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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
Nicola Stefano Galgano
O preceito da Deusa O natildeo ser como contradiccedilatildeo
em Parmecircnides de Eleacuteia
Satildeo Paulo 2015
2
Nicola Stefano Galgano
O preceito da Deusa O natildeo ser como contradiccedilatildeo
em Parmecircnides de Eleacuteia
Tese a ser apresentada ao programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e
Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Filosofia sob
a orientaccedilatildeo do Prof Dr Roberto Bolzani Filho
Satildeo Paulo 2015
3
Ao Tomaz Toledo
4
AGRADECIMENTOS
Este trabalho eacute o resultado de um longo percurso que seguiu por todo tipo de configuraccedilatildeo
houve partes retas e tortuosas em descida e em subida planas e cheias de obstaacuteculos ele foi
possiacutevel graccedilas a mas tambeacutem apesar de A maioria dos obstaacuteculos natildeo poderia ter sido superada
sem a colaboraccedilatildeo de muitas pessoas que aqui quero agradecer
Agradeccedilo antes de tudo ao meu orientador o prof Roberto Bolzani Filho por ter acreditado
neste projeto e ter proporcionado as condiccedilotildees institucionais para que se realizasse
Agradeccedilo agraves instituiccedilotildees que me abrigaram materialmente agradeccedilo agrave USP e agrave FFLCH
cujas estruturas foram amigaacuteveis e cujos funcionaacuterios foram amigos e colaboraram com simpatia
principalmente a equipe da secretaria da FFLCH Geni Ferreira Lima Luciana Bezerra Noacutebrega
Maria Helena Barboza e Marie Maacutercia Pedrozo
Agradeccedilo agrave CAPES que com suas bolsas aquela propriamente de doutorado e aquela de
pesquisa no exterior me proporcionou as condiccedilotildees financeiras para o meu sustento no Brasil e no
Canadaacute quando ali passei um ano na Universidade de Toronto (UofT) Gostaria de registrar
tambeacutem a extrema simpatia e gentileza de seus funcionaacuterios que sempre me trataram bem e
cuidaram de que tudo ocorresse bem assim como de fato ocorreu
Os agradecimentos acadecircmicos satildeo inumeraacuteveis Antes de tudo aos meus orientadores
oficiais o prof Roberto Bolzani Filho e o prof Thomas M Robinson que me acompanharam
intelectualmente cada um a seu modo Eacute difiacutecil descrever o que representaram para mim associo
o prof Bolzani mais agrave liberdade de jorrar salvo depois passar pelo crivo criacutetico e o prof Robinson
mais a passar pelo crivo criacutetico salvo depois se permitir a liberdade das afirmaccedilotildees ousadas Com
ambos senti a felicidade da pesquisa
5
Depois ainda em acircmbito acadecircmico agradeccedilo agraves muitas pessoas que ofereceram sugestotildees
e me aconselharam tanto pessoalmente quanto por correspondecircncia Em primeiro lugar ao prof
Livio Rossetti da Universidade de Perugia que sempre me estimulou com sua amizade singeleza
e criatividade e mais do que isto sempre me contagiou com seu entusiasmo para com os preacute-
socraacuteticos grazie Livio Agradeccedilo tambeacutem ao prof Neacutestor Luis Cordero da Universidade de
Rennes estudioso pertinaz e insubstituiacutevel provavelmente o atual maior conhecedor de
Parmecircnides no mundo que sempre atendeu agrave minhas duacutevidas com clareza e generosidade
admiraacuteveis
Agradeccedilo agrave professora Eliane Christina de Souza pelas sugestotildees e pelo primeiro seminaacuterio
brasileiro sobre o natildeo ser realizado na UFSCar de proporccedilotildees ainda limitadas mas que espero
possa crescer Agradeccedilo aos professores Alberto Bernabeacute Beatriz Bossi e Graciela Marcos que
tambeacutem atenderam a certas minhas questotildees parmenidianas
Na esfera afetiva haacute muitas pessoas agraves quais eu agradeccedilo
Agradeccedilo antes de tudo agrave professora Maria Carolina Alves dos Santos amiga querida que
acompanhou todo este meu percurso os altos e os baixos apesar de morarmos em cidades
diferentes e eacute testemunha da difiacutecil alquimia pessoal pela qual eu passei que subjaz agrave conduccedilatildeo
da pesquisa filosoacutefica posto que o laboratoacuterio do pesquisador estaacute instalado em sua proacutepria mente
A ela agradeccedilo as conversas as aulas compartilhadas e o excelente seminaacuterio que foi realizado na
Universidade Federal de Mariacutelia onde o seu Platatildeo e o meu Parmecircnides se encontraram e
disputaram entre ser e natildeo ser
Agradeccedilo aos colegas Henrique de Paula Marcello Fontes e Sheila Paulino com os quais
compartilhei os momentos de alegria e de tensatildeo das festas e das discussotildees das perspectivas
acadecircmicas e de vida das duacutevidas decepccedilotildees esperanccedilas e satisfaccedilotildees e toda a paleta intelectual
6
afetiva e emocional que se vivencia com os amigos
Agradeccedilo agrave Patriacutecia que me abrigou e me abriga e gosta de compartilhar comigo o
espairecer necessaacuterio agraves nossas cansativas tarefas
Agradeccedilo aos meus filhos Giovanni que esteve trabalhando longe com o qual discutimos
muitas coisas do mundo e do universo Paula e Aureacutelia que estiveram sempre perto e presentes e
mais do que ningueacutem me ajudaram neste percurso em todos os sentidos todos Para elas natildeo haacute
palavras suficientes
Agradeccedilo por fim as ondas inspiradoras das praias solitaacuterias de Ilha Comprida o mar de
verde da minha moradia em Itu e o frio severo do Canadaacute fascinante ao menos para mim
7
Quando pensamos no nada absoluto natildeo realizamos
o nada nem tampouco a ideacuteia do nada porque a uacutenica
que podemos construir eacute por exclusatildeo das coisas
conhecidas e positivas eacute pela exclusatildeo total de toda
positividade por recusa sem a positividade natildeo
poderiacuteamos conceber o nada Soacute o concebemos por
oposiccedilatildeo ou seja por negaccedilatildeo do positivo pela
negaccedilatildeo da presenccedila pela recusa da presenccedila
Maacuterio Ferreira dos Santos
A sabedoria do ser e do nada
8
RESUMO
GALGANO N S O preceito da Deusa O natildeo ser como contradiccedilatildeo em Parmecircnides de Eleacuteia
2015 239 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Departamento
de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015
O presente trabalho eacute um estudo da noccedilatildeo de natildeo ser em Parmecircnides Este estudo se propotildee a
preencher uma falta que ao longo do seacuteculo XX e agora no XXI foi se tornando cada vez maior
na medida em que crescia o interesse por essa noccedilatildeo extraordinaacuteria que pertence ao universo da
loacutegica e da ontologia antigas e da nossa atualidade Para evidenciar essa noccedilatildeo o trabalho deixou
de lado os demais aspectos do poema principalmente o estatuto do ser e se restringiu agrave anaacutelise da
noccedilatildeo de natildeo ser Para tanto foi desenvolvida uma metodologia que pudesse tornar claros tanto o
problema inicial parmenidiano quanto a soluccedilatildeo que ele propotildee Descobriu-se entatildeo uma
habilidade especiacutefica de Parmecircnides em observar o comportamento da mente humana com isto o
estudo esclareceu o papel do meacutetodo de Parmecircnides para compensar a amechanie (falta de
recursos) do homem comum na compreensatildeo do mundo Ele identifica o natildeo ser como objeto
virtual que enganosamente confunde aquele que se potildee no caminho da pesquisa pois para
Parmecircnides o natildeo ser eacute impossiacutevel Com a noccedilatildeo desta impossibilidade ele determina discute e
aplica o meacutetodo que garante a persuasatildeo verdadeira um autecircntico princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo
mas diferente daquele de Aristoacuteteles A este princiacutepio enunciado pela thea para distingui-lo daquele
do Estagirita o autor daacute o nome de Preceito da Deusa
Palavras-chave Parmenides natildeo-ser eleatismo natildeo-contradiccedilatildeo ontologia loacutegica
9
ABSTRACT
GALGANO N S The precept of the Goddess non-being as contradiction in Parmenides of
Elea 2015 239 p Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015
The present work is an inquiry into the notion of non-being in Parmenides The study has the
purpose of filling a lack that increased along the XX century and now in the XXI according to the
growth of concern about this extraordinary notion which belongs to the universe of ancient and
modern logic and ontology With the aim of making this notion evident the work put aside the
other aspects of the poem mainly the statute of being and was restricted to the analysis of the
notion of non-being For this reason a methodology was developed that could make clear both the
initial parmenidian problem and the solution that he offers A specific ability was discovered that
of Parmenides as observer of the human mind with this the study made clear the role of
Parmenidesrsquo method to compensate the amechanie (lack of resource) of the common man in
understanding the world He identifies the non-being as a virtual object that deceptively confounds
that who takes the way of inquiry because to Parmenides non-being is impossible With the notion
of this impossibility he determines discusses and applies the method that certifies the true
persuasion an authentic principle of non-contradiction albeit different of that of Aristotle To this
principle enunciated by the thea to distinguish it from that of Stagirite the author gives the name
of Precept of the Goddess
Keywords Parmenides non-being eleaticism non-contradiction ontology logic
10
SUMAacuteRIO
1 APRESENTACcedilAtildeO 13
2 INTRODUCcedilAtildeO Agrave NOCcedilAtildeO DE NAtildeO SER 19
21 Introduccedilatildeo geral agrave temaacutetica 19
22 Justificaccedilatildeo da pesquisa dentro do panorama dos estudos de histoacuteria da filosofia na
atualidade 22
23 Apresentaccedilatildeo da temaacutetica e justificaccedilatildeo da metodologia 27
24 O testemunho de Platatildeo 30
3 PARMEcircNIDES PSICOacuteLOGO ndash PRIMEIRA PARTE 37
31 Introduccedilatildeo geral 37
32 Parmecircnides psicoacutelogo (primeira parte) 40
321 O fragmento 1 41
322 O fragmento 2 51
323 O fragmento 3 61
324 O fragmento 4 66
325 O fragmento 6 66
326 O fragmento 7 81
33 Resumo e conclusatildeo da primeira parte 92
11
4 O MEacuteTODO 95
41 Introduccedilatildeo 95
42 A exposiccedilatildeo do meacutetodo o natildeo ser em parmecircnides 97
421 Anaacutelise do fragmento DK 2 97
422 O anuacutencio da deusa versos 1-2 εἰ δ ἄγ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον
ἀκούσας αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι 98
423 O primeiro caminho versos 3 e 4 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ
εἶναι Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ) 101
424 Os versos 5 a 8 ἡ δ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι 118
425 τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν 118
426 οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) 118
427 οὔτε φράσαις 118
428 De volta aos versos 3 e 4 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι 129
429 Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ) 129
4210 Conclusatildeo 136
43 A discussatildeo do meacutetodo 140
431 Fragmento 6 141
432 Os versos 64 πρώτης γάρ σ ἀφ ὁδοῦ ταύτης διζήσιος ltgt 144
433 αὐτὰρ ἔπειτ ἀπὸ τῆς 144
12
434 O fragmento 7 Os versos 1 e 2 146
44 A aplicaccedilatildeo do meacutetodo 149
441 Ἐὸν eacute ingecircnito e impereciacutevel 154
442 Intermezzo O natildeo ser na experiecircncia do devir 156
5 O PRECEITO DA DEUSA 170
51 O natildeo ser em Parmecircnides 170
511 O ser os seres 180
512 Ouk esti 184
52 Parmenides psicoacutelogo (segunda parte) 189
521 O fragmento DK 8 189
522 O fragmento DK 4 201
523 O fragmento 16 205
524 Conclusatildeo 208
53 O preceito da deusa 208
6 CONCLUSAtildeO 220
7 REFEREcircNCIAS 226
13
1 APRESENTACcedilAtildeO
O estudo apresentado nas paacuteginas a seguir trata de um tema especiacutefico entre os muitos
presentes no poema de Parmecircnides o natildeo ser Os motivos para este recorte satildeo dois o primeiro eacute
a necessidade atual no debate contemporacircneo de uma revisatildeo dos mais variados pressupostos que
sustentam e compotildeem a nossa visatildeo de mundo ndash que podemos chamar genericamente de
newtoniana ndash onde imergida em espaccedilo e tempo homogecircneos se encontra uma realidade em
constante devir esta visatildeo parece natildeo ser mais suficiente e ademais eacute questionada desde o seacuteculo
XIX pela filosofia e ao menos desde o seacuteculo XX pela ciecircncia mais avanccedilada Hoje espaccedilo e tempo
natildeo satildeo mais tidos como um receptaacuteculo neutro do mundo alguns tradicionais instrumentos
cognitivos humanos como a relaccedilatildeo causa-efeito e o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo parecem natildeo
atuar de forma absoluta como se acreditava e finalmente a projeccedilatildeo para o futuro das dinacircmicas
do mundo segundo nossos atuais conhecimentos ndash e portanto uma ideia de rumo para a
humanidade ndash natildeo tem cenaacuterios confortaacuteveis principalmente porque a equivocidade a
instabilidade e ateacute mesmo a confusatildeo das noccedilotildees que utilizamos para ver o mundo natildeo permitem
um foco mais preciso
Em busca de novos caminhos de compreensatildeo jaacute na primeira metade do seacuteculo XX tanto
a ciecircncia como a filosofia se voltaram ao passado na esperanccedila de encontrar no patrimocircnio cultural
ocidental alguma ideia ou algum gancho que pudesse ajudar nessa busca Assim pensadores tatildeo
diferentes como Heidegger e Popper se dedicaram agrave interpretaccedilatildeo de Parmecircnides e o trataram como
par entre pares como colega como atualmente presente no debate contemporacircneo como filoacutesofo
14
vivo1 Parmecircnides natildeo eacute o uacutenico que recebeu tratamento similar outros preacute-socraacuteticos foram
chamados em causa e a razatildeo parece ser uma soacute suas ideias natildeo passaram pelos filtros platocircnico e
aristoteacutelico sendo menos comprometidas com a visatildeo cultural ocidental predominante e por isto
sugestivas de outras visotildees e outras posturas de compreensatildeo Mas Parmecircnides recebeu um
tratamento especial principalmente porque foi autor de um problema ainda hoje insoluacutevel a assim
chamada aporia eleaacutetica Ele e alguns de seus seguidores principalmente Melisso que radicalizou
as ideias parmenidianas satildeo responsaacuteveis por uma visatildeo de mundo anti-intuitiva que rejeita o devir
assim como geralmente o entendemos abrindo um abismo na noccedilatildeo de realidade seja aquela
cotidiana do homem simples seja aquela cientiacutefica do homem saacutebio Todavia a aporia eleaacutetica eacute
aporeacutetica nas conclusotildees mas natildeo nas premissas as quais restam firmes e coerentes para qualquer
um que se disponha a analisaacute-las isto eacute Parmecircnides tinha laacute suas razotildees assim agraves vezes tratado
como gecircnio e outras como banalmente iloacutegico o eleata continua representando um desafio seacuterio
aos pesquisadores de ciecircncia e de filosofia
A aporia eleaacutetica se revela imediatamente na oposiccedilatildeo absoluta entre o que eacute absolutamente
afirmado e o que eacute absolutamente negado Na foacutermula mais conhecida a oposiccedilatildeo eacute estabelecida
entre ser e natildeo ser mas tal oposiccedilatildeo possui esta caracteriacutestica se o natildeo ser eacute nada o ser natildeo tem
nada a que se opor e a oposiccedilatildeo cai para que subsista o natildeo ser deve ser algo mas se o natildeo ser eacute
algo o ser se oporia a algo isto eacute ao ser e neste caso tambeacutem a oposiccedilatildeo cai enfim se a oposiccedilatildeo
entre ser e natildeo ser eacute eliminada nos vemos obrigados a dizer que ser e natildeo ser satildeo a mesma coisa
1 Heidegger 1998 Popper 2014
15
com consequecircncias ainda mais absurdas O principal responsaacutevel da articulaccedilatildeo da aporia aquele
que natildeo se deixa capturar e que escapule de nossas garras racionais eacute o natildeo ser Desde Goacutergias e
Platatildeo o natildeo ser eacute uma noccedilatildeo das mais aporeacuteticas e como um Midas negativo tudo que ele toca se
torna difiacutecil mas dele o pensamento contemporacircneo natildeo consegue mais prescindir e como outras
noccedilotildees que sofreram outrora o mesmo destino de rejeiccedilatildeo estaacute sendo mais uma vez acolhido
estudado e repensado Por um lado a fiacutesica atual pretende que pares de partiacuteculas subatocircmicas
tenham origem no nada e por outro lado o natildeo ser passa a ser menos absoluto em loacutegicas
paraconsistentes e paracompletas Tanto no mundo sensiacutevel da fiacutesica quanto no mundo inteligiacutevel
da loacutegica o natildeo ser tambeacutem chamado de nada se alberga silenciosamente exigindo meditaccedilotildees
sobre seu papel e sua ldquoexistecircnciardquo isto eacute sobre seu status
O peso da filosofia parmenidiana foi sentido como jaacute dissemos pela cultura
contemporacircnea mas justamente os dois pensadores dos quais falamos Heidegger e Popper embora
tenham captado a dimensatildeo do recado de Parmecircnides ateacute mesmo mais do que muitos historiadores
da filosofia antiga satildeo conhecidos entre os estudiosos por ter produzido interpretaccedilotildees entre as
mais arbitraacuterias tanto do texto do poema quanto mais propriamente de sua filosofia A aparente
contradiccedilatildeo se resolve facilmente Popper e Heiddeger captaram a dimensatildeo filosoacutefica de
Parmecircnides e a aproveitaram para suas proacuteprias meditaccedilotildees mas a dimensatildeo filosoacutefica eacute apenas
um sinal da filosofia a qual para ser reconstruiacuteda e esclarecida sobre a base segura da exegese do
fragmentaacuterio texto parmenidiano requer tantas providecircncias metodoloacutegicas e uma atenccedilatildeo tatildeo
grande que o poema ainda eacute considerado um quebra-cabeccedilas pois apesar dos esforccedilos dos
estudiosos ao longo de mais de 150 anos ainda natildeo se conseguiu chegar a uma unanimidade de
interpretaccedilatildeo O problema dos fragmentos que sobreviveram os problemas paleograacuteficos de
16
traduccedilatildeo de coerecircncia interna e de compreensatildeo filosoacutefica fazem com que o poema seja estudado
hoje palavra por palavra com obstinaccedilatildeo surpreendente causando polecircmicas interpretativas a cada
passo a cada conjunccedilatildeo e a cada interpunccedilatildeo
No aspecto filosoacutefico um dos misteacuterios do poema estaacute na noccedilatildeo de natildeo ser Este aspecto
poreacutem natildeo depende precipuamente do estado do texto ou da exegese das palavras e de suas noccedilotildees
implicadas o natildeo ser foi problemaacutetico desde os exoacuterdios de divulgaccedilatildeo do poema quando estes
problemas textuais natildeo estavam presentes Vecirc-se isto claramente em Melisso que acaba rejeitando
qualquer devir em Goacutergias2 que escreve um texto tatildeo absurdo e ao mesmo tempo rigoroso que
ateacute hoje natildeo se sabe se ele estava falando seriamente ou apenas fazendo uma paroacutedia de
Parmecircnides e em Platatildeo que discute o natildeo ser no diaacutelogo O sofista A proposta de Parmecircnides eacute
escandalosa aparentemente implica o mundo imoacutevel de Melisso a equaccedilatildeo entre ser e natildeo ser de
Goacutergias e afinal o nonsense detectado por Platatildeo o qual natildeo acha soluccedilatildeo melhor de que eliminaacute-
lo atribuindo-lhe outra identidade um natildeo ser relativo no lugar daquele absoluto
A tradiccedilatildeo da histoacuteria da filosofia moderna de Hegel em diante privilegiou a noccedilatildeo de ser
e eacute para esta noccedilatildeo que se dirigiram os estudiosos ateacute aproximadamente a primeira metade do
seacuteculo XX De laacute para caacute do conteuacutedo do poema foram acentuados os aspectos metodoloacutegicos
epistemoloacutegicos e cada vez mais os cientiacuteficos Timidamente o natildeo ser comeccedilou a ganhar espaccedilo
e a representar uma etapa importante da meditaccedilatildeo filosoacutefica parmenidiana Nos anos 60 uma
preconizada volta a Parmecircnides foi surgindo a partir da questatildeo da impossibilidade de uma
2 Goacutergias Do natildeo ser ou da natureza (Περὶ τοῦ μὴ ὄντος ἢ περὶ φύσεως)
17
intermediaccedilatildeo entre ser e natildeo ser intermediaccedilatildeo rejeitada por Parmecircnides e reestabelecida
principalmente por Aristoacuteteles com sua teoria de mateacuteria e forma ato e potecircncia Nos anos 70 eacute
publicado o primeiro texto dedicado ao natildeo ser de Parmecircnides Il primato del nulla e le origini
della metafiacutesica de Alberto Colombo (1972) fortemente comprometido com uma liguagem
metafiacutesica tradicional onde o tratamento do natildeo ser eacute desenvolvido dentro de um discurso
filosoacutefico amplo e com anaacutelises eu penso de grande qualidade dentro daquela linguagem De outro
lado o natildeo ser foi bastante estudado principalmente pela assim chamada escola analiacutetica de
filosofia Entretanto os vaacuterios estudiosos pertencentes a esta corrente quase sempre se
movimentaram dentro de uma moldura conceitual pre-estabelecida normalmente de loacutegica onde
o natildeo ser e suas noccedilotildees correlatas ndash negaccedilatildeo dupla negaccedilatildeo nada etc ndash tinham um lugar cativo
entre os axiomas grosso modo procurava-se afinal entender o natildeo ser numa funccedilatildeo linguiacutestica
ou meta-linguiacutestica basicamente como operador loacutegico de negaccedilatildeo Por isso o natildeo ser como noccedilatildeo
filosoacutefica acabou sendo tido em consideraccedilatildeo menor e os estudos analiacuteticos de filosofia antiga natildeo
conseguiram penetrar no mundo anti-intuitivo do natildeo ser O mesmo natildeo pode ser dito dos estudos
de loacutegica os quais sem temor se aventuraram e continuam se aventurando por mundos estranhos
e aterradores no entanto o natildeo ser elaborado pela loacutegica natildeo pode natildeo passar pelo crivo do
aprofundamento filosoacutefico sob pena de permanecer apenas um operador loacutegico sem maiores
consequecircncias Chegando no terreno da filosofia mesmo o natildeo ser elaborado pela loacutegica natildeo pode
natildeo passar pelo crivo parmenidiano
O presente trabalho procura suprir a este anseio de uma pesquisa detida e pormenorizada
do tema do natildeo ser em Parmecircnides para aleacutem da moldura linguiacutestica abordando francamente a
questatildeo filosoacutefica mas sempre dentro do contexto do poema e de suas circunstacircncias histoacutericas
18
Ademais esse estudo eacute realizado sem a necessidade de entrar no restante da problemaacutetica
parmenidiana principalmente a questatildeo do ser e o seu status (suas caracteriacutesticas) no mundo
parmenidiano Para tanto foram tomadas algumas providecircncias metodoloacutegicas que permitissem
por quanto possiacutevel isolar a noccedilatildeo de natildeo ser sem contudo privaacute-la da vitalidade que percorre todo
o poema A primeira delas foi a identificaccedilatildeo das possiacuteveis observaccedilotildees que levaram Parmecircnides a
se interessar pelo assunto Foi assim identificado um Parmecircnides observador do comportamento
da mente humana que refletiu ateacute as uacuteltimas consequecircncias quais as implicaccedilotildees da negaccedilatildeo da
totalidade das coisas A segunda providecircncia foi identificar qual o pressuposto filosoacutefico que
Parmecircnides excogitou para a compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser Por fim foi identificado o meacutetodo
que permitiu a Parmecircnides distinguir os discursos persuasivos segundo a verdade daqueles que
persuadem de forma natildeo confiaacutevel Esse meacutetodo ao qual dei o nome de Preceito da Deusa foi
aquele que ele aplicou para a descoberta das caracteriacutesticas do seu ente cosmoloacutegico o eon
Especificamente em relaccedilatildeo ao natildeo ser o resultado da pesquisa eacute impressionante e mostra
como Parmecircnides tocou uma profundidade jamais vista antes e talvez nem depois dele A tese
tenta mostrar que para Parmecircnides a oposiccedilatildeo eacute entre a negaccedilatildeo e o ser realizando um passo ainda
aqueacutem do nosso princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo ou seja a oposiccedilatildeo proposta por Parmecircnides eacute
princiacutepio do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo A meditaccedilatildeo filosoacutefica a respeito desta oposiccedilatildeo resulta
num caminho fortemente anti-intuitivo do qual aqui foi dada apenas uma breviacutessima nota
sugestiva Com isso espero ter contribuiacutedo agrave histoacuteria da filosofia eleaacutetica mas tambeacutem ao
enriquecimento do acervo conceitual proposto por aqueles pensadores e deixado de heranccedila
espiritual a todos noacutes
19
2 INTRODUCcedilAtildeO Agrave NOCcedilAtildeO DE NAtildeO SER
21 Introduccedilatildeo geral agrave temaacutetica
Natildeo ser eacute uma noccedilatildeo genuinamente transcendente porquanto por definiccedilatildeo natildeo se refere a
nenhum objeto nem da experiecircncia sensiacutevel nem ideal nem existente e nem potencial Essa sua
natureza sugere que em sua origem natildeo pode ter surgido como ressonacircncia na mente de algum
fato externo mas que seja uma criaccedilatildeo da proacutepria mente humana O natildeo ser aparece primeiramente
e abruptamente com Parmecircnides num ambiente e num momento histoacutericos de grande fecundidade
criativa do pensamento humano como resultado do interesse reflexivo dos saacutebios daquela eacutepoca
Na aurora da filosofia na Greacutecia do VI e V seacuteculos aC alguns saacutebios comeccedilaram a se
dedicar a certas reflexotildees e agraves noccedilotildees resultantes Antes de tudo a noccedilatildeo de lsquotodorsquo que em pouco
tempo geraria tambeacutem a questatildeo singular de se estabelecer se a lei do todo eacute interna ao todo como
pensavam os preacute-socraacuteticos ou externa ao todo como comeccedilaram a pensar aqueles que comeccedilaram
a separar o todo coacutesmico (fiacutesico) dos princiacutepios regentes Estes uacuteltimos ora pensaram um outro
todo separado (como o mundo das ideias de Platatildeo) ora uma estrutura hierarquizada entre o mundo
sensiacutevel e deus (como em Aristoacuteteles) ora complexas cosmologias como as dos gnoacutesticos e dos
neoplatocircnicos finalmente essa profusatildeo de interpretaccedilotildees alcanccedilou a noccedilatildeo de um universo
criado completamente dissociado de um ser transcendente criador junto com a postulaccedilatildeo de um
ser capaz de transitar nos e entre os dois mundos (Cristo homem divino) segundo o pensamento
cristatildeo que se afirmou no ocidente
E eacute justamente com a afirmaccedilatildeo da teologia cristatilde que se toca o primeiro auge de um
progressivo processo de hipoacutestase da noccedilatildeo de natildeo ser Depois de Parmecircnides jaacute em Melisso o
natildeo ser adquire uma versatildeo mais operativa no pensamento e no discurso (contra os preceitos da
20
deusa de Parmecircnides) a qual se configura como o fundamento do futuro desenvolvimento do
conceito do natildeo ser quantitativo ou seja de zero matemaacutetico Com Platatildeo o natildeo ser eacute despojado
de sua dimensatildeo absoluta e reportado a um contexto relativo a justificar o complexo tema da
diversidade dos seres no mundo Com Aristoacuteteles o natildeo ser pocircde conviver com o ser desde que na
dilaccedilatildeo do tempo como ele afirma no princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Finalmente com Agostinho o
natildeo ser perde sua essecircncia original de negaccedilatildeo absoluta e passa por um lado a ter a potencialidade
de criaccedilatildeo ndash pois o Deus de Agostinho cria o mundo ex-nihilo invertendo assim o axioma
melissiano ndash e por outro lado passa a poder se compor com o lsquoserrsquo dando origem a uma escala
hieraacuterquica de seres na ordem cosmoloacutegica da teologia cristatilde A partir de Agostinho o tema do natildeo
ser desaparece das principais preocupaccedilotildees da filosofia3 e tambeacutem desaparece explicitamente da
cultura ocidental por mais de mil anos4 Apoacutes este periacuteodo reapareceraacute primeiro na filosofia em
forma majestosa na dialeacutetica hegeliana e depois na cultura dando origem aos movimentos niilistas
poacutes-nietzschianos que redundaratildeo no grande vigor do niilismo como opccedilatildeo de vida na cultura
atual De fato atualmente ecoa natildeo soacute nos livros especializados mas tambeacutem nos livros populares
e em outras miacutedias populares (jornais raacutedios internet) a assim chamada pergunta filosoacutefica
fundamental de Heidegger por que o ser e natildeo o nada Esta pergunta eacute um segundo auge da
hipoacutestase do natildeo ser pois de fato considera o natildeo ser uma alternativa concreta ao ser invertendo
assim o axioma parmenidiano
Este longo percurso comeccedila com Parmecircnides o primeiro a falar do natildeo ser no ocidente e
3No ldquoDe magistrordquo Agostinho esboccedila a questatildeo mas a abandona logo em seguida (De Magistro II 3) 4Uma rara e isolada exceccedilatildeo eacute aquela de Fredegiso de Tours que no ano 800 escreve uma ldquoEpistula de substantia nihili
et tenebrarumrdquo tambeacutem conhecida como ldquoDe nihilo et tenebrisrdquo veja-se o estudo de DAgostini (1998)
21
com sentido filosoacutefico ao menos pelo que se sabe ateacute agora o primeiro na histoacuteria do pensamento
humano Imergido no ambiente de reflexatildeo da Greacutecia jocircnica dos seacuteculos VI e V ndash dentro daquele
movimento de pensamento definido ateacute de lsquoilustraccedilatildeo jocircnicarsquo ndash sua descriccedilatildeo do natildeo ser apresenta
uma pureza de concepccedilatildeo que se rompe jaacute com seu disciacutepulo Melisso e progressivamente cada vez
mais ateacute nossos dias Isto significa que a noccedilatildeo parmenidiana natildeo foi absorvida pela cultura mas
foi abandonada ndash talvez recalcada ndash preferindo-se a ela outras noccedilotildees de natildeo ser progressivamente
mais distantes daquela absoluta Por este motivo ao se retomar a noccedilatildeo parmenidiana nos
deparamos com uma intuiccedilatildeo filosoacutefica intacta porque abandonada e portanto ilesa ao atrito do
tempo Quando solicitada e provocada ela responde com uma vitalidade desafiadora das melhores
reflexotildees justificando o grande interesse que Parmecircnides continua tendo depois de 2500 anos um
interesse diferente daquele despertado por peccedilas num museu que nos falam de outras eacutepocas essa
intuiccedilatildeo continua alimentando um interesse filosoacutefico vivo e poderoso fato raro entre as ideias da
antiguidade e reservado a pouca exceccedilotildees
Em nossos tempos coube a Friedrich Nietzsche inaugurar uma reflexatildeo radical sobre o
tema do natildeo ser elevando o nada a noccedilatildeo filosoacutefica poderosa e atuante Provavelmente ningueacutem
melhor do que ele soube interpretar profundamente os anseios do homem contemporacircneo quando
disse que o niilismo ldquoeacute o estado dos espiacuteritos fortes e das vontades fortes do qual natildeo eacute possiacutevel
atribuir um juiacutezo negativo a negaccedilatildeo ativa corresponde mais agrave sua natureza profundardquo5 entificando
o nada onde depois muitos iratildeo se apoiar para desenvolver suas proacuteprias doutrinas E ao lado desse
marco zero da origem o nada de onde tudo comeccedila (ldquoa vida se daacute desde nada e para nada aleacutem
5Nietzsche Wille zur Macht ed Kroner XV 24
22
dela mesma ldquoToma-se diz Nietzsche em Ecce homo natildeo se pergunta quem daacuterdquo6) se potildee o marco
zero da chegada o nada onde tudo termina o vazio deixado por deus ldquoDeus morreu Deus
permanece morto E noacutes o matamosrdquo7 Do seacuteculo XIX passando pelos Bergson Heidegger e Sartre
do seacuteculo XX e chegando agraves loacutegicas para consistentes do seacuteculo XXI a noccedilatildeo de natildeo ser (ou nada)
impotildee uma discussatildeo sem a possibilidade de atenuar o potencial devastador do problema a
consistecircncia do fundamento seja este entendido como visatildeo de mundo ou como verdade (absoluta
ou relativa) ou como afirmaccedilatildeo incontrovertiacutevel E em nossos tempos de Nietzsche a Priest natildeo
se consegue excluir Parmecircnides dessa discussatildeo todos tecircm que levar em conta o eleatismo e os
que natildeo o fazem acabam por perder o essencial da posta em jogo ou seja a possibilidade ou
impossibilidade de um conhecimento epistecircmico a possibilidade ou impossibilidade de se alcanccedilar
uma certeza para aleacutem das convicccedilotildees transitoacuterias
Posto que a filosofia antiga soacute eacute antiga quando comparada agrave filosofia de nosso tempo nas
proacuteximas paacuteginas seraacute estudado o tema do natildeo ser em Parmecircnides e se constataraacute que natildeo se trata
de um momento de um percurso histoacuterico jaacute superado mas de uma parcela atuante do discurso
filosoacutefico atual embora tenha sido desenvolvida na antiguidade da cultura grega
22 Justificaccedilatildeo da pesquisa dentro do panorama dos estudos de histoacuteria da filosofia na
atualidade
A expressatildeo natildeo ser enquanto noccedilatildeo filosoacutefica comparece pela primeira vez com
6 Nietzsche Ecce homo seccedilatildeo 3 7 Nietzsche Die froumlhliche Wissenschaft seccedilatildeo 125
23
Parmecircnides Como noccedilatildeo comum natildeo ser enquanto negaccedilatildeo de um ente qualquer a partir da
negaccedilatildeo do verbo ser eacute presente nas antigas liacutenguas histoacutericas e nas preacute-histoacutericas tambeacutem8 Nas
liacutenguas modernas natildeo ser eacute uma noccedilatildeo corrente e pertence agrave estrutura das nossas atuais linguagens
(com algumas exceccedilotildees natildeo relevantes aqui) a partir do uso pragmaacutetico principalmente das noccedilotildees
de presenccedilaausecircncia existecircncianatildeo existecircncia e em maneira preponderante na nossa estrutura
linguiacutestica predicativa onde qualificaccedilotildees satildeo consideradas pertencentes ou natildeo pertencentes a um
ente
A histoacuteria da filosofia mostra que natildeo ser natildeo eacute uma noccedilatildeo trivial como o uso pragmaacutetico
que dela fazemos poderia sugerir Desde seu aparecimento no texto parmenidiano o natildeo ser
apresentou uma aporia fortiacutessima talvez a maior das aporias e apesar das tentativas dos maiores
filoacutesofos parece se reapresentar de tempo em tempo como uma ferida que se reabre denunciando
que de fato nunca cicatrizou Da pragmaacutetica agrave noccedilatildeo criacutetica o salto eacute tatildeo grande que se se aplicasse
agrave pragmaacutetica a noccedilatildeo criacutetica o mundo assim como noacutes pragmaticamente o vemos e interpretamos
cairia abaixo O primeiro a perceber isto foi Parmecircnides e com ele os eleatas a aporia do natildeo ser
recebeu assim o nome de aporia eleaacutetica A mais radical expressatildeo da aporia eleaacutetica se encontra
em Melisso mas mesmo em Parmecircnides onde ela eacute atenuada a aporia eacute desnorteadora Com
nossas palavras atuais e com nossas noccedilotildees podemos dizer que se de um lado natildeo ser eacute a negaccedilatildeo
absoluta do ser entatildeo fica impossiacutevel sustentar a explicaccedilatildeo comum do fenocircmeno que noacutes
chamamos devir que consiste em asserir que as coisas nascem e morrem que tudo se transforma
que tudo passa a ser o que natildeo era e deixa de ser o que era
8A partiacutecula negativa μή estaacute bem documentada para o Indo-Europeu mē (Chantraine 1977 verbete μή)
24
Como se sabe esta aporia foi enfrentada por Platatildeo o qual se viu obrigado a deixar de lado
a noccedilatildeo de natildeo ser absoluto e a introduzir aquela de natildeo ser relativo exatamente para salvaguardar
a nossa percepccedilatildeo comum do devir Algo similar fez Aristoacuteteles pois de fato ambos ressaltam a
grande dificuldade representada pelo natildeo ser absoluto De laacute para caacute a aporia eleaacutetica natildeo foi
resolvida e a discussatildeo permanece em aberto basta consultar um dicionaacuterio de filosofia para se
perceber a equivocidade da noccedilatildeo de nada nos autores contemporacircneos ou um dicionaacuterio de loacutegica
a evidenciar por um lado a aporia e por outro a dificuldade de se estabelecer exatamente o status
questionis do natildeo ser Vejamos esse exemplo do verbete nada extraiacutedo de um dicionaacuterio de loacutegica
ldquoSegundo PL Heath da University of Virginia nada eacute um conceito ldquoindigestordquo e poucos
saberiam como lidar com ele Desde Parmecircnides (nasceu em 515 aC) que asseverou ser
impossiacutevel falar do que natildeo eacute mas violou sua proacutepria regra no ato de fazer tal asseveraccedilatildeo
ndash mergulhando em um mundo no qual o ocorrido se reduzia a nada ndash tornou-se difiacutecil
atravessar a estreita passagem que nesse tema separa sentido e sem-sentido Assim
limitamo-nos a lembrar que em notaccedilatildeo loacutegica a palavra nada costuma ser representada
pela negaccedilatildeo do quantificador existencialrdquo9
Desde Parmecircnides diz o autor do dicionaacuterio natildeo se conseguiu vir a cabo da questatildeo do natildeo
ser ou nada como se prefere dizer atualmente Mas o autor esqueceu de dizer que embora
Parmecircnides tenha violado a proacutepria regra aquela da impossibilidade de falar do natildeo ser natildeo foi o
uacutenico e natildeo foi exceccedilatildeo se se admite que a expressatildeo natildeo ser (ou nada) se refere ao que natildeo eacute do
qual eacute impossiacutevel falar entatildeo todos noacutes violamos a regra de Parmecircnides inclusive o autor o qual
viola a sua proacutepria regra (negaccedilatildeo do quantificador existencial) permanecendo plenamente
imergido na aporia eleaacutetica Esta passagem num verbete de um dicionaacuterio de loacutegica resume
claramente o problema aparentemente Parmecircnides no exato momento em que afirma o preceito
9Hegenberg L (2005) p 231
25
o viola ou seja a violaccedilatildeo estaacute contida na proacutepria manifestaccedilatildeo do preceito como aquelas famosas
frases paradoxais eu natildeo estou falando eu natildeo estou aqui natildeo leia esta placa e assim por diante
No entanto a suspeita de que talvez Parmecircnides natildeo tenha sido tatildeo ingecircnuo eacute mais que legiacutetima
Antes de tudo porque eacute muito difiacutecil construir uma cosmologia rigorosa como ele fez sobre um
conceito paradoxal E depois o paradoxo da aporia eleaacutetica se ele fosse um apenas paradoxo um
constructo sem consistecircncia epistecircmica teria sido relegado em plano secundaacuterio na histoacuteria da
filosofia e Parmecircnides teria seguido talvez a mesma sorte de seu concidadatildeo Zenatildeo o qual teve
que aguardar as pesquisas de loacutegica do seacuteculo XX para ver resgatado ao menos em parte o seu
valor
O fato de que a aporia eleaacutetica esteja ainda em aberto e sem soluccedilatildeo agrave vista levou a um
incremento dos estudos parmenidianos ao longo do seacuteculo XX com uma acentuaccedilatildeo na segunda
parte do seacuteculo As monografias e ateacute mesmo as ediccedilotildees criacuteticas se multiplicaram sem falar de
uma quantidade imensa de estudos e artigos em muitas aacutereas nas quais a obra parmenidiana incidiu
direta ou indiretamente filosofia literatura e poesia epistemologia filosofia da ciecircncia ontologia
loacutegica linguiacutestica e muitos outros campos mais especiacuteficos dos quais muitas vezes o estudioso de
histoacuteria da filosofia natildeo eacute notificado O assunto de longe mais tratado do poema de Parmecircnides eacute
o ser Isso deve-se principalmente ao proacuteprio DNA da histoacuteria moderna da filosofia na praacutetica
iniciada com Hegel A influecircncia do hegelianismo e do idealismo alematildeo como um todo redundou
nesta predileccedilatildeo para a noccedilatildeo absoluta do ser parente proacutexima do proacuteprio Absoluto hegeliano
Nesse contexto o natildeo ser eacute tatildeo somente um momento dialeacutetico embora estrutural o qual natildeo
possui uma autonomia e que afinal se desfaz na medida em que o Absoluto se realiza A
consequecircncia desta influecircncia limitou os estudos propriamente histoacutericos a respeito do natildeo ser de
Parmecircnides Surpreendentemente poreacutem a noccedilatildeo filosoacutefica de nada cresceu por proacutepria conta
26
entre os filoacutesofos contemporacircneos os quais acabaram por se interessar em Parmecircnides e estimular
novos estudos histoacutericos10
Neste percurso ainda eacute o ser o protagonista nos estudos histoacutericos de filosofia Jaacute nos outros
campos na reflexatildeo filosoacutefica contemporacircnea e nos estudos loacutegicos a noccedilatildeo de natildeo ser preme
para novos aprofundamentos Surgem assim novos estudos especialmente em aacuterea de filosofia
analiacutetica (penso aqui no moderado Jonathan Barnes mas haacute outros mais analiticamente radicais)
que voltam a evidenciar a aporia eleaacutetica Apesar de todos estes movimentos e com exceccedilatildeo de
poucos artigos dedicados a esclarecer o natildeo ser mais para esclarecer a noccedilatildeo de ser natildeo ouve
que eu saiba ateacute o presente trabalho um estudo especiacutefico sobre o natildeo ser em Parmecircnides Eu
proacuteprio quando senti a necessidade de enfrentar esse argumento fui colhido por uma sensaccedilatildeo de
assombro pelo tamanho do empreendimento sensaccedilatildeo que consegui superar somente com uma
estrateacutegia de pesquisa que articula o tema em partes separadas e de certa forma distintas embora
pertencentes ao mesmo fenocircmeno filosoacutefico da antiguidade grega a aporia eleaacutetica de Parmecircnides
a Platatildeo Assim o presente trabalho constitui a primeira etapa embora desenvolvida em segundo
lugar de uma tetralogia do natildeo ser que se desenvolve e evolui na sequecircncia histoacuterica de
Parmecircnides Melisso Goacutergias e Platatildeo O estudo sobre o natildeo ser em Melisso foi realizado no
mestrado aqui estaacute o estudo sobre Parmecircnides e no futuro minhas forccedilas o permitindo estatildeo os
10Aqui dois exemplos bem distintos mas tendo em Heidegger uma matriz comum o italiano Severino estudioso de
Heidegger na juventude publicou um importante artigo nos anos 60 ldquoRitornare a Parmeniderdquo (hoje em Severino
1982) onde recupera a oposiccedilatildeo radical entre ser e natildeo-ser de (segundo ele) Parmecircnides e desencadeia um grande
movimento na Itaacutelia chamado ateacute de neo-parmenidismo o argentino Cordero francecircs de adoccedilatildeo tambeacutem
estudioso de Heidegger na juventude se orientou para o aprofundamento das questotildees exegeacuteticas do poema de
Parmecircnides produzindo ateacute mesmo nos anos 80 uma ediccedilatildeo criacutetica a partir dos originais e resgatando um
Parmecircnides menos idealista alematildeo e menos platocircnico do que aquele defendido pela maioria das escolas histoacutericas
ateacute entatildeo e por muitas ateacute agora (Cordero 1984)
27
estudos sobre o natildeo ser em Goacutergias e sobre o natildeo ser no Sofista de Platatildeo Justificada a necessidade
histoacuterica da presente pesquisa podemos agora nos dedicar agrave apresentaccedilatildeo da mesma e da
metodologia escolhida para a realizaccedilatildeo
23 Apresentaccedilatildeo da temaacutetica e justificaccedilatildeo da metodologia
O poema de Parmecircnides pela sua importacircncia histoacuterica e filosoacutefica recebeu muitas atenccedilotildees
desde a antiguidade Graccedilas a essas atenccedilotildees algumas partes do poema sobreviveram devido agrave
citaccedilotildees dos vaacuterios doxoacutegrafos A reconstruccedilatildeo a partir das citaccedilotildees comeccedilou na aurora da
modernidade com a publicaccedilatildeo de uma coletacircnea de poetas gregos Ποίησις Φιλόσοφος em 1573
de autoria de Henri Estienne Nas paacuteginas dedicadas a Parmecircnides (41-46) natildeo satildeo reportadas as
citaccedilotildees de Simpliacutecio autor que Estienne segundo Cordero natildeo podia natildeo conhecer11 Esse livro
conteacutem tambeacutem um apecircndice com correccedilotildees aportadas por Joseph J Scaliger num trabalho de
filologia12 notaacutevel e inovador para a eacutepoca A versatildeo completa de Scaliger ficou ineacutedita e esquecida
ateacute ser reencontrada em 1980 acusando o excelente trabalho do filoacutelogo o qual reconstruiu o
poema em 148 versos faltando uns 12 para completar a versatildeo atualmente utilizada13 Esta simples
nota histoacuterica jaacute potildee toda a problemaacutetica que ainda perduraraacute por seacuteculos ateacute nossos dias a
reconstruccedilatildeo filoloacutegica do poema O texto de Parmecircnides passou de seu original dialeto jocircnico
(numa colocircnia itaacutelica) para a Atenas de Soacutecrates e Platatildeo e sucessivamente foi recopiado
provavelmente na escola de Aristoacuteteles onde jaacute se supotildee haver dois textos diferentes dadas as
11Cordero (1987) p 8 12ldquoProto-filologiardquo diz Cordero ibidem p 8 13Todas estas notiacutecias estatildeo em Cordero (1987)
28
citaccedilotildees diferentes do mesmo trecho em Aristoacuteteles e Teofrasto14 A filologia sucessiva se complica
mais ainda ao se considerar as citaccedilotildees de eacutepoca muito sucessivas com as mais diversas variaccedilotildees
de evoluccedilatildeo da liacutengua Ao todo as citaccedilotildees podem ser subdivididas em trecircs grupos cronoloacutegicos15
(1) Platatildeo Aristoacuteteles Teofrasto e Eudemo no seacuteculo IV aC
(2) Plutarco (sec I dC) Galeno (sec II dC) Clemente de Alexandria e Sexto Empiacuterico (sec II
e III dC) Dioacutegenes Laeacutercio (sec III dC)
(3) Plotino (sec III dC) Jacircmblico (sec III-IV dC) Proclo (sec IV-V dC) Damascio e Amocircnio
(sec V-VI dC) e Simpliacutecio (sec VI dC)
Platatildeo o primeiro a citar Parmecircnides parece iniciar uma das duas tradiccedilotildees doxograacuteficas
mais fortes aquela que jaacute inclui uma ldquointerpretaccedilatildeordquo de Parmecircnides no texto enquanto que uma
segunda que corre ateacute Proclo parece ser baseada num texto jaacute fortemente aticizado cujo maior
representante eacute Teofrasto16 Aleacutem disso parece haver uma terceira alternativa encontrada em Sexto
Empiacuterico que se baseia em textos peripateacuteticos diferentes dos de Teofrasto (como dissemos acima)
compondo um quadro bastante complicado os textos de Siacutempliacutecio Proclo Plutarco e Sexto
Empiacuterico os que citam a maioria dos versos de Parmecircnides apresentam cada um por motivos
diversos vantagens e desvantagens do ponto de vista da qualidade filoloacutegica Alguns destes
problemas seratildeo tratados mais adiante e aqui queremos apontar apenas o estado fragmentaacuterio do
texto e os seus intransponiacuteveis obstaacuteculos exegeacuteticos Por conta dessas dificuldades os estudos
parmenidianos estatildeo em aberto as tentativas dos estudiosos de novas soluccedilotildees a cada problema
14ib p 5 15Passa (2009) p 21 16Ibidem p 26-7
29
particular natildeo param e haacute muito trabalho ainda pela frente
A presente pesquisa tem um assunto delimitado o natildeo ser em Parmecircnides que delimita
tambeacutem reduzindo-as as dificuldades filoloacutegicas Por outro lado como veremos em breve a maior
dificuldade em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de natildeo ser no poema eacute de natureza filosoacutefica e portanto a
metodologia aqui usada alia o suporte filoloacutegico a um forte contexto interpretativo filosoacutefico Natildeo
satildeo poucos os autores em acircmbito de histoacuteria da filosofia que afirmam que a interpretaccedilatildeo do texto
de Parmecircnides depende da interpretaccedilatildeo filosoacutefica que a ele se daacute Um parecer similar se encontra
tambeacutem entre os filoacutelogos17 deixando a problemaacutetica agrave beira de um ciacuterculo vicioso de petitio
principii por um lado eacute necessaacuterio entender a letra do texto para entender as noccedilotildees e ideias
veiculadas e por outro lado eacute necessaacuterio conhecer as noccedilotildees e ideias veiculadas para entender a
letra do texto
Parece impossiacutevel escapar desta situaccedilatildeo por muitas razotildees Aleacutem das jaacute citadas questotildees
de transmissatildeo do texto eacute preciso acrescentar (1) o format escolhido por Parmecircnides ou seja a
poesia em linguagem eacutepica ao inveacutes da recente prosa jocircnica mais clara para expressar conteuacutedos
mais precisos (2) a funccedilatildeo didaacutetica do poema que o torna segundo o costume da eacutepoca um proacute-
memoacuteria para o ensinamento oral ou seja sem toda a preciosiacutessima parte da articulaccedilatildeo e
exemplificaccedilatildeo dos argumentos o que contribuiria ao esclarecimento (3) as novidades linguiacutesticas
de noccedilatildeo filosoacutefica e a descriccedilatildeo de uma cosmologia proacutepria que natildeo teve disciacutepulos verdadeiros18
aos quais recorrer para esclarecimento das noccedilotildees do mestre (4) a extraordinaacuteria complexidade e
17Passa (2009) p 11 18Uma discussatildeo mais adiante
30
profundidade da filosofia de Parmecircnides muito difiacutecil para a eacutepoca e a bem da verdade para a
atualidade tambeacutem
O presente estudo voltado a uma questatildeo filosoacutefica especiacutefica dispensa muitos dos
problemas implicados pelo estudo do poema como um todo e ao mesmo tempo consegue escapulir
do ciacuterculo vicioso acima chamando a depor em favor da nitidez da argumentaccedilatildeo proposta um
testemunha que eacute especial por vaacuterias razotildees Platatildeo como em breve veremos Por outro lado
proponho aqui um ponto de vista natildeo tentado ainda em relaccedilatildeo a Parmecircnides o ponto de vista de
um estudioso da mente humana aquele que hoje chamariacuteamos de psicoacutelogo de fato como
veremos o poema apresenta um vocabulaacuterio psicoloacutegico expliacutecito e tambeacutem como seraacute
evidenciado um vocabulaacuterio psicoloacutegico mimetizado na linguagem arcaica de Parmecircnides Todos
os termos psicoloacutegicos que estudaremos foram mais do que meticulosamente estudados pelos
criacuteticos e aqui se trata nada mais de que unir esse vocabulaacuterio ateacute agora disperso num todo mais
coerente e que mostraraacute um Parmecircnides ateacute agora ineacutedito o Parmecircnides psicoacutelogo Esses dois
instrumentos metodoloacutegicos o Parmecircnides psicoacutelogo e o testemunho de Platatildeo ajudaratildeo o primeiro
a interpretar palavras do texto claras na filologia mas misteriosas na noccedilatildeo e o segundo a confrontar
o resultado obtido com a cristalina discussatildeo filosoacutefica proposta por Platatildeo quando ele enfrenta
diretamente o eleata
24 O testemunho de Platatildeo
Sobre a relaccedilatildeo entre Parmecircnides e Platatildeo ou melhor de Platatildeo com Parmecircnides escreveu-
se muitiacutessimo e certamente natildeo eacute este o lugar para aprofundar tal tema Mas Platatildeo reveste uma
importacircncia especial como testemunha da obra parmenidiana e mais do que as suas ideias a respeito
de Parmecircnides nos interessam as suas palavras De fato Platatildeo eacute o mais antigo filoacutesofo a citar o
31
nome de Parmecircnides e tambeacutem a citar textualmente algumas de suas afirmaccedilotildees o faz em vaacuterias
oportunidades duas vezes no Banquete (em 178b9-11 que constitui o fr DK 28 B 13 e em 195c2
onde eacute apenas nomeado) duas no Teeteto (em 180e1 que constitui o fr DK 28 B 838 e em 183e3-
184a3 onde apresenta a pessoa de Parmecircnides) em vaacuterias passagens do Sofista (a ediccedilatildeo de Coxon
reporta cinco trechos entre os testimonia19) das quais trecircs contecircm citaccedilotildees de versos do poema (em
237a8-9 que constituem os versos DK 28 B 71-2 em 244e6 que constitui o fragmento DK 28 B
843-45 e em 258d3-4 que repetem os versos 71-2) Jaacute o diaacutelogo a ele titulado o Parmecircnides
embora seja impregnado de filosofia eleaacutetica natildeo possui citaccedilotildees que seguramente e literalmente
possam ser atribuiacutedas ao poema de Parmecircnides
O testemunho de Platatildeo apresenta algumas vantagens exegeacuteticas em relaccedilatildeo aos demais
doxoacutegrafos eacute o mais antigo e cronologicamente mais proacuteximo a Parmecircnides eacute confiaacutevel do ponto
de vista da compreensatildeo da letra do texto pois Platatildeo tem consciecircncia das dificuldades de
compreensatildeo daquele dialeto jocircnico transplantado no sul da Itaacutelia e comprimido num moacutedulo
didaacutetico (poema) imitando uma linguagem eacutepica ainda mais antiga ou seja percebe que eacute uma
linguagem artificiosa que pode conduzir a enganos20 por fim Platatildeo eacute um dos maiores filoacutesofos
da humanidade e ademais estudou detidamente a filosofia do eleata e a discutiu em obras
filosoacuteficas imortais portanto dificilmente pode ser acusado de incompreensatildeo da mensagem
parmenidiana21 tornando-se assim do ponto de vista filosoacutefico totalmente confiaacutevel
19Coxon (2009) p 104-113 20Platatildeo Theet 184a 21Na mesma passagem do Teeteto (184a) Platatildeo afirma de natildeo ter certeza de ter entendido o que disse e o que quis
dizer (φοβοῦμαι οὖν μὴ οὔτε τὰ λεγόμενα συνιῶμεν τί τε διανοούμενος εἶπε) palavras que indicam a preocupaccedilatildeo
rigorosa de Platatildeo quanto ao pensamento que ele achava profundo (βάθος) de Parmecircnides
32
A citaccedilatildeo que nos interessa diretamente eacute aquela do Sofista Platatildeo escreve jaacute em idade
avanccedilada um livro de grande importacircncia filosoacutefica um dos maiores livros de filosofia de todos
os tempos O Sofista Ali ele discute alguns temas essenciais da vida do pensamento humano
principalmente como eacute que o mundo pode se apresentar muacuteltiplo e mutaacutevel se as ideias parecem
tender agrave unidade e parecem ser imutaacuteveis O extraordinaacuterio aparato filosoacutefico que Platatildeo potildee em
jogo tem um ponto de partida singular uma discussatildeo sobre o natildeo ser Apoacutes o estabelecimento do
meacutetodo de caccedila ao sofista e apoacutes as vaacuterias articulaccedilotildees da diairesis platocircnica o natildeo ser eacute o primeiro
verdadeiro obstaacuteculo no percurso platocircnico mas eacute um obstaacuteculo tatildeo grande que assim como
configurado segundo a noccedilatildeo de natildeo ser que se conhecia ateacute entatildeo ndash o natildeo ser parmenidiano ndash natildeo
podia ser absorvido a serviccedilo de uma causa quem sabe maior para uma nova visatildeo de mundo a
causa e visatildeo platocircnicas natildeo podendo ser aproveitada a noccedilatildeo parmenidiana eacute descartada Na
sequecircncia do texto platocircnico outras noccedilotildees e outros filoacutesofos satildeo descartados mas somente
Parmecircnides sofre uma dinacircmica criacutetica especial que viraacute a ser conhecida como parriciacutedio A
respeito da questatildeo de se utilizar (e inutilizar) a noccedilatildeo parmenidiana de natildeo ser absoluto diz a
personagem o estrangeiro de Eleia que ele natildeo quer ser tido como parricida porque o pai
Parmecircnides natildeo cansava de repetir do comeccedilo ao fim (de sua atuaccedilatildeo filosoacutefica) em verso e em
prosa que
ldquoNatildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (o) natildeo ente
Tu poreacutem desta via de inqueacuterito afasta o pensamento22
22Parmecircnides (DK B 71-2) em Platatildeo Soph 237a8-9 Οὐ γὰρ μή ποτε τοῦτο δαμῇ φησίν εἶναι μὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ
τῆσδ ἀφ ὁδοῦ διζήμενος εἶργε νόημα Trad Cavalcante de Souza (1978)
33
Aqui eacute preciso notar duas coisas a primeira eacute que natildeo aceitando a noccedilatildeo expressa na
citaccedilatildeo se mataria Parmecircnides o que quer dizer que esta noccedilatildeo eacute essencial na sua filosofia e sem
ela a filosofia parmenidiana natildeo sobrevive a segunda eacute a descriccedilatildeo contextual da citaccedilatildeo pois
Parmecircnides natildeo se cansava de repetir ao longo de sua vida e de todas as maneiras como um bordatildeo
o que confirma que a citaccedilatildeo pertence ao nuacutecleo soacutelido e persistente do pensamento do eleata As
duas descriccedilotildees satildeo sineacutergicas e apontam assim me parece para aquilo que eacute o essencial da
filosofia parmenidiana Ademais acrescente-se que a evidenciar este nuacutecleo essencial natildeo eacute um
pensador menor mas eacute Platatildeo na sua fase filosoacutefica mais profunda Penso que natildeo haacute mais duacutevidas
eacute possiacutevel fazer uma reconstruccedilatildeo do puzzle do poema limitadamente agrave sua parte filosoacutefica a partir
da imagem de referecircncia oferecida por Platatildeo que eacute tambeacutem aquela que mais interessou aos antigos
e que mais interessa tambeacutem aos filoacutesofos atuais
O poema foi muito estudado nos primeiros 150 anos apoacutes Parmecircnides ateacute basicamente
Aristoacuteteles e pouco depois e foi responsaacutevel direto por algumas das grandes intuiccedilotildees da antiga
filosofia grega Do que chegou ateacute noacutes aleacutem das obras dos eleaacuteticos Zenatildeo e Melisso ndash obras
altamente anti-intuitivas e paradoxais mas que nem sempre ajudam a entender o proacuteprio
Parmecircnides23 ndash o fruto mais desconcertante do eleatismo eacute sem duacutevida o Περὶ τοῦ μὴ ὄντος ἢ Περὶ
φύσεως de Goacutergias Este livro eacute seguramente referido ao eleatismo mas expotildee a mateacuteria de forma
paroxiacutestica deixando os estudiosos perplexos e indecisos entre levar as flagrantes contradiccedilotildees ali
expostas a seacuterio ou considerar o todo um exerciacutecio luacutedico de sarcasmo sofiacutestico As demais
23Em meu trabalho sobre Melisso tive a ocasiatildeo de pocircr em evidecircncia o quanto eacute bastante comum em muitos autores
