político que transita entre o sensível e o inteligível. 290

Como políticos coordenados e expressando na vestimenta, ou seja, no corpo, essa

coordenação de maneira política, Lula surge de preto e Dilma, envergando o vermelho do

290. a) Foto: Christian Hartmann / Reuters, 3 de novembro de 2011. Fonte: http://gazetaweb.globo.com/noticia.php?c=243992&e=2. Acesso em 18 de dezembro de 2011. b) Foto: Roberto Stuckert Filho / PR, 6 de dezembro de 2011. Fonte: http://blog.planalto.gov.br/em-sao-paulo-presidenta-dilma-tem-encontro-com-o-ex-presidente-lula/. Acesso em 14 de janeiro de 2012. c) Foto: Joerg Sarbach / AP, 5 de março de 2012. Fonte: http://noticias.uol.com.br/album/120305dilma_alemanha_album.htm#fotoNav=105. Acesso em 16 de março de 2012. d) Foto: Fabian Bimmer / Reuters, 06 de março de 2012. Fonte: http://oglobo.globo.com/economia/dilma-culpa-crise-nos-paises-ricos-pela-desaceleracao-dos-emergentes-4226953. Acesso em 09 de março de 2012.

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Partido dos Trabalhadores, tem plasmada essa presença dele na gola de sua roupa (Fig. 35-b).

Da parte de Lula, assumir os mais variados figurinos foi uma constante no processo de sua

cosmetização como presidente. Nas cerimônias oficiais predominou o uso do terno escuro,

mas nas ocasiões informais, por exemplo, ficou célebre Lula portar os mais variados chapéus,

contudo, entende-se que isso também fazia parte de suas encenações. Em contrapartida, após

deixar a presidência, Lula assumiu um estilo singular, muito provavelmente ditado pelos seus

consultores de marketing: o look preto total. O detalhe é que até o diagnóstico do câncer, Lula

era um corpo político que se vestia de preto e tinha como marca inconfundível a barba,

certamente mais grisalha, porém, bem aparada, ela há muito deixara de ser um óbice, para

compor a maturidade do seu corpo político.

Em contrapartida, importa observar que Lula, ao vestir-se todo de preto, constrói a

figuratividade do seu corpo em relação de alteridade com os demais corpos da política. E, o

mais significativo é perceber a cisão que esse novo modo de vestir desvela: Lula, trajando-se

todo de negro, torna-se uma marca independente também em relação ao vermelho do Partido

dos Trabalhadores. Por conseguinte, com o advento do inesperado, a doença, o que era apenas

conduta manipulatória e da ordem da programação, culmina na perda do cabelo e da barba,

daí, a adoção de um chapéu, também preto, é oportuna no arranjo cosmético. Então, a

construção identitária de Lula, que já era importante para reiterar o seu modo de presença

como líder político, será inflada, numa remissão às figuras dos “homens de preto” ou dos

“chefes da máfia”. E, tão importante quanto o significado de descontinuidade dessa escolha

vestimentar de Lula é a continuidade de “flagrá-lo” ao lado de Dilma. O encontro estésico que

conduz o olhar do observador ao ponto de fuga, situado entre os corpos de Lula e de Dilma, e

que faz ver nessa visada esses corpos reiterados no espelho, ou seja, a política é a reiteração

da estesia do corpo.

Se existe uma identidade sensível e se ela pode ser testada na relação de

comparação entre Rousseff e Lula, a oportunidade de ratificá-la é colocando o corpo político

de Dilma em relação com outros corpos políticos, como por exemplo, o do presidente francês

Nicolas Sarkozy (Fig. 35-a) e o da chanceler alemã Angela Merkel (Fig. 35-c e 35-d).

Mantidas as distâncias protocolares entre Dilma e o presidente francês, que

aparecem em primeiro plano no retrato (Fig. 35-a), há dois aspectos a destacar: o primeiro diz

respeito ao fato de Dilma ser a única mulher no enquadramento e o segundo ao modo atento

com que ela arruma o xale ao se preparar para “aparecer” na fotografia. Pela maneira como as

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pessoas estão dispostas, esse é o momento de organização que antecede a pose para o retrato e

Dilma se ocupa de cumprir a sua programação.

