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fotos: Mário Vilela, Rubens Chiri e Sérgio Guerini CONSTRUÍDOS POR RESTOS RETIRADOS DA SUJEIRA DO RIO, OS BONECOS FORMAM UM EXÉRCITO DE RESISTÊNCIA CONTRA A POLUIÇÃO Foto: Rubens Chiri 42

O Povo da Margem

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As experiências de artistas paulistas que produzem suas obras com entulhos, resíduos e objetos descartados nas cidades. A autora Giovana Penatti, estudante selecionada pelo Programa Rumos Jornalismo Cultural, cursa jornalismo na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), em Bauru. É estagiária na Editora Alto Astral, onde escreve para as revistas semanais Malu e Teen Week. Foi editora-chefe do programa da web-rádio Unesp Virtual NJ Notícias e editora de variedades da revista virtual Livrevista. Mantém o blog sobre cultura pop Pop Me Up. Reside em Piracicaba (SP).

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fotos: Mário Vilela, Rubens Chiri e Sérgio Guerini

CONSTRUÍDOS POR RESTOS RETIRADOS DA SUJEIRA DO RIO, OS BONECOS FORMAM UM EXÉRCITO DE RESISTÊNCIA CONTRA A POLUIÇÃO

Foto: Rubens Chiri42

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le busca pedaços de madeira onde quer que estejam: na rua, no lixão, numa caçamba de construção civil. Junta-os com pregos, formando um esqueleto rústico, com articula-ções de borracha arrancada de pneus velhos. Sacos gran-des e grossos fabricados para embalar adubo agora guar-dam espuma de velhos sofás para se transformar no tórax. Restos de tapeçaria e carpetes enrolados viram pernas fir-mes. Com o corpo montado, é hora de vestir a cria. Seu Elias dos Bonecos busca roupas velhas, doadas ou encontradas pela rua. As mãos são luvas, daquelas grossas, usadas em metalúrgicas. Por fim, a cereja no topo do bolo é a cabeça no topo do corpo: um pedaço de câmara de pneu enrola-do num lenço dá o acabamento final ao rosto sorridente que é sua assinatura – os bonecos do Elias são todos felizes. Depois de pronto, o pai orgulhoso leva, num carrinho de mão, seu filho mais novo para a outra margem do rio, onde se juntará aos demais membros da família inanimada até que as águas revoltas – ou o tempo implacável – os levem embora, um a um.

E

por Giovana Penatti

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Essa cena fez parte do cotidiano da cidade de Piraci-caba, no interior do estado de São Paulo, por cerca de 30 anos (dos anos 1970 até os 2000) e integra a cultura popular do município. Relembrada pelo ator e fundador do grupo de teatro Tragatralha Raul Rozados, a história está representada na peça Filho das Águas, realizada pela companhia para homenagear Elias Rocha, conhecido por seus conterrâneos como Seu Elias dos Bonecos.

Nascido, criado e falecido às margens do Rio Piracica-ba, sempre cheias de pescadores, era de suas águas que Elias tirava alimento, desde pequeno. Nos anos 1970, o bonequeiro começou a notar uma diminuição na pesca, como consequência da poluição, que matava os peixes. Para mostrar que havia vida no rio e que ela precisava ser respeitada, Elias – que já criava bonecos de barro desde criança – passou a fazê-los com sucata e a povoar com eles as margens do Piracicaba. Famílias inteiras de pescadores de pano, madeira e borracha, munidos com varinhas de bambu, eram os novos habi-tantes do entorno do rio. Bonecos que não eram feitos para brincar. Eram obras de arte que tinham um propó-sito definido e uma identidade assumida: objetos rejei-tados pelas pessoas de carne e osso que ajudavam a poluir o meio ambiente eram reciclados e transforma-

dos em pessoas de brinquedo que chamavam atenção para o problema.

