Livro - Sete Aulas Sobre Linguagem Memoria e Historia (Jeanne Gagnebin)

Embed Size (px)

Citation preview

Jeanne Marie Gagnebin

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

Imago

Copyright Jeanne Marie Gagnebin, 1997

SUMARIO

Reviso.Nina Schipper, Mariflor Rocha e J M Gagnebin Capa: Barbara Szaniecki

ApresentaoCIP-Brasil Catalogao na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ 6129s Jeanne Marie Gagnebin Sete Aulas Sobre Linguagem, Memria e Histdna - Rio de Janeira . /mago Ed. 1997 192 p. Inclui apndice e bibliografia ISBN 85,3/20544 t /. Filosofia 2 Literatura Filosofia. L Thula. lL Srie. 3. Filosofia grega.. /Biblioteca Pierre Menard/.

9 15 39

I. O Incio da Histria e as Lgrimas de Tucdides Il. As Flautistas, as Parteiras e as Guerreiras III. Morte da Memria, Memria da Morte: da Escrita em Plato TV. Dizer o Tempo V. Do Conceito de Mimesis no Pensamento de Adorno e Benjamin VI. Do Conceito de Razo em Adorno VII. O Hino, a Brisa e a Tempestade: dos Anjos em Walter Benjamin

49 69

81 107

cm97-0222

100

C00 i

123

Reservados rodos os direitos Nenhuma pane desta obra poder ser reproduzida sem permisso expressa da Editora 1997 IMAGO f0/TORA LTDA. Rua Santos Rodrigues 201-A fstno 20250430 Rio de Janeiro RJ Tel:/02 I/ 293 /092

Apndices I. Baudelaire, Benjamin e o Moderno II. O Campons de Paris: Uma Topografia Espiritual Ill. Infncia e Pensamento 139 155 169

FontesImptesso no Brasil Panted in Brazil

185

APRESENTAO

Recolher vrios textos de pocas diferentes, espalhados em diversas revistas, para public-los urna segunda vez juntos esse gesto no deixa de me assustar. Ele tem um perfume de venerao quase fetichista que no gostaria de reivindicar para mim. Tais coletneas so organizadas, no mais das vezes, por discpulos saudosos, ou espertos editores que se aproveitam de algumas pginas inditas do mestre para lanar mais um livro. No se trata disso aqui. Para dizer a verdade, as razes que me convenceram da utilidade desse empreendimento, afora a charmosa insistncia de Arthur Nestrovski, so de ordem contingente e material, o que me tranqiliza. Dizem respeito precariedade de nossas instituies, em particular de nossas revistas acadmicas: quantas vezes um colega escreve um artigo que poderia lhe interessar e voc nem sabe de sua existncia ou, ento, no consegue o nmero desejado do peridico! Reunir textos esparsos pode, assim, ter o mrito simultaneamente trivial e essencial de juntar materiais para a continuao do trabalho: do seu trabalho como autor e do trabalho dos leitores, quem sabe de um trabalho comum Nesse contexto de trabalho e de reflexo conjuntos, publico aqui sete aulas, seguidas de trs apndices, que tambm se inserem num esprito que pode ser chamado de pedaggico embora esse adjetivo se preste a inmeras confuses. Se, segundo a clebre frmula kantiana, no se pode ensinar a filosofia, s se ensina a filosofar, ento o tom pedaggico desses textos consistir menos na transmisso, certamente importante, de saberes, e mais numa tentativa conjunta de elaborao de algumas questes. Elaborao demorada, paciente,

1 0 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMRIA E HISTORIA

Apresenlaco :

1 1

s vezes hesitante, s vezes precipitada, atravessada por ritmos e tempos diferentes como o caminhar e conversar de amigos, segundo as variaes metafricas em torno do mtodo filosfico, de Plato e " sua "longa estrada at Benjamin e seu "mtodo" como "desvio". Mas ser que h uma questo central nesse itinerrio mltiplo? A releitura desses textos me parece indicar, revelia das intenes primeiras e explicitas da autora pois as questes verdadeiras no nos pertencem, nem so o privilgio exclusivo da conscincia clara um ncleo de interrogao em redor do qual gravitam todos os ensaios, um ncleo que seria, simultaneamente, objeto do desejo e fundamento do pensamento, que o pe em movimento e se lhe esquiva; encontro essa interrogao formulada no texto sobre os livros X e XI das Confisses de Santo Agostinho, "Dizer o Tempo", o ensaio mais pedaggico de todos para mim, pois no sou nenhuma especialista em patrstica. a questo da relao transcendental mtua entre tempo e linguagem, porque no h linguagem que se diga sem se desdobrar nas vrias dobras do tempo, nem tempo que possa se configurar e adquirir sentido, por mais fugaz que seja, sem ser recolhido e articulado por linguagem. Co-pertencer recproco que ressalta a sua comum ligao ausncia: a linguagem s remete ao real, s "coisas", como se diz, porque presentifica sua ausncia e, portanto, como o viu bem Maurice Blanchot, anuncia sempre sua morte; e o tempo no se deixa agarrar, mas s nos pertence no seu incessante escapulir, nesse movimento de promessa e de evaso que nos desapossa de qualquer posse, da dos objetos e daqueles que amamos, mas tambm da posse de ns mesmos. Essa questo genuinamente filosfica, talvez mesmo metafsica ousei at usar o adjetivo "transcendental" , pertence tradio filosfica clssica; uma outra interrogao a acompanha, que geralmente s6 intervm na filosofia como seu no-dito, seu recalcado, talvez: a questo da diferena sexual. Hoje, relendo esses textos, me pergunto se as problemticas no se cruzam e se enredam coin uma intensidade que no suspeitava quando procurava interrogar o uso das metafras sexuais, ou as tentativas de partilha clara entre feminino e masculino, por exemplo, na obra de Plato. Pois a diferena sexual tambm remete a esse limite de ns mesmos que no podemos ultrapassar, que nos limita no duplo sentido de delimitao, portanto de definio, e de limitao, portanto de restrio. Tambm esse li mite, to impensado pelo discurso filosfico, nos constitui e nos escapa corno o fazem temporalidade e linguagem, tambm ele o

signo incontestvel de nossa incompletude, de nossa condio de mortal, como j dizia Homero. E seu reconhecimento pleno, com as angstias e alegrias que comporta, talvez no seja to distante da atividade do pensamento e de seus jogos incessantes, sempre outros, entre alteridade e identidade. Por fim, gostaria de agradecer aos alunos, que, em todos esses anos, pela curiosidade e pelo entusiasmo, mas tambm pelas hesitaes e dificuldades, me incitaram a continuar apostando nesse exerccio simultaneamente srio e leve, essencial e ldico, que se chama filosofia. Campinas, abril de 1996.

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

I. O INCIO DA HISTRIA E AS LAGRIMAS DE TUCDIDES Em memria de Celso M. Guimares

Este artigo retoma algumas aulas de um curso de filosofia da histria, dado h vrios anos. A sua pretenso no acrescentar um comentrio original aos numerosos j existentes sobre as obras de Herdoto e Tucdides, l mas esboar uma descrio da constituio deste tipo de discurso que, mais tarde, ser chamado de histria. Trs aspectos sero ressaltados nesta anlise das prticas narrativas de Herdoto e de Tucdides: a construo da memria do passado, a questo da causalidade e a posio do narrador. So estes trs aspectos que emetem a uma concepo subjacente, explcita ou implcita, das relaes entre o tempo da histria dita "real" (o conjunto dos acontecimentos, Geschichte, em alemo) e o tempo da histria contada (a narrao dos acontecimentos, Geschichte, mas tambm Erzhlung), isto , a dinmica temporal que preside histria enquanto saber (disciplina, "cincia", em alemo tambm Historie). J menciu:lamos que os discursos de Herdoto e Tucdides recebero, mais tarde, o nome de histria. Her6doto ficou, na tradio, como "o pai da histria", enquanto se fazia de Tucdides o primeiro1 Utilizamos em particular a excelente traduo (com introduo de Jacqueline de Romilly) de Herdoto e Tucdides, na Bibliotheque dela Pliade ( Herdote, L'enqute, trad. et notes de A. Barguet; Thucydide, La Guerre du Peloponese, trad. et notes de D. Roussel). As tradues brasileiras de Mrio da Gama Kury deixam muito a desejar e so, freqentemente, corrigidas. Sobre Her6doto e Tucdides, citemos: Franois Chtelet, La naissance de l'histoire (Paris: Minuit, 1962), v. 1, pp. 10-18; Jacqueline de Romilly, na j citada introduo do volume da Pliade; Marcel Dtienne, L'invention de la mythologie (Paris: Gallimard, 1981). Sobre Her6doto, o livro fundamental de Franois Hartog, Le miroir d'Hrodote Essai sur la reprsentation de l'autre (Paris: Gallimard, 1980). Sobre Tucdides, Jacqueline de Romilly, Histoire et raison chez Thucydide (Paris: Belles Lettres, 1967); e tambm Problmes de la democratie grecque (Paris: Hermann, 1975).

16 : SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

historie tem, nesta poca e neste contexto, uma significao muito .mais ampla: ela remete palavra hictr, "aquele que viu, testemunhou". O radical comum (v)id est ligado viso (videre, em Latim ver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e tambm eu sei, pois a viso acarreta o saber). 3 Herdoto quer apresentar, mostrar (apodexis) aquilo que viu e pesquisou. Trata-se, ento, de um relato de viagem, de um relatrio de pesquisa, de uma narrativa informativa e agradvel que engloba os aspectos da realidade dignos de meno e de memria. No h nenhuma restrio a um objeto determinado: a historie pode pesquisar a tradio dos povos longnquos, as causas das enchentes do Nilo ou as razes de uma derrota militar. Esta profuso de dados que nos parecem heterogneos e que incomodam os srios professores atuais, preocupados em distinguir a histria da geografia ou a sociologia da antropologia, esta profuso no embaraa Herdoto, pelo contrrio. O que diferencia a sua pesquisa de outras formas narrativas no o(s) seu(s) objeto(s), mas o processo de aquisio destes conhecimentos. Herdoto fala daquilo que ele mesmo viu, ou daquilo de que ouviu falar por outros; ele privilegia a palavra da testemunha, a sua prpria ou a de outrem. Inmeras vezes, I no decorrer da sua narrativa, o nosso viajante menciona as suas "fontes", se ele mesmo viu o que conta ou se s ouviu falar e, neste caso, se o " informante" tinha visto, ele mesmo, ou s ouvido falar. 4 Esta preocupao que podemos relacionar com a crescente prtica judiciria, na Grcia do sculo V, de audio de testemunhas traz2 3 4 0 que l invalida o titulo da traduo brasileira: Histria da Guerra do Peloponeso, pois histria no existe no titulo grego! Cf. Emile Benveniste, Vocabulaire des institutions indo-europens, citado por Hartog, op. cit., p. 272. A este respeito, cf. Franois Hartog, op. cit., 2". pane, cap. 2; e Marcel Dtienne, op. cit., cap. 3.

historiador crtico. Tais denominaes repousam sobre atribuies posteriores, caractersticas, alis, de qualquer cincia em busca de seu certificado de origem. Mas, nos textos de nossos primeiros "historiadores", a palavra "histria" no existe (no se encontra, fora engano, nenhuma vez na obra de Tucdides), 2 ou, ento, possui um sentido muito afastado do nosso. Pois quando Herdoto declara, nas primeiras linhas da sua obra, "Herdoto de Halicarnassos apresenta aqui os resultados da sua investigao (histories apodexis)...", a palavra historie no pode ser si mplesmente traduzida por histria. O nosso conceito i mplica um gnero cientfico bem determinado; a palavra grega