Por conseguinte, as distinções apontadas até então podem adquirir outro relevo

quando o corpo político de Rousseff é descrito em comparação ao de Angela Merkel (Fig. 35-

c e 35-d). A despeito de ambas constituírem corpos femininos de governantes, até o

observador menos comprometido dirá que eles não primam por uma dita feminilidade, ao

menos aquela posta em circulação nos discursos publicitários. Na escolha vestimentar as duas

estadistas se dão a ver em trajes muito próximos do terno masculino de trabalho, e o colar,

adereço comum em ambas, faz mais sentido como elo de servidão ao masculino do que como

ornamento. Ao passo que a alemã optou por vestir-se com a cor predominante da bandeira

brasileira, Dilma reitera mais uma vez o blazer bicolor. Seria essa predileção da presidente

brasileira pela dicotomia das cores a marca de outra presença política nesse corpo político?

Sob a perspectiva da “feminilização” do político no retrato, assumida aqui na

acepção de Landowski como a “obliteração da dimensão conflituosa das relações de poder e

censura no que tange a sua dimensão dramática”291, observa-se que o apagamento dessa

dimensão dramática não está aqui de todo consumado. Ao passo que Dilma se desvela atenta

com o que acontece no entorno (Fig. 35-c), Merkel, nesse gesto com as mãos que vai ser

reiterado em inúmeros retratos, numa postura que remete à mais intensa busca de equilíbrio

corpóreo, figurativiza uma sacerdotisa no poder. E, quando se passa à outra imagem, o corpo

político de Angela Merkel, ainda que ela movimente a cabeça, dando visibilidade de alguma

artimanha, o seu corpo não se descola da postura. Dilma, ao contrário, mesmo demonstrando

uma expressão de estranhamento, se deixa apreender com o braço sobre a bancada numa

postura de relaxamento do corpo. Certamente, no que tange ao corpo político feminino

existem outras possibilidades de depreensão de sentido, principalmente, se forem postas em

relação outras presenças femininas no poder, no entanto, esse não é o cerne deste trabalho.

Tendo o observador examinado e descrito essas aproximações que se dão corpo à

corpo numa dimensão inteligível e sensível, em outras palavras, experimentado como se

realizam e como são apreendidas essas dramatizações das presenças políticas entre um e outro

ato político, cabe agora deixar as encenações e encetar um último ato, que possa dar conta de

depreender a lógica do ato dos atos.

291. Eric LANDOWSKI. Flagrantes delitos e retratos, p. 31-70.

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V – ATO DOS ATOS, À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS

A arquitetura não é muito importante. Importante é a vida. A gente tem que arriscar sempre.

Oscar Niemeyer292

Das vias que dão acesso ao Palácio do Planalto, da rampa ou do alto do parlatório

em Brasília, o centro do centro do poder, ao espaço que o enquadramento fotográfico muitas

vezes não permite divisar, são oito os corpos presidenciais aqui abordados. Sem ambicionar

uma conclusão, esse é o percurso que a presente pesquisa acredita ter completado, nos limites

de uma dita política de redemocratização do Brasil, ou, para usar um termo mais “político”,

da “Nova República”. Em suma, tratam-se do espaço, do tempo e dos sujeitos apreendidos na

“realidade” brasileira, cuja tessitura é o discurso da mudança política. E, nesse caso, importa

ter em conta que a mudança:

(...) é ao mesmo tempo desaparecimento, fim, negação de alguma coisa, e aparecimento de outra, afirmação, novidade (absoluta ou relativa), começo (ou recomeço). Num dado estado de coisas, substitui outro: uma moda passa, a seguinte já está ali – o rei morreu, viva o rei! De modo que se poderia quase dizer de novo, mas formalmente dessa vez, que a mudança, em si mesma, nada é. Nada além do ponto de interseção ou da fase de transição entre dois estados: nada mais que a descontinuidade que, enquanto separa um “antes” de um “depois”, liga-os indissociavelmente.293

