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O PONTO, A RETA E O CÍRCULO: SOLIDÃO, TESTEMUNHO E ARTE N’O PINTOR
DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS, DE AFONSO CRUZ
Márcia Nayane Moreira Matos
FACULDADE DE LETRAS/ UFRJ
2019
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
O PONTO, A RETA E O CÍRCULO: SOLIDÃO, TESTEMUNHO E ARTE N’O PINTOR
DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS, DE AFONSO CRUZ
Márcia Nayane Moreira Matos
RIO DE JANEIRO, 2019
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Portuguesa).
Orientadora: Profª. Dra. Gumercinda nascimento
Gonda
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O PONTO, A RETA E O CÍRCULO: SOLIDÃO, TESTEMUNHO E ARTE N’O PINTOR
DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS, DE AFONSO CRUZ
Márcia Nayane Moreira Matos
Orientadora: Gumercinda Nascimento Gonda
Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literaturas Portuguesa e Africanas de
Língua Portuguesa.
Examinada por:
_____________________________________________________________
Orientadora: Professora Doutora Gumercinda Nascimento Gonda
Presidente - Letras Vernáculas/UFRJ
_____________________________________________________________
Professora: Doutora Claudia Maria de Souza Amorim
Instituto de Letras/UERJ
_____________________________________________________________
Professora: Doutora Luciana dos Santos Salles
Letras Vernáculas/ UFRJ
_____________________________________________________________
Professora: Doutora Sofia Maria de Sousa Silva
(Suplente) Letras Vernáculas/ UFRJ
_____________________________________________________________
Professora: Doutora Mônica Genelhu Fagundes
(Suplente) Letras vernáculas/ UFRJ
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2019
4
Matos, Márcia N.M.
O ponto, a reta e o círculo: arte, solidão e testemunho n’o pintor debaixo do lava-loiças,
de Afonso Cruz. -- Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2019.
Orientadora: Gumercinda Nascimento Gonda
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras,
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa), 2019.
Referências Bibliográficas: f. 88-90.
1. O pintor debaixo do lava-loiças. 2. Afonso Cruz. 3. Literatura
Portuguesa Contemporânea. 4. Diálogo Interartes. I. Gonda, Gumercinda
Nascimento, orient. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa
de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa). III. O
ponto, a reta e o círculo: arte, solidão e testemunho n’o pintor debaixo do
lava-loiças, de Afonso Cruz.
Autorizo, para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
Dissertação.
5
SUMÁRIO:
AGRADECIMENTOS.........................................................................................................6
RESUMO.............................................................................................................................7
ABSTRACT.........................................................................................................................8
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................9
2. JOSEF SORS: O PINTOR DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS.......................................15
2.1 Josef Sors e Caspar David Friedrich: a solidão da paisagem.........................................24
2.1.1 Landschaften/ paisagens...........................................................................................27
2.1.2 O Andarilho..............................................................................................................33
2.2 Josef Sors e Mark Rothko: épica, mito e tragédia….......................…………………..43
2.2.1 Expressionismo abstrato……………………………………………………..……45
2.2.2 Multiforms……………………….……………………………………….……….47
2.2.3 Blocos de cor…………………….……………………………………….……….50
2.2.4 Rothko e a mitologia……………..……………………………………………….55
2.3 A máquina de recortar o mundo...................................................................................61
2.4 A épica de Sors………………………………………….……………………………67
2.5 O livro dos absurdos………………………………………………………………….71
2.6 O livro do infinito…………………………………………………………………….76
3 CONCLUSÃO.................................................................................................................79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................88
6
AGRADECIMENTOS:
Agradeço, primeiramente à Christina Eliza Bach, pela receptividade, incentivo e paciência. Por
sempre instigar a curiosidade e por ter me dado oportunidade e carinho sempre. Por tudo!
Ao Nicolas, por ser um irmão.
Agradeço à Luciana Salles e Mônica Fagundes, pelo acolhimento, pela força, por todo o apoio e
paciência.
À Cinda, sempre carinhosa.
À Larissa, sempre.
À Gabriella Mikaloski, Gabriela Schahin e Beatriz Christino, por sempre estarem por perto.
À Antônia, Nete, Nalva e Ray, agradeço por acreditarem que tudo pode ser possível. Agradeço à
minha avó, Raimunda Sena, pois foi com ela e seus ditados que desenvolvi a curiosidade pelos
significados contidos palavras.
Ao Billy, pela companhia de uma vida.
Agradeço à Shirley, e a toda a família Seba, em especial o Vovô e a Vovó, pelas conversas,
conselhos e suporte. Agradeço ao Roberto e à Zeile Costa, pois também foram indispensáveis
durante essa jornada.
Agradeço ao Jeff, à Amélia, Pedrita, Drisana, Ana Carolina, Isabel, Liz e a todos os amigos pelo
apoio e pelas conversas fundamentais para a conclusão deste trabalho.
Agradeço, por fim, à CAPES, pelo apoio que tornou possível este trabalho.
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O PONTO, A RETA E O CÍRCULO: SOLIDÃO, TESTEMUNHO E ARTE N’O PINTOR
DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS, DE AFONSO CRUZ
Márcia Nayane Moreira Matos
Orientadora: Gumercinda Nascimento Gonda
Área: Literaturas Portuguesa e Africanas
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requesitos
necessários à obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa e
Africanas).
RESUMO
Expressar o mundo através de imagens é uma das grandes características do artista. A forma
única de ver o mundo é o que torna um ser singular, e as vezes o afasta de uma vida social dita
“normal”. O pintor debaixo do lava-loiças (2011), de Afonso Cruz conta a história de Josef Sors,
um judeu, nascido na Bratislava, que precisa fugir durante a segunda guerra mundial, pois a
Eslováquia, na época domínio do Império Austro-Húngaro, sofria com o Holocausto. O pintor
acaba se refugiando no porão de um fotógrafo, em Portugal. O romance é baseado na história de
Ivan Sors, pintor eslovaco, ajudado pela família do autor do romance. O objetivo deste trabalho é
ilustrar os efeitos que os horrores das guerras podem apresentar na arte e no artista, para tanto,
faremos um estudo da obra, visando um mapeamento das formas de arte expressas no romance,
bem como as possibilidades de leitura e interpretação do significado da arte para este artista e, ao
mesmo tempo traçar um paralelo entre a arte do pintor do aficionado com alguns pintores reais,
como Caspar David Friedrich, conhecido por retratar a solidão como nenhum outro e Mark
Rothko, que, como o pintor de Afonso Cruz, também era judeu e precisou fugir dos horrores da
guerra. As teorias da arte de Georges Didi-Huberman e Maurice Merleau-Ponty destacam a
importância da imagem, e somadas aos ensaios sobre fotografia de Susan Sontag, e as concepções
de Roland Barthes, Rosalind Krauss e Walter Benjamin forjarão uma base para as análises
decorrentes, bem como as discussões sobre testemunho, de Jeanne Marie Gagnebin e Marcio
Seligmann Silva.
Palavras Chave: Literatura Portuguesa; Afonso Cruz, Solidão, Horror
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O PONTO, A RETA E A CÍRCULO: SOLIDÃO, TESTEMUNHO E ARTE N’O PINTOR
DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS, DE AFONSO CRUZ
Márcia Nayane Moreira Matos
Mastermind: Gumercinda Nascimento Gonda
Área: Literaturas Portuguesa e Africanas
Summary of the master’s degree dissertation submitted to the postgraduation program in
Vernacular Letters, of the Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as part the requirements
needed to obtain the title of Master in Vernacular Languages (Portuguese and African Literature
ABSTRACT
Expressing the world through images is one of the great characteristics of the artist. The
unique way of seeing the world is what makes a being unique, and sometimes distances it from
a so-called "normal" social life. The painter of Afonso Cruz tells the story of Josef Sors, a
Bratislava-born Jew, who must flee during World War II, for Slovakia, then the domain of the
Austro-Hungarian Empire, suffering from the Holocaust. The painter ends up taking refuge in
the basement of a photographer in Portugal. The novel is based on the story of Ivan Sors, a
Slovakian painter, aided by the author's family of romance. The purpose of this work is to
illustrate the effects that the horrors of wars can present in art and in the artist. For this purpose,
we will make a study of the novel, aiming at a mapping of the forms of art expressed in the
novel, as well as the possibilities of reading and interpreting meaning of art for this artist and
at the same time draw a parallel between the painter's art of romance with some real painters
such as Caspar David Friedrich, known for portraying solitude as no other and Mark Rothko
who as the painter of Afonso Cruz was also a Jew and had to flee from the horrors of war. The
art theories of Georges Didi-Huberman and Maurice Merleau-Ponty emphasize the importance
of the image, and in addition to the essays on photography by Susan Sontag, and the
conceptions of Roland Barthes, Rosalind Krauss and Walter Benjamin will forge a basis for
the resulting analyzes, as well as the discussions on testimony, by Jeanne Marie Gagnebin and
Marcio Seligmann Silva.
Key Words: Portuguese Literature; Afonso Cruz; Solitude; Horror
9
1. INTRUDUÇÃO
Cor. Muitos artistas abstratos exploraram seus efeitos, campos de cores foram justapostos e
autorizados a falar por si mesmos. As formas, por vezes, também desempenham um papel, mas
nem sempre. É com uma destreza, que chega a ser terrível, que o artista dispõe cores e tons de
forma que o resultado seja único e possa expressar, seu ponto de vista, através das composições
resultantes.
Poetas, pintores, escultores, artistas em geral, cada um compõe à sua maneira, mas a
necessidade de se estabelecer uma comunicação com o meio nos levou a desenvolver métodos de
nos expressarmos, no intuito de manter alguma ligação com mundo à volta.
A solidão é confundida com o isolamento espacial, o que nem sempre ocorre. Estar isolado
geograficamente pode acarretar uma solidão, mas nem sempre é o que acontece. Podemos ser
solitários mesmo estando acompanhados. A solidão é algo real, é a impossibilidade de dividir as
experiências, esteja o indivíduo isolado do convívio social ou, mesmo, em meio as multidões das
grandes cidades. É mister afirmar, porém, que a solidão tem seu lado positivo. Em certos
momentos e, para certos grupos é algo necessário. A menos que não se queira estar sozinho, há
uma positividade na solidão. O que está por trás dela (ou por dentro) é de uma força monumental
que, em certos contextos é a força que gera o movimento, é o impulso necessário à sobrevivência.
Os significados da solidão são modificados ao longo da história, e estão ligadas a mudanças
subjetivas de cada época. Contudo, a solidão é inerente ao ser humano, desde seus primórdios. Ao
longo da história, a solidão, ora possui caráter positivo, ora, negativo, variando, sempre, de acordo
com os valores culturais, subjetivos de cada tempo. A definição filosófica para a solidão, parte da
ideia de que:
10
“Não é isolamento, mas busca de formas diferentes e superiores de comunicação,
não dispensa os laços com o ambiente e a vida cotidiana a não ser em vista de outros, com
homens, com o passado e com o futuro com os quais seja possível uma forma nova ou mais
fecunda de comunicação. O fato de a solidão dispensar esses laços é, pois, uma tentativa
de libertar-se deles e ficar disponível para outras relações sociais.” (ABBAGNAMO, 2000,
P.918)
Na Idade Antiga, a solidão era associada a determinações espaciais, como lugares distantes
da cidade: ilhas, desertos, mares e lugares perdidos. Os crimes eram punidos pelo exílio e os
homens eram isolados de seu meio, sendo privados do convívio com suas famílias como forma de
castigo. O mesmo não ocorria com os Hebreus que viviam a experiência da solidão como algo
positivo, não a percebendo como trágica, pois como o sentido da solidão é o deserto, a
comunicação direta com Deus é alcançada.
Na Idade Moderna, a solidão era confundida com a loucura, por remeter o sujeito ao
isolamento à exclusão do meio social. Da mesma forma como os “loucos” assim eram
considerados os solitários. Era necessário tratá-los, socializá-los. Outro fato marcante deste
período da história, conforme Chaim Samuel Katz (1996, P.62) advém do mecanicismo; os
grandes pensadores do século XVIII pensavam um mundo homogêneo, excluindo, desta forma, os
isolados e os diferentes e, junto com eles, a solidão. É só a partir do Renascimento que surge a
ideia de indivíduo; o “eu” se sobrepõe ao “nós”. Tanis (2003, p.40) diz que “intimidade e discurso
sobre si mesmo, constituem um processo que adquire força expressiva e se estrutura a partir do
Renascimento.” Porém, é só a dos séculos XVII e XVIII que o homem adquire o direito de escolha
e há um delineamento claro entre as fronteiras do público e do privado. Entretanto, as
singularidades não são aceitas, e a solidão passa a ser vista como um processo negativo. Conforme
Tanis (2003), não se pode imaginar a solidão, que se apresenta na Modernidade sem fazer
referência à noção de indivíduo, pois ela se constitui a partir de suas transformações. O que se
evidencia é que o sujeito não está mais vinculado à comunidade, como antes, nas sociedades
11
tradicionais, hoje, esse sujeito é unidade isolada vinculada aos outros por sistemas de contratos.
As solidões modernas serão consequências do individualismo, como também forma de combate
ao desamparo imposto pela nova ontologia social.
Atualmente, não há espaço para a manifestação da solidão. Os meios de comunicação de
massa reforçam a ideia de que quem a sente e a vivência, está fora do circuito da
contemporaneidade, pois, bem-estar e felicidade são vendidos como soluções incríveis e mágicas
para problemas inexistentes. Através dos meios de comunicação de massa, dá-nos a ideia da
felicidade pela via da relação perfeita, idealizada. Os olhares dispensados aos indivíduos que, por
opção ou contingência, vivem só, na grande maioria são “patologizantes” ou excludentes, por
estarem estes sujeitos fora do grande circuito imposto pela mídia. Como coloca Katz (1996, p.47),
“sabe-se que no século XX há um ideal (e suas expectativas) bastante disseminado para se estar
acompanhado. Um homem sem companhia é considerado merecedor de estranheza ou da
comiseração dos outros.” Antes, os laços sociais formavam as subjetividades, papel hoje
desempenhado pela experiência da intimidade e é justamente nesse espaço que nasce um
narcisismo como um modo de organização do indivíduo. Nesse sentido, a solidão busca vias de
expressão, transformando-se em positiva como espaço necessário para criação; constitutiva,
inerente ao ser humano, e sintoma cultural, remetendo-nos à ideia de solidão negativa, e,
inevitavelmente causando sofrimento, quase como uma solidão imposta.
Para um artista, a solidão é o momento em que se pode criar, é quando se tem espaço para
encontrar a loucura interna que dará personalidade e beleza às suas obras. É o que muitas vezes
acontece na vida real com artistas renomados. A forma única de ver o mundo é refletida em sua
arte, mas não se trata, apenas, de reproduções particulares de seus pensamentos, ou de seu estado
de espirito. O que a obra de arte representa para o artista e para toda a sociedade, dentro e fora da
ficção é uma ponte entre um mundo particular e a realidade. Não afastamos o fato de que a obra
12
de arte é uma representação de mundo e de sua época, mas compreendemos que é também um
testemunho e que acaba por se tornar um monumento, uma expressão da experiência histórica de
um povo. A obra de arte é, portanto, uma forma que o artista, em sua solidão encontra para mostrar
o mundo com o seu olhar, mas de modo que não seja visto unilateralmente.
Mais que representar sua vivência e experiência, o artista captura muitas vezes
inconscientemente, momentos importantes da história. A arte aparece em momentos críticos para
não nos deixar esquecer o passado. Ao longo da história, a arte foi utilizada como forma de
resistência e luta contra o Fascismo e a Guerra e principalmente, contra o esquecimento.
GUERNICA (1937), de Picasso, talvez a mais conhecida e influente obra relatando o horror. A
rapidez com que a realidade da Primeira Guerra Mundial destruiu a esperança de um mundo
melhor, aniquilando o antigo, é ilustrada por Ernst Ludwig Kirchner, SELF-PORTRAIT AS A
SOLDIER, de 1915. Exemplos de obras de arte que representam um tempo no passado em que o
horror injustificado da guerra ceifou milhares de vidas inocentes. Jovens soldados mandados para
a morte; povos arrancados de suas casas e presos em campos de concentração e bombardeios que
devastaram cidades. Os artistas criam telas que mostram o indizível. Em alguns casos, o indizível
é o horror, em outros, a beleza, a individualidade.
É desta forma, também, que Afonso Cruz retrata um artista e a sua forma de representação
artística da arte no romance O pintor debaixo do lava-loiças, livro baseado em uma história real
e, publicado em 2011. Um dos “novíssimos” da literatura portuguesa, Afonso Cruz é, além de
escritor, músico, cineasta e ilustrador. É também um viajante nato, tendo passado por diversos
países, apresenta as culturas apreendida em suas obras literárias. Um escritor com alma de artista
representa, utilizando-se de diferentes alegorias, esse “ser só” na ficção. As transições entres os
tipos de solidão (positiva e negativa) mostram, também, a transição da infância à vida adulta de
um pintor fictício. Dividida em duas partes, respectivamente: “o livro dos olhos acesos” e “o livro
13
dos olhos apagados”, a obra trata da vida de Josef Sors, um pintor Judeu da Eslováquia, que após
diversos empecilhos viria a exilar-se debaixo da pia de um fotógrafo em Portugal, durante a
segunda Guerra mundial. E em um cenário de guerra, onde os seres humanos demonstram-se mais
sombrios, um judeu consegue ajuda para exilar-se. Um exílio que o livraria da morte, mas que o
trariam de volta às suas próprias sombras. O Exílio que liga pintores da ficção e da realidade é, na
verdade, o exílio interior, o da solidão.
A partir de um cosmos em que não há fronteiras interartes, Afonso Cruz, lançando mão do
tão português tema das viagens fazendo o percurso: Europa > América> Europa> América, agora
de um outro ponto de vista. Não há mais Índia a ser descoberta. Há a fuga da dor, a busca pelo
mínimo de dignidade que um sujeito, que condenado por ter nascido artista e judeu, poderia
conseguir. Agora a viagem é além das terras e culturas portuguesas, é uma viagem universal, na
história universal e diversas artes. Representar a solidão e a forma como ela se manifesta. Uma
linguagem simples para expressar uma realidade extremamente dura. A técnica de Cruz é mostrar
com expressões quase infantis as dores, barbáries, medos, alegrias e sonhos de jovem artista.
A solidão de ser um artista é o fio condutor que nos permitirá uma comparação entre a
trajetória de um pintor ficcional, Josef Sors, de Afonso Cruz, inspirado na história de Ivan Sors e
a obra de dois pintores reais, Caspar David Friedrich e Mark Rothko a fim de uma verificação de
como a solidão está representada nas pinturas e na literatura.
Apresento neste trabalho três artistas, o primeiro é Josef Sors, o fictício pintor apresentado
por Afonso Cruz, no romance de 2011, O pintor debaixo do lava-loiças, o ponto de partida deste
trabalho; o segundo, um pintor alemão, Caspar David Friedrich, conhecido pela forma de retratar
a solidão e por pintar a luz como nenhum outro, e um último pintor, um dos artistas mais influentes
do movimento expressionista abstrato, mas não se considerava um expressionista abstrato. Mark
14
Rothko, que não queria ser categorizado em nenhum grupo, embora fosse um dos mais
proeminentes dos artistas desse movimento.