0 INICIO DA HISTORIA E AS LAGRIMAS OE TUCIOIDES

17

1

consigo uma primeira diferena essencial entre a narrativa "histrica" de Herdoto e as narrativas mticas, a epopia homrica por exemplo. Herdoto s quer falar daquilo que viu ou daquilo de que ouviu falar. O perodo cronolgico alcanado se limita, portanto, a duas ou trs geraes antes da sua visita, pois o resto do tempo se perde no no-mais-visto, isto , no no-relatvel. Em oposio ao nosso conceito de histria, esta pesquisa, ligada oralidade e viso, no pretende abarcar um passado distante. Tal restrio tambm a delimita em relao ao discurso mtico, que fala de um tempo longnquo, de um tempo das origens, tempo dos deuses e dos heris, do qual s as musas podem nos fazer lembrar, pois, sem elas, no podemos saber (idein) daquilo que no vimos. Muito mais que a conscincia de inaugurar uma nova disciplina, designada posteriormente pelo nome de histria, esta oposio crescente tradio mtica que determina, de maneira diversa, tanto a obra de Herdoto como a de Tucdides. interessante notar que Herdoto, quando se refere s vrias partes da sua obra, no usa a palavra histria mas sim a palavra logos (discurso) para identific-las; no fala da "histria" dos Scitas, do Egito ou de Darius, mas sim de logos scita, de logos egipcio ou de logos a respeito de Darius etc. O prprio vocabulrio insiste na grande oposio entre logos e mythos, na qual vai se enraizar a distino entre o discurso cientfico, filosfico ou histrico e o discurso potico-mtico. Distino progressiva que no tem nada de necessrio, nem de evidente, nem de eterno, como uma certa historiografia iluminista triunfante gostaria de estabelecer. Nas primeiras linhas das historiai do nosso primeiro "historiadorrai em acordo, qu si mplesmente de firmar um come or misso com a realidade ex' e, realidade constituiria tambme ineluta_velmeni pe~ os campos de concentrao. Nessa concepo da realidade como uma totalidade socialmente culpada (gesellschaftlicher Schuldzusammenhang) intervm uma outra caracterstica do pensamento dialtico, a saber, a convico de que partiulr_e universal se determinam riu i_we tte, de que no se pode, portanto, analisar um elemento particular sem recorrer sua insero na totalidade social, de que a verdade desse particular s pode ser encontrada na sua determinao pelo universal. Estou resumindo de maneira terrivelmente rpida os dois traos essenciais do pensamento dialtico, tal como Adorno o assumiu como um pensamento critico. Opa eiro trao seria_ento essa coQ Qo do pensamento c_ o ~rocessomediatizado einfinitode transformao; o segundo, aco- ermina o reciproca entreparticular_e universa , concep o uma totalidade articulada, na qual partese todo seatmem mutuamente. Se pensarmos agora juntos esses dois traos, perceberemos que existe necessariamente uma relao nao entre eles, mbora e costume confundi-los amento critico tivesse que ser tamb m e necessariamente um pensamento da totalid.~ cueria insistir aqui nessa distino analtica. Se no nos deixarmos seduzir totalmente pela construo hegeliana do espirito absoluto, poderemos ainda nos permitir diferenciar a possibilidade de critica da possibilidade de totalizao do pensamento. Introduzo esse ponto aqui porque ele me parece essencial para entender melhor o conflito que ops Adorno e Benjamin, e que ressurge talvez tambm em vrias discusses contemporneas sobre a racionalidade e a irracionalidade da nossa (ps)modernidade. Em relao a Adorno e Benjamin, encontramos a melhor explicitao desse conflito na troca de cartas entre eles, de 1938, a respeito da primeira verso do ensaio de Benjamin sobre Baudelaire, que ele tinha escrito a pedido da Revista de Pesquisa Social, do instituto

frankfurtiano de mesmo nome, exilado ento em Nova York. Em nome da redao da revista, Adorno recusa o manuscrito e pede uma reformulao do texto. A sua crtica maior diz respeito ao mtodo benjaminiano de estabelecer paralelos entre caractersticas da obra de Baudelaire e fenmenos histricos contemporneos por exemplo, os choques dos transeuntes nas mas obstruidas de Paris e o ritmo marcado dos versos baudelairianos sem que haja uma mediao mais global por trs dessas associaes esclarecedoras mas no sempre desprovidas de uma certa arbitrariedade. Cito os trechos mais i mportantes da carta de Adorno a Benjamin:

O sentimento de uma tal artificialidade se me impe todas as vezes que o trabalho faz uma afirmao metafrica em lugar de uma afirmao ~rLlifii7 .. A razo (do meu desacordo terico) est em que julgo in e Lz, do ponto de vista do mtodo, tomar "materialisticamente" alguns traos singulares claramente reconhecveis do mbito da superestrutura, pondo-os em relao, sem mediao e at mesmo de maneira causal, com os traos correspondentes da infra-estrutura. A determinao materialista das formaes culturais s6 possvel pela mediao atravs do processo global ... A "mediao" que faz falta e que encontro encoberta por uma conjurao materialista historiogrfica nada mais do que a a teoria, que o seu trabalho se poupa. A renncia teoria afe empiria. De um lado, essa renncia confere empiria um trao lieiite pico, de outro, tira dos fenmenos seu verdadeiro als peso histrico-filosfico, transformando-os em fenmenos experienciados de maneira unicamente subjetiva. Pode-se formul-Io tambm assim: o motivo teolgico que consiste em nomear as coisas pelo seu nome inverte-se tendencialmente numa exposio deslumbrada da facticidade. Para falar de uma maneira drstica, poder-se-ia dizer que o trabalho se alojou no cruzamento da magia com o positivismo. E um lugar enfeitiado: s a teoria conseguiria romper o feitio... (Carta de 10 de novembro de 1938, traduo da autora). H algo de assombroso na reserva com que Benjamin responde a essa carta muito dura. Ele explica a falta de construo terica pela necessidade de reunir os "materiais filolgicos" e defende a "representao deslumbrada da facticidade " como "a atitude autenticamen-

96

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, M E MO RIA E HISTORIA

00 CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN 97

te filolgica". N'o responde principal objeo de Adorno, a saber, a falta de mediao a partir do processo global. Ora, a crtica de Adorno no era simplesmente uma observao metodolgica de tipo acad@mico, mas continha uma suspeita poltica: a falta de boa teoria, isto - - ... Adorno a a ' 'a de dialtica, de mediaa atroe s do . rocesso lobal essa falta imicana a t . - m uma aceitao Frftica da realidade. No ndo, o "recado" de Adorno a tenjamin o seguinte: Benja~tn tenta ser marxista e critico mas, como se esquece da imprescindvel dialtica, cai no mais perigoso positivismo (atrs dessa objeo h tambm, sem dvida, a rivalidade nfluencias entre Adorno e Brecht). Este "lugar enfeitiado", no qual, se do as palavras de Adorno, aloja-se o trabalho de Benjamin, tambm "o cruzamento da magia com o positivismo" e nesse lugar perigoso que reencontramos o nosso tema da mtmesis. Com efeito, as objees de Adorno a Benjamin retomam vrias das observaes crticas do primeiro a respeito da mtmesis: pensamento mgico remanescente, falta de distanciamento crtico e identificao com o existente,Tmnossibilidadee uma vis otalizante e, em ugae- um apego sentimental ao particular, em vez da meao umafalsa i me ratrci ode, ou ainda, como o diz Adorno no comeo do trecho ertado, 'uma afirmao metafrica em lugar de uma afirmao cogente". Em outros textos sobre seu amigo morto, Adorno ressaltar positivamente esses traos metafricos e mimticos. Escreve, por exemplo, no ensaio Caracterstica de W. Benjamin: O pensamento adere e se aferra coisa, como se quisesse transformar-se num tatear, num cheirar, num saborear. Por fora de tal sensualidade de segundo grau, espera penetrar nas artrias de ouro que nenhum processo classificatrio alcana, sem, no entanto, entregar-se por isso ao acaso da cega intuio sensvel (Cohn, 1986, p- 28. Traduo brasileira modificada pela autora) . 2Mas aqui, na correspondncia com o amigo vivo (e tambm concorrente!), Adorno formal: as tendncias mimticas do pensamento benjaminiano apontam para a magia e para a aceitao do2 "Der Gedanke rckt der Sache auf den Leib, als wollte er in Taste,,, Riechen, Schmecken $ich verwandeln. Kraft solcherzweiten Sinnlichkeit hoot er, in die Goldadem einzudringen, die kein klassifikatorisches Verfahren erreicht ohne dock darber dem Zufall der blinden Anschauung sich zu berantworten."

existente. Resumindo: um pensamento crtico deve ser dialtico, no _pode ser mimtico.

Do conceito de mimesis e da sua importncia no pensamento de Walter Benjamin Gostaria de passar agora ao terceiro ponto da minha exposio e de defender a seguinte tese: as suspeitas de Adorno devem ser, ao mesmo tempo, confirmadas e invalidadas; se o conceito de mtmesis bem um conceito-chave na reflexo benjaminiana, porque ele tem um papel positivo, muito instigante e, poderamos afirmar, at critico. Poderamos dizer que a filosofia benjaminiana abre uma possibilidade que me parece essencial para a nossa famosa "ps-modernidade" de um pensamento que desista da viso da totalidade, mas que, no entanto, continue critico e perturbador. No fim da sua vida, Adorno parece ter reconhecido essa possibilidade. Ele se confrontou com ela na Dialtica Negativa (1986): paralelamente, como veremos, reabilitou a categoria da mtmesis na sua Teoria Esttica (1982). Mas vamos primeiro teoria benjaminiana da mtmesis. Ela se encontra, em primeiro lugar, na sua filosofia da linguagem. Benjamin escreveu vrios ensaios sobre linguagem. Para simplificar, podemos dividi-los em dois grupos: os escritos de juventude, fortemente influenciados pela mstica judaica ('Da Linguagem em Gera] e da Linguagem do Homem", de 1916, e "A Tarefa do Tradutor", de 1921) e dois textos curtos escritos depois de 1933, que pertencem, portanto, sua assim chamada fase "materialista". Nesses dois ltimos textos ("Doutrina do Semelhante" e "Sobre a Capacidade Mimtica"), Benjamin esboa uma teoria da mtmesis que tambm uma teoria da origem da linguagem. Como Aristteles na Potica (1979), Benjamin distingue dois momentos principais da atividade mimtica especificamente humana: no apenas reconhecer, mas tambm produzir semelhanas. Essa produo mimtica caracteriza a maior parte dos jogos, das brincadeiras infantis. A criana no brinca s6 de comerciante ou de bombeiro (atividades humanas), mas tambm de trem, de cavalo, de carro ou de mquina de lavar. Como j ressaltava Aristteles, a mtmesis sera ligada por definio ao jogo e ao aprendizado, ao conhecimento e ao prazer de conhecer. O homem capaz de produzir semelhanas porque reage, segundo Benjamin, as semelhanas j existentes no mundo. De maneira paradoxal, essas semelhanas no permaneceram as mesmas no decorrer dos sculos. A

BB :