interpretar Parmecircnides a partir de Melisso atribuindo ao mestre pecados que afinal satildeo soacute do disciacutepulo Por terem
noccedilotildees muito similares nem sempre eacute faacutecil discernir as de um das de outro (Galgano 2010)
34
referecircncias ao eleata podem ser inferidas em muitos autores de Empeacutedocles a Demoacutecrito mas natildeo
satildeo expliacutecitas ateacute Platatildeo o qual muitas vezes faz referecircncias aos antigos pensadores e no Sofista
traceja ateacute mesmo o primeiro esboccedilo de histoacuteria da filosofia da qual se tem registro onde
Parmecircnides eacute de novo nomeado junto com Xenoacutefanes e a estirpe eleaacutetica24
Platatildeo acolhe a heranccedila dos antigos embora natildeo se saiba muito bem em qual medida ele
seja franco quanto aos seus autores de referecircncia25 e discute suas propostas ora aceitando-as ora
criticando-as sempre com grande respeito e ateacute com veneraccedilatildeo como eacute o caso do proacuteprio
Parmecircnides natildeo soacute pela citaccedilatildeo no Teeteto mas tambeacutem pela impressionante apresentaccedilatildeo do
eleata no diaacutelogo Parmecircnides Diferentemente de Aristoacuteteles que muitas vezes como foi
evidenciado por alguns autores26 chega a distorcer o pensamento dos antigos para justificar suas
proacuteprias noccedilotildees Platatildeo eacute mais cauteloso e faz citaccedilotildees pontuais das quais natildeo se tem porque pocircr
em duacutevida a autenticidade Em relaccedilatildeo ao nosso tema das trecircs citaccedilotildees de versos no Sofista duas
repetem a mesma passagem aquela que nos interessa diretamente aqui As duas citaccedilotildees satildeo
ligeiramente diferentes
Οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ φησίν εἶναι μὴ ἐόντα
ἀλλὰ σὺ τῆσδ ἀφ ὁδοῦ διζήμενος εἶργε νόημα27
Οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα
ἀλλὰ σὺ τῆσδ ἀφ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόημα28
24Platatildeo Soph 242b et passim 25Por exemplo em sua obra haacute uma uacutenica referecircncia a Pitaacutegoras embora ele discuta temas pitagoacutericos em muitas
passagens inclusive apresentando personagens pitagoacutericas 26Por exemplo a obra de Cherniss (1935) Aristotlersquos criticism of presocratic philosophy 27Platatildeo Soph 237 a 8-9 28Ibidem 258 d 2-3
35
Resta a tarefa de entender estas palavras que agora jaacute sabemos se referem ao cerne da
filosofia parmenidiana e de construir uma imagem de referecircncia que possa ser um guia confiaacutevel
na reconstruccedilatildeo do poema
A primeira expressatildeo Οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ eacute uma expressatildeo imperativa embora
apresentada com um subjuntivo Haacute divergecircncias gramaticais que discutiremos detalhadamente
em sede oportuna mas o sentido geral eacute de uma noccedilatildeo reforccedilada com outra natildeo prevaleccedila (em
sentido ativo ou passivo por enquanto natildeo importa) eacute a noccedilatildeo jamais eacute o reforccedilo Esta expressatildeo
eacute tiacutepica de toda a fala imperativa da deusa que daacute um caraacuteter hieraacutetico e de universalidade agrave
afirmaccedilatildeo em suma diz a deusa eacute uma lei Qual eacute a lei que natildeo pode ser prevaricada Que sejam
os natildeo seres εἶναι μὴ ἐόντα No entanto o que venham a ser os ἐόντα e qual seja o sentido de εἶναι
eacute exatamente o problema mais criacutetico da filologia da semacircntica e da filosofia de Parmecircnides como
um todo Eacute portanto totalmente desaconselhaacutevel tomar estas noccedilotildees como imagem de referecircncia
E o mesmo deve ser dito em relaccedilatildeo ao verso seguinte ἀλλὰ σὺ τῆσδ ἀφ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε
νόημα onde os vaacuterios conceitos envolvidos lsquocaminhorsquo lsquopesquisarsquo lsquopensamentorsquo satildeo todos
problemaacuteticos em Parmecircnides e uma clara noccedilatildeo para todos eles talvez seja possiacutevel no fim do
estudo mas natildeo no iniacutecio e muito menos como pressuposto (externo) ao poema como imagem de
referecircncia
Apesar disso embora natildeo possam ser descartadas as noccedilotildees dos conceitos envolvidos tem
algo muito claro que permanece e que eacute a estrutura sintaacutetica onde as noccedilotildees estatildeo implantadas
μήποτε e μὴ A negaccedilatildeo μὴ se daacute como uma negaccedilatildeo a respeito de duas noccedilotildees de mesma origem
semacircntica εἶναι e ἐόντα E o μήποτε jamais indica claramente o imperativo negativo a respeito
da negaccedilatildeo μὴ Em suma a estrutura diz jamais seja negado algo onde esse algo se refere a εἶναι
e ἐόντα dos quais noacutes ainda natildeo temos uma clara semacircntica Ora estariacuteamos diante de algo
36
incompreensiacutevel se natildeo fosse Platatildeo a nos esclarecer A citaccedilatildeo ocorre no meio da discussatildeo sobre
o natildeo ser e o tema eacute exatamente se eacute possiacutevel que o natildeo ser seja29 Agora seja qual for o sentido
de εἶναι e ἐόντα em Parmecircnides coisa que analisaremos a seu tempo eles tecircm um sentido claro em
Platatildeo que o natildeo ser seja algo Para que possamos deixar espaccedilo agrave semacircntica parmenidiana sem
constrangecirc-la dentro da semacircntica platocircnica a imagem de referecircncia pode ser firmada em volta da
oposiccedilatildeo radical (jamais) entre duas instacircncias ser e natildeo ser cuja noccedilatildeo deve ser esclarecida
Temos assim nossa imagem de referecircncia O tema filosoacutefico principal em volta do qual gira
o poema eacute a oposiccedilatildeo radical de duas instacircncias cosmoloacutegicas (ἀρχάι) a saber ser e natildeo ser cujas
noccedilotildees devem ser esclarecidas Resta ainda a acrescentar que esta imagem natildeo eacute incongruente com
os textos de Melisso e de Goacutergias natildeo eacute incongruente com a temaacutetica apresentada por Platatildeo como
eleaacutetica e tambeacutem com aquela apresentada por Aristoacuteteles ademais natildeo eacute incongruente com as
demais imagens legadas pela doxografia ou ao menos natildeo eacute desabonada por elas
29Eacute a discussatildeo para tentar caccedilar o sofista que se escondeu no natildeo ser
37
3 PARMEcircNIDES PSICOacuteLOGO ndash PRIMEIRA PARTE
31 Introduccedilatildeo geral
A finalidade desse capiacutetulo eacute mostrar pela identificaccedilatildeo de um vocabulaacuterio psicoloacutegico em
seu poema a capacidade de Parmecircnides de observaccedilatildeo do comportamento mental humano esta
habilidade de autecircntico psicoacutelogo (talvez cognitivista segundo as atuais categorias em uso) em
ato no poema eacute capaz de explicar um resultado extraordinaacuterio a descoberta de uma estrutura do
pensamento a partir da descoberta de uma estrutura do pensar onde por pensar quero me referir ao
processo fisioloacutegico e por pensamento ao resultado desse processo Enquanto no proacuteximo capiacutetulo
examinaremos de perto as estruturas do pensar e do pensamento propostas por Parmecircnides aqui
nos limitaremos agrave averiguaccedilatildeo geral de uma investigaccedilatildeo psicoloacutegica ndash em breve veremos em que
moldes ndash capaz de sugerir o enfoque psicoloacutegico na pesquisa realizada pelo eleata Por outro lado
o estudo de psicologia como ciecircncia do comportamento mental e natildeo como ciecircncia da alma eacute um
ramo do saber relativamente recente e se se considera Wundt o fundador da psicologia cientiacutefica
no seacuteculo XIX ainda teremos de esperar o seacuteculo XX para a consolidaccedilatildeo de uma ciecircncia autocircnoma
em relaccedilatildeo ao atualmente ambiacuteguo impreciso e equiacutevoco conceito de alma A psicologia cientiacutefica
do seacuteculo XXI estuda a mente e natildeo a alma estribando-se sobre o comportamento mental concreto
e deixando de lado se haacute ou natildeo uma instacircncia ndash a alma ndash externa ao corpo material ou espiritual
que possa explicar os fenocircmenos psiacutequicos
Ao se aplicar essa noccedilatildeo atual de psicologia agraves culturas antigas nos deparamos com a
dificuldade da ausecircncia naquelas eacutepocas de uma tal visatildeo psicoloacutegica autocircnoma e por conseguinte
com a ausecircncia das noccedilotildees correspondentes e de uma terminologia especiacutefica a definir essa
autonomia Isso deu espaccedilo a um fenocircmeno singular quando se estuda a psicologia na antiguidade
38
em geral se estudam campos semacircnticos ligados agrave palavra psyche com o seguinte resultado haacute
vaacuterios estudos sobre a psicologia em Homero ou na poesia eacutepica ou na poesia liacuterica ou na trageacutedia
haacute ateacute alguns estudos sobre a psicologia nos preacute-socraacuteticos principalmente Heraacuteclito e ateacute mesmo
Demoacutecrito por fim haacute estudos de psicologia na obra de Platatildeo e principalmente como era de se
esperar na obra de Aristoacuteteles o primeiro a escrever um livro autocircnomo sobre psicologia Mas natildeo
haacute estudos sobre a psicologia na obra de Parmecircnides O motivo principal assim me parece deve
ser buscado no fato de que no poema de Parmecircnides a palavra psyche natildeo aparece
Num livro famoso 30 A descoberta do espiacuterito Bruno Snell estreia afirmando que ldquoO
pensamento europeu comeccedila com os gregose desde entatildeo surge como a uacutenica forma do
pensamento em geralrdquo (p 11) O lsquoespiacuteritorsquo do tiacutetulo natildeo eacute a mente da psicologia e nem de outras
disciplinas especiacuteficas eacute a mente em sentido cultural amplo mesmo assim para poder chegar a
consideraccedilotildees mais amplas Snell eacute obrigado a analisar mais detidamente noccedilotildees e termos como
psyche thymos nous de Homero em diante chegando a resultados importantes e a consideraccedilotildees
luacutecidas Infelizmente quando trata de Parmecircnides ele se limita agravequeles que lhe pareceram os
pontos altos da mensagens parmenidiana a revelaccedilatildeo divina a recusa da experiecircncia dos sentidos31
e o puro ser32 sem nenhum aprofundamento nem mesmo da questatildeo do nous ndash como se esperaria
de um livro que trata da descoberta da mente ndash que em Parmecircnides natildeo eacute pequena
30Snell (1975) 31Ib ldquo a influecircncia de Parmecircnides o qual deixou de lado o saber lsquohumanorsquo a experiecircncia sensiacutevel e buscou um
acesso directo a lsquodivinorsquordquo (p 190) 32Ib ldquoA divindade leva Parmecircnides ao pensamento lsquopurorsquo com o quale le apreende o puro ser Enquanto Alcmeon
partindo da percpccedilatildeo sensiacutevel proacutepria do saber humano avanccedila ndash diriacuteamos indutivamente ndash ateacute ao invisiacutevel a
deusa de Parmecircnides ensina-o a deixar de lado como coisa enganadora toda a percepccedilatildeo sensiacutevel e o dever por
ela captadordquo (p 191)
39
Com o livro de Snell se perdeu uma grande oportunidade de dar iniacutecio a estudos mais
aprofundados da psicologia em Parmecircnides Como veremos os historiadores da filosofia antiga do
seacuteculo XIX para a primeira metade do seacuteculo XX natildeo deixaram muito espaccedilo para um
desenvolvimento nesta direccedilatildeo por outro lado os historiadores da psicologia que na verdade
comeccedilaram a trabalhar mais intensamente na segunda metade do seacuteculo XX apenas se apoiaram
nos textos dos historiadores da filosofia em geral os mais renomados e utilizaram as obras mais
gerais de histoacuteria da filosofia antiga descuidando da imensa literatura secundaacuteria que foi produzida
sobre Parmecircnides O resultado foi uma verdadeira escassez de pesquisa e uma repeticcedilatildeo do seguinte
fenocircmeno laacute onde os textos se propotildeem a falar da psicologia de Parmecircnides se limitam a expor
sumariamente em geral de forma desajeitada a sua filosofia33
Assim falando de sua filosofia esses estudiosos abordam inexoravelmente a epistemologia
parmenidiana o tema da possibilidade do conhecimento verdadeiro No entanto uma pergunta
seria legiacutetima eacute possiacutevel se falar de epistemologia como Parmecircnides o fez sem fazer nenhuma
33Vejam-se alguns exemplos Os livros gerais de histoacuteria da psicologia deixam muito a desejar acute[Por exemplo Malone
(2009) onde nas p 34-36 dedicadas aos eleaacuteticos natildeo uma soacute palavra eacute referida agrave pesquisas parmenidianas sobre
o funcionamento da mente dedicando o pouco espaccedilo a um resumo muito impreciso das ideias filosoacuteficas do
eleatismo] mas mesmo livros especializados sobre o assunto satildeo surpreendentemente parcos quanto a Parmecircnides
ou ateacute mesmo omissos [Como exemplo de omissatildeo veja-se o Everson (1991) ldquoCompanion to Ancient Thought 2 ndash
Psychologyrdquo livro especificamente dedicado agrave Psicologia no pensamento antigo onde apesar da presenccedila dos
maiores nomes entre os scholars de filosofia antiga (Schofield Irwin Annas AA Long e outros) natildeo haacute nenhuma
referecircncia agrave psicologia de Parmecircnides] Um texto dedicado ao assunto Early psychological thought [Green C D
e Groff P R (2003)] destinado a psicoacutelogos e filoacutesofos (p ix) embora se proponha a ser um ancient account
accounts of mind and soul quando aborda Parmecircnides (e os eleaacuteticos) escreve assim ldquoNeverthless his inclusion
in a history of early psychological thought is a little tricky to justify since he had little or nothing to say on the
issue of the psychecirc (hellip) His major contributions were in epistemology tyhe theory of knowledge itself and in
ontology the theory of what at the most basic level can be said to existrdquo [Ibidem p 28] Natildeo me parece que os
diretos responsaacuteveis por tais afirmaccedilotildees sejam os seus autores pois eles tomaram essas descriccedilotildees dos estudiosos
de histoacuteria da filosofia antiga ndash em particular a respeito de Parmecircnides os autores citados satildeo Barnes e Gallop os
quais natildeo fazer nenhuma referecircncia aos estudos psicoloacutegicos de Parmecircnides ndash e o argumento principal eacute que no
texto parmenidiano natildeo haacute referecircncia agrave psyche
40
referecircncia ao sistema psicoloacutegico de conhecimento Acho que natildeo porque um aparelho cognitivo
tem que estar pressuposto expliacutecita ou implicitamente e tenho a impressatildeo de que se repete um
erro metodoloacutegico jaacute evidenciado em outros casos onde se confunde a palavra como a noccedilatildeo Por
exemplo se nos baseaacutessemos na palavra loacutegica nos livros de histoacuteria da loacutegica natildeo constaria
Aristoacuteteles porque embora a noccedilatildeo de loacutegica assim como hoje a entendemos estivesse jaacute perfeita
e claramente presente ele natildeo usava esta palavra e se fizeacutessemos o mesmo com a palavra nuacutemero
na histoacuteria da matemaacutetica natildeo constariam os primeiros pitagoacutericos embora as noccedilotildees matemaacuteticas
estivessem claramente presentes entre eles O mesmo parece acontecer com a psicologia em relaccedilatildeo
a Parmecircnides pois o fato de que natildeo compareccedila a palavra psique em seu poema natildeo quer dizer
que natildeo tenha tratado de temas psicoloacutegicos e como mostraremos ali estatildeo claramente presentes
muitas noccedilotildees que hoje chamariacuteamos de noccedilotildees de psicologia
32 Parmecircnides psicoacutelogo (primeira parte)
Passamos a estudar agora os elementos psicoloacutegicos com os quais e sobre os quais
Parmecircnides constroacutei a sua filosofia Embora o poema fale claramente a respeito de atos da mente
isto eacute a respeito da possibilidade de pensar a verdade e tambeacutem a respeito do caminho errado que
os mortais seguem quando pensam suas opiniotildees um aprofundamento desse ponto de vista pelo
que eu sei como eu jaacute disse ainda natildeo foi tentado Por isso antes de aprofundar o tema eu gostaria
de deixar claro mais uma vez em que sentido estou usando aqui o termo psicologia e seus
cognatos Uso aqui o termo no sentido utilizado pela ciecircncia moderna ou seja como mente e
tomando distacircncia do sentido de alma uma das possiacuteveis traduccedilotildees de ψῡχή Assim uso
psicologia como aquela ciecircncia que trata dos estados e processos mentais exatamente como a
41
primeira definiccedilatildeo do Dicionaacuterio Huaiss da Liacutengua Portuguesa34
A psicologia cientiacutefica surge no seacuteculo XIX mas se consolida somente no seacuteculo XX Assim
eacute razoaacutevel que o aspecto psicoacutelogo possa aparecer somente depois do surgimento da nova ciecircncia
da psicologia Na verdade esperariacuteamos um exame do ponto de vista psicoloacutegico no comeccedilo35 ou
ao longo do seacuteculo XX quando assistimos agrave multiplicaccedilatildeo de muitas disciplinas no campo da mente
humana desde as neurociecircncias ateacute a psicologia social e a comparativa Na aacuterea da filosofia
assistimos ao nascimento da filosofia da mente mas uma revisatildeo dos conhecimentos psicoloacutegicos
no pensamento antigo natildeo vai aleacutem de poucas notas nos livros gerais de histoacuteria da psicologia
Desta forma nestas paacuteginas o propoacutesito eacute pocircr em evidecircncia o Parmecircnides observador da natureza
funccedilotildees e fenocircmenos da mente humana e naturalmente algumas discussotildees sobre como e quanto
essas observaccedilotildees influenciaram a sua filosofia
321 O fragmento 1
O poema se abre com uma imagem poderosa e espetacular que jaacute desde o primeiro verso
carrega um vocabulaacuterio psicoloacutegico
ἵπποι ταί με φέρουσιν ὅσον τ ἐπὶ θυμὸς ἱκάνοι
Umas eacuteguas conduzem o jovem disciacutepulo tatildeo longe quanto o espiacuterito pode alcanccedilar e levam o carro
34Houaiss (2001) verbete psicologia 35 Uma notaacutevel exceccedilatildeo eacute o livro de Beare de 1906 ldquoGreek theories of elementary cognition From Alcmaeon to
Aristotlerdquo Na introduccedilatildeo ele diz ldquoThe aim of the following pages is to give a close historical account of the various
theories partly phisiological and partly psychological by which the greek philosophers from Alcamaeon to
Aristotle endeavourede to explain the elementary phenomena of cognition The pre-Aristotelean writers who
applied themselves to this subject and whose writings we possess any considerable information are Alcmaeon of
Crotona Empadocles Democritus Anaxagoras Diogenes of Apollonia and Platordquo Parmecircnides natildeo eacute tratado
42
sobre um caminho especial que o levaraacute agrave presenccedila da deusa A palavra θυμὸς parece ser a chave
para seguir o curso didaacutetico que Parmecircnides atraveacutes da voz da deusa oferece ao seu leitor O verso
eacute reportado por Sexto Empiacuterico o qual na sua paraacutefrase traduz θυμὸς exatamente por ψῡχή36
Naturalmente com esta palavra o ceacutetico Sexto quer dizer alma atendendo a uma noccedilatildeo de seu
tempo que eacute inuacutetil reportar aqui Mas certamente θυμὸς eacute uma palavra que se refere agrave estrutura
humana que atualmente chamamos mente
Θυμὸς tem um grande campo semacircntico jaacute em Homero onde significa alma ou espiacuterito como
princiacutepio de vida do sentir37 e do pensamento38 Mas aqui no proemio Parmecircnides faz uma
introduccedilatildeo ao caraacuteter do seu escrito com muitas imagens coloridas ressonantes e dinacircmicas39 para
colocar seu leitor na disposiccedilatildeo mental de atenccedilatildeo para as liccedilotildees da deusa40 Por esta razatildeo a
palavra θυμὸς aqui eacute fortemente poeacutetica e indeterminada de modo que o puacuteblico a intenda de uma
forma mais subjetiva que objetiva Portanto ela apresenta pouco interesse para a nossa busca de
um sentido claro e uniacutevoco Entretanto a sua posiccedilatildeo no primeiro verso nos deveria alertar de que
o sujeito do poema eacute a mente Eacute a mente (no sentido amplo de aquela capacidade humana de
imaginaccedilatildeo compreensatildeo e conhecimento) que estaacute se preparando para a grande aventura pelo
mundo inteiro ateacute seus limites (e mais) para descobrir os segredos mais ocultos privileacutegio do
36Sextus Empiricus 71121 ἐν τούτοις γὰρ ὁ Παρμενίδης ἵππους μέν φησιν αὐτὸν φέρειν τὰς ἀλόγους τῆς ψυχῆς
ὁρμάς τε καὶ ὀρέξεις 37Bremmer (1983) p 54 ldquoThymos is above all the source of emotionsrdquo 38Bremmer (1983) p 55 ldquoWhen Odysseus is left alone by the Greeks in a battle ldquohe spoke to his proud thymosrdquo (XI
403) Having realized the two possibilities left to him he ends his deliberations by asking ldquobut why does my
Thymos consider thatrdquo (XI 407)rdquo 39ldquoMultimidiardquo segundo a feliz expressatildeo de Cornelli (Cornelli 2007 p 50) 40Uma ampla discussatildeo sobre as teacutecnicas usadas por Parmecircnides em relaccedilatildeo ao seu auditoacuterio estaacute em Robbiano (2006)
Apesar da grande discussatildeo sobre o papel do proemio natildeo se encontra nenhum nexo de conteuacutedo entre este e o
resto do poema
43
homem saacutebio principalmente quando eacute conduzido por uma deusa
A descriccedilatildeo parece mostrar a mente bem disposta ao conhecimento e com uma grande carga
de vontade pronta para se lanccedilar na jornada difiacutecil do conhecimento E de fato depois da
cuidadosa descriccedilatildeo da viagem em direccedilatildeo agrave deusa que o receberaacute a viagem fiacutesica do disciacutepulo
termina diante da presenccedila divina enquanto a viagem da mente continua anunciada pela proacutepria
deusa primeiro atraveacutes do mundo dos pensamentos (como veremos) um mundo onde eacute possiacutevel
encontrar aquele tipo de Persuasatildeo que procede ao lado da verdade e segundo atraveacutes do mundo
da opiniatildeo feito de estrelas divinas ceacuteus eteacutereos Eros homens e mulheres Eacute notaacutevel como essa
segunda parte da viagem natildeo acontece com uma passagem fiacutesica do jovem aprendiz atraveacutes dos
lugares fiacutesicos dos quais o poeta poderia ter nos dado uma descriccedilatildeo mas eacute exatamente uma
viagem da mente examinando teorias sobre o mundo cosmoloacutegico o mundo bioloacutegico e tambeacutem
sobre o mundo psicoloacutegico Assim o poema de Parmecircnides eacute um poema da mente pela mente e
sobre a mente
3211 A deusa DK B 12-27
Nos 26 versos seguintes do fragmento 1 Parmecircnides conta da viagem de um jovem disciacutepulo
o kouros41 ao encontro da anocircnima deusa A linguagem que ele escolhe para esta parte eacute miacutetica de
forma que o cenaacuterio os atores e a proacutepria accedilatildeo satildeo miacuteticos Natildeo haacute nenhuma referecircncia a nenhum
41Entre as vaacuterias interpretaccedilotildees do kouros (em grego jovem) em geral polarizadas entre identificaacute-lo como o proacuteprio
Parmecircnides ou como um disciacutepulo de Parmecircnides se destaca a interpretaccedilatildeo de Cousgrove (1974) que diz que
kouros significa jovem mas no sentido de sem experiecircncia ldquoYouth on the other hand implies inexperiencerdquo (p
93) podendo afinal ser um homem adulto e maduro e mesmo assim ser kouros
44
vieacutes psicoloacutegico em toda a passagem exceto se quisermos entendecirc-la como o proacuteprio Sexto
Empiacuterico faz como uma alegoria de um tipo de processo mental42 A interpretaccedilatildeo correta ou ateacute
mesmo a interpretaccedilatildeo provaacutevel desta primeira parte do proemio eacute um assunto realmente
controverso entre os estudiosos43 e por outro lado para nossos fins entrar nesta discussatildeo natildeo eacute
42Para Sexto (Adv Math 7112-114) os cavalos satildeo os desejos da alma (τὰς τῆς ψυχῆς ὁρμάς) o caminho do daimon
eacute a argumentaccedilatildeo filosoacutefica (τὸν φιλόσοφον λόγον θεωρίαν) e assim por diante
43Zeller desconsidera o proemio enquanto Diels (1987) o revaloriza inclusive analisando os detalhes das descriccedilotildees
dos eixos ferrolhos e outros mecanismos presentes no proemio Bowra retoma de certa forma a interpretaccedilatildeo de
Sexto afirmando que o proemio eacute essencialmente alegoacuterico Simultaneamente uma retomada da interpretaccedilatildeo
misteacuterica que iniciara de certa forma com Diels acontece com a anaacutelise de Burkert (1969) e prossegue com
Kingsley (1999) e Kingsley (2003) ateacute chegar nas interpretaccedilotildees sensoacuterias de Gemelli-Marciano (2008) Esta uacuteltima
afirma antes de tudo seguindo Kingsley (2003) que o poema de Parmecircnides eacute esoteacuterico e depois que os meios
necessaacuterios a transmitir essa sensaccedilatildeo de entrar num outro mundo satildeo utilizados no poema que era declamado e
natildeo lido atraveacutes das imagens propostas e dos sons dos versos os quais proporcionariam ldquoAlienation and binding
are the most powerful means to remove listeners from the ordinary everyday dimension and way of thinking and
put them into a different state of consciousness Images repetitions sequences of words and sounds supposedly
logical arguments all contribute to this end and have a particular meaning and function that surpass conventional
human language and ordinary syntactical and semantic relationshipsrdquo (2008 p 26-7) Todavia a maioria dos
estudiosos tende para uma interpretaccedilatildeo literaacuteria principalmente como artifiacutecio retoacuterico introdutivo
No seu comentaacuterio ao estudo de Gemelli-Marciano (2013) apresentado a Eleatica em 2007 Cornelli afirma que
haacute um Parmecircnides que natildeo queriacuteamos ver (p 145-148) Eu concordo com algumas ressalvas Dada uma
normalidade de consciecircncia haacute muitas coisas que podem alteraacute-la Em primeiro lugar haacute as alteraccedilotildees atraveacutes de
certas substacircncias psicoacutegenas e possivelmente Parmecircnides se de fato praticava a katabasis quase certamente
usava as papaveris lacrimae (a resina que escorre do receptaacuteculo da flor de papoula quando sofre uma incisatildeo) que
era de largo uso religioso (natildeo necessariamente iniciaacutetico) e meacutedico em toda a aacuterea mediterracircnea (Nencini 2004
2009) uma praacutetica similar se manteacutem ainda no rito catoacutelico pelo uso religioso (natildeo necessariamente iniciaacutetico) do
vinho substacircncia que tambeacutem altera a consciecircncia Depois haacute as alteraccedilotildees de consciecircncia por paroxismo
emocional (stress e similares) como se em certos ritos principalmente aqueles acompanhados pelos sons
obsessivos de instrumentos de percussatildeo Depois haacute as alteraccedilotildees de consciecircncia pela arte poesia muacutesica e outras
onde a experiecircncia artiacutestica leva para ldquooutro mundordquo Mas o mesmo se sente diante que uma elegante demonstraccedilatildeo
matemaacutetica o da loacutegica extraordinaacuteria (assim nos parece) de um feito cientiacutefico qualquer Em suma natildeo haacute grande
novidade em dizer que sons e imagens do poema levam a um estado de consciecircncia alterado O problema estaacute na
explicaccedilatildeo que se quer dar agravequele estado alterado Em geral na ocorrecircncia de um estado alterado provocado
voluntariamente haacute um mestre que pretende saber o que aquele estado alterado significa Infelizmente a histoacuteria
mostra que esse tal mestre possuidor de uma pretensa sabedoria que vem de outro mundo nada mais eacute que um
charlatatildeo da supersticcedilatildeo e da crendice Ora supersticcedilatildeo e crendice tambeacutem se alimentam destes estados alterados
de consciecircncia (como jaacute dizia Heraacuteclito DK 22 B 5 14) A proposta de Parmecircnides eacute exatamente poder distinguir
os discursos verdadeiros daqueles que natildeo tecircm fundamento e que satildeo fruto de supersticcedilatildeo e crendice (ele diz
haacutebitos culturais) Apesar da grande empolgaccedilatildeo de Kingsley em defender a formaccedilatildeo iniciaacutetica de Parmecircnides o
fato histoacuterico eacute muito simples a religiatildeo misteacuterica era o padratildeo na antiguidade e natildeo a exceccedilatildeo Entatildeo ao histoacuterico
da filosofia natildeo interessa o Parmecircnides xamacircnico ou que faz katabasis isto era comum e estaacute registrado na cultura
anterior a Parmecircnides O que interessa ao historiador da filosofia eacute esta novidade chamada filosofia que em
Parmecircnides se manifesta de forma embrional E pouco importa se a matriz eacute religiosa ou iniciaacutetica o fato eacute que a
45
proveitoso porque neste trecho natildeo se encontra nenhuma palavra expliacutecita ou situaccedilatildeo ou imagem
que fale da mente Assim podemos pular esta parte e ir diretamente agrave fala da deusa com a qual
Parmecircnides muda completamente o tom da linguagem a partir do ponto do poema onde ela inicia
sua fala a linguagem perde o seu imaginaacuterio miacutetico e a indeterminaccedilatildeo poeacutetica para se tornar uma
linguagem teacutecnica e precisa apesar das grandes dificuldades com as quais Parmecircnides se depara
para expressar novas noccedilotildees como em breve veremos
3212 O programa DK B 128-30
Entatildeo a deusa recebe o kouros e depois de algumas palavras de conforto ela diz
hellipχρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι
ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ
ἠδὲ βροτῶν δόξας ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθής
Ela diz que ele precisa aprender (πυθέσθαι)44 tudo de um lado o ἦτορ firme da verdade
filosofia representa uma mutaccedilatildeo geneacutetica para usar metaforicamente uma linguagem moderna que define una
autonomia em relaccedilatildeo agrave matriz Ora tal mutaccedilatildeo geneacutetica se revelou interessante e eacute por isto que cresceu
autonomamente e sobreviveu ateacute hoje eacute a esta criatura geneticamente modificada que se interessa o historiador
da filosofia e para a histoacuteria da filosofia sons e imagens satildeo interessantes na medida em que ampliam ou
aprofundam a compreensatildeo da filosofia e natildeo quando evocam esoterismos misteacutericos pois estes interessam agrave
antropologia e ciecircncias afins (ateacute mesmo agrave linguiacutestica na sua parte antropoloacutegica como a etno-linguiacutestica veja-se
por exemplo as referecircncias a Parmecircnides em Costa 2008) Entatildeo eu concordo que haacute um Parmecircnides que natildeo
queriacuteamos ver mas com a ressalva de que este querer eacute eventualmente consciente pois este outro lado (que natildeo
queriacuteamos conhecer) natildeo eacute necessariamente interessante Por exemplo o livro In the dark places of wisdom do jaacute
citado Kingsley (1999) faz uma hipoacutetese a respeito da biografia de Parmecircnides aquela de ele ser um iniciado
hipoacutetese vaacutelida mas natildeo nova como Cornelli sabe perfeitamente por ser um estudioso do pitagorismo (veja-se o
seu excelente In search of Pythagoreanism de 2013 e a criacutetica a Kingsley nas paacuteginas 46-49) Mas esta hipoacutetese
ao qual o inteiro livro eacute dedicado natildeo acrescenta um iota agrave compreensatildeo de sua filosofia pois esta natildeo estaacute nos
lugares obscuros da sabedoria mas na luz meridiana de sua ontologia sua loacutegica e na sua problemaacutetica cosmologia
suscitando ateacute hoje debates estes sim extraordinaacuterios entre os filoacutesofos e cientistas contemporacircneos no mundo
inteiro 44Muitas satildeo as traduccedilotildees dos estudiosos Albertelli (1939 p 119) che tu impari Pasquinelli (1958 p 227) imparare
Guthrie (1965 p 9) to learn Capizzi (1975 p 8) esplorare Barnes (1982 p 122) ascertain OBrien (1987 p 7)
hear Marques (1990 p 114) Santoro (2011 p 85) que te instruas Reale (1991 p 89) che tu apprenda Conche
(2004 p 43) que tu sois instruit Robbiano (2006 p 213) to find out Coxon (2009 p52) be informed
46
εὐκυκλέος e de outro lado as opiniotildees dos mortais nas quais natildeo haacute feacute verdadeira Deixei duas
palavras em grego porque precisamos olhar para elas mais de perto Mas antes de tudo precisamos
esclarecer o sentido geral da passagem Parmecircnides expotildee aqui o programa do assunto que ele
desenvolveraacute nos proacuteximos versos algo que podemos considerar como um iacutendice um dos vaacuterios
elementos meta-discursivos do poema45 Ele diz que seu poema trataraacute de duas coisas uma
relacionada com a verdade (vamos aceitar assim por enquanto) e outra com as opiniotildees dos
mortais Ademais o kouros precisa aprender como todas as coisas deveriam ser quando seguem as
aparecircncias (DK 131-2)46 O programa anunciado seraacute cumprido em duas partes chamadas parte
da verdade fragmentos DK 2 a 8 e a da opiniatildeo fragmentos DK 9 a 19
Agora podemos voltar para o verso 129 ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ Todos os
estudiosos entendem este verso metaforicamente e o traduzem segundo o sentido mais comum de
cada palavra deixando que a imaginaccedilatildeo do leitor se ponha em accedilatildeo o coraccedilatildeo imoacutevel da verdade
bem redonda Todas as traduccedilotildees vatildeo nesta direccedilatildeo embora com diferenccedilas de estilo e de opccedilatildeo
das variantes trazidas pelos doxoacutegrafos47 e natildeo se afastam do sentido metafoacuterico Apesar da
imagem muito forte de um ldquocoraccedilatildeo da verdade bem redondardquo que capturou a sensibilidade de
muitos estudiosos haacute muitas razotildees para tomar estas palavras natildeo como metaacutefora mas como uma
45Veja-se a respeito o excelente artigo de Livio Rossetti La structure du poegraveme de Parmeacutenide (2010) 46Estes versos controversos desde sua traduccedilatildeo ateacute a interpretaccedilatildeo natildeo satildeo assunto desta investigaccedilatildeo 47O termo εὐκυκλέος transmitido por Simplicius eacute escolhido por Diels mas muitos autores preferem uma das duas
outras variantes que temos εὐπειθέος de Sexto Empiacuterico e εὐφεγγέος trazido por Proclo O termo ἀτρεμὲς tem
uma variante ἀτρεκὲς em Plutarco Recentemente Kurfess leva adiante uma interessante questatildeo interpretativa
haacute na poesia arcaica uma tendecircncia agrave repeticcedilatildeo que no caso de Parmecircnides foi subestimada de forma que os trecircs
adjetivos natildeo satildeo alternativos (variantes) de um mesmo verso mas devem pertencer a trecircs versos diferentes
implicando a introduccedilatildeo de mais dois fragmentos ldquoWhat are commonly regarded as conflicting variant readings
of the opening of the poem are actually so I claim quotations from different passages of the poem and all three
adjectives εὐκυκλέος εὐπειθέος and even εὐφεγγέος preserve Parmenidesrsquo original wordingrdquo (Kurfess 2014a)
47
linguagem teacutecnica precisa Estudei esses versos em detalhes em trabalho precedente 48 e aqui
somente reporto algumas conclusotildees A primeira razatildeo a levar em conta eacute como jaacute dissemos a
mudanccedila do tom poeacutetico sugestivo e miacutetico na primeira parte do proemio agrave linguagem precisa da
deusa no resto do poema49 de forma que o coraccedilatildeo imoacutevel da verdade bem redonda eacute uma
linguagem teacutecnica e natildeo uma metaacutefora pois faz parte da fala da deusa e natildeo da descriccedilatildeo previa da
viagem do kouros Naturalmente neste caso surge o problema de entender estas palavras em
sentido teacutecnico pois de fato o que poderia significar um verso tatildeo colorido
Vamos comeccedilar rejeitando as razotildees da interpretaccedilatildeo padratildeo Um coraccedilatildeo imoacutevel natildeo eacute uma
boa metaacutefora porque o coraccedilatildeo de fato natildeo pode parar nunca pois um coraccedilatildeo imoacutevel eacute um coraccedilatildeo
morto A palavra para coraccedilatildeo eacute ἦτορ que tem uma longa histoacuteria desde Homero ateacute os poetas
liacutericos nunca foi usado como metaacutefora 50 A palavra para verdade ἀλήθεια (na forma genitiva
ἀληθείης) natildeo pode ser entendida como uma noccedilatildeo abstrata e ideal porque essa acepccedilatildeo comeccedilaraacute
somente com Platatildeo e se completaraacute provavelmente somente com Agostinho51 no tempo de
Parmecircnides ela deve ser entendida no sentido arcaico concreto de coisa verdadeira52 A bela
48Galgano 2012 49 Rossetti (2010 p 202) ldquoEn annonccedilant les deux types de savoir la deacuteesse entre dans le rocircle du sophos et du
didaskalos cependant que le poegravete Parmeacutenide abandonne celui du chanteur qui cherche agrave enchanter et
suggestionner son auditoire pour celui de lrsquointellectuel qui a appris et sait des choses retentissantes et qui est capable
drsquoen rendre compterdquo 50Sullivan 1996 Numa passagem desse artigo (p 17) a autora sugere ndash citando Il X 93 onde Agamemnon muito
preocupado diz ldquomeu ἦτορ natildeo estaacute firme (ἔμπεδον)rdquo ndash que o natildeo firme poderia fazer referecircncia agrave batida do
coraccedilatildeo talvez irregular caracterizando um sentido mais fiacutesico Eu penso que eacute muito mais simples aceitar o sentido
psicoloacutegico por vaacuterios motivos 1) uma noccedilatildeo de variaccedilatildeo da regularidade da batida do coraccedilatildeo em associaccedilatildeo com
as preocupaccedilotildees de Agamemnon me parece um conceito sofisticado demais para essas eacutepoca 2) o natildeo firme faz
referecircncia claramente a uma indecisatildeo de Agamemnon que vai procurar a ajuda de Nestor o mais saacutebio dos
Aqueus 3) Homero usa ἔμπεδον em outras ocasiotildees como adjetivo para φρένες e νόος (Il 6532 e 11813)
expressotildees com clara referecircncia psicoloacutegica 51No De libero arbiacutetrio Agostinho equipara a Verdade a Deus 52Bernabeacute associa o termo ἀλήθεια em Parmecircnides agraves foacutermulas iniciaacuteticas de matriz oacuterficas utilizadas no sul da Itaacutelia
48
expressatildeo bem redonda εὐκυκλέος tem o sentido homeacuterico de proteccedilatildeo bem feita como no
escudo de Agamemnon (Il XI 33)53 Ateacute mesmo ἀτρεμὲς adjetivo para imoacutevel que natildeo treme
poderia ser entendido como calma numa referecircncia ao mar que natildeo treme54 mas o sentido de natildeo
tremer ἀ (privativo) + τρεμὲς treacutepido eacute uma sugestatildeo muito clara de natildeo oscilaccedilatildeo de um lado a
outro e veremos a importacircncia disso55 Todos estes elementos remetem a uma rejeiccedilatildeo do sentido
metafoacuterico e nos obriga a procurar novas maneiras de entendimento
A deusa fala de duas coisas correlacionadas marcadas pelos correlativos ἠμὲν e ἠδὲ sendo
que o segundo verso tem sentido mais claro e natildeo eacute metafoacuterico as opiniotildees dos mortais nos quais
natildeo haacute feacute verdadeira Assim podemos ver que a deusa estaacute falando do conhecimento do mundo
(πάντα) de um lado as opiniotildees nas quais natildeo haacute uma verdade confiaacutevel e de outro lado afirmaccedilotildees
que satildeo confiaacuteveis O que estaacute em jogo eacute o fato de que alguns conhecimentos satildeo confiaacuteveis e
outros natildeo Ao conhecimento natildeo confiaacutevel a deusa chama de opiniotildees dos mortais enquanto que
ao confiaacutevel ela chama de verdade bem redonda Mas verdade bem redonda estaacute em caso genitivo
aqui um genitivo de origem e indica a instacircncia de onde o sujeito se origina isto eacute de uma verdade
bem redonda Agora se voltarmos para o sentido comum e natildeo metafoacuterico de ἦτορ o sentido de
naquela eacutepoca Para essas foacutermulas ἀλήθεια significa algo que natildeo deve ser esquecido (conforme a noccedilatildeo
etimoloacutegica da palavra) que deve ser mantido em mente ldquoNo universo das lacircminas a verdade natildeo eacute outra coisa
senatildeo aquilo que natildeo se deve esquecer o que foi aprendido na iniciaccedilatildeordquo (Bernabeacute 2013 p 51) Ou seja ἀλήθεια
apresenta a noccedilatildeo de um processo mental do sujeito e natildeo de um algo objetivado fora da mente do sujeito 53O termo κύκλος tem sentido substantivo de aro de proteccedilatildeo que manteacutem firmemente juntas todas as peccedilas do
escudo de Agamecircmnon (ἣν πέρι μὲν κύκλοι δέκα χάλκεοι ἦσαν cercado por dez aros de bronze) 54 LSJ verbete ἀτρεμὴς Semonides 737 ldquoθάλασσα ἀτρεμὴςrdquo 55Se eacute verdade que τρέμω e seus cognatos podem ser referidos ao tremor de medo eacute verdade tambeacutem que podem ser
referidos ao mero movimento fiacutesico sem implicaccedilatildeo emocional como em terremoto (Il 1318) ou no tremor dos
soluccedilos (Il 21507) jaacute ausecircncia de movimento portanto o natildeo tremor natildeo se refere soacute agrave calma (da coragem) mas
tambeacutem agrave imobilidade como os cumes de um monte (Il 5524) ou a uma estela ou uma grande aacutervore (Il 13438)
ou ateacute mesmo ao natildeo repouso de uma lanccedila em constante atividade (Il 13557)
49
sede da faculdade de raciociacutenio tudo se acomoda no lugar certo e se encaixa da melhor maneira
De fato como sede da faculdade de raciociacutenio56 isto eacute como mente na linguagem atual natildeo
temos nenhuma contradiccedilatildeo com ἀτρεμὲς natildeo tremente uma mente que treme (oscila) estaacute em
duacutevida enquanto uma mente imoacutevel (firme que natildeo oscila) eacute uma mente firmemente convencida
que ultrapassou a duacutevida alternante entre afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo do mesmo enunciado Qual eacute a causa
(origem gecircnese) de um tal estado mental de firmeza Eacute a verdade bem redonda onde bem redondo
se refere agrave soacutelida proteccedilatildeo que manteacutem juntas as peccedilas (como no escudo de Agamemnon57) algo
que liga todos os elementos para fazer uma peccedila uacutenica soacutelida e protegida
Agora a traduccedilatildeo estaacute completa a mente firme que vem de uma verdade bem amarrada (bem
conexa) Se fazemos uma paraacutefrase dos versos noacutes podemos dizer
Tu aprenderaacutes tudo
tanto a mente firme gerada de uma verdade bem conexa (convincente)
quanto as opiniotildees dos mortais nas quais natildeo haacute verdade convincente
Podemos ver aqui natildeo somente um vocabulaacuterio psicoloacutegico mas tambeacutem uma genuiacutena observaccedilatildeo
psicoloacutegica De fato a convicccedilatildeo eacute descrita como fenocircmeno psicoloacutegico da mente que natildeo treme
56Mesmo em Homero onde ἦτορ eacute raramente envolvido com o pensamento haacute uma passagem crucial logo na abertura
da Iliacuteada (1188) onde Aquiles enfurecido o coraccedilatildeo a flutuar indeciso em seu peito veloso (ἐν δέ οἱ ἦτορ
στήθεσσιν λασίοισι διάνδιχα μερμήριξεν ndash trad Nunes) estaacute indeciso entre agir (matar Agameacutemnon ou natildeo) eacute
notaacutevel como na expressatildeo homeacuterica ἦτορ preside uma duacutevida enquanto na expressatildeo parmenidiana ἦτορ consegue
sair da duacutevida e permanecer firme mais uma indicaccedilatildeo do valor natildeo metafoacuterico deste verso de Parmecircnides 57εὐκυκλέος foi escolhido por Diels por ser lectio difficilior Bem persuasivo a versatildeo dada por Sexto Empiacuterico expotildee
mais claramente o conteuacutedo psicoloacutegico da expressatildeo ἀτρεμὲς ἦτορ o que reforccedila a interpretaccedilatildeo aqui apresentada
Aqui dentro do contexto da interpretaccedilatildeo filosoacutefica ambos εὐκυκλέος e εὐπειθέος apresentam um sentido
convergente e a nossa tarefa pode se considerar cumprida Jaacute em contexto filoloacutegico os estudos continuam e se
aprofundam Passa por exemplo acredita que εὐκυκλέος seja um ajuste secundaacuterio que tende a transferir no verso
programaacutetico do proemio conteuacutedos fundamentais da tradiccedilatildeo neoplatocircnica (Passa 2009 p 52) jaacute Kurfess eacute ainda
mais ousado e defende a possibilidade de que as trecircs variantes εὐκυκλέος εὐπειθέος εὐφεγγέος pertenccedilam a trecircs
diferentes versos do poema (Kurfess 2012 p 18-54)
50
que natildeo oscila de um lado a outro mas permanece firme ligada por conexotildees e protegida da duacutevida
No outro lado a deusa coloca as opiniotildees dos mortais nas quais a convicccedilatildeo (πίστις) natildeo eacute
verdadeira porque as opiniotildees (a respeito de um mesmo fato) mudam enquanto a verdade bem
ligada daacute origem agrave mente firme isto eacute agrave mente que natildeo muda de ideia Parmecircnides nota que em
ambos os casos opiniotildees ou mente firme o homem se convence (ou persuade como diraacute alguns
versos agrave frente) mas o convencimento natildeo verdadeiro gera opiniotildees enquanto o conhecimento
verdadeiro gera a mente firme Ele faz uma distinccedilatildeo sutil mas importante e que eacute o ponto de partida
de uma discussatildeo a respeito do raciociacutenio ele diz que todo homem pode estar convencido de suas
crenccedilas mas isto natildeo significa que estas sejam verdadeiras Algueacutem pode estar persuadido de um
certo conhecimento mas a sua persuasatildeo natildeo torna verdadeiro aquele conhecimento Parmecircnides
diraacute depois que eacute necessaacuterio algo a mais para alcanccedilar a certeza eacute necessaacuterio um meacutetodo para ligar
com conexotildees estreitas os elementos daquele conhecimento que soacute assim se torna verdadeiro O
meacutetodo seraacute exposto nos versos seguintes
A problemaacutetica psicoloacutegica que Parmecircnides abriu eacute uma enorme descoberta que desde entatildeo
nunca mais iraacute abandonar o homem porque se nossas convicccedilotildees natildeo satildeo o bastante para certificar
a verdade isto significa ao menos duas coisas 1) natildeo temos certeza da verdade que temos logo a
posse da verdade fica em suspenso o que equivale pragmaticamente em natildeo ter a verdade 2)
temos que procurar uma maneira de certificar a verdade e isto significa que precisamos encontrar
a verdade isto eacute uma certificaccedilatildeo verdadeira que decirc verdade ao que ela certifica Com a introduccedilatildeo
desta problemaacutetica ele comeccedila aquele processo histoacuterico onde o homem sabe que ele natildeo eacute saacutebio
porque natildeo conhece a verdade em outras palavras ele inicia a questatildeo do homem em busca da
verdade o homem em busca da sabedoria Enquanto seus mestres buscavam apenas novos
conhecimentos em algum campo da vida humana Parmecircnides percebeu que haacute um problema
51
anterior comum a todos os saberes algo relacionado com as funccedilotildees da mente humana pelo qual
nenhum conhecimento poderia ser considerado verdadeiro ateacute que fosse corretamente certificado
Os sentidos natildeo satildeo suficientes os relatos natildeo satildeo suficientes as tradiccedilotildees natildeo satildeo suficientes
todas estas formas de conhecimento satildeo criticadas exatamente com esta distinccedilatildeo estar convencido
de algo natildeo torna este algo verdadeiro Ao mesmo tempo ele inicia a busca pela sabedoria partindo
da consciecircncia de que noacutes natildeo podemos ter a verdade imediatamente e a busca pela verdade do
conhecimento ambas as buscas implicam na nossa linguagem atual o iniacutecio da gnosiologia o
estudo das possibilidades de conhecimento58 e do estudo do conhecimento verdadeiro59 Nos
proacuteximos versos veremos como essa enorme descoberta eacute articulada ao longo de seu poema
sempre partindo de observaccedilotildees psicoloacutegicas
322 O fragmento 2
O fragmento DK 2 eacute uma obra prima em muitos sentidos e eacute uma das partes mais estudadas
do poema Aqui diremos apenas algo em referecircncia ao nosso enfoque psicoloacutegico geral
evidenciando um vocabulaacuterio psicoloacutegico principalmente nos primeiros dois versos mas o inteiro
fragmento estaacute construiacutedo a partir de uma observaccedilatildeo psicoloacutegica fundamental que acaba
comportando implicaccedilotildees filosoacuteficas profundas Por este motivo o fragmento 2 seraacute estudado
detidamente na primeira parte do segundo capiacutetulo Aqui analisaremos principalmente o verso 2
58 Agraves vezes referida agrave gnosiologia ou teoria do conhecimento embora tecnicamente essas expressotildees tenham uma
conotaccedilatildeo bem restrita (veja-se Abbagnano 1971 verbete conhecimento teoria do) 59Agraves vezes referido como epistemologia ou teoria do conhecimento embora tecnicamente essas expressotildees tambeacutem
tenham conotaccedilatildeo bem restrita (veja-se Abbagnano 1971 verbete conhecimento teoria do)
52
com uma atenccedilatildeo especial ao νοεῖν parmenidiano que constituiraacute a chave para a compreensatildeo da
reflexatildeo psicoloacutegica de Parmecircnides e permitiraacute evidenciar como uma grande problemaacutetica jaacute era
clara a ele Vamos relembrar os versos na ediccedilatildeo DK 28 B 2
εἰ δ ἄγ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
A deusa diz ldquoagora presta atenccedilatildeo agraves minhas palavras eu te direi quais satildeo os caminhos de
inqueacuterito a pensar um que eacute e que eacute impossiacutevel que natildeo seja eacute caminho de Persuasatildeo (pois
acompanha a Verdade) outro que natildeo eacute e que eacute necessaacuterio que natildeo seja este digo que eacute caminho
totalmente inescrutaacutevel porque vocecirc natildeo pode conhecer o natildeo ser (pois natildeo pode ser levado a cabo)
nem vocecirc poderia expressaacute-lordquo Dado o grande nuacutemero de interpretaccedilotildees diferentes esse sentido
geral pode ser contestado quase a cada palavra por muitos estudiosos Poreacutem vamos evitar o
sentido filosoacutefico (que seraacute estudado detidamente mais adiante) e nos restringir agrave parte psicoloacutegica
3221 O uacutenicos caminhos de inqueacuterito DK B 22
No verso 2 ndash αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ndash a deusa fala de 1) νοῆσαι um verbo do
qual discutiremos em breve 2) ὁδοὶ caminhos para a accedilatildeo de νοῆσαι 3) ὁδοὶ διζήσιός εἰσι νοῆσαι
caminhos parta a accedilatildeo de νοῆσαι de um modo especiacutefico aquele que inquere 4) o fato de que os
caminhos a serem expostos satildeo os uacutenicos (μοῦναι) caminhos possiacuteveis para o modo que inquere
Cada palavra desse verso se refere a alguma distinccedilatildeo psicoloacutegica Vamos examinar
53
1) νοῆσαι Haacute uma controveacutersia aqui a respeito do sentido preciso de νοεῖν (de onde νοῆσαι) em
Parmecircnides Eacute uma grande discussatildeo porque de um lado Parmecircnides usa a estrutura poeacutetica eacutepica
isto eacute usa a linguagem e a forma mais tradicionais para expressar seu pensamento mas de outro
lado ele usa novos sentidos para palavras antigas e usa palavras antigas para descrever novas
descobertas reflexotildees e propostas assim a tensatildeo entre o antigo e o novo daacute espaccedilo a muitas
ambiguidades que satildeo um verdadeiro quebra-cabeccedila para os estudiosos60 Poreacutem enquanto estes
60Taraacuten (1965) traduz ldquowhich are the only ways of inquiry that you can be conceivedrdquo (p 32)
Ramnoux (1979) traduz ldquoquelle sont les seules voies de recherche agrave concevoirrdquo (p 110)
Untersteiner (1979) traduz ldquoquali sole vie di ricerca siano logicamente pensabilirdquo (p129)
Barnes (1982) traduz ldquowhat are the only roads of inquiry for thinking ofrdquo (p 124) e comenta ldquoThe phrase
lsquoarehellipfor thinking of (line 2) renders lsquoesti noecircsairsquo The verb lsquonoeinrsquo of which lsquonoecircsairsquo is the aorist infinitive plays
a central role in Parmenidesrsquo subsequent argument where it is standardly translated as lsquothink of or lsquoconceiversquo Some
scholars however prefer the very different translation lsquoknowrsquo and thereby change the whole character of
Parmenidean thought I think that the standard translation makes better sense of Parmenidesrsquo argument and I doubt
if the heterodox translation is linguistically correct It is true that in certain celebrated Platonic and Aristotelian
passages the noun lsquonousrsquo is used to denote the highest of cognitive faculties and there are passages in those
philosophers and in earlier writers where lsquointuitrsquo lsquograsprsquo or even lsquoknowrsquo is a plausible translation of lsquonoeinrsquo But
against those occurrences (which are fairly uncommon and usually highflown) we can set a host of passages where
lsquonoeinrsquo simply means lsquothink (of)rsquo lsquonoeinrsquo is the ordinary Greek verb for rsquothink (of)rsquo and lsquothink (of)rsquo is usually its
proper English equivalent Moreover the linguistic context in which the verb occurs in Parmenides favours (indeed
to my mind requires) the translation lsquothink (of)rsquo For lsquonoeinrsquo is thrice conjoined with a verb of saying with lsquolegeinrsquo
at B 61 and with lsquophasthairsquo twice in B 88 (cf lsquoanocircnumonrsquoat B 817) lsquoLegeinrsquo and lsquophasthairsquo mean lsquosayrsquo not lsquosay
trulyrsquo or lsquosay successfullyrsquo (the Greek for which is lsquoalecirctheueinrsquo) and the contexts of their occurrence imply that
lsquosayrsquo and lsquonoeinrsquo share at least one important logical feature they both stand in the same relation to lsquobeingrsquo In this
respect it is lsquothink that Prsquo and lsquothink of Xrsquo rather than lsquoknow that Prsquo and lsquoknow Xrsquo which parallel lsquosay that Prsquo and
lsquomention Xrsquo and that fact I think establishes the traditional translation of lsquonoeinrsquo
So much for the meaning of lsquonoecircsairsquo All however is not yet plain for the syntax of lsquoesti noecircsairsquo is disputed
Phrases of the form esti+infinitive recur later in the poem and their presence is indicated in my translation by
phrases of the rebarbative form lsquois (are) for φingrsquo The usage which is not uncommon in Greek has connexions
with the lsquopotentialrsquo use of lsquoestirsquo (Esti with infinitive often means lsquoit is possible tohelliprsquo In that case lsquoestirsquo is
lsquoimpersonalrsquo whereas in our locution it always has a subject explicit or implicit) Indeed it seems to me reasonable
to gloss lsquoa is for φingrsquo either by lsquoa can φrsquoor by lsquoa can be φedrsquomdashthe context will determine whether active or passive
is appropriate Thus in 1482 lsquoare for thinking of means lsquocan be thought of Observe that the gloss differs from its
original in one important feature The grammatical form of the phrase lsquoa is for φingrsquo may seduce us into making a
fallacious deduction from lsquoa is for φing it is easy to infer lsquoa isrsquo The grammatical form of the gloss does not
provide the same temptation The point may assume significance laterrdquo
OBrian (1987) traduz ldquojust what ways of enquiry there are the only ones that can be thought ofrdquo (p 16) e
comenta ldquoLinfinitif deacutepend agrave mon sense de ladjectif μοῦναι ou si lon veut de luniteacute syntaxique adjectif + verbe
(μοῦναι + εἰσι) [hellip] Ainsi sexpliquerait lemploi de lactive chez Parmeacutenide le voies de recherche sont ldquoles seules
ltquon aitgt agrave concevoirrdquo ldquoles soules agrave ecirctre conccediluesrdquo ou bien un peu plus librement ldquoles seules ltque lon puissegt
54
se preocupam com o sentido geral do νοεῖν no poema inteiro nossa preocupaccedilatildeo aqui eacute por
enquanto somente com esse verso A partir do artigo de von Fritz61 surgiu uma tendecircncia de tentar
explicar o termo tendo por referecircncia seu uso anterior principalmente obviamente em Homero
talvez esta tendecircncia tentava contrabalanccedilar um uso talvez desenvolto demais da hermenecircutica da
palavra por parte de alguns criacuteticos e ateacute mesmo filoacutesofos como em Heidegger62 por exemplo
Mesmo levando em conta por um lado as interpretaccedilotildees mais ousadas dos partidaacuterios do
historicismo hegeliano63 e por outro lado as sofisticadas estrateacutegias filoloacutegicas como a de von
Fritz noacutes seremos cautelosos e procederemos cautelosamente e por enquanto partiremos de um
sentido geneacuterico mas seguro da palavra νοῆσαι somente neste verso que eacute aquele que se refere a
concevoirrdquo ldquoles seules concevablesrdquordquo (p154) Na nota 10 mesma paacutegina OBrien expressa toda a dificuldade
quase o desespero de natildeo poder usar a palavra que encaixe perfeitamente pois as disponiacuteveis (conhecer saber
pensar comprender entender perceber aperceber apreender discernir contemplar considerar) apresentam todas
vantagens e desvantagens
Cerri (1999) traduz ldquoquelle che sono le sole due vie di ricerca pensabilirdquo (p 149) e comenta ldquoAqui νοεῖν eacute
usado no sentido corrente e geneacuterico de pensar natildeo naquele parmenidiano tecnicizado de entender (capire)
racionalmente neste segundo sentido natildeo poderia se dizer que o caminho do natildeo eacute que consiste num erro de
perspectiva pode ser objeto de νοεῖν isto eacute de intelecccedilatildeo como o caminho do eacute O meacuterito desta observaccedilatildeo eacute de
Gentili De fato o proacuteprio Parmecircnides diraacute mais adiante que o caminho natildeo verdadeiro eacute anoetos inconcebiacutevel
(fr 78 vv 22-23) (p 188)
Cordero (2005) traduz ldquocuales son los uacutenicos caminos de investigacion que hay para pensarrdquo (p 219) e
comenta ldquoEl verbo pensar () es evidentemente un infinitivo final o consecutivo pero haacute sido siempre tomado
comop si su valor fuese passivo sea directamente sea se si se interpreta ldquoeisiacuterdquo com valor potencial En
consequecircncia se lo haacute traducido em general como un participio pasivo [hellip] Nosotros preferimos dejar em la
indeterminacioacuten tanto el sujeto como el objeto del infinitivo pues no se trata de un verbo inserto em una frase sino
de un infinitivo aislado y rechazamos todo matiz ldquopasivordquo que como vimos seriacutea incompatible com uno de los
caminos (p 57-58)
Coxon (2009) traduzrdquo about those ways of enquiry which are alone conceivablerdquo (p 56) e comenta ldquolsquowhich
are for conceivingrsquo ie which may be conceived One of the two ways so described is in fact to be left lsquounconceived
[hellip] lsquowhich are for conceivingrsquo ie which may be conceived One of the two ways so described is in fact to be left
lsquounconceivedrsquordquo (p 290) 61Fritz K Von (1945) ldquoNous noein and its derivatives in Presocratic philosophy [excluding Anaxagoras] I From the