O romance O pintor debaixo do lava-loiças, conta a história de Josef Sors, um judeu,
nascido na Bratislava, que precisa fugir durante a segunda guerra mundial, pois a Eslováquia, na
época domínio do Império Austro-Húngaro, sofria com o Holocausto. O pintor acaba se
refugiando no porão de um fotógrafo, em Portugal. O romance está dividido em duas partes: o
livro dos olhos acesos e o livro dos olhos apagados. Não se trata de um livro infanto-juvenil,
apesar de ser assim classificado. A história em si baseia-se num fato real - a família do autor
abrigou um pintor judeu em seu porão durante meses, no decurso da II Guerra Mundial - no
entanto, a vida do pintor como descrita no romance é ficcional. Jozef Sors nasce numa grande casa
do império Austro-Húngaro, filho do mordomo e de uma engomadeira. O proprietário da casa é
Möller, um coronel do exército, que também tem um filho de tenra idade e logo decide contratar
um precetor para tratar da educação de ambos. Apesar da idade aproximada e do convivío diário,
os rapazes não se tornam amigos: Wilhelm Möller é um leitor compulsivo, que considera que "a
última página de um livro é a primeira do próximo", Jozef, por sua vez, vive a desenhar
freneticamente, desde que aprendeu a pegar num lápis, não faz outra coisa senão desenhar em
papéis, paredes, terra ou até em pensamentos – que segundo ele, é onde os desenhos primeiro se
desenvolvem.
2. JOSEF SORS: O PINTOR DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS
O pintor debaixo do lava-loiças apresenta alguns elementos, como a linguagem simples e
o uso de ilustrações, - presentes em outras obras de Cruz – passam a ideia de se tratar de uma obra
15
infanto-juvenil (como está classificado na edição brasileira), porém, fazem parte de um conjunto
de características que torna as obras do autor português tão singulares.
A narrativa, em si, é baseada em um fato real - a família do autor teve um pintor judeu
escondido por meses em seu porão, no decurso da II Guerra Mundial - no entato, a vida do pintor
como descrita no romance é ficcional. Jozef Sors nasce numa grande casa do império Austro-
Húngaro, filho do mordomo e de uma engomadeira, nos finais do século XIX. O romance está
dividido em duas partes: o livro dos olhos acesos e o livro dos olhos apagados. A infância está
narrada na primeira parte, a dos olhos acesos. A segunda parte, a dos olhos apagados, conta a vida
de um Sors jovem adulto, depois de voltar da Primeira Guerra.
Filho do mordomo e da engomadeira, nasceu o pequeno Josef Sors, o pequeno artista, que
segundo seu próprio pai, parecia um rato. A parteira, ao entregá-lo a mãe “comentou que era um
belo rapaz, forte como a água do mar e saudável como a água da chuva. O olho esquerdo, que
parecia uma lua minguante, revelava quer irira ser um artista”. (CRUZ, 2011, P. 10). A mãe,
mulher simplória, pôs-se a chorar, pois segundo ela, ser artista “é a maior infelicidade”(IDEM,
P.10) . O proprietário da casa é Möller, um coronel do exército, que também tem um filho de tenra
idade e logo decide contratar um precetor para tratar da educação de ambos, como já assinalados
anteriormente. O jovem artista começou a aprender metafísica ainda aos 4 anos, em companhia de
Wilhem Möller, filho do coronel, sob a tutela de Havel Kopecky, precetor contratado pelo coronel.
Ainda nesta época, Sors apresentou sua primeira criação: a história de amor de seus pais a partir
de duas formas: primeiro, o ponto, que era como ele enxergava sua mãe, por ela ser muito baixa
e, depois a reta, que retratava o pai, “que de tão alto, parecia um linha”. Esse ato marcou o início
das obras do pequeno pintor.
Josef Sors, desenhava pedaços avulsos, partes de corpo descontínuas e carentes de um
conjunto. Sua mãe sabia, desde o momento em que ele viera à luz, o trágico destino do filho: a
solidão. Era na solidão, entretanto, que Sors se encontrava por completo, ou onde pretendia achar-
16
se. Era tentando podar as partes dispersas de si, que ganharia altitude suficiente para chegar ao
céu, disciplinar-se, para assim, tornar-se o mestre naquilo que almejava, a arte. Essa solidão é a
busca por outro modo de estar no mundo e de estar com o outro que não obedece a normas sociais
pré-estabelecidas. É buscar encontros, verdades e mimetizações diferenciais que o individualizam.
Não é um processo consciente, mas tão natural ao artista que o levam a ser visto como um louco
diante da sociedade. Essa naturalidade já se apresentava desde a infância:
Desde que aprendera a pegar num lápis, Josef não fazia outra coisa senão desenhar. Passava
horas em frente de papel pardo, papel de embrulho que a mãe lhe dava, a rabiscar casas,
flores e céus. Mas também desenhava noutros suportes, nas paredes, na terra, e, pode
afirmar-se, os pensamentos dele eram desenhos. Era a sua maneira de estar na vida. A sua
maneira de crescer. (CRUZ, 2011, P.25)
O menino aprendia com sua própria arte. Retomando o que já foi dito anteriormente sobre
a filosofia de Merleau-Ponty, as artes contribuem com o enriquecimento da experiência humana
do mundo percebido, do corpo, dos outros, da histórica e da cultura. E o menino, “devir artista”
aprendia desenhando as coisas do mundo.
A primeira coisa que Josef Sors desenhou foi uma circunferência, pois a primeira
coisa que se desenha é uma circunferência. É a forma mais natural, aquela que pode conter
tudo. É o útero de todas as formas. Dizem que um homem vendado, se lhe pedirem para
caminhar em linha reta, anda em círculos. Porque é que o homem anda em círculo quando
fecha os olhos? É um mistério: mas o homem de olhos fechados caminha para dentro. E o
tempo também se dobra, também não anda a direitos. O tempo é como o homem de olhos
fechados. No fundo anda tudo aos círculos, desde as recordações às histórias. Tudo acaba
por se dobrar um dia. (CRUZ, 2011, P. 21-22)
Usando as únicas analogias que conhecia - a de seus desenhos - é que o menino foi
crescendo capaz de entender as coisas do mundo. Por isso passou a infância com seus cadernos na
mão, a tentar depreender o mundo. Talvez não seja o que o senso comum considere felicidade o
que faz do artista um ser feliz, mas a sua visão do mundo, sua singularidade, a esperança em ter
um mundo melhor. O menino Sors fazia tudo de forma adversa, revirava-se diariamente do avesso
para assim, encontrar inspiração que lhe rendesse desenhos que guardaria na memória a fim de
17
redesenhá-los depois. Sua solidão era a chama que mantinha seus olhos acesos. Dava de ombros
quando lhe questionavam a utilidade de seu dom.
O menino Sors costumava desenhar olhos e para isso usava dois cadernos: o livro dos olhos
abertos, no qual desenhava, como o nome sugere, olhos abertos e um outro, o livro dos olhos
fechados, no qual desenhava olhos fechados. Mas ao longo da vida inaugurou outros dois cadernos
importantes, o livro do infinito, que continha partes de corpo inacabados e o livro dos absurdos,
no qual só retrataria os horrores e tristezas de sua vida.
A solidão do artista não implica, necessariamente, uma distância geográfica com relação
às outras pessoas, as ditas “normais”, mas significa habitar um estado emocional e psicológico
bem distinto do que é considerado comum. A solidão é oriunda de ambas as partes, do isolar o
diferente, mas no caso do artista é, também, do querer estar só. Essa solidão o torna um ser único
e é o seu olhar único, poeticamente transfigurado em linguagem como testemunho, que o torna
um artista. A solidão, muito além de ter um caráter exclusivamente ruim, é também algo positivo
para a capacidade criativa. Para Chaim Samuel Katz psicanalista e filósofo, “a solidão só é
negativa quando se busca companhia e não a encontra” (KATZ, 1996, P. 183), para ele, a solidão
positiva é um fator importante para a criação do artista. Andar sozinho era um ritual para o
jovem Josef, buscar ver o mundo por diversos ângulos, sempre com outros olhos. Não à toa,
inaugurou diversos livros, nos quais só desenhava olhos, mas não era tudo. Redesenhava o mundo
inteiro, de diversas maneiras:
Sors pegava nos seus blocos e caminhava pela cidade à procura de olhos para desenhar. Se
não encontrasse nenhum, desenhava árvores. As carruagens passavam por ele e Sors não
se desconcentrava. Tinha um caderno especial para desenhar as árvores que caminhavam
em Bratislava, junto às margens do Danúbio: era o livro das árvores (...) É como se uma
árvore desaguasse no céu. Nascesse na terra e desaguasse no céu. Ou se quisermos fazer o
pino (e Josef Sors fazia muitas fezes o pino), a árvore tivesse suas raízes no céu e
desaguasse na terra. Era tudo uma questão de ginástica. Era assim que Sors falava da arte.
Ou estamos a olhar as coisas de uma maneira ou de outra. (CRUZ, 2011, P. 30)
18
Em seus diversos volumes dos livros de olhos abertos e fechados estava impresso o seu
olhar sobre as coisas do mundo. Mais do que corpos, Sors enxergava a grandeza presente em cada
parte do corpo, separadamente. Talvez, daí a mania de desenhar olhos, mãos e outras partes do
corpo solitárias, sem sua completude, porém, infinitas. “Um desenho inacabado tinha uma magia
especial, era como uma prisão riscos com uma porta aberta para a liberdade” (IDEM, P. 47) . A
incompletude era sinônimo de infinitude. A solidão era estar só, mesmo quando em conjunto. A
solidão das coisas era enfatizada quando fragmentadas. A solidão de um corpo era quase visível,
quando cada parte era desenhada separada e sua força advinha do que não se pode dar forma. Do
invisível. Para Sors: “a criatividade prefere a penumbra do interior dos nossos cérebros. A vida e
a morte são feitas de coisas que não se veem, de emboscadas, de disfarces” (IDEM, 31).
O menino se revezava entre se apaixonar pela vizinha, Frantiska, que para ele reservava
apenas uma crueldade infantil e desenhar o mundo, ou redesenhar, como ilustra o trecho a seguir:
Joseph Sors perdia-se naquele mundo tanto quanto o desenhava. Tinha um caderno só para
desenhar Frantiska: era o livro do infinito.
Frantiska tinha tudo o que mundo podia conter. A paixão é o sentimento que contém de
tudo, por isso quando um homem se apaixona, dentro dele está tudo. Desde a coisa mais
pequena à coisa maior, que muitas vezes são a mesma coisa. (IDEM, P. 32)
Sors, ainda menino, já se mostra inclinado à solidão e elabora teorias para justificá-la. Era
o que ele chamava “o problema da dispersão e a lei de Andronikos relativa à árvore de Discórides”
(CRUZ, 2011, P. 31). Tal teoria influenciaria a sua forma de agir. Desde criança, o menino sonhava
em mudar o mundo e na inocente e pueril fantasia, cortar os excessos poderia fazer do mundo um
lugar melhor. Por excessos, podemos depreender os sentimentos como ódio, que faz com que o
indivíduo foque em algo negativo, como a desgraça de um outro ser, investindo em crueldade o
tempo que poderia ser usado para concluir seus objetivos. Podar-se, já que os seres humanos são
como as árvores, que não crescem de forma linear e dispersam-se em galhos e folhas, desdobram-
19
se em pés, pernas e olhos, que os impedem de chegar ao céu. O trecho seguinte ilustra a teoria
elaborada pelo pequeno artista:
Sors acreditava que qualquer pessoa, se evitasse a dispersão, poderia prolongar-se até
lugares muito distantes, não só no espaço/tempo como também na alma. Sors evitava todos
os luxos, tudo aquilo que ele determinava não ser necessário ao sustento do seu corpo (o
que ele chamava >>tronco<<). Assim, evitava comer em demasia ou comer muito pouco.
Enquanto o excesso é uma dispersão (um >>ramo<<, como chamava Sors), a carência pode
levar a morte do tronco. (CRUZ, 2011, P. 31)
Ainda na infância, perdeu o pai, um mordomo que não entendia metáforas e que por isso
fora condenado à morte. Sua mãe, não aceitando a morte do marido, enlouqueceu com o passar
dos anos. Um garoto, cujo sobrenome, Sors – sorte – não corresponde à tragicidade de sua vida.
Desenhar fazia com que ele tivesse a posse dos objetos desenhados, como o desenho para ele uma
cópia infinita. Foi assim, também, com a perda do pai. Quando não podia mais lembrar-se dos
traços do pai para desenhá-lo, sentia que o estava perdendo, agora pra sempre. O Pai se foi com
seus traços perdidos:
Josef Sors imaginou por várias vezes o pai a baloiçar pendurado pelo
pescoço. Imaginou o barulho que a corda faria, e isso fê-lo odiar Dovev Rosenkrantz.
Afinal, a culpa era das suas metáforas, daquele modo críptico que ele tinha de abordar os
assuntos mais filosóficos. Era lamentável que duas pessoas tivessem morrido por causa de
uma figura de estilo. Esse ódio que sentia por Ronsenkrantz magoou-o ainda mais pois ia
contra <o problema da dispersão e a lei de Andronikos relativa à árvore de Dioscórides>.
O ódio era uma das mais insidiosas formas de dispersão. Não o poderia permitir, ainda por
cima a uma pessoa que estava morta. (...) Frequentemente, por essa altura, tentava desenhar
mentalmente os contornos da cara do pai, mas eles começaram a desvanecer-se. O muro
riscado que era a testa do mordomo já não tinha as mesmas características. Sors tinha
dúvidas relativamente à altura da cabeça e à forma do crânio, à inclinação do maxilar, aos
riscos das rugas. E também já não tinha certeza de vários outros pormenores. Isso
angustiava-o, pois a sua capacidade de, mentalmente, desenhar as pessoas dava-lhe um
sentimento de posse dessa mesma pessoa. E agora o pai saía dos seus traços, dos seus
contornos, e tornava-se semelhante aos seus desenhos inacabados. Muitas vezes, para se
lembrar melhor do pai recorria a desenhos antigos e tinha pena de não o ter desenhado mais
vezes e em mais posições. A morte, pensava Sors, não leva só as pessoas, leva também as
imagens que os outros guardam dela nas suas memórias. A morte não deixa traços” (IDEM,
56-57)
20
O primeiro contato de Sors com a morte, com infortúnio foi com a perda do pai. Mas esta
perda só se constitui, de forma definitiva para Sors, quando ele perde a memória dos traços. O que
o pobre rapaz não tinha ideia era de que, junto aos traços da memória física do pai, o que se seguiria
era perda dos traços de sanidade da mãe. A vida do jovem pintor mudaria para sempre. Sors lidava
com o luto da melhor forma que podia, desenhava, capturava e criava no tempo, imagens dispersas
de seu pai. Sua mãe, por outro lado, não aceitou a morte do marido, de modo que colocava suas
roupas dispostas nos lugares de deveriam ser ocupados por ele, nos momentos em família. Na
mesa de jantar, no lado da cama que pertencia ao marido, inclusive, um prato a mais na mesa. A
permanência do fantasma, ocupou o lugar destinado a saúde mental da mãe. O ritual da mãe
continuou até a adolescência do jovem artista. Então chegou a guerra e Sors precisou se despedir
de sua mãe e ir para o combate.
Já nas trincheiras, o pintor passava o tempo a desenhar na lama, suspirando seu amor
secreto por Franziska. Distraído em pensamentos, Sors foi salvo de uma explosão por Matej
Soucek, de quem se tornou amigo e com quem filosofava sobre a vida:
- Para ganhar uma guerra – disse Sors – há duas condições: não morrer e não matar. È só
nesse caso que se pode sair vitorioso de uma guerra.
Matej Soucek ria-se. Estava ali sem pensar em nada e apontava para a frente, contra os
inimigos – a sua vida fazia mais sentido de cada vez que disparava.
- No final é que vamos ver, Sors. Quando isto acabar é que vamos ver que sai vitorioso”
(IDEM, P. 72)
Matej sabia que Sors não pertencia à guerra, sabia que era um artista. Sors, até o momento,
não tinha a capacidade para violência em si. A guerra acaba. Sors volta para casa do coronel, onde
ainda morava a mãe. Ao chegar, uma sucessão de fatos impulsionará a segunda fase da vida de
Sors. A mãe mantém o costume de manter a roupa do pai na cama e à mesa, junto ao terceiro prato.
Sors descobre, também, que Fanziska, seu amor secreto está noiva de Wilhelm Möller.
21
Experimentando, pela primeira vez um ódio incontrolável, Sors ataca Wilhelm e arranca sua
orelha: o livro dos olhos apagados estava à espreita. Despois destes fatos, Sors e mãe saem da
casa do coronel e Sors entra para a Academia das artes de Praga e já apresenta sinais de uma
depressão que causa, aos poucos, o apagamento de seus olhos:
Cerca de um mês após a sua primeira exposição, a dos buracos, Sors começou a
perder a visão. Na verdade, conseguia ver muito bem, mas tinha a nítida sensação de que
não conseguia ver a luz tão bem como dantes. Fazia muitas experiências com folhas
brancas para tentar perceber matrizes. Mas, a cada dia que passava, sentia-se a perder a
capacidade de perceber a luz. O que ele via, eram gradações de sombra. (CRUZ, 2011. P.
88-89)
Algum tempo depois, o jovem pintor interna a mãe em um asilo, e vai para a América,
onde está seu amigo de guerra Matej Soucek. É então que uma Segunda Guerra inaugura o livro
de olhos apagados do pintor. O acúmulo de tristezas e a incerteza do futuro da mãe judia em um
asilo, em plena Europa nazista são o suficiente para que pintor entre em uma depressão. De Volta
à Europa, o pintor descobre que o asilo em que a mãe estava foi destruído e os antigos habitantes
foram todos mortos. Tentando voltar para a América e fugir do Holocausto, Sors, encontra-se em
Portugal, fugindo de soldados nazistas. É nessa fuga que encontra o fotógrafo que lhe dará abrigo
em seu porão, e o ajudará a voltar para a América.
Para Deleuze, “escrever não tem o seu fim em si mesmo, precisamente porque a vida não
é qualquer coisa de pessoal. Ou antes, a finalidade de escrever é levar a vida ao estado de um poder
não pessoal” (DELEUZE, 1997, P.86). A escrita, a literatura, não é, segundo ele, simples ficção,
produção de entidades fictícias, personagens e situações. Tudo isso são os meios, mas não o fim
ou o superior objetivo de escrever. Não há grande literatura que seja mera questão de imaginação,
mera criação de imaginário, de “imagens” da vida. Como as restantes artes, ela é vida, mas não no
sentido de dar “uma forma (de expressão) a uma matéria vivida”, de recriar a vida real das pessoas
22
(ou do romancista) como vida imaginária. É, pelo contrário, releva Deleuze, no sentido de criar
vida, de inventar linhas de vida possíveis, de abrir à vida novas possibilidades. Mas essas
passagens ou “devires” não são expressões do vivido, não são as percepções, as recordações e as
opiniões privadas do artista transfiguradas pela imaginação e moldadas por um “belo estilo”. São
antes “visões” ou “sensações” de uma vida já não pessoal, poderes de uma vida impessoal ou de
uma possibilidade existencial distinta dos estados vividos, de cada vez a experiência de uma
alteridade, de um devir-outro como despersonalização do sujeito. A literatura que conta, afirma
Deleuze, é sempre o poder de um devir-outro ou de um devir outra coisa, daquilo a que ele chama
e veremos à frente porquê um “devir não humano dos homens”, sempre, em suma, a criação
perceptual ou afetiva de vida para lá do vivido e até do vivível. No pintor de Cruz, ao “escrever”
as imagens, o pintor narra um “devir-artista” não em busca da completude, mas da falta dela. Em
um caderno repleto de desenhos inacabados, o jovem pintor cria um mundo infinito – sublime –
que só pertence a ele próprio:
Sors tirava o caderno, O livro do infinito e desenhava as mãos de Frantiska
pousadas no colo (...) Sors desenhou essas mãos em inúmeras ocasiões. A maior parte das
vezes não conseguia completar os desenhos. Ao princípio tentava acaba-los de memória,
deitado na cama, à luz de uma vela. Mas deixou de o fazer quando percebeu que um
desenho inacabado tinha uma magia especial. Era como se fosse uma prisão de riscos –
como são todos os desenhos – mas tivesse uma porta aberta para a liberdade. O desenho
inacabado abria-se para o infinito. A parte inacabada não tinha limites e isso deixava Sors
profundamente fascinado.(CRUZ, 2011, P. 46-47)
Essa ideia da criação literária (e da criação artística em geral) como abertura ao ilimitado
ou ao infinito da vida possível, liberta da finitude da vida pessoal. A arte, consiste sempre em
“passar pelo finito para reencontrar, restituir o infinito” (DELEUZE, 1997, P. 88). A literatura – e
a arte de um modo geral – ao invés de tentar, em vão, reviver o real, faz viver o possível. A essência
da literatura não é literária. A essência da literatura, afirma Deleuze, é pintura e é música. Mas
uma pintura e uma música especiais, só factíveis pela literatura, só atingíveis pelos seus meios
(material e processo, linguagem e operação sobre a língua em que se escreve). “Uma música de
23
palavras, uma pintura com palavras, um silêncio nas palavras” (IDEM, P. 92). Trata-se de uma
pintura e de uma música espirituais, “abstratas”, através das quais a literatura produz e suscita uma
espécie de visão ou de escuta não sensíveis, talha uns olhos e uns ouvidos para o espírito.