SETE

AULAS SOBRE

LINGUAGEM, MEMRIA

E

HISTORIA

DO CONCEITO DE MIMESIS NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN

99

originalidade da teoria benjaminiana est em supor uma histria da capacidade mimtica. Em outras palavras, as semelhanas no existem em si, imutveis e eternas, mas so descobertas e inventariadas pelo conhecimento humano de maneira diferente, de acordo com as pocas. Assim, reconhecemos hoje s uma parte mnima das semelhanas, comparvel ponta de um iceberg, se pensarmos em todas as semelhanas possveis. As leis da similitude determinavam, outrora, um vasto saber presente na astrologia, na adivinhao e nas prticas rituais, para citar s alguns exemplos. Tal saber hoje taxado de mgico, em oposio ao saber racional, e o progresso cientfico geralmente compreendido como a eliminao crescente desses elementos mgicos. As reflexes de Benjamin vo numa direo totalmente outra. A sua tese principal que a capacidade mimtica humana no desapareceu em proveito de uma maneira de pensar abstrata e racional, mas se refugiou e se concentrou na linguagem e na escrita. Assistimos portanto (cf. M. Foucault, As Palavras e as Coisas, 1966) no sua decadncia ( Verfall) mas sua transformao. Segundo Benjamin, uma fonte comum une a leitura das constelaes e dos planetas feita pelo astrlogo, a leitura do adivinho das entranhas de um animal e a leitura de um texto: da mesma maneira, o gesto mimtico da dana aparenta-se ao da pintura e da escrita. Tal teoria contradiz, bvio, qualquer concepo da linguagem baseada no arbitrrio do signo. Desde seus primeiros ensaios sobre a linguagem at os ltimos, Benjamin no cessou de condenar essa concepo. Da o seu interesse pelas hipteses onomatopaicas sobre a origem da linguagem, hipteses que ele, no entanto, julga restritivas demais porque ligadas a uma concepo estreita daquilo que constitui a semelhana. Com efeito, tendemos demais a assimilar semelhana, similitude (Ahnlichkeit) com reproduo (Abbildung), a pensar que a i magem de uma coisa a sua cpia. Ou ainda, a definir a semelhana em termos de identidade, dizendo que dois objetos so semelhantes quando apresentam um certo nmero dos mesmos traos. Benjamin tenta pensar a semelhana independentemente de uma comparao entre elementos iguais, como uma relao analgica que garanta a autonomia da figurao simblica. A atividade mimtica sempre uma mediao simblica, ela nunca se reduz a uma imitao. Em vo procurar-se-ia uma similitude entre a palavra e a coisa baseada na imitao. Saber ler o futuro nas entranhas do animal sacrificado ou saber ler uma histria nos caracteres escritos sobre uma pgina

significa reconhecer no uma relao de causa e efeito entre a coisa e as palavras ou as vsceras, mas uma relao comum de configurao. A imitao pode ter estado ou no presente na origem, ela pode se perder sem que a similitude se apague. Benjamin forja assim o conceito de "semelhana no-sensvel" (unsinnliche Ahnlichkeit) e define a linguagem como o "grau ltimo" da capacidade mimtica humana e o "arquivo o mais completo dessa semelhana no-sensvel". Ele explica essa transformao filogentica da capacidade mimtica pelo exemplo ontogentico do aprendizado da linguagem falada e da escrita pela criana. Nas suas lembranas de criana (Berliner Kindheit um Neunzehnhundert, de 1932-33E ' Benjamin narra como ele costumava assimilar as palavras que no tinha "compreendido"; ele as transformava em cartas-enigmas e as mimava, ele as representava como charadas: Assim quis o acaso que se falasse uma vez em minha presena de gravuras [Kupferstich]. No dia seguinte, pus-me debaixo da cadeira e estendia a cabea para fora; isso era um " esconderijo-de-cabea" [Kopf-verstich]. Se, ao fazer isso, eu me desfigurava e a palavra tambm, eu s fazia o que devia fazer para criar razes na vida. Aprendi em tempo a embrulhar-me nas palavras, que eram, de fato, nuvens. O dom de reconhecer semelhanas nada mais do que um tnue residuo da antiga coero a tornar-se semelhante e a comportar-se de maneira semelhante. Essa coero, as palavras a exerciam sobre mim. No as que me faziam semelhante a modelos de virtude, mas a apartamentos, a mveis, a roupas (Benjamin, Ges. Schr., IV-1, p. 261. Traduo da autora). Pelo movimento do seu corpo inteiro, a criana brinca/representa o nome e assim aprende a falar. O movimento da lngua s um caso particular dessa brincadeira, desse jogo. Para a criana, as palavras no so signos fixados pela conveno mas, primeiramente, sons a serem explorados. Benjamin diz que a criana entra nas palavras como entra em cavernas entre as quais ela cria caminhos estranhos. Essa atitude no se deve a uma pretensa "ingenuidade infantil". Pelo contrrio, ela testemunha a importncia do aspecto material da linguagem que os adultos geralmente esqueceram em proveito do seu3 Para uma traduo em portugus, ver 1987)."Infancia

em Berlim por volta de 1900" (Benjamin,

1 00: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

00 CONCEITO DE MIMES/S NO PENSAMENTO DE ADORNO E BENJAMIN

1 01

aspecto espiritual e conceitua], e que s6 a linguagem potica ainda lembra. O mesmo movimento mimtico encontra-se no aprendizado da escrita. Quando a criana comea a escrever, quando ela desenha a letra, ela no s imita o modelo proposto pelo adulto mas, segundo Benjamin, ao escrever a palavra, ela desenha uma imagem (no uma cpia) da coisa, ela estabelece uma relao figurativa com o objeto. Benjamin era um grande colecionador de livros infantis e gostava sobretudo desses abecedrios que juntam na mesma pgina, num quadro familiar e excntrico, as imagens correspondentes a vrias palavras que comeam pela mesma letra, como se ela fosse a figura secreta da sua comunidade. Numa conversa relatada por um amigo, Benjamin teria mesmo defendido a hiptese, primeira vista grotesca, de que "todas as palavras de qualquer lingua so parecidas na sua figurao escrita [Schrift-bild] com a coisa que elas designam" (Lembranas ..., 1968, p. 40). No tambm por acaso que Benjamin, num breve artigo, reflete sobre a escrita chinesa para explicar a relao entre pintura e escrita, a relao figurativa entre a escrita e o real, que no precisa necessariamente ser uma relao de imitao. Portanto, Benjamin recusa-se a operar uma partilha estrita entre a atividade mimtica do desenho ou da pintura e a da escrita. Ele supe estados histricos de transio da pintura escrita por intermdio dos hierglifos e da escrita rnica. Benjamin vai aqui ao encontro das reflexes de Derrida, ao fazer derivar a escrita no de uma abstrao ou de uma conveno (que o nosso alfabeto representaria perfeitamente), mas de um impulso mimtico comum a qualquer inscrio, inscrio no espao pela dana, inscrio numa parede pela pintura, inscrio numa pgina pela escrita. Tal concepo mimtica da linguagem e da escrita no questiona s a tese lingstica do arbitrrio do signo; ela acarreta tambm uma transformao da definio do sentido. Desde os seus primeiros escritos, Benjamin recusa a determinao do sentido como comunicao de uma mensagem, como transmisso de um significado que preexistiria produo da fala. Os ensaios sobre a capacidade mimtica e sobre a semelhana distinguem uma dimenso "semitica" e uma dimenso "mimtica" da linguagem. O adjetivo "semitico" engloba justamente, de maneira bastante vaga, esse aspecto de transmisso dos significados, aquilo que geralmente considerado como

constitutivo do sentido. A dimenso mimtica surgiria do semitico assim como uma imagem fugaz e varivel aparece e desaparece no primeiro plano de um cenrio. O texto literal o fundo nico e imprescindvel para a imagemcarta-enigmtica poder se formar. O composto de sentido que se encontra nos sons da frase portanto o fundo do qual o semelhante pode subitamente vir luz, como um relmpago, a partir de um tom (Benjamin, "Lehre vom Ahnlichen", p. 208-9. Traduo da autora) . 4 Essa imagem rpida, inerente dimenso mimtica da linguagem, constitui para Benjamin o sentido essencial mas mutvel do texto. O sentido como transmisso do significado s seria de fato o pretexto, por certo imprescindvel, que permitiria a elaborao de um outro texto. Aqueles que conhecem melhor o pensamento de Benjamin devem ter percebido que essas reflexes sobre a capacidade mimtica, circunscritas primeiro ao domnio da Linguagem, tambm tem uma i mportancia fundamental para a sua teoria da histria. Alis, a mesma i magem do relmpago doador de sentido que floresce e desaparece num instante, essa imagem caracteriza tanto a dimenso mimtica da linguagem como a verdadeira experincia histrica, tal qual a descrevem as Teses "Sobre o Conceito de Histria" (Benjamin, 1985, p. 222-35). Trata-se, nesse ltimo texto, de pensar um tempo histrico pleno, tempo da salvao do passado e, inseparavelmente, da ao poltica no presente. Esta relao entre passado e presente no pode ser pensada, segundo Benjamin, no modelo de uma cronologia linear, sucesso continua de pontos homogneos, orientados ou no para um fim feliz, pois nesse caso passado e presente no entreteriam nenhuma ligao mais consistente; mas tampouco pode essa relao ser pensada como uma retomada do passado no presente no modo da simples repetio, pois nesse caso tambm no haveria essa transformao do passado na qual a ao poltica tambm consiste. O ressurgimento do passado no presente, a sua reatualizao salvadora ocorre no momento favorvel, no kairos histrico em que4 "So st der buchstb!iche Text der Scant? der Fundus, in dem einzigund allein sick das Vexierbild formen /cairn. So ist der Sinnzusammenhan& der in den tauten des Satzes steckt, der Fundias, aus dem erstblitzartigAhnliches mit einem Nu aus einem Klangzum Vorschein kommen kann. "

102

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMO AIA E HISTORIA

00 CONCEITO BE MIMESIS NO PENSAMENTO DE AOOANO E BENJAMIN : 103

semelhanas entre passado e presente afloram e possibilitam uma nova configurao de ambos. No ensaio sobre Proust, autor que influenciou profundamente sua filosofia da histria, Benjamin ressalta que este surgimento a memria involuntria de Proust tem mais a ver com o esquecimento do que com a memria tradicional. Esta se apega demais ao esforo da conscincia que procura reter o passado na sua identidade, na sua mesmice. Ora, o passado realmente passado ou, como diz Proust, perdido, ele no volta enquanto tal, mas s pode ressurgir, diferente de si mesmo e, no entanto, semelhante, abrindo um caminho inesperado nas camadas do esquecimento. Se h uma retomada do passado, este nunca volta como era, na repetio de um passado idntico: ao ressurgir no presente, ele no o mesmo, ele se mostra como perdido e, ao mesmo tempo, como transformado por esse ressurgir; o passado outro, mas, no entanto, semelhante a si mesmo. Nesse contexto, Benjamin insiste no "culto apaixonado das semelhanas" em Proust e ressalta que essa busca das semelhanas no pode ser confundida com a procura da identidade: o modelo dessa busca o mundo do inconsciente, o "mundo dos sonhos, em que os acontecimentos no so nunca idnticos, mas semelhantes, impenetravelmente semelhantes a si mesmos" (Benjamin, 1985, p. 314). 5 Essa feliz no-coincidncia consigo mesmo tambm atinge o presente, que pode deixar de ser o mesmo para se tornar tambm outro, novo, futuro verdadeiro. Concluso: retomada do conceito de mimesis por Adorno Paremos agora um pouco, depois desse rpido percurso benjaminiano pelos caminhos da semelhana. Dois paradigmas de pensamento parecem se delinear nessa oposio entre Adorno e Benjamin. Do lado de Adorno (de Hegel e de Marx) e das exigncias da dialtica, temos um pensamento regido pela lgica da identidade e da no-identidade, no qual o movimento do processo decorre da contradio e das suas sucessivas figuras de resoluo e de recomposio: um pensamento cuja dimenso temporal remete a uma linearidade essencial, pois a contradio s pode se desenvolver numa sucesso precisa de momentos. Modelo cuja forma bastarda ser a de um determinismo desenvolvista, como se a simples sucesso dos momen-

s

Traduo

de S. P. Rouanet (modificada pela autora).