Na perspectiva de uma organização temporal, marcada pela descontinuidade do

último general no poder e da primeira mulher na presidência, e demarcada pelos cortejos de

posse e pelas cerimônias de transmissão do cargo, observa-se a “alternância” das figuras de

corpos políticos num intervalo de mais de trinta anos. No arranjo discursivo imagético do

movimento das “Diretas Já” e da campanha eleitoral de Tancredo Neves, as presenças de

Fernando Henrique Cardoso (Fig. 13-a e 13-b), José Sarney (Fig. 13-c e 13-g), Marco Maciel

(Fig. 13-c) e Lula (Fig. 13-f) posteriormente são examinadas como os “novos” corpos

políticos desfilando em carro aberto ou no ato da passagem da faixa presidencial. Da mesma

forma que, no espaço do sofá vermelho (Fig. 15), sentados da esquerda para a direita, Collor,

Itamar e Fernando Henrique, são os três presidentes que se alternarão no governo a partir dali.

292. Ricardo KOTSCHO. Do golpe ao planalto, p. 260. 293. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 109.

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Jogo de cartas marcadas? Não, mas indiscutivelmente o jogo do poder político e, sobre isso, é

significativa a consideração tecida por Landowski ao dizer que:

Certos elementos que se podem tirar dos trabalhos existentes sobre o caráter cíclico da história das modas, como da história política, parecem efetivamente indicar que os momentos de adesão forte e maciça a uma moda ou a uma tendência política dada geralmente não se dão sem a manifestação concomitante, quase tão insistente, algumas vezes até mais, da rejeição da tendência estética ou política considerada como seu contrário, cujo reino acaba de terminar ou cujo fim está em vias de se tornar inelutável.294

Isso explica e fundamenta, a partir do evento aleatório que foi a morte de

Tancredo Neves, a seqüência de governos que se sucederam nos momentos de crise, ou seja,

até a estabilização da economia com a eleição e a reeleição de Fernando Henrique Cardoso.

Posteriormente, com o revés da situação econômica, a rejeição à política de FHC, e, a

decorrente eleição e reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Com Dilma Rousseff, nota-se que

a lógica foi reiterada com o incremento da colocação em circulação do discurso do PAC, o

Programa de Aceleração do Crescimento. Dito de outra forma, o êxito dos dois mandatos do

governo Lula, legitimado pela sua popularidade não só em virtude do controle, mas do

desenvolvimento econômico do país, foi “incorporado” à Dilma Rousseff, na forma de

continuidade, por esse motivo, como “mãe do PAC” pode-se dizer que ela é a “eleita” de

Lula. Tais situações assentam-se na esfera do que Landowski analisa como sendo da

(...) ordem dos valores perenes: liberdade, justiça, bem-estar, segurança, muitas apostas que põem em causa diretamente as próprias condições de existência dos agentes sociais, seus interesses “reais”, e que, por seu caráter de universalidade, transcendem o nível das preferências, a todo momento cambiantes, que se exprimem em termos de gostos e opiniões. Uma vez que nada do que se refere a esses valores, nem a maneira de hierarquizá-los, nem a escolha dos meios destinados a gerá-los, pode depender de modas por essência passageiras, a única instância suscetível de encarregar-se deles é, naturalmente, a instância política enquanto tal, concebida como o conjunto de instituições, das práticas e das normas pelas quais se manifesta justamente a assunção coletiva desse tipo de valores fundamentais. Certamente, nem mesmo essas instituições, essas práticas e essas normas podem ser imutáveis; porém, dir-se-á, não são simples intermitências do coração, mas a razão que deve presidir sua renovação.295

294. Eric LANDOWSKI. Presenças do outro, p. 117. 295. Ibid., p. 117.

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296

296. Eric LANDOWSKI. Interacciones arriesgadas, p. 81.

Regularidade Probabilidade

causal mítica

Regularidade Probabilidade

simbólica matemática

Motivação Sensibilidade

consensual perceptiva

Motivação Sensibilidade

decisional reativa

* ou estratégia

o risco limitado a insegurança

Fazer querer Fazer sentir

Regime de sentido: Regime de sentido:

"ter significação" "fazer sentido"