beginning to Parmenidesrdquo 62Heidegger ldquo[Parmecircnides jaacute usava] noein - the simple apprehension of something objectively present in its pure
objective presence [Vorhandenheit]rdquo (1996 p 22) 63Veja-se por exemplo Hosle 1984
55
um comportamento da mente portanto podemos dizer que o verbo νοεῖν quer expressar um ato da
mente Posto que os atos da mente satildeo de diversos tipos o problema consiste em saber a que tipo
ele quer se referir para tanto teremos que recorrer agraves descriccedilotildees apresentadas no texto
2) ὁδοὶ Temos aqui a primeira descriccedilatildeo Parmecircnides fala de um comportamento da mente quando
vai ao longo de um caminho seguindo um percurso como uma sequecircncia de momentos do ato ou
entatildeo como uma sequecircncia de atos Essa consideraccedilatildeo nos daacute a entender que ele natildeo estaacute falando
de um ato isolado como uma imagem ou uma percepccedilatildeo isolada ou um insight mas de um
processo
3) διζήσιός Com esta palavra64 temos mais uma especificaccedilatildeo do ato Ele quer falar a respeito de
algum tipo especiacutefico de caminho exatamente a respeito daquele usado para investigar inquirir
fazer perguntas e entender as respostas Parmecircnides depois de considerar que certo comportamento
mental eacute um processo diz que haacute muitos tipos de processos e ele iraacute falar apenas de um dentre eles
aquele de inqueacuterito Vai se tornando claro que o processo mental implicado por essas palavras eacute
um processo de pensamento voluntaacuterio de modo que os produtos sejam pensamentos natildeo
quaisquer pensamentos mas aqueles ao longo de um certo caminho natildeo qualquer caminho mas
aqueles pensamentos que compotildeem um caminho de investigaccedilatildeo em direccedilatildeo a algum
conhecimento
4) μοῦναι Essa palavra tem uma importacircncia muito grande e merece nossa especial atenccedilatildeo Ela
significa uacutenicas (feminino plural referido a ὁδοὶ palavra feminina) Saberemos depois que os
64Δίζησις que vem de δίζημαι procurar entre muitos (LSJ) e natildeo consta antes de Parmecircnides provavelmente eacute uma
invenccedilatildeo dele Untersteiner nota a nuance da indecisatildeo e trazendo como exemplo Heroacutedoto VII 1421 diz ldquoδίζησις
pode ser a busca diante de um problema que admite soluccedilotildees opostasrdquo (1979 p LXXXI n 119)
56
uacutenicos caminhos satildeo dois Mas o que eacute realmente importante eacute o fato como esse adjetivo indica
de que Parmecircnides examinou muitos caminhos e concluiu que soacute haacute dois para o inqueacuterito Esse
adjetivo eacute o resultado de uma observaccedilatildeo do comportamento da mente ele diz haacute muitos caminhos
para a atividade mental (aqui uma atividade de inqueacuterito) e depois de examinaacute-los todos encontrei
soacute dois adequados (para a atividade de inqueacuterito) Esta eacute uma genuiacutena observaccedilatildeo do
comportamento da mente com um projeto geral (como veremos mais adiante) com uma finalidade
especiacutefica uma pesquisa e o resultado
5) νοῆσαι de novo Agora depois das elucidaccedilotildees dos termos envolvidos podemos definir νοῆσαι
Essa forma vem de νοέω que significa a) perceber pela mente apreender tomar nota ter
conhecimento de perceber b) pensar considerar refletir c) considerar julgar presumir d) outros
sentidos especiacuteficos em construccedilotildees especiacuteficas Todas estas acepccedilotildees encontram-se no LSJ no
qual ademais encontramos tambeacutem a citaccedilatildeo do verso DK 834 de Parmecircnides no sentido de
percebido pela mente Mas percepccedilatildeo em nossa linguagem eacute um ato da mente sinoacutetico eacute um
momento isolado mesmo quando referido a muitos fatos da mente de fato percepccedilatildeo quando eacute
referida a muitos fatos da mente significa aquele resultado obtido por uma visatildeo sinoacutetica o mesmo
pode ser dito de pensamento que eacute um fato soacute mesmo quando implica uma sequecircncia de
raciociacutenio porque se refere ao resultado do raciociacutenio Alguns estudiosos traduzem νοεῖν com
pensar que eacute o mais comum no caso de Parmecircnides seguindo a traduccedilatildeo famosa de Diels
lsquodenkenrsquo65 Mas pensar tem um problema eacute muito geneacuterico e pode ser usado para qualquer
atividade mental desde percepccedilatildeo ateacute o trazer agrave memoacuteria relembrar desde buscar na memoacuteria
65Por exemplo Wilkinson (2009 p 77)
57
ateacute ter um insight e pensar solto como num brainstorm assim essa traduccedilatildeo natildeo seria errada
mas seria menos precisa daquilo que precisamos para o nosso estudo especiacutefico O sentido geneacuterico
e ambiacuteguo desta traduccedilatildeo acaba gerando conflitos e contradiccedilotildees com outras partes do poema onde
comparecem outros cognatos do verbo νοεῖν (tornaremos a isto mais adiante) Haacute um outro grupo
de traduccedilotildees com o sentido geral de conhecimento vamos examinar66 Von Fritz conclui que em
Parmecircnides embora mantendo uma natureza intuitiva (intuitive nature p 241) como em Heraacuteclito
e nos poemas homeacutericos νοεῖν ganha um novo aspecto ldquoporque foi o primeiro que incluiu
conscientemente o raciociacutenio loacutegico na funccedilatildeo do νόοςrdquo (p 242) Se noacutes podemos genericamente
concordar com von Fritz natildeo podemos fazer o mesmo com aqueles estudiosos que traduzem
νοῆσαι com for knowing como Kahn67 o qual tambeacutem confirma que ldquoA traduccedilatildeo proacutepria para o
verbo em Parmecircnides eacute um termo como cogniccedilatildeo ou conhecimentordquo68 Natildeo podemos concordar
porque conhecimento eacute uma funccedilatildeo da mente que pode ser o resultado de um raciociacutenio loacutegico
mas conhecimento pode ser tambeacutem aquele vindo de uma familiaridade empiacuterica com o conhecido
ou aquele que vem de uma intuiccedilatildeo ou de um sexto sentido (uma percepccedilatildeo natildeo claramente
identificada e classificada que muitas vezes acaba operando exatamente diante de escolhas onde
os criteacuterios racionais se esgotam por exemplo no conhecimento afetivo) mas o conhecimento
intuitivo eacute exatamente o sentido oposto agravequele usado por Parmecircnides pois a intuiccedilatildeo como fato
66Haacute ateacute quem natildeo traduz νοῆσαι como Colli o qual propotildee ldquoSuvvia io ti dirograve [hellip] quali sono le uniche vie di ricerca
la prima etcrdquo (2003 p 137) 67Kahn (2009 p 146 n 4) ldquoI take νοῆσαι as loosely epexegetical or final with ὁδοί lsquowhat ways of search there are
for knowingrsquo ie I do not construe the infnitive as potential with εἰσί which gives the usual translation lsquothe only
ways of search that can be thought ofrsquo This usual construction provides us with a gratuitous contradiction since
Parmenides goes on to show that the second way is after all ἀνόητος (8 17 cf 2 7)rdquo 68Ibidem The proper translation for the verb in Parmenides is a term like lsquocognitionrsquo or lsquoknowledgersquo it is paraphrased
by γνῶναι lsquoto recognize be acquainted withrsquo at 2 7
58
mental eacute uma sensaccedilatildeo imediata assim como o sexto sentido e natildeo segue caminhos (e muito
menos segue caminhos de inqueacuterito) aleacutem disso conhecer mesmo referido ao conhecimento
loacutegico eacute o resultado do processo isto eacute subentende um conhecedor um ato de conhecer e um
conhecido mesmo quando dizemos conhecendo no geruacutendio noacutes entendemos usar a mente tendo
o conhecimento como alvo e afinal o que a expressatildeo acentua eacute todo o processo principalmente
o resultado o conhecido Natildeo eacute disso que Parmecircnides estaacute falando Naturalmente o poema eacute
exatamente sobre como a mente pode alcanccedilar seu alvo que eacute o conhecimento verdadeiro Mas o
conhecimento verdadeiro ndash como veremos em detalhes ndash eacute um pressuposto de qualquer
conhecimento principalmente de um ponto de vista subjetivo porque qualquer que seja a coisa da
qual eu estou persuadido eu acredito que tal coisa para mim eacute verdadeira Assim o conhecimento
verdadeiro natildeo eacute suficiente para explicar a obra de Parmecircnides mesmo o xamatilde reivindica um
conhecimento verdadeiro mesmo o governante (o qual sabe isto eacute acredita saber a verdade acerca
do governo) mesmo o curandeiro ou o sacerdote O problema eacute que todos estes conhecimentos
verdadeiros natildeo satildeo mais suficientes nos tempos de Parmecircnides desde que as novas exigecircncias
culturais passam a exigir novas concepccedilotildees Que aqui Parmecircnides natildeo esteja falando do
conhecido mas do ato cognoscente eacute claro pela expressatildeo ὁδοὶ διζήσιός que se aplica agrave accedilatildeo do
conhecer e natildeo ao cognoscente ou ao conhecido entatildeo natildeo se pode usar o verbo conhecer a menos
de incorrer numa completa falsificaccedilatildeo do sentido do resto do poema69
Haacute ainda mais uma razatildeo para evitar conhecimentoconhecer para traduzir νοεῖν e seus
69Eacute o que acontece com Kahn o qual afinal forma um quadro distorcido da mensagem filosoacutefica do poema (ver mais
adiante n 153 p 114)
59
cognatos e eacute a razatildeo dada (involuntariamente) por von Fritz De fato se Parmecircnides eacute o primeiro a
usar o termo com a inclusatildeo de conotaccedilotildees relativas ao raciociacutenio loacutegico eacute exatamente esta nova
nuance de sentido que ele quer apresentar isto eacute a nuance de como conhecer algo com o uso do
raciociacutenio loacutegico neste caso o verbo νοεῖν e seus cognatos natildeo podem ser usados no novo
sentido com a nova contribuiccedilatildeo parmenidiana assentada e absorvida na semacircntica daquela
palavra porque seria historicamente incorreto exceto se Parmecircnides tivesse apresentado
explicitamente uma mudanccedila de sentido para aquela palavra A semacircntica de uma palavra natildeo pode
apresentar um novo sentido antes da proposta de uma nova variaccedilatildeo no sentido assim conhecer
pelo raciociacutenio pode ser uma consequecircncia da filosofia parmenidiana e natildeo uma premissa para um
novo uso da palavra feito pelo proacuteprio Parmecircnides pois isto redundaria em incompreensatildeo pela
audiecircncia Em outras palavras Parmecircnides natildeo utiliza a palavra num novo sentido mas apenas a
toma no sentido comum embora numa parte especiacutefica do sentido comum (a parte da accedilatildeo) isto eacute
numa de suas acepccedilotildees comuns e procura apresentar uma nova operaccedilatildeo um novo meacutetodo que
esta parte operativa pode seguir
Depois de todas estas distinccedilotildees e para evitar qualquer ambiguidade que poderia surgir destas
traduccedilotildees mais tradicionais70 eu prefiro usar aqui uma terminologia muito teacutecnica pela qual noacutes
70Haacute ainda um outro conjunto de interpretaccedilotildees que buscam relacionar noein e to eon procurando extrair as semacircnticas
de um a partir de outro e vice-versa Esta linha interpretativa natildeo eacute abordada aqui por dois motivos o primeiro eacute
que nos obrigaria a uma investigaccedilatildeo do eon parmenidiano investigaccedilatildeo metodologicamente excluiacuteda aqui o
segundo eacute que este tipo de approach resultou em muita equivocidade na medida em que se procura tratar o poema
como um todo orgacircnico coisa que o seu estado fragmentaacuterio natildeo permite Veja-se um exemplo entre os recentes
em Sedley com as muitas ambiguidades por exemplo entre pensar e pensamento (thinking and thought) que ele
usa como sinocircnimos (2000 p 120) Quando essa linha interpretativa se propotildee alvos menores consegue bons
resultados por exemplo Crystal (2002) cujo objetivo eacute mostrar que o noein que se identifica com o to eon aparece
soacute no fragmento 8 e natildeo antes ou Lesher (1994 especialmente p 24-34) o qual mostra um aspecto do noein de
Parmecircnides quando inserido dentro de um quadro maior de inqueacuterito (realizado por elenchos por tentativas e por
60
perdemos algo da poesia (e da beleza) mas ganhamos algo mais em clareza especialmente tendo
em vista nosso objetivo que eacute uma busca dos aspectos psicoloacutegicos do poema Assim usarei
exatamente o termo que segue a descriccedilatildeo de Parmecircnides um caminho de inqueacuterito colocando o
acento 1) na operaccedilatildeo 2) no caminho e 3) no inqueacuterito (na inquisitividade) e natildeo no conhecimento
(o qual eacute o resultado de todos esses elementos) nem sob o grande guarda-chuva de pensar no
qual quase qualquer accedilatildeo da mente pode ser incluiacuteda podemos simplesmente traduzir com
operaccedilotildees cognitivas da mente isto eacute aquela atividade da mente que tende ao conhecimento mas
natildeo eacute ela mesma o conhecer enquanto ato completo de cognoscente-conhecer-conhecido Este
termo poraacute no foco exatamente o nosso assunto as operaccedilotildees da mente e ao mesmo tempo
reduziraacute todas as discussotildees de ordem filosoacutefica e epistemoloacutegica que estatildeo aqui fora de tema
Podemos agora inserir a traduccedilatildeo de νοεῖν na nossa paraacutefrase anterior ldquoAgora preste atenccedilatildeo
agraves minhas palavras eu te direi quais satildeo os caminhos de inqueacuterito para as operaccedilotildees cognitivas da
mente (νοῆσαι) um que eacute e que eacute impossiacutevel que natildeo seja eacute caminho de Persuasatildeo (e acompanha
a Verdade) o outro que natildeo eacute e que eacute necessaacuterio que natildeo seja e este eu te digo eacute caminho
inescrutaacutevel totalmente porque vocecirc natildeo pode conhecer o que natildeo eacute (pois natildeo pode ser cumprido)
nem dizecirc-lordquo
3222 DK B 24-8
Nos restantes versos do fragmento Parmecircnides expotildee os dois caminhos de inqueacuterito com
uma argumentaccedilatildeo sofisticada que mostra natildeo soacute o Parmecircnides psicoacutelogo mas mostra ao mesmo
testes) que ele chama peirastic paradigm of knowledge
61
tempo o Parmecircnides autenticamente filoacutesofo escrevendo uma das mais profundas paacuteginas de toda
a histoacuteria da filosofia ocidental Estes versos seratildeo estudados detidamente no proacuteximo capiacutetulo
323 O fragmento 3
Infelizmente o fragmento 3 eacute muito curto isolado e afinal de fato natildeo compreensiacutevel
Vamos olhaacute-lo
τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναι
pois o mesmo eacute pensar e portanto ser71
O verso eacute uma citaccedilatildeo tirada de Clemente72 Plotino73 e numa versatildeo um pouco diferente de
Proclo74 Seu lugar no poema parece ser depois do fragmento 2 pois apresenta a mesma temaacutetica75
e parece ser a continuaccedilatildeo do mesmo argumento jaacute a traduccedilatildeo apresenta muitas dificuldades e
muitas diferentes soluccedilotildees entre os estudiosos
A citaccedilatildeo reportada por Clemente eacute lanccedilada de forma desordenada entre outras citaccedilotildees A
desordem do inteiro texto dos Stromateis parece ser voluntaria e atenderia a um meacutetodo especiacutefico
de escrita (associada inclusive agraves ideias expostas no Fedro de Platatildeo a respeito da relaccedilatildeo entre
ensinamento escrito e oral) que procura ocultar parte dos ensinamentos e tambeacutem procura escrever
71Trad Cavalcante de Souza 72Clemente Stromata VI II 233 73Plotino Enneades V 1 [10] 817 V 9 [5] 529-30 74Proclo in Parmenidem 115233 Theologia platonica I 14 75A colocaccedilatildeo de Diels na sequecircncia do fragmento 2 eacute seguida por muitos (Untersteiner Coxon e outros) Calogero
(1977 22-23) chega a integrar com um ὅσσα νοεῖς φάσθαι mas infelizmente natildeo se encontra fundamento nessa
integraccedilatildeo a natildeo ser a interpretaccedilatildeo do proacuteprio Calogero sobre a gecircnese da loacutegica parmenidiana
62
segundo um meacutetodo natildeo linear76 poreacutem coordenado com o ensinamento oral Voluntaacuteria ou natildeo
esta escrita desordenada impede uma clara contextualizaccedilatildeo das passagens citadas Em relaccedilatildeo agrave
citaccedilatildeo de Parmecircnides o assunto em discussatildeo era que os gregos roubavam de si proacuteprios isto eacute
plagiavam a si proacuteprios uns aos outros como exemplo Clemente faz muitas conexotildees entre
citaccedilotildees de dois autores supostamente um plagiando outro e agraves vezes junta mais de dois No caso
de Parmecircnides ele comeccedila com Heroacutedoto que reporta Phytia no caso da Divindade dizer e fazer
satildeo o mesmo continua com Aristoacutefanes pois pensar e fazer satildeo o mesmo e finalmente cita
Parmecircnides ldquopois pensar e ser satildeo o mesmo77 Pelo que se consegue entender se trata do plagio
da assimilaccedilatildeo de um conceito a outro dizer e fazer pensar e fazer pensar e ser Nenhuma
referecircncia eacute dada para se entender mais claramente o que significariam pensar e ser e mais ainda
o que significaria a assimilaccedilatildeo de um a outro78
No caso de Plotino a citaccedilatildeo eacute muito precisa como ele costumava fazer mas as noccedilotildees das
palavras satildeo revestidas de um forte neoplatonismo atribuindo a νοεῖν e a εἶναι sentidos de fato
muito distantes do pensamento preacute-socraacutetico79 Plotino natildeo tem uma preocupaccedilatildeo histoacuterica e natildeo
76A forma desordenada de escrita usada no texto dos Stromateis eacute um evento isolado natildeo soacute entre os escritos de
Clemente ndash cujas outras obras possuem uma redaccedilatildeo mais tradicional ndash com em geral na literatura sua
contemporacircnea gerando perplexidade entre os estudiosos Um panorama das vaacuterias hipoacuteteses pode ser vista em
Osborn 2005 O estudioso considera que se trata de uma teacutecnica de disseminaccedilatildeo de sementes de conhecimento
com a finalidade de despertar interesses a serem sucessivamente complementados pelo ensinamento oral numa
passagem diz ldquoThe Stromateis fulfil this role by transmitting the teaching which Clement received connecting
oral and written teaching The hidden element in them is a guard against their misuse by the mediocre or the bad
In his oral teaching Clement imparted the seeds of truth and his writing recalls themrdquo (Osborn 2005 p 14) 77Eis a passagem VI 2231-3 ldquo Ἡροδότου τε αὖ ἐν τῷ περὶ Γλαύκου τοῦ Σπαρτιάτου λόγῳ φήσαντος τὴν Πυθίαν
εἰπεῖν τὸ πειρηθῆναι τοῦ θεοῦ καὶ τὸ ποιῆσαι ἴσον γενέσθαι Ἀριστοφάνης ἔφη δύναται γὰρ ἴσον τῷ δρᾶν τὸ νοεῖν
καὶ πρὸ τούτου ὁ Ἐλεάτης Παρμενίδης τὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίltνgt τε καὶ εἶναιrdquo 78Uma interpretaccedilatildeo do significado da citaccedilatildeo parmenidiana dentro do pensamento de Clemente ndash embora natildeo me
pareccedila justificada pelo texto pois parece associada indevidamente a outra citaccedilatildeo aquela do fragmento IV ndash eacute dada
em Itter 2009 especialmente cap VI 79Embora a influecircncia de Parmecircnides sobre Plotino seja importante e embora o estudo dos neoplatocircnicos em geral seja
63
distingue sequer o Parmecircnides histoacuterico da personagem do diaacutelogo Parmecircnides de Platatildeo (Guerard
1987 p 297) por causa desta falta de distinccedilatildeo dirige seu interesse mais para o Parmecircnides de
Platatildeo pois julga que no diaacutelogo platocircnico se daacute o cumprimento perfeito daqueles elementos jaacute
presentes no poema parmenidiano mas de forma imperfeita Desta maneira e na sequecircncia da
interpretaccedilatildeo platocircnica do Sofista para Plotino e para os neoplatocircnicos em geral por um lado
Parmecircnides apresenta as noccedilotildees que depois seratildeo superadas (segundo a interpretaccedilatildeo platocircnica do
parriciacutedio) pelo platonismo e pelo neoplatonismo e por outro lado a aporia eleaacutetica eacute rejeitada
com o desenvolvimento de uma outra cosmologia que desfaz o monismo parmenidiano80 Por causa
destas interpretaccedilotildees que miram mais a defender o platonismo do que a estabelecer uma semacircntica
historicamente plausiacutevel do texto parmenidiano a utilizaccedilatildeo de Plotino natildeo consegue dar pistas do
real significado dos dois conceitos νοεῖν e εἶναι em Parmecircnides Como em Clemente em Plotino
tambeacutem nos deparamos com uma metodologia especiacutefica onde o rigor exegeacutetico cede o passo agrave
intenccedilatildeo pedagoacutegica como aliaacutes se torna expliacutecito na proacutepria passagem que reporta a citaccedilatildeo de
Parmecircnides
ldquoAssim estes discursos natildeo satildeo novos nem satildeo de agora mas sem estarem
desenvolvidos jaacute foram enunciados haacute muito tempo Os discursos de agora [os de Plotino]
satildeo exegeses daqueles confiando nos escritos do proacuteprio Platatildeo que testemunham a
antiguidade destas doutrinasrdquo81
importante para se compreender Parmecircnides (jaacute que grande parte das citaccedilotildees do poema provecircm deles) os estudos
especiacuteficos sobre a relaccedilatildeo entre eleatismo e neoplatonismo satildeo escassos Assinalo aqui alguns trabalhos Guerard
(1987) Stamatellos (2007) Abbate (2010) 80Abbate chega a falar da constituiccedilatildeo de um neo-parmenidismo simultaneamente a um anti-parmenidismo por parte
dos neoplatocircnicos em geral (Abbate 2010 p 258) 81Enneades V18 ldquoΚαὶ εἶναι τοὺς λόγους τούσδε μὴ καινοὺς μηδὲ νῦν ἀλλὰ πάλαι μὲν εἰρῆσθαι μὴ ἀναπεπταμένως
τοὺς δὲ νῦν λόγους ἐξηγητὰς ἐκείνων γεγονέναι μαρτυρίοις πιστωσαμένους τὰς δόξας ταύτας παλαιὰς εἶναι τοῖς
αὐτοῦ τοῦ Πλάτωνος γράμμασινrdquo A traduccedilatildeo eacute de Marcus Reis Pinheiros que comenta ldquoPlotino afirma que seus
64
Plotino pensa que seus ensinamentos satildeo apenas um desdobramento daqueles de Platatildeo os
quais por sua vez se refazem a ensinamentos ainda mais antigos (como os de Parmecircnides) dos
quais satildeo desdobramentos Assim eacute o proacuteprio Plotino que nos indica que o sentido em que usa
νοεῖν εἶναι e sua assimilaccedilatildeo natildeo eacute o sentido original de Parmecircnides mas eacute um seu desdobramento
(ἐξηγητὰς no sentido que ele expocircs) O caso de Proclo natildeo eacute muito diferente e embora ele seja
muito importante por ter trazido muitos trechos do poema parmenidiano a sua confiabilidade
exegeacutetica eacute duvidosa 82 especialmente para noccedilotildees como pensar e ser que satildeo centrais no
neoplatonismo
Por outro lado o desenvolvimento dos estudos parmenidianos desde Hegel preferiu o
aprofundamento da noccedilatildeo de ser num vieacutes antes de tudo ontoloacutegico mas depois tambeacutem teoloacutegico
Neste tipo de terreno filosoacutefico os termos ser e pensar e sua assimilaccedilatildeo segundo a expressatildeo
parmenidiana aguccedilaram os esforccedilos interpretativos de muitos estudiosos tanto na parte mais
propriamente da histoacuteria da filosofia quanto tambeacutem na parte mais propriamente filosoacutefica
(Heidegger por exemplo) A discussatildeo ontoloacutegica e teoloacutegica a respeito deste fragmento 3 eacute
infindaacutevel e por isto vou apresentar apenas um exemplo de um estudioso importante Pierre
Aubenque Em seu artigo de 1987 Syntaxe et seacutemantique de lecirctre dedicado inteiramente ao estudo
do ser no poema de Parmecircnides apoacutes a introduccedilatildeo agrave problemaacutetica e apoacutes uma primeira anaacutelise do
fragmento 2 se volta agraves palavras de Parmecircnides do fragmento 3 A prosoacutedia e o sentido diz ele
proacuteprios discursos satildeo exegetas de discursos muito antigos e que os textos de Platatildeo satildeo testemunhas desta
antiguidade [hellip] fazer exegese dos textos antigos natildeo eacute interpretar objetivamente os textos mas caminhar rumo
aos niacuteveis superiores junto com os antigosrdquo (Pinheiros 2007 p 79-80) 82Guerard conclui ldquoAinsi la lecture neacuteoplatonicienne du dialogue platonicien revient agrave faire de Parmeacutenide un porte-
parole privileacutegieacute de Platonrdquo (Guerard 1987 p 300)
65
convidam a emendar esse fragmento no fragmento 2 pois depois da afirmaccedilatildeo do ser na primeira
via e da impossibilidade de conhecer o natildeo ser na segunda a citaccedilatildeo do fragmento 3 explicaria a
imbricaccedilatildeo do ser com o conhecer (p 114-115) Resta ainda explicar melhor o que significariam
estas palavras ldquode fato eacute o mesmo conhecer e serrdquo (Cest em effet la mecircme chose de connaitre et
decirctre) Apoacutes um percurso que comeccedila com o cogito cartesiano e passando por Homero e pelas
vaacuterias possibilidades de interpretaccedilatildeo sintaacutetica da frase chega numa duacutevida sem possibilidade de
soluccedilatildeo certa Aubenque resolve recorrer aos antigos isto eacute Plotino e Proclo Eacute entatildeo introduzida
a noccedilatildeo de inteligiacutevel extraiacuteda de Aristoacuteteles e se discute sobre a correlaccedilatildeo das identidades entre
inteligiacutevel intelecto e ser A discussatildeo se alarga ao fragmento 16 e aos poucos aos demais 6 8
7 etc tentando configurar uma noccedilatildeo de ser (do ponto de vista ontoloacutegico) que de fato nem o
fragmento 2 isoladamente e nem o 3 conseguem oferecer Este tipo de estudo eacute bastante comum
entre os interpretes e configura talvez o maior desafio dos estudos parmenidianos No entanto ndash e
a historiografia parmenidiana mostra isto ndash aos poucos esse tipo de estudo tende a ser afastar tanto
do contexto histoacuterico83 quanto do contexto literaacuterio do proacuteprio poema pois o tema daacute asas agrave vis
speculativa que todo estudioso de filosofia naturalmente possui a prova mais cabal disto eacute que satildeo
83Num artigo de 2007 Kahn trata de ldquoQuestotildees controversas de sintaxerdquo (Kahn 2007) e o primeiro assunto eacute o verso
do fragmento DK B 3 Por um lado ele pretende se restringir agrave sintaxe mas depois por outro lado natildeo achando
explicaccedilatildeo satisfatoacuteria recorre a DK B 8-34-36 dizendo que neste estaacute explicitado o sentido daquele e por fim
atribui a natildeo compreensatildeo a uma leitura distorcida pelo olhar da modernidade recorre entatildeo ateacute mesmo a
Aristoacuteteles para justificar a identidade entre ser e pensar Que Aristoacuteteles tenha afirmado a identidade entre nous e
noeton e que Parmecircnides o tenha feito entre einai e noein estaacute muito bem resta ainda a tarefa de dar um sentido
filosoacutefico a estas afirmaccedilotildees Numa linha inicialmente similar Casertano tambeacutem acha claro o sentido de DK B 3
mas acrescenta justamente ldquoTudo isto eacute bastante claro O problema nasce quando o ser e o pensar se ligam
precisamente agrave verdaderdquo (Casertano 2007 p 50) Isto eacute quando se quer dar a esta identidade um sentido filosoacutefico
propriamente parmenidiano onde a ligaccedilatildeo entre conhecimento verdadeiro e eon eacute um dos objetivos primeiros da
doutrina do eleata
66
exatamente os maiores filoacutesofos que acabam fazendo as interpretaccedilotildees historicamente mais
arbitraacuterias do poema e aqui penso em Nietzsche Heidegger e ateacute mesmo em Popper
No nosso estudo na busca de um vocabulaacuterio psicoloacutegico a presenccedila do verbo νοεῖν natildeo
parece ser suficiente no caso do fragmento 3 para determinar um sentido minimamente plausiacutevel
para um comportamento mental que de alguma forma assimilaria pensar e ser A amplitude da
noccedilatildeo de ser aqui um εἶναι sem nenhuma outra qualificaccedilatildeo pela proacutepria assimilaccedilatildeo aumenta
proporcionalmente a amplitude da noccedilatildeo de pensar tambeacutem um νοεῖν sem nenhuma qualificaccedilatildeo
de forma que nos encontramos diante de duas noccedilotildees maximamente amplas e sem nenhuma
possibilidade de reconduzi-las a qualquer comportamento mental concreto pela total falta de
referecircncias precisas no proacuteprio texto do poema ou referecircncias confiaacuteveis na doxografia
comeccedilando pelo proacuteprio Platatildeo e terminando pelos doxoacutegrafos autores da citaccedilatildeo Diante destas
circunstacircncias natildeo me parece aconselhaacutevel aprofundar as tentativas de atribuir qualquer sentido
psicoloacutegico a este fragmento para os nossos fins ele parece natildeo oferecer nenhuma contribuiccedilatildeo e
seraacute aqui desconsiderado
324 O fragmento 4
Ver p 204
325 O fragmento 6
O fragmento 6 reportado por Simpliacutecio84 mostra muitas passagens importantes da filosofia
84Simpliacutecio Physica 8627-28 11745-6 8-13 783-4
67
parmenidiana Ele eacute fundamental para noacutes porque mostra tambeacutem muitas passagens das visotildees
psicoloacutegicas de Parmecircnides estes satildeo os versos
χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι
μηδὲν δ οὐκ ἔστιν τά σ ἐγὼ φράζεσθαι ἄνωγα
πρώτης γάρ σ ἀφ ὁδοῦ ταύτης διζήσιος ltεἴργωgt
αὐτὰρ ἔπειτ ἀπὸ τῆς ἣν δὴ βροτοὶ εἰδότες οὐδὲν
πλάττονται δίκρανοι ἀμηχανίη γὰρ ἐν αὐτῶν
στήθεσιν ἰθύνει πλακτὸν νόον οἱ δὲ φοροῦνται
κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί τε τεθηπότες ἄκριτα φῦλα
οἷς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ εἶναι ταὐτὸν νενόμισται
κοὐ ταὐτόν πάντων δὲ παλίντροπός ἐστι κέλευθος
Como todos os outros versos do poema estes tambeacutem receberam muitas e controversas
interpretaccedilotildees O ponto mais polecircmico eacute a passagem que pode sugerir a existecircncia de um terceiro
caminho aleacutem dos dois anunciados no fragmento DK B 2 Eu penso que o engano de um terceiro
caminho foi definitivamente rejeitado pelos estudos especiacuteficos de Cordero85 principalmente com
referecircncia agrave conjectura improacutepria no verso 3 proposta por Diels e que recebeu todo o peso da
autoridade do nome do grande filoacutelogo alematildeo Mas mesmo deixando de lado a questatildeo do terceiro
caminho o fragmento eacute motivo de muitas discussotildees Enquanto as discussotildees filosoacuteficas estatildeo aqui
fora de nossa esfera de interesses o ponto de vista psicoloacutegico nesse fragmento eacute muito
interessante Para o verbo νοεῖν e seus cognatos usaremos a nossa traduccedilatildeo teacutecnica de operar
cognitivamente obtida das qualificaccedilotildees que Parmecircnides oferece no fragmento DK B 2
3251 Os versos 61-4
Necessaacuterio eacute o dizer e pensar que (o) ente eacute pois eacute ser
e nada natildeo eacute isto eu te mando considerar
85Cordero 1984 2005 p 145-164 2007
68
Pois primeiro desta via de inqueacuterito eu ltte afastogt86
Mas depois daquela outra em que mortais que nada sabem87
No primeiro verso encontramos de novo o enunciado de um processo necessaacuterio como no
fragmento 2 eacute necessaacuterio dizer e operar cognitivamente (νοεῖν) que sendo se eacute88 Eacute notaacutevel a
repeticcedilatildeo parmenidiana de afirmaccedilotildees do fragmento DK B 2 em novas bases e com palavras quase
sinocircnimas No fragmento DK B 2 no verso 3 ele tinha dito que o caminho do eacute (seja o que for o
eacute) eacute impossiacutevel que natildeo seja mas em relaccedilatildeo a este caminho natildeo fizera referecircncia ao pensar e ao
dizer Jaacute no verso 5 e nos seguintes do mesmo fragmento falando do caminho do natildeo eacute (seja o
que for natildeo eacute) faz referecircncia ao conhecer (da esfera semacircntica do pensar) e ao dizer Agora aqui
no fragmento 6 formalmente daacute o mesmo argumento do caminho do natildeo eacute mas invertido e
atribuiacutedo ao eacute Enquanto ali era impossiacutevel conhecer (γνοίης) e dizer (φράσαις) o que natildeo eacute aqui
eacute necessaacuterio operar cognitivamente (νοεῖν) e dizer (λέγειν) que eacute Aqui tambeacutem podemos notar
que falando do que natildeo eacute (τό μὴ ἐὸν) Parmecircnides estaacute falando natildeo de certa foacutermula linguiacutestica
(predicativa ou outra) ou da verdade da foacutermula linguiacutestica (veritativa) ele estaacute falando da noccedilatildeo
evidenciada pelo processo de negaccedilatildeo (veja capiacutetulo 4 p 97) aquele processo que quer reduzir
todas as coisas a nenhuma coisa nada em portuguecircs e μηδὲν (nem um) em grego Parmecircnides
estaacute falando do nada absoluto e a maneira dele falar parece revelar uma reflexatildeo profunda com uma
notaacutevel consciecircncia da enorme problemaacutetica sujeitoobjeto89 no ato do conhecimento
86Reporto aqui a nota de Cordero (2005 p 213 n 6) ldquoConjectura Todos os manuscritos de Simpliacutecio uacutenica fonte
desta passagem apresentam uma lacunardquo 87Trad Cavalcante de Souza (1978) 88Cito aqui a traduccedilatildeo de Cordero que dedicou a esta tese de Parmecircnides um excelente livro cujo tiacutetulo Siendo se eacutes
(2005) ndash agora tambeacutem em portuguecircs Sendo se eacute pela editora Odysseus ndash eacute tomado exatamente das palavras que
estamos estudando aqui 89Estas afirmaccedilotildees seratildeo justificadas no capiacutetulo 4 p 97 em diante
69
Ainda no primeiro verso e avanccedilando para o segundo ele retoma as razotildees de suas teses
anteriores Assim ele diz pois eacute ser e nada natildeo eacute Como jaacute repetimos muitas vezes estas palavras
tambeacutem mereceriam muitas explicaccedilotildees e distinccedilotildees se estiveacutessemos procurando o seu sentido
filosoacutefico Natildeo eacute aqui o caso e para os nossos fins notamos apenas que a palavra nada (μηδὲν)
aqui significa exatamente nem uma coisa e natildeo eacute significa que eacute impossiacutevel que seja como ele
dissera no fragmento 2 Eacute muito importante ter agrave mente que por detraacutes destas palavras estaacute um
processo de reflexatildeo como dissemos acima e como explanaremos amplamente mais agrave frente
Nos versos seguintes Parmecircnides continua explicando seu meacutetodo e dando mais detalhes a
respeito Os versos 3 e 4 satildeo objeto de controveacutersias aacutesperas principalmente por uma lacuna nos
manuscritos A deusa pede ao kouros para fazer algo com o primeiro caminho (natildeo sabemos o que
por causa da lacuna pela conjectura de Diels ndash a mais aceita justamente aquela refutada por
Cordero ndash ela pediria para o kouros se afastar) e tambeacutem de fazer algo com o caminho que os
mortais seguem Esta passagem era e ainda eacute objeto de uma discussatildeo muito grande nos campos
paleograacutefico filoloacutegico e filosoacutefico o assunto em disputa eacute se haacute ou natildeo um terceiro caminho
indicado nessas palavras Na verdade noacutes natildeo precisamos enfrentar esta discussatildeo e podemos pulaacute-
la Para nossos fins noacutes seguiremos o que Parmecircnides indica como caminho (ou caminhos) e seus
caracteres e qualidades sem nos preocuparmos se eacute o primeiro caminho ou o segundo ou
eventualmente o terceiro ou mais
3252 Os versos 64-9
Mas depois daquela outra em que mortais que nada sabem
Erram duplas cabeccedilas pois o imediato em seus
Peitos dirige errante pensamento e satildeo levados
Como surdos e cegos perplexas indecisas massas
Para os quais ser e natildeo ser eacute reputado o mesmo
70
E natildeo o mesmo e de tudo eacute reversiacutevel o caminho90
Aqui comeccedila a parte mais interessante para o ponto de vista psicoloacutegico De fato desde o
verso 4 ateacute o final do fragmento haacute uma descriccedilatildeo do comportamento mental dos mortais
Parmecircnides diz que os mortais (βροτοὶ) natildeo sabem nada (εἰδότες οὐδὲν) andam por caminhos
forjados (πλάττονται) e tecircm duas cabeccedilas (δίκρανοι)91 porque a falta de recursos (ἀμηχανίη) em
sua mente (literalmente no peito στήθεσιν) guia um pensamento vagante Ao mesmo tempo eles
satildeo levados como surdo e cegos e confusos pessoas sem capacidade de julgamento para as quais
ser e natildeo ser satildeo considerados o mesmo e natildeo o mesmo O caminho deles eacute um caminho que tem
dois sentidos
1) βροτοὶ Temos nestes versos uma reprimenda contra os mortais os quais apresentam
alguns comportamentos que passamos a estudar Mas nossa primeira questatildeo eacute quem satildeo os
mortais Haacute muitas opiniotildees diferentes entre os estudiosos92 mas parece claro que embora o
90Trad Cavalcante de Souza (1978) 91Capizzi (1975 37) traduz ldquodoppiezzardquo duplicidade aqui no sentido de falsidade dissimulaccedilatildeo 92Uma resenha completa para os autores mais antigos se encontra em Zeller (1967 p 173-183 n 3 de Giovanni Reale)
A ampla discussatildeo verteu principalmente a respeito da identificaccedilatildeo dos βροτοὶ com os heraclitianos com posiccedilotildees
favoraacuteveis desde as mais radicais (por exemplo Patin 1899 o qual considerava o inteiro poema como uma
polecircmica anti-heraclitiana) ateacute as mais cautelosas (Guthrie) e com posiccedilotildees contraacuterias como aquela do proacuteprio
Zeller A discussatildeo vertia em volta do vocabulaacuterio aparentemente heraclitiano (com destaque para Calogero 1967
p 49 que na expressatildeo δίκρανοι via esculpida a imagem do involuntaacuterio fundador da dialeacutetica antiga Heraacuteclito)
mas tambeacutem sobre questotildees de cronologia A polecircmica foi amplamente superada a partir de Mansfeld (1960) o
qual evidencia como o vocabulaacuterio usado por Parmecircnides jaacute pertencia agrave tradiccedilatildeo da poesia liacuterica
Recentemente inesperadamente surgiu uma defesa da interpretaccedilatildeo do termo βροτοὶ como referido aos
heraclitianos principalmente mas tambeacutem aos pitagoacutericos e a Hesiacuteodo Trata-se da posiccedilatildeo de Jean Fregravere
defendida em seu livro sobre Parmecircnides (Fregravere 2012) num capiacutetulo cujo texto fora anteriormente apresentado em
Buenos Aires (Fregravere 2011) A tese mestra de Fregravere eacute que o homem comum natildeo se importa com caminhos de
pesquisa e que entatildeo a criacutetica de Parmecircnides tinha endereccedilo certo segundo ele heraclitianos pitagoacutericos e Hesiacuteodo
Afora as questotildees que tradicionalmente giram em volta desta disputa ndash a cronologia o vocabulaacuterio as intenccedilotildees
filosoacuteficas gerais de um e de outro autor ndash e deixando de lado o fato que Fregravere natildeo cuida de justificar seus
argumentos e nem de enfrentar as objeccedilotildees que satildeo muitas jaacute que este debate durou mais de 50 anos ainda resta
a questatildeo principal que eacute a seguinte como um pensador eacute capaz de influenciar uma cultura inteira e uma cultura
inteira se dispotildee a aceitar um pensador O exemplo de nossa cultura ocidental satildeo Jesus Cristo e o cristianismo Se
71
poema seja endereccedilado a homens saacutebios e cultos de seu tempo neste caso Parmecircnides quer
significar pessoas que usam uma certa maneira de pensar sem distinccedilatildeo entre pessoas comuns e
saacutebios Com efeito a primeira descriccedilatildeo dos mortais eacute mortais que nada sabem (εἰδότες οὐδὲν)
essa descriccedilatildeo assim como as demais qualificaccedilotildees dos mortais satildeo tradicionais na literatura
anterior a Parmecircnides93 a noccedilatildeo central gira em volta da contraposiccedilatildeo entre a divindade poderosa
algueacutem se potildee a criticar a maneira de pensar dos cristatildeos natildeo faz muito sentido alegar que o cristatildeo comum natildeo se
interessa por teologia e portanto se trata de criticar o autor e natildeo quem acolhe aquelas ideias Ao se criticar o
cristianismo se critica indiretamente o autor em suas teorias e diretamente e propriamente o fenocircmeno cultural o
qual nem sequer eacute de responsabilidade do autor Eacute verdade que Parmecircnides faz um discurso culto em oposiccedilatildeo a
outro discurso que soacute pode ser culto Mas o discurso culto contra o qual Parmecircnides se opotildee natildeo eacute uma simples
teoria como pode ser qualquer teoria em discussatildeo teoacuterica num espaccedilo acadecircmico reservado o discurso contra o
qual ele se potildee eacute uma teoria (uma interpretaccedilatildeo de mundo uma cosmovisatildeo) que penetrou profundamente na cultura
de massa Entatildeo a maneira de pensar de Hesiacuteodo natildeo eacute algo circunscrito a Hesiacuteodo mas eacute algo que formava a
proacutepria estrutura cultural da Greacutecia Especificamente Parmecircnides critica uma maneira de pensar a qual eacute uma
estrutura sociocultural de formaccedilatildeo extremamente complexa por isso natildeo se consegue atribuir isto a um soacute
pensador ou a uma escola isolada uma reaccedilatildeo cultural complexa e de massa a um conjunto de afirmaccedilotildees teoacutericas
Parmecircnides critica o pensamento que natildeo se preocupa com uma coerecircncia interna (podemos chamar de pensamento
miacutetico realismo ingecircnuo ou simplesmente crendice ou supersticcedilatildeo como se queira) e propotildee um instrumento para
alcanccedilar esta coerecircncia Isto vai muito aleacutem de um uacutenico pensador ou de um grupo pequeno de pensadores como
podem ter sido os jocircnicos ou os pitagoacutericos porque inclusive o pensador antes de ser criador de cultura eacute fruto de
uma cultura e expressa aquela cultura tambeacutem em suas inovaccedilotildees tanto por aderir a ela quanto por se opor a ela
Em suma a criacutetica de Parmecircnides se dirige a uma estrutura cultural e natildeo a uma teoria logo natildeo se dirige aos
grandes pensadores que o antecederam embora estes possam estar entre aqueles que criaram ou consolidaram a
cultura criticada pelo eleata Por exemplo Hesiacuteodo eacute um inovador e um consolidador da cultura anterior a ele e natildeo
se consegue separaacute-lo de sua proacutepria cultura ao se criticar aquela maneira de pensar proacutepria daquela cultura estaacute
se criticando Hesiacuteodo tambeacutem mas natildeo principalmente e nem majoritariamente Por todas estas razotildees aleacutem
daquelas mais teacutecnicas jaacute oferecidas pelos estudiosos natildeo faz muito sentido restringir o fragmento 6 e os demais
onde se encontra o termo βροτοὶ a esta ou agravequela escola a este ou agravequele pensador os βροτοὶ de Parmecircnides satildeo
todos aqueles que pensam sem ter um certo recurso em sua mente (ἀμηχανίη ἐν αὐτῶν στήθεσιν) 93Num estudo de Devoto (1964 p 62) se faz uma comparaccedilatildeo entre denominaccedilotildees antigas para homem no latim da
Europa ocidental e central a palavra usada era homo e similares com referecircncia agrave terra (Erneut-Meillet 1951 p
530 neacute de la terre) em contraposiccedilatildeo agrave divindade a qual pertence ao ceacuteu divinizado jaacute os termos germacircnicos men
e mensch fazem referecircncia ao homem que pensa distinto dos animais (Oxford English Dictionary 2009 verbete
man ldquo[it] have been usually referred to the Indogermanic men- mon- to think (see mind n) so that the
primary meaning of the name would refer to intelligence as the distinctive characteristic of human beings as
contrasted with brutesrdquo) pertencendo ao mundo dos caccediladores Em grego se encontram ambas as caracterizaccedilotildees
indicando a Greacutecia como lugar de encontro de vaacuterias concepccedilotildees da divindade assim βροτοὶ se contrapotildee aos
imortais enquanto ἄνθρωπος embora a etimologia seja obscura deve fazer referecircncia agrave cultura da caccedila
Em Homero a noccedilatildeo eacute expressa claramente por exemplo em Il 5440 ldquoφράζεο Τυδεΐδη καὶ χάζεο μηδὲ θεοῖσιν
ἶσ ἔθελε φρονέειν ἐπεὶ οὔ ποτε φῦλον ὁμοῖον ἀθανάτων τε θεῶν χαμαὶ ἐρχομένων τ ἀνθρώπωνrdquo [hellip] pois nunca
seraacute a mesma estirpe a dos deuses imortais e a dos homens que caminham sobre terra Note-se que Parmecircnides
usa ambas as denominaccedilotildees ἄνθρωπος em DK B 127 162 163 193 e βροτοὶ em 130 64 839 851 861
72
e onisciente e o homem limitado e ignorante aleacutem da noccedilatildeo expressa na poesia liacuterica94 haacute tambeacutem
a retomada desta contraposiccedilatildeo jaacute em acircmbito jocircnico e cientiacutefico o que nos conduz a uma noccedilatildeo
mais proacutexima do texto parmenidiano Em Xenoacutefanes 95 um dos mestres de Parmecircnides
encontramos por exemplo o fragmento DK B 23 ldquoUm uacutenico deus entre deuses e homens o maior
em nada no corpo semelhante aos mortais nem no pensamentordquo96 DK B 34 ldquoE o que eacute claro
portanto nenhum homem viu nem haveraacute algueacutem que conheccedila sobre os deuses e acerca de tudo
que digo pois ainda que no maacuteximo acontecesse dizer o que eacute perfeito ele proacuteprio natildeo saberia a
respeito de tudo existe uma opiniatildeordquo e em Alcmeon DK B 1 ldquoOs deuses tem conhecimento claro
das coisas invisiacuteveis e das coisas mortais aos homens ltcabegt conjecturarrdquo97 Enquanto no
pensamento anterior as estirpes de deuses e homens satildeo inconciliaacuteveis e incomparaacuteveis no
pensamento do VI para o V seacuteculo se processa uma comparaccedilatildeo o conhecimento divino eacute perfeito
aquele humano imperfeito Enquanto a religiatildeo oliacutempica estaacute fundada sobre a separaccedilatildeo entre o
humano e o divino e enquanto a religiatildeo misteacuterica tende a associar os dois o novo naturalismo
jocircnico e depois itaacutelico tende a superar esta separaccedilatildeo natildeo porque os homens se tornam deuses
mas porque como veremos nas proacuteximas linhas os homens podem preencher ao menos em parte
94Um bom resumo das noccedilotildees estaacute nestas palavras de Reale (1967 182) reportando Mansfeld ldquo [estes versos] satildeo
atinentes a uma concepccedilatildeo geral grega da natureza do conhecimento humano o qual 1) eacute um nada quando
comparada com aquele divino e 2) da forma como eacute eacute insuficiente para a proacutepria vidardquo Por outro lado embora a
anaacutelise literaria esteja correta a interpretaccedilatildeo de Mansfeld dessas passagens em minha opiniatildeo eacute incorreta 95Para a ligaccedilatildeo entre Xenoacutefanes e Parmecircnides veja-se Finkelberg 1990 96Trad Prado (1978 p 65-66) Xenoacutephanes DK 21 B 23 ldquoεἷς θεὸς ἔν τε θεοῖσι καὶ ἀνθρώποισι μέγιστος οὔ τι δέμας
θνητοῖσιν ὁμοίιος οὐδὲ νόημαrdquo B 34 καὶ τὸ μὲν οὖν σαφὲς οὔ τις ἀνὴρ ἴδεν οὐδέ τις ἔσται ἰδὼς ἀμφὶ θεῶν τε
καὶ ἅσσα λέγω περὶ πάντων εἰ γὰρ καὶ τὰ μάλιστα τύχοι τετελεσμένον εἰπών αὐτὸς ὅμως οὐκ οἶδε δόκος δ ἐπὶ
πᾶσι τέτυκταιrdquo 97Alcmeon DK 24 B 1 ldquoπερὶ τῶν ἀφανέων περὶ τῶν θνητῶν σαφήνειαν μὲν θεοὶ ἔχοντι ὡς δὲ ἀνθρώποις
τεκμαίρεσθαιrdquo
73
a ἀμηχανίη da condiccedilatildeo humana atraveacutes do conhecimento o qual embora ainda conjectural em
Xenoacutefanes e Alcmeon se torna um conhecimento de certeza verdadeira (πίστις ἀληθής) em
Parmecircnides Para a realizaccedilatildeo deste programa de conhecimento verdadeiro Parmecircnides expotildee o
ponto de partida a limitada condiccedilatildeo humana com a linguagem tradicional de sua cultura assim
a condiccedilatildeo humana tradicional recebe o nome tradicional de βροτοὶ os mortais98
2) πλάττονται Os mortais satildeo descritos por Parmecircnides natildeo em sua condiccedilatildeo fatal de
inferioridade em relaccedilatildeo aos deuses nem em sua miseacuteria existencial nem em qualquer outro sentido
moralista A descriccedilatildeo de Parmecircnides natildeo estaacute associada a qualquer contexto humano especiacutefico a
qualquer situaccedilatildeo precisa ou a qualquer outro evento ela eacute limitada aos comportamentos mentais
dos βροτοὶ e eacute feita de forma neutra e universal Haacute um problema inicial a partir do qual se datildeo os
comportamentos como consequecircncia desta causa uacutenica Os βροτοὶ cuja condiccedilatildeo humana eacute aquela
de nada saber (εἰδότες οὐδὲν) seguem por caminhos por eles forjados (πλάττονται)99 inventados
98Haacute um caso de sinoniacutemia entre 838-39 ὄνομ(α) βροτοὶ κατέθεντο e 193 ὄνομ ἄνθρωποι κατέθεντο como
justamente faz notar Cordero (1984 p 149 n 157) Mas que Parmecircnides os use como sinocircnimos uma vez natildeo
quer dizer que sejam sinocircnimos nos outros casos De fato Parmecircnides usa βροτοὶ quatro vezes (130 64 839
861) e uma vez o adjetivo βροτείας somente associados ao desvio do pensamento em relaccedilatildeo agrave verdade (130
ldquoβροτῶν δόξας ταῖς οὐκ ἔνι πίστις ἀληθήςrdquo 64 ldquoβροτοὶ εἰδότες οὐδὲνrdquo 839 ldquoπάντ ὄνομ(α) ἔσται ὅσσα βροτοὶ
κατέθεντο πεποιθότες εἶναι ἀληθῆrdquo 851 ldquoδόξας δ ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν
ἀκούωνrdquo 861 ldquoὡς οὐ μή ποτέ τίς σε βροτῶν γνώμη παρελάσσηιrdquo Jaacute ἄνθρωποι eacute usado em sentido muito mais
geral em 127 ldquoτήνδ ὁδόν (ἦ γὰρ ἀπ ἀνθρώπων ἐκτὸς πάτου ἐστίν)rdquo onde caminho dos homens apesar das muitas
imaginativas explicaccedilotildees de vaacuterios estudiosos significa provavelmente tatildeo somente caminho dos humanos
(diferenciado de caminhos de animais ou de coisas ndash vento aacutegua e outros) isto eacute estrada em 162 e 16 3 ldquoτὼς
νόος ἀνθρώποισι παρίσταταιrdquo e ldquoτὸ γὰρ αὐτό ἔστιν ὅπερ φρονέει μελέων φύσις ἀνθρώποισινrdquo os quais por serem
descriccedilotildees anatocircmico-fisioloacutegicas se referem necessariamente ao homem em geral (seja ele saacutebio ou natildeo) em 193
onde como vimos acima tem sentido sinocircnimo com βροτοὶ O que se pode concluir limitando-nos somente ao uso
feito por Parmecircnides nos fragmentos que sobreviveram eacute que o termo ἄνθρωποι inclui o sentido de βροτοὶ mas
natildeo vice-versa 99A interpretaccedilatildeo de πλάττονται como caminhos forjados pelos homens eacute mais coerente Desde Diels que retoma a
ediccedilatildeo aldina de 1526 muitos autores aceitam um πλάττονται que viria de πλάζω (LSJ desviar-se confundir vagar
o LSJ inclui o πλάττονται parmenidiano no verbete πλάζω) ao inveacutes de πλάσσω (LSJ moldar formar uma imagem
na mente forjar) Enquanto πλάζω significaria um errar dos humanos πλάσσω significaria um fantasiar isto eacute um
inventar explicaccedilotildees A discussatildeo filoloacutegica completa se encontra em Cordero (1984 p 147-8 e 2005 p 146-7)
74
improacuteprios A maioria dos estudiosos interpreta πλάττονται como erram mas desta forma se perde
por inteiro o conteuacutedo psicoloacutegico da expressatildeo parmenidiana os mortais forjam inventam
fantasiam explicaccedilotildees Este eacute o comportamento natural de quem quer explicar o mundo numa
formulaccedilatildeo subjetiva laacute onde a autocriacutetica ainda natildeo estaacute desenvolvida em outras palavras eacute o
procedimento normal da formulaccedilatildeo de explicaccedilotildees mais ou menos coerentes que afinal
redundaratildeo na formaccedilatildeo dos mitos Eacute muito feliz Cordero (1984 p 148) a lembrar-nos o uso de
πλάσσω em Platatildeo no Timeu quando Critias diz ldquoNatildeo mito inventado mas discurso verdadeirordquo
(μὴ πλασθέντα μῦθον ἀλλ ἀληθινὸν λόγον) Como jaacute vimos a consciecircncia de que a explicaccedilatildeo
miacutetica eacute mera fantasia jaacute estaacute desenvolvida nos mestres de Parmecircnides100 e o tema recorrente no
poema natildeo eacute tanto a afirmaccedilatildeo do ser (como prefere a historigrafia de tipo idealiacutestico que tem
origem em Hegel) mas a diferenciaccedilatildeo entre uma persuasatildeo verdadeira e uma persuasatildeo natildeo
verdadeira como estaacute especificado no programa em 129-30 Ora a persuasatildeo falsa tem sua origem
nos mortais ou seja a invenccedilatildeo dos falsos mitos eacute obra dos mortais posto que os deuses com as
devidas exceccedilotildees soacute falam a verdade Entatildeo a atribuiccedilatildeo da invenccedilatildeo dos falsos mitos aos homens
por parte de Parmecircnides eacute perfeitamente coerente com a sua proposta Ademais a criacutetica ao
pensamento miacutetico embora natildeo prosaicamente literal como em Xenoacutefanes natildeo estaacute nem tatildeo
Aceitam πλάζω Diels Barnes Burnet Coxon Ruggiu Taraacuten Untersteiner Verdenius Zafiropulo Entre os poucos
favoraacuteveis agrave interpretaccedilatildeo de πλάττονται como forjam estatildeo Cordero Cerri OBrien Santoro e Ferrari Este uacuteltimo
(Ferrari 2010 p 47) contesta uma anaacutelise de Passa (2009 p 104-111) feita com extrema acribia defendendo a
opccedilatildeo de Diels no entanto Passa valente filoacutelogo de Parmecircnides para defender Diels traz um enorme aparato
filoloacutegico mas para descartar a interpretaccedilatildeo de πλάττονται como πλάσσω curiosamente utiliza argumentos
somente interpretativos (segundo sua proacutepria interpretaccedilatildeo do poema) e nenhum argumento filoloacutegico 100Tanto os jocircnicos que descartaram as explicaccedilotildees miacuteticas e aceitaram apenas explicaccedilotildees naturalistas quanto os
itaacutelicos isto eacute os pitagoacutericos os quais mesmo mantendo um aparato religioso se dedicaram agraves pesquisas
naturalistas neste quadro o destaque eacute para a criacutetica severa de Xenoacutefanes agraves religiotildees)
75
escondida nos versos do sugestivo poema parmenidiano Mas voltaremos sobre isto mais adiante
Aqui vale salientar que Parmecircnides observa um comportamento mental os mortais por natildeo saber
nada fantasiam e inventam para dar sentido a algum fenocircmeno do mundo fica clariacutessima a noccedilatildeo
parmenidiana do comportamento psicoloacutegico do homem comum pois Parmecircnides percebe
claramente que os homens fantasiam inventam explicam criativamente assim como um psicoacutelogo
atual percebe o comportamento mental fantasioso a partir de explicaccedilotildees forjadas mais ou menos
verossiacutemeis de algueacutem que precisa explicar algo mesmo sem ter noccedilatildeo de como nem competecircncia
para tanto
3) Ἀμηχανίη Esse termo eacute dos mais interessantes e ademais pode ser tomado como a noccedilatildeo
que sintetiza a anaacutelise psicoloacutegica que Parmecircnides faz do comportamento mental do homem
comum como ainda veremos Embora retomado com perfeiccedilatildeo literaacuteria da tradiccedilatildeo eacutepica e liacuterica
para definir os mortais101 o termo ἀμηχανίη em Parmecircnides apresenta uma ampliaccedilatildeo de sentido
O termo significa falta de recursos e assim eacute traduzido por muitos estudiosos102 outros preferem
traduzir com perplexidade103 O sentido geral eacute que os limites humanos necessariamente levam a
uma conduta errante do noos (ἰθύνει πλακτὸν νόον) No entanto enquanto em relaccedilatildeo a βροτοὶ
todos ou quase todos os estudiosos notam a oposiccedilatildeo que Parmecircnides faz com o εἰδότα φῶτα de
101Presente em muitas formas (como verbo substantivo simples e composto adjetivo e com alfa privativo) na eacutepica e
na liacuterica recebe de todos os estudiosos a interpretaccedilatildeo de uma incapacidade dos mortais uma impotecircncia humana
em contraposiccedilatildeo agrave potecircncia divina 102 Por exemplo Beaufret (1955 p 81) ldquolabsence de moyensrdquo Rietzler-Gadamer (1970 p 29) ldquoHilflosigkeitrdquo
Somville (1976 p 42) ldquolimpuissancerdquo (p 17) 103Por exemplo Coxon (2009 p 58) ldquoperplexityrdquo Casertano (1978 p 17) ldquoincertezzardquo Untersteiner (1979 p 135)
ldquoperplessitagraverdquo
76
DK B 13 (o homem saacutebio) em relaccedilatildeo a ἀμηχανίη a falta de recursos ningueacutem lembra que deve
ser uma antiacutetese de uma noccedilatildeo que natildeo estaacute nomeada diretamente mas que estaacute presente
virtualmente a posse de recursos Vamos entender esta presenccedila virtual pela descriccedilatildeo que
Parmecircnides faz de sua antiacutetese ἀμηχανίη Ele diz que essa falta de recursos no peito (ἐν στήθεσιν)
que aqui significa mais uma vez mente eacute causa de um pensar vagante Isto significa que
Parmecircnides natildeo se refere a uma falta de recursos geneacuterica agrave limitaccedilatildeo geneacuterica dos βροτοὶ em
relaccedilatildeo aos deuses mas agrave falta de recursos na mente pois ele especifica claramente a falta em seus
peitos (ἀμηχανίη ἐν αὐτῶν στήθεσιν) Natildeo se trata da incapacidade do homem mas da
incapacidade da mente humana Mais uma vez a deusa antes expotildee seu pensamento com uma
afirmaccedilatildeo e depois explica o porquecirc daquela afirmaccedilatildeo Ela afirma que os mortais inventam
caminhos e explica porque (γὰρ) a incapacidade de suas mentes guia (ἰθύνει) um pensamento
errante Entatildeo a ἀμηχανίη eacute a causa do comportamento mental dos humanos quando afirmam e se
desmentem (δίκρανοι) e quando exercem um intelecto errante (πλακτὸν νόον) Mais uma vez a
mente estaacute descrita em sua operaccedilatildeo e por causa da qualificaccedilatildeo (πλακτὸν) eacute faacutecil entender que se
trata da mente operante entretanto a noccedilatildeo permaneceraacute ambiacutegua se se utilizarem os termos mais
comuns de traduccedilatildeo a saber pensamento intelecto e similares como eacute faacutecil constatar em muitos
estudos104 Por isso a traduccedilatildeo aqui proposta para o νοῆσαι de 22 (e seus cognatos) operaccedilotildees
104 A seguir um exemplo de como a descriccedilatildeo parmenidiana arcaicamente concreta e limitada ao seu contexto
histoacuterico-epistemoloacutegico se torna uma discussatildeo gnosioloacutegica geral a respeito do objeto da mente lanccedilando
Parmecircnides numa dimensatildeo filosoacutefica que apareceraacute muito mais tarde talvez somente na Idade Meacutedia Ademais
como veremos no proacuteximo capiacutetulo Parmecircnides mostra que eacute impossiacutevel mesmo para os mortais que a mente
fique sem objeto razatildeo pela qual a interpretaccedilatildeo abaixo pertencente agrave visatildeo intelectualizada de Parmecircnides natildeo
consegue colher a profundidade de sua filosofia Diz Curd (1991 247) ldquoAt B65-6 the Goddess says that
helplessness (amechanie) guides their wandering noos (ithunei plakton noon) and the implication is that mortals
having failed to keep their thought from the forbidden route are guided by a mistaken deceived and altogether
77
cognitivas torna clara a expressatildeo parmenidiana principalmente nos proacuteximos versos motivos de
inuacutemeras discussotildees De fato os efeitos da ἀμηχανίη satildeo articulados mais ainda nos versos
seguintes
4) οἱ δὲ φοροῦνται κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί Este grupo de palavras faz referecircncia a uma mesma
noccedilatildeo onde o termo mais importante e que ilumina o sentido eacute ὁμῶς lsquosemelhante arsquo105 O sujeito
gramatical οἱ se refere ainda a βροτοὶ e estes satildeo levados (φοροῦνται) de forma semelhante a