as pudesse substituir o prprio processo de negatividade e de contradio. Do lado da mimesis, no sentido amplo que Benjamin deu a esse conceito, do lado de Nietzsche certamente e talvez tambm de Freud, encontramos uma Lgica no da identidade, mas da semelhana, portanto uma concepo nunca identitria do sujeito e da conscincia. O movimento do pensamento no remete aqui a contradies sucessivas num processo progressivo, rhas muito mais a um fazer e desfazer ldico e figurativo, ao movimento da metfora. A dimenso temporal no consiste tanto na linearidade, mas mais na contigidade, no num depois do outro, mas num ao lado do outro. Nessa descontinuidade fundamental h momentos privilegiados em que ocorrem condensaes, reunies entre dois instantes antes separados que se juntam para formar uma nova intensidade e, talvez, possibilitar a ecloso de um verdadeiro outro. Se essa diferenciao rpida tiver algo de verdadeiro, ento compreenderemos melhor por que o conceito de mfmesis no pode ser si mplesmente reduzido aos de magia e de regresso: a mimesis indicaria muito mais uma dimenso essencial do pensar, esta dimenso de aproximao no violenta, ldica, carinhosa, que o prazer suscitado pelas metforas nos devolve. Ela aponta para aquilo que Adorno, na sua Teoria Esttica, define como o Telos der Erkenntnis, o "Telos do conhecimento" (1982, p. 87): uma aproximao do outro que consiga compreend-Io sem prend-lo e oprimi-lo, que consiga diz-lo sem desfigur-lo. Essa proximidade na qual o espao da diferena e da distncia seja respeitado sem angstia, esse conhecimento sem violncia nem dominao j era a idia reguladora que orientava toda . crtica de Adorno na Dialtica do Esclarecimento. E a idia de uma reconciliao possvel, mas cuja realizao, em oposio dialtica do esprito absoluto em Hegel, sempre nos escapa. Esse movimento de promessa e de reserva descreve a dialtica que Adorno, no fim da sua vida, chama de "dialtica negativa", pois nunca repousa em si mesma, nunca sossega na possibilidade da totalidade. O privilgio da obra de arte seria, segundo o ltimo texto de Adorno, a sua Teoria esttica, de manifestar, de dar a ver numa configurao sensvel e histrica esse movimento da verdade. A arte o "refgio do comportamento mimtico" (Adorno, 1982, p. 86), mas de uma mfinesis redimida que conseguiria fugir tanto da magia como da regresso. Cito na traduo portuguesa: "Mas o comportamento esttico no

1 04: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMRIA E HISTRIA

nem mimese imediata, nem mimese recalcada mas o processo que ela desencadeia e no qual se mantm modificada" (Adorno, 1982, p. 364). Algumas linhas abaixo Adorno retoma a associao entre o comportamento mimtico originrio e o calafrio do homem que estremece de medo perante o monstro. Vocs lembram que essa reao originria de "idiossincrasia" era citada por Adorno na sua crtica ao comportamento mimtico perverso do anti-semita. Aqui, na ltima pgina da Teoria Esttica, esse arrepio mimtico originrio reaparece, mas sob sua figura reconciliada: o tremor do sujeito perante a beleza; essa febre sagrada que, no Fedro de Plato, aqui tambm citado por Adorno, apodera-se do amante quando v o amado, pois este lhe lembra a viso da divindade. Ali, diz Adorno, o sujeito se deixa atingir, afetar pelo objeto, mas esse toque recproco no produz feridas; o sujeito no apaga nem submete o outro a si mesmo num gesto prepotente. Experincia ertica e esttica que tambm define, segundo o velho ensinamento platnico, a experiencia do conhecer verdadeiro, isto , da unio entre Eros e Logos.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T. W. Teoria Esttica. Trad. Artur Mouro. So Paulo: Martins Fontes, 1982.

Dialtica negativa. Madrid: Taurus, 1986.ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M. Dialtica do Esclarecimento. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

ARISTTELES. Potica. So Paulo: Abril Cultural, 1979. Trad. Eudorode Souza. BENJAMIN, W. "Sobre o Conceito de Histria", In: Obras escolhidas. Trad. de S. P. Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1. . "A Imagem de Proust". In Obras escolhidas. Trad. S. P. Rouanet. So Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1. "Infncia em Berlim por volta de 1900". In: Obras escolhidas. Vol. II, Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e Jos Carlos Martins Barbosa. So Paulo: Brasiliense, 1987. . "Lehre vom hnlichen". In: Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, vol. II-1, p. 204. ."Berliner Kindheit um Neunzehnhundert". In: Gesammelte Schriften. Frankfurt am Maim: Suhrkamp Verlag, vol. IV-1. COHN, G. (Org.) Theodor W. Adorno. So Paulo: tica, 1986 (Coleo Grandes Cientistas Sociais). DERRIDA, J. "La mythologie blanche". In Marges de la philosophie. Paris: Ed. Minuit, 1972. FOUCAULT , M. As Palavras e as Coisas. So Paulo: Martins Fontes, 2" Ed. 1981. Trad. Salma T. Muchail. FREUD, S. Alm do Principio do Prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1975. FRCHTL, J. Mimesis Konstellation eives Zentralbegriffs bei Adorno. S.1.: Knigshaus und Neumann, 1986. PLATO. Phdre. Paris: Les Belles Lettres, 1978. Trad. Lon Robin. . La Rpublique. Paris: Les Belles Lettres, 1932. Trad. Emile Chambry.

1 06 .

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

Le Sophiste. Paris: Les Belles Lettres, 1925. Trad. Auguste Dis.

VI. DO CONCEITO DE RAZO EM ADORNO A Marcos, que no desiste da totalidade

Seltz, J. "Lembranas". In: ber Walter Benjamin. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1968.

Para este carrefour sobre a Escola de Frankfurt escolhi trs textos de Adorno que gostaria de ler e comentar com voces. Preferi este caminho de anlise a um outro possvel, ode uma introduo geral problemtica dos frankfurtianos. Tais introdues no passam, na maioria das vezes, de generalidades bastante vagas, pois no h, rigorosamente falando, uma unidade doutrinria na Escola de Frankfurt H muito mais preocupaes comuns, comuns alis a muitos outros pensadores da poca, como Lukcs e Korsch, por exemplo, preocupaes que acarretam reflexes e concluses diferentes, s vezes antagnicas, nos abusivamente chamados "frankfurtianos". s pensar, por exemplo, nas posies respectivas de Benjamin e de Adorno sobre a funo da arte na modernidade ou de Adorno e de Marcuse a respeito da importancia do movimento estudantil. Vou, ento, restringir-me filosofia de Adorno e, em particular, a uma anlise da funo que o conceito de razo a desempenha. A nossa hiptese de trabalho consiste na afirmao de que esta filosofia vive da tenso entre a crtica da racionalidade iluminista e a reabilitao paradoxal da metafsica. Gostaria de expor esta tese com trs textos que datam de pocas diferentes: o primeiro, da Dialtica do Esclarecimento, de 1944; o segundo, de Mnima Moralia, de 1947; e o terceiro, da Dialtica Negativa, de 1966. Adianto tambm que esta exposio se apia basicamente nas reflexes crticas de A. Wellmer l e J. Habermas. 2Wellmer, A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne (Frankfurt am Main: Surhkamp, 1985). 2 Habermas, J. DerPhilosophischeDiskurs derModeme(Frankfurt am Main: Surhkamp, 1985). 1

1 08: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM. MEMRIA E HISTRIA

DO CONCEITO OE RAZO EM ADORNO

1 09

Escrito no exlio por Adorno e Horkheimer, o livro Dialtica do

Esclarecimento tido como uma das mais negras, das mais pessimistasobras da filosofia contempornea (Habermas, p. 150). Pessimismo cuja justificativa maior se encontra certamente na dramtica poca histrica da sua redao: de um lado, o nazismo triunfante, do outro, o stalinismo e, no meio, o exlio dos autores, a constatao do profundo aburguesamento da classe operria no capitalismo avanado. Para onde quer que se dirijam os olhares s h dominao e morte e, pior ainda, acomodao morte e resignao dominao. Adorno e Horkheimer tentam entender como o antigo ideal de razo emancipadora, ideal explicito no Iluminismo, mas, segundo eles, j presente na origem da racionalidade ocidental, como este ideal deu luz um sistema social no qual racionalidade e dominao so inseparveis. Essa "meta-histria da razo" (Wellmer) pretende ser, ao mesmo tempo, tambm uma histria do poder social-poltico. A primeira hiptese da Dialtica do Esclarecimento, hiptese afirmada, nunca discutida, , portanto, a de que estruturas da organizao racional e estruturas da organizao social no s se correspondem como se apiam mutuamente. Hiptese oriunda certamente da crtica marxista ideologia, mas que tem, alm disso, a pretenso de reconstruir o quadro transcendental do desenvolvimento da razo na sociedade ocidental. A tese principal do livro consiste na proposio enunciada no prefcio:

O mito j esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter mitologia (Dialtica do Esclarecimento, p. 15). [Ver bibliografia, p. 122 abaixo.]

Segundo Habermas (pp. 131-138), temos trs passos (que correspondem aos captulos iniciais) na argumentao que mostram essa imbricao da razo e do mito, a sua superao posterior e, finalmente, o enclausuramento da razo num pensamento to constrangedor e ameaador como as lendas mticas: 1. O primeiro passo mostra a imbricao, desde o incio, entre esclarecimento e mito, isto , entre uma faculdade de emancipao e de crtica e aquilo que pretende combater, as foras cegas da natureza que negam a autonomia do sujeito. Na sua luta contra o mito, a razo fica, por assim dizer, contagiada pelas foras s quais se ope e cair

no seu desenvolvimento ulterior, nos mesmos mecanismos de ofuscamento que criticava originariamente no mito. Esse processo ilustrado na constituio do sujeito racional de maneira privilegiada na belssima anlise da Odissia, que no retomarei aqui. Esse desenvolvimento ulterior da racionalidade iluminista analisado nas suas contradies no capitulo consagrado moral. 2. O segundo passo (sobre a Juliette, de Sade) tratar das peripcias da tica iluminista (isto , no fundo, da concepo de prtica do esclarecimento), tanto na sua constituio em Kant como na sua autodestruio em Nietzsche e Sade. Como tinham mostrado que o esclarecimento j estava embutido no mito, Adorno e Horkheimer mostram agora que as insuficincias e os paradoxos da moral iluminista j se encontravam em sua origem no paradigma kantiano e se reproduzem na radicalidade oposta de Nietzsche e Sade. 3. Enfim, num terceiro passo, a possibilidade de uma sada esttica ser questionada. O capitulo sobre indstria cultural encarrega-se de negar notadamente contra Walter Benjamin a possibilidade de uma transcendncia dentro da modernidade, tambm no dominio esttico. Esse captulo, talvez o mais dogmtico, ser submetido a vrios remanejamentos e criticas, inclusive da parte dos prprios autores. Podemos fazer duas observaes a propsito deste brevssimo resumo da Dialtica do Esclarecimento:, A sua pretenso critica recobre o campo das trs crticas kantianas; os primeiros captulos, sobre o entrelaamento da razo e do mito, correspondem Critica da Razo Pura; o terceiro, sobre a moral iluminista, Critica da Razo Prtica; e, enfim, o ltimo, sobre indstria cultural, Critica do Juizo. O alcance epistemolgico do livro , portanto, geral. E como sublinha Habermas (op. cit., p. 145), toda a filosofia de Adorno, at os ltimos escritos, Negative Dialektik e Aesthetische Theorie, retomam e variam a problemtica j esboada nessa obra de juventude. Tratar-se- sempre de saber como um pensamento crtico possvel, ainda que ele tambm se inscreva dentro de um conjunto social totalitrio e afirmativo, ou, mais precisamente em relao idia de razo, como manter a esperana de emancipao do esclarecimento quando este se tornou, ele mesmo, a figura mais acabada do cerceamento mtico contra o qual pretendia lutar.