Romancista ou poeta, o criador literário não é para Deleuze alguém que observa, que imagina ou
que recorda: é um visionário, é um “vidente” (IDEM, P. 95)
Afonso Cruz não tenta recriar a bibliografia do pintor Ivan Sors, o judeu fugitivo, no qual
a narrativa se baseia, não. Ele recria um universo único, de um artista que só pode existir na ficção,
mas que reúne características biográficas de artistas reais. Josef Sors, é ficção, é literatura e pintura,
é música. Mais importante ainda, ele é arte e é real. Um artista que gosta de deixar seus desenhos
inacabados, para que alcancem o infinito. Desenhava partes inacabadas de tudo e de todos, criava
seu próprio infinito. O desenho era também a forma de manter a memória das coisas.
Nessa fase da vida de Sors, sua ligação com a natureza ao seu redor, como isolar-se das
pessoas para ficar mais perto da natureza e da sua arte são características que o aproximam do
pintor Alemão Caspar David Friedrich.
2.1 Josef Sors e Caspar David Friedrich: a solidão da paisagem
Fora da ficção, há artistas reais que também prezam pelo “estar só”. Caspar David
Friedrich, nascido em Greifswald, no final do século XVIII, é um exemplo de artista solitário fora
da ficção. Um artista reconhecido pela melancolia de suas paisagens, Friedrich fazia mais que
simplesmente representar a acidentada geografia da Alemanha. Era seu modo de estar só com a
natureza, consigo mesmo. Pintava a luz como nenhum outro, pois para isso tinha como aliado o
seu conhecimento sobre as sombras, o outro lado, o lado invisível, porém detentor de força
suficiente para dar mais brilho e beleza às luzes de suas paisagens. Conhecia a estranheza de se
habitar os dois lados da arte.
24
Walter Benjamin, ao estudar os escritos dos românticos alemães da primeira geração,
percebeu a viabilidade de semelhante trabalho a partir das obras de F.W. Schlegel e Novalis. O
objeto principal de Benjamin, porém, era o conceito de crítica estética destes românticos, que
estabeleceram uma filosofia da arte que ofereceria uma rede de critérios para julgar as obras. Fica
no ar uma pergunta. Focar-se em Schlegel e Novalis poderia, no entanto, ser considerado um
estudo demasiado modesto e específico, no rastreamento de uma modalidade entre outras tantas
de filosofia romântica, quando a maior utilidade para o estudioso do período seria conseguir obter
uma ideia mais clara do que seja o mecanismo mental que regeu o movimento romântico como
um todo. O próprio Benjamin, prevenido contra esta possível indagação diz:
O direito de designar esta teoria como a teoria romântica provém do seu caráter
representativo. Não que todos os primeiros românticos tivessem concordado com ela, ou
simplesmente a levassem em conta: Friedrich Schlegel, também para seus amigos,
permaneceu muitas vezes incompreensível. Mas sua intuição sobre a essência da crítica de
arte é a palavra final da Escola sobre o tema. (BENJAMIN, 1993, P. 22)
O período do romantismo foi especialmente prolífico do ponto de vista de doutrinas
estéticas. Não pela vocação do homem romântico em sistematizar suas ideias; mas, pela herança
do racionalismo kantiano que legou para os alemães a primeira grande síntese filosófica sobre um
tema antes deixado de lado pelos filósofos: a estética. Sobre o romantismo, Benjamin ainda diz:
O romantismo fundou sua teoria do conhecimento sobre o conceito de reflexão, porque ele
garantia não apenas a imediatez do conhecimento, mas também, e na mesma medida, uma
particular infinitude do seu processo. O pensamento reflexivo ganhou assim, para eles,
graças a seu caráter inacabável, um significado especialmente sistemático que induz que
ele faça de cada reflexão anterior objeto de uma nova reflexão (BENJAMIN, 1994, p.32)
A reflexão assenta-se sobre o Eu. É um pensar de si mesmo em si mesmo. No entanto, as
formas intuídas e inseridas no jogo de espelhos ascendente da reflexão, no terreno prático,
prosseguem ao infinito em direção à ideia indeterminável da suprema unidade. Pois, “o fio que
une obras e artistas é o sentimento de estranhamento do mundo e o aparente exílio em relação à
25
realidade circundante. Esta criatividade nascida do vazio efetivado pela insatisfação torna-se uma
ativa busca do reconhecível, do familiar”. (BENJAMIN, 1994, P. 34)
A necessidade do reconhecimento, seja dele próprio, seja do seu mundo e da sociedade,
faziam-no querer viver este estar só e era apenas nestes momentos de solidão que sua religiosidade
germânica faziam aflorar em seus quadros paisagens vertiginosas, cruzes em meio à florestas,
catedrais, mosteiros e cemitérios em ruína, terrenos que dificilmente poderiam ser habitados, quase
desertos de presença humana. O próprio Friedrich dizia que sua pintura era “questão de disciplina
e trabalho consciente”. As poucas silhuetas que lhe habitavam as paisagens apareciam como
observadores. A experiencia epistemológica de quem encara a grandeza da natureza que causam,
até hoje, uma Stimmung única em seus espectadores. Estes observadores remontam uma
religiosidade medieval, os monges, os nômades. Testemunhas de uma atmosfera nórdica revestida
de luminosidade oblíqua, paisagens tão naturalmente imponentes que se tornam o tema principal
do pintor. Para Friedrich, paisagens quase desertas de corpos humanos, para Sors membros quase
desertos de corpos.
O conceito de Stimmung, de Hans Ulrich Gumbrecht merece, aliás, um pequeno excurso.
Apontando algumas dimensões do conceito, Gumbrecht explicita no seu Atmosfera,
ambiente, Stimmung: sobre um potencial oculto da literatura (2014, p. 13), em que sentidos o
utiliza. A primeira dessas dimensões de Stimmung tem a ver com a forma como o passado nos
atinge e como atingimos o passado. Então, nasce uma das dificuldades na tradução: uma palavra
que traduzisse o conceito teria de referir-se simultaneamente a um caráter receptor e emissor. A
segunda dimensão de Stimmung, que Gumbrecht definiu a partir da raiz etimológica, lança-nos ao
conceito, que usa em inglês, devoiceness: seria o caráter vocalizador, uma espécie de “vocidade”,
26
possibilidade de alguma coisa ser veiculada pela voz - como por exemplo, o passado ser
verbalizado por uma voz do presente. Gumbrecht recorre à expressão de Toni Morrison, “it's like
being touched from the inside”, para clarificar o “paradoxo exato” a que Stimmung se refere
(GUMBRECHT, 2014, P. 13-14). Para falar da terceira dimensão de Stimmung, o autor recorre ao
verbo alemão que origina o nome. Stimmen significa “afinar um instrumento de música”. Aqui, no
meu entender, o que se recupera é o sentido de que Stimmung teria a ver com a relação entre o
lugar onde se está (o presente enquanto presença no tempo e no espaço) e aquilo do lugar onde
não estamos (necessariamente ausência ou passado, mas que poderá passar a fazer parte da nossa
presença, do nosso presente, por força da rememoração, da confluência de relatos, de polifonias e
de harmonizações). Stimmung seria, pois, a afinação para tocar um som harmonioso, o que de novo
convoca a ideia de um som que vem de alhures e de alguém que o ouve e o repercute ou faz soar
(recuperando a segunda dimensão). A quarta e última dimensão de Stimmung liga-a Gumbrecht à
expressão alemã “es stimmt”, que tem, na língua portuguesa, o sentido de “confere”, “está
conforme”. Parece-me, então, ir ao encontro da terceira das quatro dimensões, pois “estar
conforme” é estar em harmonia; a expressão “es stimmt” como que validaria a correção de uma
relação entre alguma coisa e outra, entre o que se reconhece da e na nossa presença e aquilo que,
não fazendo dela parte, em algum momento se lhe conforma, se lhe torna integrante. As várias
dimensões de Stimmung formam o oculto potencial literário – que o autor não limita somente à
literatura e identifica ou extrai de momentos tão díspares como a figura do pícaro e a entonação
vocal de Janis Joplin a cantar “Me and Bobby McGee”.
2.1.1 Landschaften/ paisagens
Encontramos, nas obras de Friedrich e de Cruz, uma mesma sensibilidade perante a
natureza e opções estéticas semelhantes, que condicionam por um lado o tipo de percurso e de
27
perspectiva procurados pelo indivíduo e, por outro, o tipo de paisagem que ele constrói sobre a
natureza observada. Podemos considerar que, tanto na obra de Friedrich como na de Afonso Cruz,
os termos construção e composição são de fato, o que mais nos aproximam do processo aturado e
artificioso que está na origem da paisagem representada e do qual resultam a sua complexidade e
obscuridade.
Figura 1Abadia na floresta de carvalho 1808-101
A relação entre o sujeito observador e a paisagem estabelece-se em diferentes níveis. O
encontro entre ambos fundamental para a representação, uma vez que esta dependerá sempre da
existência prévia de uma contemplação, este encontro está obviamente condicionado pela forma
como o sujeito tem acesso a essa paisagem: às perspectivas, ao campo visual do sujeito e aos
mecanismos de que este dispõe para aceder ao seu sentido. Assim, concluímos ser a fronteira (meio
1 Disponível em: https://www.caspardavidfriedrich.org/Abbey-In-The-Oakwood.html
28
de delimitação e de incursão, de ocultar e de desvendar) um dos mais importantes elementos para
a construção de paisagem em Caspar David Friedrich, e Afonso Cruz , na medida em que o ato de
traçar uma linha delimitadora é sempre uma forma de seleção em que ela revela as opções do
artista.
Estas opções na obra de Friedrich revelam uma clara predominância das estéticas do
sublime e do picturesque, caracterizando-se a paisagem, de um modo geral, pela grandiosidade e
pela ideia de infinito que definem o sublime, pela variedade e pela irregularidade do picturesque
ou ainda por uma composição que tem por base ambas as estéticas.
A incursão do sujeito na paisagem, isto é, o ultrapassar das fronteiras que se colocam entre
o sujeito e a paisagem faz-se através das figuras do traveller, do wanderer e do picturesque
traveller. Elas povoam as obras de Friedrich e condicionam o tipo de paisagem a que o
público/leitor tem acesso pelas suas características intelectuais e pelos seus objetivos, transmitindo
assim uma informação mais ou menos detalhada acerca da paisagem observada e, no caso do texto
literário, emitindo ou não juízos de valor. A representação da paisagem está necessariamente
subordinada à sua recepção pelo sujeito observador e aos mecanismos de interpretação do que é
contemplado. Assim, a uma observação meramente lúdica e espontânea (a do traveller e do
wanderer) corresponde uma descrição pouco detalhada e rigorosa dos elementos naturais,
enquanto a uma observação com objetivos de carácter intelectual (a do picturesque traveller)
equivale uma descrição minuciosa e crítica da paisagem.
Da experiência que o sujeito observador retira do seu encontro com a paisagem resultam
inevitavelmente sentimentos e reações que nas obras de Afonso Cruz e de Friedrich se traduzem
num estupor que assume duas vertentes: a estética e a religiosa. Deste modo, quer nas telas de
Friedrich quer no romance de Cruz multiplicam-se os momentos de tensão, nos quais as
personagens, perante uma experiência estética e/ou religiosa marcadamente sublime, ficam
aparentemente impossibilitadas de reagir física ou mentalmente.
29
Em suma, podemos concluir que a relação que se estabelece entre sujeito observador e
paisagem nas obras de Caspar David Friedrich e Cruz é uma relação que está inteiramente
dependente de uma experiência cultural. Sendo a paisagem o fruto de uma construção humana, é
inevitavelmente um produto datado e datável. É possível, através da identificação das correntes
estéticas que predominam na construção de determinada paisagem, concluir em que momento ela
foi concebida. Apesar das inevitáveis divergências e polêmicas que marcam todas as épocas, o
fato é que existem sempre estéticas dominantes e que estas são visíveis e relevantes na obra de
Caspar David Friedrich e, é possível ver algumas ressonâncias em Afonso Cruz. O "olhar cultural"
do sujeito apresenta-se marcado pelas duas correntes estéticas mais significativas no século XVIII:
a estética do sublime e a estética do picturesque, que refletem-se claramente em duas obras onde,
mais importante do que a representação dos objetos e figuras, o que, de fato, é central é a
representação de um estado de espírito que é inerente ao sujeito observador e à própria paisagem
contemplada, um estado de espírito que é revelador da complementaridade e da cumplicidade que
caracterizam a relação sujeito observador/paisagem.
30
Figura 2 Two men contemplates the moon 1819-202
A representação das paisagens e figuras humanas não constitui um objetivo em si, não é o
objeto que constitui o tema de representação. O tema é a relação que se estabelece entre o objeto
e o sujeito, relação esta que é semelhante àquela que se estabelece entre a natureza e a arte
romântica. Deste modo, a representação do objeto (sujeito ou natureza) deve-se unicamente ao
fato de só através da representação de ambas ser possível evidenciar um estado de espírito que por
si só é imaterial e invisível. Esta ideia de que é possível representar a emanação de um estado de
espírito e o ato de o apreender assenta numa visão organicista da natureza que tem a sua origem,
conforme observa Stafford (1981, P. ), no retomar, no século XVIII, da concepção pré-socrática
da natureza como um ser vivo em todas as suas partes. Demonstrar a importância da representação
da paisagem, colocando a ênfase da análise na existência de um sentido próprio da paisagem que
2 Disponível em: https://www.caspardavidfriedrich.org/Two-Men-Contemplating-The-Moon-1819-20.html
31
justifica que lhe seja atribuído o estatuto de tema da representação artística. O sujeito romântico
como Friedrich, aceita a sua própria condição imperfeita, a variação do seu ser e a da realidade
que o rodeia e que ele apreende. Podemos, assim, compreender a atração dos românticos pelo tema
da natureza enquanto fonte inesgotável de mudança e pelo capturar do momento ou do objeto
singular. Barbara Stafford, em seu ensaio sobre a percepção da paisagem romântica diz que “ela
[paisagem romântica] basicamente residiria em uma ‘apreensão visual de objetos naturais como
solitários e notavelmente distintos’, o que levaria a uma 'categoria estética própria: a
singularidade”(STAFFORD, 1981, P. 56).
O papel do observador na construção da paisagem é fundamental em todos os níveis, na
medida em que a representação dos elementos naturais é feita de acordo com o ponto de vista do
sujeito e com o tipo de organização descritiva que este lhes imprime, nomeadamente no que se
refere à seleção dos objetos representados. A seleção dos elementos a representar ocorre como um
processo complexo que corresponde à condição cultural do autor/criador dessa paisagem. Os
elementos selecionados para a representação à semelhança do modo como são representados estão
dependentes do olhar cultural do observador, das suas preferências em termos estéticos e das
condicionantes sociais e culturais a que esse sujeito observador nunca pode ser alheio.
Em Friedrich, a posição do sujeito observador assume duas formas distintas. Por um lado,
encontramos a mais comum à pintura paisagista, que é a de um sujeito exterior à paisagem e que
a partir de um determinado ponto selecionado focaliza os elementos em seu entender mais
representativos. Um segundo tipo de sujeito observador, que deriva da posição que assume, é
aquele que, ainda que não exclusivo de Friedrich, se tornou num motivo recorrente e identificador
da sua obra: a figura do indivíduo que, de costas para nós, contempla a paisagem (Rückenfigur).
Um tipo de sujeito observador que em Friedrich não é um mero paisagista, mas sim um observador
(Schauender): um sujeito que se deleita na contemplação da natureza, numa ação cuja única
32
finalidade é a partilha de um estado de alma comum. O Schauender, como o próprio nome indica,
não tem por objetivo proceder a qualquer tipo de representação, sendo apenas alguém que
contempla o cenário envolvente. Os atos de observar e de ser observado constituem o meio e o
fim, processo e objetivo. O narrador em Afonso Cruz também nos apresenta paisagens através de
recortes. Cada capítulo é como uma espécie de fotografia, um enquadramento de cada momento
vivido por Josef Sors, numa perspectiva que lhe é alheia.
Quando Frantiska não estava a ver, quando as sombras se alongavam no fim da
tarde, Sors esticava os lábios e via a sua sombra tocar (beijar) a sombra de Frantiska.
Quando Frantiska encostava os lábios ao vidro para o embaciar e depois escrever
o seu nome, Sors, depois de ela sair, encostava os seus lábios ao mesmo pedaço de vidro
embaciado com o nome dela. Um dia o pai dela entrou na sala quando ele beijava a janela.
Quando Frantiska deixava um pedaço de comida, Sors trincava-o onde tinham
estado os lábios de Frantiska. Mastigava beijos. Engoliu inúmeros ao longo da vida.
(CRUZ, 2011, P. 34-35)
O Narrador nos coloca como o Schauender do lado de fora da narrativa, mas com a margem
de interpretações para cada recorte feito.
Ainda que Friedrich pinte plantas e montanhas, não são aquelas que estão à sua frente que
ele quer copiar, mas sim as de uma paisagem imaginária que reflita afinal o seu estado de alma,
ao mesmo tempo que coloca o espectador como participante dentro das obras. O que Sors, por sua
vez, quer é mostrar o horror oculto por paredes ou o absurdo das guerras.
33
Figura 3 O andarilho sobre o mar de neblina 1815
2.1.2 O Andarilho
3
Olhamos para uma pintura a óleo de retrato de Caspar David Friedrich, o "Andarilho acima
do mar de neblina", uma obra importante do romantismo alemão, criada por volta de 1815. Em
primeiro plano - em uma rocha em forma de pirâmide, - ele está de pé, o andarilho solitário como
uma figura de costas. Com um leve giro para a esquerda, ele olha para uma paisagem montanhosa
na neblina, olhando para o pico mais alto, que se eleva conicamente ao fundo.
3 Fonte: https://www.caspardavidfriedrich.org/The-Wanderer-Above-The-Mists-1817-18.html
34
O andarilho forma o centro geométrico e ideal da composição da imagem. Ele está no eixo
central vertical. No centro, encontram-se duas cristas montadas simetricamente, que caem
suavemente das bordas da imagem atrás para o meio. A borda e a figura de costas são fortemente
enfatizadas por cores escuras e silhuetas contrastadas com o meio e o fundo mais claros - um
dispositivo estilístico que Caspar David Friedrich costuma usar para criar profundidade espacial e
extensão. A pedra imponente é mantida em um marrom terra, casaco e calças do Andarilho: preto-
esverdeado.