Regime de risco: Regime de risco:

A MANIPULAÇÃO*baseado na intencionalidade

(competência modal)

Regime de interação:

O AJUSTAMENTObaseado na sensibilidade

(competência estésica)

Regime de risco:

a segurança

Regime de risco:

o risco puro

Regime de interação:

(rol temático) (rol catastrófico)

Regime de sentido:

A "insignificância"

Regime de sentido:

O "sem sentido"

Con

stel

ação

da

"gov

erna

nça"

Con

stel

ação

da

"pop

ular

idad

e"

Fazer ser

Fazer fazer

Fazer advir (chegar) Fazer sobrevir

O ACIDENTEA PROGRAMAÇÃORegime de interação: Regime de interação:

baseado no azarbaseada na regularidade

Não descontinuidade II

Continuidade III Descontinuidade I

Não continuidade IV

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A investidura desta pesquisa tinha por propósito depreender como esses corpos

políticos racionais se davam a ver e o lugar era o espaço das mídias, dito de outra maneira, a

publicização midiática do político e a política do corpo a partir das mídias. O resultado das

análises, sem dúvida possibilitou depreender uma gama de variações, contudo, as mais

significativas concentram-se na ruptura política desvelada no corpo de Fernando Collor de

Melo, na retomada à continuidade no corpo político de Fernando Henrique Cardoso e na

instauração de outra ruptura na corporeidade política de Lula. E, o mais extraordinário é

observar a transição do corpo político baseado na racionalidade para a esfera da sensibilidade.

Na posse do último presidente militar, sob a promessa de fazer “desse país uma

democracia”, já se podem distinguir as marcas de uma outra política no corpo do general

João Figueiredo. Há, por certo, o modo disciplinado da corporeidade formada na academia

militar, mas em contrapartida, a relação do homem com o animal, a visibilidade do corpo viril

e a forma como esse corpo é apreendido na transição da farda para o traje civil (Fig. 10), são

“flagrantes” que desvelam a ambivalência do regime político vigente. Se a ditadura militar é

da ordem da manipulação e da programação, os valores circulantes no corpo político do

presidente João Figueiredo são da ordem do ajustamento. Ainda que Figueiredo, como quem

governa o povo, exerça o poder de domar o cavalo, no ato de cavalgar ambos participarão de

um fazer juntos. Ademais, não é só o fato de um militar visto em trajes civis, mais do que

isso, é um corpo que se deixa ver descoberto, à maneira de um cavaleiro que, ao desvencilhar-

se da armadura sai da programação e torna-se passível de ser sentido corpo à corpo.

Ao passo que Figueiredo se deixa apreender como um corpo-sujeito, o que é

plausível, posto que é o corpo da transição do regime político ditatorial para o democrático e

está no sentido da continuidade rumo à não continuidade, José Sarney ocupará

freqüentemente a dêixis da programação. Obvio que todo o corpo político em algum momento

deverá ser estrategista, mas a estratégia de Sarney consiste na manutenção da regularidade, ou

seja, no ato permanecer na governança. Enquanto alguns dos corpos políticos aqui

examinados estavam no palanque das “Diretas Já” (Fig. 13-a), Sarney compunha a

triangulação política com os militares (Fig. 24), os quais, por constituírem o governo de

situação, garantiam-lhe segurança. Desse modo, na esteira da racionalidade, Sarney vai

desvelar-se no jogo político como o corpo que se desloca da direita (Fig. 24) para a esquerda

(Fig. 13-c), porém, cauteloso, mantém-se um passo atrás, depois avança ao se tornar

presidente por acaso (Fig. 21-b) e volta à retaguarda (Fig. 21-c) após passar o poder. O

sentido de retaguarda no corpo político de José Sarney, a quem se atribui a consolidação da

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democracia brasileira, tem na imanência a ação coronelista. Sarney, após ter assumido o mais

alto cargo de governo, ao contrário dos seus antecessores, mas como um típico coronel, se

elegerá quatro vezes senador. Se as leis descritas nos códigos estão ali para serem cumpridas,

o corpo político de José Sarney desvela na política da continuidade, não um corpo para ser

sentido, mas um chefe político que faz com que o regimento seja cumprido.