Como o piracicabano, o artista plástico Giulianno Mon-tijo sempre transformou sucata em seus brinquedos, construindo desde carrinhos de rolimã até fliperamas de madeira. Paulistano que cresceu mais na rua que em casa, ele se diz contaminado pela cidade: “o lixo, cartazes, entulhos, trânsito, poluição sonora, visual... esse meu lado falou mais alto na hora de desenvolver meus trabalhos plásticos, sempre tentando chocar de forma sutil, como o lixo que volta para as pessoas em forma de objeto de arte”. Das peças do antigo Jogo da Vida montadas den-tro de uma gaveta velha ao pinball de sucata, do qual há dez exemplares espalhados em galerias pelo Brasil, e que funciona como qualquer outro, todos poderiam ser brin-quedos, mas não são. É a arte conhecida como toyart – só que feita de lixo!

Um punhado de materiais inúteis elevado subitamente à condição de obra de arte causa estranhamento a al-gumas pessoas menos familiarizadas com a produção artística. “Tem uma dualidade, mas acho que se deve lidar com o jogo, com o brinquedo”, opina o crítico de arte Cauê Alves. Até porque, olhando de longe, muitas

Largo de São Francisco, after Militão Augusto de Azevedo, 2003, de Vik Muniz, obra realizada com grãos de café.  Reprodução fotográfica: Sergio Guerini – Acervo: Banco Itaú S.A.

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dessas obras nem aparentam o lado “sujo” – com todo o respeito, mas ninguém duvida de que lixo evoca su-jeira. “Limpar” principalmente o preconceito do público é uma das tarefas desses artistas contemporâneos, que vêm fazendo um ótimo trabalho nesse sentido: suas obras são cada vez mais aceitas.

O artista plástico e fotógrafo brasileiro Vik Muniz é um bom exemplo. Reconhecido e respeitado em todo o mundo por se utilizar de materiais inusitados como açúcar, chocolate líquido, doce de leite, ketchup, gel para cabelo, lixo e poeira, reside em Nova York desde o fim dos anos 1980 e suas obras já foram admiradas em exposições por diversos países (uma delas passou, em 2009, pelo Museu de Arte de São Paulo – Masp, por ocasião da comemoração de 20 anos de carreira do artista). Seja com resíduos de consumo (o lixo propria-mente dito) ou restos de comida, as obras de Muniz são expostas em fotografias, pois, ao usar matéria-pri-ma perecível em sua produção, o transporte das peças originais torna-se inviável. Uma das séries do artista, Pictures of Garbage (Imagens do Lixo) traz fotos de obras realizadas em parceria com catadores de lixo. Um dos destaques é uma recriação de O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli.

Depois de rodar o mundo por galerias e museus, o lixo de Muniz foi parar na Rede Globo. É dele a imagem usada na abertura da novela Passione, de 2010, que retrata um casal feito de resíduos sólidos. Dessa forma, vai se popularizan-do esse tipo de arte, que ainda hoje sofre preconceito.

Os amigos Rodrigo Machado e Cleber Padovani, o Pado, formam o Urban Trash Art (UTA), nome que tra-duz com fidelidade a proposta da dupla: criar arte com lixo urbano, mais precisamente da cidade de São Pau-lo. Quem estiver na capital paulista e vir uma escultu-ra enorme com cara de brinquedo, que pode parecer uma mistura de um submarino com uma baleia e um tubarão, ser um dragão ou um carro feito de lixo, pode ter certeza de que o UTA passou por ali. Seria um toyart gigantesco? Rodrigo acha que não: são um pouco mais “agressivos” e menos “mimosos e delicados”. Têm cara de brinquedo, mas nem tanto. Impossível ficar indife-rente às esculturas de Rodrigo e Pado, que muitas ve-zes recebem aplausos pelo trabalho. ”É muito fácil de associar (nossa obra) a um protesto artístico e eu acho que as pessoas gostam disso porque mostramos uma coisa que acontece no nosso dia a dia e interfere na vida das pessoas de uma maneira lúdica e divertida”, explica Rodrigo.