Estatuária, certamente, mas não rígida e dura, numa postura solta, apoiada numa longa
bengala. Perna e panturrilha são colocados um atrás do outro, o braço direito está apoiado no
quadril. Em sua mão esquerda, pouco visível, ele segura o chapéu, que ele desenhou
reverentemente.
Nenhuma bagagem cobra o homem, nenhum saco, nenhuma mochila que ele tenha levado.
Nenhum alpinista altamente orientado para o desempenho está à nossa frente. Vestido como os
excursionistas da cidade, cujos cabelos podem indicar os esforços desconhecidos da ascensão. Ele
fica parado e atônito, ele olha e considera a paisagem montanhosa. Ele olha e goza, ele gosta da
visão, do panorama, da visão geral. Permanece em suspenso em que hora do dia ele fica lá: seja
de manhã ou no começo da noite. O andarilho está tão disposto na rocha que nenhuma outra pessoa
teria espaço ao lado dele. Onde ele está, só ele pode ficar de pé. Em outras palavras: uma solidão
desejada e desejada é apresentada.
O primeiro plano escuro contrasta com o restante da imagem: o meio mais brilhante e o
plano de fundo, uma paisagem montanhosa ampla e em forma de rocha que se projeta das nuvens
rodopiantes de neblina. É possível reconhecer as formações inspiradas nas Montanhas de Arenito
do Elba na Suíça Saxônica, uma nebulosa cadeia de montanhas perdida ao longe, superposta por
um céu alto, pacífico e protegido. Estamos ao pé da plataforma rochosa e olhamos para o
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caminhante. Devemos e podemos - respeitosamente – identificarmo-nos com ele. Uma figura de
costas é uma figura de identificação. A face da figura permanece invisível, porque uma forma
exemplar deve ser mostrada, não o indivíduo. A figura não revela sua identidade e, portanto, nos
permite entrar com mais facilidade. Seu anonimato afirma a generalidade do conteúdo da imagem
ideológica. O andarilho, um cavalheiro de cidade pequena do início do século XIX, é adicionado
ao nosso tempo. Nós somos o andarilho, ou, pelo menos somos autorizados a ser.
Embora Caspar David Friedrich não tenha inventado a figura de fundo na história da arte,
ele desenvolveu uma estilística enfática. A Rückenfigur parece distanciada do espectador. É
precisamente assim que ela define a linha de visão à distância, no essencial, no que vale a pena
olhar: a natureza infinita em sua beleza sublime. Friedrich viu na natureza uma revelação divina.
Não precisamos compartilhar essa religiosidade pessoal do pintor para que seja possível inspirar-
se na magnificência de sua arte. Mesmo sem abraçar seu panteísmo e descobrir na paisagem um
reflexo do divino, podemos reconhecer e aceitar a ideia da imagem. Não só a natureza é mostrada,
mas também a contemplação da natureza, que por sua vez é considerada por nós. A natureza e os
seres humanos são tematizados em seu relacionamento mútuo.
Embora o homem seja minúsculo em relação à natureza infinita, ele é a única entidade viva
que pode enfrentar a natureza de uma maneira autoconfiante, sem ferir o fato de que ele é e
continua sendo uma parte da natureza. Caspar David Friedrich ilustra como um viajante se separa
temporariamente da sociedade humana, deixa de lado o trabalho orientado para o emprego por um
curto período de tempo e, como indivíduo separado, encontra a natureza solitária.
Sobre o afloramento rochoso, ele descobre e alimenta a natureza como um espaço de
experiência humana - em contemplação silenciosa e diálogo mudo. Nesta posição aliviada e sem
ação de ver, desfrutar, pensar na natureza. A natureza expressa uma possibilidade especificamente
humana. Nenhuma outra entidade viva vê e desfruta e considera o mundo como um todo. A
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marmota se endireita, olha em volta e assobia para avisar seus companheiros contra os predadores.
A girafa estica o longo pescoço para comer as folhas e os frutos das altas árvores da savana
africana. Sozinho, o ser humano se orienta - ereto e em pé - olha ao redor e olha para o novo céu
e as estrelas ganancioso. Se a referência do mundo animal é sempre fragmentária e sempre
relacionada à reprodução, então o homem também reconhece a natureza como sendo um todo, sem
ter que buscar benefício imediato. No homem, a natureza olha para si mesma, na natureza, por um
curto período de tempo, a natureza se torna consciente de si mesma. Nesta curiosidade reflexiva
aparente, porém não inútil - é a posição pertencente ao homem no reino da vida.
É claro que a experiência requer necessariamente atividade ativa, a ascensão. No caminho
árduo, o caminhante deve tomar cuidado especial para onde está indo, para que ele não tropece
nem caia. Nós vemos: o caminho é não o objetivo. Por que estamos procurando cúpulas? Porque
há lugares preferidos e favoritos no mundo, lugares de poder que nos inspiram. O caminho leva
através do nevoeiro para a luz, através da confusão para a clareza - uma visão que combina
romance e iluminação. Quanto mais clara a visão, mais clara é a percepção de que uma experiência
de cúpula não é um senso completo de realização. Por mais estimulante, libertador e edificante
que seja deixar as névoas embaixo e permitir a visão livre de todos os lados, são tão inconfundíveis
os três limites naturais de cada experiência da cúpula: a brevidade da oportunidade de
permanência; a proximidade do abismo; a quantidade de outros picos alcançáveis e inacessíveis.
Nesse sentido, a experiência do topo é em si ambivalente: é extraordinária, mas não um triunfo,
não há um vencedor estabelecendo uma pose. Depois de alguns minutos, podemos supor com
segurança que o Andarilho de Friedrich deixará seu ponto de vantagem e iniciará a descida. Antes
do anoitecer, ele terá retornado fielmente ao colo de sua família na cidade. Uma cúpula não é um
lugar para perseverar. Do seu ponto de vista muito alto, ele reconhece sua própria pequenez, ele
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entende o frágil, fragmentário, episódico da existência humana. Sua experiência na cúpula não
leva à perda da realidade, mas ao aumento da percepção da realidade.
Pouco acontece na imagem. Um andarilho fica sozinho em uma pedra e olha para a
paisagem. Nuvens de neblina passam. A imagem transmite paz e serenidade, um símbolo clássico,
não uma imagem de evento. E ainda assim não é entediante. De todos os pintores do romantismo
alemão, Caspar David Friedrich é o que mais fascina os espectadores. Ele foi um dos primeiros a
pintar nevoeiro, névoa em todos os formatos. Transições nebulosas entre o dia e a noite, a magia
do crepúsculo, estados limbo atmosféricos, humores sutis de todos os tipos (com e sem luar)
caracterizam a estética sutil do mestre de Greifswald.
Ele evita o aconchego e é estranho à alegria narrativa anedótica. Ele mostra imagens da
solidão humana em que a experiência da felicidade e o risco de cair estão próximos. Nesta
modernidade pouco sentimental de Caspar David Friedrich, nos encontramos novamente. O visual
também é extremamente moderno e do topo do mundo, nós, filhos do século XXI não é nada
incomum. Por muito tempo, no entanto, essa visão de cima foi negada e proibida para as pessoas.
Esse olhar era considerado a prerrogativa dos deuses abençoados ou do deus criador. A imersão
do seu andarilho ajuda-nos a aprofundar os nossos sentimentos, a alargar a nossa consciência, a
realçar o nosso gosto. Eles não nos explicam como é, hoje, na turbulência do nosso tempo, viver
concretamente. Mas eles nos mostram que a solidão - escolhida ou imposta por si mesmo - é um
elemento duradouro da existência humana. Como eu conheço esses dois símbolos, imagens
devocionais, imagens de programas, não quero mais perdê-lo.
Georges Didi-Hubermann, em o que vemos o que nos olha (1998) uma espécie de fábula
filosófica da experiência visual vai sendo construída a partir de duas constatações: primeiro, as
imagens são ambivalentes e isso causa inquietação; e depois o ato de ver sempre nos abrirá um
vazio invencível. Didi-Huberman detecta duas atitudes possíveis do que fazer diante deste “vazio”
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que nos inquieta: primeiro, a do homem da crença - que vai querer ver sempre alguma coisa além
do que se vê; e uma segunda, a do homem da tautologia - que pretende não ver nada além da
imagem, nada além do que é visto. Essas duas atitudes, que são interpretadas como formas de
‘recalcar’ a ausência sustentada pelas imagens, formam ‘alegorias’ das abordagens que
tradicionalmente construíram o saber sobre as obras de arte. Para o autor somente uma
“experiência visual aurática conseguiria ultrapassar o dilema da crença e da tautologia”(DIDI-
HUBERMAN, 1998, P 169).
O pintor de Afonso Cruz, quer mudar o mundo através da arte, queria mostrar o invisível.
Daí a insistência dos seus livros de olhos - abertos e fechados. De fato, Sors reflete neste excerto
um desejo de representar algo que está para lá da simples representação do observado. O mundo
repleto de homens de crenças e homens de tautologia, o artista toma para si a tarefa quase
impossível de tentar provocar a “experiência aurática” a partir do inusitado. Em sua primeira
exposição, o pintor quer dar corpo ao invisível, a partir de uma conversa com um companheiro de
curso, sobre a arte ser incapaz de mudar o comportamento das pessoas e de prover qualquer tipo
de mudança na sociedade que Sors decide fazer da arte invisível, algo público:
Foi precisamente nessa altura que Sors fez sua primeira exposição. Pintou cerca de duas
dezenas de quadros que pendurou pelas ruas do bairro judeu de Praga. As pinturas
representavam um buraco na parede e através desse buraco na parede via-se uma cena
quotidiana. (...) Sors tinha pintado, dentro dos buracos, cenas da vida quotidianas, coisas
banais (mas por vezes terríveis, pois as cenas banais que existem dentro das paredes são,
muitas vezes, crimes). A arte serve para ver o interior das coisas, disse Sors. Atravessar as
paredes e mostrar aquilo que não se vê, o que está escondido (CRUZ, 2011. P.88)
Sors queria mostrar o invisível, mostrar que é possível ver além do que está dado, não se
conformava com uma realidade estática, com senso comum. A nós, observadores da paisagem, os
espectadores, cabe a busca pela experiência aurática em contato com objetos do dia-a-dia. É o
convite do artista para o espectador de entrar em seu mundo e revirar-se, como o artista para
enxergar o novo em objetos banais. Pois o que está evidenciado neste museu, não são os objetos
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banais, mas as experiências evocadas por eles. É a nova representação do natural. O artista não
pinta paisagens da natureza, pelo contrário, dispõe objetos naturais ao nosso cotidiano como foco,
obrigando o espectador a olhar sob uma nova luz para o que está dado como banal. A evocação do
sublime pelo banal.
A forma narrativa que Cruz apresenta a arte também nos leva a pensar além do que está
dado. O pintor aprende tudo através de metáforas, de forma irônica, e contrária à vida vivida pelo
pai, que morreu, como já comentado anteriormente, por não entender essa figura de linguagem.
Cruz nos coloca diante de cenas abertas a interpretação. Nos coloca como observadores, que em
pontos estratégicos, influenciam, de acordo com o nosso conhecimento de mundo, as
interpretações de cada passagem do romance.
A ironia não é tema novo na literatura, pelo contrário. A ironia romântica se revela como
uma atitude de espírito presente em toda parte, perpassando as mais diversas formas de
exteriorização literária. Porém, enquanto, em Sócrates, o debate de ideias ocorria com um
interlocutor "real", na ironia romântica, o artista reflete por meio do diálogo consigo mesmo, no
interior da obra de arte literária. Como sentido artístico da vida, a ironia exige um elevado
discernimento do jogo entre seriedade e brincadeira, assim como a lucidez e a clareza de
consciência para reconhecer que há sempre algo de indizível e de incomunicável na comunicação
humana.
A ironia aqui, funciona como o Witz do romantismo alemão, que aparece em um primeiro
momento nos fragmentos de Friedrich Schlegel entre os anos de 1798 e 1800 e está ligado ao
entendimento estético, e que Walter Benjamin vai retomar, em o conceito de crítica arte no
romantismo alemão. O Witz é apresentado na terminologia filosófica como “um instante na
reflexão crítica sobre uma obra de arte onde se dá o conhecimento súbito”. O Witz desempenha
na obra uma iluminação de diferentes níveis: semanticamente, aparece na obra como as figuras de
40
estilo da subitaneidade, ou como parabase, a ruptura que autoexplica a obra. Witz,
etimologicamente, seria uma variação do verbo wissen (saber), e representado pela metáfora da
luz. O termo original Witz mantém uma relação sonora com Blitz (relâmpago), é o saber que aflora
à consciência subitamente, como um lampejo, uma iluminação repentina da cena. Witz/Bliz
constituem-se em um par conceitual, ou seja, a sonoridade dos termos permite um câmbio visual
e fonético que vem ao encontro das possibilidades semânticas, concebendo, assim um par de
opostos.
O estado de espírito liberal, na terminologia schlegeliana, que sabe da necessidade
irrevogável de comunicação total, mas também da impossibilidade de sua realização, busca através
da ironia romântica se distanciar de um assunto, de modo a poder voltar a ele, alcançando-se acima
de sua própria criação para se expressar com a lucidez [Besonnenheit] necessária. Ao propiciar o
distanciamento estético do artista em relação à sua obra, a ironia torna-se um elemento
fundamental para a criação literária, pois, para poder escrever de forma razoável sobre
determinado assunto, "[...] é preciso já não se interessar por ele; o pensamento que se deve exprimir
com lucidez já tem de estar totalmente afastado, já não ocupar totalmente alguém" (SCHLEGEL,
1991, p. 25). Instrumento e agente da reflexão metacrítica que ocorre com o distanciamento
estético, e, ao mesmo tempo, necessária para que o poeta-filósofo possa realizar o movimento
simultâneo de entrar e sair de si, a ironia romântica representa a possibilidade de autolimitação na
obra literária. Como pressupunha a elevação dos interlocutores acima do tema escolhido, de
maneira a possibilitar a observação de uma questão a partir de diversos ângulos, ela leva
igualmente em consideração o fato de que "[...] a maioria dos artistas seria capaz de se elevar
acima de suas próprias obras" (SCHLEGEL, 1991, p. 33). Atuando como elemento interno
organizador que possibilita a ação recíproca entre a reflexão metapoética do autor e a
exteriorização literária objetiva, o jogo irônico torna-se significativo para o processo de criação,
41
porque favorece um locus privilegiado, a partir do qual o artista pode contemplar a obra e o ato de
criação. O referido caráter acósmico de Sócrates, isto é, o fato de não pertencer a lugar algum e,
ao mesmo tempo, a todos os lugares, é assimilado pelo crítico, que considerava que a ironia poderia
estar em toda parte ou em lugar nenhum. Tal constatação levaria Schlegel a pensar que "[...] ela já
se instalou na própria língua" (SUZUKI, 2007, p. 180)
Em o pintor debaixo do lava-loiças, a exemplo de outros romances portugueses, a ironia
está instalada no processo de composição. O horror retratado em uma linguagem “simples” e
fluida. Um homem que odiava violência, ser condenado a morte por cometer assassinato. Ainda
mais irônico é o fato de que o ato só foi cometido para tentar evitar uma possível tragédia:
A certa altura, o mordomo acordou enquanto o coronel gritava para Rosenkrantz (na
tentativa de se fazer ouvir acima dos roncos) apontando para o tórax do amigo: o que tens
no peito (o coronel referia-se ao coração humano) é a arma mais mortífera de todas. É a
pedra com que Caim matou Abel.
O mordomo, que era incapaz de compreender metáforas, ficou muito perturbado ao ouvir
isto e, depois de ter voltado a servir as chávenas do coronel Möller e Dovev Rosenkrantz,
foi para o jardim. Caminhou um pouco para apanhar ar e chegou mesmo a vomitar, pois
tinha o estômago todo embrulhado. Uma arma perigosa, pensava ele enquanto limpava a
boca com o pano que trazia sempre no bolso.
Ao pôr do sol, o mordomo ainda andava na rua, de um lado para o outro,
visivelmente incomodado com arma de que ouvira falar. Aquela pedra tão perigosa era a
arma mais mortífera, era a primeira pedra, a raiz de todas as armas. Foi com ela que caim
matou Abel.
O mordomo esperou que Dovev Rosenkrantz saísse da casa do coronel, e seguiu-
o. Era de noite e, numa subida, enquanto Rosenkrantz parou para tomar fôlego, o mordomo
atirou-o contra a parede. O homem bateu com a cabeça e o mordomo revistou-o à procura
da arma. Rosenkrantz apenas apontava para o coração do outro e para o seu, querendo dizer
que não era essa a tal pedra, mas o mordomo não percebia metáforas e continuou a abaná-
lo contra o chão. Um homem que passava por ali tentou ajudar o pobre Dovev Rosenkrantz,
mas era tarde de mais, já estava morto.
O mordomo foi finalmente manietado e levado preso. E apenas se lamentava pelo
facto de não ter encontrado aquela arma tão perigosa, que precisava, com urgência ser
destruída.
- Revistem-lhe o peito – gritava ele enquanto o arrastavam para o comissariado -, revistem-
lhe o peito. (CRUZ, 2011, P. 53-54)
A linguagem somente aparenta ser “simples” e se mostra duramente poética. É o alicerce,
que aparenta certa fragilidade diante do peso do significado das palavras que suporta.
Propositalmente, Cruz aplica uma metáfora através da metáfora, e só é possível rir, na tristeza de
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entender que estamos sós. Personagens únicas, com características únicas. Um não entendia
metáforas, portanto não entendia ironias, nem mesmo a poesia. Ironicamente, a família Sors, teria
tudo, menos sorte. A personagem sacrificada, Dovev Rosenkrantz (coroa de rosas) remete, de certa
forma, ao Cristo, sacrificado por representar um perigo, por ser a arma do povo contra os tiranos.
Mas ao contrário do que se passa na bíblia, o mordomo não matou intencionalmente, matou por
incompreensão. Não entendia que era o que se passava dentro do peito, afinal, mais perigosa de
todas as armas, e foi o homem que criou a arma quando elas não existiam. Há, portanto o duelo
entre irmãos: Caim, que matou seu irmão, Abel, por não compreender a preferência divina; O
mordomo, que matou um outro homem para se livrar de uma possível arma, com a intenção de
prevenir futuras mortes, acabou por provocar também a sua. Como na bíblia, o assassino de irmão
recebe a marca da condenação. Caim recebeu a mancha na testa e o mordomo, a pena de morte. A
ironia sempre foi a forma de dialogar com o passado e de lidar com a realidade dura e pesada
demais.
43
2.2 Josef Sors e Mark Rothko: épica, mito e tragédia
4
Nascido na Letônia em 1903, sua família emigrou para os Estados Unidos mais tarde,
quando ele tinha 10 anos, onde cresceu. Ele estudou na Yale e na New School of Design em Nova
York. Rothko teve sua primeira exposição individual no Museu de Arte de Portland 30 anos após
seu nascimento em 1933. Em 1938 ele se tornou um cidadão americano. Aos 20 anos, ele descobriu
a arte, mais precisamente pintando, para si mesmo.
Um dos artistas mais influentes do movimento expressionista abstrato não se considerou
um expressionista abstrato. Mark Rothko não queria ser categorizado em nenhum grupo e não se
considerava parte dos expressionistas abstratos, embora fosse um dos mais proeminentes dos
artistas deste movimento. Rothko encontrou seu caminho para o expressionismo explorando o
4 Disponível em: https://www.flickr.com/photos/35237104136@N01/4787461948
Figura 4 sem título, 1958
44
passado, procurando desesperadamente uma maneira de se expressar em seu mundo sombrio. Na
progressão de suas obras, pode-se ver a influência de Rothko mover-se dos gregos à primordial
expressão de liberdade. Ele trocou suas figuras e mitos por formas e cores. Mark Rothko era um
homem sensível e nervoso que não se saía bem no tumulto de sua vida. Seu único consolo era sua
arte, que ele continuou a alterar e aperfeiçoar até o momento de sua morte.