helpless noos Mortals fail in controlling noos not understanding its proper object they fail to steer it properly So
their noos wanders having no object on which to fix In such a state and on such a route (see B71-2) they can
never hope to reach persuasive truth which is itself connected with what isrdquo [sublinhado meu]
Um outro exemplo pode ser visto em Palmer (2009 p 114-118) que depois de uma meticulosa anaacutelise filoloacutegica
bastante interessante acaba concluindo ndash mais uma vez em chave gnosioloacutegica e fazendo do poema um todo
inarticulado argumentando simultaneamente com o fr 2 o 6 o 8 e os demais ndash que ldquoTheir error [dos mortais]
consists in supposing that a proper object of understanding may be subject to the variableness of being bound up
in their conception of it as being and not being the same and not the samerdquo e mais adiante ldquoHowever since their
being is merely contingent Parmenides thinks there can be no stable apprehension of them no thoughts about them
that remain steadfast and do not wander and thus no knowledge no true or reliable conviction According to
Parmenides genuine conviction cannot be found by focusing onersquos attention on things that are subject to change
It comes only from focusing on what is not subject to changerdquo Mais uma vez o percurso parmenidiano eacute
desvirtuado De fato a preocupaccedilatildeo de Parmecircnides eacute o caminho de investigaccedilatildeo que permita distinguir a convicccedilatildeo
verdadeira da falsa mas o que transparece dessas palavras (se eu bem as entendi) eacute que a convicccedilatildeo verdadeira estaacute
associada agraves coisas natildeo sujeitas agrave mudanccedila
Verdenius chega mais perto da proposta metodoloacutegica de Parmecircnides ldquoDo ponto de vista humano eles proacuteprios
satildeo responsaacuteveis por sua fraqueza pois satildeo agentes livres para formar suas opiniotildees Do ponto de vista coacutesmico
significa que suas κρᾶσις μελέων satildeo destituiacutedas de princiacutepio condutor Eles erram para sempre (πλάττονται) ao
longo de caminhos humanos (fr 127 πάτος ἀνθρώπων) e natildeo tecircm parte nenhuma na Verdade divina porque tecircm
um πλαγκτὸς νόος no sentido metodoloacutegico isto eacute in malam partemrdquo ldquoFrom the human point of view they
themselves are responsible for this weakness as they are free agents in forming their opinion From the cosmic
point of view it means that their κρᾶσις μελέων is devoid of a leading principle They are forever wandering
(πλάττονται) along human roads (fr 127 πάτος ἀνθρώπων) and have no part in the divine Truth because they
possess a πλαγκτὸς νόος in the methodical sense i e in malam partemrdquo (Verdenius 1964 p 14) 105A maioria dos estudiosos talvez pressupondo um sentido retoacuterico-metafoacuterico traduz seguindo Diels (1989 p233)
ldquozugleichrdquo por exemplo ldquoat oncerdquo (Palmer p 114) ldquoad un tempordquo (Reale 1991 p 95) ldquotatildeo surdos como cegosrdquo
(Santoro 2011 p 91) ldquoat the same timerdquo (Taraacuten 1965 p 54) Alguns traduzem de forma diferente por exemplo
ldquociegos y sordosrdquo (Cordero 2005 p 219 que simplesmente natildeo traduz ὁμῶς) ldquodeaf and blind alike in
bewildermentrdquo (Coxon p 58 que ligando ὁμῶς a τεθηπότες entende como se estivessem atordoados) Alguns
traduzem eu penso de forma mais correta semelhante a como alguns exemplos ldquodeaf alike and blindrdquo (Barnes
1982 p 124) ldquodeaf and blind alikerdquo (Long 1975 p 85) e ldquocomo surdos e cegosrdquo (Cavalcante de Souza 1978 p
142)
78
surdos e cegos (κωφοὶ ὁμῶς τυφλοί) Natildeo satildeo surdos e cegos mas eacute como se o fossem106 O verbo
φοροῦνται aqui um passivo de φορέω aponta mais uma vez para a ἀμηχανίη da mente como
condutora dos βροτοὶ e logo como causa deles serem levados Por que a mente sem recursos
conduz os homens como se fossem surdos e cegos A mente dos mortais opera com operaccedilotildees
cognitivas errantes (πλακτὸν νόον) porque lhes falta um instrumento (ἀμηχανίη) que possa ser
usado para realizar um artifiacutecio A falta deste instrumento faz agir os mortais como surdos e cegos
isto eacute como se fossem insensiacuteveis sem os sentidos como se houvesse uma falta de percepccedilatildeo Nas
palavras de Parmecircnides eacute muito clara a individuaccedilatildeo do papel da mente na percepccedilatildeo da realidade
Os mortais tecircm olhos e ouvidos mas sem um certo instrumento na mente eacute como se natildeo os
tivessem Assim a censura aqui eacute contra algum tipo de comportamento mental que eacute como uma
falta de sensibilidade o que significa que eacute como uma falta de dados que venham da realidade para
a construccedilatildeo do caminho correto na mente A ligaccedilatildeo entre a sensorialidade e a correccedilatildeo do
argumentar eacute testemunhada ainda em nossas liacutenguas atuais e palavras como evidecircncia clareza e
outras mostram como a descriccedilatildeo da sensaccedilatildeo de estar argumentando corretamente estaacute ligada agrave
descriccedilatildeo da nitidez da percepccedilatildeo sensorial mesmo natildeo sendo uma descriccedilatildeo sensorial mas tatildeo
106Eacute interessante notar que mesmo traduzindo ὁμῶς como semelhante a muitos criacuteticos carregam o sentido metafoacuterico
em direccedilatildeo do alvo errado Tecnicamente surdos e cegos define uma metaacutefora mas mais uma vez se trata da
tentativa de Parmecircnides de descrever sensaccedilotildees dinacircmicas e fatos mentais concretos para os quais ele natildeo dispunha
de vocabulaacuterio pronto Os criacuteticos parecem esquecer que Parmecircnides estaacute falando de caminhos do pensar e natildeo de
uma teoria geral do conhecimento humano Ao estender o campo para uma teoria geral eles abrem espaccedilo para a
discussatildeo do papel dos sentidos na funccedilatildeo cognitiva geral do homem Vejam-se essas palavras de Long (1975 p
87) ldquoNow the deafness and blindness might be a part of the rhetorical description which culminate in τεθηπότες
ἄκριτα φῦλα [hellip] and largely metaphorical Or it may if only indirectly be connected with the condemnation of
sense perception in B 73-5rdquo Ora natildeo haacute metaacutefora retoacuterica na fala da deusa mas uma descriccedilatildeo sofrida por falta
de vocabulaacuterio culturalmente assentado de comportamentos mentais e o ὁμῶς deveria servir de alerta Nem haacute
uma condenaccedilatildeo dos sentidos porque simplesmente Parmecircnides natildeo estaacute falando dos sentidos mas dos caminhos
do pensar das operaccedilotildees cognitivas estaacute falando da mente dizendo que nos caso dos βροτοὶ ela se comporta
como se fosse surda e cega
79
somente a descriccedilatildeo de estados mentais usando metaforicamente expressotildees referidas aos sentidos
5) τεθηπότες ἄκριτα φῦλα Mais duas noccedilotildees estritamente psicoloacutegicas τεθηπότες
atordoados uma condiccedilatildeo psicoloacutegica que pode ser interpretada de muitas maneiras mas todas
acabam fazendo referecircncia a uma natildeo nitidez mental107 E eacute o atordoamento resultado da condiccedilatildeo
similar agrave surdez e cegueira que faz dos βροτοὶ um tipo humano especiacutefico ἄκριτα φῦλα um povo
sem capacidade de operar a κρίσις isto eacute a distinccedilatildeo entre ser e natildeo ser pois para eles ser e natildeo ser
satildeo o mesmo e natildeo o mesmo (οἷς τὸ πέλειν τε καὶ οὐκ εἶναι ταὐτὸν νενόμισται κοὐ ταὐτόν) As
operaccedilotildees cognitivas erram porque haacute uma falta na mente de um recurso um instrumento mental
que torne possiacutevel a distinccedilatildeo de ser e natildeo ser Sem esse recurso as operaccedilotildees cognitivas natildeo tem
direccedilatildeo certa De fato
6) πάντων δὲ παλίντροπός ἐστι κέλευθος O fragmento fecha com esta afirmaccedilatildeo muito
discutida108 sobre a reversibilidade do caminho Mais do que reversibilidade penso que seria
oportuno falar de contra-direccedilatildeo109 que mesmo sendo uma traduccedilatildeo muito literal rende bem a ideia
do conflito entre ser e natildeo ser que Parmecircnides quer ressaltar Mais uma vez temos a descriccedilatildeo de
107 Ruggiu (1975 p 143) ldquoO paralelo do conceito parmenidiano com Odisseia XXIII105 eacute instrutivo no trecho
homeacuterico a grande surpresa impede Peneacutelope de falar οὐδέ τι προσφάσθαι δύναμαι ἔπος οὐδ ἐρέεσθαι οὐδ εἰς
ὦπα ἰδέσθαι ἐναντίον Isto eacute trata-se de uma forma de atordoamento que impede ao mesmo tempo de ver e de
expressar com palavrasrdquo 108Muito discutida porque muitos estudiosos gostam de discutir os caminhos sua quantidade e caracteriacutesticas Se se
utilizassem as palavras modernas menos sugestivas e mais prosaicas processo ou procedimento talvez natildeo
ocorressem tantas discussotildees Eacute verdade que eacute o proacuteprio Parmecircnides que ao colocar sua exposiccedilatildeo dentro de uma
moldura miacutestico-religiosa propicia esses entendimentos simboliacutesticos (por exemplo caminho como siacutembolo do
rumo certo em direccedilatildeo a um estaacutegio superior de vida) mas eacute verdade tambeacutem que o leitor moderno natildeo deveria ser
o mesmo da audiecircncia de Parmecircnides nos seus tempos O κέλευθος aqui eacute um processo mental uma dinacircmica
portanto um fenocircmeno da natureza (humana) e natildeo um caminho a seguir ou a natildeo seguir segundo sugestotildees miacutestico-
esoteacutericas para alcanccedilar algum segredo de natureza superior 109Um exemplo jaacute em Homero (reportado por LSJ) mostra este sentido na Iliacuteada (956) depois da fala de Diomedes
Nestor diz ldquohellip Natildeo poderaacute dos Acasos presentes nenhum censurar-te por teu discurso nem mesmo objetar-te
(οὐδὲ πάλιν ἐρέει)rdquo (trad Nunes 2001)
80
um comportamento mental ndash aqui caracteristicamente cognitivo pois se trata do caminho de
inqueacuterito ndash definido confusional onde afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo porque
haacute uma falta de discernimento
3253 Conclusatildeo do fragmento 6
O fragmento 6 a partir do verso 4 eacute uma descriccedilatildeo do comportamento mental dos mortais
os quais por natildeo possuiacuterem certo recurso uma certa capacidade de discernimento se comportam
mentalmente como surdos e cegos isto eacute se comportam de maneira intelectualmente confusa
(τεθηπότες) logo natildeo sabem discernir (satildeo ἄκριτα φῦλα) e afinal quando tecircm que explicar o
mundo desmentindo a si mesmos (δίκρανοι) acabam produzindo falsos caminhos (πλάττονται) de
inqueacuterito A maioria dos estudiosos enfatiza aqui a parte negativa o caminho a natildeo ser seguido a
confusatildeo dos mortais em oposiccedilatildeo ao ser coraccedilatildeo da verdade cujos sinais seratildeo mostrados no
fragmento 8 Eu penso que Parmecircnides estaacute descrevendo os limites dos mortais tendo em vista um
processo mais concreto e mais limitado Natildeo se trata de comparar os limitados mortais com a
potecircncia divina mas de acusar uma falha na estrutura psicoloacutegica que opera a argumentaccedilatildeo Agrave
falha Parmecircnides daacute o nome de ἀμηχανίη realizando assim um perfeito diagnoacutestico psicoloacutegico
pois as demais descriccedilotildees que redundam em falta de discernimento satildeo os resultados de uma falta
(seria improacuteprio falar em disfunccedilatildeo) psiacutequica falta aos mortais um instrumento que os conduza
pelo caminho da persuasatildeo verdadeira Claramente a deusa tem este instrumento e eacute tarefa dela
ensinaacute-lo ao disciacutepulo de forma que Parmecircnides pela voz de sua deusa em seu programa didaacutetico
se propotildee a ensinar essa autecircntica μηχανή um instrumento artificial que permita preencher a lacuna
dos mortais (entre os quais eacute necessaacuterio incluir o kouros embora ele tenha recebido um destino
diferente dos βροτοὶ um destino que natildeo eacute de infelicidade μοῖρα κακὴ) Ou seja existe e eacute
81
possiacutevel ensinaacute-lo um certo instrumento com o qual os mortais podem sair de seu estado de ἄκριτα
φῦλα e finalmente distinguir a persuasatildeo verdadeira da persuasatildeo natildeo verdadeira No fragmento 7
esta temaacutetica seraacute aprofundada
326 O fragmento 7
3261 Generalidades
O fragmento 7 comeccedila com as palavras de Platatildeo e continua com citaccedilotildees de Sexto Simpliacutecio
e Dioacutegenes Laercio mas natildeo entraremos em questotildees exegeacuteticas pois estamos interessados
principalmente no vocabulaacuterio psicoloacutegico e a disposiccedilatildeo dos fragmentos no poema nos interessa
menos110 Vejamos o texto aqui na ediccedilatildeo Diels-Kranz (DK B 7)
110Como se sabe a disposiccedilatildeo dos fragmentos colhidos nas citaccedilotildees dos doxoacutegrafos eacute um quebra-cabeccedila autocircnomo
para o estudioso A versatildeo que estamos utilizando aqui eacute a de Diels-Kranz porque eacute a mais utilizada embora muitos
editores proponham outras sequecircncias No caso do fragmento 7 ele eacute um collage realizado por Diels que natildeo eacute
unanimidade e eacute utilizado desta forma principalmente por comodidade didaacutetica Os primeiros dois versos satildeo
tomados de Platatildeo enquanto os restantes satildeo tomados de Sexto Empiacuterico O fato notaacutevel principal eacute que Sexto cita
estes versos numa sequecircncia uacutenica com os versos conhecidos como fragmento1 ou seja segundo ele estes versos
pertencem agrave parte inicial do poema Embora outras citaccedilotildees de Sexto sejam consideradas pelos estudiosos como
feitas de memoacuteria ou sem cuidado literaacuterio ndash razatildeo pela qual ele eacute tido como doxoacutegrafo natildeo muito confiaacutevel e pela
qual tambeacutem Diels aceitou considerar estes versos uma emenda improacutepria feita por Sexto ao fragmento 1 ndash a citaccedilatildeo
eacute precisa demais para autorizar dissociar a uacuteltima parte (os versos em questatildeo) e colocaacute-la depois do fragmento 6
O que pesou a favor desta decisatildeo natildeo soacute de Diels mas de muitos outros eacute que esses versos parecem reapresentar
e aprofundar a descriccedilatildeo de um terceiro caminho logo soacute podiam estar depois do fragmento 2 que apresenta os
primeiros dois e depois do fragmento 6 que parece apresentar pela primeira vez no poema o terceiro caminho Ora
um dos dogmas exegeacuteticos que veio a cair entre os estudiosos ao longo do seacuteculo passado foi exatamente a
existecircncia de um terceiro caminho tanto pelos que passaram a defender somente dois caminhos (Cordero e outros)
quanto pelos que passaram a defender a ideia de uma multiplicidade de caminhos (por exemplo Couloubaritsis
fala ateacute mesmo em dez caminhos) razatildeo pela qual natildeo haacute mais nenhuma razatildeo exegeacutetica que impotildee a colocaccedilatildeo
desses versos depois do fr 6 e a discussatildeo permanece em aberto Na minha leitura do poema esses versos podem
muito bem permanecer no fragmento 1 sem gerar nenhum conflito exegeacutetico no entanto a questatildeo levantada no
fragmento 7 natildeo eacute relevante para os fins do esclarecimento da noccedilatildeo de natildeo ser em Parmecircnides nosso propoacutesito
primeiro logo esta questatildeo natildeo nos interessa de perto Por outro lado com referecircncia ao Parmecircnides psicoacutelogo em
pauta agora a colocaccedilatildeo do fragmento tambeacutem natildeo tem muita relevacircncia porque nos interessa apenas fazer um
levantamento do vocabulaacuterio psicoloacutegico do poema tal levantamento natildeo precisa do esforccedilo da compreensatildeo do
82
οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῆι εἶναι μὴ ἐόντα
ἀλλὰ σὺ τῆσδ ἀφ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόημα
μηδέ σ ἔθος πολύπειρον ὁδὸν κατὰ τήνδε βιάσθω
νωμᾶν ἄσκοπον ὄμμα καὶ ἠχήεσσαν ἀκουήν
καὶ γλῶσσαν κρῖναι δὲ λόγωι πολύδηριν ἔλεγχον
ἐξ ἐμέθεν ῥηθέντα
O valor filosoacutefico destas palavras eacute inestimaacutevel De fato encontramos aqui a primeira
formulaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que se tornaraacute famoso com Aristoacuteteles mas numa
versatildeo muito diferente Aqui estamos interessados apenas no vocabulaacuterio psicoloacutegico de
Parmecircnides portanto pularemos os primeiros dois versos os quais seratildeo tratados no proacuteximo
capiacutetulo (e para o qual enviamos o leitor) notando apenas a reapresentaccedilatildeo da questatildeo baacutesica de
Parmecircnides a individuaccedilatildeo diferenciaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo de caminhos de pesquisa para as operaccedilotildees
cognitivas Mais uma vez ele apresenta uma ὁδός διζήσιος (caminho de pesquisa portanto
processos mentais cognitivos) da qual poreacutem desta vez pede que o kouros mantenha afastado o
seu pensar indagador (εἶργε νόημα) ou seja as operaccedilotildees cognitivas da mente Jaacute os versos
sucessivos iratildeo requerer nossa atenccedilatildeo especial porque estatildeo repletos de muacuteltiplos sentidos A
interpretaccedilatildeo geral eacute que dada a radical oposiccedilatildeo entre ser e natildeo ser eacute necessaacuterio se manter afastado
do caminho que afirma que ser e natildeo ser satildeo o mesmo e natildeo o mesmo especificamente eacute preciso
tomar cuidado com a cultura herdada a qual forccedila a percepccedilatildeo para um desentendimento Assim
poema como um todo tarefa para a qual seria muito importante esclarecer a ordenaccedilatildeo ao menos provaacutevel dos
fragmentos Para o aprofundamento dessa questatildeo do terceiro caminho a literatura secundaacuteria eacute fecunda e generosa
Pode se ver um resumo dos estudos da primeira metade do seacuteculo passado em Untersteiner (1979 p CCXXVI n
52) pode se ver um estudo obsessivo da questatildeo em OBrien (1987 p 135 et passim) e pode se observar ao se
correr a literatura mais recente como certas escolas datildeo por certo o terceiro caminho principalmente as anglocircfonas
(exemplos recentes Crystal 2002 p 26 Wedin 2011) enquanto as escolas mais francoacutefonas tendem a uma
discussatildeo menos riacutegida
83
por causa dos haacutebitos culturais olhos natildeo vecircem ouvidos e liacutengua se confundem e a veemecircncia dos
discursos leva a um julgamento ruim isto eacute herdado das noccedilotildees argumentadas naqueles discursos
Mas esta interpretaccedilatildeo eacute controversa ademais principalmente a parte referente ao uacuteltimo verso (fr
75) estaacute longe das preferecircncias dos estudiosos de fato este verso recebeu recentemente uma nova
interpretaccedilatildeo que eu acho eacute muito pertinente e que aceito como a melhor disponiacutevel atualmente
embora radicalmente diferente daquela da grande maioria dos estudiosos Falando genericamente
em relaccedilatildeo a este fragmento as posiccedilotildees dos estudiosos se dividem em dois grupos haacute um grupo
que simplesmente esquece que o assunto principal satildeo os comportamentos mentais (v 2 ὁδός
διζήσιος) e afirma que Parmecircnides estaacute falando contra a veracidade do testemunho dos sentidos111
jaacute outros estudiosos percebem que a discussatildeo verte sobre questotildees de meacutetodo de pesquisa112
A deusa continua dando suas instruccedilotildees imperativas e diz nem o haacutebito que foi
experimentado muitas vezes te force sobre aquele caminho Eacute realmente interessante a capacidade
de Parmecircnides de sintetizar em poucas palavras um conteuacutedo tatildeo grande A deusa estaacute falando de
caminhos de operaccedilotildees cognitivas ao longo dos quais os pensamentos podem seguir uma
sequecircncia que noacutes chamamos de argumento Ela dissera que haacute bons e maus argumentos (os de
persuasatildeo verdadeira e os de persuasatildeo natildeo confiaacutevel fr 129-30) e tambeacutem explicara (fr 2 veja-
se o capiacutetulo 4 p 97) que os bons argumentos satildeo o resultado de um recurso especial da mente na
falta do qual os mortais satildeo capazes apenas de produzir maus argumentos pois eles acreditam que
111Reporto aqui somente os editores Coxon (2009 p 308) ldquoParmenides repeats the warning given in fr 5 (DK B 6)
against believing in the reality o f sensible objectsrdquo Taraacuten (1965 p 78) ldquoWhat Parmenides says in this passage
(vv 3-5) is that senses are responsible for the acceptance of the way of non-Beingrdquo 112Por exemplo Untersteiner (1979 p) ldquoexatamente ἀμηχανίη corresponde a ἔθος πολύπειρον que eacute propriamente
a causa da ἀμηχανίη porque corresponde agrave atitude mesquinha determinada pelo haacutebitordquo
84
ser e natildeo ser satildeo o mesmo e natildeo o mesmo mas diz a deusa ser e natildeo ser natildeo satildeo o mesmo pois
nunca os natildeo entes se tornam ser (essas uacuteltimas palavras satildeo a noccedilatildeo expressa nos dois primeiros
versos do nosso fragmento 7) Por esta razatildeo diz ela fique longe daquele caminho e natildeo deixe que
o repetido haacutebito te obrigue a permanecer nele
3262 Haacutebitos culturais o verso 73 ἔθος πολύπειρον
A deusa sugere ao kouros de ficar afastado daquele caminho e ao mesmo tempo de evitar
ser forccedilado sobre ele (cuidando de olhos ouvidos e liacutengua veja adiante) pelo haacutebito
multiexperiente Que haacutebito eacute este Eacute um haacutebito de comportamento da mente ou nas palavras de
Parmecircnides um haacutebito de maneira de pensar A palavra πολύπειρον significa experimentado
muitas vezes113 Esta experiecircncia do pensar seguindo um certo caminho eacute repetido muitas vezes
ateacute que se torna um haacutebito isto eacute um automatismo da mente114 Podemos ver nestas palavras uma
113Calogero ao inveacutes de muacuteltipla experiecircncia traduz de forma incorreta experiecircncia da multiplicidade (ldquoabitudine
allesperienza del molteplicerdquo 1977 p38) Verdenius traduz corretamente (ldquocustom that comes of much
experiencerdquo) mas interpreta a expressatildeo como uma percepccedilatildeo da inconstacircncia ldquoThe method underlying this third
way has the same character of inconstancyrdquo (1964 p 55) 114Mesmo entre aqueles que aceitam que o fragmento se refere ao caminho de pesquisa (da mente) e natildeo agrave capacidade
dos sentidos de descrever corretamente a realidade se datildeo incongruecircncias por exemplo Cerri (1999 p 62) afirma
que ἔθος πολύπειρον eacute um ldquovezzo di molto sapere labitudine inveterata a collezionare notizie in effetti polypeiriacutea
(sostantivo) polyacutepeiros (aggettivo) eacute in greco strettamente sinonimo di historiacutea e di polymathiacuteardquo e traz dois
exemplos um de Plutarco falando de Solon que em juventude viajara para o Oriente natildeo para comeacutercio ou para se
enriquecer mas para ldquomultiplicar a experiecircncia e a investigaccedilatildeo de conhecimento (polypeiriacuteas heacuteneka kaigrave
historiacuteas) A outra em Platatildeo (Leg 7 811 a-b) onde ele criticando a praxe escolar de memorizar
indiscriminadamente define esta falsa cultura de polypeiriacutea e polymatia Cerri afinal interpreta que a exortaccedilatildeo a
se manter afastados desse caminho coincide com uma criacutetica (de sabor muito heraclitiano) contra aqueles ldquosapientirdquo
que foram desviados pela polymatiacutea Mais adiante (p 217) comentando o verso 4 ele diz ldquoA metaacutefora do olhar
cego e do ouvido surdo eacute retomada aqui como imagem da impotecircncia intelectual dos saberes tradicionais
imiscuidos nas aparecircncias da multiplicidade errantes no caminho do natildeo eacuterdquo Por um lado Cerri afirma que
Parmecircnides se refere aos ldquosaacutebiosrdquo que usavam de polimathiacutea (E quem seriam esses saacutebios Talvez aqueles que
Heraacuteclito criticava pelos mesmos motivos Estaria Cerri confundindo Parmecircnides com Heraacuteclito) e por outro lado
afirma que se trata de uma criacutetica aos saberes tradicionais Ora a natildeo ser que se considerem ldquosaberes tradicionaisrdquo
85
observaccedilatildeo a respeito da formaccedilatildeo da maneira de pensar algo que noacutes chamamos forma mentis115
A maneira de pensar costumeira dos mortais eacute aprendida Esta aprendizagem eacute obtida pela
repeticcedilatildeo os mortais repetem muitas vezes aquele tipo de maneira de pensar ateacute que se torne
haacutebito Parmecircnides descreve o processo cultural de configuraccedilatildeo da forma mentis dos povos (φῦλα
fr 67) Que a maneira de pensar fosse algo relativo a cada cultura era fato conhecido Temos um
exemplo muito claro em Xenoacutefanes quando diz
ldquoMas os mortais acreditam que os deuses satildeo gerados
que como eles se vestem e tecircm voz e corpordquo
e
ldquoOs egiacutepcios dizem que os deuses tecircm nariz chato e satildeo negros
os traacutecios que eles tecircm olhos verdes e cabelos ruivosrdquo
Aqui Xenoacutefanes diz que os mortais tecircm sua proacutepria maneira de pensar (neste caso a respeito dos
deuses) e que cada povo tem suas crenccedilas Assim o processo cultural de aprendizagem com
diferenccedilas em cada cultura era conhecido e Xenoacutefanes mostra quais eram essas diferenccedilas
as noviacutessimas pesquisas dos jocircnicos e dos itaacutelicos o alvo recai sobre as antigas histoacuterias natildeo soacute as homeacutericas mas
como se percebe pelas criacuteticas de Xenoacutefanes tambeacutem sobre as mitologias locais em geral No entanto Parmecircnides
faz uma criacutetica mais radical porque o ἔθος πολύπειρον natildeo se refere ao comportamento de uma pessoa mas de
uma maneira de pensar isto eacute haacute uma generalizaccedilatildeo que vai muito aleacutem da criacutetica de Heraacuteclito agrave polymathiacutea
Nas citaccedilotildees platocircnicas (Leg 811a-b e 819a) polymathiacutea e polypeiriacutea natildeo tecircm uma conotaccedilatildeo negativa pelo
sentido comum das duas palavras eacute Platatildeo que critica esse tipo de aprendizagem quando ela estaacute unida a uma maacute
conduccedilatildeo (κακῆς ἀγωγῆς) Por outro lado Parmecircnides estaacute se referindo ao ἔθος πολύπειρον (e natildeo agrave πολυπειρία)
daqueles que trilham a ὁδός διζήσιος da qual a deusa recomenda afastamento ou seja se refere aos βροτοὶ Ademais
Cerri natildeo cita Tuciacutedides numa eacutepoca muito mais proacutexima de Parmecircnides para o qual πολυπειρία significa tatildeo
somente muito experiente (δι ὅπερ καὶ τὰ τῶν Ἀθηναίων 17141 ἀπὸ τῆς πολυπειρίας ἐπὶ πλέον ὑμῶν
κεκαίνωται) tambeacutem em Aristoacutefanes Lis 1109 significa tatildeo somente muito experiente (Χαῖρ ὦ πασῶν
ἀνδρειοτάτη δεῖ δὴ νυνί σε γενέσθαι δεινὴν ltμαλακήνgt ἀγαθὴν φαύλην σεμνὴν ἀγανήν πολύπειρον) 115Barnes capta a questatildeo da forma mentis mas aparentemente de forma curiosa e involuntaacuteria pois a aplica de um
jeito singular Ele acha que os versos 3-6 longe de constituirem um argumento ceacutetico contra os sentidos satildeo um
alerta ao puacuteblico para natildeo recorrer aos sentidos para julgar as suas teses ldquoParmenides diz nada mais que isto Se
vocecirc pensa que meu argumento estaacute errado entatildeo prove [com a razatildeo ndt] que estaacute errado natildeo recaia na preguiccedila
do senso comumrdquo (1982 p 298) Na opiniatildeo de Barnes Parmecircnides pede que a razatildeo seja aplicada somente
contra o argumento dele e natildeo em todo o caminho de pesquisa
86
descrevendo-as e criticando-as Mas seu disciacutepulo Parmecircnides vai aleacutem pois ele diz como uma
maneira de pensar pode configurar uma cultura e como uma cultura pode configurar uma maneira
de pensar De fato o haacutebito multiexperiente de pensar eacute uma configuraccedilatildeo cultural do pensar eacute a
maneira de pensar aprendida pela repeticcedilatildeo numa certa imersatildeo cultural Ao mesmo tempo esta
maneira de pensar originada por uma certa cultura pode forccedilar todos os pensamentos naquele rumo
do pensar constrangendo aqueles pensamentos dentro da maneira de pensar daquela cultura afinal
reproduzindo aquela cultura Assim Parmecircnides explicando como funciona o processo de
aprendizagem faz uma criacutetica severa contra a maneira tradicional de pensar aquela que se reproduz
pela repeticcedilatildeo forccedilando os pensamentos (as operaccedilotildees cognitivas) a permanecer sobre seu proacuteprio
caminho (a cultura tradicional) do pensar Isto significa que aleacutem da criacutetica cultural agrave maneira de
pensar tradicional haacute tambeacutem uma criacutetica agrave educaccedilatildeo e afinal agrave maneira especiacutefica (aquela da
investigaccedilatildeo) de pensar da tradiccedilatildeo
Muitos estudiosos querem ver essas criacuteticas como dirigidas a uma ou outra escola de
pensamento a algum pensador ou outro Mas os outros pensadores e suas escolas (Jocircnicos e
Pitagoacutericos) eram recentes e proacuteximos no tempo a Parmecircnides de forma que natildeo podem justificar
a expressatildeo ἔθος πολύπειρον o haacutebito multiexperiente Natildeo haacute outra opccedilatildeo em nenhum outro lugar
o alvo de Parmecircnides eacute o pensamento tradicional aquele pensamento que noacutes chamamos de
pensamento miacutetico116 Apesar do fato de ser uma deusa que diz isto a criacutetica de Parmecircnides se
116Uma criacutetica similar eacute feita por Heraacuteclito no fragmento DK 21 B 40 ldquoMuita instruccedilatildeo natildeo ensina a ter inteligecircncia
pois teria ensinado Hesiacuteodo e Pitaacutegoras Xenoacutefanes e Hecateu (πολυμαθίη νόον ἔχειν οὐ διδάσκει Ἡσίοδον γὰρ ἂν
ἐδίδαξε καὶ Πυθαγόρην αὖτίς τε Ξενοφάνεά τε καὶ Ἑκαταῖον)rdquo (Trad Cavalcante de Souza p 79) Mas a criacutetica
de Heraacuteclito natildeo eacute contra uma maneira de pensar tanto eacute verdade que junta poetas tradicionais e natildeo tradicionais
(Hesiacuteodo e Xenoacutefanes) e personalidades tatildeo diferentes quanto Pitaacutegoras um pesquisador de ambiente miacutestico e
Hecateu um pesquisador de ambiente pragmaacutetico como o eacute aquele de um geoacutegrafo De forma que Heraacuteclito estaacute
87
dirige agrave maneira tradicional de pensar ndash e natildeo haacute outro candidato a natildeo ser o pensamento miacutetico
na verdade o pensamento religioso pois noacutes chamamos mito o que para eles era religiatildeo ndash a qual
constrange os pensamentos (as operaccedilotildees cognitivas) por caminhos errantes (πλακτὸν νόον fr
66)
3263 Visatildeo audiccedilatildeo e liacutengua os versos 4 e 5
νωμᾶν ἄσκοπον ὄμμα καὶ ἠχήεσσαν ἀκουήν καὶ γλῶσσαν ldquoO haacutebito multiexperiente por esta
via natildeo te force exercer (νωμᾶν) sem visatildeo um olho (ἄσκοπον ὄμμα) e ressoante um ouvido
(ἠχήεσσαν ἀκουήν) e a liacutengua (γλῶσσαν)117 Mais uma vez Parmecircnides usa periacutefrases para explicar
sua visatildeo Se noacutes nos restringimos ao ponto de vista epistemoloacutegico aqui podemos ver apenas uma
metaacutefora de uma cogniccedilatildeo confusa e imprecisa Mas jaacute vimos a sensibilidade do eleata para a
observaccedilatildeo psicoloacutegica logo numa tal descriccedilatildeo das funccedilotildees psiacutequicas como haacutebito
multiexperiente eacute menos provaacutevel a introduccedilatildeo de uma metaacutefora e mais provaacutevel uma articulaccedilatildeo
com maiores detalhes da preacutevia descriccedilatildeo psicoloacutegica Como vimos no fragmento 6 os sentidos
imprecisos se referem a processos mentais e satildeo aqueles que natildeo possuem um certo recurso Assim
mesmo criticando a polymathiacutea isto eacute a erudiccedilatildeo seja ela tradicional ou natildeo Mas quando Heraacuteclito critica a
tradiccedilatildeo o faz a seu modo como por exemplo no fragmento DK 21 B 5 14 e 15 criticando genericamente uma
atitude cultural e natildeo atitudes de indiviacuteduos especiacuteficos Isto depotildee a favor da interpretaccedilatildeo cultural da passagem
em pauta de Parmecircnides o qual tem em comum com seus colegas (Heraacuteclito Xenoacutefanes e os demais naturalistas)
essa criacutetica ao pensamento miacutetico (religiatildeo tradicional) que ele desenvolve de maneira especiacutefica com uma criacutetica
ao comportamento mental 117Mais genericamente a criacutetica da segunda metade do seacuteculo passado em diante abandonou a interpretaccedilatildeo de uma
prevenccedilatildeo parmenidiana contra os sentidos e abraccedilou a ideia de uma advertecircncia contra mau uso dos sentidos A
grande maioria da criacutetica mais recente interpreta dessa segunda maneira embora tendo de escapar da sugestatildeo errada
do proacuteprio LSJ o qual no verbete νόημα traduz ldquoin Philos thought concept opp sensation sense-presentation
Parm 834 etcrdquo Com essa definiccedilatildeo para νόημα como tendo uma acepccedilatildeo de pensamento em oposiccedilatildeo a
sensaccedilatildeo a sugestatildeo de uma oposiccedilatildeo entre o νόημα de 72 e a descriccedilatildeo do papel sentidos nos versos 73-5 eacute ainda
mais forte
88
por exemplo um olho que natildeo vecirc eacute um olho que natildeo faz conexotildees mentais (operaccedilotildees cognitivas)
entre imagens que vecircm dos olhos fiacutesicos De novo as palavras de Xenoacutefanes podem nos ajudar
Ele diz ldquoMas os mortais acreditam que os deuses satildeo gerados que como eles se vestem e tecircm voz
e corpordquo onde isto significa eles natildeo percebem (natildeo veem) que se eles fossem gerados vestissem
roupas humanas e tivessem voz e corpo eles natildeo seriam deuses eles seriam humanos com todas
as consequecircncias aporeacuteticas que esta visatildeo implica O mesmo pode ser dito a respeito de outros
fragmentos de Xenoacutefanes pois Xenoacutefanes vecirc que cada povo cria seus deuses segundo sua proacutepria
imagem Em outras palavras um olho que natildeo vecirc eacute uma visatildeo que natildeo entende (natildeo conexiona) as
imagens que vecircm da realidade O mesmo pode ser dito do ouvido quando discursos ou histoacuterias
ou simples contos mesmo cheios de contradiccedilotildees satildeo capazes de persuadir quem tem um ouvido
ressoante (confuso) Assim o sentido aqui natildeo eacute metafoacuterico mas a descriccedilatildeo de um
comportamento mental neste caso especial a descriccedilatildeo de operaccedilotildees cognitivas
3264 Julgar pela fala os versos 5 e 6
κρῖναι δὲ λόγωι πολύδηριν ἔλεγχον ἐξ ἐμέθεν ῥηθέντα Todos os criacuteticos 118 traduzem
aproximadamente nesse teor ldquojulgue pela razatildeo a controversa tese por mim expostardquo Eacute
considerado um dos pontos altos do poema ao menos desde Plotino apesar das muitas dificuldades
histoacutericas de vir a acontecer uma estreia tatildeo eacuteclatant de uma palavra λόγος que teraacute uma fortuna
118Quase todos os criacuteticos traduzem ldquojulgue pela razatildeordquo ou com o equivalente ldquopelo argumentordquo A exceccedilatildeo se deve
aos pouquiacutessimos autores que consideram Parmecircnides uma figura de tipo xamacircnico e portanto para eles a razatildeo
natildeo eacute metro de juiacutezo da verdade No entanto ateacute mesmo Kingsley que defende exatamente essa interpretaccedilatildeo de
Parmecircnides mesmo traduzindo pela fala natildeo escapa de interpretar pela construccedilatildeo comum propondo afinal umas
alteraccedilotildees (ilegiacutetimas ele propotildee λόγου genitivo por λόγωι dativo) no texto grego segundo ele corrupto e
chegando ao seguinte resultado ldquobut judge in favor of the highly contentious demonstration of the truth contained
in the words as spoken by merdquo (Kingsley 2003 p 136-140)
89
sem iguais na histoacuteria futura da filosofia Eu proacuteprio aceitei essa traduccedilatildeo ao longo dos anos de
estudo do eleatismo pois como poderia enfrentar uma unanimidade entre os criacuteticos tatildeo coesa
Entretanto a linha das pesquisas dos uacuteltimos 50 anos tende a retirar do poema aquela paacutetina de
incrustaccedilatildeo platoniacutestica que recobre o poema e que foi depositada ao longo de mais de dois
milecircnios Esse trabalho de restauraccedilatildeo do poema vem sendo desenvolvido lentamente e quem se
propotildee a isto sabe da dificuldade de julgar se certa nuance eacute uma incrustaccedilatildeo do tempo ou pertence
agrave paleta parmenidiana Eu tambeacutem trabalhando nesse time me vi cerceado de duacutevidas ao
reinterpretar o emblemaacutetico ldquocoraccedilatildeo intreacutepido da verdade bem redondardquo com um muito mais
prosaico ldquoa mente firme da verdade bem conexardquo (Galgano 2012) Entatildeo natildeo eacute sem temor que
aceito e levo adiante uma interpretaccedilatildeo deveras mais prosaica de um colega estado-unidense
Christopher Kurfess que propotildee uma leitura ndash a meu ver ndash muito mais parmenidiana muito mais
pre-socraacutetica (aderente agrave eacutepoca) muito mais razoaacutevel dessa passagem A traduccedilatildeo de Kurfess eacute
assim ldquo
ldquoEssa leitura difusa que toma as palavras κρῖναι δὲ λόγῳ como um repuacutedio dos sentidos e
um comando para julgar pela razatildeo ou pelo argumento (racional) geralmente sem que se perceba
parece estar seguindo a direccedilatildeo da fonte estoacuteica (para a qual logos significava razatildeo [] Natildeo
somente a traduccedilatildeo de logos com razatildeo ou argumento eacute suspeita como tambeacutem a construccedilatildeo de
κρῖναι como um imperativo eacute tambeacutem problemaacutetico quando eacute lido no contexto da passagem como
um todo (como a citaccedilatildeo completa de Sexto nos permite fazer) [] Numa frase que comeccedila ἀλλὰ
σὺ τῆσδrsquo ἀφrsquo ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόημα ldquoMas tu afasta (teu) pensamento dessa via de pesquisardquo o
forte adversativo ἀλλὰ exerceria uma influecircncia sobre o resto da frase de forma que a partiacutecula mais
fraca δέ na frase κρῖναι δὲ λόγῳ dificilmente seria percebida como adversativa especialmente pela
ausecircncia de um μέν anterior Assim os dois infinitivos satildeo complementares com βιάσθω Isto altera
consideravelmente o sentido do todo
Mas tu afasta o pensamento desse caminho de pesquisa
e natildeo deixe que o haacutebito multiexperiente te force sobre este caminho
a exercer um olho sem alvo e um ouvido que ecoa
e a liacutengua e a julgar pela fala controverso o elenchos
90
por mim exposto
Nessa construccedilatildeo alternativa δὲ eacute conectivo κρῖναι um infinitivo complementar e com o
dativo λόγῳ ldquopela falardquo Parmecircnides natildeo estaacute fazendo uma afirmaccedilatildeo monumental marcando o
advento do discurso racional na histoacuteria humana mas a mais modesta (embora curiosa)
reivindicaccedilatildeo de que ao longo desse caminho assim como se deveria ser cauteloso em relaccedilatildeo
agravequilo que os sentidos podem apresentar (embora noacutes normalmente dependemos deles) assim
tambeacutem a fala (como eacute usada normalmente) natildeo seraacute instrumento totalmente confiaacutevel para a
compreensatildeo do ensinamento que a deusa iraacute oferecer Uma troca adicional nessa leitura eacute que
πολύδηριν agora eacute entendido como predicado acusativo A deusa natildeo estaacute dizendo que seu elenchos
eacute ldquocontroversordquo mas alertando o jovem contra julgaacute-lo assim devido agrave aplicaccedilatildeo errada do haacutebito
linguiacutestico Isto eacute o elenchos pode parecer controverso agravequeles muito preocupados com a maneira
de expressatildeo mas pela perspectiva que a deusa estaacute revelando isto seria um erro Lidas assim
estas linhas se tornam a primeira de vaacuterias passagens no poema onde a deusa aponta a natureza
potencialmente enganadora da fala dos mortais e da sua atitude a dar nomes119
119 Eis a passagem original por inteiro (Kurfess 2012 p 76-77) ldquoThis widespread reading which takes the words
κρῖναι δὲ λόγῳ as a repudiation of the senses and a command to judge by reason or (rational) argument appears to
be generally without appreciating the fact following the lead of the Stoic source (for whom logos did mean
ldquoreasonrdquo and much else besides) While the anachronistic understanding of logos is a major component of that
reading the influence of the Stoic source on how these lines have been read extends further Not only is translating
logos as ldquoreasonrdquo or ldquoargumentrdquo suspect but the construal of κρῖναι as an imperative is also problematic once it is
read (as Sextusrsquo fuller quotation allows us to do) in the context of the passage as a whole The Stoic source intends
for us of course to understand κρῖναι as an imperative (and such a construal led presumably to the form κρίνε
preserved in Sextus) but it seems as though he manages this by carefully selective quotation
Because the two portions of text cited by the source have generally in the scholarship of the last century or so
been thought to come from different places in the poem it has gone unnoticed or else been thought unremarkable
that compared to the proem as Sextus quotes it in full the Stoic source omits line 31 I think that the omission is
indeed remarkable and that the line was intentionally omitted because it was inconvenient for the Stoic reading of
the lines that follow In a sentence that has begun ἀλλὰ σὺ τῆσδrsquo ἀφrsquo ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόημα ldquoBut do you bar
(your) thought from this way of seekingrdquo the strong adversative ἀλλά is going to exercise an influence over the
remainder of the sentence such that the weaker particle δέ in the phrase κρῖναι δὲ λόγῳ is unlikely to be felt as
adversative especially in the absence of any preceding μέν It reads instead as a connective particle making the
infinitive κρῖναι parallel with νωμᾶν in the preceding line Both infinitives are thus complementary with βιάσθω
This alters the sense of the whole considerably We now understand the lines as follows
But do you bar thought from this way of seeking
And let not habit of much experience force you along this way
To ply an aimless eye and echoing hearing
And tongue and to judge by means of speech the elenchos
Spoken by me (to be) much-contending
On this alternative construal δὲ is connective κρῖναι a complementary infinitive and with the dative λόγῳ ldquoby
speechrdquo Parmenides is not making a monumental statement marking the advent of rational discourse into human
91
Essa traduccedilatildeo ldquonatildeo deixe que o haacutebito multiexperiente te force [] a julgar pela fala
controverso o elenchos120 por mim expostordquo me parece muito mais natural e fiel ao espiacuterito natildeo soacute
da eacutepoca e da mentalidade desses pensadores mas tambeacutem ao proacuteprio espiacuterito do texto Eu penso
embora Kurfess considere curioso o alerta de Parmecircnides que a deusa apresente um poderoso
argumento contra a retoacuterica dos discursos e natildeo soacute da retoacuterica culta ndash isto eacute agravequela referida ao
direito e agrave poliacutetica (Parmecircnides foi um poliacutetico bem-sucedido de uma polis eunocircmica121) ndash mas
tambeacutem da retoacuterica dos discursos sobre as estruturas e funccedilotildees do mundo (os mitos) aquela retoacuterica
consagrada pela tradiccedilatildeo de cadenciar e por que natildeo utilizar modelos formulares para ver o
mundo (weltanschaung) Diante da antiga cosmovisatildeo as novas tendecircncias culturais
principalmente as teoacutericas satildeo apenas teses controversas A deusa convida a natildeo considerar os
novos discursos como controversos de antematildeo exorta a deixar de lado os preconceitos e afinal
a examinar os argumentos (as falas) com cuidado
Esta interpretaccedilatildeo da letra do fragmento 7 natildeo altera o sentido geral da criacutetica de Parmecircnides
history but the more modest (though curious) claim that just as one should be wary along this way of what the
senses may present (though we regularly do depend upon them) so too speech (as regularly employed) is not going
to be a fully reliable instrument for comprehending the teaching which the goddess has to impart An additional
grammatical shift in this reading is that πολύδηριν is now understood as a predicate accusative The goddess is thus
not claiming that her elenchos is ldquomuch-contestingrdquo but warning the youth against judging it to be so due to a
mistaken application of linguistic habit That is while the elenchos might appear contentious to those too
preoccupied with the way it is expressed from the perspective that the goddess is revealing that would be an error
Read thus these lines become the first of a number of places in the poem where the goddess points out the
potentially deceptive nature of mortal speech and naming 120 Esta palavra eacute objeto de muitas e diferentes interpretaccedilotildees Aqui na busca de um vocabulaacuterio psicoloacutegico natildeo eacute
necessaacuterio se aprofundar mas resta o fato de que o sentido homeacuterico originaacuterio (reproche desgracie dissonou
LSJ) jaacute resulta alterado na eacutepoca de Parmecircnides O proacuteprio LSJ oferece esta passagem de Parmecircnides como
exemplo para o sentido de ldquoargumente off disporatildeo o refutativordquo No entanto este eacute o sentido utilizado em Platatildeo
em referecircncia agrave metodologia de Soacutecrates muitas deacutecadas depois Na literatura contemporacircnea a Parmecircnides com
raras exceccedilotildees o sentido principal eacute de teste ou prova Veja-se a respeito o oacutetimo estudo de Lester (1984) e com
metodologia similar mas com resultados diferentes Hurley (1989) 121Sobre a encomia de Eleacuteia e a nomothetia de Parmecircnides ver Mele 2005 e Mele 2006
92
ao saber tradicional mas ao mesmo tempo natildeo precisa recorrer ao anacronismo de uma invenccedilatildeo
ex novo e estrepitoso da razatildeo como criteacuterio epistecircmico absoluto Voltaremos a este assunto no
proacuteximo capiacutetulo quando esses temas seratildeo revistos agrave luz da proposta parmenidiana da oposiccedilatildeo
radical entre ser e natildeo ser e laacute veremos algo das novas problemaacuteticas que podem surgir desta
traduccedilatildeo
33 Resumo e conclusatildeo da primeira parte
Nesta parte de nossa investigaccedilatildeo escolhemos restringir o foco sobre aspectos psicoloacutegicos
do poema de Parmecircnides tentando evidenciar a habilidade do autor enquanto observador do
comportamento da mente humana Como instrumento primaacuterio de nossa averiguaccedilatildeo utilizamos
um sentido muito especial do verbo νοεῖν e dos seus cognatos extraiacutedo das proacuteprias qualificaccedilotildees
atribuiacutedas por Parmecircnides numa noccedilatildeo entre pensar que julgamos um conceito de abrangecircncia
grande demais e conhecer que julgamos um conceito ao mesmo tempo restrito demais na
medida em que se refere apenas a certo tipo de pensar aquele pensar direcionado ao conhecimento
especiacutefico de um objeto (mas como vimos para Parmecircnides o caminho do pensamento implica
tambeacutem saber ouvir ver se livrar de preconceitos isto eacute analisar com cuidado os argumentos)
e ao mesmo tempo excessivo por incluir todos os aspectos do conhecimento (um sujeito que
conhece um meio cognitivo e o resultado deste processo o conhecido) Ambos satildeo os mais usados
pelos estudiosos no caso do poema de Parmecircnides O termo escolhido foi operar cognitivamente
porque embora seja fortemente teacutecnico pode representar muito bem um filtro tanto para as
ambiguidades de pensar e conhecer quanto para a tentaccedilatildeo de ampliar a discussatildeo para os campos
epistemoloacutegicos ou filosoacutefico fora de tema nesta anaacutelise
Como resultados provisoacuterios nesta primeira parte da anaacutelise do poema do ponto de vista
93
psicoloacutegico podemos resumir o que segue
No fragmento 1 Parmecircnides descreve com linguagem que vem das sensaccedilotildees corporais a
experiecircncia da certeza e da duacutevida introduzindo o conceito de persuasatildeo como estagio
intermediaacuterio entre quem conhece e o que eacute conhecido a esta parte intermediaacuteria podemos chamar
de mente que tem seu proacuteprio modo de funcionar e pode ser persuadida tanto pela persuasatildeo
verdadeira quanto pela persuasatildeo natildeo verdadeira
No fragmento 2 Parmecircnides expotildee sua reflexatildeo sobre os caminhos do pensar A discussatildeo
completa desta reflexatildeo seraacute proposta no proacuteximo capiacutetulo e portanto aqui aproveitamos esse
fragmento apenas para a definiccedilatildeo da noccedilatildeo de voein aquela operaccedilatildeo da mente destinada agrave
cogniccedilatildeo que Parmecircnides iraacute utilizar ao longo do poema
No fragmento 6 Parmecircnides examina os dois caminhos de investigaccedilatildeo assim como satildeo
aplicados no mundo comum e faz uma distinccedilatildeo entre a psicologia comum e a maneira de operar
do homem saacutebio instruiacutedo pela deusa A diferenccedila consiste no uso de um recurso que os mortais
natildeo possuem Por esta razatildeo os mortais acreditam que ser e natildeo ser satildeo o mesmo e natildeo o mesmo
enquanto o homem com o recurso sabe (pelo recurso) que eles satildeo radicalmente opostos Assim o
homem com o recurso segue o caminho verdadeiro enquanto os mortais cuja mente se comporta
como se fosse surda e cega inventam caminhos de direccedilotildees reversiacuteveis
No fragmento 7 Parmecircnides aprofunda a anaacutelise antes de tudo faz a primeira enunciaccedilatildeo do
Preceito da Deusa a oposiccedilatildeo absoluta entre ser e natildeo ser Depois explica que haacute um haacutebito
experimentado muitas vezes que configura a mente comum e o homem com o recurso natildeo deveria
ser forccedilado a esta configuraccedilatildeo mental Enquanto observa o comportamento da mente social
Parmecircnides percebe que o recurso (o Preceito da Deusa) eacute algo que sai do entendimento comum
numa criacutetica clara ao pensamento religioso Por isso a deusa alerta o disciacutepulo a tomar cuidado com
94
o exerciacutecio dos sentidos (visatildeo audiccedilatildeo e liacutengua) e tambeacutem tomar cuidado com a retoacuterica dos
discursos comuns pois o haacutebito mental tende a aprovar e reprovar discursos por preconceitos o
kouros deve evitar ser forccedilado a pensar (operar cognitivamente) pelo preconceito122
Tanto o fragmento 4 quanto os restantes fragmentos do poema que apresentam um
vocabulaacuterio psicoloacutegico seratildeo abordados depois da anaacutelise completa do fragmento 2 De fato o
esclarecimento da reflexatildeo exposta no fragmento 2 poderaacute elucidar noccedilotildees principalmente do
fragmento 8 que sem aquele esclarecimento preacutevio permaneceria criacutepticas e obscuras Assim a
anaacutelise do vocabulaacuterio psicoloacutegico seraacute prosseguida e completada numa segunda parte apoacutes a
exposiccedilatildeo do meacutetodo parmenidiano para distinguir a persuasatildeo verdadeira da falsa
122 Em estudos muito recentes se tende a rearranjar os fragmentos do poema de forma radical Uma das tentativas estaacute
sendo levada adiante por Cordero e implica que alguns fragmentos que pela ordenaccedilatildeo Diels-Kranz pertencem agrave
segunda parte do poema sejam deslocados para a primeira parte Em artigo de 2013 Cordero afirma que esta
separaccedilatildeo do poema em duas partes eacute prejuiacutezo interpretativo traacutegico Em resumo embora Parmecircnides fale de dois
assuntos o discurso verdadeiro e as opiniotildees dos mortais isto natildeo quer dizer que a estes dois assuntos
correspondam duas partes no poema Principalmente dos fragmentos de 9 a 19 somente o 9 o 12 e o 19
pertenceriam agrave doxa de forma que os outros (os fragmentos 10 11 13 14 15 16 17 18) teriam que ser deslocados
para antes do fragmento 8 ldquoNo dudo em colocar esse conjunto em la via de la verdad antes del fragmento 7 como
explicacion del poleacutemico conjunto de pruebas (πολύδηριν ἔλεγχον) que la diosa dice haber ya expuesto (ῥηθέντα)rdquo
(2013 p 25)
A nossa interpretaccedilatildeo do fragmento 7 junto com a releitura oferecida por Kurfess parecem caminhar em favor
da hipoacutetese de Cordero onde a exposiccedilatildeo de saberes cosmoloacutegicos novos ndash por exemplo o fato de que a luz da lua
seja um reflexo da luz do sol ndash tecircm que superar o obstaacuteculo dos prejuiacutezos do conhecimento (religioso) tradicional
95
4 O MEacuteTODO
41 Introduccedilatildeo
Parmecircnides foi um observador do comportamento da mente e haacute em suas palavras
distinccedilotildees entre dois tipos de comportamento mental Nitidamente ele distingue entre um
comportamento mental insuficiente para os fins da pesquisa atribuiacutedo aos mortais e um
comportamento mental que inclui uma μηχανή a qual permite um percurso persuasivo de
pensamentos natildeo segundo a persuasatildeo natildeo confiaacutevel mas segundo aquela que deixa a mente firme
(129) ou seja sem as oscilaccedilotildees da duacutevida entre o sim e o natildeo Onde ele observou este segundo
tipo de comportamento E de que maneira o observou A resposta agrave primeira pergunta natildeo eacute difiacutecil
Parmecircnides observou este comportamento da mente nele mesmo123 A suporte dessa afirmaccedilatildeo
podemos alegar duas evidecircncias a primeira eacute que Parmecircnides fala claramente de ldquocaminhos de
pesquisa ao pensarrdquo isto eacute fala do pensamento em accedilatildeo e em princiacutepio soacute eacute possiacutevel observar
diretamente o pensar em accedilatildeo apenas na proacutepria mente jaacute que do pensar em accedilatildeo de outros se pode
conhecer soacute o relato a segunda eacute que na cultura grega anterior a Parmecircnides jaacute existia um terreno
propiacutecio para a auto-observaccedilatildeo fundado na ideia do ldquoconheccedila-te a ti mesmordquo 124 e que se
123 Haacute uma longa discussatildeo a respeito da presenccedila do individualismo na cultura e na primeira filosofia grega
Especialmente em referecircncia ao nosso assunto a possibilidade do conhecer epistecircmico os criacuteticos anteriores ao
seacuteculo XX sentiram a influecircncia de John Locke o qual afirma que o conhecimento de si proacuteprio surgiu muito depois
do conhecimento do mundo Tal afirmaccedilatildeo foi contestada duramente por Joeumll em 1903 (Der Ursprung der
Naturphilosophie aus dem Geiste der Mystik) mas antes dele jaacute existiam as vigorosas visotildees de Nietzsche no Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Grieschen (1873-80) Veja-se a respeito a excelente nota de Mondolfo em
Zeller (1950 p 27-98) sobre esse debate na primeira metade do seacuteculo XX Jaacute na segunda metade do seacuteculo XX e
depois a discussatildeo parece ter perdido focirclego 124 Platatildeo no Protaacutegoras (343a) ressalta que todos conheciam estas sentenccedilas (γράψαντες ταῦτα ἃ δὴ πάντες ὑμνοῦσιν
96
explicitaria em seu aspecto psicoloacutegico na exuberacircncia do ἐδιζησάμην ἐμεωυτόν (fr DK 101) de
Heraacuteclito125
A observaccedilatildeo do comportamento da proacutepria mente eacute um fato oacutebvio para quem estuda
psicologia e eacute notoacuterio que os grandes psicoacutelogos pesquisaram inexoravelmente suas proacuteprias
mentes e aqui cito apenas a auto-anaacutelise que Freud realizou rumo agrave descoberta do inconsciente126
como emblema dos esforccedilos da pesquisa psicoloacutegica desde o seacuteculo XIX ateacute hoje Eacute quase natural
que quem observa o comportamento da mente alheia seja levado a observar o comportamento da
sua proacutepria e eacute razoaacutevel aceitar que tambeacutem Parmecircnides que observou o comportamento da mente
em outros (como se vecirc nos fragmentos 6 e 7) o observou tambeacutem em si proacuteprio o que eacute mais
difiacutecil de determinar eacute de que maneira ele o observou em relaccedilatildeo aos caminhos de pesquisas e
como procedeu agrave compreensatildeo da observaccedilatildeo
A proposta deste primeiro paraacutegrafo do capiacutetulo eacute tentar evidenciar que tipo de observaccedilatildeo e
auto-observaccedilatildeo levou Parmecircnides a encontrar e expor um meacutetodo do pensar para o caminho de
pesquisa que afinal se mostraraacute uma das colunas de sustentaccedilatildeo da nossa cultura ocidental de sua
eacutepoca em diante ateacute hoje Como jaacute foi especificado nosso foco principal eacute o natildeo ser e eacute visando
ltΓνῶθι σαυτόνgt καὶ ltΜηδὲν ἄγανgt) Embora o ldquoconheccedila-te a ti mesmordquo se referisse ao conhecimento das proacuteprias
tendecircncias comportamentais (de forma a temperaacute-las como nos diz Platatildeo em Charmides 164d) a sugestatildeo natildeo
podia natildeo excitar em sentido introspectivo as mentes investigativas desses primeiros filoacutesofos (ver nota 3) 125 Heraacuteclito em sua investigaccedilatildeo alcanccedila dimensotildees abismais exatamente no acircmbito psicoloacutegico da introspecccedilatildeo pois
no fr DK 45 diz ldquoψυχῆς πείρατα ἰὼν οὐκ ἂν ἐξεύροιο πᾶσαν ἐπιπορευόμενος ὁδόν οὕτω βαθὺν λόγον ἔχειrdquo
(ldquoLimites de alma natildeo encontrarias todo caminho percorrendo tatildeo profundo logos ela temrdquo trad Cavalcante de
Souza 1978) Sassi remarca ldquoEnquanto a maacutexima deacutelfica (Γνῶθι σαυτόν nda) convidava o homem a reconhecer
os proacuteprios limites Heraacuteclito extrai de sua investigaccedilatildeo uma consequecircncia muito diferente o reconhecimento de
uma profundidade ateacute mesmo insondaacutevel da dimensatildeo interiorrdquo (Sassi 2009 p 171) 126 Freud fala de sua auto-anaacutelise em muitas passagens de suas obras veja-se por exemplo ldquoA interpretaccedilatildeo dos
sonhosrdquo de 1900
97
essa noccedilatildeo que levaremos adiante nossa leitura logo a pergunta se propotildee quase que por si que
comportamento da mente Parmecircnides observou que o levou agrave noccedilatildeo ineacutedita ateacute entatildeo de natildeo ser
Esse tema estaacute tratado no fragmento 2 e eacute a ele que nos dedicaremos cuidadosamente nas proacuteximas
paacuteginas
42 A exposiccedilatildeo do meacutetodo o natildeo ser em parmecircnides
421 Anaacutelise do fragmento DK 2
A primeira menccedilatildeo ao lsquonatildeo serrsquo no poema segundo a ordenccedilatildeo de Diels-Kranz eacute no
fragmento 2127 Eis o fragmento na ediccedilatildeo de Diels-Kranz com a traduccedilatildeo de Cavalcante de
Souza128
εἰ δ ἄγ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)
ἡ δ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
οὔτε φράσαις
Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
127Esta posiccedilatildeo no poema eacute aquela estabelecida por Diels e eacute seguida pela maioria dos criacuteticos Embora em relaccedilatildeo a
sua anterioridade sobre os fr 3 4 5 6 7 natildeo haja razotildees claras mas somente conjecturas mais ou menos provaacuteveis
certamente eacute anterior ao fr 8 porque neste a deusa declara que a diferenciaccedilatildeo das duas vias e o abandono de uma
jaacute fora feito antes Para a tese defendida aqui esta posiccedilatildeo eacute aceitaacutevel Entre os que ordenam de forma diferente
Coxon (2009) Couloubaritsis (2008) Santoro (2011) Recentemente a ordenaccedilatildeo dos fragmentos estaacute sendo
discutida radicalmente a partir da grande importacircncia dada agrave segunda parte do poema nos estudos da segunda
metade do seacuteculo XX 128Cavalcante de Souza (1978) p 142
98
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias
Esse fragmento apresenta um texto importante e por isto foi muito estudado pelos criacuteticos
Podemos dividi-lo em duas partes
a) a deusa anuncia palavras importantes e prepara o disciacutepulo agrave recepccedilatildeo
b) a deusa expotildee sua lei
Esta parte b) tambeacutem pode ser divididas em duas partes dois versos referentes ao ser e quatro
versos referentes ao natildeo ser
a) O anuacutencio da deusa
b) a deusa expotildee sua lei b1) dois versos referentes ao ser
b2) quatro versos referentes ao natildeo ser
422 O anuacutencio da deusa versos 1-2 εἰ δ ἄγ ἐγὼν ἐρέω κόμισαι δὲ σὺ μῦθον ἀκούσας
αἵπερ ὁδοὶ μοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι
Estes primeiros dois versos foram tratados no capiacutetulo anterior e dele noacutes extraiacutemos uma
noccedilatildeo importante para a nossa anaacutelise a noccedilatildeo de que Parmecircnides utiliza para νοεῖν Para ele o
νοεῖν em jogo aqui eacute aquele que segue caminhos portanto se trata do pensar em operaccedilatildeo e natildeo em
sua noccedilatildeo estaacutetica ademais eacute o pensar que caminha pelos caminhos de pesquisa logo eacute um pensar
investigativo que quer saber que quer conhecer Atendendo a essas qualificaccedilotildees traduzimos νοεῖν
com o operar cognitivo da mente fazendo referecircncia agrave operaccedilatildeo do pensar mas restringindo o
sentido agravequelas cognitivas Evitamos desta forma tanto as ambiguidades da traduccedilatildeo de νοεῖν com
99
o termo amplo demais pensar quanto as ambiguidades e contra-sensos da traduccedilatildeo que usa o
termo conhecer complexo e sinteacutetico demais pois conhecer implica um agente cognitivo uma
operaccedilatildeo cognitiva e um objeto da cogniccedilatildeo Parmecircnides como vimos naquelas paacuteginas natildeo se
refere ao fato completo do conhecer mas apenas agraves operaccedilotildees cognitivas da mente
Devemos agora acrescentar algumas noccedilotildees que seratildeo uacuteteis a melhor enquadrar o fragmento
em questatildeo Vamos voltar ao termo νοῆσαι e completar a anaacutelise proposta no capiacutetulo anterior
Dissemos laacute que em controveacutersia alguns estudiosos o consideram passivo enquanto outros ativo
e esta uacuteltima eacute a nossa posiccedilatildeo A traduccedilatildeo de νοῆσαι como passivo eacute comum a muitos estudiosos
ndash comeccedilando por Diels-Kranz que traduz ldquowelche Wege der Forschung allein zu denken sindrdquo129
ndash mas torna pouco compreensiacutevel o resto do fragmento Entre as oacutetimas razotildees trazidas por
Mourelatos (2009 p 55 n 26) e Cordero (2005 pp 56-9) gostaria de ressaltar a dificuldade
exposta por Cordero o qual justamente afirma que a interpretaccedilatildeo passiva de νοῆσαι obriga a
pressupor um outro verbo para explicar as conjunccedilotildees declarativas do fragmento (uma vez ὅπως e
trecircs vezes ὡς) chegando a foacutermulas estranhas ao texto tais como ldquothe one ltsaysgtrdquo (Taraacuten 1965
p 32) ou ldquolun (dit)rdquo (Couloubaritsis 1990 p 370)130 Acrescento que com a forma passiva se
introduz uma questatildeo improacutepria pois se afirmaria que Parmecircnides estaria refletindo sobre o
129 Enquanto anteriormente Diels traduzia ldquowelche Wege der Forschung allein denkbar sindrdquo (Diels 1987) Traduzem
em passivo muitos importantes estudiosos ldquothe only two ways of search that can be thought ofrdquo (Burnet 1920)
ldquothat are to be thought ofrdquo (Cornford1939) ldquoconcebiblesrdquo (Jaeger 1947 em traduccedilatildeo espanhola) ldquologicamente
pensabilirdquo (Untersteiner 1979) ldquothat can be conceivedrdquo (Taraacuten 1965) e assim por diante Mais recentemente com
as devidas exceccedilotildees (exemplo ldquoque lon puisse concevoirrdquo Frere 2012) a maioria dos criacuteticos se orienta para uma
interpretaccedilatildeo ativa de νοῆσαι 130 Cordero conclui que ldquoComo respuesta a este tipo de lectura debe sentildealarse algo obvio el camino no hablardquo
(Cordero 2005 p 58)
100
pensar131 fato do qual natildeo se tem nenhum vestiacutegio no poema Parmecircnides estaacute refletindo pelo
pensar sobre o mundo (panta de 128) seguindo a temaacutetica proacutepria de sua eacutepoca de sua cultura e
de seu grupo intelectual de pertinecircncia Ele natildeo faz um discurso objetivo sobre o pensar mas
analisando o pensar faz um discurso objetivo ndash como veremos em breve ndash sobre a coerecircncia interna
dos pensamentos percebendo isto sim que a mente (o pensar) consegue aceitar ou realizar
discursos de feacute verdadeira e de feacute natildeo verdadeira sem diferenciaacute-los Ele se propotildee a distinguir
esses dois discursos e pocircr em evidecircncia como se consegue reconhecer uns e outros o que eacute um fato
que pertence agrave esfera do pensar e eacute ao pensar que se deve recorrer para realizar a distinccedilatildeo mas
isto natildeo significa que Parmecircnides tenha como objetivo estudar o pensar como alguns autores direta
ou indiretamente sugerem A metaacutefora do caminho eacute clara a este respeito ele natildeo se importa em
estudar os caminhos em si mas estuda a que lugares levam este ou aquele caminho ou dito de
outra forma que caminho tomar para se alcaccedilar o fim do discurso de feacute verdadeira O caminho eacute
apenas um meio um percurso e como tal tem que se saber aonde leva (ele estudaraacute inclusive os
sinais que estatildeo ao longo dele DK 82) mas posto que se devam conhecer as rotas seu objetivo
no estudo eacute antes de tudo natildeo se perder pelo caminho errado e sucessivamente depois de trilhado
o caminho de feacute verdadeira descrever e compreender o lugar onde chegou
131 Eacute a opiniatildeo de Couloubaritsis ldquola quecircte vise agrave penser lEon pour fonder le penser Cest pourqui dans la traduction
pour penser nous entendons [hellip] penser ce qui permet de penserrdquo (Couloubaritsis 2008 p 249-250) O eon
funda sim o pensar mas natildeo nos termos de pensar o pensar como se o pensar fosse para esses pensadores arcaicos
um objeto definido e separado a respeito do qual se devesse meditar a origem e funccedilatildeo Longe disso pensar eacute um
fenocircmeno que natildeo tem a nitidez que lhe atribuiacutemos hoje e expressotildees como ldquopenser ce qui permet de penserrdquo natildeo
fazem muito sentido para aquela eacutepoca
101
423 O primeiro caminho versos 3 e 4 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)
O verso 4 O verso 3 eacute provavelmente o mais estudado de Parmecircnides merece Poreacutem
seguindo nosso percurso pelo aspecto psicoloacutegico notamos logo a presenccedila de uma palavra
marcadamente psicoloacutegica no verso 4 πειθοῦς persuasatildeo132 Diels grafa com maiuacutesculo indicando
a deusa tradicional Πειθώ Natildeo se tem esta certeza e por enquanto vamos considerar apenas o lado
natildeo sagrado ou seja os aspectos meramente estruturais e funcionais da persuasatildeo133 Embora se
haja bastante literatura sobre persuasatildeo e verdade nem sempre a ligaccedilatildeo entre as duas no contexto
parmenidiano eacute evidenciada com suficiecircncia O fato mais notaacutevel ndash e que pelo que sei natildeo foi
ressaltado ndash eacute que a aletheia de Parmecircnides aleacutem de natildeo ser a Aletheia absoluta tambeacutem natildeo eacute
uma aletheia qualquer Antes de tudo aletheia estaacute tradicionalmente associada quase que somente
132Veja-se o excelente estudo de peithein e seus cognatos em Mourelatos 2008 p 136-163 Mourelatos chega a
firmar que eacute Peitho a deusa anocircnima de Parmecircnides 133Blank numa tese fortemente maniqueiacutesta insoacutelita entre os estudiosos de Parmecircnides insiste sobre o papel dessas
figuras divinas dentro de um contexto essencialmente religioso e natildeo hesita a traduzir pistis por feacute fazendo
referecircncia a supostas disputas religiosas na eacutepoca de Parmecircnides entatildeo peitho natildeo eacute propriamente a persuasatildeo mas
a seduccedilatildeo ldquoEsti says Parmenides is the Way of true faith and although he argues for this logically he begins by
using the seductive power of persuasion and implies that those who hold the true faith will be happy while those
who do not are doomed to ignorance by their apistia rdquo (Blank 1982 p 177)
Jaacute Morgan num estudo sobre o mito nos preacute-socraacuteticos (e Platatildeo) de forma mais coerente afirma ldquoThe motifs
of conviction and persuasion pistis and peitho are to be understood primarily in epistemological rather than
religious terms although the imagery of the proem and the deployment of the above-mentioned motifs do carry
some religious resonancerdquo (Morgan 2004 p 71)
Uma outra partidaacuteria da interpretaccedilatildeo miacutestica eacute Gemelli-Marciano e algumas ideia a respeito de Peitho podem
ser encontradas em Gemelli-Marciano (2008) especialmente agraves paacuteginas 36-37
102
ao relato verdadeiro de uma testemunha ocular dos fatos134 ou agraves falas verdadeiras dos deuses135
ou dos preceitos dos poetas 136 e muito raramente associada a fatos verdadeiros Depois a
associaccedilatildeo de peitho (persuasatildeo) com aletheia respeita exatamente esse campo semacircntico de
aletheia como verdade de uma fala Mas Parmecircnides associa aletheia agrave pesquisa e ndash continua
Cherubin ndash isto sugere que ldquomesmo sem podermos ser noacutes mesmos testemunhas de algo ou onde
natildeo tivermos a possibilidade de achar uma testemunha confiaacutevel [hellip] podemos ainda assim ter
acesso ao caminho [] e este caminho eacute um caminho de inqueacuteritordquo137 com razatildeo diz Cherubin
que esta novidade eacute revolucionaacuteria138 Pelo lado da linguagem mitoloacutegica podemos ver que a deusa
134Levet (1976 p57) ldquoDe toute eacutevidence chez Homegravere le vrai se manifeste essentiellement quand il y a dialogue
[hellip] Les emplois de la plupart des motes exprimant le vrai ndash ils sont presque constamment associeacutes agrave un verbe de
deacuteclaration ndash portent agrave ce sujet un teacutemoignage irreacutefutablerdquo Cherubin acrescenta ldquoTo be able to tell aletheia requires
an awareness of the whole of what is relevant and awareness of the context of ones subjectrdquo (Cherubin 2009 p
58) 135Antes de tudo as invocaccedilotildees agraves Musas as quais na medida que inspiram o canto satildeo a garantia da verdade dos
relatos dos poemas Para Cherubin esse relato da origem eacute garantia da narraccedilatildeo do presente ldquoIn Pindar and in
Hesiods account of the Muses awareness of the origins of things (of the cosmos of a city of a family) is a requisite
for presenting currente events properly in ones poem (Cherubin 2009 p 58) 136Hesiodo Obras e dias 765-8 818 824 Citado por Detienne que diz ldquoDessa vez se trata de uma ldquoVerdaderdquo que se
define expressamente como ldquonatildeo esquecimentordquo dos preceitos do poetardquo (Detienne 1983 p 14 original ldquoQuesta
volta si tratta di una ldquoVeritagraverdquo che si definisce espressamente come ldquonon obliordquo dei precetti del poetardquo p 14) 137A passagem inteira eacute esta ldquoHe is suggesting that sometimes even where we cannot witness something ourselves
where we may have overlooked or forgotten something about a situation where we cannot find a reliable witness
and where the gods or their agents have not chosen to reveal things to us even when these traditional means are
not available we may still have access to a road whose orientation is governed by aletheia and the road is a road
of inquiryrdquo (Cherubin 2009 p 59) 138Dizer que Parmecircnides associa o caminho de inqueacuterito agrave aletheia estaacute correto O que eacute menos correto a meu ver eacute a
afirmaccedilatildeo (que estaacute no texto acima citado de Cherubin e que eu natildeo reportei) de que a via de inqueacuterito eacute governada
por aletheia (ldquoa road whose orientation is governed by aletheiardquo veja nota 137 acima) Ora Parmecircnides diz
claramente que esta via de inqueacuterito eacute a via de peitho portanto eacute governada por peitho O fato de que peitho atenda
agrave aletheia natildeo autoriza a pular esta etapa sob pena de total desentendimento da proposta de Parmecircnides Uma
criacutetica semelhante deve ser feita a Mourelatos o qual apoacutes uma excelente e profunda anaacutelise de dizesios conclui
afirmando que a busca de Parmecircnides eacute pela aletheia (ldquoFor Parmecircnides it is a quest for aletheiardquo Mourelatos 2008
p 68) Parece-me que eacute o caso de repetir para Parmecircnides eacute um caminho de busca governado por um discurso
persuasivo (argumento bem conexo peitho) que garante a verdade O alvo de Parmecircnides natildeo eacute a verdade mas um
instrumento que garanta a verdade
Todos os estudiosos tecircm consciecircncia desta divisatildeo feita por Parmecircnides que redunda no bordatildeo aletheia-doxa
mas lentamente acabam se esquecendo que o alvo eacute a diferenciaccedilatildeo das proposiccedilotildees Entre os poucos que potildeem
isto em relevo estaacute Patriacutecia Curd ldquoIn promising to teach the kouros all things the goddess undertakes to impart
103
Πειθώ tradicionalmente associada a Afrodite representando assim a persuasatildeo da fala sedutora139
em Parmecircnides eacute associada a aletheia configurando uma persuasatildeo que leva agrave verdade Mas
podemos acrescentar mais a aletheia de que fala Parmecircnides natildeo eacute qualquer aletheia mas a
aletheia proacutepria da persuasatildeo como estaacute claramente caracterizado pelo verso 4 Portanto estou
convencido de que eacute totalmente inuacutetil ampliar o horizonte semacircntico da aletheia parmenidiana agraves
ideias mais abstratas que consideram a noccedilatildeo de verdade isoladamente e em si mesma Penso que
Parmecircnides restringia o sentido apenas agrave verdade do discurso ou melhor tratando-se de persuasatildeo
devemos dizer agrave verdade do argumento embora sejam discurso e argumento no sentido arcaico140
Infelizmente deste ponto de vista ficam enfraquecidas todas aquelas interpretaccedilotildees que tendem a
fazer de Parmecircnides o profeta da Verdade idealizada A proacutepria costumeira divisatildeo do poema em
duas partes a parte da verdade ou aletheia e a parte da opiniatildeo ou doxa natildeo se justifica sendo
apenas um bordatildeo didaacutetico muito distante da letra do texto parmenidiano141
to him what he must know to avoid the errors of mortals Thus he must learn what it is for something to be reliably
and he must learn both the criteria for reliability and the tests that will allow him to investigate and to evaluate
various claims for trustworthy and reliable being or what-isrdquo (Curd 2004 P 22) 139Mourelatos 2008 p 139 140 Num artigo extremamente esclarecedor a respeito da aletheia em Parmecircnides Germani mostra que o sentido arcaico
de discurso (legein) eacute muito diferente da noccedilatildeo de discurso apresentada por Platatildeo e Aristoacuteteles Citando
Aristoacuteteles (ldquoeacute falso dizer que o ser natildeo eacute ou o natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ μὲν γὰρ λέγειν τὸ ὂν μὴ εἶναι ἢ τὸ μὴ ὂν εἶναι
ψεῦδοςrdquo Metaph IV 1011 27b) ela nota que natildeo estaacute presente em Parmecircnides a noccedilatildeo de dizer a verdade como
algo restrito somente ao discurso e aproveitando as palavras de Lloyd (Lloyd 1966 p 422) ela diz ldquoO proacuteprio
Lloyd analisando o emprego arcaico de termos como χρέ e ἀνάγχη nota que noacutes podemos interpretar Parmecircnides
como se ele acreditasse que eacute logicamente necessaacuterio que o que eacute eacute e logicamente impossiacutevel que natildeo seja mas
parece provaacutevel que ele tambeacutem tenha concebido esta necessidade como condiccedilatildeo fiacutesica real do Ser e quando ele
descreve Ἀνάγχη como ltmantendogt o que eacute ltem liamesgt (830) isto pode natildeo ser uma mera metaacutefora poeacutetica
Portanto me parece que a proacutepria noccedilatildeo de falso natildeo encontre nenhum lugar na concepccedilatildeo parmenidiana Aquilo
que corresponde na passagem aristoteacutelica agrave falsidade ndash ldquodizer que o ser natildeo eacute ou que o natildeo ser eacuterdquo ndash eacute concebido
por Parmecircnides como uma impossibilidade que natildeo se refere apenas ao dizer mas que eacute inerente antes de tudo ao
proacuteprio serrdquo (Germani 1988 p 194) 141 Reporto exemplarmente um trecho de Solana Dueso exemplo que se multiplica ad libitum em muitos outros
estudiosos ldquoIn the presentation of the program we have the first terminological clue of the theoretical content It
would be about truth (aletheia) and opinions (doxai) both terms being of epistemic and not ontological contentrdquo
104
O Parmecircnides psicologo percebe que a persuasatildeo eacute um fato da lsquomentersquo ndash conceito este uacuteltimo
que assim como noacutes o entendemos lhe eacute estranho ndash fenocircmeno que ele consegue identificar
descrevendo as ocorrecircncias mentais como dissemos no nosso estudo de 129 E eacute o Parmecircnides
psicoacutelogo que identifica duas persuasotildees uma acompanhada da verdade e outra onde a crenccedila natildeo
eacute acompanhada da verdade Agrave primeira ele chama de πειθός que gera a sensaccedilatildeo de firmeza na
mente (ἀτρεμὲς ἦτορ) e acompanha a verdade a qual eacute por isto εὐκυκλέος bem conexa na variante
trazida por Simpliacutecio ou εὐπειθέος bem persuasiva naquela trazida por Sexto Empiacuterico142 Agrave
segunda ele chama de lsquoopiniatildeo dos mortaisrsquo na qual natildeo haacute uma πίστις ἀληθής um convencimento
acompanhado de verdade143
Esta distinccedilatildeo nos mostra a agudeza da observaccedilatildeo psicoloacutegica A certeza pode ser de dois
tipos ou eacute uma certeza que deixa espaccedilo a duacutevidas ou eacute uma certeza indubitaacutevel Isto expotildee um
problema gnosioloacutegico que pode ser assim formulado posto que se tem uma convicccedilatildeo (e todos
temos convicccedilotildees) como posso saber se esta convicccedilatildeo corresponde agrave verdade ou eacute uma convicccedilatildeo
sem fundamento e sem correspondecircncia com a realidade Resposta natildeo posso sabecirc-lo A minha
mente mostra apenas convicccedilatildeo e para saber se tal convicccedilatildeo eacute acompanhada de verdade ou se natildeo
(Solana Dueso 2007 p 275) No entanto exatamente do ponto de vista terminoloacutegico como o autor pretende na
apresentaccedilatildeo do programa a deusa natildeo diz que o kouros aprenderaacute ldquoabout truthrdquo mas diz que aprenderaacute o ldquoatremeacutes
etorrdquo o qual mesmo do ponto de vista teoreacutetico (aleacutem de terminoloacutegico) constitui um assunto muito diferente
daquele que o autor imagina (a verdade) Se se quiser dividir o poema em dois assuntos estes satildeo a persuasatildeo
verdadeira e a persuasatildeo natildeo verdadeira natildeo a verdade e a opiniatildeo 142A minha discussatildeo destes termos estaacute em Galgano (2012) 143Num trabalho interessante Buontempi evidencia mais claramente a diferenccedila entre pistis e peitho em Parmecircnides
Diz ela ldquo[Peitho] estaacute ligada agraves palavras eacute o estado a partir do qual se toma a palavra ou o estado produzido pela
escuta de palavrasrdquo (Bontempi p 50) Esse estado possui a ambivaecircncia de pertencer ao caminho do ldquoeacuterdquo ou agraves
opiniotildees dos mortais Jaacute ldquopistis eacute aquela relaccedilatildeo que se estabelece entre termos de um para o outro transparentes
e disponiacuteveis e cujo viacutenculo consiste na disponibilidade e capacidade de cada um de se exibir ao outro
completamenterdquo (p 53) Entretanto Buontempi utiliza uma metodologia arriscada pois pretende extrair o sentido
de peithos e pistis a partir da interpretaccedilatildeo do poema de Parmecircnides nada mais controverso
105
tem feacute verdadeira eacute necessaacuterio recorrer a algo extra-mental eacute necessaacuteria uma prova externa porque
a mente por si soacute natildeo consegue identificar uma sua convicccedilatildeo propria como verdadeira ou falsa
A diferenciaccedilatildeo de dois tipos de persuasatildeo no poema eacute clara e a discussatildeo desta diferenciaccedilatildeo
pertence agrave parte propedeutica pois natildeo se fala dela na parte do eon no fr 8 quando a ordem do
mundo eacute explicada com exceccedilatildeo do final do discurso da deusa onde ela anuncia o encerramento
de seu discurso confiaacutevel (πιστὸν λόγον) Isto significa que este tema faz parte do instrumental
argumentativo preacutevio que conduziraacute agrave sucessiva anaacutelise cosmoloacutegica Em outras palavras depois
de exposto o programa haacute uma parte propedecircutica que discute a diferenciaccedilatildeo entre as duas
persuasotildees e sucessivamente as duas persuasotildees satildeo apresentadas certamente a persuasatildeo
verdadeira constituiacuteda pelo fragmento 8 e talvez ndash mas em volta desta questatildeo haacute muita
controveacutersia ndash a persuasatildeo natildeo verdadeira que Diels reuniu nos fragmentos de 9 a 19144
A esse respeito eacute necessaacuterio acrescentar que haacute duas formas (entre outras) muito comuns nos
argumentos em uma uma sequecircncia argumentativa leva agrave conclusatildeo (como por exemplo no
silogismo claacutessico) enquanto em outra haacute primeiro o enunciado da conclusatildeo e depois a exposiccedilatildeo
dos argumentos que provam o enunciado Parmecircnides parece preferir este segundo caminho o qual
conveacutem mais ao estilo hieraacutetico de uma fala divina primeiro o enunciado eacute feito seria melhor
144Cabe a Rossetti o meacuterito de evidenciar uma forte estrutura metatextual no poema de Parmecircnides A excelente anaacutelise
de Rossetti por exemplo mostra que ldquo[] les consideacuterations exposeacutees das les fragments 2-7 sont preacuteliminaires et
propeacutedeutiques non seulement elles servent agrave chasser tant de preacutejugeacutes mais elles preacutesentent aussi les fruits drsquoune
recherche et drsquoune reacuteflexion qui a deacutejagrave eu lieu auparavant Une telle reacutefeacuterence au processus de deacutecantation qui a
rendu possible lrsquoeacutelaboration et la fixation drsquoun enseignement deacutetermineacute est extrecircmement rare Qursquoune telle donneacutee
teacutemoigne en faveur drsquoune tregraves nette ceacutesure entre le proegraveme et les contenus doctrinaux nrsquoest pas moins digne de
remarquerdquo (Rossetti 2010 p 205) Gostaria de acrescentar que as consideraccedilotildees natildeo satildeo apenas consideraccedilotildees
contecircm a exposiccedilatildeo de um meacutetodo (Rossetti na n 20 remete a Cerri o qual fala de premissas metodoloacutegicas) que
poreacutem natildeo eacute tambeacutem apenas um meacutetodo porque embora se trate de um caminho a seguir eacute o caminho principal
do mundo eacute sua lei intriacutenseca o seu princiacutepio (arche ou archai) Esta discussatildeo seraacute feita mais adiante
106
dizer proclamado e depois satildeo dadas algumas explicaccedilotildees do porque daquele enunciado Os
versos 23-4 atendem a esta forma uma proclamaccedilatildeo eacute anunciada (vv 1-2) e depois enunciada
(vv3-4) A proclamaccedilatildeo enunciada consiste em estabelecer qual eacute o caminho que pensa o inqueacuterito
com persuasatildeo natildeo a persuasatildeo falsa mas a verdadeira um caminho enfim que anda com a
verdade Explicado o verso 4 temos que esclarecer o verso 3
O verso 3 Natildeo se pode isolar gramaticalmente o verso 3 do anterior verso 2 (e nem do seu
correlativo verso 5) e portanto natildeo se pode esquecer que se trata de um caminho No entanto as
noccedilotildees envolvidas satildeo estaacuteticas e natildeo haacute nenhum elemento dinacircmico ou sequencial ou de qualquer
natureza minimamente motora que remeta agrave ideia de caminho
ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
Eacute ndash natildeo eacute ndash natildeo ser expressam noccedilotildees estaacuteticas o que a primeira vista parece natildeo
combinar com a ideia dinacircmica de caminho Pois o sentido deste ponto de vista eacute que o caminho
de pesquisa a pensar por ser um pensar que procede por um caminho natildeo eacute o pensar de um
momento mas um pensar que constroacutei (que segue por) um caminho A estaticidade das formas
verbais sugere entatildeo que no percurso seguido pelo pensar para que o inqueacuterito seja de verdadeira
persuasatildeo o ἔστιν o οὐκ ἔστι e o μὴ εἶναι por serem estaacuteticos devem ser constantes Esta noccedilatildeo
eacute estrutural o caminho de inquerito a pensar deve conter uma constante vaacutelida em qualquer
momento e qualquer passagem do caminho O fato de ser a afirmaccedilatildeo de uma constante estaacutetica
numa dimensatildeo de caminho (dinacircmica) reforccedila a ideia de algo externo ao processo de natureza
fixa a ser aplicado a algo de natureza processual ou seja eacute uma lei pois a noccedilatildeo de lei expressa
tambeacutem as relaccedilotildees fixas entre as dinacircmicas de elementos de um ou mais processos
Vamos observar a estrutura sintaacutetica do verso mais de perto ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ
ἔστι μὴ εἶναι Depois da conjunccedilatildeo correlativa ἡ μὲν ndash que se coadunaraacute com o ἡ δὲ de 25 (ἡ δ
107
ὡς) ndash o verso eacute constituiacutedo de duas unidades sintaacuteticas autocircnomas mas subordinadas ao verso 2
pelos adverbios ὅπως e ὡς ademais as duas unidades estatildeo ligadas pela conjunccedilatildeo τε καὶ Vejamos
entatildeo a construccedilatildeo sintaacutetica sem entrar ainda na semacircntica ou seja sem traduzir os termos ἔστιν
οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι
por um lado (ἡ μὲν) que ἔστιν e tambeacutem que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
A conjunccedilatildeo τε καὶ (e tambeacutem que) nos diz que temos duas oraccedilotildees que pela estrutura de todo o
fragmento devem ser completas embora possa parecer que natildeo o sejam pois vejamo-as
separadamante e sem os adverbios
1) ἔστιν
2) οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
A primeira oraccedilatildeo eacute sem sujeito e sem objeto sendo constituiacuteda somente pelo verbo a segunda
dependendo da interpretaccedilatildeo pode ser (21) sem sujeito tambeacutem e com objeto direto ou (22) com
ldquosujeitordquo de verbo impessoal e sem objeto A primeira eacute afirmativa enquanto a segunda eacute negativa
entretanto a segunda nega uma segunda negaccedilatildeo contida no objeto (ou ldquosujeitordquo do verbo
impessoal) eacute negaccedilatildeo de negaccedilatildeo
Conjunccedilatildeo
correlativa
Adverbio
relativo
sujeito verbo objeto
Verso 23 ἡ μὲν
Oraccedilatildeo 1 ὅπως --- ἔστιν ---
Oraccedilatildeo 21
Oraccedilatildeo 22
ὡς
ὡς
---
μὴ εἶναι
οὐκ ἔστι
οὐκ ἔστι
μὴ εἶναι
---
O grande misteacuterio destas palavras eacute exatamente que o sujeito sintaticamente explicito ou
subentendido mas necessariamente claro na primeira oraccedilatildeo natildeo aparece e talvez na segunda
108
tambeacutem natildeo Natildeo conveacutem nestas paacuteginas reconstruir a discussatildeo dos vaacuterios estudiosos em relaccedilatildeo
a esta falta145 de nosso lado enfrentaremos a questatildeo por outras providecircncias que em breve seratildeo
apresentadas Por enquanto vamos aproveitar o resumo das possibilidades de soluccedilatildeo reportadas
por Cordero (2005) Para o estudioso haacute quatro possibilidades a saber ldquoa) trata-se de um erro de
transmissatildeo de texto Se assim for este deve ser corrigido introduzindo o sujeito ausente b) haacute um
sujeito conceitual impliacutecito que deve ser buscado no resto do Poema c) natildeo haacute nenhum sujeito
possiacutevel e d) o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois o eacutestin ldquoproduzrdquo o sujeito As
quatro possibilidades encontraram defensoresrdquo 146
Natildeo penso que seja o caso de tomar partido agora faremos isto somente no fim de a nossa
anaacutelise por enquanto vamos prosseguir com as nossas consideraccedilotildees A primeira delas eacute que as
duas oraccedilotildees natildeo satildeo simplesmente conjuntas elas satildeo mais do que conjuntas porque apresentam
145O problema principal eacute a interpretaccedilatildeo do estin da primeira oraccedilatildeo Em grego esta sintaxe representa uma anomalia
e por causa disso a leitura natildeo encontra nenhuma regra interpretativa direta restando apenas a possibilidade de
interpretaccedilotildees indiretas e portanto fortemente controversas Reporto aqui como exemplo aleacutem das quatro linhas
interpretativas agrupadas por Cordero e apresentadas acima dois exemplos radicalmente opostos e inconciliaacuteveis
mas cada um com seu fundamento (indireto) impossiacutevel de ser contestado cabalmente O primeiro eacute de Robinson
o qual deixa em aberto as vaacuterias interpretaccedilotildees possiacuteveis do sujeito de estin e as vaacuterias interpretaccedilotildees possiacuteveis do
proacuteprio estin (se existencial locativo ou outros) com uma uacutenica exceccedilatildeo a saber o estin natildeo pode ser impessoal
ldquoThings are a little more problematic when the verb is used absolutely since one has to decide between the
existential the locative and the veridical interpretation or should one hesitate to back one or other exclusively to
leave open the possibility of multiple interpretations in any particular instance What seems out of the question
however is an interpretation of the absolute use of the verb to be as an impersonal use no-one to my knowledge
has ever yet been able to produce an instance of meaning it is in a way linguistically analogous to meaning it rains
or meaning it snows Whatever we know about the verb to be in Greek indicates that it always has a subject Since
none is specified here I take it that the only fair thing to do is to say so and leave the matter in abeyance until such
time as Parmenides himself decides to let us in on his secretrdquo (Robinson 1975 p 625)
Mas exatamente do lado oposto Cordero defende o sujeito impessoal (para o qual ele daacute uma interpretaccedilatildeo
especiacutefica dos verbos impessoais) e diz ldquoSi tenemos em cuenta esta interpretaccedilatildeo de los verbos impersonales no
dudamos em afirmar que em 23a y 25a los dos eacutestin em tanto elementos autoacutenomos hasta entonces estaacuten
utilizados de forma impersonal Entonces del mismo modo em que ldquollueverdquo significa ldquose da ahora el hecho de
lloverrdquo ldquoel llover estaacute presente ahorardquo ldquoesrdquo significa ldquose da ahora el hecho de serrdquo ldquoel hecho de ser estaacute presente
ahorardquo (Cordero 2005 p 70) 146Cordero 2005 p 63
109
uma uacutenica noccedilatildeo em trecircs variaccedilotildees ἔστιν οὐκ ἔστι e μὴ εἶναι satildeo variaccedilotildees do campo semacircntico
de εἰμί o verbo ser Seriam simplesmente conjuntas se apresentassem verbos e objetos diferentes
Naturalmente uma construccedilatildeo deste tipo com verbos e objetos diretos diferentes seria possiacutevel147
e apresentaria duas oraccedilotildees sintaticamente independentes e conjuntas Mas no nosso caso a
construccedilatildeo eacute feita com trecircs formas do mesmo verbo que muito dificilmente tecircm uma conexatildeo
apenas conjuntiva
Ademais a segunda afirmaccedilatildeo duplamente negativa faz pensar agrave estrutura da citaccedilatildeo
platocircnica a qual natildeo eacute sintaticamente igual mas muito semelhante que nunca os natildeo entes sejam
onde tambeacutem uma negaccedilatildeo duplamente reforccedilada (Οὐ δαμῇ ndash μήποτε) recusa existecircncia aos natildeo
entes implicando apenas variaccedilotildees formais de εἶναι desta vez com o particiacutepio no neutro plural
τὰ ἐοντα que natildeo estaacute presente no fr 2
Estes elementos a mais precisam ser investigados Vamos comeccedilar pela conjunccedilatildeo148 τε καὶ
em geral traduzido por simples conjunccedilatildeo pelos criacuteticos assume aqui um valor mais forte O fato
que seja uma conjunccedilatildeo elimina de iniacutecio a interpretaccedilatildeo do verso 3 como uma disjunccedilatildeo149 Mais
que uma conjunccedilatildeo as duas subordinadas satildeo ligadas por uma conexatildeo vital onde o τε καὶ no
sentido de lsquotambeacutemrsquo ou ateacute mesmo lsquoambosrsquo representa a conjunccedilatildeo de uma segunda parte
reforccedilando a primeira natildeo porque explica mas simplesmente porque as duas fazem parte de um
147Por exemplo ldquoos uacutenicos caminhos de inqueacuteritos a pensar por um lado que examina e que natildeo eacute natildeo avaliarrdquo 148 Humbert (1954) ldquoDrsquoailleurs drsquoune faccedilon geacuteneacuterale une certaine indetermination inseparable de la poesie qui
exprime moins qursquoelle ne suggegravere est peu favorable agrave un employ rigoreux et preacutecis des particulesrdquo (p 370) 149Mansfeld (1960) reportado por Meijer (1997 p 100 and passim) O argumento de Mansfeld parte da consideraccedilatildeo
de que o silogismo disjuntivo natildeo precisa de sujeito (aqui o argumento de Parmecircnides natildeo precisaria de um sujeito
para o esti) A (ἔστιν) ou B (οὐκ ἔστι μὴ εἶναι)
110
todo150
Este reforccedilo da conjunccedilatildeo diria ateacute mesmo esse entranhamento pode ser melhor notado se
fazemos a comparaccedilatildeo do segundo emistiacutequio (ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι) com a citaccedilatildeo platocircnica do
bordatildeo parmenidiano (71 Οὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῇ φησίν εἶναι μὴ ἐόντα)
Expressatildeo da negaccedilatildeo Verbo ldquosujeitordquo da
completiva
negado
Citaccedilatildeo platocircnica Τοῦτο Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα
Segundo emistiacutequio οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
O paralelismo segundo esta construccedilatildeo embora de iniacutecio possa parecer improacuteprio natildeo soacute
natildeo eacute impossiacutevel como tambeacutem me parece respeita mais fielmente o texto de Parmecircnides Ou seja
a dinacircmica principal da expressatildeo a injunccedilatildeo da deusa eacute dada pelo verbo οὐ δαμῇ o qual
independentemente de toda a discussatildeo filoloacutegica possiacutevel151 apresenta um sentido claro natildeo deve
prevalecer o pensamento de que os natildeo-entes sejam
Natildeo prevaleccedila isto natildeo prevaleccedila que os natildeo-entes sejam A equivalecircncia entre isto (τοῦτο)
e que os natildeo-entes sejam (εἶναι μὴ ἐόντα) fica clara Neste caso fica claro tambeacutem o sentido e o
150Aparentemente (pelo que pude descobrir) natildeo haacute estudos atuais completos sobra as partiacuteculas em grego antigo e
parece que o uacuteltimo foi de Denniston (1954) De laacute para caacute as partiacuteculas foram estudadas por trabalhos especiacuteficos
e separadamente por aacutereas literaacuterias (eacutepica trageacutedia etc) deixando uma lacuna na poesia onde o uso eacute muito menos
rigoroso (ver n 17) e oferece maiores dificuldades de interpretaccedilatildeo Um status questionis da problemaacutetica de te kai
possivelmente encontra-se em um artigo de proacutexima publicaccedilatildeo do qual por enquanto soacute consegui o abstract
Bonifazi (2012)rdquo 151Discussatildeo natildeo pequena posto que δαμάζω pode ser ativo ou passivo e δαμῇ eacute melhor entendido em sentido ativo
mas eacute exclusivamente atestado em passivo gerando inseguranccedila sobre as funccedilotildees de τοῦτο e μὴ ἐόντα e ateacute mesmo
obrigando LSJ a postular um uso novo em Parmecircnides e traduzir ad sensum ldquoit shall never be proved thatrdquo (LSJ
δαμάζω V)
111
paralelismo com 23 De fato lsquonatildeo prevaleccedilarsquo (natildeo venccedila nunca seraacute provado ou todas as variaccedilotildees
que os vaacuterios estudiosos excogitaram) significa de fato lsquoque natildeo aconteccedilarsquo lsquoque natildeo sejarsquo e afinal
lsquoοὐκ ἔστιrsquo Esta eacute a tese de Parmecircnides assim como apresentada por Platatildeo Este eacute o sentido mais
seguro confortado pelo mais antigo testemunho e pela mais alta autoridade filosoacutefica da
antiguidade Platatildeo que se dedicou com afinco ao estudo de Parmecircnides ao ponto natildeo soacute de lhe
dedicar dois diaacutelogos e muitas passagens mas ateacute mesmo de afirmar muito modestamente de natildeo
ter certeza de ter entendido o veneraacutevel e terriacutevel eleata
Muitos autores se referem a Parmecircnides como o filoacutesofo do ser152 isto estaacute certo Mas muitos
se esquecem de lembrar que ele eacute o filoacutesofo do natildeo ser e isto natildeo faz justiccedila ao eleata Vamos entatildeo
esclarecer essa noccedilatildeo posto que vem exatamente de Platatildeo e que certa orientaccedilatildeo da antiga escola
alematilde de histoacuteria da filosofia colocou na sombra em favor da noccedilatildeo de ser O segundo hemistiacutequio
de 23 soa assim (os uacutenicos caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado) [] que natildeo eacute natildeo
ser O fato singular eacute que aleacutem da repeticcedilatildeo da negaccedilatildeo tem tambeacutem a repeticcedilatildeo do verbo εἰμί
Obviamente natildeo se trata de uma ditografia e portanto teremos que diferenciar o primeiro negar
(οὐκ ἔστι) do segundo negar (μὴ εἶναι) O primeiro negar eacute feito pela partiacutecula negativa οὐκ e o
presente do indicativo ἔστι A traduccedilatildeo simples e direta soa natildeo eacute De iniacutecio ndash apenas de iniacutecio
pois a seguir se veraacute que οὐκ ἔστι eacute modal ndash natildeo parece haver dificuldade quanto agrave traduccedilatildeo em si
restando apenas o problema da falta de sujeito Se lsquonatildeo eacutersquo estaacute certo resta descobrir ao que se refere
152Atualmente haacute autores que evitam ateacute a questatildeo do ser e que se limitam apenas ao verbo ser isto eacute a questotildees
linguiacutesticas Para estes criacuteticos Henn estreia uma nova categoria a ontofobia ldquoConteporary critics avoid talk of
fundamental existence because the concept of Being-as-such makes them feel unconfotable and remains for them
a nebulous indeterminate cipher an empty notion this ontophobia however has no grounding in factrdquo (Henn
2003 p 120)
112
e natildeo haacute outro candidato a ser alvo dessa negaccedilatildeo que o seguinte μὴ εἶναι
Natildeo parece haver atestaccedilatildeo de μὴ εἶναι na poesia eacutepica Pela pesquisa no TLG as primeiras
atestaccedilotildees parecem ser da eacutepoca de Parmecircnides se natildeo sucessivas sendo que neste uacuteltimo caso
ele deve estar entre os primeiros a usar esta expressatildeo Mas aguardando resultados filoloacutegicos mais
precisos podemos dizer que a noccedilatildeo de εἶναι contida no segundo negar natildeo deve ser a mesma do
primeiro sob pena de gerar uma contradiccedilatildeo de termos incompreensiacutevel mas que justamente neste
sentido aticcedilou a fantasia de muitos criacuteticos Penso por exemplo agravequeles que quiseram ver as duas
negaccedilotildees apenas no sentido gramatical153 e acabam achando o argumento de Parmecircnides fraco ou
tautoloacutegico quando natildeo inconsistente Mas o primeiro negar (οὐκ ἔστι) quer negar um outro negar
(μὴ) especiacutefico aquele que nega εἶναι154
153Por exemplo C Kahn cuja uacutenica conclusatildeo segundo sua leitura seria que ldquoIf we restate Parmenidesrsquo claim in the
modern formal mode it might run lsquom knows that prsquo entails lsquoprsquo In Kahn (2009) pp 153-4
Kahn eacute um interprete famoso e importante do texto parmenidiano Segundo ele proacuteprio relata ao se dedicar ao
estudo de Parmecircnides se deparou com a dificuldade de entender o uso que o eleata faz do verbo ser e aleacutem disso
se deparou com uma carecircncia de estudos a respeito Mergulhou assim no estudo de einai e produziu um dos mais
importantes trabalhos sobre o assunto que jaacute foram escritos The verb be in ancient Greek que recebeu uma segunda
ediccedilatildeo ampliada em 2003 depois de mais de 30 anos Resumidamente Kahn identifica seis grupos de uso do verbo
ser o uacuteltimo dos quais eacute um uso que segundo ele comeccedila com Parmecircnides Os primeiros cinco usos satildeo
encontrados em Homero o sexto eacute poacutes-homeacuterico tipo I uso vital tipo II (que se divide em IIA e IIB) afirmaccedilotildees
mistas de objetos singulares tipo III locativo existencial tipo IV o operador da frase existencial tipo V eimi como
predicado superficial ou verbo de ocorrecircncia jaacute o sexto natildeo recebe uma definiccedilatildeo uacutenica porque apresenta variaccedilotildees
complexas as quais tornam ldquothe Type VI the most problematic of all uses of eimirdquo (p 300) Chega ele entatildeo a mais
um tipo de uso que ele chama veridic que talvez em portuguecircs seja melhor rendido por veritativo O uso
veritativo seria afinal uma nuance do uso existencial Em relaccedilatildeo a Parmecircnides o grande aparato colocado em
jogo por Kahn esconde todavia alguns problemas os quais natildeo aparecem no estudo em questatildeo mas nos artigos
especiacuteficos sobre o eleata Aqui reporto aquele que me parece o seu erro fundamental alguns outros satildeo abordados
em minha recensatildeo a Essays on being (Galgano 2012) No seu famoso ldquoThe thesis of Parmenidesrdquo (originalmente
em Review of Metaphysics 1969 e aqui retomado de Essays on being 2009) Kahn potildee a questatildeo desta forma
ldquoQual era a pergunta que Parmecircnides fez a si proacuteprio e para a qual ele pensava que sua tese fosse a respostardquo (p
144) Kahn assim responde
ldquoThe problem which Parmenides raises from the beginning of his poem is not the problem of cosmology but
the problem of knowledge more exactly the problem of the search for knowledge the choice between
alternative ways for thought and cognition to travel on in pursuit of Truthrdquo (p 147) 154Um bom estudo sobre a diferenccedila entre estas duas negaccedilotildees encontra-se em Cassin 1998 p 200-211
113
Vou repetir a sequecircncia porque por um lado a accedilatildeo do primeiro negar eacute predicativa por outro
lado a noccedilatildeo predicada eacute maacutexima e acaba por gerar um pequeno desconforto argumentativo O
primeiro negar nega um segundo negar este segundo negar nega εἶναι Ou seja o segundo negar eacute
um lsquonegar algo especiacutefico (εἶναι)rsquo O conceito se torna claro se se manteacutem presente o sentido
psicoloacutegico muito mais que o gnosioloacutegico da expressatildeo parmenidiana Negar algo eacute o que fazem
ambas as expressotildees tanto do primeiro quanto do segundo negar Mas o segundo negar eacute a accedilatildeo
especiacutefica de negaccedilatildeo de εἶναι a qual eacute uma accedilatildeo da mente eacute um comportamento concreto o
comportamento mental de negar εἶναι Parmecircnides diz que o caminho persuasivo eacute aquele que nega
que se possa ter o comportamento mental especiacutefico de negar εἶναι natildeo eacute possiacutevel (ter o
comportamento mental de) negar εἶναι
Este eacute um ponto que gerou muita confusatildeo Parmecircnides natildeo nega que se tenha que negar
como se ele proacuteprio ao dizer que o natildeo ser natildeo eacute estivesse cometendo o maior dos disparates auto-
contraditoacuterios Satildeo muitiacutessimos os que interpretam Parmecircnides desta forma e depois cansados de
natildeo achar o fio da meada acabam dizendo que Parmecircnides eacute o filosofo do ser (apenas) Parmecircnides
usa gramaticalmente a negaccedilatildeo e tambeacutem a usa gnosiologicamente e epistemicamente Daacute para se
dizer mais daacute para dizer que ele usa a negaccedilatildeo de forma magistral como poucos souberam usar na
histoacuteria da filosofia De fato o segundo hemistiacutequio assevera que haacute um percurso mental que eacute
persuasivo (v 4) quando natildeo segue μὴ εἶναι Mais uma vez o percurso mental de inqueacuterito eacute
persuasivo quando natildeo se comporta mentalmente negando εἶναι quando natildeo tem a atitude de negar
εἶναι Resta descobrir o que eacute εἶναι
εἶναι eacute um infinitivo Como se sabe o infinitivo eacute a expressatildeo verbal depauperada de todo
sentido acessoacuterio ao ponto que ldquoCrsquoest de cette faccedilon neacutegative que lrsquoinfinitif a eacuteteacute deacutefini comme
114
repreacutesentant lrsquoideacutee verbale nuerdquo155 Os mais variados estudos natildeo conseguiram explicar de forma
convincente um sentido especiacutefico para o uso feito por Parmecircnides Por exemplo ldquoThe verb lsquobersquo
in ancient Greekrdquo156 um dos estudos mais completo sobre o tema se vecirc obrigado a atribuir a
Parmecircnides um uso supostamente novo mas de forma improacutepria e desnecessaacuteria157 Eu penso que
quando Parmecircnides quis utilizar um novo sentido inventou um novo termo to eon (invenccedilatildeo na
linha jaacute consolidada de substantivar verbos no gecircnero neutro) Natildeo fez o mesmo com εἶναι e suas
demais formas verbais razatildeo pela qual o sentido deve ser buscado nas acepccedilotildees tradicionais que
satildeo muacuteltiplas e equiacutevocas como diraacute mais tarde Aristoacuteteles
No infinitivo εἶναι expressa a ideia geral do verbo num campo semacircntico que vai desde
lsquopresenccedilarsquo e ateacute a funccedilatildeo predicativa comum a muitas liacutenguas indo-europeias Eacute inuacutetil buscar um
sentido preciso como lsquoexistirrsquo ou lsquoestar presente localmentersquo ou outro εἶναι significa tudo isto
principalmente porque usado na forma negativa se propotildee a negar qualquer positividade logo se
trata da negaccedilatildeo da presenccedila (sentido locativo) do atributo (sentido predicativo) da vardade
(sentido veritativo) da existecircncia (sentido existencial) e todos os demais sentidos e as demais
nuances que εἶναι pode ter genericamente podemos nos limitar ao sentido existencial porque eacute
mais cocircmodo para a nossa liacutengua exatamente na medida em que para a nossa compreensatildeo atual
155Humbert (1954) p 125 156Kahn (2003) passim 157Kahn extrai o sentido de εἶναι em Parmecircnides natildeo do uso que o eleata faz mas do contexto geral da mensagem
parmenidiana Teoricamente seria um meacutetodo viaacutevel posto que se consiga entender corretamente a mensagem do
filoacutesofo Na praacutetica no caso do poema de Parmecircnides que verte exatamente sobre εἶναι e seus derivados haacute um
risco enorme ndash ao qual em minha visatildeo Kahn sucumbiu ndash de cair num petitio principii onde o sentido de εἶναι eacute
extraiacutedo da mensagem filosoacutefica geral (Kahn o extrai de 129 que eacute o lsquoiacutendice parmenidianorsquo e portanto poderia
oferecer a ideia geral do poema) e por sua vez a mensagem filosoacutefica eacute obtida a partir do sentido de εἶναι Kahn
acredita ter encontrado no sentido lsquoveritativorsquo o novo uso que Parmecircnides faz de εἶναι
115
qualquer um dos outros sentidos estaacute incluiacutedo necessariamente no sentido existencial Em
portuguecircs a palavra que expressa εἶναι com a mesma equivocidade ou pluralidade de sentido numa
riqueza proacutexima ao grego eacute o verbo lsquoserrsquo158 Parece-me perfeitamente inuacutetil cercear o sentido de
forma francamente artificial para dar espaccedilo a polecircmicas fictiacutecias159 Ateacute mesmo para a acepccedilatildeo de
lsquoexistirrsquo se construiacuteram criacuteticas factoacuteides onde se chega a discutir se Parmecircnides pensasse ou natildeo
que seres natildeo existentes como quimeras e outros seres mitoloacutegicos pudessem ser incluiacutedos na
leitura predicamental160 Principalmente eacute necessario manter a equivocidade do termo porque
corresponde agrave forma mentis do autor e natildeo se deve exigir distinccedilotildees que natildeo eram processadas por
aquela cultura sob pena mais uma vez de atribuir aos antigos a nossa proacutepria forma mentis pecado
158Para εἰμί o dicionaacuterio LSJ apresenta sete campos (de A a G) com 16 acepccedilotildees e mais vaacuterias subacepccedilotildees Para o
verbo lsquoserrsquo o dicionaacuterio Houaiss apresenta 19 acepccedilotildees das quais 14 verbais e 5 como substantivo as subacepccedilotildees
satildeo exemplificadas mas natildeo classificadas 159 Um interessante resumo dessas polecircmicas pode ser visto em Gallop (1979) embora eu natildeo compartilhe a sua
interpretaccedilatildeo do fragmento 2 Apoacutes fazer criacuteticas detalhadas a Kirk amp Raven Mourelatos Kahn Furth e ateacute mesmo
Owen do qual compartilha a interpretaccedilatildeo existencial ele faz uma paroacutedia do Hamlet de Shakespeare e imagina o
famoso monoacutelogo sem o resto da peccedila faltando pedaccedilos e o verso seguinte ao to be or not to be na paroacutedia ele
imagina os criacuteticos se perguntando a respeito do sentido veritativo ou predicativo e se to be or not to be that is the
question onde a questatildeo seria se haacute de ser ou natildeo ser branco (predicativo) ou haacute ou natildeo haacute um hipopoacutetamo no
zooloacutegico (existencial) ou se ser branco ou natildeo ser branco eacute o caso (veritativo) (p 74-75)
Uma situaccedilatildeo teatral se encontra tambeacutem em Furth (1974) o qual imagina um diaacutelogo entre Parmecircnides e
Betathon um alieniacutegena cujos pressupostos ontoloacutegicos proacuteprios (a persons ontology p 250) satildeo totalmente
diferentes Furth conclui que Parmecircnides usa um meacutetodo eleacutenctico do qual a ontologia apresentada no poema eacute
um mero corolaacuterio 160De novo Kahn (2009) que diz ldquoTo take the philosophical objection first it is simply false to say that you cannot
think or talk about (point out in speech phrazein) what does not exist And the falseness of this would be obvious
to any Greek who reflected for a moment on the profusion of monsters and fantastic creatures in traditional poetry
and myth from Pegasus to the children of Gaia with a hundred arms and fifty heads apiece (Hesiod Theogony
150)rdquo (p172) Mais agrave frente mostramos que exatamente na questatildeo filosoacutefica Kahn estaacute errado e Parmecircnides estaacute
certo eacute impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ser
E na onda de Kahn muitos outros autores simplesmente esquecem o desafio filosoacutefico de Parmecircnides e
restringindo o texto agrave questatildeo gramatical afirmam que Parmecircnides escreveu disparates Veja-se esse exemplo de
dois autores um (Bredlow) citando o outro (Ketchum) (a respeito da rejeiccedilatildeo da via do natildeo eacute) ldquoOn the existential
interpretation this argument becomes utterly unsound of course we can talk of the nonexistentrdquo e na nota que
acompanha ele continua ldquoAs Ketchum (1990 186) rightly states ldquoMost of what Parmenides tells us about why
what-is-not is unthinkable etc is false and if I may say so fairly obviously false on the existence interpretationrdquo
(Bredlow 2011 284) Parmecircnides natildeo escreveu disparates os autores acima estatildeo equivocados
116
fatal para um historiador da filosofia161
Entatildeo de iniacutecio a traduccedilatildeo de μὴ εἶναι com lsquonatildeo serrsquo ateacute mesmo por ser equiacutevoca (para a
nossa sensibilidade) manteacutem a equivocidade proacutepria da eacutepoca e da liacutengua da eacutepoca162 Posta entatildeo
esta equivocidade precisamos saber se expressa um sentido filosoacutefico antes de tudo para a eacutepoca
e depois para noacutes A comparaccedilatildeo de 23 οὐκ ἔστι μὴ εἶναι com 71 Οὐ δαμῇ εἶναι μὴ ἐόντα que eacute
o testemunho de Platatildeo nos faz entender que nestas palavras natildeo soacute se encontra um sentido
filosoacutefico mas ateacute mesmo o sentido principal da filosofia de Parmecircnides Retomando entatildeo a
construccedilatildeo precisamos entender porque pensar o natildeo ser (μὴ εἶναι) eacute algo que natildeo eacute possiacutevel ou
que natildeo se deve ou que simplesmente natildeo eacute (natildeo acontece) segundo a expressatildeo usada por
Parmecircnides οὐκ ἔστι
Haveria outras possibilidades de traduccedilatildeo163 mas estas variaccedilotildees podem ser interessantes
para evidenciar nuances aqui e acolaacute mas tendo a possibilidade de utilizar o verbo lsquoserrsquo num uso
proacuteximo do grego natildeo precisamos recorrer agrave circumlocuccedilotildees e podemos traduzir οὐκ ἔστι com
161Veja-se este exemplo Falando a respeito de DK B2 Tugwell diz ldquoParmenides went wrong on two points first in
his belief that existence is an essential property of a thingrdquo (Tugwell 1964 p 36) Natildeo um soacute dos conceitos
envolvidos pertence agrave eacutepoca de Parmecircnides nem existecircncia nem propriedade essencial e nem mesmo coisa que
para Parmecircnides eacute algo receacutem inventado por ele mesmo (eon) e tem dimensatildeo coacutesmico-ontoloacutegica muito diferente
da noccedilatildeo aqui expressa que poderia muito bem ser substituiacuteda por uma variaacutevel x por exemplo Mas haacute tambeacutem
estudos que privilegiam o enfoque linguiacutestico mas natildeo fogem do questionamento ontoloacutegico como por exemplo
o de Sandywell que chega a interpretar o poema tratando-o estrategicamente como um poderoso trabalho de
retoacuterica (Sandywell 1996 p 319 mas se veja o inteiro capiacutetulo p 295-335) 162A ambiguidade semacircntica de einai eacute defendida tambeacutem por Trindade Santos (Santos 2007) poreacutem com outros
argumentos 163 Um outro caminho possiacutevel de traduccedilatildeo utilizado principalmente pelos autores de liacutengua inglesa por motivos
idiosincraacutesicos da liacutengua eacute utilizar uma expressatildeo cuja noccedilatildeo tambeacutem eacute ampliacutessima e equiacutevoca lsquocoisarsquo Mas esta
expressatildeo por ser um substantivo natildeo possui o aspecto dinacircmico que o verbo tem sendo assim necessaacuterio
acrescentar o verbo ser portanto eacute possiacutevel traduzir com lsquoas coisas que satildeorsquo Outra possibilidade eacute usar o pronome
lsquoquersquo em sentido predicativo em substituiccedilatildeo de coisa ou coisas Outra ainda eacute o pronome demonstrativo (aquilo
isto) ou o indefinido (algo) com a mesma funccedilatildeo substitutiva de coisa(s) no sentido mais indefinido possiacutevel
117
lsquonatildeo eacutersquo164 e μὴ εἶναι com lsquonatildeo serrsquo Diz o segundo hemistiacutequio
Os uacutenicos caminhos de inqueacuterito ao pensar satildeo
Por um lado [] e que natildeo eacute natildeo ser
Se tiveacutessemos seguido a ordem metodoloacutegica tradicional ao examinar 23 teriacuteamos analisado
primeiro ἔστιν e depois οὐκ ἔστι μὴ εἶναι E se agora depois de estudar o segundo hemistiacutequio
voltaacutessemos nossa atenccedilatildeo ao primeiro hemistiacutequio natildeo teriacuteamos ganho metodoloacutegico nehum pois
redundariacuteamos na leitura por pressupostos onde o sentido de ἔστιν eacute obtido pelo pressuposto de
que ἔστιν significa em grego lsquoeacutersquo mas dessa forma se chega aos resultados inconclusivos jaacute
tentados por vaacuterios ou ateacute mesmo por todos os estudiosos165 O dado concreto eacute que o poema natildeo
oferece nenhuma definiccedilatildeo direta de ἔστιν embora apresente muitos σήματα de ἐὸν 166 Em
164Laacute onde em inglecircs haacute obrigatoriedade de se explicitar o sujeito lsquowhat is notrsquo 165Haacute muitos estudos sobre o estin parmenidiano do verso 3 do fragmento DK 2 Principalmente depois dos primeiros
questionamentos a respeito do assim chamado sentido existencial ou melhor dizendo depois que alguns criacuteticos
ndash entre os que iniciaram o mais citado parece ser Calogero ndash comeccedilaram a sugerir que atraacutes do estin natildeo se escondia
uma questatildeo filosoacutefica mas uma questatildeo linguiacutestica Lendo trabalhos recentes se tem a impressatildeo que os estudiosos
natildeo querem explicar a filosofia de Parmecircnides mas o estin de Parmecircnides alguns acham que natildeo haacute outro jeito a
natildeo ser explicar o estin como na citaccedilatildeo a seguir ldquoAny interpretation of this crucial passage has to begin by
answering two related questions (1) what is the subject of is at B23 and 5 and (2) what is the sense of the word
isrdquo (Bredslow 2011 283) Por sorte alguns autores percebem que natildeo faz muito sentido (filosoacutefico) correr atraacutes
do estin isoladamente ldquo[] it seems to me that in order to unpack the true meaning of this floating and isolated
verb we must look not to its history and contemporary usagemdashas if the one word could stand by itselfmdashbut to the
negations in which the esti is cashed out right in the same line and then extensively in fragment 8 We will then it
is true be without an explanation in the verb itself for why these specific signposts or road-markers are chosen
But we will at least be able to monitor more closely how the esti actually behavesrdquo (Austin 2014 p 4) 166Trata-se de outra confusatildeo muito comum entre os estudiosos principalmente os mais atuais menos habituados agraves
insiacutedias do texto de Parmecircnides De fato sem poder justificar e compreender o estin no fragmento 2 recorrem aos
argumentos do fragmento 8 Mas os argumentos do fragmento 8 se referem ao eon algo totalmente diferente do