110: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMRIA E HISTRIA

00 CONCEITO DE RAZO EM ADORNO : 111

Questo ao mesmo tempo transcendental e prtica, que remete necessidade da critica tanto no sentido kantiano quanto no sentido marxista: questo que s pode ser colocada desta forma, devemos observ-lo, porque a filosofia adorniana repousa numa viso dialtica do real que pressupe, em particular, a existncia de um sistema social-poltico totalizante, isto , no qual a totalidade determina integralmente os elementos particulares, enquanto estes s podem ser compreendidos como constitutivos dessa totalidade. essa pressuposio dialtica, na boa tradio hegeliana e marxista, que torna a questo da possibilidade da ruptura crtica to necessria e to dramtica. Depois desta breve introduo, podemos agora ler o nosso primeiro texto. No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posio de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginao pelo saber. (...) Os deuses no podem livrar os homens do medo, pois so as vozes petrificadas do medo que eles trazem como nome. Do medo o homem presume estar livre quando no h mais nada de desconhecido. isso que determina o trajeto da desmitologizao e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento a radicalizao da angstia mtica. A pura imanncia do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples idia do "fora" a verdadeira fonte de angstia (Dialtica do Esclarecimento, pp. 19 e 29). Gostaria de ressaltar duas hipteses-chaves da Dialtica do Esclarecimento neste belo texto: O progresso do pensamento fora do mito para o esclarecimento, progresso questionvel e questionado, no desencadeado por um interesse desinteressado pelo conhecimento "enquanto tal". Origina-se muito mais num sentimento bsico, no medo que acomete o frgil homem frente As foras da natureza e violncia social. 0

prprio pensar desencadeado pelo medo. O saber enraza-se nessa tenso entre medo e emancipao. O problemtico desse desenvolvimento do pensamento no se encontra, segundo Adorno e Horkheimer, nessa sua origem. Encontra-se na "soluo" levantada para escapar ao medo. O saber que deve liberar do medo definido como um poder no sentido forte de domnio: s quando os homens se tornam "senhores" que eles conseguem ficar sem medo. Esse processo de dominao cada vez mais amplo no decorrer da histria: os mitos enquanto falas j representavam uma tentativa de dominar a angstia, dando-lhes um(s) nome(s); mais tarde, a crtica aos mitos e concepo animista da natureza configura um domnio do logos (razo e linguagem) sobre si mesmo, um autodomnio, portanto. O processo de desmitologizao culmina no de dessacralizao, em particular, na denncia moderna da religio: os deuses no passariam de projees humanas, encarnaes dos seus medos e dos seus desejos: ...no podem livrar os homens do medo, pois so as vozes petrificadas do medo que eles trazem como nomes. A crtica da religio permite a faanha, caracterstica da nossa modernidade, da tomada de poder dos homens sobre os deuses, do humano sobre o divino e o sagrado. Tendo chegado af, o homem dever-se-ia encontrar livre do medo, pois no h mais nenhuma figura onipotente que possa amea-lo. Ora, paradoxalmente, a erradicao do medo pelo esclarecimento no produz mais a sua libertao, pelo contrrio, sempre segundo Adorno e Horkheimer, a ...terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. Poderamos tambm dizer que a luz branca da razo, do esclarecimento, transforma-se na escura luz devoradora da onipotncia: ao querer se livrar do medo pelo domnio total (e totalitrio) sobre o real, a razo do esclarecimento no pode mais tolerar nada que lhe escapa, nem deuses, nem estrelas, nem sonhos. O esclarecimento precisa tudo controlar para se sentir seguro. Ao tentar isso, cai num processo de coero to ameaador como o cego destino mtico. Isso se deve a duas razes interligadas: 1) como o esclarecimento pretende

112: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

DO CONCEJO DE RAZO E M AOORNO : 113

abarcar tudo, qualquer fora que viesse de fora se tornaria intensamente ameaadora, pois colocaria em questo essa totalidade fechada (no pensamento mtico, a relao com o fora era, sem dvida, angustiante, mas, ao mesmo tempo, comum, normal, pois os prprios mitos tematizavam essa interveno do outro); 2) a denegao da existncia de um fora que lhe escapasse e a afirmao do seu controle todo poderoso no fortalecem a razo, apesar das aparncias: tomam-na simplesmente mais frgil porque mais entregue s suas prprias interdies, aos seus prprios tabus. Resumindo: a razo triunfante s vence ao preo de uma proibio ditatorial sobre si mesma, a prpria razo se torna o deus ameaador mtico em relao a si mesma. O grande tema iluminista da autonomia da razo (isto , o fato de ela se dar as suas prprias leis e de no aceitar obedecer a nenhum poder exterior) transforma-se, na anlise de Adorno e Horkheimer, no tema do autodomnio, e mais, da auto-represso da razo sabre si mesma. Vocs devem ter percebido que a argumentao de Adorno e de Horkheimer retoma motivos marxistas, freudianos e, como o ressaltam Wellmer (p. 15 e ss.) e Habermas (p. 144 e ss.), nietzschianos. Seguindo esses dois comentadores, gostaria de explicitar rapidamente esse parentesco com Nietzsche. A relao de Adorno e Horkheimer a Nietzsche , como diz Habermas, zwiespaeltig ("cindida") (p. 145). Se criticam o Iluminismo, continuam, porm, iluministas, pois retomam e reafirmam o ideal de emancipao da razo, denunciando as suas perverses, mas reivindicando o valor de verdade da sua exigncia critica. Nesse contexto, Nietzsche condenado como sendo, em ltima anlise, um irracionalista (essa denncia do irracionalismo orientar tambm os vrios textos de Habermas a respeito de Nietzsche). No entanto, como o mostram Wellmer e Habermas, Nietzsche est presente na hiptese epistemolgica maior da Dialtica do Esclarecimento, a saber, na reduo genealgica da racionalidade iluminista a uma dinmica do poder. Podemos desdobrar essa denncia nos dois traos principais da razo iluminista, segundo nossos autores, no seu carter instrumentalista e no seu apego identidade. O conceito de "razo instrumental" (cf. Horkheimer, Zur Kritik der Instrumentellen Vernunft, 1947) remete diferena entre entendimento e razo (Habermas, p. 144) e denuncia o formalismo da razo como um mero instrumento de clculo e de dominao. Esse tema profundamente nietzschiano, pois afirma que os conceitos no tm um outro valor de verdade

seno o de ser, exclusivamente, instrumentos arbitrrios que permitem se apoderar da realidade ("arbitrrios" no sentido igualmente nietzschiano de que eles servem mais ou menos bem aos interesses daqueles que os usam, no no sentido clssico de que representariam esquemas de apreenso mais ou menos fiis ao real). Assim desaparece, como Habermas no se cansa de repetir a propsito de Nietzsche e dos seus seguidores (cf. p. 144), a diferena entre validade (Geltung) e poder ( Macht), e isso dentro da prpria razo filosfica que, pelo menos na sua origem, na luta de Plato contra a sofistica, pretendia resguardar a no-identificao dessas duas instncias. A denncia da instrumentalidade da razo retomada e ampliada na crtica adorniana do conceito de identidade, critica esta que percorre toda a sua obra tanto que Wellmer pilde intitular um dos seus ensaios "Adorno, Anwalt des Nicht-Identischen" ("Adorno, Defensor do No-Idntico" ). Esta discusso do conceito de identidade, em particular do seu carter arbitrrio e coercitivo, que impede a razo de pensar a pluralidade e a multiplicidade, comum a toda a reflexo contempornea (cf., por exemplo, Heidegger, Deleuze etc.). A sua fonte se encontra, claro, na dialtica hegeliana, mas tambm e em particular no que diz respeito ao carter coercitivo do conceito de identidade, em Nietzsche. Wellmer menciona (p. 148) dois fragmentos pstumos de Nietzsche que cito a seguir (traduo caseira): A lgica est ligada seguinte condio: contanto que haja casos idnticos. Com efeito, para que possamos pensar e concluir logicamente, essa condio tem a obrigao de ser fingida como antes comprovada. Isto : a vontade de verdade lgica s se pode cumprir depois de ter sido aceita uma falsificao de princpio de todo acontecer. Disso resulta que aqui reina uma pulso (Trieb) capaz dos dois meios, primeiro da falsificao, e depois do cumprimento do seu ponto de vista: a lgica no nasce da 3 vontade de verdade.3 "DieLogik istgeknuepft au die Bedingung:gesetzt, es gibt identischeFaelle. Tatsaechlich, damit logisch gedacht undgeschlossen werde, muss dieseBedigung erst ais erfuelit fingiert werden. Das heissh der W illezur logischen Wahrheitkann erstsich voliziehen, nachdem einegrundzaetzliche Faelschung alles Geschehens angenommen Woraus sich ergibt, dass hier ein Trieb waiter, der beiden Mittel faehig ist, tuent der Faelschung und dann der Durchfuemngseines GesichtspunMes: die Logik stammt nicht aus dem Witten zur Wahrheit" (Ed. Schlechta, vol. III, p. 476).

114

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM . MEMRIA E HISTORIA

DO CONCEITO DE RAZO EM ADORNO : 115

E: A obrigao de formar conceitos, gneros, formas, fins, leis ("um mundo de casos idnticos") no deve ser entendida como se pudssemos assim fixar o mundo verdadeiro, mas como a obrigao de nos ajeitar um mundo sob medida, no qual a nossa existncia seja possvel: criamos assim um mundo que calculvel, simplificado, compreensvel etc., para n6s. 4 No decorrer de toda a sua obra Adorno retoma, e mesmo intensifica, esta tese nietzschiana: o pensamento opera com representaes, conceitos, idias etc. que pressupem uma ordenao arbitrria (Nietzsche diz, de maneira bastante paradoxal, uma "falsificao") da multiplicidade do real. Essa ordenao no simplesmente imprescindvel sobrevivncia do ser humano; ela contm em si um momento de dominao, pois pretende fazer entrar a pluralidade concreta na camisa-de-fora do idntico. Ou ainda: o conceito de identidade no somente uma condio necessria ao funcionamento da racionalidade ocidental, mais que isso ele configura uma tomada de poder nada inocente sobre a realidade, e s consegue apreend-la pela violentao. Duas breves observaes se impem neste ponto da nossa exposio: Pode-se e deve-se aplicar noo de identidade, tal qual Adorno a emprega, a mesma critica que ele aplica razo iluminista, isto : Adorno encobre com um nico conceito uma multiplicidade de usos e contextos nos quais as palavras "identidade", "identificar", "identificao" etc. funcionam. Essa observao de Herbert Schnaedelbach s provm da preocuPao atual da filosofia analtica com uma clarificao da linguagem filosfica, pois, segundo essa direo anaIftica, a maioria dos problemas filosficos remeteria a um uso confuso das palavras e a uma substancializao desse uso (cf. Wittgenstein). Sem querer entrar nesse debate, podemos notar, com Schnaedelbach,4 "Man soil die Noetigung, Begdffe, Gattungen, Formen, Zwecke, Gesetze zu bilden nine Welt der identischen Faelle) nichtso verstehen, ais ob wirdamit die wahre Weltzu /ixieren instande waeren, sondem ais Noetigung, uns Bine Welt zurechtzumachen, bei der unte Existenz ermoeglicht wind: wir schaffen damit eive Welt, die berechenbar, vereinfacht, verstaendlich usw, fuer uns (Id., p. 526). 5 Schnaedelbach, Herbert. "Dialektik ais Vernunftkritik, zur Konstruktion des Rationalen bei Adorno", in Adorno Konferenz 1983. Frankfurt am Main: suhrkamp, 1983, especialmente pp. 69 e ss.