Emergindo de influências surrealistas e tendo raízes profundas na mitologia, o
Expressionismo Abstrato não emergiu de forma rápida; muitos artistas estavam explorando temas
primitivos e origens biomórficas para escapar da realidade de sua situação no mundo. No entanto,
essas influências logo deram lugar à ideia de que a arte é uma expressão, e a experiência da arte é
a experiência de criar o próprio trabalho. Representações e símbolos desaparecem enquanto
formas e cores são usadas como mídias. A Arte abstrata. O artista experimentou cores, justapondo-
as, deixando-as desdobrar seus efeitos. O espectador interage com o trabalho através de sua
percepção. Rothko foi um dos artistas mais importantes do século 20 e é também uma das
personalidades mais interessante. A pintura abstrata é um conceito de grande alcance na história
da arte que designa composições sem forma e formas abstratas compostas de cores, linhas,
contrastes e formas geométricas. Desde cerca de 1910, a pintura abstrata tem sido continuamente
desenvolvida. A criação artística não deve mais representar o mundo real e estar ligada ao estilo,
o objetivo da apresentação agora, era reproduzir a própria realidade e sentimentos da própria
imagem e separar-se da aparência externa, isto é, abandonando completamente a imitação da
natureza e da realidade. Devido à abstração e à rejeição de um conteúdo, os pintores desafiaram o
espectador e o convocaram à uma nova percepção e realização de pensamento.
2.2.1 Expressionismo abstrato
45
O período do pós-guerra foi confuso e deixou os artistas com uma incerteza sobre o
seu lugar no mundo da arte. Gottlieb, Rothko, Still e alguns outros eram considerados pouco
mais que estudantes promissores, mas pouco sofisticados, do modernismo europeu. Segundo
os relatos dos jornais, o trabalho deles era grosseiro e inacabado, e seus estilos abstratos
haviam se revelado numa idade tão avançada que havia pouca esperança de uma originalidade
madura e rica. Os artistas americanos estavam emergindo de sua preocupação com os temas
sociais da era da Depressão e foram confrontados com a conquista do modernismo
internacional que os intimidou por sua completude. No entanto, em uma atmosfera de crise
social do pós-guerra, surgiu um novo movimento artístico na cidade de Nova York; uma das
novas energias nativas e confiança. Um clima de descoberta contínua era mudar o caráter da
pintura americana, e esse episódio é um dos desenvolvimentos mais fascinantes e vitais da
vida cultural americana do século XX. Os estilos de assinatura da nova arte incluíam
elementos primordiais de cor, energia e atmosfera. Os artistas responsáveis pela nova e
original arte americana do pós-guerra foram chamados expressionistas abstratos, a escola de
Nova York, ou pintores de ação. Nenhum dos termos é inteiramente adequado, mas tomados
em conjunto referem-se a certos aspectos característicos da obra em evolução dos artistas: a
conexão de elementos construídos e fluidos de forma abstrata com intensa emoção pessoal; o
reflexo oblíquo de um local metropolitano, de sua energia, dinamismo e degradação humana,
sua confusão visual e ordem funcional e asséptica; e mais significativamente, o conceito da
obra de arte como ação libertadora e vital em que o artista está comprometido com sua
personalidade total.
Os principais líderes do novo movimento da pintura foram Jackson Pollock, Willem de
Kooning, Clyfford Still, Rothko, Arshile Gorky e Hans Hofmann, entre outros. Esses artistas
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abandonaram o conteúdo mítico e primitivo em favor de expressões puramente abstratas, pois
descobriram novos recursos para a pintura na elucidação do ato criativo como conteúdo expressivo
primário. Houve uma mudança de ênfase do que estava ocorrendo na mente do artista para a
imagem que estava sendo desenvolvida sob sua mão. Seu trabalho incorporou um novo sentido do
tempo, insistindo que a pintura fosse experimentada com urgência como uma ação unificada e um
evento concreto imediato. Portanto, a pintura passou a simbolizar um incidente no drama da
autodefinição do artista, em vez de um objeto a ser aperfeiçoado ou uma estrutura feita de acordo
com as regras prescritas. O termo "Action Painting", portanto, implica em engajamento e
libertação das ideias de método e estilo recebidas. Enquanto Rothko é considerado o mais original
dos artistas abstratos pioneiros, ele nunca se considerou parte do movimento e nunca quis
categorizar a si mesmo ou seu trabalho como Expressionismo Abstrato, ou qualquer outro termo
usado para descrever este período da pintura Americana. Sua autoimagem como artista não era a
de um solucionador de problemas formal ou de um expressionista auto revelador, mas de um
vidente contemporâneo que, sob a autoridade da voz interior, visualiza e revela novas verdades
sobre o drama humano. O estilo entre os expressionistas abstratos estava estreitamente alinhado
com a individualidade, e o motivo da assinatura de Rothko consistia em duas ou mais nuvens de
cor retilíneas em uma tela vertical.
2.2.2 Multiforms
47
5
Em 1946, Rothko começou a questionar o papel de suas figuras mutiladas, híbridos de animais e
humanos e formas primitivas. Ele decidiu que referências específicas à natureza e à arte existente
conflitavam com a ideia do "Espírito do Mito", ou o que ele começou a chamar de "experiência
transcendental". A experiência transcendental gerada pela criação e apreensão da arte é análoga
àquela gerada pela religião. Porque tal experiência é “real e existente em nós mesmos”
(QUATMANN, 2005, P. 76) é intensa, dramática e humana; chama a atenção para a morte. Como
outros artistas em sua geração, Rothko lutou com distinções categóricas entre abstração e
representação e sua ambição de investir arte não-figurativa com conteúdo transcendente que
5 Disponível em: https://nga.gov.au/Exhibition/ABSTRACTEXPRESS/Default.cfm?IRN=110509&BioArtistIRN=20312&mystartrow=13&realstartrow=13&MnuID=SRCH&ViewID=2
Figura 5 sem título, 1948
48
rivalizaria com o papel elementar de mítica e ritual na cultura arcaica. Os assuntos convencionais
seriam substituídos pela experiência auto transcendente de Rothko, revelada através da arte,
pintura, e a expressividade inerente da cor. No final da década de 1940, associações figurativas e
referências ao mundo natural desapareceram das pinturas de Rothko.
Os elementos lineares foram progressivamente eliminados, pois as manchas de cor
organizadas de maneira assimétrica tornaram-se a base de suas composições. Ele sustentou que “a
eliminação de todos os obstáculos entre o pintor e a ideia e entre a ideia e o observador” (IDEM,
P. 73) permitiria ao espectador uma melhor compreensão do trabalho e, portanto, permitiria ao
artista alcançar clareza. Em seu manifesto no New York Times, Rothko e Gottlieb escreveram:
“Nós favorecemos a expressão simples do pensamento complexo. Nós somos pela grande forma
porque tem o impacto do inequívoco. Desejamos reafirmar o plano da imagem. Somos para as
formas planas porque elas destroem a ilusão e revelam a verdade” (IDEM, P. 74). Em 1947,
Rothko praticamente eliminou todos os elementos do surrealismo ou mítico de suas obras, criando
composições não-objetivas e formas indeterminadas.
Os elementos visuais de luminosidade, escuridão, espaço amplo e contraste de cores
estavam ligados, por Rothko, a temas como tragédia, êxtase e o sublime. Ele também parou de
fazer o título de suas obras em grande parte, usando números ou cores para distinguir um
trabalho do outro. Com o abandono das linhas, ele também deixou a explicação, afirmando que
"o silêncio é tão preciso". Ele temia que as palavras apenas paralisassem a mente e a imaginação
do espectador. Ele tinha uma convicção crescente de que as palavras não poderiam substituir as
pinturas de um pintor. Juntamente com Clyfford Still, ele começou a fazer uma questão sobre a
inutilidade das palavras e a trivialidade da crítica de arte. Seu desafio ao que eles viam como a
vulgaridade do mundo da arte é sugerido em todo o final dos anos 1940, tornando-se mais
arrogante nos anos 1950. Em suas multiformes, que foi o termo usado para descrever suas
49
pinturas de 1947-1949 para distingui-los de suas obras posteriores de composições semelhantes,
Rothko contava com grandes formas para transmitir estados emocionais. Bordas suaves e
indistintas, formadas por tinta encharcada na tela e contornos esbranquiçados ao redor das
formas, substituíam as personalidades contorcidas dos primeiros motivos biomórficos. Ele
sentiu o borrão de demarcações desalojaram as formas, fazendo com que elas pairassem. Rothko
criou uma nova técnica de dissolução da pasta colorida em lavagens finas, deixando a tela
exposta e esteticamente ativa. Essa técnica influenciou uma nova direção significativa da pintura
abstrata. Ele foi capaz de fundir as formas com a planicidade e o formato da tela com seus
pigmentos diluídos, usando principalmente esponjas e trapos para permitir que a tinta sangrasse
e borrasse adequadamente. Às vezes, a tinta pode ser vista subindo pela superfície; isso ocorre
porque o artista muitas vezes inverte uma imagem enquanto trabalha nela, às vezes mudando a
orientação final em um estágio final. Ele gostou de como esse método transformou sua tela em
um campo de unidade total, espalhando retângulos nas bordas da tela para criar uma inteireza
de seu trabalho. Seu amor pela cor fina e radiante e sua convicção de que a cor constituía um
meio autosuficiente, poderoso o suficiente para expressar qualquer ideia ou emoção, permitia a
Rothko criar obras que expressassem sua visão transcendental. Seu trabalho começou a revelar
uma maior amplitude de composição e escala e uma maior atenção à cor. Ele também começou
a exibir suas pinturas sem o “confinamento” de molduras.
50
62.2.3 Blocos de cor
Perto do final de 1949, Rothko progrediu de suas lavagens irregulares de cor, achando-as
muito difusas e à deriva. Ele havia introduzido um formato de composição que continuaria a
desenvolver até o final de sua carreira. Ele reduziu suas antigas áreas amorfas em alguns retângulos
suavemente pintados e afiados de cor atmosférica, simetricamente dispostos, um acima do outro
em um campo vertical mais opaco. Nestas obras, grande escala, estrutura aberta e finas camadas
de cor combinam-se para transmitir a impressão de um espaço pictórico superficial em que a cor
atinge uma luminosidade sem precedentes.
Em 1950, Rothko reduziu o número de retângulos flutuantes para dois, três ou quatro e os
alinhou verticalmente contra um fundo colorido. Este era para ser conhecido como o seu estilo de
6 Disponível em: https://magazine34.wordpress.com/2012/04/01/documentario-de-simon-schama-ensina-a-ver-rothko/
Figura 6 Sem título, 1949
51
assinatura, e a partir deste momento, ele iria trabalhar quase invariavelmente dentro deste
formato, sugerindo em inúmeras variações de cor e tom uma gama surpreendente de atmosferas
e humores. Em seus grandes retângulos flutuantes, ele explorou o potencial expressivo de
contrastes e modulações de cores. Essas pinturas do início da década de 1950, muitas vezes
referidas como seu estilo "clássico", são caracterizadas por dimensões em expansão e um uso
cada vez mais simplificado da forma, matizes brilhantes e amplas e finas tonalidades de cor. As
abstrações foram ao mesmo tempo sem precedentes e o culminar de um longo desenvolvimento,
antecipado não apenas pelas abstrações que imediatamente as precederam, mas fundos em faixas
dos quadros surrealistas e até por sua insistente regularidade de suas cenas de metrô dos anos
trinta.
Durante este período, as pinturas de Rothko aumentaram drasticamente em tamanho. Ele
escalou suas telas para o tamanho humano, pretendendo que as obras envolvessem o espectador,
não para serem "grandiosoas", mas para ser "íntimas e humanas". Em uma palestra no Pratt
Institute, Rothko disse à plateia que “pequenas imagens… são como romances; grandes fotos são
como dramas em que se participa de um direto caminho. Ele desejava uma intimidade com sua
‘grandeza’” (QUATMANN, 2005, P. 82). Seu objetivo era destacar observadores de seu ambiente
mundano e apegos que impedem a auto transcendência e, ao mesmo tempo, transmitem essa
experiência de maneira dramática, puramente com cor. Ele pretendia que suas telas fossem
cenários na frente dos quais os observadores são transformados em atores ao vivo. Essa evolução
da pintura de Rothko pode ser interpretada em termos dramatúrgicos como a assimilação do mito
inspirado pela ação - as formas como artistas contra cenários de bandas, os retângulos horizontais
como uma espécie de cenário. Rothko queria uma comunhão imediata e íntima entre a pintura e o
espectador. Ele estava obcecado com a resposta do observador ao seu trabalho.
52
A pintura era o meio de Rothko, seu único meio de transmitir o que ele chamava de valores
humanos que eram experimentados como se fossem além. O problema da pintura moderna, como
Rothko entendeu, foi como transcender a consciência do eu. O desejo de auto transcendência não
diminuíra; o mesmo impulso que levou artistas anteriores a inventar monstros e deuses motivou
Rothko a buscar auto transcendência por meio de pinturas não-objetivas. Rothko, acima de tudo,
estava preocupado com valores, quem embora subjetivos, não eram meramente pessoais e em
seu impulso instintivo em direção a um absoluto, Rothko estava lutando para extrair meios não
mediados pela linguagem discursiva, ou seu equivalente formal na pintura. Em suas pinturas
multiformes, os vermelhos estão se movendo para dentro e para a superfície sem limites visíveis,
e são enviados flutuando por trás de um retângulo áspero de azul. Formas que são
deliberadamente destituídas de limites são colocadas para falar da verticalidade, ou do
mascaramento do espaço por meio da luz. As experiências que Rothko conheceu no ato de pintar
e em suas movimentações de ponto a ponto recebem seus equivalentes em reduções de essências.
As formas retangulares desmembram os “significados” conhecidos por Rothko em sua fase
mítica, mas são significados mesmo assim. Em 1950, Rothko foi absorvido por uma enorme
vontade de trabalhar para transmitir as paixões anônimas com as quais ele viveu por tanto tempo,
e por tanto tempo procurou expressar. Ele supunha que, ao sentir a diferença entre uma tela e a
próxima, o mesmo aconteceria com o espectador. Desde que ele reduziu sua composição a apenas
algumas divisões de cor, a cor seria o portador do humor. Para ele, cada tela era diferente da
anterior. Para aqueles que poderiam viver na pintura em si, como os fenomenólogos, não foi
difícil entender a luta contínua de Rothko para tornar mais e mais precisa a natureza de sua
experiência. Ele repetiria a noção existencialista de que "uma pintura não é sobre experiência, é
uma experiência".
53
Apesar do fato de que sua fama estava crescendo e sua situação financeira estava
melhorando, Rothko se isolou em seu estúdio, onde trabalhou em suas enormes telas durante a
maior parte do final dos anos 1950. Nesse espaço apertado, ele só poderia ter alguns trabalhos
grandes de cada vez; um que foi mantido contra uma parede foi uma de suas primeiras grandes
abstrações, Número 22 Este trabalho inicial foi consumido com áreas enormes de amarelo e
laranja flutuantes, interrompidas por apenas uma faixa vermelha abraçando a tela de um lado
para o outro. Rothko não tinha atingido a ambiguidade que ele logo aperfeiçoaria, e ele havia
marcado a região vermelha da pintura com linhas raspadas para chamar a atenção para o plano
da imagem e sua função como determinante final da imagem. A pintura, apenas por sua escala,
poderia ser equivalente a um drama épico, e embora a maioria pensasse que era uma peça otimista
com seus vermelhos e amarelos brilhantes, Rothko enfatizou que, em vez disso, deveria ser a
personificação da tragédia. O tempo que leva para alcançar um ponto de descanso visual na
digitalização da tela é o suficiente para dotá-la de qualidades levemente perturbadoras que
Rothko podia ver em termos de tragédia. Mesmo amarelo, com sua associação convencional à
luz solar, passaria pela transformação de significado de Rothko. O Pintor admitiu que por trás de
sua superfície final de retângulos se escondiam eventos ocultos. Ele lembrou a técnica clássica
do chiaroscuro, tendo sido movido por velhos mestres como Rembrandt.
Darnell recorda Onde havia um avião, havia uma sombra; em cada caso, uma underpainting
deveria ser sentida como a sombra, enquanto a superfície oscilante deveria ser sentida como luz.
Rothko estava tentando gerar luz superpovoando, mascarando, afinando e engrossando o trabalho.
Alcançando esses efeitos raros, Rothko conseguiu inventar justaposições que eram
CRESCIMENTO. A linguagem do sentimento que Rothko desenvolveu através da ponderação
das medidas de intensidades de cor dependeu tanto em uma visão oculta das sombras quanto na
luz. Estes efeitos de chiaroscuro mascarados estabeleceram humores aos quais Rothko daria o seu
54
peso, e cada pintura era ponderada e balanceada diferentemente. Em seu 1953 Número 61, Rothko
pesa a tela escovando um vermelho acastanhado sobre um fundo azul. Ele é lido como densidade
e transparência, mas principalmente como uma escuridão contra a qual a horizontal azul raspada
e arejada por baixo dele toca, abrindo-se em um azul do infinito e se infiltrando no azul mais
escuro abaixo. Estas densidades ponderadas e balanceadas têm uma espécie de grandeza lírica,
mas outro trabalho é ligado ao azul, em Brancos e Verdes em Azul de 1957, o sentimento é
enormemente diferente. Há pouca exuberância e as três formas sobre um fundo azul têm uma
espécie de finalidade. A falta de pintura é controlada dentro do esquema central fortemente
organizado. Na época em que esta pintura foi concluída, Rothko afirmou que ele havia criado a
pintura mais violenta da América, sem oferecer maiores explicações. Sua alegação é tomada para
significar que, por um supremo esforço de vontade, ele havia aproveitado a turbulência e estava
pintando o paradoxo da violência; que as cores que produziam tensões imensuráveis entre si eram
concebidas como símbolos. Refinados mil vezes e todos os ecos do mundo cotidiano removidos,
para Rothko, eram equivalentes de emoções complexas. Há um senso de aura nessas pinturas, que
lembram sua obsessão anterior com a emanação ou expiração sutil e invisível. Ele já estava
tentando pintar o ar suspenso e infinitamente extensível que pairava sobre suas visões míticas dos
anos 1940, e se ele encontrasse a porta da qual ele falava, indo além do cotidiano, ele precisaria
ser capaz de invocar sua aura. Afinal, a ideia da aura é que ela deve ser mais do que percebida,
assim como suas pinturas. Sua pintura seria imediatamente percebida enquanto, ao mesmo tempo,
desdobraria sua comunicação no tempo. Um ritmo lento de apreensão seria estabelecido à medida
que a luz do exterior revelasse lentamente a luz interior. As pinturas de Rothko dos anos 1950
continuaram, com cada tela expressando em sua própria linguagem não falada um aspecto da visão
de todo o drama humano; da idéia única que representaria todas as idéias dos sentimentos
humanos. Ao mesmo tempo, Rothko estava preocupado que suas abstrações fossem
55
compreensíveis para qualquer outra pessoa. Ele era cético, e isso causou grande ansiedade e foi
constantemente exacerbado pela hostilidade que provocavam.