Em relação simetricamente oposta, Fernando Collor de Mello surge no cenário

político brasileiro como uma legítima “vedete” (Fig. 14) para inaugurar a política da

descontinuidade. Não cabe aqui mensurar o grau de racionalidade desse governante em suas

decisões estratégicas, mas o certo é que Collor apostou na excessiva visibilidade de seu corpo

político (Fig. 25) e o fez na dimensão da sensibilidade, o que culminou na sua renúncia e no

impedimento do seu governo, o acidente. O impeachment foi resultado do “risco puro”, posto

que, assim como se diz que “alguém é ‘muito cortês’ para ser ‘honesto’”297, a máxima de que

errar é humano não se aplica aos heróis. Na política do corpo de Fernando Collor o heroísmo

em demasia o “desumanizava” diante do Outro, portanto, em meio à crise econômica, o que

se percebe é uma dissonância cognitiva entre a sua popularidade e a competência do sujeito

para governar, de modo que os seus “superpoderes” tornaram-se um ato “sem sentido”.

Concernente à política dos corpos de Tancredo Neves (Fig. 13) e de Itamar Franco

(Fig. 14 e Fig. 15) observam-se características bastante peculiares entre eles, que, embora

estejam nos limites da programação, portanto, opostos à Collor e próximos a Sarney, realizam

uma trajetória no sentido da não continuidade. A relação de interação desvelada a partir do

corpo de Tancredo (Fig. 23) e de Itamar (Fig. 27) é baseada na regularidade da discrição, o

que significa o predomínio da circunspecção e da prudência como garantia de segurança sob a

lógica da racionalidade, no entanto, é também uma remissão ao segredo. No que tange a

trajetória política de Tancredo, observa-se um corpo assentado numa postura regular, que de

tão circunspecto beira a insignificância e, por esse mesmo motivo passa a fazer sentido

ajustando-se de forma sensível com o Outro. Resultante de uma probabilidade mítica, a morte

“sobrevém” ao corpo de Tancredo como um aleatório que interrompe o seu percurso político

e deixa em suspense o que teria sido a sua política de governo. Por conseguinte, se há algo da

ordem do segredado na relação de interação entre Itamar Franco e o povo, ninguém soube

melhor do que as mídias “revelar” os seus flagrantes. Sob a lógica da regularidade, o modo

discreto de Itamar é facilmente apreendido de forma “delituosa” pela sua distração, portanto,

297. Eric LANDOWSKI. A sociedade refletida: ensaios de sociossemiótica, p. 163.

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no trânsito do racional para o sensível. Nesse caso, “porque em política sempre foi assim,

então, é assim que deverá ser”, a regularidade simbólica dá lugar à sensibilidade perceptiva.

O corpo político que mais se aproxima da não continuidade é o de Luiz Inácio

Lula da Silva, no entanto, é também o único que, a partir da publicização midiática, vai ser

visto interagindo em todos os quadrantes. De fato, a “constelação da governança” não parece

o ponto forte de Lula, ele interage pouco sob a lógica da regularidade, como por exemplo, no

seu retrato na galeria dos presidentes (Fig. 7-b), quando cumpre o protocolo, ou seja, assume a

programação, mesmo assim com variações em relação aos demais. Reitera-se que política é

estratégia, mas em termos de regime de interação baseado na intencionalidade, a presença de

Lula na esfera da “não descontinuidade” se desvelou aqui em dois momentos bastante

pontuais: nos diálogos com Ulisses Guimarães (Fig 13-f) e com Fernando Henrique Cardoso

(Fig. 29). Nesses casos, Lula dá a ver um comportamento que faz remissão a sua competência

modal, portanto, de ordem decisional, e, como ensina Landowski, “para os quais o que agora

não é pertinente são as noções de programação e de causalidade.”298 Nessas duas situações

Lula desvela-se mais adepto ao risco limitado, o que não implica necessariamente em

segurança, uma vez que na motivação decisional, como dito, não incorrem as noções de

programação e causalidade. Caso fosse assim, seria o equivalente a afirmar a incompetência

de Lula em termos de governança, o que não parece plausível uma vez que ele esteve no

governo, não por uma mas por duas vezes, concluiu os mandatos e ainda por cima deu

sustentação a eleição de Dilma Rousseff.