estin gerando todo tipo de gongorismo argumentativo Veja-se uma discussatildeo deste tipo em Stokes onde o autor
discute as vaacuterias noccedilotildees incluindo vaacuterios fragmentos chamando em causa alguns interlocutores (Owen Taraacuten
Sprague) num carroussel hermenecircutico impressionante (Stoke 1971 p 109-148)
118
compensaccedilatildeo o poema fala amplamente de μὴ εἶναι E natildeo precisa ir muito longe para encontrar
referἑncias para a noccedilatildeo de μὴ εἶναι pois encontramos muitos dados nos versos de 5 a 8 do nosso
fragmento Iremos portanto ao verso 25 e subsequentes
424 Os versos 5 a 8 ἡ δ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι
425 τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔμμεν ἀταρπόν
426 οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)
427 οὔτε φράσαις
Vamos relembrar a letra ἡ δ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι μὴ εἶναι Haacute uma construccedilatildeo
paralela ao verso 3 dois hemistiacutequios onde no segundo encontramos nosso μὴ εἶναι e o caminho eacute
chamado de παναπευθέα termo que muito fez e faz sofrer os filoacutelogos O sentido geral poreacutem eacute
claro quer se queira traduzir como lsquode todo incriacutevelrsquo167 ou como lsquocompletamente inconosciblersquo168
ou lsquowholly without reportrsquo169 ou como outro Em suma a noccedilatildeo geral eacute que haacute uma dificuldade
intransponiacutevel em seguir este caminho e o por que eacute explicado a seguir Aqui tambeacutem Parmenides
primeiro enuncia a tese (segundo a conveniecircncia da expressatildeo de uma deusa) e depois propootildee o
argumento explicando o porquecirc do enunciado Ora a novidade cultural eacute exatamente esse porquecirc
167Cavalcante de Souza (1978) 168Cordero (2005) p 219 169Coxon (2009) p 56
119
onde as afirmaccedilotildees natildeo satildeo mais apenas impostas por sua forccedila hieraacutetica mas precisam de
explicaccedilotildees170
O nosso primeiro problema eacute que os enunciados natildeo satildeo claros para noacutes Entatildeo podemos
pedir clareza aos argumentos Qual eacute o argumento Eis a resposta de Parmecircnides οὔτε γὰρ ἂν
γνοίης τό γε μὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν)οὔτε φράσαις Aqui a traduccedilatildeo eacute mais clara e natildeo haacute muita
divergecircncia entre os criacuteticos pois nem poderiacuteas conhecer o que natildeo eacute (pois eacute impossiacutevel) nem o
dirias Haacute aqui um claro objeto do discurso τό μὴ ἐὸν que sem hesitaccedilatildeo desta vez podemos
traduzir lsquoo que natildeo eacutersquo Sem hesitaccedilatildeo porque τὸ ἐὸν egrave uma expressatildeo desconhecida antes de
Parmecircnides aparece com ele egrave estudada por seus disciacutepulos e pelos seus criacuteticos (de Melisso a
Aristoacuteteles) e eacute reportada pela doxografia como invenccedilatildeo parmenidiana
A noccedilatildeo exposta por Parmecircnides eacute sequencial o caminho de inquerito que pensa οὐκ ἔστιν
aqui chamado de ἀταρπόν natildeo pode ser percorrido porque egrave impossiacutevel lsquoconhecerrsquo (γνοίης ndash
segunda pessoa do optativo aoristo ativo de γιγνώσκω) o que natildeo eacute e vamos deixar para depois a
questatildeo do dizer (οὔτε φράσαις) Vamos concentrar nossa atenccedilatildeo sobre γνοίης Para noacutes eacute menos
importante a traduccedilatildeo estilisticamente precisa e mais importante a precisatildeo da noccedilatildeo filosoacutefica
exposta Em relaccedilatildeo a esta palavra houve (e ainda haacute) uma discussatildeo acirrada Discute-se se traduzir
como lsquoconhecerrsquo como fazem alguns171 ou lsquoreconhecerrsquo como fazem outros172 e principalmente
que sentido atribuir ao lsquoconhecerrsquo Eu penso que considerado o contexto natildeo se trata do conhecer
170Rossetti (2010) A necessidade de explicaccedilotildees natildeo mais soacute dos autores mas tambeacutem da audiecircncia que agora requer
argumentos 171Gallop (1984) p 55 Coxon (2009) p 56 Taran (1965) p 32 mas tambeacutem muitos outros 172Barnes (1982) p 124
120
epistecircmico mas do conhecer gnosioloacutegico ou seja da capacidade que a mente possui de estabelecer
um processo de cognitivo E que se trate de processo eacute claro pela terminologia variada que
Parmecircnides usa mas principalmente pela sua ὁδός que ficaraacute para sempre como metaacutefora perfeita
dos procedimentos a serem tomados para realizar tarefas de qualquer natureza e viraacute a receber o
nome de meacutetodo
Para o meacutetodo do pensar epistecircmico diz Parmecircnides natildeo eacute conveniente correr sobre um
certo percurso porque sobre ele haacute ao menos uma etapa onde se deveria lsquoconhecerrsquo o τό μὴ ἐὸν
mas isto eacute impossiacutevel Na verdade os termos usado ἀνυστόν (reportado por Simpliacutecio) ou sua
variante ἐφικτόν (reportada por Proclo) tecircm ambos um sentido processual quero dizer que a tarefa
de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo apresenta uma impossibilidade que se realiza imediatamente mas uma
que implica um processo o qual eacute impossiacutevel porque natildeo pode ser levado a termo De fato ἀνυστόν
significa lsquoser completadorsquo lsquopraticaacutevelrsquo enquanto ἐφικτόν significa lsquofaacutecil de alcanccedilarrsquo lsquoacessiacutevelrsquo
Ambos os termos tecircm sentido dinacircmico e processual e a negaccedilatildeo que Parmecircnides faz significa que
este processo natildeo pode ser levado a termo
De que processo se trata Em minha visatildeo lembrando o Parmecircnides psicoacutelogo que
encontramos no verso 129 e de toda a discussatildeo sobre noein (cap 1) se trata do processo concreto
de pensar a negaccedilatildeo do ser Como pude notar na minha precedente dissertaccedilatildeo173 Parmecircnides eacute de
aacuterea de formaccedilatildeo pitagoacuterica e os pitagoacutericos ndash como nos diz Aristoacuteteles na Metafiacutesica174 ndash naquela
eacutepoca estudavam as oposiccedilotildees as mais abstratas tendo passado da oposiccedilatildeo mais antiga entre par
173Galgano (2010) cap 1 passim 174Aristoteles Metaph 986a15-26
121
e iacutempar correspondentes a limitado e ilimitado (πέρας e ἄπειρον) a um conjunto de dez oposiccedilotildees
Nada desabona uma possiacutevel tentativa de Parmecircnides buscar uma oposiccedilatildeo (que era feita tambeacutem
por negaccedilatildeo como nos evidencia a expressatildeo verbal da oposiccedilatildeo entre πέρας e ἄπειρον com o lsquoαrsquo
privativo) para o lsquotodorsquo aquele πάντα que encontramos no verso 128 do poema e que em breve se
transformaria em φύσις no curso da evoluccedilatildeo histoacuterica dos conceitos filosoacuteficos da antiga Greacutecia
A meditaccedilatildeo do lsquonatildeo serrsquo eacute das mais interessantes a se fazer na filosofia Tentar lsquopensarrsquo o
lsquonatildeo serrsquo eacute uma experiecircncia profunda que leva a consideraccedilotildees radicais natildeo soacute sobre a existecircncia
humana mas sobre a existecircncia como um todo Que Parmecircnides tenha se dedicado a esta meditaccedilatildeo
eacute seguro pois ele o diz diretamente em 22 quando afirma que os uacutenicos caminhos ao pensar satildeo
aleacutem daquele que pensa ἔστιν aquele que pensa οὐκ ἔστιν ou seja Parmecircnides se pocircs a pensar o
natildeo ser O que natildeo sabemos e natildeo podemos afirmar com certeza eacute que tipo de meditaccedilatildeo ele
realizou Eis que os termos ἀνυστόν e ἐφικτόν vecircm nos socorrer e nos dizem que se trata de uma
meditaccedilatildeo processual que natildeo acaba Descrevi este processo detalhadamente na dissertaccedilatildeo e o
repetirei aqui brevemente Antes de tudo temos que lembrar que Parmecircnides estuda o natildeo ser que
hoje depois de Platatildeo chamamos de natildeo ser absoluto Como sabemos que se trata do natildeo ser
absoluto Sabemo-o pela caracteriacutesticas que ele atribui ao οὐκ ἔστιν o sabemos pela temaacutetica
generalizante e absolutizante posta no Poema (panta 128) e compartilhada pela comunidade de
estudiosos da eacutepoca e ainda a contraprova temos o diaacutelogo O Sofista que Platatildeo escreveu para
corrigir Parmecircnides introduzindo o natildeo ser relativo (o natildeo ser enquanto outro) se Parmecircnides
tivesse tratado do natildeo ser relativo natildeo haveria necessidade nem de ldquoparricidiordquo e nem de escrever
O Sofista Pensar o natildeo ser significa pensar concretamente a negaccedilatildeo do ser concreto (do mundo
sensiacutevel ou inteligiacutevel) e pensar o natildeo ser absoluto significa pensar o natildeo ser te todas as coisas
122
tanto de cada ser quanto de todos os seres como um todo175 Para tornar mais claro o processo se
pode comeccedilar pensando (imaginando) a negaccedilatildeo de um ente depois daquilo que o rodeia depois
do planeta depois do universo (sensiacutevel e inteligiacutevel atual e possiacutevel) e depois do mundo como
um todo enfim do todo
Quando poreacutem se chega na negaccedilatildeo do todo surge uma questatildeo O pensamento encontra-
se diante do oceano infinito do nada mas o nada absoluto ainda natildeo foi alcanccedilado De fato ainda
haacute a presenccedila do sujeito que pensa Quando se pensa a negaccedilatildeo do todo permanece ainda o sujeito
pensante que pensa o todo como se o olhasse de um ponto virtual externo a ele E quando se tenta
incluir o sujeito pensante acontece uma de duas coisas possiacuteveis 1) ou o sujeito da cogniccedilatildeo
acreditando pensar a si proacuteprio dentro do todo reaparece externamente 176 ou 2) o sujeito
desaparece e com ele qualquer noccedilatildeo cognitiva de lsquonatildeo serrsquo Estas duas possibilidades estatildeo
descritas no fragmento 2 mas teremos que proceder passo a passo Por enquanto podemos dizer
claramente que o processo de pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo termina seja porque eacute impossiacutevel incluir o
sujeito no todo pois ele sempre reaparece a cada tentativa seja porque o processo quando inclui
o sujeito no todo se interrompe sendo assim impossiacutevel completar a negaccedilatildeo do todo Natildeo
podemos saber se o modelo meditativo de Parmecircnides foi exatamente este mas natildeo me parece
175Aqui pode-se incluir a negaccedilatildeo de qualquer tipo de ser existencial (isto natildeo existe) predicativo (isto natildeo eacute aquilo)
locativo (isto estaacute ausente) e as demais combinaccedilotildees possiacuteveis excogitadas pelos estudiosos (veritativo
predicamental especulativo whatness etc) Mesmo a respeito do estin predicativo negaacute-lo significa negar um
predicado de algo e ao se proceder para a negaccedilatildeo absoluta de qualquer predicado se chegaria agrave ideia virtual de
que poderiacuteamos alcanccedilar um ente sem predicados 176Se penso na aniquilaccedilatildeo de tudo incluindo a mim mesmo terei que pensar a mim mesmo aniquilado mas este
pensar a mim mesmo aniquilado gerando esse novo pensamento (de mim mesmo aniquilado) gera um novo mim
mesmo como sujeito cognitivo pensante se aniquilo este novo pensamento terei um novo sujeito cognitivo que
pensa esta nova aniquilaccedilatildeo e assim por diante ad infinitum
123
haver nada em desabono177
Mas qual eacute a importacircncia de natildeo se poder pensar a negaccedilatildeo de tudo Seguindo o argumento
parmenidiano o caminho (ἀταρπόν) cognitivo que pensa τό μὴ ἐὸν natildeo pode ser concluiacutedo Ora
ἀταρπόν eacute um sinocircnimo que Parmecircnides usa para o ὁδός do verso 22 (ὁδοὶ) isto quer dizer que o
segundo caminho de inqueacuterito pode ser iniciado mas natildeo pode ser levado a termo Mas se natildeo pode
ser levado a termo por que eacute identificado como caminho Por que natildeo eacute excluiacutedo jaacute de iniacutecio
quando a deusa ao inveacutes de anunciar os uacutenicos (μοῦναι) caminhos natildeo anuncia um uacutenico caminho
A resposta a esta pergunta torna clara a estranha afirmaccedilatildeo de que o caminho ao pensar do segundo
hemistiacutequio do verso 5 eacute necessaacuterio que permaneccedila natildeo ser (χρεών ἐστι μὴ εἶναι) Parmecircnides diz
que embora seja um caminho que jamais pode ser completado ele ao mesmo tempo natildeo pode ser
eliminado continua a pertencer aos (dois) uacutenicos caminhos de inqueacuterito ele eacute necessaacuterio
Vamos de novo reconstruir essa parte do argumento com este novo elemento os uacutenicos
caminhos de inqueacuteritos satildeo
1) por um lado o caminho ao pensar que [ (23-4)] e
2) por outro lado o caminho ao pensar que [ (25 primeiro hemistiacutequio)] e que eacute
necessaacuterio que seja natildeo ser de fato este segundo caminho (ἀταρπόν) eacute inviaacutevel porque lsquonatildeo
se consegue levar a cabo a reflexatildeorsquo (γνοίης) quando se pensa o τό μὴ ἐὸν
177Natildeo quero dizer que Parmecircnides estreie uma filosofia do sujeito embora isto natildeo possa ser excluiacutedo a priori jaacute que
aleacutem do ambiente propiacutecio dos jaacute citados Γνῶθι σαυτόν e ἐδιζησάμην ἐμεωυτόν (p 98 n 124 e 125) os embriotildees
de uma tal filosofia apareceratildeo em breve com Soacutecrates Penso que se deve pensar mais ao sujeito como o atleta
campeatildeo das Olimpiacuteadas ou seja aquele capaz de cumprir (ou natildeo) certas proezas como fica extraordinariamente
evidenciado no paradoxo de Zenatildeo cuja metaacutefora da filosofia (e do filoacutesofo) como tartaruga mostra que o pensar
filosoacutefico eacute capaz de proezas maiores do que as proezas do proacuteprio Aquiles tidas como insuperaacuteveis pela cultura
da eacutepoca
124
Ou seja fica muito clara a equaccedilatildeo entre o segundo caminho (25) e a reflexatildeo sobre o natildeo ser (τό
μὴ ἐὸν) Finalmente o segundo hemistiacutequio de 25 diz que este eacute o caminho ao pensar que eacute
necessaacuterio que seja μὴ εἶναι o qual agora sabemos eacute o caminho que tenta pensar o natildeo ser (τό μὴ
ἐὸν) Sabemos agora o que Parmecircnides chama de μὴ εἶναι Para Parmecircnides μὴ εἶναι eacute a estrutura
do pensamento quando tenta inexoraacutevel e malogradamente pensar o natildeo ser (τό μὴ ἐὸν)
Temos agora a semacircntica de μὴ εἶναι e sabemos que significa a impossibilidade de pensar o
natildeo ser Com este dado podemos reconstruir o resto do argumento mas primeiro vamos abordar a
questatildeo do οὔτε φράσαις A premissa principal eacute o pano de fundo da pesquisa parmenidiana a qual
devemos relembrar para melhor inteligecircncia desta passagem estaacute em busca do discurso confiaacutevel
como a deusa diz claramente no encerramento do discurso (talvez ecoando simetricamente alguma
parte perdida do poema)178 Pensar o τό μὴ ἐὸν natildeo eacute possiacutevel logo ele eacute indiziacutevel Ora isto
significa nem mais nem menos que dizer o que eacute impossiacutevel eacute contra o sentido do dizer Eacute indiziacutevel
natildeo porque natildeo se sabe do que se trata como querem muitos autores que fazem a leitura meramente
epistemoloacutegica179 Eacute indiziacutevel porque dizer o lsquonatildeo serrsquo significa fazer uma promessa que jamais se
cumpriraacute ao se dizer lsquonatildeo serrsquo parece que a expressatildeo aponta algo possiacutevel ou seja a negaccedilatildeo do
ser (em sentido geral amplo e absoluto) e de fato quem estaacute desavisado assim acredita Mas a
expressatildeo lsquonatildeo serrsquo quer se referir a uma virtualidade que jamais seraacute cumprida que o ser seja
negado Esta eacute exatamente a noccedilatildeo expressa pelas palavras de Platatildeo jamais prevaleceraacute que natildeo
178850-2 ldquoἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης δόξας δ ἀπὸ τοῦδε βροτείας μάνθανε κόσμον
ἐμῶν ἐπέων ἀπατηλὸν ἀκούωνrdquo Neste ponto encerro fidedigna palavra e pensamento sobre a verdade e opiniotildees
mortais a partir daqui aprende a ordem enganadora de minhas palavras ouvindo (trad Cavalcante de Souza 1978) 179Trata-se da leitura epistemoloacutegico-predicamental se natildeo sei a cor de um objeto (a cor natildeo eacute natildeo estaacute acessiacutevel ao
meu conhecimento) natildeo posso falar da cor do objeto
125
entes sejam180
A expressatildeo μὴ εἶναι representa esta impossibilidade de pensamento e portanto eacute um dizer
impossiacutevel e isto se opotildee radicalmente agrave proacutepria noccedilatildeo de dizer a qual quer significar enquanto
discurso confiavel o mundo e sua ordem Surge a pergunta mas se natildeo se pode dizer μὴ εἶναι se
isto eacute impossiacutevel natildeo haacute uma flagrante contradiccedilatildeo na deusa jaacute que ela proacutepria diz e constroacutei um
argumento sobre o dizer μὴ εἶναι181 A objeccedilatildeo seria vaacutelida se a deusa dissesse o que eacute impossiacutevel
de dizer ou seja se ela praticasse a impossibilidade Mas a deusa natildeo diz o impossiacutevel a deusa diz
que existem a lsquonoccedilatildeo de impossibilidade do pensarrsquo e a lsquonoccedilatildeo de impossibilidade do dizerrsquo Em
outras palavras a deusa diz qual eacute o limite do pensar e qual eacute o limite do dizer Aleacutem deste limite o
pensamento natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel e tambeacutem o dizer natildeo pode ir porque eacute impossiacutevel
A impossiacutevel regiatildeo para aleacutem deste limite natildeo eacute admitida pelo dizer eacute contra o dizer eacute
contraditoacuteria
A expressatildeo de μὴ εἶναι em Parmecircnides eacute exatamente a palavra que expressa o processo
mental que noacutes chamamos contradiccedilatildeo e que ele primeiro assim chamou (οὔτε φράσαις) Eacute estranho
que nenhum criacutetico tenha percebido isto claramente Todos dizem que o princiacutepio de natildeo
contradiccedilatildeo estaacute implicado em Parmecircnides assim como os outros princiacutepios loacutegicos pois os
argumentos presentes no poema satildeo desenvolvidos segundo a natildeo contradiccedilatildeo mas o princiacutepio natildeo
eacute enunciado Alguns como Cordero veem explicitado o princiacutepio do terceiro excluiacutedo (816 ἔστιν
ἢ οὐκ ἔστιν) mas ningueacutem quis ver claramente que natildeo soacute a noccedilatildeo como tambeacutem a proacutepria palavra
180As duas expressotildees tem inversatildeo de predicado e negaccedilatildeo mas a noccedilatildeo permanece a mesma que os entes natildeo sejam
(perecimento no fr 8) e que os natildeo entes sejam (nascimento no fr 8) A noccedilatildeo eacute o tracircnsito entre ser e natildeo ser 181Esta eacute uma das objeccedilotildees daqueles que acham que o argumento de Parmecircnides eacute falso ou contraditoacuterio
126
contradiccedilatildeo (οὔτε φράσαις) estaacute no poema Penso que a razatildeo fundamental para que acontecesse
este lapsus tenha que ser procurada na grande atenccedilatildeo dada ao lsquoserrsquo e na pouca dada ao lsquonatildeo serrsquo
Como veremos mais adiante por causa deste lapsus natildeo se conseguiu entender claramente a
estrutura do fragmento 2 o qual simplesmente natildeo apresenta um silogismo disjuntivo nem
nenhuma contradiccedilatildeo entre o caminho do lsquoserrsquo e o caminho do lsquonatildeo serrsquo Parmecircnides diz
justamente que a expressatildeo lsquonatildeo serrsquo eacute contraditoacuteria o lsquonatildeo serrsquo natildeo pode ser dito porque lsquonatildeo serrsquo
eacute contraditoacuterio e a expressatildeo lsquonatildeo serrsquo indica tatildeo somente uma impossibilidade concreta aquela de
que se realize o impossiacutevel
Vamos voltar ao nosso argumento e agrave questatildeo que deixamos em suspenso por que eacute
necessaacuterio que μὴ εἶναι seja Sabemos que os versos 7 e 8 relatam um processo malogrado de
pensar o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) Uso agora a palavra ente porque se justifica uma diferenciaccedilatildeo
embora tanto lsquoentersquo quanto lsquoserrsquo indiquem expressotildees gerais e natildeo individuais Ente entatildeo vem a
significar o ente concreto aquele que eacute Parmecircnides diz que natildeo se pode pensar e dizer τό μὴ ἐὸν
o lsquonatildeo entersquo Este processo recebe o nome de μὴ εἶναι lsquonatildeo serrsquo a este processo noacutes chamamos
contradiccedilatildeo 182 Entatildeo a indicaccedilatildeo eacute esta haacute um caminho ao pensar que pensa μὴ εἶναι (a
contradiccedilatildeo) e eacute necessaacuterio que assim seja porque (vou repetir trecircs vezes de forma diferente183 para
dizer a mesma coisa)
1) se natildeo houvesse a contradiccedilatildeo
182Mesmo para noacutes a contradiccedilatildeo eacute um processo porque indica a posiccedilatildeo de algo em contraposiccedilatildeo com mais algo
isto significa que estes dois algo tecircm que ser relacionados para que haja contradiccedilatildeo do contraacuterio algo e mais algo
podem conviver sem contraditoriedade Mas este assunto eacute fora de tema e requereria muitas outras providecircncias
para o bom discernimento 183Repito buscando clareza pois nossas construccedilotildees comuns de linguagem nesses assuntos costumam patinar
127
2) se natildeo se tem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
3) se natildeo se sabe o que eacute contradiccedilatildeo
se cai no discurso contraditoacuterio o que impede o inqueacuterito confiaacutevel Eacute necessaacuterio saber que μὴ
εἶναι (o processo de contradiccedilatildeo) eacute um caminho a ser evitado porque cria pensamentos e discursos
contraditoacuterios
Vejamos de novo nosso fragmento com os elementos esclarecidos ateacute aqui os uacutenicos
caminhos de inqueacuterito a pensar satildeo por um lado que [ (23-4)] e por outro lado que οὐκ ἔστιν e
que eacute necessaacuterio que seja a contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) a qual eacute um caminho natildeo criacutevel pois eacute
impossiacutevel pensar e dizer o natildeo-ente (τό μὴ ἐὸν) Penso que o espaccedilo conceitual deixado por οὐκ
ἔστιν agora se preencha quase que por si haacute um caminho de inqueacuterito ao pensar que lsquonatildeo eacutersquo e que
eacute necessaacuterio que se considere contraditoacuterio porque eacute caminho que natildeo leva a lugar nenhum
οὐκ ἔστιν eacute a negaccedilatildeo da terceira pessoa do indicativo de εἰμί a expressatildeo em si natildeo tem
nada de especial significa tatildeo somente lsquonatildeo eacutersquo restando em aberto o problema da ausecircncia de
sujeito Mas agora sabemos o argumento complexo que estaacute na raiz da expressatildeo e a meu ver natildeo
faz muito sentido a questatildeo de se buscar um sujeito ou um objeto para definir se eacute usado de forma
transitiva ou intransitiva se expressa existecircncia ou predicaccedilatildeo e as muitas combinaccedilotildees que podem
ser montadas a partir da equivocidade do uso de εἰμί No entanto o acircmbito semacircntico foi
evidenciado e estaacute claro e aleacutem do mais tem o testemunho de Platatildeo a confirmar o campo
semacircntico da negaccedilatildeo de εἰμί nas vaacuterias formas estaacute relacionado a uma reflexatildeo sobre a
impossibilidade desta negaccedilatildeo Obviamente para dizer que algo eacute impossiacutevel de alguma forma
tenho que indicar esta impossibilidade com a expressatildeo Assim se digo lsquotriacircngulo quadradorsquo aponto
para uma impossibilidade jaacute que por definiccedilatildeo a essecircncia do triacircngulo exclui a essecircncia do
quadrado logo a expressatildeo lsquotriacircngulo quadradorsquo natildeo significa aquilo que parece prometer ou seja
128
uma figura geomeacutetrica especial que eacute ao mesmo tempo triacircngulo e quadrado dizer triacircngulo
quadrado eacute dizer algo lsquoindiziacutevelrsquo lsquonatildeo diziacutevelrsquo (na medida em que o diziacutevel quer expressar sentido)
lsquoque nega o diziacutevelrsquo lsquoque eacute contra o diziacutevelrsquo que eacute contraditoacuterio
A semacircntica do lsquonatildeo serrsquo eacute fortiacutessima e estaacute muito aleacutem das sutilezas gramaticais
morfoloacutegicas e sintaacuteticas e estas simplesmente natildeo afetam aquela O assunto tratado eacute tatildeo forte
que ultrapassa qualquer forma linguiacutestica ao ponto de que este assunto a ordem do ser e do natildeo
ser no mundo eacute responsaacutevel pela determinaccedilatildeo da lei da linguagem e natildeo vice-versa como bem
entendeu Platatildeo no Sofista onde a teoria da predicaccedilatildeo surge a partir de uma reflexatildeo sobre a ordem
das leis baacutesicas do mundo Entatildeo o approach linguiacutestico ao poema pode proceder ateacute certo ponto
dali em diante o poema eacute francamente filosoacutefico e a chave linguiacutestica natildeo eacute suficiente para o acesso
Isto quer dizer que com a chave linguiacutestica natildeo se abre a porta da questatildeo filosoacutefica do poema Se
a questatildeo eacute que lsquojamais o natildeo ser pode se tornar serrsquo como (aproximadamente com estas palavras)
nos diz Platatildeo citando Parmecircnides entatildeo diante da semacircntica que οὐκ ἔστιν apresenta discutir o
sujeito de οὐκ ἔστιν se torna tarefa menor Considerada a desproporccedilatildeo entre o conteuacutedo (a
semacircntica) e o recipiente (a palavra) entre o significado e o significante natildeo eacute impossiacutevel que οὐκ
ἔστιν seja tatildeo somente uma expressatildeo simplificada quem sabe ateacute mesmo uma simplificaccedilatildeo
didaacutetica pois o conteuacutedo do conceito estaacute expresso e justificado depois nos versos 7 e 8
O caminho de pensar que natildeo eacute e de pensar que eacute necessaacuterio natildeo ser eacute o caminho que afirma
a necessidade de que a noccedilatildeo de natildeo ser permaneccedila estaacutevel A contradiccedilatildeo tem que permanecer e
ser identificada como tal pois eacute a uacutenica maneira de evitar que ela entre no pensamento e no
discurso Se o lsquonatildeo serrsquo natildeo for considerado contraditoacuterio entatildeo a contradiccedilatildeo invade e domina o
caminho de inqueacuterito o qual deixa de possuir πίστις ἀληθής (130) Assim eacute necessaacuterio que este
caminho seja identificado como μὴ εἶναι por um lado o lsquonatildeo serrsquo eacute incognosciacutevel (οὔτε γὰρ ἂν
129
γνοίης) mas por outro lado eacute necessaacuterio que se saiba que ele eacute incognosciacutevel Saber do
incognosciacutevel garante o conhecimento184 pois de fato ao natildeo se identificar o lsquonatildeo serrsquo se cai no
risco de pensar que lsquoserrsquo e lsquonatildeo serrsquo satildeo o mesmo e natildeo o mesmo como Parmecircnides diz em 65-6
Necessariamente o caminho que pensa οὐκ ἔστιν leva ao processo de contradiccedilatildeo (μὴ εἶναι) e o
fato de que o caminho natildeo tenha conclusatildeo (ἀνυστόν) natildeo eacute evidente na expressatildeo pelo contraacuterio
τό μὴ ἐὸν parece uma negaccedilatildeo comum como qualquer outra mas natildeo o eacute por isto eacute um saber
destinado ao saacutebio e natildeo aos mortais pois eacute um saber fruto de uma reflexatildeo
428 De volta aos versos 3 e 4 ἡ μὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι μὴ εἶναι
429 Πειθοῦς ἐστι κέλευθος (Ἀληθείηι γὰρ ὀπηδεῖ)
Penso que podemos agora voltar ao verso 23 ao nosso segundo hemistiacutequio onde aparece a
expressatildeo μὴ εἶναι da qual jaacute temos a semacircntica Podemos entatildeo reconstruir ldquoos uacutenicos caminhos
de inqueacuterito a pensar satildeo
1) por um lado a pensar que [] e a pensar que οὐκ ἔστι μὴ εἶναι este eacute caminho de
persuasatildeo que verdade acompanha e
2) por outro lado a pensar que lsquonatildeo eacutersquo e a pensar que eacute necessariamente um percurso
de pensamento contraditoacuterio porque eacute um caminho lsquoimpossiacutevelrsquo (παναπευθέα) pois o
pensamento do lsquonatildeo entersquo natildeo pode ser completado
184Estaacute aqui uma semente do socratismo
130
O οὐκ ἔστι do verso 23 parece ser diferente do οὐκ ἔστιν do verso 25 Enquanto em 25 ele eacute quase
que o nome do caminho (talvez uma simplificaccedilatildeo didaacutetica) aqui em 23 parece significar
simplesmente lsquonatildeo eacutersquo em sentido comum predicativo De fato este eacute o caminho da persuasatildeo e
portanto eacute o caminho do pensamento natildeo-contraditoacuterio Aliacute a persuasatildeo era impossiacutevel pela
contradiccedilatildeo aqui eacute possiacutevel pela natildeo-contradiccedilatildeo Sabemos que a expressatildeo μὴ εἶναι eacute a expressatildeo
da contradiccedilatildeo suprema entatildeo a natildeo-contradiccedilatildeo eacute a negaccedilatildeo de μὴ εἶναι A traduccedilatildeo de οὐκ ἔστι
fica faacutecil embora para a nossa sensibilidade possa parecer algo improacuteprio usar duas vezes οὐκ ἔστι
de forma natildeo perfeitamente uniacutevoca a dois versos de distatildencia Mas devemos lembrar tambeacutem que
noacutes hoje estamos acostumados a niacuteveis de precisatildeo de linguagem tatildeo altos que falamos de
linguagens de segunda terceira e quarta ondem e mais ainda devemos lembrar que Parmecircnides eacute
o primeiro a estabelecer exatamente com os versos de que estamos tratando a necessidade de um
criteacuterio na linguagem correta Entatildeo para o segundo hemistiacutequio de 23 poderiacuteamos manter esta
traduccedilatildeo lsquonatildeo eacutersquo em parte ambiacutegua para nossas exigecircncias mas que soa perfeitamente harmocircnica
com o discurso parmenidiano [] ao pensar que natildeo eacute lsquocontradiccedilatildeorsquo (μὴ εἶναι)
Mas podemos aprimorar ainda mais a traduccedilatildeo tanto pelo lado gramatical quanto pelo lado
semacircntico e pelo lado estiliacutestico E eacute aliaacutes este uacuteltimo aspecto o estiliacutestico que pode nos chamar
atenccedilatildeo sobre uma possiacutevel simetria entre os versos 3 e 5 Os primeiros hemistiacutequios dos dois
versos (3a e 5a) seguem uma mesma construccedilatildeo gramatical e sintaacutetica nos segundos hemistiacutequios
(3b e 5b) haacute uma diferenccedila enquanto em 3b temos o verbo predicativo simples (οὐκ ἔστι) em 5b
temos um verbo impessoal (χρεών ἐστι) No entanto como se sabe a forma verbal ἐστι quando
131
estaacute junto de um infinitivo pode assumir papel de verbo quase-impessoal e significar eacute possiacutevel185
entatildeo a razatildeo estiliacutestica fica satisfeita se seguindo o modelo estiliacutestico de 5b traduzimos o οὐκ
ἔστι de 3b com natildeo eacute possiacutevel pois o infinitivo μὴ εἶναι passa a ser o sujeito gramatical ndash mas natildeo
o sujeito loacutegico ndash assim como natildeo o era em 5b Mantendo firme que os versos 3 e 5 constituem
uma anomalia gramatical e que a comunidade dos estudiosos estaacute mais do que em desacordo sobre
a correta sintaxe e relativa traduccedilatildeo desses versos pode-se aceitar a explicaccedilatildeo gramatical da
estrutura modal e aqui seguimos a proposta de Cordero embora esta explicaccedilatildeo seja obrigada a
colocar a funccedilatildeo de sujeito atribuiacuteda a μὴ εἶναι entre aspas ldquosujeitordquo pois de fato o sujeito loacutegico
do verso 3 natildeo estaacute expresso por claro desejo de Parmecircnides Este sujeito inexpresso eacute o mesmo
para 3a e 3b e mais adiante teceremos alguma consideraccedilotildees ulteriores a respeito O fato eacute que
com a simetria estiliacutestica oferecida naturalmente pelos versos e apesar do fundamento gramatical
anocircmalo que gera ambiguidade se consegue iluminar melhor a semacircntica ndash a respeito da qual as
divergecircncias interpretativas satildeo muito menores ndash e atender melhor ao nosso objetivo que eacute
salvaguardar a mensagem filosoacutefica E a mensagem filosoacutefica com a traduccedilatildeo modal de 3b fica
mais clara A tentativa de pensar o natildeo ser redunda numa impossibilidade a qual tem dois lados
por um lado o natildeo ser eacute um caminho impossiacutevel e por outro lado eacute impossiacutevel anular
completamente o que eacute este segundo lado fica expresso claramente pelo valor modal de 3b eacute
impossiacutevel natildeo ser ou na morfologia em portuguecircs eacute impossiacutevel que natildeo seja Embora o sujeito
de esti de 3a natildeo seja expresso ele eacute comprensiacutevel e recebe um nome diferente a cada opccedilatildeo de
traduccedilatildeo de cada autor mas todos concordam que se trata de uma positividade no sentido mais
185Smyth 1956 p 441 1984-1985
132
geral possiacutevel186 Esta positividade eacute tambeacutem o sujeito natildeo expresso de 3b e ela (a positividade) eacute
impossiacutevel que natildeo seja
Acredito por fim que podemos abordar o tatildeo famoso ἔστιν do verso 23 que tanto fez e faz penar
os estudiosos de Parmecircnides Aqui de novo a grandeza da questatildeo cosmoloacutegica envolvida ndash a
coerecircncia eou a contraditoriedade do real ndash simplesmente torna tatildeo minuacutescula a questatildeo do sujeito
gramatical que ela quase desaparece No entanto mesmo minuacutescula a questatildeo existe O problema
a meu ver se agiganta quando se procura encaixar a todo custo uma anomalia gramatical (natildeo
linguiacutestica) dentro de uma norma gramatical Ao menos no caso do ἔστιν de Parmecircnides a
discussatildeo acirrada lembra mais o problema do cobertor curto que cobrindo uma parte descobre a
outra e por mais que se aleguem argumentos linguiacutesticos desta ou daquela natureza natildeo se
consegue natildeo recair na questatildeo filosoacutefica Entatildeo digamos claramente ἔστιν eacute uma expressatildeo
filosoacutefica Proporei entatildeo uma gecircnese filosoacutefica e portanto a permanecircncia dessa marca de
nascenccedila na expressatildeo do ἔστιν nu O nosso ponto de partida eacute de novo a meditaccedilatildeo do natildeo ser
Como jaacute dissemos Parmecircnides com certeza realizou uma reflexatildeo sobre o natildeo ser e mais
especificamente sobre o natildeo ser absoluto total Esta meditaccedilatildeo eacute uma meditaccedilatildeo sombria porque
leva a alma do meditante agrave negaccedilatildeo extrema fato esse que repugna ao impulso vital e que natildeo eacute
simples de se levar adiante ainda mais se agrave reflexatildeo intelectual se associa a meditaccedilatildeo afetiva
Parmecircnides deve ter feito essa meditaccedilatildeo plenamente ou seja incluindo o lado afetivo
186Meijer lista doze casos ldquoIt might be useful to give a collection of proposed subjects of estin first based on what I
have found so far no subject impersonal usage it ti a thing truth way what can be talked and thought about
reality is Being to berdquo (Meijer 1997 p 114)
133
extremamente importante no pitagorismo187 escola na qual recebeu sua formaccedilatildeo Deve ter tentado
encaminhar seu pensamento pela negaccedilatildeo de tudo pois somente assim ele poderia dizer que o
caminho do natildeo eacute natildeo pode ser completado Depois de mergulhar nesse esforccedilo mental
procurando aniquilar todas as coisas quando se deu conta que tal era impossiacutevel e quando retornou
ao fluxo normal do pensamento devia estar com a sensaccedilatildeo de ter deixado para traacutes uma imensa
escuridatildeo da qual ele saiu com um grito188 eacute Natildeo eacute difiacutecil imaginar que Parmecircnides deve ter feito
essa meditaccedilatildeo dentro do cenaacuterio religioso de sua eacutepoca e que retirando a paacutetina mitoloacutegica das
visotildees alucinatoacuterias podemos dizer que devia estar simplesmente num estado semi-oniacuterico ou
inteiramente oniacuterico refletindo ou meditando ou sonhando com a aniquilaccedilatildeo de tudo Nesses
estados mentais como se sabe os laccedilos da sintaxe e da loacutegica se afrouxam e Parmecircnides deve ter
vivenciado aquilo que hoje noacutes chamamos de ser em toda sua oposiccedilatildeo agrave negaccedilatildeo de tudo Ora a
vivecircncia do ser natildeo eacute o ser pois a noccedilatildeo de o ser eacute uma generalizaccedilatildeo intelectual e sofisticada
de muitas vivecircncia e percepccedilotildees e reflexotildees A vivecircncia imediata daquilo que noacutes chamamos o ser
eacute pura e simplesmente o eacute o ser quando vivenciado eacute eacute Parmecircnides apenas trouxe para a
linguagem sintaticamente organizada a expressatildeo direta da vivecircncia imediata daquilo que eacute Um
exemplo pode ajudar a entender esta parte A expressatildeo sintaticamente organizada de um mal estar
pode ser expressa assim ldquoestou sentindo uma dor na panturrilhardquo Mas a expressatildeo vivencial preacute-
187 O aspecto afetivo do pitagorismo eacute evidente em muitas de suas manifestaccedilotildees Na enumeraccedilatildeo de algumas destas
manifestaccedilotildees em primeiro lugar podemos colocar a miacutestica a qual por si eacute um fenocircmeno estritamente afetivo
depois podemos colocar a muacutesica com seu forte apelo para o lado emocional humano depois ainda os laccedilos de
amizade exemplificados pela histoacuteria dos pitagoacutericos Fintias e Damon se encontra em JAcircMBLICO (Giangiulio
1991 234-236) por fim a proacutepria lenda que atribui a Pitaacutegoras a criaccedilatildeo do nome filosofia daacute a entender seu
amor ao saber uma dedicaccedilatildeo independente do imediatismo utilitaacuterio 188 Cordero diz que eacute um grito de alegria Como suele ocurrir con un descubrimiento es maacutes un grito de alegria que
una estructura conceptual (Cordero 2003 p 284)
134
sintaacutetica e imediata eacute tatildeo somente um ai
Foi muito difiacutecil ateacute agora pelos vaacuterios estudiosos espremer o ἔστιν numa categoria
gramatical que satisfizesse toda a pregnacircncia filosoacutefica que carrega mas ndash e esta eacute a parte mais
interessante ndash natildeo haacute ningueacutem que natildeo entenda claramente do que se trata pois a mensagem eacute
clariacutessima a quem quer que se disponha a entender189 eu penso ademais que nenhuma das
traduccedilotildees propostas pelo grandes estudiosos embora divergentes expressa um desentendimento
apenas tecircm expressotildees parciais proporcionais ao aspecto gramatical no qual se quer constranger a
palavra parmenidiana Mas no que diz respeito ao conteuacutedo filosoacutefico todos concordam eacute uma
generalizaccedilatildeo (ou linguiacutestica ou loacutegica ou ontoloacutegica) da noccedilatildeo de ser De minha parte penso que
o ἔστιν representa a maior generalizaccedilatildeo linguiacutestica possiacutevel perece-me que natildeo haacute nenhuma
expressatildeo mais geral e penso que eacute exatamente esta a intenccedilatildeo de Parmecircnides ao trazer para o
plano sintaacutetico uma expressatildeo preacute-sintaacutetica e preacute-loacutegica ou seja expressar a maior generalizaccedilatildeo
linguisticamente possiacutevel Se assim eacute o ἔστιν eacute anterior agrave noccedilatildeo de sujeito e portanto de predicado
seja ele nominal ou verbal Todas estas articulaccedilotildees sujeito predicado objeto e qualquer outra
189Estou de acordo com Santoro quando diz ldquoCome quando la sua Dea dice della via di ricerca che egrave (hopocircs eacutestin)
senza nessun predicato Non starebbe puntando il reale di fronte a seacute proiettando il verbo fuori di se stessa verso
ciograve che sta davanti sia spazialmente verso il mondo obiettivo sia temporalmente verso la presenza e il suo
avvenirerdquo (Santoro 2011a p 101) A imagem que Santoro suscita a partir do apontar do ldquodito durordquo (p 98) do
acusador ao acusado pode ser ampliada a uma matildeo aberta apontando o mundo com o movimento horizontal e
circular do braccedilo eacute Uma siacutentese premonitoacuteria dos dois gestos representados por Raffaello na ldquoEscola de Atenasrdquo
o dedo de Platatildeo apontando para cima e a matildeo aberta de Aristoacuteteles apontando para baixo Concordo com Santoro
quando sugere que a projeccedilatildeo do ldquoverbo para fora de sirdquo implica um apontar e acrescento que o que parece ser
impliacutecito em 23 se torna expliacutecito em 28 onde o φράζω significa exatamente indicar mostrando (inclusive com o
dedo) e οὔτε φράσαις significa que o natildeo ser natildeo pode ser indicado ( Penso tambeacutem que o ἔστιν tem a marca da
espontaneidade e que longe de ser um termo teacutecnico vem da linguagem mais comum ndash aproveitando (e aqui
tambeacutem estou com Santoro) o acento juriacutedico que devia ter a sua linguagem diaacuteria enquanto legislador ndash e
portanto acompanhado do gesto talvez universal de identificaccedilatildeo de um ldquoculpadordquo o dedo apontado Vejam-se
tambeacutem os comentaacuterios de Rossetti a respeito da leitura de Santoro em Rossetti 2011 Um ulterior aprofundamento
da influecircncia da linguagem juriacutedica nos sematas de DK B 8 encontra-se em Santoro 2011b
135
pertencem agrave esfera do ἔστιν Natildeo haacute nada dentro do qual o ἔστιν possa ser colocado e tudo eacute
colocado no ἔστιν inclusive o acircmbito temporal pois passado presente e futuro satildeo articulaccedilatildeo de
um ἔστιν anterior a toda noccedilatildeo de tempo Assim o ἔστιν eacute aquilo que inevitavelmente se
reapresenta a cada tentativa de negaccedilatildeo absoluta A pergunta ldquoqual eacute o sujeito do ἔστινrdquo eacute
linguisticamente e filosoficamente legiacutetima A resposta poreacutem escapa do acircmbito linguiacutestico190 e
permanece naquele filosoacutefico o ἔστιν eacute anterior agrave articulaccedilatildeo sintaacutetica logo ele eacute sujeito predicado
e objeto de si mesmo Eacute esta noccedilatildeo todo-permeadora que eacute incapaz de sofrer a negaccedilatildeo A via de
investigaccedilatildeo ao operar cognitivamente que eacute corresponde agrave via de investigaccedilatildeo ao operar
cognitivamente que natildeo pode ser natildeo ser O uacutenico dado que pode ser acrescentado ao eacute representa
uma confirmaccedilatildeo de que eacute pois soacute se pode acrescentar que eacute impossiacutevel ndash uma impossibilidade
verificada na reflexatildeo ndash que natildeo seja Mas afinal tomo partido191 e entro tambeacutem no quarto grupo
daqueles listados por Cordero o sujeito deve ser extraiacutedo do predicado isolado pois ἔστιν produz
o sujeito192
Recapitulando o sentido filosoacutefico eacute preciso haacute um caminho de inquerito ao pensar que eacute
190Penso por exemplo que as posiccedilotildees que querem ver no ἔστιν apenas uma forma sinteacutetica ainda natildeo articulada
segundo nossas atuais distinccedilotildees (ou ateacute mesmo segundo as distinccedilotildees da eacutepoca de Parmecircnides) embora sejam
linguisticamente mais satisfatoacuterias satildeo ainda parciais e natildeo tocam a questatildeo essencial que eacute o ἔστιν como princiacutepio
do mundo e natildeo como um ente (neste caso um ente linguiacutestico) entre outros a ser classificado numa funccedilatildeo sintaacutetica
especiacutefica 191Ver p 19 192Esta questatildeo natildeo aprofundada aqui natildeo possui relevacircncia filosoacutefica no argumento apresentado pode ter relevacircncia
se se considera o tipo de reflexatildeo ou seja se se discute a ldquoexperiecircnciardquo do natildeo-ser e principalmente a experiecircncia
concreta de Parmecircnides que talvez esteja ligada a praacuteticas de incubaccedilatildeo Neste caso a dimensatildeo reflexiva adentra
a dimensatildeo oniacuterica a qual possui outra sintaxe e onde um simples ἔστιν vale mais de mil articulaccedilotildees sintaacuteticas
Natildeo sabemos com certeza destas praacuteticas em Eleacuteia mas este sentido preacute-sintaacutetico natildeo estaacute descartado inclusive
alguns estudiosos entre os quais o proacuteprio Cordero atribuem ao ἔστιν o sentido de um grito como um Eureka
Sugestotildees nesse sentido se encontram na minha dissertaccedilatildeo sobre Melisso
136
aquele que pensa o lsquoeacutersquo este mesmo caminho eacute aquele ao pensar que natildeo eacute (e natildeo pode ser193)
lsquocontradiccedilatildeorsquo Depois haacute um outro caminho aquele ao pensar que lsquonatildeo eacutersquo que eacute o mesmo caminho
ao pensar que leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo O primeiro eacute o caminho que estabelece o
discurso coerente (persuasivo) e o segundo natildeo leva a lugar nenhum e deve ser evitado Mas para
que se saiba o que deve ser evitado eacute necessaacuterio que se conheccedila a impossibilidade do segundo
caminho Para que se possa seguir o primeiro caminho eacute necessaacuterio saber que existe um outro
sempre agrave espreita que parece oferecer a verdade mas que natildeo oferece uma verdade confiaacutevel que
leva necessariamente agrave contradiccedilatildeo de pensamento e de expressatildeo linguiacutestica
4210 Conclusatildeo
Parmecircnides provavelmente a partir de sugestotildees pitagoacutericas medita sobre a oposiccedilatildeo ao que existe
e assim descobre o lsquonatildeo serrsquo Descobre que lsquonatildeo serrsquo ou seja negar o ser negar o que haacute eacute de todo
impossiacutevel (natildeo eacute possiacutevel completamente) Entende entatildeo que o lsquonatildeo serrsquo esta impossibilidade eacute
algo que a mente pensa julgando que este pensamento leva por um caminho mas que na verdade
ele descobre leva por outro caminho aquele que nunca chega a lugar nenhum Este caminho que
leva para lugar nenhum eacute o caminho dos mortais os quais confundem ser e natildeo ser Mas o saacutebio
deve saber distinguir por um lado o caminho do lsquoeacutersquo que eacute o caminho do discurso natildeo contraditoacuterio
e por outro lado o caminho do lsquonatildeo eacutersquo que eacute o caminho do discurso que eacute vanificado pela
193A interpretaccedilatildeo modal eacute tambeacutem perfeitamente coerente aqui
137
contradiccedilatildeo
Parmecircnides descobre a contradiccedilatildeo (pela meditaccedilatildeo sobre o natildeo ser) e percebe que ela eacute
motivo de descaminho no discurso sobre o mundo Assim finalmente ele anuncia que a contradiccedilatildeo
deve ser evitada A este enunciado noacutes chamamos de princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo A nossa versatildeo
mais comum do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo ainda hoje natildeo se afasta muito daquela de Aristoacuteteles
mas a versatildeo culta aquela em linha com as pesquisas mais avanccediladas se encontra em pleno
terremoto conceitual pelo qual eacute difiacutecil usar qualquer das palavras tradicionalmente usadas para
estabelecer acircmbitos e sentidos Em outras eacutepocas se podia dizer que a descoberta de Parmecircnides
natildeo eacute do acircmbito da loacutegica mas da ontologia Hoje estes termos satildeo tatildeo fortemente equiacutevocos que
natildeo se tem a possibilidade de uma expressatildeo direta e inteiramente compartilhada na comunidade
cientiacutefico-acadecircmica atual De forma que quero me limitar por enquanto agrave descriccedilatildeo da minha
leitura do fragmento 2 tentando evitar noccedilotildees equiacutevocas O fato eacute que Parmecircnides trabalha em
acircmbito cosmoloacutegico e sua preocupaccedilatildeo ndash como as de seus colegas na eacutepoca ndash eacute com o mundo com
a totalidades das coisas com os πάντα de seu proecircmio (128) Aqui neste acircmbito cosmoloacutegico
descobre que haacute um princiacutepio do mundo pelo qual se daacute uma impossibilidade a contradiccedilatildeo A
contradiccedilatildeo eacute um princiacutepio porque o que haacute (πάντα) enquanto todo escapa agrave negaccedilatildeo total Eis
que a contradiccedilatildeo eacute princiacutepio tanto quanto a natildeo-contradiccedilatildeo porque eacute a contradiccedilatildeo que permite
a natildeo-contradiccedilatildeo Sem a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo se anda com sentidos incertos como os mortais
O valor desta afirmaccedilatildeo eacute historicamente inabalaacutevel porque Parmecircnides partindo de um
discurso sobre o mundo como que visto de fora por um observador (como Anaximandro via o
mundo olhando seu pinax) alcanccedila um discurso que inclui o observador enquanto observador
estreando assim antes de tudo um discurso sobre os entes (a ontologia) todos os entes incluindo
138
os entes de pensamento (veja-se o famoso fragmento 3 que diz que pensar e ser satildeo o mesmo)
Agora para ele o saacutebio natildeo eacute mais aquele que sabe soacute sobre as coisas externas ndash como o antigo
xamatilde cuja figura individual se dissolve na mera intermediaccedilatildeo com o divino ndash mas eacute tambeacutem
aquele que consegue pensar sobre as coisas externas ou seja aquele que tem um domiacutenio cognitivo
sobre os pensamentos de inqueacuterito e portanto sabe sobre si mesmo
Parmecircnides amplia o mundo acrescentando-lhe o mundo do pensamento e o mundo da
linguagem Eis porque as αρχάι de Parmecircnides sendo duas permanecem duas justamente
eliminado uma delas deixando alguns criacuteticos enloquecidos na discussatildeo sobre o monismo ou o
dualismo para Parmecircnides o mundo eacute um mas os sentidos nos enganam natildeo na pluralidade das
coisas mas no argumento a respeito da pluralidade das coisas e principalmente ndash aspecto que ele
discute explicitamente ndash a respeito do devir das coisas Haacute um princiacutepio que natildeo pode ser
eliminado a contradiccedilatildeo o qual eacute um princiacutepio de erro humano quando se elimina quando se
desconsidera quando se faz de conta que natildeo existe a contradiccedilatildeo se instaura quando o princiacutepio
eacute levado em conta a contradiccedilatildeo pode ser evitada
Eacute um conceito esdruacutexulo para noacutes tambeacutem pois temos que ter (a noccedilatildeo de) a contradiccedilatildeo
para eliminar a contradiccedilatildeo temos que saber o que eacute contradiccedilatildeo para que possamos perceber
quando o discurso eacute contraditoacuterio Estes conceitos satildeo misteriosos ateacute agora e satildeo estranhas
criaturas de nossas mentes Outro exemplo a noccedilatildeo de impossiacutevel obviamente (ou seja para a
nossa pragmaacutetica) natildeo se refere a nada de concreto no entanto temos essa noccedilatildeo e a usamos com
o maacuteximo proveito outro exemplo a noccedilatildeo de infinito noccedilatildeo que natildeo se refere a algo concreto
mas que tambeacutem usamos com maacuteximo proveito O mesmo deve ser dito da noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
ou da noccedilatildeo de nada absoluto que usamos pragmaticamente com maior ou menor proveito Mas
um discurso rigoroso sobre estas noccedilotildees eacute algo realmente difiacutecil e digo difiacutecil porque se eu dissesse
139
impossiacutevel cairia em peticcedilatildeo de princiacutepio
Parmecircnides encontra este caminho e o expotildee Eacute um caminho assombroso anti-intuivo mas
incontestaacutevel De forma que natildeo eacute de se estranhar se a soluccedilatildeo platocircnica eacute a eliminaccedilatildeo fiacutesica da
noccedilatildeo de nada absoluto (o parriciacutedio) com sucessivo lsquoadeusrsquo194 achando de tecirc-lo ultrapassado Mas
o nada absoluto enquanto noccedilatildeo contraditoacuteria permanece Assim como permanece a explicaccedilatildeo
defeituosa do devir que assim como o conhecemos uma passagem do nada ao ser no nascimento
e do ser ao nada no perecimento estaacute mal explicado Daqui por diante os comentaacuterios filosoacuteficos
possiacuteveis satildeo inuacutemeros portanto paro esta parte da pesquisa neste ponto e proponho a versatildeo do
fragmento 2 segundo esta conceituaccedilatildeo alterando de pouco a excelente versatildeo baacutesica de
cavalcante de Souza
Pois bem eu te direi e tu recebe a palavra que ouviste
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute possiacutevel que seja (o caminho da) contradiccedilatildeo
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute necessariamente (o caminho da) contradiccedilatildeo
este entatildeo eu te digo eacute atalho de todo incriacutevel
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias
194Platatildeo Soph 258e7-259a1 ἡμεῖς γὰρ περὶ μὲν ἐναντίου τινὸς αὐτῷ χαίρειν πάλαι λέγομεν εἴτ ἔστιν εἴτε μή
λόγον ἔχον ἢ καὶ παντάπασιν ἄλογον
140
Estas uacuteltimas palavras ndash pois nem conhecerias o que natildeo eacute e nem o dirias ndash satildeo o enunciado
parmenidiano do princiacutepio cosmoloacutegico de natildeo contradiccedilatildeo Ele eacute diferente em relaccedilatildeo ao princiacutepio
aristoteacutelico porque Parmecircnides tem diante de si um mundo diferente daquele que Aristoacuteteles tem
diante de si Parmecircnides recorre a este princiacutepio em todo o seu argumento do fr 8 e o reapresenta
e volta a enunciaacute-lo
43 A discussatildeo do meacutetodo
A descoberta fundamental de Parmecircnides eacute de que eacute impossiacutevel negar completamente (οὐ
γὰρ ἀνυστόν) o que eacute de forma que a tentativa de levar a cabo este processo acaba falhando
inexoravelmente A esta falha ele daacute o nome de μὴ εἶναι afinal a via do natildeo eacute eacute uma via falha eacute
e eacute necessaacuterio que seja falha μὴ εἶναι enquanto que a via do eacute natildeo pode ser falha natildeo pode ser
μὴ εἶναι Estabelecidos estes criteacuterios se pode proceder com seguranccedila (com persuasatildeo) no
caminho de pesquisa Como veremos mais adiante Parmecircnides proporaacute sua proacutepria pesquisa
seguindo o meacutetodo que ele excogitou mas antes disso (pela ordenaccedilatildeo Diels-Kranz) ele parece
prestar conta agrave sua cultura contemporacircnea e discute o meacutetodo em relaccedilatildeo aos outros procedimentos
praticados ateacute entatildeo
Como tivemos oportunidade de salientar Parmecircnides parece natildeo estar preocupado em fazer
criacuteticas a um colega ou a alguma escola especiacutefica Sua preocupaccedilatildeo parece ser mais ampla e a
criacutetica quer se referir ao homem em geral eacute uma criacutetica cultural ao modo de ver o mundo agravequilo
que hoje costumamos chamar weltanschaung Vamos entatildeo retomar esta discussatildeo apresentada nos
fragmentos 6 e 7 e abordar as passagens que ainda natildeo foram tratadas
141
431 Fragmento 6
Vamos comeccedilar pelos versos 1 e 2 do fragmento 6
χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ ἐὸν ἔμμεναι ἔστι γὰρ εἶναι
μηδὲν δ οὐκ ἔστιν τά σ ἐγὼ φράζεσθαι ἄνωγα
Tendo em mente a reflexatildeo do natildeo ser e as noccedilotildees que dela resultam natildeo eacute tatildeo difiacutecil entender
estas palavras quanto as discussotildees entre os estudiosos nos fazem imaginar Eacute verdade que satildeo
palavras muito controversas inclusive nas liccedilotildees e nas variantes mas eacute verdade tambeacutem que se
recorre a alternativas menos provaacuteveis quando o sentido natildeo aparece claramente ou quando aquele
que aparece natildeo eacute satisfatoacuterio No entanto noacutes identificamos o vocabulaacuterio que expressa as noccedilotildees
resultantes da meditaccedilatildeo Lembrando que o natildeo ser absoluto era impossiacutevel de ser alcanccedilado pelo
pensar cognitivo e que portanto a expressatildeo natildeo ser (τό μὴ ἐὸν) por natildeo ter sentido algum natildeo
deve ser usada (οὔτε φράσαις) fica claro que χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ ἐὸν ἔμμεναι eacute necessaacuterio
dizer e pensar (cognitivamente) que o ente eacute No fragmento 2 o natildeo ente (τό μὴ ἐὸν) natildeo pode
nem ser conhecido e nem dito logo aqui no fragmento 6 Parmecircnides diz que dizer e pensar que
o ente eacute se torna necessaacuterio isto eacute natildeo pode ser de outra forma pois se natildeo fosse necessaacuterio entatildeo
poderia-se dizer que o ente natildeo eacute ou que o natildeo ente eacute Mas como ele dissera dizer que o ente
natildeo eacute significa percorrer o caminho do natildeo eacute o qual eacute de todo impercorriacutevel
Podemos ver que o meacutetodo exposto no fragmento 2 comeccedila a ser discutido concretamente e
natildeo se trata mais do ἔστιν mas do ἐὸν De fato a palavra ἐὸν aparece primeiramente no poema
como negativa τό μὴ ἐὸν fato pouco notado pelos estudiosos jaacute no fragmento 2 (ver a discussatildeo
a respeito do τό μὴ ἐὸν no capiacutetulo 5) Como jaacute tivemos oportunidade de observar Parmecircnides
primeiro enuncia sua tese e depois apresenta os argumentos a favor Neste caso as noccedilotildees de (23)
ἔστιν e (25) οὐκ ἔστιν satildeo o resultado de um processo reflexivo argumentativo que comeccedila com o
142
τό μὴ ἐὸν que nada mais eacute do que a tentativa malograda (segundo o que Parmecircnides afirma) de
negar o ἐὸν Entatildeo a estrutura argumentativa de Parmecircnides revela que sua preocupaccedilatildeo inicial era
o ἐὸν que ele tentou negar sem sucesso alcanccedilando noccedilotildees novas e radicais sobre o mundo
Assim finalmente apoacutes a apresentaccedilatildeo do meacutetodo obtido pelas suas reflexotildees volta ao seu
tema predileto o ἐὸν Agora ele pode seguir com seguranccedila epistecircmica e em 61 afirma eacute
necessaacuterio dizer e pensar cognitivamente que o ente eacute (ἐὸν ἔμμεναι) Aqui mais uma vez nos
encontramos na ordem argumentativa parmenidiana onde primeiro enuncia e depois argumenta
portanto ele diz em 61b e 62a com efeito (γὰρ) ndash enquanto a tentativa de operar cognitivamente
com o natildeo ser (operar cognitivamente com o natildeo ser = μὴ εἶναι) eacute impossiacutevel (23b οὐκ ἔστι) ndash o
que necessariamente acontece (61 ἔστι) eacute o operar cognitivamente com o ser (61 εἶναι) onde
operar cognitivamente com o ser corresponde ao εἶναι A confirmar esta correspondecircncia com o
fragmento 2 Parmecircnides continua e o nada (a realizaccedilatildeo de μὴ εἶναι) natildeo eacute (οὐκ ἔστιν)
Lembrando que o presente trabalho visa entender a noccedilatildeo de natildeo ser em Parmecircnides estamos
interessados antes de tudo na semacircntica apresentada Este eacute o motivo de traduzir com parcialidade
(a parcialidade que nos leva a focar a semacircntica do natildeo ser) e aparentemente a forccedilar as palavras
do eleata Especificamente nestes dois versos e no seguinte a polecircmica entre os inteacuterpretes eacute furiosa
e eacute bom expor logo a minha posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves disputas em campo Segundo a interpretaccedilatildeo
por mim proposta do fragmento 2 encontra-se ali a exposiccedilatildeo de uma reflexatildeo sobre o natildeo ser e o
resultado que dela segue O resultado eacute uma proposta metodoloacutegica a respeito do pensar
cognitivamente em busca de argumentos persuasivos O meacutetodo segue por dois caminhos possiacuteveis