2.2.4 Rothko e a mitologia
7
7 Disponível em: https://formasemeios.blogs.sapo.pt/473749.html
Figura 7 O BATISMO 1935
56
Como Nietzsche, Rothko também procurou os antigos gregos em busca de respostas e
orientações. Durante seu período de "transição", Rothko estava preocupado com a arqueologia
pessoal enquanto vagava em direção ao seu "eu". Ele leu os antigos gregos, especialmente
Ésquilo, que desempenhou um papel importante na evolução psicológica de Rothko. Várias das
pinturas de Rothko de seu período surrealista foram baseadas na trilogia Agamemnon. Rothko
retornou às tragédias gregas quando o estado do mundo era tão ameaçador quanto nos tempos
antigos. Em seus primeiros trabalhos, Rothko transmitiu respostas melancólicas à situação
humana, mas a necessidade de uma inspeção mais remota era aparente. Ele leu Ésquilo a partir
da necessidade de ser movido, e essa necessidade se transformou em um encontro com o rei
Agamenon. Rothko, um artista extremamente sensível que teve dificuldade em compreender a
destruição que o cercava, encontrou uma resposta para seu próprio dilema artístico em Ésquilo,
que entendia a fragilidade humana e meditava apaixonadamente sobre a guerra e a morte.
Lembrando-se da violência que ele encontrou durante a infância, à qual ele era sensível como
homem, Rothko estava procurando uma maneira de descrever com precisão seus sentimentos às
vésperas da Segunda Guerra Mundial, sua leitura de Ésquilo sendo influente em sua busca. Os
tons de Ésquilo nascem em imagens, muitas vezes a imagem do pássaro. O que o despertou em
Ésquilo foi o modo como as imagens se iluminaram, mas não baniu a tragédia subjacente. Os
pássaros de Rothko que ele começou a retratar na tela não eram os típicos símbolos surrealistas,
mas pássaros da configuração grega e do Antigo Testamento. Os pássaros eram imagens da alma;
substitutos do invisível; personificações de sonhos de liberdade e integridade. A leitura dos gregos
e sua busca pelo antigo e mítico Rothko levou à ideia do espírito do mito. Uma reprodução de seu
trabalho O presságio da águia, foi lançado com uma declaração de Rothko:
“O tema aqui é derivado da Trilogia Agamenon de Ésquilo. O quadro
trata não da anedota particular, mas sim do Espírito do Mito, que é genérico para
todos os mitos de todos os tempos. E envolve um panteísmo no qual o homem,
o pássaro, a besta e a árvore - o conhecido e o conhecível - se fundem em uma
única ideia trágica” (QUATMANN, 2005, P. 88)
57
Essa “única ideia trágica” acabou sendo a mais persistente busca de Rothko; um que
não era nem direto nem fácil. Em seus primeiros trabalhos desse período, ele tenta transformar
o visível e o presente no “Espírito do Mito” direto e não-mediado. Suas cenas de metrô são
bons exemplos de seu retrato de almas isoladas em planos de paisagem, mas em 1938, ele
abandonou a ilusão subterrânea e começou a meditar sobre a liberdade da fantasia. Em 1940,
Rothko deixou de pintar por um ano e focou em sua leitura de Freud e Frazer. Ele também
mudou seu nome de Marcus Rothkowitz para Mark Rothko.
As pinturas de seus anos surrealistas ele chamou de dramas. Ele concebeu seus quadros
como dramas nos quais as formas são os atores. Rothko sentiu que criou uma atmosfera que era
“trágica e atemporal” e permitiu que seus “atores” se movessem dramaticamente sem
constrangimento e executassem gestos sem vergonha. Ele continua a se referir a suas pinturas de
maneira semelhante ao longo de sua carreira, chamando suas pinturas de “uma aventura
desconhecida em um espaço desconhecido” (IDEM, P. 89). Parecia que Rothko havia criado um
ambiente onde suas criações poderiam existir em uma verdade pacífica; um lugar que Rothko
estava sempre buscando. Desde o princípio Rothko estabeleceu uma visão “americanista” de que
os indivíduos são um produto de seu ambiente mental e herança. Ele mesmo não foi diferente. Um
judeu russo que foi transferido para a América, Rothko nunca se sentiu totalmente à vontade
consigo mesmo. Ao escolher uma carreira como pintor, Rothko encontrou uma saída para
expressar sua angústia. Rothko cresceu no meio da Revolução Russa, experimentou efeitos da
Primeira Guerra Mundial e conseguiu atravessar a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial.
Esses efeitos da guerra afetaram e definiram sua carreira. Seja crescendo na Rússia reprimida,
morrendo de fome durante a Grande Depressão, ou repentinamente estando entre os artistas
europeus que fugiram para a América para escapar da guerra, Rothko viveu a maior parte de sua
58
vida em algum estado de guerra ou dificuldades. Por causa de seu ambiente volátil, dedicou sua
vida e trabalho tentando evocar a totalidade da experiência humana. Para fazer isso corretamente,
Rothko teve que voltar no tempo como muitos artistas já haviam feito antes, evocando origens do
passado. Rothko encontrou seu estilo de assinatura, o motivo dos anos 50 de formas suaves e
retangulares que flutuam sobre um campo colorido, que são caracterizados pela atenção
meticulosa à cor, forma, equilíbrio, profundidade, composição e escala, através de suas influências
e Herança judaica.
Ativo em questões políticas e debates, Rothko manteve as ideias revolucionárias sociais de
sua juventude ao longo de sua vida. Ele expôs seus pontos de vista em numerosos ensaios e críticas.
Ele apoiou totalmente a total liberdade de expressão do artista, que ele achava estar comprometido
pelo mercado. Durante os tempos de guerra e luta, a arte da American Scene, em que Rothko tinha
aversão, estava em alta demanda. Isso o colocou em desacordo com o mundo da arte, e ele nunca
pareceu se recuperar. Desfrutando de fama moderada e vida escassa, a vida de Rothko como artista
nunca pareceu resolvida ou realizada. Durante sua vida, Rothko se esforçou para ser um líder e
exemplo, mas nunca conseguiu reconhecimento adequado dos críticos ou do público que ele
achava que merecia. Embora fosse um líder proeminente da New York School e agora considerado
o mais renomado de todos os pintores da Color Field, Rothko achava que tinha feito pouco. O
período em que ele viveu ofereceu-lhe muita inspiração, embora na maior parte negativa.
Rothko se concentrou no trágico ao longo de sua vida; ele estava constantemente
sendo confrontado com problemas de depressão e guerra. Embora a guerra tenha trazido várias
influências de mestres europeus que ajudaram a definir seu trabalho, ainda causou grande dano
emocional ao artista sensível. O artista foi um produto de seu ambiente violento e instável, que
fez dele um revolucionário nervoso e anárquico que sentiu que as respostas para a vida estavam
no passado. Enquanto o trabalho de Rothko se concentrava no trágico, sua vida parecia uma
59
tragédia em si. Viveu a maior parte de sua vida em lamento e angústia, viveu com os olhos
apagados. Acreditando que ele não tinha mais nada para oferecer ao mundo da arte, e assumindo
que teria vivido a sua vida em vão, Rothko tirou a própria vida. Ao contrário do que poderia ter
pensado, sua influência no mundo da arte era e é substancial, e sua contribuição para a arte tem
sido nada menos do que educacional e inspiradora.
Em diferentes épocas durante as décadas de 1950 e 1960, Rothko produziu um número
substancial de pequenas obras em papel. Enquanto alguns eram estudos para seus murais, outros
eram simplesmente variações menores de empregar uma dinâmica semelhante de forma e cor.
Uma série de suas obras em papel eram sombrias, com pressentimentos de negros, roxos e
marrons, com uma linha decisiva separando duas áreas retangulares, nas quais, segundo ele, "a
escuridão sempre está no topo". Ele mesmo ficou surpreso com essas obras e se perguntou se era
agonia ou persuasão que representavam. Muitos deles foram montados em painéis, telas ou
quadros para simular a presença de telas sem moldura. O formato menor foi especialmente
adequado ao artista em 1968, quando sua atividade física foi dramaticamente afetada por um
aneurisma grave. Ele continuou a trabalhar predominantemente no papel, mesmo depois de
retornar a um formato relativamente grande em 1969. No final de sua carreira, ele se sentia
afastado do mundo da arte e de sua nova geração de artistas. Cadeia de fumar, altamente nervoso,
magro e inquieto, Rothko passou seus últimos anos conversando intermitentemente com amigos
próximos. Ele falou de seu desespero estético e do vazio de sua fama. Ele estava convencido de
que, no todo, nunca havia sido compreendido de maneira apropriada.
60
Figura 8 Sem título,1969-708
8 Disponível em: http://artenorteamericana-flul.blogspot.com/2018/04/figura-seq-figura-arabic-1-markrothko.html
61
2.3 Sors e a épica
Como algumas das obras de Rothko, o romance de Afonso Cruz compartilha
traços da épica. O pintor debaixo do lava-loiças narra um retorno ao épico feito sem nau,
e tendo como testemunha apenas a solidão, companheira inseparável de todo herói.
Arremessando os leitores pela toca do coelho, que talvez possa ser aquela mesma de Alice
no país das maravilhas, vagamos com o pintor pelos subterrâneos por onde Orpheu desce
ao Hades em busca de Eurídice. O pintor, como Ícaro, tenta alçar vôo. Como a experiência
de Ícaro, a experiência de Sors o levou de volta ao chão. Mas, ao contrário das asas de
Ícaro, que derreteram, a queda do pintor foi num abismo interno feito de tristeza e solidão.
Já vivendo no porão do fotógrafo, em Portugal, o pintor pede ajuda e tenta, ao voar de
avião, estar mais perto do sol e reascender a luz dos olhos, como mostra o trecho a seguir:
A minha vida é sempre a descer. Mas talvez por isso tenha que levantar voo.
Estou habituado a ver a vida na horizontal, uma nova perspectiva só pode me
fazer bem (...) Vamos para aquele lugar onde há mais luz, que é o que
precisamente me falta. (...) Lá em cima, terei oportunidade de colher os raios mais
puros (Cruz, 2011, p.140)
Sempre por uso de metáforas, o pintor lança mão de um último recurso para
reencontrar a luz: subir aos céus. Nesse momento da narrativa, até mesmo suas pinturas
se tornaram sombrias, o pintor, então, tenta uma reconexão com a natureza subindo aos
céus, voando perto próximo ao sol. Na sequência o que vemos é:
A viagem de Sors ao céu foi completamente infrutífera. Pior: serviu como uma
queda, mais um movimento a descer. Sors, à medida que subia pelos ares, descia.
(...) Sors chegou aos céus, mas foi inútil. Completamente inútil, as sombras
permaneciam. (Cruz, 2011, p.147)
Em estado de completa decadência, o pintor mergulha em uma profunda depressão
e se isola no porão por dias a fio. Em mais uma semelhança com o Cristo, ao terceiro dia
62
após sua queda, o pintor reemerge do porão, as catacumbas que o aprisionavam. Mas ao
contrário de Cristo que subiu aos céus, o pintor encontra-se em um estado de tal de
resignação, como é possível ver no trecho a seguir:
- quer açúcar no chá?
- Bebo-o amargo. Não sei se mereço o açúcar.
- Eu gosto do meu bastante doce.
A d. Rosa mexia o seu chá enquanto soprava. Sors pousou o pires na
mesa da sala e ajeitou a sua chávena entre as mãos.
- O mundo que vemos é um consenso – disse Sors. – A maioria diz como
é o mundo. Se a maioria olhar para uma mesa e disser que é uma mesa, a minoria
que acha que é outra coisa é internada. O processo é simples, basta ver, no mundo
à nossa volta, coisas que os outros não veem. Na verdade existe uma luz que entra
pelos olhos e outra que nos sai dos olhos. Quando se encontram, criam o mundo
que vemos”. (CRUZ, 2011, P.148-9)
A partir desta conversa, e por conta de seu claro aborrecimento, a D. Rosa, esposa
do fotógrafo o aconselha a pintar a partir das fotografias tiradas pelo sr. Costa, o fotógrafo,
é assim, que Sors encontra a foto de uma mulher que ele reconhece como sua mãe. Com
a ajuda do fotógrafo, Sors consegue embarcar para a América, a procura de sua mãe, que
talvez ainda esteja viva. Uma ponta de luz, na sombria vida de um ovem pintor em
depressão.
Em uma obra que gira em torno da servidão, seja ela ao amor ou à arte, os conflitos
estão sempre presentes. Personagens infinitamente diferentes criam laços poderosos o
suficiente para seguirem juntos pelo submundo a procura de sua Heimat, sua pátria. Sem
a forma de poema, mas com um leque de temas que desde sempre serviram de matéria-
prima à elegia, como a perda, o luto, o exílio e o amor infeliz e efêmero, o autor imprime,
neste transcurso, o brasão épico.
Staiger em Conceitos fundamentais da poética diz que “poesia épica no sentido
homérico não pode se repetir”. Primeiramente devido ao modo de criação, pois poemas
63
épicos da época de Homero, foram feitos para ser cantados, já que não existia na época a
escrita, e em segundo lugar, por causa da mudança no paradigma histórico-cultural ao
longo dos tempos. Mudam-se os tempos, mudam-se as experiências e mudam-se,
também, as épicas. As obras são produzidas de acordo com os fatores necessários e em
vigência da época. Temos, portanto, ao longo da história da literatura as musas que
cantaram batalhas épicas para Homero, e que em Camões, cantaram ainda os barões
assinalados. Afonso Cruz, por sua vez, conta a jornada do homem moderno, cujas
batalhas são consigo mesmo, com o meio e com sua solidão na fuga e no regresso ao real,
é esta, pois a peleja do homem moderno. O conceito de epos, no que diz respeito a
revisitação e recitação epopeica é posterior às epopeias homéricas e tem suas
particularidades de acordo com a cultura e o tempo em que está inserido. Um homem pós-
moderno, exige sua batalha distinta das de outrora, este fato expressa a dinâmica de um
processo que revitaliza a estrutura do gênero épico e de suas categorias temáticas, através
da revisitação, culminando, assim, numa espécie de transformação do próprio gênero. As
próprias referências são outras, o mote épico vai passando o bastão de geração em geração
e o que um dia foi de Odisseu, passou a Vasco da Gama, que passou a Quixote e hoje
deve estar em alguma galeria nas mãos de Alice procurando o próximo herói que deve
ser astuto, abençoado, forte ou louco o suficiente, para sozinho – já que é assim que andam
a maioria dos heróis – e tão distinto dos romanos decidir falar ao povo e reconhecer-se
um livre animal político. Sair em busca da glória – ainda que pessoal – é o ponto de
partida de todo heróis, que, a princípio nega, se retrai, mas acaba sucumbindo ao seu
destino e se lança para o desconhecido.
Porque “tudo muda o tempo todo no mundo”, a configuração de herói épico sofreu
consideráveis transformações, tendo em vista atender a necessidade de sua época.
Primeiramente o herói, como se apresenta na épica clássica, é uma figura fundamental
64
para o desenrolar da ação. No entanto, não há mais uma configuração homérica de um
único herói para o povo, e que defenda o interesse de uma nação. Acreditar nesse conceito
de herói, é uma inocência muito grande. O herói que se manifesta em Homero dá lugar a
uma nova vertente, e em Camões, o povo passa a ser o herói, apesar de uma presença
predominantemente forte de um homem, que se mostra na figura de Vasco da Gama.
Gama passa por todas as pelejas juntamente com sua tripulação, como Odisseu, e as
vitórias e conquistas são compartilhadas por todos como povo, assim como as
recompensas apresentadas no canto décimo de os lusíadas:
Estes e outros barões, por várias partes,/ Dinos todos de fama e maravilha/
Fazendo-se na terra bravos Martes/ Virão lograr os gostos desta ilha,/ Varrendo
triunfantes estandartes/ Pelas ondas que corta a aguda quilha;/ E acharão estas
Ninfas e estas mesas,/ Que glória e honras são de árdua empresas. (CAMÕES,
2015, p. 329)
Em o pinto debaixo do lava-loiças, podemos dizer que essa nova configuração de
herói desenvolvida por Camões foi adaptada aos tempos atuais, com a mesma marca
solitária de todos os heróis que o antecederam, mas sem recompensa que possa ser
deixada de espólio a uma nação. O épico permanece, mas as provações são outras. Criam-
se mitos que não dizem respeito a apenas um povo, ou a um só lugar.
Quando o homem criou o mito, era sua forma de explicar as forças da natureza,
do universo e de si mesmo. Desde sua criação, o homem foi inclinado a seguir tradições,
para que pudesse viver sem temer. Mais do que isso, segundo o mitólogo Mircea Eliade,
o mito era, para as sociedades ancestrais, uma história sagrada, que servia não somente
para contar a origem do mundo e o surgimento do homem, mas também para dizer ao
homem como agir. O mito era, portanto, uma resposta aos questionamentos humanos,
65
uma forma de sancionar a ordem social com a função de fixar valores morais a serem
seguidos, pois segundo Eliade:
O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito,
e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu
empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição marítima, quando o Herói
mítico já a efetuou num Tempo fabuloso? Basta seguir o seu exemplo. De modo
análogo, por que ter medo de se instalar num território desconhecido e selvagem,
quando se sabe o que é preciso fazer? Basta, simplesmente, repetir o ritual
cosmogônico, e o território desconhecido (= o "Caos") se transforma em
"Cosmo", torna-se uma imago mundi, uma "habitação" ritualmente legitimada. A
existência de um modelo exemplar não entrava o processo criador. O modelo
mítico presta-se a aplicações ilimitadas (ELIADE, 1972: 125).
Exilado sob a pia de um fotógrafo, Sors sente na pele a solidão imposta. Só
consegue desenhar olhos fechados, representação ideal para um artista que agora tem os
olhos apagados. Solidão como exílio, olhos apagados de infelicidade, o próprio retrato da
solidão negativa. A perda dos traços de um mundo que não pode mais ser representado
pelo artista são, para ele, como um botão de apagar a luz dos olhos. É o momento em que
o que reina é a falta de inspiração, o artista não consegue ver seu eu, portanto, não é mais
artista. É, agora, um recorte sem brilho do artista que fora. Um deserto.
Ser, ao mesmo tempo, Orpheu e Ícaro é marcar tanto os fatores sócio-culturais
quanto os psicológicos – naturais aos artistas – que o levam à uma distinção da sociedade
dita: normal. É ser minotauro, é habitar o labirinto interior, de onde sair não é uma
alternativa. A mitologia, aqui, tem a função de ilustrar os mecanismos da solidão, que
ainda por mais tristes que sejam, após reveladas, são de uma beleza extrema. Joseph
Campbell, em o poder do mito, nos diz que “os mitos tratam disso: da transformação da
consciência. É o limite, a conexão entre aquilo que pode ser conhecido e o que nunca
pode ser descoberto, pois é um mistério que transcende toda a pesquisa
humana”(CAMPBELL, 1997, P. 123). Campbell fala ainda da experiência mitológica:
66
O ponto central do mundo é onde o movimento e a imobilidade se encontram. O
movimento é o tempo, a imobilidade é a eternidade. E perceber a relação entre o
momento temporal e o eterno é o sentido da vida. Perceber que este momento da
vida é um momento de eternidade. Experimentar o aspecto eterno do que você
vive na sua experiência temporal é a experiência mitológica. (CAMPBELL,
1997, P. 125)
As experiências do artista o levam a se tornar mito, suas criações tornam-
se atemporais. A consciência de dizer, através de pinturas a solidão de seu deserto interior
e fazer com que o espectador se veja representado no lugar em que ocupa é, também, uma
experiência mitológica.
Os mitos pós-modernos têm passaporte amarelo, sem círculo, modelo ou povo. O
herói agora passa a ser o indivíduo comum e suas conquistas, não são mais gloriosas como
outrora, há um indivíduo escolhido para representar a solidão do homem pós-moderno,
mas as vitórias deste, só dizem respeito a si mesmo. O seu grande feito está em conseguir
sair das galerias subterrâneas do interior da mente. Josef Sors é o nome escolhido por
Afonso Cruz, mas parafraseando José Saramago: “quem diz Josef Sors, diz qualquer um”.