que Adorno no distingue, por exemplo, "identificao" e "adequao", "identidade" e "igualdade", "identificar com algo" e "identificar como algo" etc. Isso lhe permite, entre outras coisas, uma aproximao talvez rpida demais entre a lgica da identidade e a lgica capitalista da troca ou entre a lgica da identidade e a constituio repressiva do sujeito. No aqui o lugar de desenvolver estas observaes, que quis, porm, mencionar, pois me parecem muito instigantes e ajudariam talvez a no sucumbir totalmente aos encantos da radicalidade adorniana. Segunda observao que nos levar a nosso segundo texto. Como Wellmer o ressalta (pp. 148-149), a idia de uma ligao entre formas de pensamento e formas de dominao da natureza no remete s a Nietzsche, mas, claro, tambm a Marx, com a diferena de que esse processo de dominao da natureza pensado positivamente em Marx como fazendo parte do processo de trabalho. Na Dialtica do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer radicalizam ento a tese marxista da correspondncia entre formas de pensamento e formas de trabalho ao denunciar, no prprio conceito marxista de trabalho, um momento de violncia. Ou, dito de outra maneira: o pensamento de Marx tambm se inscreve na racionalidade iluminista e incorpora suas caractersticas de dominao. Essa crtica a Marx no impede que, agora contra Nietzsche, Adorno e Horkheimer compartilhem do mesmo conceito enftico de verdade que o marxista, quando denunciam o carter ideolgico da racionalidade instrumental. No afirmam somente, como Nietzsche, que o pensamento identificador domina, violenta e, nesse sentido, falsifica o real (relativismo dos valores, perspectivismo etc.). Dizem tambm, com Marx, que essa violncia no remete somente a uma condio transcendental do conhecimento humano, mas muito mais a uma dominao prtica, que essa "falsificao" no provm s de um perspectivismo universal, mas que ela muito mais "uma aparncia socialmente necessria", como Marx o elucida no pargrafo sobre o valor fetiche da mercadoria. H, portanto, diz Wellmer que sigo totalmente nesse ponto , uma concepo normativa da verdade que funciona como critrio de denncia e orienta a exigncia de emancipao comum a Marx, Adorno e Horkheimer. S6 que essa verdade no pode ser pensada, na critica adomiana, nem com os instrumentos da nossa racionalidade identificadora nem com os valores vigentes da nossa sociedade, embora e isto a cruz da

116

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMORIA E HISTORIA

00 CONCEITO DE RAZO EM ADORNO : 117

dialtica adrniana no haja outros meios disposio. Cito

Wellmer (p. 149):

Adorno e Horkheimer retm com a perspectiva utpica da teoria marxista tambm um conceito enftico de verdade que deve, porm, ser pensado ao mesmo tempo exterritorialmente em relao ao mundo do pensamento identificador, ao contexto de ofuscamento da racionalidade instrumental . 6 essa contradio entre a necessidade de pensar a verdade na sua figura de no-identidade, de diferena, de outro e a impossibilidade de escapar falsa totalidade ideolgico-social que tematiza o nosso segundo texto: A nica filosofia ainda responsvel em face do desespero seria urna tentativa de considerar todas as coisas como elas se apresentariam na perspectiva da redeno. O conhecimento no tem outra luz que aquela que a redeno irradia sobre o mundo: todo o resto se esgota na mera reproduo e permanece um fragmento de tcnica. Seria preciso abrir perspectivas nas quais o mundo se mostrasse em suas alienaes, em suas descontinuidades e em suas fraturas, da mesma maneira que aparecer um dia, carente e deformado, sob a luz do messianismo. O que importa antes de mais nada ao pensador abrir tais perspectivas, sem arbtrio e sem violncia, derivando-as do contato sensvel com os objetos. o mais simples, porque a situao reclama imperiosamente tal conhecimento, e porque a negatividade consumada, vista em seu conjunto, coincide com a imagem especular do seu contrrio. Mas tambm algo totalmente i mpossvel, porque pressupe um lugar, subtrado gravitao do existente, ainda que de forma infinitesimal, ao passo que todo conhecimento possvel, se quiser ser rigoroso, deve ser arrancado pela violncia ao que , e est afetado precisamente por essa razo, pela mesma deformao e pela mesma insuficincia daquilo a que pretende escapar. Quanto mais apaixonadamente o pensamento quer isolar-se de seus condicionamentos, em busca do incondicionado, tanto mais inconsciente e portanto mais fatdica sua absoro pelo mundo. Precisa com6 "Adorno und Horkheimer batten mit der utopischen Perspektivedermanschen Theoriezugleich einen emphatischen Begrii der Wahreit fat, der aber nun gleichsam exterritodal gedacht werden muss zur Welt des identilrzierenden Denkens, mm Verblendunszuzammenhang der instrumentellen Rationalitaet" (op. cit., p. 149).

preender sua prpria impossibilidade, a fim de salvaguardar sua possibilidade. Mas, tendo em vista as exigncias que dal decorrem para o pensamento, a questo da realidade ou irrealidade da redeno se torna quase indiferente. ] No vou me demorar no comentrio deste belssimo texto, que, parece, se basta a si mesmo, e que conclui a srie de aforismos Minima Moralia, subttulo Reflexionen aus dem beschaedigten Leben (Reflexes a Partir da Vida Danificada), um dos mais pungentes livros de Adorno. Gostaria de ressaltar tres pontos. 1. Todo o texto remete, no h dvida, a motivos da teologia, em particular da teologia neggativa. O motivo mais forte , como Michael Theunissen observa, o da prolepse, isto , a presena antecipada do futuro no presente. Assim, Adorno evoca um conhecimento "na perspectiva da redeno" e afirma que o "conhecimento no tem outra luz que aquela que a redeno irradia sobre o mundo". Atrs dessas formulaes h a bela idia de que todas as feridas do mundo s podero ser realmente conhecidas e reconhecidas no dia em que puderem igualmente ser enfim curadas; antes desse dia no h possibilidade de conhec@-las integralmente, pois o prprio sofrimento do mundo afeta a nossa percepo, tornando-a grosseira e indiferenciada. Paralisia que poderamos, talvez, interpretar tambm como uma estratgia canhestra de sobrevivncia: no podemos nem queremos enxergar a amplido do desastre, pois esta vista nos mataria; s o ousaremos quando houver, justamente, possibilidade de redimir este nosso mundo e este nosso olhar; mas paralisia que tambm remete quilo que Adorno chama vrias vezes de Verblendungzusammenhang, de contexto de ofuscamento, isto , ao fato de o nosso conhecimento, de o nosso pensamento racional em geral, no poder se furtar ao contexto social-politico de dominao. Essa contaminao do pensamento por aquilo contra o qual pretende lutar nos leva nossa segunda observao. 2. luz da redeno se ope, pois, no prprio texto, a escurido da "negatividade consumada". No pensamento de Adorno de Minima Moralia o corpo social na sua totalidade alienado. Mais: o sistemaHabermas, J. "O idealismo alemo dos filsofos judeus", ensaio no qua] este fragmento de Minima Moralia traduzido, trad. de B. Freitag e S. P. Rouanet, in Habermas (sdo Paulo: tica, 1980), p. 99. 8 Theunissen, Michael. "Negativitaet bei Adorno", in Adomo-Konferenz 1983, op. cit., especialmente pp. 54 ss. 7

118: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM , MEMRIA E HISTRIA

DD CONCEITO DE RAZO EM ADORNO

119

capitalista, entendido dialeticamente no sentido marxista, condiciona tambm as formas de resistncia a ele. O pensamento no escapa a essa determinao implacvel. Ciente disso, ele deseja fugir do contexto social alienado e, justamente nesse movimento de raiva, reproduz a violncia da totalidade.

...Todo conhecimento possvel, se quiser ser rigoroso, deve ser arrancado pela violencia ao que e est afetado precisamente por essa razo, pela mesma deformao e pela mesma insuficincia daquilo a que se pretende escapar.

Adorno no um dos numerosos pais do irracionalismo contemporneo) assinala uma certa humildade do pensar que quer seguir com ternura os contornos do sensvel, gratuitamente, por simples prazer e respeito, sem calcular antes qua] poderia ser o "lucro" que da resultaria ou no. Esse gesto dever assumir uma importncia crescente na filosofia de Adorno, alimentando toda a sua revalorizao do conceito de mimesis, no como mera imitao nem como intuio aconceitual, mas, justamente, como uma flexibilidade aconchegante singularidade e multiplicidade do concreto: o que desembocar na sua teoria esttica (cf. Schnaedelbach, op. cit., p. 81, e Wellmer, op. cit., p. 153). Espero que tenhamos agora elementos suficientes para chegar ao nosso ltimo texto que se encontra na Dialtica Negativa, que um pouco a suma terica de Adorno ao lado de e junto com a sua Teoria Esttica. Transcrevo este pargrafo, situado nas ltimas pginas da obra: Dialtica a autoconscincia do contexto objetivo de ofuscamento mas no lhe escapou ainda. Irromper dele a partir de dentro objetivamente sua meta. A fora para a irrupo lhe advm a partir do prprio contexto de imanncia; a ela caberia ainda uma vez aplicar a palavra de Hegel: a dialtica absorve a fora do adversrio e a emprega contra ele; no s no singular, visto dialeticamente, mas tambm, por fim, no todo. Ela apreende com os meios da lgica o seu carter de coero, esperando que ele ceda. Pois essa coero , ela mesma, a aparncia mtica, a identidade imposta. O absoluto, entretanto, como se afigura metafsica, seria o no-idntico que to-s afloraria depois que a coero identidade se tivesse desfeito. Sem a tese da identidade a dialtica no o todo; mas ento tambm no seria urna falta capital abandon-la num passo dialtico. da determinao da dialtica negativa no tranqilizar-se em si mesma como se ela fosse total; esta a sua figura de esperana. 99 Negative Dialektik, p. 396 (trad. JMG). "Dialektik ist das Selbstbewubtsein des objektiven Verblendungszusammenhangs, nicht bereits diesem entronnem. Aus ihm von innen her auszubrechen, ist abjektiv ihr Ziel. Die Kraft zum Ausbruch wdchst ihr aus dem lmmanenzzusa,nmenhang zu; au(sie ware, noch einmal, Hegels Diktum anzuwenden, Dialektik absorbiere die Kraft des Gegners, wende sie gegen ihn; nicht mur im dialektisch Einzelnen sondem am Ende im Ganzen. Sic fabt mit den Mitteln von Logik doren Zwangscharakter, hoffend, dap erweiche.