somente um dos quais se revela confiaacutevel enquanto que o outro eacute uma virtualidade que tem que ser
levada em conta sob pena de confundir duas noccedilotildees que jamais devem ser confundidas (pelo pensar
cognitivo epistecircmico) ser e natildeo ser ou como ele diz 23a ἔστιν e 25a οὐκ ἔστιν Trata-se de um
143
meacutetodo cognitivo
Dado este meacutetodo cognitivo se consegue extrair dele que
61a χρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ ἐὸν ἔμμεναι
Esta eacute a tese de Parmecircnides como justamente afirma Cordero o qual traduz com um
impressionante es necessaacuterio decir y pensar que siendo se eacutes Esta tese natildeo eacute a repeticcedilatildeo do
primeiro caminho aquele da persuasatildeo que acompanha a verdade mas eacute o primeiro resultado da
aplicaccedilatildeo do meacutetodo descrito no fragmento 2 Parmecircnides passa a aplicar o meacutetodo e o primeiro
resultado eacute exatamente que assim como τό γε μὴ ἐὸν natildeo podia ser dito nem conhecido da mesma
maneira e pela mesma razatildeo o que eacute literalmente o que estaacute sendo deve ser dito e pensado
(cognitivamente) O motivo dessa necessidade eacute o que resulta da aplicaccedilatildeo do meacutetodo 61b ἔστι
γὰρ εἶναι ser eacute possiacutevel (em 23b natildeo ser era impossiacutevel οὐκ ἔστι μὴ εἶναι) enquanto que 62a
μηδὲν δ οὐκ ἔστιν o nada natildeo eacute (e em 23a simplesmente eacute simplesmente ἔστιν) Haacute uma simetria
complementar entre o verso 23 e a sua reafirmaccedilatildeo em 61b-62a ali o ser era afirmado e o natildeo
ser impossiacutevel aqui o ser eacute dito possiacutevel e o natildeo ser (nada) eacute negado Vemos assim o primeiro
exemplo de como o meacutetodo persuade eacute necessaacuterio dizer e pensar (cognitivamente) que o que estaacute
sendo eacute porque ndash eis a persuasatildeo o argumento ndash por um lado ser eacute possiacutevel e por outro lado nada
natildeo eacute
Como dissemos esta eacute a tese de Parmecircnides e eacute esta tese geneacutetica das demais que apareceratildeo
no fragmento 8 que a deusa comanda afirmar 62b τά γ ἐγὼ φράζεσθαι ἄνωγα Muitas vezes
dissemos e aqui reaparece de forma literal a deusa comanda que seja proclamado que soacute se pode
fazer um discurso epistecircmico a respeito do que eacute Do jeito dele Parmecircnides potildee na boca da deusa
a proclamaccedilatildeo de um princiacutepio universal o ἐὸν eacute a ἀρχή do mundo Isto seraacute articulado amplamente
no fragmento 8 mas antes disso Parmecircnides discutiraacute esse primeiro ponto em comparaccedilatildeo com as
144
ideias correntes e explicaraacute quais satildeo os erros dos mortais e quais as providecircncias necessaacuterias para
natildeo repeti-los Entatildeo no verso seguinte a deusa retoma focirclego e sugere ao disciacutepulo de seguir o
curso de aprendizagem primeiro teraacute de aprender os uacutenicos caminhos de pesquisa ao pensar e
depois deveraacute aprender a reconhecer o caminho errado Mas para a criacutetica do comeccedilo do seacuteculo
XX surgiu um problema que passamos a tratar e espero a resolver
432 Os versos 64 πρώτης γάρ σ ἀφ ὁδοῦ ταύτης διζήσιος ltgt
433 αὐτὰρ ἔπειτ ἀπὸ τῆς
Estes versos natildeo apresentariam nenhum problema de interpretaccedilatildeo se um acaso histoacuterico natildeo
os houvesse transformados numa fonte de muitos mal-entendidos 195 Recentemente a causa
195Na ediccedilatildeo DK dos fragmentos a palavra entre aspas ltεἴργωgt eacute uma conjectura de Diels a preencher uma lacuna em
todos os manuscritos conhecidos de Simpliacutecio de onde foi retirada essa citaccedilatildeo A traduccedilatildeo com a conjectura de
Diels resulta ser a seguinte primeiro desta via de pesquisa te afasto e depois da outra (na qual os mortais etc)
A deusa parece alertar o disciacutepulo de que ele deve se afastar de duas vias primeiro uma e depois a outra nas quais
os mortais etc Em resumo e evitando toda a explicaccedilatildeo filoloacutegica se a deusa pede para o disciacutepulo se afastar de
duas vias e se haacute uma via que eacute a certa fazendo as contas o total resulta em trecircs vias as quais na simplificaccedilatildeo
didaacutetico-mnemocircnica acabaram recebendo o nome respectivamente de via do ser do natildeo ser e do ser e natildeo ser A
polecircmica se esvazia se se retira a conjectura arbitraacuteria e errada de Diels e se se reestabelece o entendimento de que
as vias satildeo duas a via da persuasatildeo e a via natildeo percorriacutevel do natildeo eacute Mas essas duas vias geram trecircs
comportamentos a) o homem instruiacutedo segue a primeira b) o homem instruiacutedo leva em conta e por isso evita a
segunda c) os mortais seguem a segunda afinal confundindo ser e natildeo ser Com isto fica claro que haacute um equiacutevoco
entre nuacutemero de vias e nuacutemero de maneiras de usaacute-las Palmer afirma que jaacute Platatildeo tinha identificado trecircs vias
aludindo a Repuacuteblica 5 476e-477b ldquoIn this case the structure of the argument at Republic 5476e-477b strongly
suggest that Plato saw Parmenides as distinguishing three separate pathsrdquo (Palmer 1999 p 40-41) mas eu concordo
com Hermann (2011 p 149 n 51) que afirma que que estas trecircs possibilidades correspondem mais a uma visatildeo
de Platatildeo do que a uma intenccedilatildeo de Parmecircnides Os mortais seguem uma terceira maneira um terceiro
comportamento natildeo uma terceira via Natildeo haacute terceira via elas satildeo soacute duas que usadas corretamente geram a noccedilatildeo
de contradiccedilatildeo a ser usada com proveito no caminho de inqueacuterito no entanto a segunda via quando eacute percorrida
(quando os mortais acham que a estatildeo percorrendo) gera um outro comportamento que em relaccedilatildeo aos dois
comportamentos do homem instruiacutedo (seguir uma e abandonar a outra) pode ser contado como um terceiro
comportamento Penso que natildeo vale a pena se aprofundar nesta confusatildeo restando apenas a questatildeo da conjectura
que pode substituir aquela de Diels Foram propostas algumas a principal das quais me parece ser aquela de
Cordero o estudioso que descobriu e evidenciou a impropriedade da conjectura de Diels Cordero propotildee um
ltἄρξειgt iniciaraacutes Seja para noacutes suficiente esta conjectura jaacute que nosso foco estaacute em outros pontos de forma que
possamos seguir adiante
145
principal dos desentendimentos foi identificada e os versos deixaram de apresentar problemas
Considerando que estes versos satildeo uma mera passagem sem nenhum interesse especiacutefico podemos
aceitar os argumentos de Cordero e preencher a lacuna com ltἄρξειgt iniciaraacutes que oferece entatildeo
este sentido aos versos primeiro iniciaraacutes por este caminho de pesquisa e depois por aquelerdquo
Assim podemos agora completar o sentido do inteiro fragmento o qual agora se apresenta claro agrave
interpretaccedilatildeo
ldquo eacute necessaacuterio dizer e pensar cognitivamente que o ente eacute pois ser eacute possiacutevel
e o nada natildeo eacute Estas coisas te ordeno que proclames
Primeiro por esta via de inqueacuterito ltiniciaraacutesgt
e depois por aquela outra que os mortais que nada sabem
forjam duplas cabeccedilas pois a falta de recursos em suas
mentes conduz operaccedilotildees cognitivas errantes sendo levados
como surdos e cegos perplexos massas sem criteacuterio
que consideram ser e natildeo ser o mesmo
e natildeo o mesmo e que de tudo haacute contra-direccedilatildeo de caminhordquo
A conclusatildeo principial a partir da aplicaccedilatildeo principial do meacutetodo eacute que o que estaacute sendo eacute
(ἐὸν ἔμμεναι) Esta tese cosmoloacutegica eacute obtida pelo meacutetodo exposto no fragmento 2 segundo o
qual ser eacute possiacutevel e nada natildeo eacute esta eacute a primeira via O disciacutepulo tem que seguir esta via mas
ao mesmo tempo tem que conhecer o comportamento dos mortais que acreditando seguir a outra
ndash isto eacute acreditando que quando pensam e dizem natildeo eacute se referem a algo ndash acabam forjando uma
via que de fato eacute impercorriacutevel completamente e natildeo leva a nada pois o nada natildeo eacute (μηδὲν δ οὐκ
ἔστιν) ela eacute apenas uma virtualidade O que faz com que os mortais se aventurem pelo caminho
impossiacutevel eacute uma falta de recursos em suas mentes Qual eacute o recurso que falta aos mortais Penso
que natildeo outro candidato a natildeo ser o meacutetodo exposto no fragmento 2 Eacute ele que permite distinguir
entre ser e natildeo ser e perceber que eles natildeo satildeo simeacutetricos mas radicalmente opostos Embora a
palavra natildeo esteja presente diretamente no texto por oposiccedilatildeo podemos dizer que o meacutetodo de
146
Parmecircnides eacute uma μηχᾰνή um artifiacutecio que permite realizar algo Parmecircnides diz neste fragmento
que o artifiacutecio tem como propoacutesito realizar a distinccedilatildeo entre ser e natildeo ser pois as massas sem
criteacuterio confundem ser e natildeo ser e suas mentes acabam sendo levadas ao inveacutes de levar a pesquisa
pelo caminho (argumento) persuasivo que acompanha a verdade
434 O fragmento 7 Os versos 1 e 2
Passamos agora completar a leitura do fragmento 7 interpretando os restantes dois versos
que natildeo foram discutidos anteriormente Naquela ocasiatildeo embora estiveacutessemos fazendo uma
interpretaccedilatildeo seletiva do vocabulaacuterio psicoloacutegico no poema e embora no verso 72 temos uma
palavra estritamente psicoloacutegica νόημα a tarefa natildeo pudera ser completada porque como agora jaacute
sabemos as noccedilotildees implicadas natildeo satildeo auto-evidentes e tivemos que fazer um esforccedilo
hermenecircutico para fazecirc-las emergir Vamos entatildeo ao texto
ldquoοὐ γὰρ μήποτε τοῦτο δαμῆι εἶναι μὴ ἐόντα
ἀλλὰ σὺ τῆσδ ἀφ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόημαrdquo
A traduccedilatildeo em si natildeo oferece complicaccedilotildees maiores muito mais complicado eacute enteder o sentido
destas palavras e sua mensagem filosoacutefica que a todos intrigou desde a antiguidade principalmente
a Platatildeo que a cita no Sofista e a considera como motivo suficiente para justificar um parriciacutedio
filosoacutefico Jaacute tivemos oportunidade de analisar o primeiro verso no primeiro capiacutetulo Vamos
retomar aquela discussatildeo e comeccedilar traduzindo literalmente
Natildeo prevaleccedila (οὐδαμῆι) jamais (μήποτε) isto (τοῦτο) ser os natildeo entes
Tu poreacutem desta via de inqueacuterito afasta o pensamento
O verso 2 indica que se trata de um dos caminhos de inqueacuterito aquele do qual eacute necessaacuterio
se manter afastados porque eacute impercorriacutevel trata-se do segundo caminho que no fragmento 2 ele
147
chamou de παναπευθέα e que aqui eacute referido no uacuteltimo trecho do verso que os natildeo entes sejam
Esta proposiccedilatildeo eacute absurda portanto jamais prevaleceraacute mas levando em conta que haacute a
possibilidade de confusatildeo (ἄκριτα φῦλα) o disciacutepulo teraacute que manter seu pensamento (operaccedilotildees
cognitivas da mente) afastado desse caminho196 Vamos reduzir o verso agrave sua semacircntica essencial
assim como o apresentamos no primeiro paraacutegrafo eacute impossiacutevel (natildeo prevaleccedila jamais) que os natildeo
entes sejam Alguns autores aproveitam essa passagem para afirmar que Parmecircnides usa como
sinocircnimos ἐὸν e ἐόντα indiferentemente no singular e no plural Eu penso que a expressatildeo aqui eacute
teacutecnica e quer se referir ao ἔλεγχον ἐξ ἐμέθεν ῥηθέντα a prova por mim exposta de 7-56 De fato
o mesmo seraacute encontrado mais adiante (87-8 οὐδ ἐκ μὴ ἐόντος ἐάσσω φάσθαι σ οὐδὲ νοεῖν natildeo
permitirei dizer e pensar que seja dos natildeo entes) a respeito de uma discussatildeo especiacutefica que estava
no centro dos interesses dos pensadores dessa eacutepoca a geraccedilatildeo e a corrupccedilatildeo O sentido geral eacute
que pela impossibilidade dos natildeo entes virem a ser a geraccedilatildeo natildeo pode se dar isto eacute por natildeo ser
possiacutevel uma passagem do nada ao ser a geraccedilatildeo eacute impossiacutevel Se assim for esse sentido teacutecnico
de μὴ ἐόντα vem de encontro agraves recentes tentativas de reordenar os fragmentos do poema a partir
de uma nova valutaccedilatildeo da doxa isto eacute da segunda parte do poema Nesse caso uma parte das
afirmaccedilotildees referentes ao mundo fiacutesico (astronomia e biologia) deveriam ser colocadas antes do
fragmento 7 e supostamente seria a estas afirmaccedilotildees que a deusa quer se referir quando diz ldquoas
provas por mim expostasrdquo
196 Nussbaum considera a questatildeo do ponto de vista da convenccedilatildeo cultural comparando o texto parmenidiano com
uma descriccedilatildeo retirada das Nuvens de Aristoacutefanes ldquoThe strong conventionalist by his claim that we can do
(believe) otherwise means that we can choose to adopt other conventions Parmenides means something stronger
still that we can choose to do without convention altogether we can become in thought wholly other than we are
The poems use of the language of religious initiation is not simply decorative but fundamental to its meaning By
the use of human reason we are to be converted away from our humanityrdquo (Nussbaum 1979 p 79)
148
Portanto seguindo para o verso 2 a deusa alerta que o disciacutepulo natildeo deve argumentar
(estruturar a reflexatildeo da pesquisa) seguindo essa linha de reflexatildeo onde ldquoos natildeo entes satildeordquo pois
significaria fazer uma equivalecircncia entre ser e natildeo ser fato rejeitado pela reflexatildeo do natildeo ser pelo
preceito da deusa pelo meacutetodo obtido pelo resultado alcanccedilado no princiacutepio coacutesmico que afirma
que ldquoeacute necessaacuterio pensar e dizer que o ser (o que estaacute sendo ἐόν) eacuterdquo Por esta razatildeo o disciacutepulo
deve cuidar de natildeo cair nas malhas do pensamento errocircneo que se forma pelo haacutebito o qual forccedila
(βιάσθω) uma maacute utilizaccedilatildeo dos sentidos e por outro lado o haacutebito tambeacutem acaba impelindo a
julgar pelo discurso (pela seduccedilatildeo da retoacuterica) Segundo essa recente interpretaccedilatildeo ndash com a qual eu
concordo ndash de κρῖναι δὲ λόγωι nos encontrariacuteamos finalmente diante de uma expressatildeo referida a
uma persuasatildeo que natildeo acompanha a verdade Assim como haacute o caminho de persuasatildeo que
acompanha a verdade isto eacute aquele caminho que gera discursos persuasivos segundo a persuasatildeo
verdadeira assim tambeacutem haacute o caminho (forjado pelos mortais) que produz discursos persuasivos
natildeo acompanhados de feacute verdadeira (πίστις ἀληθής) Por que estes discursos persuasivos sem feacute
verdadeira convencem Porque por um lado os mortais natildeo dispotildeem da mechane mas por outro
lado eles satildeo forccedilado por sua cultura tanto por percepccedilotildees natildeo isentas de distorccedilotildees culturais
quanto pelo discurso sedutor o qual dada a autoridade do orador pretende prescindir de criteacuterios
de verificaccedilatildeo externos ao discurso Parmecircnides sugere que o discurso natildeo seja julgado por criteacuterios
internos ao discurso mas por uma mechaneacute externa o meacutetodo que ele propotildee
Vemos assim de quantas maneiras Parmecircnides estaacute explicando seu meacutetodo pela meditaccedilatildeo
inicial pela estruturaccedilatildeo de uma maneira coerente (conexa) de pensar pela afirmaccedilatildeo de um
priciacutepio (archeacute) cosmoloacutegico pela criacutetica agrave gnoseologia do homem comum e pela criacutetica cultural agrave
cultura tradicional que prefere seguir a persuasatildeo de discursos tradicionais ao inveacutes de discutir as
afirmaccedilotildees pelo preceito que a deusa ofereceu Chegamos portanto ao momento em que cabe a
149
ele expor a cosmologia segundo o preceito da deusa ele o faz no fragmento 8 que noacutes analisaremos
a seguir
44 A aplicaccedilatildeo do meacutetodo
Parmecircnides aplica seu meacutetodo no longo fragmento 8 um texto riquiacutessimo cujo estudo daacute
espaccedilo para muitos enfoques e muitas discussotildees para cada enfoque A nossa premissa eacute que natildeo
faremos um estudo exaustivo do fragmento 8 mas tatildeo somente daquelas partes do fragmento
atinentes ao natildeo ser e somente nos aspectos pertinentes a este tema Reportaremos trecho a trecho
as partes a serem estudadas e indicaremos tambeacutem quais partes seratildeo deixadas de lado
Antes de entrar no meacuterito dos versos conveacutem fazer uma ilustraccedilatildeo panoracircmica do trecho
Tarefa em princiacutepio bastante difiacutecil porque por serem estes os versos onde Parmecircnides expotildee sua
concepccedilatildeo de ser eacute dos mais estudados o que implica ndash dado o estado do texto as condiccedilotildees de
transmissatildeo o assunto e a forma como eacute abordado ndash uma amplificaccedilatildeo maacutexima por parte dos
estudiosos das ambiguidades de todo tipo que o escrito apresenta Em suma uma apresentaccedilatildeo
panoracircmica implicaria uma interpretaccedilatildeo e esta deveria ser justificada agrave frente das vaacuterias e bem
fundamentadas interpretaccedilotildees dos estudiosos Este problema pode ser contornado recorrendo a um
trabalho precioso e original que realmente excele pela lucidez da anaacutelise Trata-se de ldquoLa structure
du poeme de Parmeacuteniderdquo de Livio Rossetti texto inteiramente dedicado a desvendar e tornar clara
a arquitetura de exposiccedilatildeo do poema A ele recorremos para identificar a particcedilatildeo dos assuntos neste
longo fragmento e principalmente porque ele evidencia a sua estrutura demonstrativa Diz Rossetti
(p 208)
ldquo[] chegou a hora para a deusa de Parmecircnides de expor a conclusatildeo doutrinal
(μόνος δ ἔτι μῦθος ὁδοῖο λείπεται) Noacutes podemos ver claramente que esta conclusatildeo ndash
150
autecircntico cliacutemax de todo o primeiro logos ndash se divide na afirmaccedilatildeo peremptoacuteria ldquoque eacuterdquo a
passagem em revista dos cinco (ou seis) semata relativos agrave caracteriacutesticas do eon e logo
em seguida o iniacutecio de um itineraacuterio soberbo de demonstraccedilatildeo Os semata tecircm o estatuto
de demonstranda (o ser eacute ageneton anolethron oulomeles atremes e ateleston) e a
exposiccedilatildeo segue um desenvolvimento que reflete a sucessatildeo dos demonstranda parando
com a ecircnfase apropriada sobre a alternativa fundamental apresentando um uso recorrente
e natildeo habitual da conjunccedilatildeo gar no duplo sentido de because (ldquop eacute dado que qrdquo) e de then
(ldquose tudo isto eacute verdade entatildeo eacute verdade tambeacutem que prdquo) e dando lugar a algumas
expressotildees que se aproximam de modo significativo do claacutessico quod erat demonstrandum
dos matemaacuteticosrdquo197
Esse aspecto do rigor da exposiccedilatildeo ateacute agora fora apenas timidamente apontado por parte
de alguns criacuteticos e pelo que eu sei cabe a Rossetti o meacuterito de evidenciar esse vocabulaacuterio Vamos
entatildeo com a ajuda dele ver mais de perto estas palavras e as subseccedilotildees do fragmento que elas
marcam198
197Rossetti 2010 p 208 ldquo[] le moment eacutetait venu pour la deacuteesse de Parmeacutenide drsquoen tirer la conclusion doctrinale
(μόνος δ ἔτι μῦθος ὁδοῖο λείπεται) Nous pouvons voir clairement que cette conclusion ndash authentique climax de
tout le premier logos ndashse divise en lrsquoaffirmation peacuteremptoire laquo que est raquo le passage en revue des cinq (ou six)
semata relatifs aux caracteacuteristiques de lrsquoeon et tout de suite apregraves le commencement drsquoun superbe itineacuteraire
deacutemonstratif Les semata ont le statut de demonstranda (lrsquoecirctre est ageneton anolethron oulomeles atremes et
ateleston) et lrsquoexposeacute se poursuit par un deacuteveloppement qui reflegravete la succession des demonstranda srsquoarrecirctant avec
lrsquoemphase convenable sur lrsquoalternative fondamentale preacutesentant un emploi reacutecurrent et inhabituel de la conjonction
gar au double sens de because (laquo p eacutetant donneacute que q raquo) et de then (laquo si tout cela est vrai alors il est vrai aussi que
praquo) et faisant mecircme place agrave des expressions qui se rapprochent de faccedilon significative du classique quod erat
demonstrandum des matheacutematiciensrdquo 198Ibidem ldquoLes expressions qui eacutequivalent au QED sont les suivantes
Alors (οὕτως) il est neacutecessaire qursquoil soit complegravetement ou qursquoil ne soit pas du tout helliphelliphelliphellip B811
Il est deacutecideacute donc (κέκριται δ οὖν) que lrsquoune des deux ltoptionsgthellip tandis que lrsquoautrehellip B816-18
Et ainsi (τὼς) la naissance est eacutelimineacutee agrave lrsquoeacutegal de la mort obscure B821
En vertu de quoi (τῶι) il est tout entier continu en effet lrsquoecirctre srsquoattache agrave lrsquoecirctre B825
En vertu de quoi (τῶι) seront des noms toutes ces choseshellip B838-39
Non moins significativement apregraves chacun de ces eacutenonceacutes formant la conclusion de chaque deacutemonstration
apparaissent des formules de transition indiscutablement paratactiques qui de toute eacutevidence servent agrave ouvrir la
voie agrave un nouvel itineacuteraire deacutemonstratif [Seguem as citaccedilotildees em grego]rdquo
151
ldquoAs expressotildees que equivalem ao QED satildeo as seguintes
Assim (οὕτως) eacute necessaacuterio que seja completamente ou que de todo naotilde seja B
811
Estaacute decidido portanto (κέκριται δ οὖν) que uma das duas ltopccedilotildeesgt
hellip enquanto a outra B
816-18
E assim (τὼς) o nascimento eacute eliminado igualmente agrave morte obscura B
821
Em virtude de que (τῶι) eacute todo inteiro continuo com efeito o ser adere ao ser B
825
Em virtude de que (τῶι) seratildeo nomes todas estas coisas B
838-39
Natildeo menos significativamente depois de cada um desses enunciados que formam a
conclusatildeo de alguma demonstraccedilatildeo aparecem umas foacutermulas de transiccedilatildeo indiscutivelmente
parataacuteticas que com toda evidecircncia servem a abrir o caminho a um novo itineraacuterio demonstrativo
οὐδέ ποτ ἐκ μὴ ἐόντος κτλ (B812)
τοῦ εἵνεκεν (B813)
πῶς δ ἂν ἔπειτα πέλοι (B819)
οὐδὲ οὐδὲ οὐδὲ (B822-24)
αὐτὰρ ἀκίνητον μεγάλων κτλ (B826)
αὐτὰρ ἐπεὶ πεῖρας πύματον (B842)
Apoacutes essa breve panoracircmica focada a evidenciar a estrutura argumentativa podemos ir aos
primeiros versos do fragmento 8 na ediccedilatildeo de Diels-Kranz (81-6)
μόνος δ ἔτι μῦθος ὁδοῖο
λείπεται ὡς ἔστιν ταύτηι δ ἐπὶ σήματ ἔασι
πολλὰ μάλ ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν
152
ἐστι γὰρ οὐλομελές τε καὶ ἀτρεμὲς ἠδ ἀτέλεστον199
οὐδέ ποτ ἦν οὐδ ἔσται ἐπεὶ νῦν ἔστιν ὁμοῦ πᾶν
ἕν συνεχές
Depois de tudo que foi dito ateacute agora o primeiro verso ateacute a primeira metade do segundo
deveria ser claro ldquoresta ainda uma uacutenica palavra do caminho que eacuterdquo O caminho que deve ser
seguido eacute aquele apresentado em 23 mas aqui numa versatildeo reduzida talvez numa expressatildeo
meramente didaacutetica resta somente uma palavra do caminho (de pesquisa para operar
cognitivamente) ldquoque eacuterdquo Exceto o nosso acreacutescimo entre parecircnteses este eacute o sentido geral que
todo estudioso aceita mas haacute divergecircncias quanto agraves liccedilotildees transmitidas agrave sintaxe e tambeacutem quanto
ao sentido mais preciso das expressotildees principalmente em relaccedilatildeo a μῦθος que pode ser traduzido
de vaacuterias maneiras embora aqui chamando agrave memoacuteria o outro uso que Parmecircnides faz (B 21)
tem mais o sentido de discurso fala noticia
82b-6a Os proacuteximos versos satildeo muito problemaacuteticos jaacute pela transmissatildeo do texto satildeo os
versos mais corrompidos de todo o poema Fazer uma anaacutelise minimamente satisfatoacuteria requer um
trabalho minucioso de comparaccedilatildeo entre os (muitos) doxoacutegrafos entre as variantes de cada
doxoacutegrafo e entre as correccedilotildees dos editores Aqui este trabalho natildeo nos ajuda no nosso tema porque
estes versos satildeo o anuacutencio dos sinais do eon que seratildeo demonstrados no resto do fragmento esta
parte pode ser considerada uma apresentaccedilatildeo ou um iacutendice ou segundo Rossetti uma apresentaccedilatildeo
dos demonstranda e natildeo entram no meacuterito da aplicaccedilatildeo do meacutetodo de Parmecircnides Damos entatildeo o
sentido geral com algumas poucas consideraccedilotildees O sentido geral eacute este ldquosobre o caminho haacute
199Este eacute o termo reportado por Diels-Kranz
153
muitas provas200 de que sendo (ἐὸν) ingecircnito eacute tambeacutem impereciacutevel pois eacute inteiro inabalaacutevel e
completo nem era nem seraacute pois eacute todo homogecircneo uno contiacutenuo Sobre o caminho do ἔστιν haacute
muitas provas (σήματα) as quais provam os atributos de algo este algo dependendo da
interpretaccedilatildeo que se daacute agraves palavras ὡς ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν (1) pode estar presente
como sujeito expliacutecito e neste caso se traduziria ldquoo que eacuterdquo201 eacute ingecircnito e incorruptiacutevel etc ou
(2) pode se entender o sujeito como impliacutecito (sujeito que eacute o proacuteprio ἐὸν e que apareceraacute mais
adiante em 819) e traduzir sendo ingecircnito eacute tambeacutem incorruptiacutevel etc Noacutes preferimos a segunda
alternativa pois ressalta mais a estrutura rigorosa da argumentaccedilatildeo parmenidiana haacute muitas provas
de que sendo ingecircnito eacute tambeacutem incorruptiacutevel No entanto neste caso os σήματα natildeo satildeo mais os
atributos listados nos primeiros 5 versos do fragmento 8 como traduz a interpretaccedilatildeo tradicional202
200 σῆμα eacute propriamente o sinal dos oraacuteculos mas enquanto sinal pode significar muitas coisas aqui a meu ver
significa mais sinal de certificaccedilatildeo (LSJ ldquo5 token by which any onersquos identity or commission was certifiedrdquo) isto
eacute mais propriamente em Parmecircnides prova (LSJ σημεῖον = σῆμα II 2 in reasoning a sign of proof) De fato
embora este sentido esteja registrado somente depois de Parmecircnides (como reportado no LSJ) jaacute estaacute presente em
Melisso o qual usa sem duacutevida um vocabulaacuterio parmenidiano (Galgano 2010 p 91 e passim) de forma muito
clara no fr 81 onde diz ldquo(1) Eacute pois esse argumento a mais importante prova (σημεῖον) de que (o ser) eacute apenas
um mas tambeacutem (haacute) as seguintes provas (σημεῖα)rdquo (Trad Borges I L)
Segundo Imbraguglia o uso de vocabulaacuterio eacutepico para noccedilotildees certamente novas como aquela de
ldquodemonstraccedilatildeordquo pode ser assim explicado ldquoParmecircnides usa teacutecnicas [de escrita] que satildeo proacuteprias da cultura
sacerdotal e da nobreza [hellip] Original eacute o uso por parte de Parmecircnides a liacutengua do poieteacutes natildeo eacute mais usada para
transportar o ouvinte do ambiente linguiacutestico do cotidiano para atmosfera encantada do eacutepos mas para se expressar
de um modo o mais possiacutevel formalizado e a linguagem e as teacutecnicas linguiacutesticas do oraacuteculo servem para realizar
verdadeiros caacutelculos loacutegicosrdquo (Inbraguglia 1974 p 9-10 n 5)
Por esta razatildeo eu penso que esteja corretto McKiraham quando diz ldquo Eacute opiniatildeo geral que os sinais satildeo os
atributos listados nestas linhas Mas Parmecircnides natildeo diz que haacute muitos sinais incluindo ldquoingecircnitordquo ldquoimpereciacutevelrdquo
etc Ao inveacutes disso ele diz que haacute muitos sinais de que o-que-eacute eacute ingecircnito impereciacutevel etc A afirmaccedilatildeo faz mais
sentido se entendermos os ldquosinaisrdquo como os argumentos que indicam (eu diria provam) que o-que-eacute tem os
atributos em questatildeordquo (McKirahan 2008 p 221 n 9)
Para um aprofundamento da noccedilatildeo de prova (rigorosa) na linguagem preacute-euclideana veja-se a discussatildeo dos
termos em Szabo 1970 185 201Literalmente o que estaacute sendo que em portuguecircs pode ser traduzido com o ente do latim ens eacutentis forjado como
particiacutepio presente de sum (Houaiss verbete ente) desde que ente seja entendido no seu sentido mais geral isto
eacute absoluto diferentemente da noccedilatildeo corrente a qual costuma ser referida a um ente relativo 202O entendimento de que os σήματα satildeo os atributos eacute quase unanimidade entre os comentadores mais antigos Burnet
(tokens) Cornford Diels (1897) Gigon Guthrie Jaeger Zafiropulo mais recentemente Mourelatos Ruggiu
154
mas satildeo as demonstraccedilotildees que se seguem ao longo do fragmento 8
441 Ἐὸν eacute ingecircnito e impereciacutevel
O primeiro dos σήματα apresentado por Parmecircnides correspondente ao primeiro dos
atributos eacute a natildeo geraccedilatildeo Em sua eacutepoca saber da origem das coisas significava conhecer as
coisas 203 conhecer sua natureza iacutentima ou simplesmente sua natureza como se expressa
claramente no sentido da palavra φύω que originariamente significava simplesmente existir ser e
que soacute sucessivamente passou a significar crescer O fato de ser o primeiro dos atributos e de
receber proporcionalmente mais atenccedilatildeo do que os outros potildee em evidecircncia toda a importacircncia
deste assunto para Parmecircnides e como noacutes sabemos para os demais pesquisadores da eacutepoca
Tendo entatildeo em mente a discussatildeo da eacutepoca a respeito dos princiacutepios e das origens de todas
as coisas como contexto intelectual no qual inserir esta prova podemos entender sua importacircncia
histoacuterica repleta de consequecircncias para todo o pensamento sucessivo Vamos entatildeo ao texto
τίνα γὰρ γένναν διζήσεαι αὐτοῦ
πῆι πόθεν αὐξηθέν οὐδ ἐκ μὴ ἐόντος ἐάσσω
φάσθαι σ οὐδὲ νοεῖν οὐ γὰρ φατὸν οὐδὲ νοητόν
ἔστιν ὅπως οὐκ ἔστι τί δ ἄν μιν καὶ χρέος ὦρσεν
ὕστερον ἢ πρόσθεν τοῦ μηδενὸς ἀρξάμενον φῦν
οὕτως ἢ πάμπαν πελέναι χρεών ἐστιν ἢ οὐχί
Taraacuten e outros Contra Cerri 1999 ldquoargomentazioni cogentirdquo p 214 Cordero 2005 ldquopruebas (para no decir
ldquodemonstracionesrdquo)rdquo p 193 203Eacute Aristoacuteteles que recolhe e formaliza (e em sua proacutepria filosofia desenvolve) esse autecircntico alicerce da cultura
grega quando afirma entre inuacutemeras outras passagens em sua obra ldquoὅτι μὲν οὖν ἡ σοφία περί τινας ἀρχὰς καὶ
αἰτίας ἐστὶν ἐπιστήμη δῆλονrdquo (Eacute evidente que a sabedoria eacute uma ciecircncia a respeito de certos princiacutepios e certas
causas) Metaph 982a
155
86b-7a O texto abre com duas perguntas que geraccedilatildeo pois procuraraacutes dele Como de
onde teria crescido Muitos dos inteacuterpretes entendem que satildeo perguntas retoacutericas que a deusa
refutaraacute por reductio ad absurdum204 Eu penso que a forma poeacutetica natildeo deve desviar nossa atenccedilatildeo
pois como vimos Parmecircnides usa a linguagem eacutepica para formalizar sua expressatildeo205 Penso
entatildeo que estas perguntas satildeo a formalizaccedilatildeo do problema da origem (archeacute) isto eacute satildeo o problema
inicial de onde parte a pesquisa parmenidiana Veremos em breve como reconstruir o argumento
mas por enquanto temos (1) a enunciaccedilatildeo da tese e (2) a formulaccedilatildeo do problema inicial a pergunta
que desencadeia a pesquisa
87b-8a Duas afirmaccedilotildees colocadas depois de duas perguntas parecem mesmo duas
respostas do natildeo ente (ἐκ μὴ ἐόντος) natildeo permitirei (οὐδ ἐάσσω) que digas e pense pois natildeo
diziacutevel nem pensaacutevel eacute o que natildeo eacute A deusa diz com voz imperativa que ela natildeo permitiraacute que se
diga e pense que se tenha geraccedilatildeo e crescimento desde o natildeo ente Haacute aqui o enunciado de uma lei
universal sob forma de uma lei proclamada por voz divina natildeo eacute permitido dizer e pensar que a
origem venha do natildeo ser Mas a deusa natildeo para no simples preceito ela continua e acrescenta uma
justificaccedilatildeo haacute um motivo para a sua proibiccedilatildeo e consiste no fato de que o natildeo eacute natildeo pode ser dito
e nem pensado Noacutes jaacute conhecemos o sentido de οὐκ ἔστι e tambeacutem de φάσθαι similar ao de
φράσαις de 28 e de νοεῖν similar ao de γνοίης de 27 pois os encontramos com as mesmas noccedilatildeo
e circunstacircncias no fr 2 Conveacutem poreacutem fazer uma pausa para refletir a respeito de um tema
204Cordero 2005 p 195 ldquoseudocuestionamentordquo Mourelatos 2008 p 98 ldquorethorical questionrdquo Robinson 1975 p
628 ldquoputative questionrdquo Ruggiu 1975 p 240 ldquointerrogativa retoricardquo 205Coxon relembra ldquoThese opening questions resemble and perhaps echo the conventional Homeric greeting τίς
πόθεν εἶς ἀνδρῶν πόθι τοι πόλις ἠδὲ τοκῆες [lsquoWho are you and from where Where is your city your parentsrsquo]rdquo
(Coxon p 317)
156
raramente abordado pelos estudiosos dedicados a Parmecircnides trata-se da questatildeo da posiccedilatildeo do
natildeo ser nas cosmovisotildees contemporacircneas e anteriores a Parmecircnides Faremos desta reflexatildeo um
intermezzo e voltaremos depois aos nossos versos
442 Intermezzo O natildeo ser na experiecircncia do devir
A expressatildeo da deusa eacute interessante Se de fato ela estaacute ensinando a respeito da gecircnese das
coisas agrave pergunta ldquoo que daria origem ao enterdquo ela responde ldquonatildeo permito que digas e pense que
seja o natildeo ser a dar origem ao enterdquo A singularidade da resposta consiste no fato de introduzir um
elemento culturalmente novo o natildeo ser Mas se esse elemento eacute novo por que o kouros deveria
possivelmente dizer e pensar o natildeo ser Ele faria isto se ele tivesse o natildeo ser como opccedilatildeo de
resposta Em outras palavras a proibiccedilatildeo da deusa implica que o disciacutepulo conheccedila ou use o ldquonatildeo
serrdquo Parmecircnides criticara antes (fr 6 e 7) a atitude dos mortais os quais misturam ser e natildeo ser
mas naquele caso se tratava claramente da operatividade das noccedilotildees dentro da coerecircncia do
discurso Aqui estaacute se falando da geraccedilatildeo do eon e culturalmente natildeo se justifica em princiacutepio a
hipoacutetese de um natildeo ser enquanto entidade cosmoloacutegica capaz de possivelmente dar geraccedilatildeo ao
ser Nas cosmogonias e cosmologias gregas natildeo se encontra uma noccedilatildeo de negatividade absoluta
geradora de algo aliaacutes natildeo se encontra nenhum conceito tatildeo abstrato nem negativo e nem positivo
os conceitos principiais satildeo sempre materializados e ou divinizados mais ou menos
monstruosamente ou antropomorficamente
Diante de tal estranheza buscou-se a noccedilatildeo de natildeo ser fora da Greacutecia Natildeo haacute nada similar
nas religiotildees e sabedorias mediterracircneas e meacutedio-orientais mas haacute uma passagem muito similar
em textos indianos Numa das Upanixades mais antigas a Chāndogya Upaniṣad se encontra um
157
texto muito similar ao texto parmenidiano (retraduzo de traduccedilatildeo italiana)
ldquo1 No iniacutecio meu caro natildeo havia nada mais que o ser [sat] uacutenico e sem segundo Na
verdade outros dizem No iniacutecio havia o natildeo ser [a-sat] uno e sem segundo deste natildeo ser
nasceu o ser 2 Poreacutem como poderia ser assim meu caro Como pode o ser nascer do natildeo
ser Na verdade eacute o ser o qual existia no iniacutecio das coisas o ser somente e sem segundordquo206
A semelhanccedila com o texto dos versos 86-8 de Parmecircnides eacute impressionante Tomou o eleata
suas ideias da sabedoria indiana Inspirou-se nela De prima facie somos tentados a responder que
sim Todavia com essa aceitaccedilatildeo os problemas historiograacuteficos aumentam ao inveacutes de diminuir
Antes de tudo a questatildeo especiacutefica da influecircncia indiana sobre Parmecircnides se coloca dentro da
questatildeo maior da influecircncia do oriente em geral sobre a cultura e portanto sobre a filosofia grega
tema espinhosiacutessimo e longe de estar resolvido apoacutes quase dois seacuteculos de debates Depois mesmo
nos limitando apenas a Parmecircnides os estudiosos divergem West acha que Parmecircnides eacute
supervalorizado pois ele tem menos originalidade de que se lhe atribui por pertencer a um
panorama cultural comum natildeo soacute na Greacutecia como na aacuterea mediterracircnea como um todo207 Alguns
artigos mais recentes embora mais criacuteticos do que West agrave influecircncia oriental parecem reconhecer
ao menos a semelhanccedila da problemaacutetica filosoacutefica Suto208 mais prudentemente afirma que um
intercacircmbio no VI sec aC era historicamente possiacutevel e ateacute provaacutevel e que haacute muitas
correspondecircncias temaacuteticas entre assuntos especiacuteficos de Parmecircnides (ser e natildeo ser e suas relaccedilotildees
206Chāndogya Upaniṣad 6II traduccedilatildeo italiana Filippani-Ronconi 1960 207Para ele a influecircncia indiana eacute um fato histoacuterico que aconteceu entre 550 e 480 aC Quando os Persas invadindo
as costas das colocircnias jocircnicas trouxeram consigo ldquoo presente dos reis magosrdquo isto eacute as influecircncias das culturas
meacutedio-orientais e orientais Por isso ele pensa que estas influecircncias natildeo devem ter alcanccedilado Parmecircnides via
pitagorismo mas deve ter sido mesmo heranccedila cultural vinda dos pais e dos foceanos em geral que a sofreram
antes de afinal emigrar fugindo da guerra (West 1971 p 287-269) 208Scuto 2010
158
com o mundo da natureza) e os texto religiosos e filosoacuteficos indianos anteriores ao VI seacuteculo aC
jaacute Ruzsa209 apoacutes uma anaacutelise bastante exaustiva chega a estimar as probabilidades matemaacuteticas
dos dois autores (Parmecircnides e o autor da Chāndogya Upaniṣad em questatildeo Uddālaka Āruṇi) ter
tratado temas similares independentemente 001 (1 chance em 1000) isto leva agrave conclusatildeo da
dependecircncia entre os textos restando definir se Parmecircnides tomou de Uddālaka Āruṇi ou vice-
versa o autor opta pela influecircncia indiana sobre o grego
Os problemas historiograacuteficos satildeo muitos antes de tudo os problemas de dataccedilatildeo
principalmente dos textos indianos em relaccedilatildeo aos quais haacute muito desacordo entre os estudiosos
Depois o problema de perspectiva pois natildeo basta afirmar que o Ser eacute um para configurar uma
afirmaccedilatildeo filosoacutefica ao inveacutes de uma religiosa ou ateacute mesmo de uma expressatildeo esteacutetica resultado
de alguma experiecircncia subjetiva Certamente e apesar da opiniatildeo de West o texto de Parmecircnides
eacute profundamente inovador natildeo soacute em relaccedilatildeo agrave cultura grega avanccedilada de sua eacutepoca como tambeacutem
em relaccedilatildeo agraves proacuteprias Upaniṣad em questatildeo210 de onde supostamente ele teria aprendido a
sabedoria de que fala em seu poema Por outro lado o estudo das influecircncias culturais em eacutepocas
arcaicas depende de disciplinas que escapam ao labor filosoacutefico principalmente dedicado aos
209Ruzsa 2002 210Ruzsa op Cit p 4 ldquoThere are also two really significant innovations in Parmenides logic and the number of
formsrdquo Gostaria de acrescentar para esclarecer que o fato de que Parmecircnides use a loacutegica natildeo significa que
enquadrou as ideias a respeito de ser e natildeo ser dentro de uma metodologia linguiacutestica que chamamos loacutegica mas
significa que Parmecircnides ndash mesmo que tenha tomado as ideias emprestadas das Upanixades ou de qualquer outro
mito grego (e natildeo podia ser diferente pois natildeo se consegue inventar uma cultura ex-novo) ndash reconsiderou refletiu
e visualizou-as numa nova ordem (weltanschaung) tarefa esta das mais radicais na atividade filosoacutefica Ou seja a
novidade natildeo eacute a loacutegica na qual Parmecircnides encaixa ser e natildeo ser mas a reflexatildeo filosoacutefica sobre ser e natildeo ser a
qual gerou a loacutegica (melhor seria dizer a ontologia) implicada filosoficamente naquelas noccedilotildees e exposta atraveacutes
de uma elaboraccedilatildeo (que viraacute a ser chamada de reflexatildeo filosoacutefica ou seja uma reflexatildeo especiacutefica com
caracteriacutesticas autocircnomas em relaccedilatildeo a outros tipos de reflexatildeo por exemplo a reflexatildeo artiacutestica) original que de
fato influenciou profundamente a histoacuteria humana primeiro do ocidente e depois tambeacutem do oriente
159
textos assim aqueles estudos avanccedilaratildeo na medida do avanccedilo de estudos arqueoloacutegicos em todas
as ramificaccedilotildees e das tecnologias capazes de resolver os problemas colocados pelo filtro do tempo
Infelizmente as aacutereas envolvidas nestes estudos arqueoloacutegicos ndash desde a Turquia ateacute a Iacutendia ndash
continuam devassadas por infindaacuteveis conflitos violentos de toda natureza deixando-nos ceacuteticos a
respeito da aquisiccedilatildeo de novos conhecimentos em curto ou ateacute meacutedio prazos
Voltando agrave expressatildeo da deusa parece claro que o kouros inclui entre as possibilidades de
respostas aquela de que seja o natildeo ser um princiacutepio gerador Penso que este seja um ponto obscuro
uma aacuterea de sombra que emergiu ao longo da presente pesquisa e que natildeo foi possiacutevel esclarecer
Restam entatildeo as perguntas em quais contextos culturais (gregos ou natildeo) se aceitava a possibilidade
que o natildeo ser tivesse a capacidade de gerar Esta possibilidade era uma possibilidade teoacuterica
elaborada em acircmbito cientiacutefico ou se referia apenas agrave opiniatildeo comum naif de que no fluxo do
acontecer as coisas simplesmente aparecem (do nada) Se era uma noccedilatildeo teoacuterica poderia ter um
antecedente no ἄπειρον de Anaximandro noccedilatildeo inteiramente negativa embora de certa forma
menos abstrata que o οὐκ ἔστιν parmenidiano Se Parmecircnides se referia agrave noccedilatildeo comum agrave
experiecircncia corriqueira (mas justamente por isto muito menos visiacutevel) entatildeo ele foi um observador
mais do que extraordinaacuterio hipoacutetese de uma perspicaacutecia que natildeo pode ser descartada mas que se
apresenta realmente difiacutecil de lhe creditar Seja como for resta o fato de que Parmecircnides analisa os
princiacutepios possiacuteveis da geraccedilatildeo incluindo entre eles o natildeo ser como alternativa aparentemente jaacute
presente na cultura da eacutepoca Sem ter alcanccedilado resultados satisfatoacuterios sobre esse assunto
voltamos agora ao argumento do poema
87b-8a Retomada Das duas afirmaccedilotildees a proibiccedilatildeo da deusa e sua justificaccedilatildeo somente
uma eacute a resposta agraves duas perguntas julgadas a meu ver erradamente retoacutericas pelo criacuteticos A outra
eacute afirmaccedilatildeo do instrumento argumentativo que vai ser usado para responder A tese eacute (1) o eon eacute
160
ingecircnito e impereciacutevel o problema ao qual esta tese responde eacute (2) de onde nasce o eon o
instrumento para resolver o problema eacute (3) o preceito que foi descrito no fragmento 2 ldquonatildeo diziacutevel
nem pensaacutevel eacute o que natildeo eacuterdquo e finalmente a primeira das vaacuterias respostas ao problema ldquonatildeo
permitirei que digas e pense que seja o natildeo serrdquo (οὐδ ἐκ μὴ ἐόντος ἐάσσω φάσθαι σ οὐδὲ νοεῖν)
Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo tem que ser desdobrada da seguinte forma por um lado o natildeo ser natildeo eacute de
onde nasce o eon e por outro lado o natildeo ser natildeo pode ser usado no argumento (pensamento
cognitivo e discurso) porque ele eacute uma noccedilatildeo sem sentido Portanto a sequecircncia deve ser entendida
assim
(1) tese o eon eacute ingecircnito e impereciacutevel (83 ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν)
(2) problema de onde eacute gerado o eon (86-7 τίνα γὰρ γένναν διζήσεαι αὐτοῦ πῆι
πόθεν αὐξηθέν)
(3) axioma da contradiccedilatildeo ldquonatildeo diziacutevel nem pensaacutevel eacute o que natildeo eacuterdquo (88-9 οὐ γὰρ
φατὸν οὐδὲ νοητόν ἔστιν ὅπως οὐκ ἔστι)
(4) axioma da natildeo contradiccedilatildeo ldquonatildeo eacute permitido dizer e pensar o natildeo serrdquo isto eacute usar o
natildeo ser no argumento (87-8 οὐδ ἐκ μὴ ἐόντος ἐάσσω φάσθαι σ οὐδὲ νοεῖν) logo
(5) Conclusatildeo o eon natildeo nasce do natildeo ser (87 οὐδ ἐκ μὴ ἐόντος) o que confirma a tese (1)
89-13 O crescimento
τί δ ἄν μιν καὶ χρέος ὦρσεν
ὕστερον ἢ πρόσθεν τοῦ μηδενὸς ἀρξάμενον φῦν
οὕτως ἢ πάμπαν πελέναι χρεών ἐστιν ἢ οὐχί
οὐδέ ποτ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς
γίγνεσθαί τι παρ αὐτό
Encontramos agora mais uma pergunta e mais uma vez a maioria dos estudiosos pensa que
161
seja retoacuterica ldquoSe vem do nada (μηδενὸς) qual necessidade o incitaria a crescer antes ou depoisrdquo
Concordo com os criacuteticos quando dizem que haacute nessas palavras a implicaccedilatildeo daquilo que seraacute
conhecido como princiacutepio da razatildeo suficiente Mas discordo quando elas satildeo interpretadas apenas
como uma questatildeo de crescimento simples eu diria quantitativo do eon Penso ao contraacuterio que
estas palavras estatildeo analisando um aspecto que muitos julgam ausente a possibilidade da geraccedilatildeo
a partir do ser Antes Parmecircnides analisou a possibilidade do nascimento a partir do natildeo ser e agora
estaacute verificando a possibilidade do nascimento a partir do ser Os adveacuterbios antes e depois
significam que o eon natildeo pode ter um antes e depois entre entes natildeo tanto em sentido cronoloacutegico
quanto em sentido sequencial por exemplo o ser da planta natildeo pode nascer do ser da semente
porque mais uma vez uma suposta diferenccedila entre o ser da semente e o ser da planta faria com
que o ser da planta nascesse depois do ser da semente e nascesse de um natildeo ser da planta isto eacute
do nada Se haacute uma diferenccedila de ser entre o ser de um ente e o ser de outro ente esta diferenccedila
seria um natildeo ser Isto significa que se o ser de um ente desse origem a outro ser ele daria origem
ao ser que ele natildeo eacute o ser que ele natildeo eacute seria um natildeo ser mas isto eacute impossiacutevel Seguindo no
exemplo se o ser da semente desse origem ao ser da planta isto implicaria que o ser da semente
daria origem a um natildeo ser da semente pois pereceria enquanto ser da semente e tambeacutem que o
ser da planta teria origem em um natildeo ser da planta Mas como jaacute foi visto para Parmecircnides natildeo
faz sentido introduzir o natildeo ser nos argumentos de fato pelos preceitos da deusa o ser eacute
inteiramente ser e o nada eacute aquela alternativa considerada inicialmente possiacutevel mas afinal
impossiacutevel e contraditoacuteria Entatildeo se o ser viesse do ser teriacuteamos o ser que gera que pereceria para
dar geraccedilatildeo ao ser gerado o ser gerado de certa forma viria de novo do nada mas o nada eacute
impossiacutevel logo o ser natildeo vem do ser Voltando ao texto temos
(1) a tese o eon eacute ingecircnito e impereciacutevel (83 ἀγένητον ἐὸν καὶ ἀνώλεθρόν ἐστιν)
162
(2) o problema qual razatildeo impeliria o ente comeccedilando do nada a crescer antes ou depois
(89-10 τί δ ἄν μιν καὶ χρέος ὦρσεν ὕστερον ἢ πρόσθεν τοῦ μηδενὸς ἀρξάμενον φῦν)
(3) axioma da contradiccedilatildeo pois o ser eacute inteiramente ou natildeo eacute (811 οὕτως ἢ πάμπαν πελέναι
χρεών ἐστιν ἢ οὐχί)
(4) axioma da natildeo contradiccedilatildeo a forccedila da convicccedilatildeo natildeo permitiraacute a partir do que natildeo eacute (812
οὐδέ ποτ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς)
(5) Conclusatildeo que possa nascer algo ao seu lado (813 γίγνεσθαί τι παρ αὐτό) isto eacute natildeo eacute
do ser que nasce o ser
813-21 Recapitulaccedilatildeo e conclusatildeo do argumento
Com os versos seguintes ateacute o 21 Parmecircnides recapitula e reafirma a coerecircncia do
meacutetodo
τοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι
οὔτ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδηισιν
ἀλλ ἔχει ἡ δὲ κρίσις περὶ τούτων ἐν τῶιδ ἔστιν
ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν κέκριται δ οὖν ὥσπερ ἀνάγκη
τὴν μὲν ἐᾶν ἀνόητον ἀνώνυμον (οὐ γὰρ ἀληθής
ἔστιν ὁδός) τὴν δ ὥστε πέλειν καὶ ἐτήτυμον εἶναι
πῶς δ ἂν ἔπειτ ἀπόλοιτο ἐόν πῶς δ ἄν κε γένοιτο
εἰ γὰρ ἔγεντ οὐκ ἔστ(ι) οὐδ εἴ ποτε μέλλει ἔσεσθαι
τὼς γένεσις μὲν ἀπέσβεσται καὶ ἄπυστος ὄλεθρος
Antes de tudo nos versos 13-15 eacute reafirmada a feacuterrea ligaccedilatildeo (πέδηισιν) entre as supostas
partes do eon Haacute uma forccedila divina (universal) que manteacutem amarrados os grilhotildees entre as partes
e natildeo os solta mas os segura firmemente Assim como a deusa dizia em 87 ldquonatildeo permitireirdquo
(οὐδἐάσσω) que se diga e pense que o eon nasccedila do natildeo ser assim aqui eacute uma deusa desta vez
Dike que numa expressatildeo de necessidade universal impedindo nascimento e perecimento (οὔτε
γενέσθαιοὔτ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη) manteacutem firme (ἀλλ ἔχει) a coerecircncia do ser
163
Depois nos versos 15 e 16a eacute reafirmado o preceito da contradiccedilatildeo desta vez em chave
enxutamente ontoloacutegica da qual podemos extrair por conseguinte os preceitos loacutegico e
epistemoloacutegico O molde ontoloacutegico eacute claro e eacute anterior aos loacutegico e epistemoloacutegico porque
Parmecircnides expressa essa nova formulaccedilatildeo do preceito da deusa a partir de uma reflexatildeo sobre o
ser real e natildeo sobre o ser loacutegico como vimos ao analisar o fragmento 2 Aqui depois da dupla
argumentaccedilatildeo a respeito do eon ndash que eacute o ser real (ou ao menos ele acredita que seja) e natildeo uma
entidade loacutegica ndash onde satildeo demostradas as impossibilidades do nascimento tanto do ser quanto do
natildeo ser e do perecimento (a respeito do qual direi algo daqui a pouco) resulta claro que se trata de
um ser que teria a possibilidade de ser visto como gerador e gerado assim como de fato eacute visto
pelos mortais Parmecircnides demonstra que este eon real natildeo possui as caracteriacutesticas que lhe satildeo
atribuiacutedas assim o eon parmenidiano natildeo eacute uma entidade loacutegica mas eacute o ser real e as afirmaccedilotildees
a seu respeito satildeo de ordem ontoloacutegica A decisatildeo (ἡ κρίσις) a respeito dessas coisas consiste nisso
ou eacute ou natildeo eacute Esta formulaccedilatildeo eacute como bem salienta Cordero211 o nosso atual princiacutepio do terceiro
excluiacutedo Entretanto Parmecircnides quer se referir ao eon e natildeo a um princiacutepio loacutegico Ele repropotildee
a meditaccedilatildeo inicial e diz haacute duas vias uma eacute ἔστιν e a outra eacute οὐκ ἔστιν as duas satildeo
irreconciliaacuteveis radicalmente opostas e natildeo podem ser assimiladas a nenhuma terceira
possibilidade Isto significa que elas natildeo se misturam natildeo se encontram natildeo comerciam e ademais
se rejeitam reciprocamente a presenccedila do ser eu ipso elimina o natildeo ser e se o natildeo ser se
apresentasse o ser natildeo seria (Parmecircnides diraacute mais adiante ldquode tudo careceriardquo) Aqui Parmecircnides
211Cordero 2005
164
apresenta natildeo apenas o princiacutepio do terceiro excluiacutedo mas o fundamento ontoloacutegico do princiacutepio
do terceiro excluiacutedo natildeo haacute uma terceira possibilidade entre o ser (real) e o nada
Logo dada a natildeo conciliabilidade das duas vias natildeo eacute possiacutevel seguir as duas se teraacute que
seguir uma ou outra mas a segunda eacute impensaacutevel e inominaacutevel (ἀνόητον ἀνώνυμον) pois natildeo eacute
verdadeira via (οὐ γὰρ ἀληθής ἔστιν ὁδός) logo eacute decisatildeo necessaacuteria (κέκριται hellip ὥσπερ ἀνάγκη)
que seja abandonada O fato de que aqui em 817 eacute a via que eacute impensaacutevel o natildeo o τό μὴ ἐὸν sobre
a via como em 27 levou alguns autores a transpor a expressatildeo do fr 8 para o contexto do fr 2
chegando assim agrave conclusatildeo de que a via eacute pensaacutevel ou impensaacutevel fazendo da ὁδός o sujeito do
ἔστιν de 23 e do οὐκ ἔστιν de 25212 Eu penso que aqui em 817 estamos diante de uma
recapitulaccedilatildeo e ἔστιν e οὐκ ἔστιν jaacute se tornaram uma simplificaccedilatildeo didaacutetica de todo um
procedimento complexo explicado anteriormente neste sentido didaacutetico ndash mas somente neste
sentido didaacutetico ndash ἔστιν e οὐκ ἔστιν significam o processo de pensamento e portanto significam
tambeacutem as vias e toda a reflexatildeo anexa com os sentidos especiacuteficos para noein e para gignosko ali
utilizados Neste sentido didaacutetico a via impensaacutevel eacute abandonada afinal soacute resta a outra via que
existe (τὴν δ ὥστε πέλειν) e eacute verdadeira (καὶ ἐτήτυμον εἶναι)
Finalmente eacute recapitulado o problema como o eon pereceria depois Como nasceria E
pelas argumentaccedilotildees anteriores aqui recapituladas se relembra que se nasceu teria uma origem
impossiacutevel (no natildeo ser) e portanto natildeo seria por outro lado se natildeo eacute agora mas seraacute depois
aconteceria o mesmo Este uacuteltimo ponto gerou controveacutersias tratarei dele logo a seguir (p XX)
Chega-se assim agrave conclusatildeo do argumento a geraccedilatildeo eacute extinta e o perecimento eacute inaudito
212Casertano 1978 Untersteiner 1979
165
(ἄπυστος)
822-60 As caracteriacutesticas do eon a conclusatildeo dos discursos sobre a verdade e a
perspectiva dos mortais que de seu ponto de vista enxergam duas formas
Nos proacuteximos versos Parmecircnides argumenta a respeito de vaacuterias caracteriacutesticas do eon
Embora haja uma referecircncia agrave feacute verdadeira que afastou geraccedilatildeo e perecimento (827 ἀπῶσε δὲ
πίστις ἀληθής) isto eacute ao argumento apresentado nos versos anteriores a estrutura demonstrativa
se articula pouco apenas extraindo como corolaacuterios as caracteriacutesticas do eon das afirmaccedilotildees e
preceitos anteriormente apresentados Esta referecircncia se repete com palavras um pouco diferentes
no verso 850 (ἐν τῶι σοι παύω πιστὸν λόγον ἠδὲ νόημα ἀμφὶς ἀληθείης) Aleacutem da referecircncia agrave feacute
verdadeira haacute referecircncias agraves figuras divinas de Ananke (830) explicitamente associada a uma lei
universal (832 οὕνεκεν οὐκ ἀτελεύτητον τὸ ἐὸν θέμις εἶναι) e de Moira (837) como o mesmo
papel de manter a coesatildeo do eon
Mais adiante ainda Parmecircnides volta a contrapor as caracteriacutesticas do eon obtidas por seu
argumentar que ele considera confiaacutevel agraves caracteriacutesticas do mundo obtidas pelo argumentar dos
mortais que ele considera natildeo confiaacutevel De fato ele finaliza seu estudo com estas consideraccedilotildees
gerais a respeito dos resultados de sua pesquisa principalmente em contraposiccedilatildeo com os
resultados dos mortais Assim a partir do verso 850 a deusa declara concluiacutedo os discursos
fidedignos e o pensamento sobre a verdade e se dedica a expor as opiniotildees dos mortais segundo
uma ordem de palavras controversa
Como se sabe os problemas exegeacuteticos dessas passagens satildeo muitos e geram muacuteltiplas
soluccedilotildees amplamente divergentes entre os estudiosos por outro lado o nosso assunto eacute a
argumentaccedilatildeo parmenidiana e natildeo as caracteriacutesticas do eon e as demais partes do poema logo natildeo
166
precisamos entrar nem mesmo panoramicamente nas grandes polecircmicas que envolvem os
proacuteximos versos Encerramos entatildeo a nossa anaacutelise do fragmento 8 com um resumo e com algumas
consideraccedilotildees a respeito dos resultados obtidos
A ontologia parmenidiana
A proposta parmenidiana eacute francamente ontoloacutegica Parmecircnides estreia esse tipo de reflexatildeo
a ontologia exatamente com uma meditaccedilatildeo sobre a maacutexima dimensatildeo do existente Penso que
seja necessaacuterio levar isto em conta para se entender esses versos do fr 8 e para entender o tipo de
raciociacutenio que eacute utilizado Vejam-se por exemplo as consideraccedilotildees de um criacutetico que dedicou um
bom trabalho a este fragmento Richard McKirahan Diz ele ldquoTodos os argumentos contra geraccedilatildeo
e perecimento (86-20) explicam a geraccedilatildeo do que-eacute a partir do que-natildeo-eacute e o perecimento como
perecimento do que-eacute no que-natildeo-eacute natildeo haacute nada contra a geraccedilatildeo do que-eacute a partir do que-eacute ou o
perecimento do que-eacute no que-eacute ou seja nada contra uma coisa que-eacute se tornar outrardquo E na nota a
estas palavras complementa ldquoTambeacutem nada contra [o fato de] muitas coisas se tornarem uma
(como quando taacutebuas e pregos se tornam uma cama) ou contra uma coisa se tornar muitas (como
quando noacutes desmontamos uma cama) ou contra casos desse tipo ainda mais complicadosrdquo213 Natildeo
eacute difiacutecil se deixar levar pelo raciociacutenio loacutegico e com ele considerar impropriamente um raciociacutenio
ontoloacutegico Parmecircnides raciocina de forma ontoloacutegica e por alguma razatildeo sem receio algum
213McKirahan 2008 ldquoAll the arguments against generation and perishing (86-20) construe generation as generation
of what-is out of what-is-not andperishing as perishing of what-is into what-is-not there is nothing against the
generation of what-is out of what-is or the perishing of what-is into what-is that is nothing against one thing
becoming anotherrdquo (p 220) A nota diz ldquoAlso nothing against several things becoming one (as when boards and
nails become a bed) or against one thing becoming several (as when we disassemble a bed) or against other mor
complicated cases of this sortrdquo (p 229)
167
(expliacutecito) de enfrentar as aporias dessa maneira de argumentar214
Pelo raciociacutenio ontoloacutegico uma taacutebua para ficar no exemplo de McKirahan eacute um fato