Objetos da série Mau Mouser Tstung, de Vitória Basaia. Técnica: pigmentos naturais sobre mouse. Foto: Mário Vilela

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Para a artista plástica Vitória Basaia, carioca radicada em Cuiabá e mais uma representante desse “movi-mento”, a arte feita de sucata causa outro tipo de rea-ção: o estranhamento. Segundo ela, suas obras fazem as pessoas pensar. Isso por causa da ressignificação: atribuir um novo significado à matéria-prima, que po-dem ser resíduos da sociedade coletados na natureza, vindos da rua ou mesmo de conhecidos e vizinhos. “Consigo dar a determinado material um sentido tão novo que poucas pessoas percebem o que é”, comen-ta. Para conseguir esse efeito, Vitória usa fogo, tintas, agrupa diversos materiais em uma obra só. Às vezes, as peças ficam anos empilhadas no ateliê da artista, esperando sua vez de “ressignificar”, no aguardo de outras que as complementem. “O meu prazer maior é dar ordem ao caos”, contemporiza.

A ressignificação é comum a todos esses artistas: afinal, apenas o fato de pegar um material repulsivo que tem conotação de sujeira e transformá-lo em um objeto admirável já é uma maneira de mudar seu significado. “Dar um novo sentido para o material é ressignificação”, ensina o especialista Cauê, concordando com Vitória.

Elias Rocha transformava roupas velhas, borracha e es-puma em bonecos sorridentes que habitavam a cidade de Piracicaba. O Urban Trash Art transforma em arte o lixo encontrado nas ruas de São Paulo. São tocos de madeira que vão sendo juntados, enfeitados com fios

perdidos, restos de tinta, pedaços do que os artistas en-contrarem pela frente e viram, por exemplo, um carro. Giulianno Montijo junta uma gaveta inútil, um jogo de tabuleiro aposentado e mais um punhado de resíduos para fazer uma releitura do famoso Jogo da Vida. Dessa forma, o lixo adquire uma significação diferente: o lixo vira arte.

Ao trabalhar com material reciclado, é inevitável levan-tar a bandeira da responsabilidade ambiental, mesmo que os artistas não sejam os maiores defensores da cau-sa. Transformar o lixo em arte é uma forma de reapro-veitamento dos resíduos, ou seja, de cuidar da natureza e diminuir o acúmulo de dejetos. Segundo Rodrigo, do Urban Trash Art, as esculturas enormes feitas por ele e por Pado são grandes justamente pela quantidade de lixo que é encontrada. “Queremos mostrar que há mui-to lixo no mundo [...] Se um dia diminuir a quantidade, a gente diminui o tamanho das esculturas [risos].”

Pado afirma que a dupla até já ganhou algum dinheiro com suas obras, mas que não dá para viver delas. Hou-ve, por exemplo, um trabalho para a TV Cultura e outro na Virada Cultural Paulista (programa anual da Secre-taria de Estado da Cultura que oferece programação cultural gratuita e variada por 24 horas ininterruptas em diversos locais de São Paulo, que tem se expandi-do para outros municípios do estado). Mas a dupla se sustenta com empregos fora do meio das artes visuais.

RESÍDUOS, SUJEIRAS, ENTULHOS...ARTISTAS E FOTÓGRAFOS FAZEM ARTE COM LIXO COMO FORMA DE CHOCAR E

FAZER POLÍTICA ECOLÓGICA

Objeto_Da série Latinhas_Latas cerveja esculpidas com fogo, de Vitória Bassaia. Foto: Mário Vilela

Pado (esq.) e Rodrigo: o Urban Trash busca transformar fios soltos, restos de tinta e pedaços de metal em obras de arte. Foto: Rubens Chiri

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Trabalhar com lixo, para Giulianno Montijo, tem a ver com o valor das peças: elas “teriam outro significado se fossem feitas de ouro” – além de serem, obviamente, mais caras. Cauê pensa da mesma forma: “Numa obra feita de bron-ze, o valor também está no material. Quando o artista usa lixo, passa a ter valor pelo conceito”. Para Montijo, o maior ganho com suas obras é o prazer de trabalhar.