A situação se torna totalmente adversa, e quase que diametralmente oposta a de

Collor, quando Lula é apreendido na dêixis da não continuidade. Nessa perspectiva, ele é um

corpo político que se dá a ver interagindo na “constelação da popularidade”, então, se o

acidente da queda dos óculos de FHC na transmissão do cargo (Fig. 21-e) e os efeitos

colaterais do câncer, outro acidente, (Fig. 35-b) eram situações potencialmente favoráveis

para instaurar o “sem sentido”, Lula subverte a situação e faz do que seria a catástrofe, a

competência estésica. É desse modo, ajustando-se às situações, no fazer sentir o outro e ao

outro, aos sujeitos do enunciado e da enunciação, que Lula se deixa apreender fazendo sentido

(Fig. 8, 17, 31, 32, 33). Posto isso, se os críticos mais conservadores foram unânimes ao

afirmar que a popularidade de um político é algo que não se transfere, há indícios para afirmar

que entre Lula e Dilma Rousseff a questão não foi de transferência, mas de pregnância.

298. Eric LANDOWSKI. Interacciones arriesgadas, p. 40, tradução nossa.

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Posto isso, a eleição de Dilma se dá a ver como resultado de uma motivação

decisional de Lula, ela se elege fazendo sentido (Fig. 34), cumpre a programação dita por ele

(Fig. 35-b e 35-c) e, ao que parece, menos competente em relações de ajustamento, realiza o

percurso elíptico dando visibilidade de uma interação da ordem a intencionalidade (Fig. 35-a

e 35-d) e se deixa apreender tendo significação.

No que tange “ter significação”, que é o regime de interação da manipulação, ou

da estratégia, sob a lógica da intencionalidade, é o corpo político de Fernando Henrique

Cardoso que irá ocupar com predominância essa dêixis. Observou-se que o político no corpo

de FHC desvela-se distintamente na motivação decisional (Fig. 15 e 29) e na motivação

consensual (Fig. 7-c, 13-a, 13-b, 16 e 21-d), aquela que, segundo Landowski, tem na

subjacência as práticas instituídas. Nessas duas formas de motivação, desvela-se a política no

corpo político do intelectual Fernando Henrique, ou seja, a competência cognitiva, que é a sua

virtú, a serviço da competência modal, cujo resultado, que talvez se possa chamar de fortuna,

permite depreendê-lo no quadrante da não descontinuidade, no ato da governança.

A postulação derradeira, cuja relevância está em consistir o resultado de todas as

análises aqui descritas, dá conta dos valores circulantes a partir da percepção do político

apreendido no palco da política brasileira. O cenário, edificado com o discurso da estabilidade

e do crescimento econômico, tanto do ponto de vista do observador daqui quanto de alhures, é

um espaço favorável para as vedetes, que oportunamente se fazem bufões, mas que só têm

sentido numa sociedade que venera a visibilidade política. Sob a égide de uma dita crise da

pós-modernidade, governados e governantes se dão a ver partícipes de um espetáculo que

cada vez oferece menos espaço entre o palco e a platéia. Essa é a fronteira cada vez mais

tênue, que faz com que o ritual pareça a mudança. Dito de outra maneira, significa acreditar,

do ponto de vista do Outro, que se ouve a música e que se dança, quando o que se celebra é a

“dança dos dervixes”, porque não é só a cena do poder, todo ato é político.

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Crédito imagens da capa:

1. João Figueiredo. Foto: Orlando Brito.

2. Tancredo Neves. Foto: veja.abril.com.br.

3. José Sarney. Foto: veja.abril.com.br.

4. Fernando Collor de Mello. Foto: Fernando Rabelo, Folha Imagem.

5. Itamar Franco. Foto: Sérgio Lima, Folhapress.

6. Fernando Henrique Cardoso. Foto: Ana Araújo.

7. Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Foto: Dida Sampaio, Agência Estado.