Nesse total ofuscamento, nenhuma alternativa se oferece: ou o pensar se resigna sua determinao e deixa de lutar, ou cisma em ser incondicionado e esconde assim ainda mais o seu condicionamento; em ambos os casos, no se furta ao contexto geral de alienao. A esperana de redeno e sua luz salvadora se contrape, assim, no mesmo texto, a noite da totalidade fechada nas suas determinaes inelutveis. justamente esta contradio que define, em ltima anlise, o esforo do pensamento: sabe do seu condicionamento irremedivel, mas vive, no entanto, da esperana de poder escapar a esta estranha fatalidade dialtica, de poder chegar a "um lugar subtrado gravitao do existente". Podemos mesmo dizer que, para Adorno, o verdadeiro pensamento crtico no consiste em outro movimento que essa auto-reflexo sobre sua determinao e sobre a libertao dessa sua determinao. Por isso, coma diz no fim do nosso texto, a questo de saber se h ou no redeno se toma secundria, em vista de saber se tal pensamento, que se salvaria a si mesmo no seu mais profundo dilaceramento, possvel. Por isso, podemos acrescentar, no h volta a teologia que pressupe a

Dialtica Negativa.3.

existncia do absoluto , mas sim permanncia na filosofia, mais precisamente na filosofia da auto-reflexo do espirito, numa fiel continuao da dialtica hegeliana, o que desembocar na construo da

aspecto de respeito pelo sensvel (repito e insisto, no pelo irracional,

Temos j neste texto uma indicao preciosa do que poderia ser um pensamento certamente racional, porm no dominador. Ao lado das altas abstraes da auto-reflexo encontramos, com efeito, uma outra exigncia para o conhecer: aquilo que Adorno chama de "contato sensvel com os objetos" (Fhlung mit den Gegenstiinden).

Esse

120

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM

,

MEMRIA E HISTRIA

00 CONCEITO 0E RAZO EM ADORNO : 121

Adorno retoma aqui, numa continuidade notvel, a idiamestra da Dialtica do Esclarecimento, segundo a qual a racionalidade se reverte em mitologia ao impor mecanismos coercitivos to absolutos como outrora, o pensamento identificador em particular. S6 que, mais dialtico talvez do que na primeira obra, ele consegue vislumbrar, digamos, no uma sada, mas talvez uma possibilidade de superao. Essa se encontra, seguindo a lio de Hegel, na auto-reflexo do pensamento sobre o seu prprio carter coercitivo: "ela (a dialtica) apreende com os meios da lgica o seu carter de coero, esperando que ele ceda." Notemos aqui que o pensar no desiste dos seus prprios instrumentos para chegar alm de si mesmo. Adorno no prope um intuicionismo imediato nem um irracionalismo ingnuo para escapar da lgica identificadora. Prope, sim, na boa tradio platnica, um demorar e um treinar na linguagem e na ratio, no logos, para enxergar a sua insuficincia e indicar, talvez, o que seria seu outro fundador. l Diz ele na mesma Dialtica Negativa que o esforFo da filosofia consiste em "ir alm do conceito atravs do conceito", o que soa como um comentrio da Stima Carta de Plato. Essa esperana (a palavra volta vrias vezes em momentos-chaves do texto: "esperando que ceda" "esta a sua figura de esperana") parecia ausente da Dialtica do Esclarecimento, j surgia timidamente sob uma forma quase teolgica no texto de Minima Moralia, e, aqui, est afirmada como a condio transcendental de um pensar verdadeiro. Notemos a propsito, com Michael Theunissen, l que ela um argumento de peso contra a interpretao muito comum da filosofia adorniana como uma filosofia pessimista. Theunissen fala at do otimismo da Dialtica Negativa. O que gostaria de ressaltar , no entanto, um outro aspecto. A figura da esperana em Adorno torna-se cada vez mais inerente ao prprio movimento do espirito. Poderamos talvez dizer que ele escreve uma Dialtica Negativa (e, certamente, uma Teoria Esttica) para escapar da tentao da teologia negativa. Que ele o tivesse ou no conseguido,Dera, jener Zwang ist selber der mythisehe Schein, die eriwungene Identitdt. Das Absolute jedoch, wit' es der Metaphysik vorschwebt, ware das Nichtidentische das en! hervortrate, nachdem der Identitdtszwangzergmg. Ohnetdentitatsthese ist Dial ektik nicht das Gauze; dann aber ouch keine Kardinalsiinde, sie in einem dialektischen Schdtt zu verlassen. Es liegt in der Bestimmung negntiver Dialektik, dap sie sich nicht bei sich beruhigt, ais ware sie total; das ist ihre Gestalt vo,i Hoffnung." 10 Cf. Schnaedelbach, op. cit., pp. 67, 75-6. 11 "Ueber den Btgriff durch den Begriff hinauszugehen", Negative Dialektik, p. 25. 12 Op. cit., pp. 49-50.

isto uma outra questo. Mas h, sem dvida nenhuma, nesse movimento do pensamento atravs e alm de si mesmo, um esforo notvel de reabilitao da metafsica, da filosofia, contra a sua reduo racionalidade identificadora do positivismo ou do senso dito comum. Partindo assim de uma crtica da razo do esclarecimento, como o vimos, Adorno chega a uma salvao do conceito de razo, entendido agora como o logos pleno, capaz de dizer tambm os seus li mites e, ao faze-1o, de indicar a sua auto-superao. No h, portanto, diferena de Heidegger, destruio da metafsica em Adorno, mas si m muito mais a sua Aufhebung, destruio e conservao ao mesmo tempo. l3 Aufhebung certamente no sentido hegeliano, mas, contra a filosofia hegeliana do esprito absoluto, Aufhebung que no intenciona nenhuma totalidade positiva; ao contrrio e par isso que se chama negativa , a dialtica adorniana desiste do absoluto, isto , no fundo, da prpria possibilidade de uma totalidade realmente verdadeira. " da determinao da dialtica negativa no tranqilizar-se em si mesma como se fosse total; esta a sua figura de esperana." a sua figura de esperana, certamente, e , tambm, podemos nos arriscar a dizer, a sua mais alta figura de autonegao e, nesse sentido, a ltima despedida da razo ocidental bela idia de totalidade dialtica. Talvez Adorno seja o ltimo filsofo que ainda tentou pensar juntas totalidade e razo s que, para salvar um conceito de razo verdadeira, viu-se obrigado a abrir mo de um conceito de totalidade verdadeira.

13 Cf. Theunissen, op. cit., p. 59.

BIBLIOGRAFIA

VII. O HINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN A Michael e Eleni. E para Peter

ADORNO, T. W. Minima Moralia, 1947. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970. Traduo brasileira de L. E. Bicca, So Paulo: Ed. tica, 1992. . Negative Dialektik., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966. (trad. cap., Dialtica Negativa, trad. de J. M. Ripalda. Madrid: Taurus, 1985.). ADORNO, T. W. e HORKHEIMER,

M. Dialektik derAufkldrnng, 1944 ( Dialtica Negativa, trad. de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985).Talvez sejam os anjos a figura mais conhecida de Walter Benjamin, este autor judeu, alemo, fillogo e filsofo, telogo e marxista, que foi, primeiro, desconhecido e que se tornou, de repente, quase famoso demais, por demais na moda. Assim, as numerosas comemoraes que marcaram, em 1992, o centenrio de seu nascimento, trazem, vrias vezes, como emblema o Angelus Novus, essa gravura de Klee que Benjamin comprou em 1921 em Munique, que ele considerava como sendo uma das suas mais preciosas aquisies e que ele descreveu de maneira lancinante em sua nona tese "Sobre o Conceito de Histria": por exemplo, a capa do livro de Stphane Moss, O Anjo da Histria, livro consagrado a Rosenzweig, Benjamin e Scholem (Seuil, 1992) ou, do outro lado do Atlntico, o grande cartaz impresso pelo Instituto Goethe de Buenos Aires para seu Colquio Internacional de outubro de 1992 sobre Walter Benjamin. Se os anjos povoam, portanto, o pensamento de Benjamin, esse povoamento subverte, como tantas vezes em Benjamin, a idia mesma de uma posio estvel, de uma ptria definitivamente conquistada, de um enraizamento substancial, seja ele de ordem terica ou existencial. Por isso, qualquer estudo dessa figura, que tenderia a reconduzir suas aparies paradoxais a uma nica funo essencial, corre o risco de aprisionar, mais uma vez, Benjamin nesta alternativa que ele no quis resolver, durante sua vida inteira, e isso apesar da insistncia dos seus numerosos (e opostos) amigos: qual seja,' essa alternativa, a de ser o autntico e ltimo testemunho da tradio mstica judaica ou; ento, o precursor de uma tradio marxista renovada. A anlise das figuras angelicais benjaminianas no escapa sempre a essa dicotomia, seja com

Adorno-Konferenz 1983. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983. Emparticular: Theunissen, M. "Negativitt bei Adorno", op. cit., p. 41 ss., Schndelbach, H. "Dialektik als Vernunftkritik. Konstruktion des Rationalen bei Adorno", op. cit., p. 66 ss.

ASSOUN, P. L. e RAULET, G. Marxisme et Thorie Critique. Paris: Payot, 1978. Volume HABERMAS, intr. e trad. de B. Freitag e S. P. Rouanet. So Paulo: tica, 1980. HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. WELLMER,

A. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne, Vemunftkritik nach Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985.

124: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMORIA E HISTRIA

0 NINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM

WALTER BENJAMIN

125

Scholem brandindo o manuscrito autobiogrfico pstumo Agesilaus Santander 1 como se esse fosse o signo irrefutvel da participao fundamental de seu amigo tradio mstica, mesmo cabalstica judaica, signo, portanto, da superficialidade de seu interesse pelo marxismo; ou, pelo contrrio, que a presena dos anjos em Benjamin, seja silenciada ou, ento, taxada de simples metfora como se tal simplicidade pudesse existir! das esperanas dos vencidos humilhados em sua luta pela liberao. Gostaria de examinar aqui a presena dos anjos na obra de Benjamin, mais especificamente de examinar aquilo que essa presena contm de evaso e de perda, aquilo que faz que ela no nos preencha nem nos liberte, mas nos escape, at nos ameace. Ao mesmo tempo evasivos e insistentes, os anjos surgem nesses textos s vezes discretamente, incgnitos por assim dizer, s vezes mais claramente, da claridade do fogo purificador, para desaparecer to de repente como apareceram a tal ponto que, muitas vezes, o leitor quase no os percebe. Essas caractersticas estilsticas reproduzem, de maneira notvel, na prpria estrutura dos textos, a temporalidade especifica dos anjos tal qual a descreve "o motivo talmdico do vir a ser e do parecer dos anjos diante de Deus, a propsito de que um livro cabalstico diz que desaparecem como fasca sobre o carvo". 2 Esses anjos fulgurantes e efmeros que Benjamin conhecia graas s pesquisas de Scholem so, sem dvida alguma, os que mais marcaram seu pensamento; e isso com tal fora que voltam em trs textos diferentes e distantes cronologicamente: no artigo de 1921 escrito para anunciar a publicao de uma revista que nunca devia sair! intitulada justamente, Angelus Novus, no grande ensaio crtico de 1931 sobre Karl Kraus e, por fim, nos fragmentos autobiogrficos de

anjos gloriosos e imponentes se apagam frente a outros que poderiam ser chamados de "menores", que s vivem no instante de seu hino para, em seguida, se desvanecer na noite. No texto pragmtico da revista Angelus Novus, Benjamin os descreve da seguinte maneira: Pois os anjos novos a cada instante em inmeras multides so, segundo uma lenda talmdica, mesmo criados para, depois de terem cantado seu hino na frente de Deus, cessar e desaparecer no nada. Que uma tal atualidade que a nica verdadeira, caiba 3 revista, isso que seu nome deveria significar. Eis um texto muito estranho para anunciar uma nova revista! Contra os protestos de perenidade, de essencialidade ou de profundidade costumeiros nesses casos, Benjamin reivindica uma atualidade si multaneamente resplandecente e frgil, o tempo de cantar um hino e, em seguida, de se aniquilar. Nenhuma pretenso, portanto, nem durao nem a esse conceito trivial de atualidade que, tantas vezes, serve de libi aos professores desarmados para convencer seus alunos a estudar os velhos textos. Os anjos talmdicos so mais o indicio de um outro tempo que o das comemoraes; eles introduzem, na cronologia linear e morosa que costumamos chamar de histria, uma cesura imperceptvel mas que transforma esse continuum histrico, to ocupado a se perpetuar a si mesmo. Aqui intervm um dos temas essenciais da filosofia de Benjamin, do primeiro at o ltimo de seus escritos, o tema da critica a uma "concepo do tempo homogneo e vazio"; deve-se interromper esse desenrolar tranqilo, produto da saga das classes dominantes e da inrcia espiritual dos historiadores, para que uma outra histria possa dizer-se, entrecortada, lacunar, feita de sobressaltos e de espasmos que surgem no presente como a imagem breve e brilhante de um instante perdido ou recalcado: a histria dos vencidos que no nenhuma nova gesta herica e apologtica, mas sim, uma narrativa recortada, descontnua, frgil e sempre ameaada pelo esquecimento. A atualidade dos anjos talmdicos est altura de sua intensidade, essa jubilao do hino cantado na frente do trono de Deus, e de seu aniquilamento consecutivo. Esses dois aspectos, o jubilat6rio e o aniquilador, so inseparveis, ou melhor, justamente a unio de3 W. Benjamin, "Ankndingung der Zeitschift Angelus Novus", Gs. 5chr. 11-1, p. 246. Traduo de Jeanne Marie Gagnebin.