Elias dos Bonecos chegou a ganhar um dinheirinho com suas criações, mas nada que substituísse seu trabalho como funcionário público. “Ele vivia da aposentadoria. Quando os bonecos foram reconhecidos pela crítica es-pecializada, ele foi procurado por quem queria colocá-los em casa, no comércio, mas vendia baratinho”, lembra Raul Rozados. A intenção de Elias não era viver da arte, mas resgatar a vida do Rio Piracicaba com ela.

Apesar de os bonecos não durarem muito, Rozados diz ter certeza de que Elias era apaixonado por suas criações. Prova disso é que ele se recusava a mudar o rosto deles, queria que estivessem sempre felizes, como um pai de-seja que seus filhos sejam. “Olha que caso interessante: quando fizemos a peça, imaginamos um cartaz com um rosto triste e um feliz [símbolo do teatro]. Pedimos para o Elias fazer um boneco triste, só para fazermos a foto.

Os “filhos” do Elias eram sempre felizes e sorridentes. Foto: Rubens Chiri

Elias dos Bonecos, funcionário público que virou sucesso de crítica a preços modestos. Foto: Raul Rozados

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Ele não conseguia entender por que queríamos um bo-neco triste. Explicamos mil vezes. No fim, ele escreveu num papel assim: ‘Não posso fazer. Não vai ficar bom’. E não fez. Não admitia um boneco seu que não fosse feliz.”

Ao contrário de muitos artistas plásticos, Elias não tinha um ateliê. Suas criações eram feitas no quintal de sua casa, a menos de um quarteirão da Avenida Beira Rio, que acompanha o curso do Piracicaba na cidade. Ao le-var o novo boneco no carrinho de mão para a margem do rio, Elias carregava junto tudo que tinha em seu ate-liê-quintal: suas ferramentas. Todas pintadas de branco, para aparecerem com facilidade no caso de caírem no chão de terra das margens do rio.

Os bonecos de Elias ficavam na beira do Rio Piracica-ba, situados na margem direita de quem desce, vistos dos restaurantes à beira do rio. Não era incomum um boneco ser levado pelas águas. O artista insistia, criava outro para substituí-lo, e logo mais um ia embora. Ou apodrecia, à mercê do tempo. Alguns ainda tinham sal-vação e Elias, pacientemente, refazia alguma peça. “Ele gostava das enchentes, de ver o rio cheio, e não ficava bravo quando as águas carregavam seus bonecos. Mas, se eram depredados, aí ele ficava muito bravo!”, comenta Rozados.

Os bonecos sofreram com o vandalismo. Hoje, ainda estão na beira do rio, mas bem abrigados na Casa do Povoador, um dos pontos turísticos da cidade, que preserva a ar-

O fliperama de Giuliano Gontijo dá até pra jogar. Foto: Rubens Chiri

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quitetura rústica do século XIX. Até hoje, há uma “jane-linha” que mostra a estrutura original de pau a pique. A Casa localizada na margem do rio foi uma das primeiras construções de Piracicaba.

Laudir Sartori, que trabalha no local e é apaixonado pelos bonecos de Elias, bateu o pé para protegê-los. Seus olhos brilham ao falar do assunto, mas não pode dar entrevista para a reportagem. Esbarrou na burocracia, aquela mesma que venceu para criar na Casa a Sala do Elias, onde ficam os bonecos em ex-posição permanente.

Ao contrário de “papai” Elias, Rodrigo e Pado não têm tanto apego por sua produção. Eles criam uma obra, fazem com que ela cumpra seus propósitos e logo ela deixa de existir. É a chamada arte efêmera, que nasce para morrer prematuramente, mas deixa sua marca no público que a contempla. Pode ser uma pintura, um movimento, um instante de dança ou de canto, ou uma escultura, como é o caso do Urban Trash Art. “Tem obras que a gente mesmo desmonta, porque não pode deixar no local em que a fizemos. Outras, a prefeitura passa no dia seguinte e desmonta. Quando não tem muito movi-mento, dura um pouco mais.” Mas nada que permaneça. Tudo bem. Elas não foram feitas para durar.

Nas galerias de arte contemporânea, essa obra tida como efêmera obtém mais credibilidade e confere a seus auto-res um status nada... efêmero.