Afonso Cruz cria uma épica moderna, em meio de guerras modernas, numa Bratislava
tão real e ao mesmo tempo, tão fictícia quanto o buraco do coelho do país das maravilhas.
Labirintos não são mais usados para aprisionar monstros, mas é onde estão fincados os
alicerces fundamentais para a criação dessa novíssima “casa portuguesa”, lugar dos
refugiados, dos apátridas, dos artistas, lugar de liberdade, a morada de todos os homens,
de todas as literaturas, e de todas as artes.
2.4 A máquina de recortar o mundo
No momento em que parte para a guerra e enfrentar os horrores por todos os
ângulos, Josef Sors inaugura um novo livro, o livro dos absurdos, o botão de apagar a luz
67
dos olhos. Neste livro, o jovem artista desenha as tristezas: um asilo já inexistente,
destroços da Guerra, etc.
“Absurdo”, porque representa o irrepresentável, o caos do holocausto, a dor inefável.
Acabará por ser uma ponte entre o livro dos olhos acesos/abertos e o dos olhos
apagados/fechados. Atua como um interruptor de luz, ou como o disparador da câmera.
A metáfora fotográfica é uma constante no romance. Não à toa, Sors se abriga no porão
de um fotógrafo.
A narrativa também pode ser lida como “frames”, flashs da vida de deste pintor. Para
Rosalind Krauss, a fotografia é, acima de tudo, um objeto teórico, o que significa que o
que interessa à professora da Universidade de Columbia é o que a fotografia permite
pensar. Neste sentido, Krauss escreve “a partir da fotografia”, buscando cartografar os
territórios que ela sugere para além de suas fronteiras estratificadas. A fotografia como
índice, registro semiótico de uma presença que se coloca como causa no mundo que afeta
o signo que a representa. Nesse contexto, já está delineada a “ideia estética que vai se
insinuar tantas e tantas vezes, seja no senso comum quanto nas discussões teóricas sobre
o ato de fotografar: a captação de uma essência do objeto ou do evento fotografado, tal
como enuncia Cartier-Bresson a respeito do “instante decisivo.”(KRAUSS, 1990, P.74)
A fotografia traz consigo para o campo da arte seu caráter indicial, que mais tarde
vai se fazer perceber em obras onde o traço é o elemento primordial, seja nas pinceladas
espessas do impressionismo ou nas action paintings de Jackson Pollock e no próprio Mark
Rothko, visto anteriormente. A imagem se torna modernamente autorreferente ao
significar também o próprio processo que lhe deu origem. Tomando a fotografia como
objeto teórico, como propõe Krauss, é que torna possível discutir e pensar ao mesmo
tempo as relações com outros campos de expressão artística.
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Susan Sontag, por outro lado, define a fotografia como “experiência capturada”,
e a câmera como “o braço ideal da consciência em sua disposição aquisitiva” (SONTAG,
2004, P. 14). Se seguirmos este pensamento, fotografar, então, seria experimentar,
participar, e os desdobramentos dessa experiência são memorialísticos. Para Sontag, “um
modo de atestar a experiência, tirar fotos é também uma forma de recusá-la – ao limitar
a experiência em uma imagem um suvenir” (IDEM, P. 14)
Sontag introduz, ainda, uma reflexão sobre a relação entre a fotografia e a viagem.
Segundo tal reflexão, viajar se torna uma estratégia de acumular fotos, sendo a própria
atividade de fotografar terapêutica, por tranquilizar e mitigar sentimentos de
desorientação que podem advir durante uma viagem. Para Sontag, esse procedimento
atrai especialmente pessoas submetidas a uma ética cruel de trabalho, o que ela
exemplifica com povos como alemães, japoneses e americanos. Para essas pessoas, a
culpa por não estar trabalhando seria atenuada pelo que chama de uma “imitação amigável
do trabalho”: tirar fotos. Para Sontag, a época atual é de nostalgia, algo que os fotógrafos
fomentam, ativamente, a seu ver. A fotografia, afirma Sontag, é uma “arte elegíaca, uma
arte crepuscular”, e aqui vale a transcrição direta de seu pensamento:
A maioria dos temas fotografados tem, justamente em virtude de serem
fotografados, um toque de páthos. [...] Todas as fotos são memento mori.
Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da
mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia
desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável
do tempo. (IDEM, P. 26).
Essa reflexão se estende, também, às cidades na memória fotográfica. Com o
advento das técnicas de reprodutibilidade técnica da obra de arte, tais como a fotografia,
aumenta consideravelmente a exposição da obra de arte. Nesse processo, o valor
69
concedido à obra de arte muda, e novas funções colocam-se para ela, o que Benjamin
explica, ilustrando com o cinema, no trecho a seguir:
Com efeito, assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor
de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como
instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a
preponderância absoluta conferida hoje ao seu valor de exposição atribui-
lhe funções inteiramente novas, entre as quais a ‘artística’, a única de que
temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária. Uma coisa
é certa: o cinema nos fornece a base mais útil para examinar essa questão.
(BENJAMIN, 1985 p. 157)
No momento em que Benjamin teorizava sobre a reprodutibilidade técnica, os
recursos técnicos de que se dispunha para veiculação da arte eram apenas o cinema e a
fotografia. Esses meios abriram novas formas de perceber e de receber a arte. Sobre o
papel do cinema nesse processo, são significativas as palavras do filósofo alemão. Disse
Benjamin: “Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações
humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido”
(IDEM, P. 159)
Tanto quanto as pinturas e os desenhos, a fotos são uma interpretação do mundo,
escreve Sontag. Mas, segundo a autora, por meio de fotos, o mundo se torna uma série de
partículas independentes, avulsas. A câmera, por sua vez, torna a realidade atômica,
manipulável e opaca, e a foto confere a cada momento o caráter de mistério, reflete. Em
suma: “A sabedoria suprema da imagem fotográfica é dizer: ‘Aí está a superfície. Agora,
imagine – ou, antes, sinta, intua – o que está além, o que deve ser a realidade, se ela tem
este aspecto’”(SONTAG, 2004, P. 33)
Fotografar, sentencia Sontag, é atribuir importância, portanto, valorar, distinguir.
O que, contudo, não significa que a fotografia magnifique os seus temas, como mais
adiante, conclui:
70
As câmeras implementam uma visão estética da realidade por serem um
brinquedo mecânico que estende a todos a possibilidade de fazer
julgamentos desinteressados sobre a importância, o interesse e a beleza.
(‘Isso daria uma boa foto.’) As câmeras implementam a visão instrumental
da realidade por reunir informações que nos habilitam a reagir de modo mais
acurado e muito mais rápido a tudo o que estiver acontecendo (SONTAG,
2004 p.193).
Procurando, ainda, outros estudos sobre a fotografia, nos deparamos com Roland
Barthes, que em a câmara clara busca uma forma de definir a fotografia, pois segundo
ele: “Em relação à fotografia, eu era tomado de um desejo ‘ontológico’: eu queria saber
a qualquer preço o que ela era ‘em si’, por que traço essencial ela se distinguia da
comunidade das imagens.” (BARTHES, 2012, P. 12) Barthes apresenta a busca de um
método. Considerando que desde o primeiro passo, que é o da classificação, a fotografia
se esquiva, pois ao seu ver, a fotografia é inclassificável. Buscando um motivo para esta
“desordem”, Barthes explica os motivos da irredutibilidade da fotografia às
classificações. Em primeiro lugar, afirma que: “o que a fotografia reproduz ao infinito só
ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente”. Na fotografia, prossegue o semiologista francês “o acontecimento
jamais se sobrepassa para outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade
ao corpo que vejo; ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana, fosca e um tanto
boba, (...) em suma a Tique, a Ocasião, o Encontro, o Real, em sua expressão infatigável”
(IDEM, P. 13)
Todos os estudos sobre fotografia, até aqui apresentados, apresentam alguma
proximidade como romance de Afonso Cruz. Em o pintor debaixo do lava-loiças. Os
capítulos que narram a estória de Josef Sors estão dispostos de forma tal que pode, mesmo
ser comparada com a disposição de um álbum de fotografias. Nos colocando como
espectadores dessa foto-novela, podemos ver todos os “frames”, em posição justaposta,
71
nos mostrando instantes de cada experiência vivida pelo pintor. O pintor também captura
imagens e as congela no tempo da sua memória, no ato de desenhar. Para ele, a imagem
e a memória estavam intimamente ligadas entre si e o ato de desenhar. Embora a sua arte
acabasse se tornando uma casa, a linguagem com a qual se pretendia recuperar essa casa,
mesmo a da imagem nunca corresponderia exatamente à casa física. Algo que nos
aproxima do disse Roland Barthes, ainda em a câmara clara:
Mas a História é uma memória fabricada segundo receitas positivas, um
puro discurso intelectual que abole o Tempo mítico; e a fotografia é um
testemunho seguro, mas fugaz; de modo que, hoje, tudo prepara nossa espécie
para essa impotência: não poder mais, em breve, conceber, afetiva ou
simbolicamente, a duração: a era da fotografia é também a das revoluções, das
contestações, dos atentados, das explosões, em suma, das impaciências, de tudo
o que denega o amadurecimento” (IDEM, P. 55)
Seja como uma teoria, procurando ver além do enquadramento, como meio de
recuperação de memória, o fato é, que a fotografia, como a pintura são formas importantes
de arte, que participam de uma experiência, de uma ação, convocando os espectadores, a
buscar pelo sublime através de suas linguagens únicas.
2.5 O livro dos absurdos
Quando na juventude, Sors vai à primeira guerra, os horrores testemunhados por
lá seriam sucedidos por outras dores: ver o amor de sua vida apaixonar-se por outro,
internar a mãe no asilo. Partiu para os Estados Unidos, tentando fugir de uma dor, cuja
raiz estava em si e de onde voltaria para exilar-se no porão de um fotógrafo português.
Duas experiências de solidão serão exploradas ao longo do romance: o auto-isolamento
buscado pelo artista que observa e testemunha será, no decorrer da trama, substituído pelo
exílio forçado de um judeu em plena Europa nazista.
72
Segundo Márcio Selligmann Silva (2000) diz que podemos caracterizar o
testemunho como uma atividade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida
daquele que volta do Lager (campo de concentração) ou de outra situação radical de
violência que implica esta necessidade, ou seja, que desencadeia esta carência absoluta
de narrar. A narrativa teria, portanto, dentre os motivos que a tornavam elementar e
necessária, este desafio de estabelecer uma ponte com “os outros” (os que não
experienciaram o Lager), de conseguir resgatar o sobrevivente de um lugar de outridade,
de romper com os muros do Lager.
A narrativa seria a picareta que poderia ajudar a derrubar este muro. A
circulação das imagens do campo de concentração que se inscreveram como uma
queimadura na memória do sobrevivente, na medida em que são aos poucos
traduzidas, Über-Setzte, transpostas, para “os outros”, permite que o sobrevivente
inicie seu trabalho de religamento ao mundo, de reconstrução da sua casa. Narrar
o trauma, portanto, tem em primeiro lugar este sentido primário de desejo de
renascer. (SELLIGMANN-SILVA, 2000, P. 43)
É importante compreender que as testemunhas dos horrores cometidos nos
campos de concentração nazistas, na maioria das vezes eram testemunhas “privilegiadas”,
testemunhas que de alguma forma desfrutavam de seus privilégios para poder enxergar
mais do alto, sem se dobrar à autoridade dos campos, analisando melhor a totalidade.
Essas testemunhas privilegiadas na maioria das vezes eram presos políticos, pois esses
sabiam perfeitamente que seus testemunhos eram como armas de guerra contra o nazismo.
Os outros prisioneiros ou não tinham a intenção de elaborar um relato, ou não tiveram
tempo de vida suficiente para isso. Rothko e Josef escaparam dos campos de concentração
ao fugir para a América, mas nem todos os judeus tiveram o mesmo destino.
Os judeus são o povo historicamente excluído desde os primórdios do
cristianismo, são os que jamais pertencerão à “cidade de deus”. O deserto será sua sua
73
cidade e por ele errarão permanentemente sem se agregar a outros costumes e leis. São os
herdeiros do deserto, onde nada, que não seja a palavra pode florescer. Mas mesmo a
palavra tinha seus limites, não se escreve, por exemplo, o nome de deus, pois seria uma
tentativa de dar forma ao irrepresentável, ou tentar recuperar o invisível.
A errância marca o judeu, enquanto povo, sejam os judeus mais religiosos ou não.
Este isolamento do judeu é, também, a busca permanente pelo divino, uma solidão que
não se pode dizer negativa, pois é sua afirmação da diferença. Esse estar só com deus
dos judeus gerou a necessidade cristã de seu extermínio para a criação de uma unificada
cidade de deus. Sors, um judeu em seu exílio desértico (carente até mesmo de luz)
imprimia em seus desenhos as palavras que floresciam em seu deserto. Sua vivência da
solidão é algo que tramita entre os dois polos, o positivo e o negativo – o que no livro está
representado com a divisão em olhos acesos e apagados. Havia a solidão positiva, a do
artista, a solidão como forma de criação, mas por outro lado, o jovem artista judeu estaria
condenado à solidão negativa, excluído de um mundo ao qual só retornaria por meio da
arte. De olhos abertos, ou acesos, o pintor observa e representa; de olhos fechados, ou
apagados, busca a criação do que já não pode apreender pelo simples olhar.
Entender os fenômenos acontecidos dentro dos Lagers exige uma reflexão a
respeito da própria representação deste fenômeno, e isso é uma tarefa que vários
pesquisadores estão empenhados, mas existe uma dificuldade, uma impossibilidade de
uma representação da catástrofe. Como afirma ainda Seligmann Silva:
[...] na medida em que tratamos da literatura de testemunho escrita a partir
de Auschwitz, a questão do trauma assume uma dimensão e uma intensidade
inauditas. Ao pensar nesta literatura, redimensionamos a relação entre linguagem
e o real: não podemos mais aceitar o vale-tudo dito pós-moderno que acreditou
ter resolvido essa complexa questão ao firmar simplesmente que “tudo é
literatura/ficção”. Ao pensarmos Auschwitz, fica claro que mais do que nunca a
74
questão não está na existência ou não da “realidade”, mas da nossa capacidade de
percebê-la e simbolizá-la (SELIGMANN-SILVA,2000, P. 49-50).
A literatura de Shoah está inserida nesta dificuldade de representação, justamente
por ser uma literatura caracterizada principalmente por seu “excesso”, pelo testemunho
das barbáries acontecidas dentro dos campos de extermínio. A Shoah é considerada um
evento limite, a própria catástrofe por excelência.
Outra característica importante a respeito da literatura do Shoah é a falta de todo
um aparato conceitual que descreva este evento, justamente pela sua dificuldade
de representação, desta forma alguns autores usam o conceito Kantiano de
“sublime”, entendido não no seu significado estético, sinônimo de “esplêndido”,
“magnífico”, mas sinônimo de irrepresentável, sem limites de representação.
(SELIGMANN-SILVA,2003, P. 52-53)
Esta literatura de testemunho, mesmo encontrando problemas referenciais em
torno da sua irrepresentatibilidade, foi o caminho percorrido, por exemplo, por Primo
Levi, após sua libertação do campo de Auschwitz.
Em um ensaio intitulado Verdade e memória do passado, Jeanne Marie Gagnebin,
discorre que a liderança nazista, prevendo o final da guerra, se encarregou de abolir as
provas, queimando arquivos, desaparecendo com corpos já enterrados, tentando anular
todos os rastros da existência do genocídio. Segundo Gagnebin:
As teses revisionistas são, com efeito, a consequência lógica, previsível
e prevista de uma estratégia absolutamente explicita e consciente de parte dos
altos dignitários nazistas. Essa estratégia consiste em abolir as provas de
aniquilação dos judeus (e todos os prisioneiros dos campos). A “solução final”
deveria, assim por dizer, ultrapassar a si mesma anulando os próprios rastros da
existência (GAGNEBIN, 2006, P. 46)
75
Partindo de uma análise interdisciplinar, que privilegie uma relação entre história,
memória e literatura de testemunho, acredito que as obras de Rothko, e de Cruz fazem
com que a memória do horror não seja apagada. Essas obras tornam-se, assim, o lugar da
memória. Lugar, que parece carregar os traços de horror sem que sejam verdadeiramente
reconhecíveis, e que não revela seu interior, permanecendo como uma autêntica peça da
história. No entanto, nada é real aqui, a história no sentido da historicidade, de repente,
desaparece na ficção. O poder da autenticidade atinge outro nível. O lugar é um artefato
construído por mãos de uns e palavras de outros. Com astúcia, o artista atrai o observador
para uma perturbadora confusão de realidade e ficção, em que o que importa é só o
conteúdo, mas também – e principalmente a forma. O contexto torna o trabalho uma obra
incrivelmente política, quase como um manifesto. Aqui acontece Arte.
A proteção do passado também esconde o horror, é revelada camada por camada.
O compromisso com a (própria) história está, portanto, embutido no desejo de romper a
aparência e a superfície, pelo menos para questioná-la e encontrar a experiência
substancial. Cada vez mais, nos novos grupos de obras de artistas, emergem os temas
fundamentais , temas como vida e morte; amor e violência; felicidade e dor e, sofrimento
e perda. A beleza simples e a integridade (apenas aparente) da forma só tornam a
deformação ainda mais violenta, isto é, o homem como uma criatura amputada. O
fascínio, o encanto do horror, a beleza do horror; as fronteiras são borradas, e a imagem
perde sua expressividade.
O conteúdo político de muitas obras, depois das fugas na infância e dos idílicos
naturais e do ruído de cores psicodélicas, dá origem a páginas mais escuras - todo um
caminho até o preto. Trabalhos conceituais e minimalistas baseados em determinantes
básicos já começam a reaparecer. As florestas estão ficando mais escuras, as lembranças
da infância são vagas: A guerra continua.
76
2.6 O livro do infinito
O pintor debaixo do lava-loiças reúne diversas manifestações artísticas e diversas
formas de descrever os percalços de uma sociedade em crise e, além disso, as dificuldades
individuais – e necessárias - de cada indivíduo estão desenhadas de formas muito
peculiares. O diálogo interartes, tão flagrante no romance, nos abre um panorama para
outros campos de estudo e lista diversas perspectivas sobre a função da arte, como forma
de testemunho. A função do mito como forma de reconhecimento do mundo, do outro e
autoconhecimento. Para deixar de lado a ideia de que o mundo precisa ser visto da mesma
forma é que existe a arte:
A arte não são coisas penduradas nas paredes, é raiva e unhas sujas. Essa intelectualidade
que nossos colegas apregoam é o oposto da arte. O chão e o lixo, quando acordam e olham
para si, é que são arte. As coisas lavadas e brancas são o oposto. A arte é o maior crime
da humanidade, pois vai contra todas as leis e contra tudo o que é estabelecido e seguro.
É o maior crime que a sociedade pode imaginar, pois é através dela que tudo se destrói.
(...) Arrasamos todas as ideias feitas, todas s instituições, todos os monumentos, e dos
escombros naturalmente nascerão coisas. E o artista estará lá para as destruir, para que
nasçam outras. (CRUZ, 2011, p. 82)
Toda a forma de representação artística somente acontece em um ambiente em que
o homem pode expressar-se por meio de suas produções. A arte também é produzida,
acima de tudo, por uma necessidade de expressão, segundo Fischer (1987, p.20), “A arte
é quase tão antiga quanto o homem.”