agosto de 1931 reunidos sob o nome de Agesilaus Santander. Das conversas com seu amigo, Benjamin no retm tanto a imagem dos arcanjos mensageiros que transmitem a vontade divina ou a imagem dos querubins em chamas que guardam o domnio de Yahv. Esses1 Agesilaus Santander, publicado por Gershom Scholem primeiro no volume coletivo Zur Aktalitdt Wafter Benjamins (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972), pp. 94-102, cam os comentrios de Scholem intitulados: "Walter Benjamin und sein Engel", idem, pp. 87-138. As duas verses do fragmento so retomadas na edio das obras completas ( Gesammelteschriften, vol. VII, pp. 520-523). Como tantas vezes, o comentrio de Scholem muito instrutivo por suas referncias precisas tradio mstica judaica, mas bastante insuportvel no seu tom personalizante e antimarxista. G. Scholem, idem, pp. 108.

2

126

SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM MEMRIA E HISTRIA

0 HINO, A BRISA E A TEMPESTADE: DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN

127

ambos que permite pensar, segundo Benjamin, o conceito de uma verdadeira atualidade: fulgurante, evanescente e destruidora. Os anjos so aqui os portadores de uma destruio necessria, sua prpria, certamente e, mais profundamente ainda, a destruio de um tempo que teria a pretenso de se perpetuar a si mesmo. Esse lado destruidor sem o qual no pode haver nem atualidade verdadeira nem, como veremos, verdadeira redeno, fica mais realado na passagem paralela do ensaio sobre Karl Kraus. Aqui tambm, podemos not-lo, trata-se de descrever a atividade de Kraus como editor de uma revista de nome abrasador e purificador: Die Fackel, a tocha. Essa "obra efmera", nos diz Benjamin no fim de seu ensaio, j "comeou a durar" graas crtica corrosiva que seu autor empreende da imprensa burguesa. A atividade angelical de Kraus nasce de um empreendimento obstinado de destruio sempre recomeada, pois sempre rapidamente caduca, da linguagem to segura de si mesma dos bem-pensantes e dos bem-apessoados. A verdade da operao crtica surge desta unio radical entre destruio e salvao: ao arrancar as palavras e as obras do contexto lenitivo que, s vezes o prprio autor, e, quase sempre, a histria literria tradicional se apressam em lhes emprestar, a crtica quebra sua unidade factcia e, simultaneamente, expe sua fora de estranheza e de subverso. Esse tema caro a Benjamin desde seus primeiros escritos adquire, no ensaio sobre Kraus, a dimenso de uma luta do "humanismo real", irreverente e transformador, o humanismo de Karl Marx e de Karl Kraus, contra o "ideal clssico do humanismo" que devia engendrar a matana da Primeira Guerra e as represses sanguinrias que se seguiram. A figura do anjo intervm a como o "mensageiro do humanismo real", mas sob os traos de um Unmensch, de um no-homem, do inumano, de uma "criatura nascida de uma criana e de um devorador de homens", "nenhum novo homem", um "novo anjo", "talvez um deles que, segundo o Talmud, novos em cada instante e em multides inmeras, so criados para, deois de alar sua voz diante de Deus, cessar e desaparecer no nada." Os anjos talmdicos se tornaram aqui anjos exterminadores e purificadores, nada tm de suaves e sorridentes criaturas protetoras, mas, para salvar aquilo que ainda resta da humanidade real dos homens e no se reduz fraseologia, assumem os traos de inumano, at do monstruoso.4 W. Benjamin, "Karl Kraus", Gs. Schr. II-I, p. 367. Traduo de Jeanne Marie Gagnebin.

Essas caractersticas ao mesmo tempo ameaadoras e redentoras so reencontradas no anjo das duas verses do fragmento autobiogrfico intitulado Agesilaus Santander que Scholem publicou e comentou em 1972, numa coletnea de ensaios de diversos autores, por ocasio dos oitenta anos do nascimento de Benjamin. Scholem chega a decifrar o ttulo enigmtico desses textos como sendo o anagrama de Angelus Santanas. Nesses fragmentos bastante esotricos que Benjamin, isso deve ser notado, no pensou em publicar durante sua vida, o Angelus Novus de Klee reaparece como um dos anjos talmdicos, mas ele descrito de maneira mais precisa, com suas "garras afiadas" e o "bater s cortante de uma faca" de suas asas. Um novo tema intervm: o do nome secreto que, segundo a tradio judaica, seu anjo poderia revelar a cada homem; mas esse motivo , por assim dizer, enviesado, como que pervertido pela ao profundamente desestruturante que o anjo exerce aqui. Com efeito, ele no revela nenhum nome escondido e mais verdadeiro, recusando assim ao seu protegido a descoberta de sua essncia invisvel. Talvez seja isso um castigo, pois Benjamin o teria i mpedido, ao se apoderar do quadro de Mee, de cantar seu hino e de desaparecer. Deste modo o "bom anjo" originrio se transforma, nesse texto, num anjo certamente prximo, mas igualmente imprevisvel, malicioso, at ameaador. O anjo cujo nome no tem mais nada de "semelhante ao homem" no anuncia mais a plenitude do nome verdadeiro e secreto, mas se refugia nos intersticios da ausncia e da separao: Mas o anjo parece com tudo aquilo de que tive que me separar: os homens e tambm os objetos. Nos objetos que no tenho mais, ele mora. Ele os torna transparentes e atrs de cada um aparece aquele a quem foram destinados. Por isso, ningum pode me superar na arte de presentear. Sim, talvez fosse o anjo atrado por algum que d3 presentes e vai embora de mos vazias.6 Como o observou Jrgen Ebach, esse anjo canhestro e inquietante a rplica, ao mesmo tempo fiel e invertida, do anjo com o

Oto aqui de preferencia a segunda verso do fragmento Agesilaus Santander, op. cit., pp. 100-102. Traduo de Jeanne Marie Gagnebin. 6 Jurgen Ebach, "Agesilaus Santander und Benedix Schdniliess: Die venvandelten Namen Walter Benjamins" in Antike und Moderne. Zu Walter Benjamins 'Passager", reunidos e editados por Norbert Bolz e Richard Faber (Kdnigshausen und Neumann, 1986), pp. 150/51. 5

128: SETE AULAS SOBRE LINGUAGEM, MEMRIA E HISTRIA

B HINO, A BRISA E A TEMPESTADE _ DOS ANJOS EM WALTER BENJAMIN : 129

qual, segundo a tradio, lutou Jac: no revela seu nome, no tem a fora de abenoar, anuncia o vazio, a separao e a ausncia em vez do reencontro com o irmo e com a ptria. Jrgen Ebach ressalta igualmente que a tradio dos anjos efmeros que cantam seu hino diante de Deus, que essa tradio tinha se constituido principalmente a partir dos comentrios dessa passagem do Gnese, o que ressalta ainda mais as estranhas afinidades entre a histria de Jac e esse texto de Benjamin (que traz o nome do ltimo dos filhos de Jac!). O fato de Benjamin sofrer da perna e ter dificuldade de andar na poca em que escreveu essas linhas pode ser um indcio a mais dessa proximidade com Jac, aquele que Deus/o Anjo no conseguiu vencer, mas que ele tornou coxo. Os anjos de Benjamin parecem assim progressivamente atingidos por uma espcie de incapacidade ou de deformao, bem como as bizarras criaturas de Kafka, esses ajudantes e esses mensageiros que poderiam, pois, ser anjos potenciais, mas que s conseguem incomodar aqueles que deveriam ajudar e que no transmitem mais nenhuma mensagem. Na sua carta a Scholem a respeito do livro Kafka de Marx Brod, Benjamin fala do "mundo to claro (heiter) e atravessado por anjos" de Kafka, "complemento preciso de sua poca que se deu por tarefa suprimir em grandes massas os habitantes deste planeta". Ele acrescenta que esse mundo complementar, portanto essa espcie de anexo ao mesmo tempo secundrio e preciso, torna Kafka parente de Klee, esse outro grande inventor de anjos deformados, deslocados, dos quais no se sabe sempre, como das criaturas de Kafka, se eles esto nascendo, se eles so jovens anjos outra traduo possvel de Angeli Novi que aprendem a voar, como o parecem indicar os nomes que lhes deu o pintor, 7 ou se eles no seriam mais anjos abortados, quase disformes, incapazes de voar, de ajudar e de transmitir qualquer mensagem divina. Mas so, no entanto, os nicos anjos que ainda restam, esses seres "inacabados e inbeis para quem a esperana existe", 8 como o diz Benjamin das figuras de Kafka. Chegamos aqui a um dos paradoxos essenciais desta pequena angelologia benjaminiana. Como os ajudantes e os mensageiros de7 8 Ver a esse respeito Peter von Haselberg, "Benjamins Engel", in Materia/en zu Benjamins Thesen "ber den Begriff der Geschichte", textos reunidos e editados por Peter Bulthaup (Frankfut am Main: Suhrkamp, 1975), pp. 348 ss. Walter Benjamin, "Franz Kafka", in Ges. Sc?,,. J!-2, p. 415. Traduo de Jeanne Marie Gagnebin. A grande carta de Benjamin a Scholem sobre Kafka da mesma poca. Cf. W. Benjamin, Briefe (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1966), vol. II, pp. 756-765.

Kafka que, sem dvida, seriam os nicos a deter a soluo, mas que so, ao mesmo tempo, frgeis, ligeiramente ridculos, canhestros e deslocados, assim tambm os anjos de Benjamin se caracterizam mais por sua fraqueza, at sua impotncia, que por seu poder. Eles no escapam ao "desencantamento do mundo" e, em particular, a essa espcie de anacronismo risvel da teologia, "hoje pequena e feia e que no ousa se deixar ver", como o diz to bem Benjamin na sua primeira tese "Sobre o Conceito de Histria". So essas transformaes da teologia, devemos observ-lo, absolutamente essenciais para entender seu papel no pensamento de Benjamin, que deveriam induzir prudncia qualquer interpretao predominantemente religiosa de sua obra. Longe de serem gloriosos mensageiros ou testemunhas inequvocas da transcendncia, os anjos no possuem mais o esplendor do sagrado, mas participam, eles tambm, d