Fischer destaca que a arte nunca foi uma produção de origem individual, mas sim,
coletiva, se originando de uma necessidade coletiva. O ser humano se utiliza da arte para
dialogar com o meio em que vive, a arte somente tem sentido quando sua representação
for uma representação social. Nesse aspecto, Coli (1989, p. 90) complementa “No
passado, e ainda hoje, os objetos artísticos possuíram funções sociais e econômicas que
permitiram sua constituição e seu desenvolvimento.” A arte por meio de suas
77
representações procura compreender as características próprias de um momento da
sociedade e é uma forma de manifestação social. O artista usa a obra para relatar o seu
momento. Percebe-se, então que a função da arte como também seu modo e os meios de
representação variam conforme a época. Ainda nos dias atuais o artista tem uma função
social indiscutível: ser um representante da sociedade, relatar em suas obras a realidade
pela qual ela passa. Fischer ainda manifesta “A tarefa do artista é expor ao seu público a
significação profunda dos acontecimentos, fazendo-o compreender claramente a
necessidade e as relações essenciais entre o homem e a natureza e entre o homem e a
sociedade” (FISHER, 1987, P. 51-52)
A solidão de ser artista somada à de ser de origem judia resulta numa solidão quase
étnica. Para o fictício pintor judeu – que representa um pintor real – há um paradoxo entre
o querer estar só e a vontade – humanamente natural – de querer estar junto. “Solidão”,
segundo Bach “é falta de alguma coisa, sim, mas também busca de cumplicidade. Para
alguns, é a melhor companhia. Para outros, a maior agonia.” (BACH, 1998, P. 20)
É inerente ao artista habitar o espaço entre as polaridades simbólicas: luz e sombra;
verticalidade e horizontalidade; imanência e transcendência, assim, imagem e mito
intercalam-se para dar uma linguagem ao inexprimível, mostrando os absurdos que o
artista, em sua solidão, não consegue dizer. A arte é uma forma incorruptível de revelar a
verdade. É através dela que se pode contar as dores, alegrias e particulares “modos de
ser”. Assim a arte (seja pintura ou fotografia) será a alegoria para mostrar a transição entre
solidão positiva e negativa na ficção e na realidade, pois só na arte é que a solidão encontra
terreno para sua iminente concretude. Botões e engrenagens que têm o poder de criar
cenários na imaginação do artista, que por sua vez, representa suas verdades confundidas
com as de seus espectadores. Arte: palavra, testemunho. Pintores reais e fictícios se
confundem a fim de demonstrar a capacidade da solidão de ser uma máquina para criar
78
arte.
No pintor, recriado por Afonso Cruz, o botão de apagar os olhos são os absurdos,
expressados através da mitologia e das pinturas e o botão de acender os olhos é a
esperança – no início, a de mudar o mundo, no fim, a de um recomeço. O romance
termina com o retorno de Sors aos Estados Unidos, na esperança de reencontrar a mãe e
recomeçar a vida. Com um aceno de cabeça, o pintor despede-se do fotógrafo, fechando
a narrativa do livro, sem, no entanto, fechar as lacunas, deixando uma porta aberta para
as infinitas interpretações. O último frame do álbum de Sors. O final inconclusivo do
romance reflete a capacidade da arte de convidar o interlocutor a ver além do
enquadramento captado.
Tudo aqui está posto de modo a nos fazer pensar além dos fatos dados, além dos
desenhos inacabados, das pinturas, dos recortes fotográficos. Precisamos ir além, e sentir,
perceber que existe mais
3. CONCLUSÃO
O mundo, instituído pela percepção e pela linguagem e essencialmente histórico e
intersubjetivo. De modo que para o filósofo Maurice Merleau-Ponty, a filosofia
precisa habitar a realidade e se questionar incansavelmente sobre as verdades das
coisas. Nestes questionamentos, levar em conta fatores como a incompletude, o
retornar para ir além, agregam às significações uma dinamicidade característica.
Assim, segundo Merleau-Ponty (1999, p.80), “o horizonte das significações é
permeado pela reflexibilidade filosófica que, ao assumir sua dimensão cultural, lança
79
novamente o olhar aos enigmas do mundo visível”. O Filósofo prega o aprendizado
através das artes. Pois, segundo Merleau-Ponty há uma espécie de fraternidade entre
as artes e a filosofia, pois no fim elas compartilham do mesmo esforço expressivo que
as impulsionam para uma melhor experiência e compreensão da realidade e são
formas de enriquecer a experiência humana de percepção do mundo, do corpo, dos
outros, da história e da cultura. As artes intensificam constantemente o horizonte de
sentido do mundo da vida. Pois elas não são meras ferramentas utilizadas para
propagar ideias, são, antes, meios de expressão onde a experiência humana coloca-se
diante de si mesma, momento de reavaliação e recriação das significações culturais.
Desta forma, segundo Merleau-Ponty, a relação entre vida e mundo tornam-se o
principal fio condutor das artes. A experiência criadora enriquece nossa relação com
o mundo percebido com novas maneiras de compreender a realidade, redescobre-se
as coisas percebidas produzindo obras sensíveis, investigando o seu aparecimento,
decifrando sua profundidade. Assim, o processo criativo e dinâmico do artista vai ao
encontro desse ser ainda ―selvagem, explora indiretamente a verdade e as
significações ainda tácitas e, instala-se na história da cultura intensificando-a.
As reflexões sobre a expressividade no pensamento de Merleau-Ponty iniciam-se com
maior vigor na Fenomenologia da Percepção, A percepção, ponto de ancoragem de
toda. A sua fenomenologia, deve ser compreendida sem recorrer à separação entre
consciência e mundo, pois ela não salta por sobre a realidade para contemplá-la numa
perspectiva puramente inteligível. Ao contrário, assume a experiência corporal como
originária, redescobrindo assim o mundo sensível e no seu fundo tácito e invisível a
unidade fundamental do ser. Para tanto, a filosofia deve desdobrar-se para fora da sua
própria história, frequentar o homem em suas experiências concretas, os saberes
científicos e, finalmente, às artes.
80
Os homens tomam para si o desejo de comunicar suas vivências, de tornar comum
suas experiências, e assim fazem dos seus corpos gestos expressivos. Para Merleau-
Ponty o mundo da vida requisita constantemente sua criação e recriação. Tal
característica se manifesta de maneira singular nas atividades artísticas. Nesse
contexto, os artistas são quase que intimados a experimentar novos modos de
expressão e atualizar os antigos a partir de um engajamento singular no mundo
sensível, tornando suas experiências criativas momentos marcantes para o
desenvolvimento de novas formas simbólica.
Segundo o filósofo, a relação dos homens com os objetos que os rodeiam não é
inteiramente fornecida pela natureza e nem inteiramente desenvolvida pelas
mediações culturais. A princípio destaca-se, principalmente, o trabalho criador do
artista, que lança mão de suas experiências sensíveis no desenvolver de um objeto
expressivo. O filósofo diz ainda que, tal relação evidencia-se principalmente na
vivência da corporeidade, pois o corpo pertence à natureza como um organismo e
simultaneamente constitui-se como o primeiro dos objetos culturais.
Além disso, “a conformação simbólica do mundo sensível não nega a presença
simultânea das dimensões culturais e naturais na indivisibilidade do mundo da vida.
Pois, a realidade percebida não se constitui apenas pelo conjunto de coisas naturais,
mas também pelos quadros, músicas e livros” (MERLEAU-PONTY, 1999, P.65).
Sendo assim, as obras de arte são percebidas no seio das relações entre natureza e
cultura.
A capacidade criativa projeta-se historicamente revitalizando as significações
obsoletas e fundamentando novas práticas de vida. Os artistas, por sua vez, propõem
novos olhares ao reformular os modos corriqueiros que compreender o mundo.
Assim, para Merleau-Ponty, a historicidade da cultura se vincula com o “devir
81
histórico” das artes, ou seja, com as vivências dos artistas diante dos seus tempos.
Contudo, em suas práticas eles não se posicionam positivamente como puros
observadores do mundo e da cultura, são motivados de forma espontânea. Portanto,
as atividades criadoras fornecem novos significados à medida em que elas se movem
e são movidas por uma certa passividade. Essa confluência da atividade e da
passividade nas práticas expressivas faz com que experiência cultural seja
fundamentada por um movimento dialético de criação e recriação de formas
expressivas, caracterizado por um avanço enviesado de retomadas e novas
formulações. As significações culturais são, portanto, impulsionadas pelos artistas
através de uma série de variantes históricas, intersubjetivas e situacionais, não por um
sujeito capaz de saltar para fora do tempo e controlar a história. As artes participariam
do horizonte primordial da cultura ao serem capazes de metamorfosear o ser bruto,
ou seja, ao despertar no âmago do mundo histórico cultural novas significações.
Residindo aí a profundidade das relações entre o agir produtivo dos artistas e o
movimento dinâmico da cultura.
Através de sua fenomenologia da linguagem, Merleau-Ponty investiga a experiência
concreta na produção de sentido pela criação literária. “Talvez se veja melhor de que
maneira a linguagem significa se a considerarmos no momento em que ela inventa
um meio de expressão” (IDEM, p. 67). Para o filósofo a relação entre o escritor e o
seu mundo linguístico se constitui como ponto convergente de suas vivências
corpóreas, de suas marcas subjetivas, mas, sobretudo, de sua situação histórica e
inserção no mundo comum e intersubjetivo. A linguagem, portanto, estabelece-se
como elemento transformador da vida do escritor, suas palavras criam significações
que impregnam nos objetos e no comportamento humano. Merleau-Ponty comenta
que nesse uso íntimo e criativo da linguagem nasce nas palavras o estilo do artista.
82
Pois, para o filósofo, o estilo não é produzido por um laboratório subjetivo, mas
despertado no tocar e ser tocado pelo mundo através da linguagem. Por meio do
processo criativo do escritor, as artes da expressão submetem os “dados do mundo a
uma deformação coerente” (IDEM, p. 67), ou seja, são capazes de criar um novo
sentido por uma torção significativa dos signos já pré-estabelecidos. Assim, os efeitos
estilísticos das obras de arte dão destaque às dimensões de sentido do mundo da vida.
Portanto, a singularidade do estilo não pertence ao reino da subjetividade do artista,
é, na verdade a maneira como ele impõe e nos faz habitar novas significações através
de suas palavras. Deste modo, Merleau-Ponty aponta a dimensão da criação das obras
de arte como participadora do intercâmbio originário entre a objetividade do mundo
histórico-cultural e a subjetividade movente e expressiva dos artistas.
O escritor torna-se responsável pela tarefa produtiva de criar novas significações a
partir de suas vivências no domínio silencioso da linguagem, garantindo os sentidos
já sedimentados e obsoletos uma nova vida. Pois os artistas da linguagem colocam à
prova as expressões já instituídas, consideram as palavras antes de serem
pronunciadas e anunciam “um sentido lateral ou oblíquo, que se insinua entre as
palavras fazendo – uma maneira de sacudir o aparelho da linguagem ou da narrativa
para arrancar-lhe um som novo” (IDEM, P. 71) Sobre isso, Merleau-Ponty afirma que
“a linguagem é por si oblíqua e autônoma e, se lhe acontece significar diretamente um
pensamento ou uma coisa, trata-se apenas de um poder secundário, derivado da sua
vida interior” (IDEM, P. 73) Portanto, para o filósofo, os artistas exploram a dimensão
tácita ou silenciosa da linguagem e de lá extraem novas relações de significação, deste
modo, garantem uma renovação reversível da própria linguagem enquanto instituição
cultural.
83
Para o filósofo, tanto nas expressões desenvolvidas pelos escritores quanto nas
elaboradas pelos pintores, ocorre uma operação análoga de transmutação e migração
dos sentidos esparsos das vivências cotidianas para sentidos mais originários.
Enfatiza-se o poder possuído pelo olhar e pelas palavras em colocar os objetos diante
de nós numa constante redescoberta do visível e, consequentemente, numa
revitalização tácita da cultura. Portanto, “a pintura e a linguagem são comparáveis
apenas quando as afastamos daquilo que representam para reuni-las na categoria da
expressão criadora” (IDEM, P. 75) Assim, tanto a pintura quanto a literatura podem
ser consideradas artes do silêncio.
Há, portanto, no interior da corrente de pensamento de Merleau-Ponty, uma profunda
unidade entre os temas discutidos e os conceitos desenvolvidos em suas obras. O
filósofo não elege a criação artística de forma arbitrária. Ele a torna um meio
fundamental para expressar a manifestação do objetivo no subjetivo, do movimento
transformador da cultura e das implicações ontológicas entre o visível e o invisível.
O trabalho artístico, uma vez compreendido pela filosofia como produtividade torna-
se via de acesso indireto à realidade.
Como se pode constatar a partir das ideias de Merleau-Ponty, alguns indivíduos
conseguem se adaptar a esta rotina de criar e ressignificar. Esses indivíduos, os artistas
e a forma como eles estão inseridos na sociedade serão o principal foco deste trabalho.
Os artistas são os outros, os diferentes, os que se isolam a si mesmos. Este ser solitário
é, regularmente, tido como um louco devido a suas peculiaridades. Um menino que
se deita no chão a olhar o céu, que passa longos períodos de tempo a desenhar o
mundo e, que anda com os colarinhos sempre assimétricos, é, por excelência, um
exemplar solitário fácil (e por vezes brutalmente) excluído do meio social.
84
4. Ter um olhar diferenciado sobre o mundo é estar fadado à solidão, pois há uma
dificuldade, na sociedade, em aceitar o diferente. Quem vê de longe, só consegue
ver estranheza, mas quem testemunha de dentro, sabe da alegria de todos os dias
revirar-se do avesso para ver o mundo como se fosse a primeira vez. O ato de estar
só, muito longe de ser uma doença, possui faces (causas) que devem ser levadas
em conta. Se quer estar só? Ou seria essa solidão algo atribuído, porém
indesejado? Isolar o diferente culmina numa solidão diferente daquela que é
buscada pelo próprio indivíduo. Bernardo Tanis, em Circuitos da solidão, diz que
“existe a solidão que transcende os termos do poder, baseada na ideia de que há
diferença entre estar só e sentir-se só. Esta solidão é expressa na sensação de estar
só entre muita gente.” (TANIS, 2003, P. 29). A solidão assume um caráter
polissêmico. Pode ser uma força necessária que possibilita a criação artística,
também razão de sofrimento pelo seu caráter excludente. Para alguns teóricos, é
imprescindível vivenciá-la, principalmente para que haja o reconhecimento do
outro.
Afonso Cruz, cria, em o pintor debaixo do lava-loiças um universo no qual as artes
coexistem de forma harmônica. A pintura e a fotografia são peças importantes na leitura
e compreensão deste romance. O diálogo interartes está evidente em toda a sua obra.
Aqui, acompanhamos a vida de um pintor e suas experiência como quem olha um álbum
de fotografia, ou quem está diante de uma pintura. A solidão e o horror experienciados
pelo artista aficionado são presenças comuns no dia-a-dia atual. Mas Afonso Cruz nos
obriga a nos revirarmos do avesso, para enxergar sempre o outro lado de tudo. Seja na
paisagem romântica, ou expressionismo abstrato, a vivência do herói é quase que sentida
85
na pele, podendo ser a de qualquer interlocutor/espectador. Uma viagem épica pelo
sublime e pelo absurdo.
A presença da imagem pictórica na composição da palavra poética revela o
sentimento de um sujeito que projeta seu olhar para o mundo como um elemento
transformador das referências. As pinturas no diálogo com a narrativa de Afonso Cruz,
situam as obras na história e na linha de uma poética definidora das tensões interartes,
pois se apresenta como um espaço de encontro da imagem que busca adensar a natureza
de troca referencial tanto na pintura como na literatura. Estas duas expressões do possível
situam-se num espaço de diálogo perpétuo, pois lidam com um fazer construtivo que cria
espaços no tempo da percepção.
Há beleza e simplicidade no romance de Afonso Cruz. Uma narrativa romântica
tardia, que se quer natural. Há um fluxo do olhar que flui diante das paisagens, que se
imprime no sujeito da percepção. Há um universo de imagens que requer um leitor único,
que perceba que a realidade é um mero acaso “no sopro do verso”.
Com uma variedade de abordagens conceituais e estéticas, os artistas e autores
contemporâneos, os mais jovens, em particular, refletem sobre a questão de suas raízes
próprias e coletivas, citando formas tradicionais de expressão e, ao mesmo tempo,
desenvolvendo sua própria linguagem. Com Afonso Cruz não é diferente. Seja qual for o
caminho que a nova geração de artistas tome, eles estão muito longe de apresentar uma
única e definitiva visão política, ou uma mensagem fechada. Em vez disso, eles pedem
que a dança velada das guerras políticas do dia-a-dia seja esclarecida, para filtar o excesso
de notícias e questionar seus fundamentos. Isso acontece discretamente, mas
inevitavelmente, quase se pode dizer: refinadamente.
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Por fim, é possível depreender que para a literatura e arte contemporânea não basta
apenas existir, elas precisam se inserir no âmbito de uma série cultural complexa e
dinâmica. A palavra poética emerge de um tempo que é seu e da cultura, pois sua
existência está fadada a ser memória de si mesma. A imagem desse dobrar-se e desdobrar-
se agrega uma presença que dinamiza desde que a leitura da palavra poética se situe no
âmbito de uma consciência histórica de seu tempo e de uma percepção do passado.
O conceito de hiraeth (nostalgia, saudade de casa) está continuamente presente em
o pintor debaixo do lava-loiças. Esse Hiraeth captura o isolamento e a saudade de uma
casa que já não existe. É uma palavra de difícil de traduzir diretamente em português,
pois não é um estado de saudade intensa. De acordo com algumas definições desta
palavra, há um elemento temporal para esse anseio. Josef Sors deseja a Bratislava de sua
infância, um lugar inabalável nas suas lembranças, apesar das guerras catastróficas e da
agitação política. Na Volta a Bratislava, a procura de sua mãe, que já não era a mesma,
no hospício já não podia ser encontrado em nenhum mapa. Também buscava a luz, que
que já não chegava aos seus olhos.
Vivemos em um momento em que é preciso reafirmar a todo momento a importância
da arte. As prévias calamidades históricas, reportadas, principalmente através da arte nos
apontam um futuro que reflete passados sombrios. Está aí para quem quer ver, nas cores
de pintores como Klee e Goya, nas palavras de Primo Levi, nos poemas de Jorge de Sena.
Artistas e autores que retrataram violência e horror. Afonso Cruz, em sua sagacidade de
leitor único nos apresenta, através de uma linguagem leve e fluida, verdades duras da vida
de um artista ficcional, quase como em formas de fotografias, momentos capturados em
diversos estágios da vida de um jovem pintor judeu, que sofreu perdas e rejeições, mas
manteve seu único propósito: a arte. Via-se nos desenhos avulsos e muitas vezes não
terminados uma espécie de infinito particular ao artista, que se estendia interna e
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externamente. O Pintor ficcional de Afonso Cruz experienciou horrores, catástrofes e
decepções. Mas também foi feliz, vivendo em mundo só dele. Compartilhou a história de
Rothko, as tristezas e perseguições e o apagamento dos olhos. Compartilhou a solidão da
criação de Caspar David Friedrich. Criou obras e teorias e tornou-se herói e mito. A obra
de Afonso Cruz faz, assim como a terra, movimentos de rotação – em torno da literatura
mundial e das manifestações artísticas – e movimentos de translação – em torno de si
mesma – mas abriga, também, a teoria do eterno retorno, da fuga e a volta ao real é disto
que trata esta épica, contrária àquela dos tempos de Homero, pois, se o homem pós-
moderno não é capaz de derrotar monstros marinhos, resta conseguir retornar a um lugar
em se sinta em casa. Friedrich pintou como nenhum outro, a solidão, em um tempo
anterior às guerras. Rothko pintou em um tempo em que a democracia e a liberdade
pareciam sonhos distantes para o povo do qual descendia. Afonso Cruz, por sua vez,
escreve em um tempo em que se nota a importância de não esquecer o passado. Tempo
em que a história nunca foi tão necessitada.
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