existencial absoluto e jamais pode se tornar uma cama uma cama natildeo pode jamais se tornar uma
soma incoerente de componentes e quando ela eacute desmontada ela natildeo deixa de existir porque a
cama eacute um fato existencial absoluto assim como cada ente de nosso mundo Para dar um exemplo
com entes dos quais eacute mais faacutecil identificar o aspecto ontoloacutegico uma operaccedilatildeo de 2+3=5 embora
nos pareccedila uma transformaccedilatildeo (eacute a razatildeo pela qual usamos um vocaacutebulo de movimento operaccedilatildeo)
eacute uma associaccedilatildeo de 2 e de 3 segundo um tipo de associaccedilatildeo que chamamos soma que resulta num
5 Os entes do mundo sensiacutevel em seu status ontoloacutegico natildeo diferem enquanto entes (natildeo
enquanto sensiacuteveis) dos entes inteligiacuteveis e assim como depois operaccedilatildeo 2+3=5 se continua tendo
um 2 um 3 e um 5 assim tambeacutem numa operaccedilatildeo taacutebuas+pregos=cama uma vez concluiacuteda a
operaccedilatildeo se continuaraacute tendo taacutebuas pregos e cama tanto quanto se tinha antes embora ainda natildeo
se tinha a noccedilatildeo da existecircncia (o noema diria Parmecircnides) daquela cama especiacutefica
Por isso no argumento do crescimento este soacute seria (como hipoacutetese) possiacutevel a partir do natildeo
ser natildeo haacute do ponto de vista ontoloacutegico um crescimento de taacutebuas e pregos numa cama o que haacute
eacute um processo que noacutes chamamos devir e que desde Parmecircnides aguarda uma explicaccedilatildeo melhor
do que aquela comum de ldquotransformaccedilatildeordquo215 Parmecircnides evidencia que os entes cada um e o todo
deles atendem a um preceito que opotildee radicalmente o ser e o nada porque haacute uma impossibilidade
214 Como a histoacuteria seguinte mostrou as palavras de Parmecircnides satildeo motivo de angustia profunda que deixou
desnorteados ateacute os mais eminentes filoacutesofos do pensamento ocidental mas ele proacuteprio nada relata da anguacutestia
suscitada por estas aporias 215Eacute o termo geneacuterico e comum associado ao devir O que se aguarda eacute a descriccedilatildeo de um processo de devir que
preserve o status ontoloacutegico da imutabilidade de cada ente (Cf com o proacuteximo capiacutetulo)
168
de se negar o ser Esse preceito impede que ao lado de um ente no nosso exemplo a taacutebua nasccedila
(cresccedila) um outro ente a cama porque este viria do nada Assim se um ente (um o que-eacute na
expressatildeo de McKirahan) gerasse outro (um o que-eacute+algo novo que-eacute) o elemento novo por ter
autonomia ontoloacutegica absoluta teria que vir do nada
Discordo entatildeo de McKirahan e dos muitos que natildeo encontram o argumento contra o devir
do que-eacute para o que-eacute A argumentaccedilatildeo estaacute laacute sob o nome de crescimento aquela φύσις (810 φῦν)
que resultaraacute transfigurada para sempre apoacutes Parmecircnides O mesmo deve ser dito em relaccedilatildeo ao
perecimento Perecer significaria ontologicamente deixar um buraco de natildeo ser encastoado num
mar de ser mas o natildeo ser eacute impossiacutevel Se algo cresce algo que era antes de crescer perece ndash
como seria o caso de dizer seguindo a rigor o exemplo de McKirahan a respeito do prego da cama
o qual agora natildeo eacute mais um prego mas uma parte da cama ou num exemplo mais claro a semente
perece para dar espaccedilo agrave planta ou a crianccedila ao adulto216 O crescimento implica eu ipso o
perecimento logo eliminando o crescimento se elimina tambeacutem o perecimento pois o
crescimento de algo implica que algo mais pereceu Dito de outra forma se considerarmos o
processo nos termos colocados por McKirahan ou seja como ldquobecomingrdquo devir entatildeo sempre
que algo se transforma em outro algo sempre que algo deveacutem o processo de devir transforma o
que-eacute naquilo que-natildeo-eacute (mais) e ao mesmo tempo passa a ser outro que-eacute ou seja em outros
termos o transformando deixa de existir (perece) em favor do transformado o qual passa a existir
Vecirc-se portanto que Parmecircnides argumenta dentro de uma ordem ontoloacutegica de ideias aplicada aos
216Este tema jaacute se encontra enfrentado em Anaximandro o qual atribui ao tempo a justa distribuiccedilatildeo entre aparecer e
desaparecer
169
conceitos jocircnicos anteriores onde nascimento e morte se apresentam simultaneamente alternando
os entes segundo a ordem do tempo
Deixando para o proacuteximo capiacutetulo uma discussatildeo mais geral sobre o natildeo ser resta aqui
ressaltar o rigor da construccedilatildeo parmenidiana com a articulaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo em dois
momentos ndash geraccedilatildeo e perecimento a partir do nada e para o nada e geraccedilatildeo e perecimento a partir
do ser e para o ser ndash configurando o primeiro exemplo historicamente documentado de uma
estrutura argumentativa soacutelida e coerente que apresenta o problema a tese da soluccedilatildeo o meacutetodo
de soluccedilatildeo e o resultado que coincidindo com a tese eacute acompanhado de uma expressatildeo muito
similar na forma e praticamente idecircntica no espiacuterito ao QED das demonstraccedilotildees rigorosas
sucessivas
No proacuteximo capiacutetulo seraacute possiacutevel concluir a investigaccedilatildeo a respeito do Parmecircnides
psicoacutelogos que deixamos em suspenso no primeiro capiacutetulo pela falta das noccedilotildees relativas ao
pensar expostas neste capiacutetulo Sucessivamente conduziremos uma discussatildeo geral sobre a noccedilatildeo
de natildeo ser que emergiu nas anaacutelises aqui realizadas para afinal concluir com algumas
consideraccedilotildees gerais
170
5 O PRECEITO DA DEUSA
51 O natildeo ser em Parmecircnides
Parmecircnides inventou217 a noccedilatildeo de natildeo ser218 O percurso que ele seguiu para alcanccedilar essa
noccedilatildeo eacute reportado em seu poema natildeo de forma totalmente expliacutecita mas com uma riqueza de
detalhes suficiente para reconstrui-lo Trata-se de uma meditaccedilatildeo trata-se de uma reflexatildeo sobre o
significado uacuteltimo da negaccedilatildeo do que eacute Para o realismo gnosioloacutegico tiacutepico dessas culturas negar
o ser de algo (sua existecircncia presenccedila local ou temporal) significa antes de tudo negar o ser fiacutesico
(e limitadamente a este acircmbito e natildeo aleacutem deve ser considerada a noccedilatildeo de natildeo ser presente nos
Vedas) Parmecircnides provavelmente partindo da noccedilatildeo de negaccedilatildeo fiacutesica deve ter levado agraves uacuteltimas
consequecircncias esse processo de negaccedilatildeo dos entes fiacutesicos mas certamente acrescentou a estes a
negaccedilatildeo dos entes de pensamento como se vecirc pelas vaacuterias expressotildees em seu poema equacionando
o pensamento com o ser e rejeitando a relaccedilatildeo do pensamento com o natildeo ser Levou o processo agraves
uacuteltimas consequecircncias porque este era o procedimento da cultura avanccedilada da eacutepoca ndash as filosofias
217Mesmo que ele tenha tomado esse conceito da cultura indiana a noccedilatildeo por ele elaborada estaacute muito aleacutem daquela
reportada pelos textos orientais como vimos no Intermezzo do cap 2 218Um panorama de interpretaccedilotildees sobre o natildeo ser de Parmecircnides pode ser encontrado em Hermann 2011 p 135-171
Este estudioso tambeacutem apresenta um estudo do natildeo ser de proporccedilotildees muito menores do que o nosso com o qual
poreacutem se pode concordar em linhas gerais Note-se por exemplo a mudanccedila proposta ao sujeito segundo ele impliacutecito
para DK B 23 e 25 e em todo caso o sentido geral das expressotildees enquanto em seu trabalho anterior (um excelente
estudo sobre pitagorismo e Parmecircnides Hermann 2004) ele traduzia ldquothe one that [states it as] IT IS and that it cannot
NOT BE [as it is]rdquo neste artigo de 2011 traduz the one that [reasons it] IS and that it cannot NOT BErdquo Esta segunda
traduccedilatildeo ligando as expressotildees ao argumentar o aproxima da nossa interpretaccedilatildeo no entanto como foi visto aqui
esta meditaccedilatildeo parmenidiana eacute de focirclego muito maior e o meacutetodo do argumento eacute apenas um dos resultados Ademais
aplicar esse verbo to reason eacute restritivo como se torna mais evidente em 25 onde ele fez a mesma substituiccedilatildeo pois
esti e ouk esti satildeo estruturas e natildeo funccedilotildees Elas podem ser usadas bem o mal em funccedilotildees de argumento mas elas
proacuteprias natildeo satildeo argumentos como vimos no primeiro paraacutegrafo do capiacutetulo 4 p 99 em diante
171
jocircnica e pitagoacuterica em ambas das quais ele foi instruiacutedo ndash que consistia na busca de uma noccedilatildeo
extrema e total da ordem do mundo extrema ao ponto de nela incluir os deuses De fato e embora
seja uma deusa a instruir o kouros parmenidiano estas suas pesquisas assim como aquelas de seus
colegas jocircnicos e pitagoacutericos se orientaram para explicaccedilotildees francamente naturalistas
prescindindo dos deuses e se sobrepondo agrave explicaccedilatildeo religiosa
Com extraordinaacuteria coragem (que hoje noacutes chamariacuteamos de) filosoacutefica aceitou o resultado
de suas reflexotildees e construiu uma doutrina metodoloacutegica extremamente coerente que ele natildeo
hesitou em sustentar mesmo quando ela o levou ao mais anti-intuitivo dos mundos um mundo
onde natildeo haacute mutaccedilatildeo Assim sem receio destes resultados que estavam em conflito com a
experiecircncia comum dos sentidos conseguiu consolidar uma noccedilatildeo rigorosa a noccedilatildeo de natildeo ser e
junto com a noccedilatildeo de ser iniciou um processo histoacuterico de pensamento a ontologia cuja vitalidade
se manteve ao longo de mais de dois milecircnios ateacute hoje e que representa uma das colunas portantes
naquele acircmbito cultural que chamamos de filosofia Curiosamente poreacutem a mensagem inicial de
Parmecircnides de certa forma se perdeu e se perdeu num detalhe importante A noccedilatildeo de natildeo ser foi
logo absorvida pela cultura a ele sucessiva e rendeu frutos tatildeo profundos quanto desnorteadores
que vatildeo desde os paradoxos zenonianos e gorgianos ateacute as discussotildees de Platatildeo sobre o devir e de
Aristoacuteteles sobre o principium firmissimum de natildeo contradiccedilatildeo passando pela filosofia
rigorosamente racionalista de Melisso provavelmente o filoacutesofo mais radical de toda a filosofia
ocidental Mas nessa absorccedilatildeo a noccedilatildeo de natildeo ser foi de certa forma entificada ndash comeccedilando pelo
proacuteprio Melisso219 ndash e se tornou a noccedilatildeo de um polo negativo ao qual opor o ser A oposiccedilatildeo se
219Ver Galgano 2010
172
tornou claacutessica e sobrevive tanto no imaginaacuterio cultural como por exemplo no famoso to be or not
to be de Shakespeare quanto nas foacutermulas e nas operaccedilotildees da logiacutestica com a oposiccedilatildeo hoje
contestada de vaacuterias maneiras de a e ~a
Parmecircnides poreacutem natildeo estabeleceu como fundamento uma oposiccedilatildeo entre ser e natildeo ser O
seu fundamento eacute outro de que a oposiccedilatildeo entre ser e natildeo ser eacute apenas uma das consequecircncias
Neste ponto neste detalhe reside a passagem da histoacuteria do pensamento que escolheu evitar um
fosso saltando sobre ele ou construindo uma ponte isto eacute aquele abismo conceitual que leva agrave
negaccedilatildeo da mutaccedilatildeo e agrave rejeiccedilatildeo da experiecircncia dos sentidos Quem primeiro construiu essa ponte
sobre o abismo Talvez tenha sido Melisso involuntariamente talvez tenha sido Platatildeo
conscientemente poreacutem o que mais importa eacute que a histoacuteria do pensamento natildeo quis enfrentar esta
dificuldade (a famosa aporia eleaacutetica) e quando o fez obteve resultados filosoficamente pouco
consolidados e que se desfizeram sempre que o advento de novas instacircncias histoacutericas e culturais
pareciam ser mais atraentes do que o espinhoso contexto da aporia eleaacutetica220
Entretanto Parmecircnides natildeo teve receio de olhar para o abismo da aporia porque era para laacute
que suas pesquisas o levaram A forccedila daquela aporia vinha da posiccedilatildeo de uma necessidade um
imperativo irrenunciaacutevel o pocircr-se de uma impossibilidade incontornaacutevel Eacute este vigor que daacute
firmeza ao rigor do meacutetodo sucessivamente desenvolvido O iniacutecio do percurso parmenidiano
consiste numa impossibilidade feacuterrea eacute impossiacutevel que o ser seja negado Para Parmecircnides a
incompatibilidade primeira eacute entre natildeo e ser Este eacute o ponto que se perdeu ao longo do
220Tanto a filosofia cristatilde medieval quanto o umaneacutesimo e a filosofia moderna dos seacuteculos XVI a
XIX se apoiam sobre movimentos culturais que implicam a mutaccedilatildeo e rejeitam a natildeo mutaccedilatildeo
173
desdobramento da filosofia ocidental Com esta incompatibilidade ele construiu seu preceito
metodoloacutegico de natildeo contradiccedilatildeo mas o fundamento ndash a incompatibilidade entre natildeo e ser ndash eacute
muito mais principial do que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo
O fundamento de Parmecircnides eacute a impossibilidade de negar o ente (ouk estin) Ao contraacuterio
de muitos estudiosos eu penso que esta impossibilidade natildeo estaacute baseada numa confusatildeo entre a
expressatildeo sintaacutetica negativa e a entificaccedilatildeo da proposiccedilatildeo sintaacutetica negativa (uma ontologizaccedilatildeo a
partir das potencialidades da liacutengua grega) tambeacutem discordo da interpretaccedilatildeo gnosioloacutegica de que
afinal Parmecircnides estaria dizendo que natildeo se pode ter um conhecimento daquilo que natildeo eacute
especificamente este ponto me parece bastante fraco porque de certa forma desqualifica o eleata
reduzindo-o a falar uma obviedade embora como dizem esses autores uma obviedade de certa
importacircncia
Ao afirmar a impossibilidade de negaccedilatildeo do ser Parmecircnides estaacute afirmando a dignidade
existencial de todo ser o que impotildee a impossibilidade de eliminar qualquer ser mesmo aquele que
se julga ndash de uma forma ou de outra ndash que deve ser eliminado Assim imediatamente impotildee uma
isonomia axioloacutegica existencial todo ser tem o mesmo valor existencial221 Se por um lado tal
isonomia pode eternizar o que julgamos merecedor de eternidade por outro lado eterniza tambeacutem
o que julgamos que eternidade natildeo mereccedila estilhaccedilando imediatamente toda nossa estrutura
221Este tema estaacute citado no Parmecircnides de Platatildeo e que eu saiba nunca foi reconduzido agrave filosofia
parmenidiana original Laacute onde Soacutecrates encontra dificuldade em atribuir eternidade agraves formas
mais umildes como a do barro o velho Parmecircnides responde que ele eacute ainda muito jovem e que
um dia se tornaraacute um grande filoacutesofo A personagem de Parmecircnides neste ponto eacute fiel agrave mensagem
filosoacutefica do poema Entretanto a isonomia axioloacutegica existencial do todo e de todas as coisas eacute
assunto ainda difiacutecil para a nossa cultura
174
ingecircnua de valores e obrigando a pensar o existente (o ser) numa ordem de mundo completamente
outra
Parmecircnides natildeo eacute totalmente expliacutecito sobre isto mas a sua admissatildeo da pluralidade das
coisas leva a pensar que pode estar sugerindo a natildeo mutaccedilatildeo de cada coisa Melisso rejeita esta
possibilidade porque diz que uma coisa se fosse eterna deveria ser tal qual a vimos da primeira
vez (um argumento similar seraacute usado mais tarde por Nietzsche para a mesma rejeiccedilatildeo) Mas
Melisso neste ponto de vista considera que uma coisa seja a mesma coisa quando submetida ao
fluxo da mutaccedilatildeo assim um ceacuteu claro que se torna nublado seria para Melisso o mesmo ceacuteu que
poreacutem aparentemente mudou mas a mutaccedilatildeo eacute impossiacutevel logo nossos sentidos nos enganam
Parmecircnides natildeo se expressa sobre isto mas sua capacidade de desafiar o senso comum natildeo pode
nos fazer excluir esta possibilidade isto eacute de que o que parece que seja a mutaccedilatildeo de um ente natildeo
eacute senatildeo a presenccedila de dois entes diversos no exemplo acima um ceacuteu claro eacute um ente e o ceacuteu
nublado eacute outro
Eu penso que Parmecircnides natildeo tenha alcanccedilado esta sofisticaccedilatildeo de anaacutelise que por exemplo
encontramos em Melisso O que o texto parmenidiano que sobreviveu parece indicar eacute um natildeo
aprofundamento analiacutetico deixando para a discussatildeo um territoacuterio imenso e virgem222 Talvez ele
222Num artigo dedicado ao fragmento 2 Berti consegue uma proeza aquela de juntar de uma soacute vez todas as criacuteticas a
Parmecircnides de Aristoacuteteles a Severino passando por Kant e Hegel Tudo comeccedila com uma leitura por assim dizer
analiacutetica as duas vias de Parmecircnides seriam disjuntivas Esta leitura infelizmente eacute comum e mesmo os maiores
estudiosos de Parmecircnides dizer que uma via elimina a outra Mas uma vez atribuiacutedo o pecado a Parmecircnides
surgem os vaacuterios salvadores Por exemplo seguindo a sugestatildeo de Lloyd Berti diz ldquoA proposiccedilatildeo contraditoacuteria em
relaccedilatildeo a lsquoeacute necessaacuterio que sejarsquo (primeira via) de fato natildeo eacute lsquoeacute necessaacuterio que natildeo sejarsquo (a segunda via de
Parmecircnides) mas lsquonatildeo eacute necessaacuterio que sejarsquordquo (Berti 2011 p 111) Assim as contraditoacuterias se tornam contraacuterias
e nesse caso natildeo podem ser as uacutenicas alternativas possiacuteveis incluindo entre elas a alternativa de que ambas as vias
podem ser falsas Obviamente esta uacuteltima conclusatildeo suscita as objeccedilotildees dos parmenidianos os quais apelam para
a concepccedilatildeo moniacutestica de Parmecircnides Berti entatildeo responde com uma passagem que quero reportar por inteiro
175
pudesse ter aceitado a elaboraccedilatildeo de Melisso talvez ateacute aquela de Goacutergias talvez tivesse aceitado
a interpretaccedilatildeo cinematograacutefica de Bergson223 mas natildeo aceitaria a versatildeo de Platatildeo e nem de
Aristoacuteteles porque certamente estin os te kai ouk estin me einai Entatildeo penso que natildeo conveacutem
espremer e constranger o texto parmenidiano dentro de noccedilotildees que o autor natildeo tinha e pela eacutepoca
nem podia ter Penso que ele tenha que permanecer em sua grandeza arcaica sem que lhe se negue
poreacutem a profundidade filosoacutefica de um discurso que embora pouco articulado para os nossos
padrotildees possui uma potencialidade culturalmente imensa e filosoficamente riquiacutessima reduzi-lo
a dizer trivialidades significa natildeo ter colhido a importacircncia seminal da conceituaccedilatildeo parmenidiana
origem de um percurso a ontologia que tem na relaccedilatildeo entre ser e natildeo ser o seu eixo portante
A impossibilidade eacute para Parmecircnides entre natildeo e ser O que mais precisamente significa
isto Significa que haacute uma estrutura cognitiva e discursiva a negaccedilatildeo que eacute expressatildeo da mente
e natildeo da realidade percebida eacute a mente que pelo uso incorreto da negaccedilatildeo produz interpretaccedilotildees
pois mostra claramente a confusatildeo que vem de usar categorias natildeo plausiacuteveis para o texto de Parmecircnides Diz Berti
ldquoMas dessa forma se acaba atribuindo a Parmecircnides a apresentaccedilatildeo de duas proposiccedilotildees contraacuterias como se fossem
contraditoacuterias isto eacute a confusatildeo entre contraacuterios e contraditoacuterios a qual eacute um erro de loacutegica natildeo somente do ponto
de vista aristoteacutelico Obviamente Parmecircnides natildeo lera o De interpretatione de Aristoacuteteles mas antes de lhe atribuir
simplesmente um erro de loacutegica seria necessaacuterio entender por qual motivo o cometeu o que o induziu a dizer o
que diz no fr 2 [hellip] O que enfim induz Parmecircnides a considerar as duas vias como contraditoacuterias isto eacute como
exclusivas de qualquer outra possibilidaderdquo (P 112) Haacute muitos pressupostos nestas palavras que levam a erros de
loacutegica 1) em nenhum lugar Parmecircnides diz que as vias satildeo exclusiva ele diz que soacute encontrou duas 2) em nenhum
lugar ele diz que as duas vias satildeo contraditoacuterias o que ele diz eacute que o natildeo ser eacute impensaacutevel e o uso desta
impossibilidade no discurso gera a contradiccedilatildeo 3) muito menos disse que satildeo contraacuterias 4) por conseguinte ele
natildeo cometeu nenhum erro de loacutegica Estas todas satildeo atribuiccedilotildees indevidas ao texto de Parmecircnides e procedendo
deste modo eacute fatal chegar agrave seguinte conclusatildeo ldquoSe esta eacute a razatildeo pela qual Parmecircnides opocircs entre elas as duas
vias entatildeo sinto muito mas natildeo eacute mais possiacutevel voltar a Parmecircnidesrdquo (115) Depois de ter passado por Kant e
Hegel ele chega a Severino com esta evocaccedilatildeo de um artigo importante ldquoVoltar a Parmecircnidesrdquo (Severino 1982)
como se Severino fosse um exegeta ou um estudioso de Parmecircnides natildeo o eacute ele apenas aproveita sugestotildees
parmenidianas para desenvolver sua proacutepria filosofia Em suma resulta difiacutecil penetrar o universo de ideias de
Parmecircnides se antes natildeo se depotildeem as defesas intelectuais que 2500 anos de aporia eleaacutetica foram capazes de
suscitar 223Bergson 2005 p 295
176
incoerentes do mundo Parmecircnides percebe que o que chamamos experiecircncia dos sentidos eacute o
resultado de um conjunto de impressotildees dos sentidos e tambeacutem de interpretaccedilotildees feitas pelo nosso
aparelho cognitivo A realidade enquanto considerada objeto de cogniccedilatildeo se potildee diante de nossos
oacutergatildeos de sensaccedilatildeo mas esta realidade posta eacute sempre positiva A negaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo
cognitiva que parte de nosso aparelho de cogniccedilatildeo Se percebo a positividade de um ceacuteu claro e
depois a positividade de um ceacuteu nublado a nossa cogniccedilatildeo interpreta o primeiro e o segundo ceacuteu
como que em continuidade temporal e ao mesmo tempo o claro e o nublado como que em
descontinuidade temporal O segundo ceacuteu parece entatildeo o mesmo que o primeiro enquanto o claro
do ceacuteu primeiro ldquose tornardquo o nublado do segundo ceacuteu No entanto o ceacuteu enquanto claro eacute uma
positividade tanto quanto o ceacuteu enquanto nublado Ambos os ceacuteus satildeo positividades e enquanto
positividades natildeo aceitam a negaccedilatildeo Se se afirma que o ceacuteu nublado natildeo eacute claro entatildeo se afirma
uma impossibilidade ontoloacutegica isto eacute que um positivo seja negativo
Partindo de uma hipoteacutetica experiecircncia pura 224 natildeo desviada pelas impressotildees de
continuidade (e portanto de descontinuidade) temporal a realidade eacute sempre positiva
mergulhando esta experiecircncia dentro da interpretaccedilatildeo do nosso aparelho cognitivo com suas
funccedilotildees que a elaboram ndash em primeiro lugar a funccedilatildeo da memoacuteria ndash e a reconduzem a uma imagem
refletida entatildeo temos as experiecircncias de continuidade e ruptura temporais de passagem do natildeo ser
224Aqui natildeo haacute referecircncia a Kant embora tenha sido o proacuteprio Kant a denunciar o fato de que o princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo involve o tempo indevidamente ldquoHaacute poreacutem uma foacutermula deste princiacutepio famoso embora destituiacutedo
de qualquer conteuacutedo e apenas formal que conteacutem uma siacutentese que se misturou com ele por descuido e sem
necessidade alguma Diz assim eacute impossiacutevel que alguma coisa seja e natildeo seja ao mesmo tempo [hellip] Ora o princiacutepio
de contradiccedilatildeo enquanto simples princiacutepio loacutegico natildeo deve restringir as suas asserccedilotildees a relaccedilotildees de tempo tal
foacutermula portanto eacute inteiramente contraacuteria agrave intenccedilatildeo do princiacutepiordquo (Kant Criacutetica da razatildeo pura I Do princiacutepio
supremo de todos os juiacutezos analiacuteticos Versatildeo em portuguecircs 2001 p 217-218)
177
ao ser e do ser ao natildeo ser Eacute somente com a reflexatildeo (cogniccedilatildeo) que pode aparecer a experiecircncia
do natildeo onde ldquoalgo que natildeo eacuterdquo eacute sempre algo que estaacute no lugar de algo mais que esperaacutevamos que
fosse que ali estivesse presente
A impossibilidade da negaccedilatildeo do real surge de uma criacutetica agrave condiccedilatildeo gnosioloacutegica humana
a criacutetica que emerge na meditaccedilatildeo parmenidiana No entanto o problema que assim aparece se
prospecta incontornaacutevel Se a cogniccedilatildeo humana apresenta uma distorccedilatildeo tatildeo grande como seraacute a
verdadeira realidade E ademais se noacutes estamos encerrados nesta condiccedilatildeo cognitiva como se
pode ter acesso agrave verdadeira realidade Como eacute possiacutevel compensar e alterar essa condiccedilatildeo
cognitiva de forma a ter acesso agrave verdadeira realidade Eu penso que Parmecircnides tenha dado duas
respostas porque natildeo conseguiu dar uma uacutenica resposta satisfatoacuteria225 Nisto parece-me correta a
visatildeo de Aristoacuteteles quando diz que Parmecircnides primeiro tentou dar uma reposta pelo logos e
depois tendo que explicar o mundo pelos sentidos se viu obrigado a acrescentar uma parte ao seu
poema onde ele potildee duas causas manifestando assim sua perplexidade em relaccedilatildeo aos dois
conteuacutedos do poema226 De fato ainda que se consiga estabelecer a imutabilidade do ser ou dos
225Rossetti 2008 p 139 ldquoAfinal O que haacute de mal em pensar que a doutrina do ser tenha se firmado como perfeita e
recortado um oliacutempo proacuteprio salvo o fato de deixar subsistir aquele saber mundano que possivelmente nem o autor
soube conciliar perfeitamente com a doutrina do ser cuidando apenas de evitar toda contaminaccedilatildeo ou comistatildeordquo
(Dopotutto che cegrave di male nel pensare che la dottrina dellessere si sia affermata come perfetta e si sia ritagliata un
suo olimpo salvo poi a lasciar sussistere quel sapere mondano che nemmeno lautore probabilmente seppe
raccordare proprio bene com la dottrina dellessere preoccupandosi soltanto di evitare ogni contaminazione o
commistione) (Veja-se tambeacutem a nota seguinte 238) 226Consideraccedilotildees muito pertinentes a respeito desta questatildeo estatildeo em Rossetti 2008 A discussatildeo sobre a validade da
segunda parte do poema permanece ainda em aberto entre os estudiosos O testemunho de Aristoacuteteles diz apenas
que Parmecircnides acrescentou uma descriccedilatildeo segundo os sentidos e nada diz se esta descriccedilatildeo estava na parte
qualificada apatelon pela deusa ou na primeira parte pela ediccedilatildeo de Diels os fragmentos fiacutesicos se encontram na
segunda parte mas disto natildeo se tem certeza pois a parte anunciada como apatelon pode muito bem se restringir
agravequele tipo de noccedilatildeo confusa entre duas causas como explicado pela deusa no fragmento 9 enquanto os fragmentos
de 10 a18 poderiam constar na primeira parte Embora esta discussatildeo ainda esteja em ato e longe de tomar rumos
conclusivos parece cada vez mais se configurar entre os estudiosos (por exemplo vejam-se a respeito as pesquisas
178
seres (pelo preceito da deusa) resta ainda a explicar o devir Melisso que manteacutem o preceito
parmenidiano natildeo explica o devir simplesmente o rejeita Platatildeo Aristoacuteteles e todos os filoacutesofos
ateacute hoje (com raras exceccedilotildees) explicam o devir mas rejeitam o preceito parmenidiano Parmecircnides
assim me parece conseguiu argumentar rigorosamente a respeito da impossibilidade da negaccedilatildeo
mas natildeo conseguiu dar com o mesmo rigor uma explicaccedilatildeo da dinacircmica concreta do devir por
um lado com os preceitos da sua deusa ofereceu uma descriccedilatildeo do real enquanto real aquela parte
onde a natildeo mutaccedilatildeo podia ser compreendida e descrita por outro lado na segunda parte do poema
restando a consciecircncia de que aquelas descriccedilotildees natildeo estavam submetidas ao rigor das
metodologias que ele descobriu resolveu apresentaacute-las segundo a ordem tradicional que ele chama
opiniotildees dos mortais
Pelo preceito da deusa o real natildeo estaacute submetido ao devir (do senso comum) o que eacute natildeo
pode natildeo ser por conseguinte o que era natildeo deixou de ser ainda eacute de outra parte ainda por
conseguinte o que seraacute necessariamente jaacute eacute pois natildeo se pode admitir que o que seraacute ainda natildeo eacute
Este eacute o argumento do nun parmenidiano do natildeo era e natildeo seraacute porque eacute todo agora227 Este
argumento natildeo soluciona a questatildeo do devir e do tempo diz apenas que o que eacute pensado como natildeo
de Pulpito 2008 e mais ainda Pulpito 2011b) a tendecircncia de distinguir trecircs tipos de saberes no poema um
ontoloacutegico um fiacutesico e outro meramente opinativo o estudo apresentado nestas linhas no capiacutetulo 2 indica
claramente como alvo da criacutetica parmenidiana as doutrinas religiosas tradicionais e natildeo as cosmologias recentes
dos mestres jocircnicos o que de certa forma corrobora as teses atuais que diferenciam a doxa dos mortais de um saber
fiacutesico mais certo embora sem o status de persuasatildeo absoluta possuiacutedo pela doutrina do eon resta entretanto a
questatildeo de conciliar esta triacuteplice distinccedilatildeo com uma concreta correspondecircncia textual meta atualmente ainda
distante Sobre o mesmo tema vejam-se tambeacutem as consideraccedilotildees de Graham 1999 e Zucchello 2010 227 Um excelente estudo sobre o verso DK B 85 eacute de Massimo Pulpito (2005) mais recentemente retomando o
argumento ele afirma que Parmecircnides apenas pressupotildee a duraccedilatildeo do tempo pois retirando o ponto alto em 84
(Manchester 1979 e Cerri 1999) se obteacutem uma leitura seguida com a seguinte traduccedilatildeo ldquoeacute ingecircnito e imortal [hellip]
imoacutevel e incompleto (ἀτέλεστον) nunca foi e nem seraacute pois eacute agora todo juntordquo (egrave ingenerato e immortale [hellip]
immobile e incompiuto mais fu neacute saragrave perchegrave egrave ora tutto insieme) (Pulpito 2011a p 266)
179
ser porque era ou como natildeo ser porque seraacute eacute uma impossibilidade que deriva do preceito da
deusa Posto isto posto que tudo que era ainda eacute e tudo que seraacute jaacute eacute como explicar a nossa
percepccedilatildeo do era e do seraacute Embora teoricamente a questatildeo poderia ser resolvida simplesmente
como Melisso alegando um engano dos sentidos na praacutetica a questatildeo eacute de importacircncia radical
porque do sentido que damos ao era e ao seraacute depende a nossa visatildeo de mundo
Tomem-se os entes matemaacuteticos Estes poderiam ser considerados entes parmenidianos jaacute
que eles natildeo eram e natildeo seratildeo eles apenas satildeo Conseguimos imaginar o mundo sem mutaccedilatildeo dos
entes matemaacuteticos Penso que natildeo a menos de pensar uma espeacutecie de grande estaacutetico manancial
de onde extrai-los a vontade quando deles precisamos Um mundo fiacutesico sem devir feito de entes
sem ontem nem amanhatilde poderia ser assimilado ao mundo dos entes matemaacuteticos No entanto isto
parece impossiacutevel de ser acatado pela nossa experiecircncia desde aquela mais superficialmente
sensoacuteria ateacute aquela mais profundamente intelectual Eu penso que algo parecido aconteceu com
Parmecircnides o qual apoacutes a descriccedilatildeo do eon qual realidade uacuteltima das coisas natildeo conseguiu vir a
cabo de uma explicaccedilatildeo satisfatoacuteria e fecunda do mundo em sua concretude cotidiana Natildeo teve
portanto outra opccedilatildeo a natildeo ser recorrer ao melhor conhecimento disponiacutevel embora enganoso da
eacutepoca Natildeo foi o uacutenico a deixar o quadro incompleto de Zenatildeo tambeacutem soacute se conhece a pars
destruens dos seus paradoxos mas natildeo se tem notiacutecia de que tenha proposto uma cosmologia
positiva o mesmo vale para Melisso Os eleatas natildeo conseguiram propor cosmologias em
consonacircncia com seus preceitos228
Deve se acrescentar que partindo dos preceitos parmenidianos ningueacutem ateacute agora conseguiu
228Rossetti 2008
180
propor uma cosmologia positiva Contudo o preceito da deusa eacute incontrovertiacutevel e estaacute na base da
formulaccedilatildeo dos princiacutepios loacutegicos mais fundamentais (identidade natildeo contradiccedilatildeo e terceiro
excluiacutedo) Por este motivo para o uso da loacutegica comum Parmecircnides eacute reduzido a ser apenas o pai
arcaico da ontologia mas em sede de discussatildeo teoacuterica entre os filoacutesofos e tambeacutem entre os
cientistas na parte mais filosoacutefica de sua atividade o preceito da deusa continua despertando
perplexidade e Parmecircnides continua despertando a mesma sensaccedilatildeo venerando e terriacutevel que
despertou em Platatildeo229
511 O ser os seres
Um dos argumentos favoritos de certos criacuteticos eacute de que o ser e o natildeo ser de Parmecircnides se
referem ao ser universal e natildeo ao particular Isto natildeo corresponde ao que estaacute no poema Parmecircnides
fala desde o iniacutecio de todas as coisas (128) no plural e se repete assim nos versos seguintes do
fragmento 1 Ele fala de ente e natildeo ente no singular no fragmento 2 na parte metodoloacutegica Volta
a falar de eonta plural na parte da criacutetica agrave cogniccedilatildeo comum Finalmente no fragmento 8 fala do
eon singular com vaacuterias referecircncia agraves coisas no plural Haacute nisto vaacuterias questotildees antes de tudo a
questatildeo da unidade versus pluralidade tema que Platatildeo exploraraacute no seu diaacutelogo Parmecircnides Mas
haacute tambeacutem a questatildeo de se entender ao que ele se refere quando diz eon ou eonta Esta discussatildeo
sobre o ser natildeo eacute objeto da presente investigaccedilatildeo e o que ndash pelo contraacuterio ndash nos interessa de perto
eacute verificar se se pode falar do natildeo ser de um uacutenico ente ao lado do natildeo ser em sentido geral assim
229Um exemplo Graham Priest Towards non-being 2005
181
como aparece na expressatildeo me einai
Ao se estudar a negaccedilatildeo de um uacutenico ente aparece em noacutes de imediato a influecircncia do
platonismo o qual forjou profundamente nossa maneira de pensar Faccedilamos um exemplo se eu
digo natildeo livro imediatamente vem agrave mente uma outra coisa qualquer que natildeo seja um livro Este
eacute o sinal de que a visatildeo platocircnica de um natildeo ser enquanto relativo isto eacute enquanto outro eacute a noccedilatildeo
principal que surge agrave nossa mente diante da negaccedilatildeo de um uacutenico ente O discurso seria diferente
para a negaccedilatildeo de todos os entes ou do todo dos entes tema que Platatildeo cuidadosamente evitou no
Sofista de fato ao se negar todos os entes ou o todo dos entes eacute impossiacutevel referir a negaccedilatildeo deste
todo ao outro pois ao se negar o todo por definiccedilatildeo natildeo haacute outro Este desenvolvimento platocircnico
natildeo se aplica ao todo dos entes mas parece funcionar tatildeo bem com o ente particular que para a
nossa sensibilidade comum resulta muito difiacutecil pensar ainda que virtualmente o natildeo ser de um
uacutenico ente
Entretanto a negaccedilatildeo de um uacutenico ente fora do molde platocircnico do natildeo ser relativo eacute
possiacutevel e configura uma negaccedilatildeo absoluta do ente particular Para que esse assunto seja exposto
mais claramente iniciarei da noccedilatildeo que noacutes fazemos dos entes impossiacuteveis Tome-se por exemplo
a expressatildeo triacircngulo quadrado eacute uma expressatildeo que virtualmente se referiria a um ente
geomeacutetrico o qual sendo um triacircngulo teria quatro acircngulos ou sendo um quadrado teria trecircs
acircngulos Para o nosso modo de ver pensar e conhecer o mundo tal ente geomeacutetrico natildeo existe e
natildeo pode existir o que lhe nega a existecircncia segundo nossa maneira de argumentar eacute o fato de que
a posiccedilatildeo da triangularidade exclui imediatamente a posiccedilatildeo da quadrangularidade e vice-versa
natildeo pode haver um triacircngulo quadrado Assim o triacircngulo quadrado por ser impossiacutevel eacute um ente
182
absolutamente negado230 o que significa que pelo preceito da deusa pensaacute-lo eacute uma operaccedilatildeo
cognitiva impossiacutevel isto eacute uma pretensatildeo da nossa mente que quer expressar um conteuacutedo real
quando de fato este conteuacutedo real natildeo existe Assim a negaccedilatildeo de tipo platocircnico do natildeo ser
enquanto outro expressa uma positividade real (este natildeo livro eacute o meu caderno) enquanto a
negaccedilatildeo absoluta expressa uma pretensatildeo impossiacutevel o triacircngulo quadrado (absolutamente) natildeo eacute
Este caso exemplifica bem o contexto indicado pela segunda via do fragmento 2 de fato o
triacircngulo quadrado natildeo eacute e eacute necessaacuterio que natildeo seja pois se fosse se produziria a contradiccedilatildeo
ontoloacutegica da existecircncia de um ente impossiacutevel
Agora que conseguimos delinear a noccedilatildeo de negaccedilatildeo absoluta de um ente particular natildeo eacute
difiacutecil entender a expressatildeo parmenidiana da pluralidade da negaccedilatildeo absoluta aplicada a uma
pluralidade de entes particulares Quando no fragmento 7 Parmecircnides diz ldquoque nunca prevaleccedila
que os natildeo entes (me eonta) sejamrdquo significa que ndash dentro do contexto da geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo das
coisas o assunto predileto desses pesquisadores ndash dadas as coisas que satildeo estas natildeo podem vir a
ser de coisas que satildeo sua negaccedilatildeo absoluta Por exemplo este meu livro natildeo pode vir a ser de um
este meu natildeo livro absoluto porque o natildeo livro absoluto eacute uma impossibilidade do real O mesmo
pode ser dito da multiplicidade das coisas nenhuma delas pode vir a ser de uma multiplicidade de
natildeo coisas quando consideradas absolutamente porque cada natildeo coisa absoluta eacute uma
impossibilidade do real e afinal uma impossibilidade real
Definir as impossibilidades reais equivale a definir as impossibilidades do real onde as
230 Naotilde pode ser um natildeo ente relativo segundo a interpretaccedilatildeo de Platatildeo pois absolutamente natildeo existe e por natildeo
existir natildeo pode suportar a relaccedilatildeo a outro ente qualquer enquanto ente sem significado ontoloacutegico positivo
poderia ser assimilado ao natildeo ser absoluto que Platatildeo descarta completamente por carecer de sentido
183
primeiras se referem singularmente a cada impossibilidade particular e as segundas satildeo o conjunto
de impossibilidades que caracterizam o real como um todo Esse conjunto de impossibilidades
define os limites do real jaacute que descrevem irrealidades e o resultado eacute deste ponto de vista um
ser real delimitado em relaccedilatildeo agraves virtualidades que o pensamento cria Penso que aqui se daacute uma
confusatildeo entre os criacuteticos a respeito da relaccedilatildeo entre ser e pensar de que Parmecircnides fala em seu
poema Como vimos nas paacuteginas anteriores Parmecircnides critica um modo de pensar comum (as
opiniotildees dos mortais) e propotildee um novo modo de pensar enriquecido de uma mechane ou seja
ele fala de duas maneiras de pensar muito diferentes Quando entatildeo equaciona ser e pensar natildeo
me parece que equacione o ser agraves duas maneiras de pensar pelo contraacuterio ser e pensar satildeo o mesmo
apenas para o pensamento que corre sobre o caminho da persuasatildeo verdadeira Segundo as opiniotildees
dos mortais o mundo (a realidade os panta) se estende a entes impossiacuteveis enquanto satildeo tidos
como existentes pelos mortais Segundo o preceito da deusa o mundo se limita aos seres reais
Entatildeo o pensar o reto pensar eacute um pensar o real e converso o real (o que eacute o que haacute) impotildee
limites ao pensar laacute onde entes que natildeo satildeo de fato natildeo podem ser pensados logo natildeo devem ser
tidos como pensaacuteveis
O fiel da balanccedila da autecircntica correspondecircncia entre ser e pensar eacute exatamente o meacutetodo
seguir a primeira via e deixar de seguir a segunda o qual permite corrigir a distorccedilatildeo cognitiva e
permite reconduzir o mundo a um ser eon ele diz que eacute todo delimitado por impossibilidades E
melhor seria dizer ndash como ele diz com muita razatildeo ndash limitado intrinsecamente por uma estrutura
a qual se expressa pela necessidade e coesatildeo impedindo que se instaure o natildeo ser O natildeo ser que
natildeo se instaura que natildeo dilui o eon e natildeo abre frestas natildeo eacute um natildeo ser de fato mas tatildeo somente
uma virtualidade do pensar confuso ele se instaura apenas virtualmente na imagem distorcida que
as opiniotildees dos mortais fazem do mundo e por este motivo diferentemente do que elas afirmam o
184
mundo real descrito retamente pela opiniatildeo verdadeira eacute um mundo coeso onde a imagem que
retamente o representa simbolicamente eacute a imagem de uma esfera homogecircnea
A adesatildeo de ente a ente e o resultado desta continuidade numa visatildeo grandiosa de uma esfera
indicam que Parmecircnides se refere tanto agrave multiplicidade dos entes quanto agrave sua totalidade ambos
enganchados a suas respectivas impossibilidades a impossibilidade do natildeo ser particular de todo
ente particular e a impossibilidade do natildeo ser referido agrave totalidade dos entes Penso que a predileccedilatildeo
pelo assunto cosmoloacutegico proacuteprio de seu meio cultural seja o maior responsaacutevel pelo fato de
Parmecircnides ter tratado apenas do eon enquanto totalidade e natildeo como noacutes gostariacuteamos com
maiores detalhes do eon particular de cada ente Assim a descriccedilatildeo da realidade obtida partindo
da correccedilatildeo do processo cognitivo aponta para uma archeacute necessaacuteria que eacute a qual tem agregada
a coerccedilatildeo que impotildee uma necessidade isto eacute aquela coerccedilatildeo que impede qualquer desvio ao longo
da necessidade ou seja a impossibilidade que o que eacute natildeo seja Fica assim plenamente configurada
a primeira via a qual conduz pelo caminho de persuasatildeo verdadeira agrave correta imagem do mundo
um eon que eacute e que necessariamente afastando a negaccedilatildeo natildeo pode natildeo ser natildeo pode conter
frestas de natildeo ser natildeo pode conter descontinuidades nem heterogeneidades geradas pelo natildeo ser
512 Ouk esti
A incompatibilidade entre a negaccedilatildeo e o ente potildee um conjunto de questionamentos anteriores
ao proacuteprio princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo ou aos outros dois princiacutepios claacutessicos da loacutegica
(identidade e terceiro excluiacutedo) Os questionamentos comeccedilam a surgir exatamente em volta da
negaccedilatildeo como princiacutepio cognitivo ou seja numa regiatildeo de fronteira da proacutepria ontologia De fato
ser e natildeo ser satildeo os pressupostos da ontologia pois sem o ente particular (considerado enquanto
185
ente) ou o ente em geral (o ser) natildeo haacute ontologia mas sem o natildeo ser aquela noccedilatildeo que articula o
discurso sobre o ser tambeacutem natildeo haacute ontologia e isso natildeo porque as caracteriacutestica do ser satildeo
articuladas segundo uma ontologia negativa (o ser eacute um natildeo muacuteltiplo in-finito i-limitado etc)
mas porque o nosso proacuteprio discurso implica necessariamente a negaccedilatildeo e assim tambeacutem o logos
do on o discurso sobre o ente O negar eacute uma estrutura do nosso aparelho cognitivo somente
conhecemos ndash no sentido comum de conhecimento racional231 ndash pela negaccedilatildeo
O problema que surge junto com os questionamentos eacute exatamente aquele de como
conseguir pensar a negaccedilatildeo sem criar uma peticcedilatildeo de princiacutepio jaacute que a negaccedilatildeo estaraacute implicada
em qualquer discurso sobre ela Penso que este seja o principal motivo da singularidade que resulta
da meditaccedilatildeo do natildeo ser (assim como exposto anteriormente) De fato a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo que
naquela meditaccedilatildeo era a negaccedilatildeo do ato cognitivo negador revelava ali a aporia esta natildeo deixa de
estar presente mesmo na loacutegica mais comum Tome-se por exemplo a negaccedilatildeo de a dizemos que
a negaccedilatildeo de a eacute ~a e se diz comumente que a negaccedilatildeo de ~a eacute a mas a negaccedilatildeo de ~a eacute ao mesmo
tempo uma afirmaccedilatildeo pois eacute a e uma negaccedilatildeo pois eacute ~ (~a)232 O nosso aparelho cognitivo natildeo
231Como se sabe haacute outras formas de conhecimento principalmente as intuitivas e as de fusatildeo tais como as artiacutesticas
e miacutesticas mas que fogem ao objeto de nossa anaacutelise 232Como vimos a negaccedilatildeo (N) de um ente suponhamos ~a tem dois sentidos e por isso acaba gerando equiacutevocos e
ambiguidades Por um lado (N1) ~a tem o platocircnico sentido relativo assim ~a significa todo e qualquer ente do
mundo exceto a Por outro lado (N2) ~a significa a negaccedilatildeo absoluta de a sem nenhuma referecircncia a qualquer
outro ente como na negaccedilatildeo do triacircngulo quadrado Da mesma forma a negaccedilatildeo da negaccedilatildeo (NN) tem dois sentidos
e dois acircmbitos diferentes No primeiro caso (NN1) na negaccedilatildeo como relativa negar ~a significa negar todos os
entes exceto a e por conseguinte por relaccedilatildeo a outro significa reafirmar a Mas no segundo caso (NN2) onde a
primeira negaccedilatildeo eacute absoluta noacutes temos ainda duas possibilidade (NN2a) a primeira com a negaccedilatildeo relativa de
uma negaccedilatildeo absoluta a segunda (NN2b) com a negaccedilatildeo absoluta de uma negaccedilatildeo absoluta A primeira
possibilidade (NN2a) nos diz que negando relativamente uma negaccedilatildeo absoluta se afirma tudo que natildeo eacute negaccedilatildeo
absoluta de a isto eacute a negaccedilatildeo relativa de a a afirmaccedilatildeo absoluta de a e a afirmaccedilatildeo relativa de a Jaacute a segunda
possibilidade (NN2b) eacute a negaccedilatildeo absoluta de uma negaccedilatildeo absoluta isto eacute a negaccedilatildeo de uma impossibilidade [no
186
acusa a aporia e assim tambeacutem a nossa loacutegica comum233
Em todo caso a contradiccedilatildeo ou aporia estabelecida pela negaccedilatildeo ndash e que fica evidente pela
negaccedilatildeo da negaccedilatildeo a qual aporeticamente eacute uma negaccedilatildeo que afirma ndash eacute um curto circuito
cognitivo do qual natildeo se consegue sair enquanto se permanecer dentro da estrutura cognitiva da
qual dispomos Todavia o fato eacute que natildeo dispomos de uma estrutura cognitiva alternativa e talvez
nossos esforccedilos de tentar pensar para aleacutem dela sejam tatildeo inuacuteteis quanto as tentativas feitas por um
cego de nascenccedila de entender visualmente o mundo Todas as atuais ampliaccedilotildees das capacidades
dos sentidos (telescoacutepios microscoacutepios etc) reconduzem o objeto percebido agrave escala de percepccedilatildeo
humana todas as teorias cientiacuteficas ndash que satildeo ampliadores de nossa capacidade de pensar o mundo
exemplo do triacircngulo quadrado ~a = natildeo possiacutevel ~ (~a) = natildeo (natildeo possiacutevel)] o que natildeo significa que como no
caso da negaccedilatildeo relativa da negaccedilatildeo absoluta a impossibilidade da impossibilidade eacute uma possibilidade mas
significa que dada uma impossibilidade eacute impossiacutevel que esta impossibilidade seja uma impossibilidade dito de
outra maneira negar absolutamente uma impossibilidade significa negar agrave impossibilidade seu status de
impossibilidade No entanto tornar impossiacutevel (negar) o status de impossibilidade significa imediatamente
reafirmar a impossibilidade voltando de novo agrave aporia eleaacutetica onde negar o status do ser enquanto ser significa
afirmar o status da negaccedilatildeo a qual eacute um ser (a negaccedilatildeo natildeo eacute um nada) e afinal significa ao mesmo tempo afirmar
e negar o ser
Vale lembrar que a dupla negaccedilatildeo do tipo que chamei NN2a isto eacute aquela onde uma negaccedilatildeo relativa nega uma
negaccedilatildeo absoluta eacute a dupla negaccedilatildeo que se encontra no verso 23 do poema e que natildeo eacute natildeo ser (τε καὶ ὡς οὐκ
ἔστι μὴ εἶναι) onde μὴ εἶναι eacute uma negaccedilatildeo absoluta enquanto οὐκ ἔστι eacute a negaccedilatildeo predicativa ordinaacuteria isto eacute de
tipo relativo platocircnico que nega a negaccedilatildeo absoluta Assim o caminho do ὅπως ἔστιν eacute o mesmo que o caminho
que nega (relativamente) a negaccedilatildeo absoluta cujo significado abrange vaacuterias possibilidades como especificado
acima afirmaccedilatildeo absoluta de a (correspondente ao ἔστιν parmenidiano) afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo relativas de a que
correspondem agrave predicaccedilatildeo da linguagem comum (natural isto eacute segundo a visatildeo de mundo do realismo cognitivo
comum)
Mas se pode ainda considerar a negaccedilatildeo em si em seu estatuto ontoloacutegico A negaccedilatildeo enquanto negaccedilatildeo natildeo
pode ser negada no sentido de que ao se negar a negaccedilatildeo imediatamente se afirma pois simultaneamente ao
negar a negaccedilatildeo se afirma (negar significa pocircr a negaccedilatildeo) o que se nega isto eacute a negaccedilatildeo (enquanto negada) Mais
uma vez se configura uma aporia de tipo eleaacutetico onde uma proposiccedilatildeo resulta em dois sentidos simultacircneos e
contraditoacuterios 233 Penso que esta aporia impliacutecita poderia ser o fundamento ontoloacutegico do desenvolvimento de loacutegicas
paraconsistentes e paracompletas as quais com todo seu impacto anti-intuitivo acabam descrevendo melhor
aquelas regiotildees do mundo ndash o mundo como percebido pela nossa cogniccedilatildeo que implica esta aporia ndash natildeo acessiacuteveis
agrave loacutegica comum no entanto esta hipoacutetese aguarda aprofundamentos
187
(por exemplo a teoria heliocecircntrica ou a relatividade geral nos fazem ver com os olhos da mente
um mundo diferente daquele que vemos com os olhos fiacutesicos) ndash reconduzem a realidade ao nosso
modo cognitivo o qual implica a distorccedilatildeo provocada pela negaccedilatildeo e evidenciada pela negaccedilatildeo da
negaccedilatildeo nem poderia ser diferente pois se elas natildeo reconduzissem ao nosso modo cognitivo elas
seriam incompreensiacuteveis Discutir o modelo cognitivo resulta entatildeo uma das empresas mais aacuterduas
mas eacute exatamente isso que Parmecircnides fez Ele natildeo discutiu apenas as maneiras de ver o mundo
(weltanschaung) como por exemplo fez Xenoacutefanes mas discutiu a nossa proacutepria estrutura
cognitiva a qual admite inuacutemeras weltanschaungen mas sempre dentro de uma mesma estrutura
onde a negaccedilatildeo tem papel fundamental
Eacute possiacutevel pensar o mundo a partir de outra estrutura cognitiva Eacute uma pergunta complicada
que precisaria ser desdobrada em muitas partes Sabemos por exemplo que um cachorro vecirc o
mundo em preto e branco e conseguimos fazer uma imagem de como poderia ser a estrutura
cognitiva de um cachorro Mas mais uma vez posto que este dado seja realmente relevante para a
cogniccedilatildeo do cachorro tal noccedilatildeo eacute uma reconduccedilatildeo da cogniccedilatildeo do cachorro agrave cogniccedilatildeo humana
entatildeo natildeo podemos dizer que conseguimos conhecer segundo a cogniccedilatildeo do cachorro Do mesmo
modo somos cientes de muitos modelos cognitivos e sabemos ateacute mesmo que uma linguagem mais
baacutesica eacute possiacutevel e permite a comunicaccedilatildeo entre muitos seres vivos como por exemplo a
linguagem emocional Mas quando nos propomos a ir aleacutem partindo das insatisfaccedilotildees das
cogniccedilotildees jaacute existentes o problema se complica de muito por vaacuterios motivos O primeiro deles eacute a
perda de uma referecircncia ldquonaturalrdquo pois natildeo haacute uma resposta dada isto eacute natural (pois o natural eacute
permanecer dentro do modo cognitivo dado) e eacute necessaacuterio ir aleacutem do natural O segundo eacute uma
perda do sobrenatural pois o sobrenatural eacute referido ao natural e sem este natildeo haacute aquele O terceiro
enfim eacute o risco concreto de uma excentricidade psiacutequica uma espeacutecie de caminho patoloacutegico sem
188
volta pelo qual todo tipo de estranheza se torna normal e vice-versa
Assim a reflexatildeo sobre o natildeo ser por ser uma investigaccedilatildeo nos limites do pensar eacute um
projeto aacuterduo e aparentemente pouco ou nada fecundo pois o terreno onde se desenvolve estaacute aleacutem
do natural e do sobrenatural e estaacute agrave beira da capacidade psiacutequica Natildeo eacute de surpreender que natildeo
seja assunto predileto pela maioria dos pensadores nem eacute de surpreender que seja quase que
reservado agravequeles que de uma forma ou de outra jaacute perambularam sem sucesso pelas vaacuterias aacutereas
do saber em busca de respostas Tudo isto deveria ser um sintoma claro da grandeza de Parmecircnides
uma grandeza certamente filosoacutefica embora ele provavelmente ateacute desconhecesse a palavra
filosofia Eacute por isto que embora certas linhas exegeacuteticas discordem o fato de Parmecircnides ter
deixado em aberto a sequecircncia de sua filosofia sustentando as suas afirmaccedilotildees apesar da aporia a
qual conduziam e de que ele certamente tinha consciecircncia natildeo eacute nenhum demeacuterito pelo contraacuterio
eacute uma grande meacuterito e ainda maior na medida em que os que o sucederam natildeo conseguiram ir
aleacutem do que ele propocircs e talvez a bem da verdade tiveram ateacute que retroceder das posiccedilotildees
alcanccediladas por Parmecircnides
Natildeo cabe a este trabalho desenvolver as meditaccedilotildees sobre o natildeo ser que as afirmaccedilotildees de
Parmecircnides implicariam234 Seja suficiente a noccedilatildeo de que Parmecircnides iniciou junto da discussatildeo
sobre o ser que hoje chamamos ontologia uma discussatildeo sobre o natildeo ser que algumas vezes hoje
eacute chamada de meontologia Agrave meontologia parmenidiana podemos acrescentar tranquilamente o
subtiacutetulo ldquoda relaccedilatildeo impossiacutevel entre natildeo e serrdquo com as vaacuterias consequecircncias que ele extraiu tanto
em acircmbito psicoloacutegico quanto em acircmbito metodoloacutegico antropoloacutegico e cosmoloacutegico
234 Cfr Colombo 1972 um dos raros trabalhos dedicados ao assunto
189
52 Parmenides psicoacutelogo (segunda parte)
Depois de ter estudado a noccedilatildeo de natildeo ser utilizada por Parmecircnides podemos voltar agravequelas
partes do poema que discutem a psicologia humana especificamente aquelas partes que implicam
a compreensatildeo do natildeo ser das quais postergamos o estudo por nos faltar ainda a compreensatildeo desta
noccedilatildeo
No fragmento 1 natildeo haacute referecircncia direta ou indireta ao natildeo ser e natildeo precisamos voltar a ele
Jaacute no fragmento 2 6 e 7 as passagens com referecircncias ao natildeo ser e com vocabulaacuterio psicoloacutegico jaacute
foram estudadas Podemos passar entatildeo ao fragmento DK 8
521 O fragmento DK 8
Considerando que natildeo eacute nossa intenccedilatildeo abordar a doutrina parmenidiana do ser apresentada
neste fragmento procederemos de modo seletivo selecionando apenas as passagens que nos
interessam Naturalmente esse meacutetodo sacrificaraacute a doutrina do ser mas poraacute em evidecircncia todo o
vocabulaacuterio psicoloacutegico subjacente geralmente deixado de lado para focar aquela doutrina235
Retomamos aqui nossa traduccedilatildeo anterior de operaccedilotildees cognitivas da mente para νοεῖν e seus
cognatos a justificaccedilatildeo se encontra na p XX e ss
235Para uma descriccedilatildeo geral do fragmento ver capiacutetulo 4 p 151 A Aplicaccedilatildeo do Meacutetodo
190
5211 DK B 86-9
Depois de enunciar os caminhos de inqueacuterito para as operaccedilotildees cognitivas depois de
enunciar a lei de oposiccedilatildeo radical entre ser e natildeo ser depois da criacutetica ao caminho seguido pelos
mortais agora a deusa explica a sua doutrina do ser Ela comeccedila dizendo que soacute uma palavra resta
no caminho (o caminho do esti) que eacute (ὡς ἔστιν) Mas este eacute natildeo eacute muito evidente por esta razatildeo
haacute muitos sinais ao longo do caminho Estes sinais satildeo caracteriacutesticas que ajudam a identificar o
ser Parmecircnides faz uma listagem de alguns e na sequecircncia do fragmento explica e justifica cada
um quase em perfeiccedilatildeo simeacutetrica Logo no primeiro argumento para o primeiro dos sinais (o ἐὸν
eacute ingecircnito e impereciacutevel) noacutes encontramos as seguintes palavras (DK B 86-9)
τίνα γὰρ γένναν διζήσεαι αὐτοῦ
πῆι πόθεν αὐξηθέν οὐδ ἐκ μὴ ἐόντος ἐάσσω
φάσθαι σ οὐδὲ νοεῖν οὐ γὰρ φατὸν οὐδὲ νοητόν
ἔστιν ὅπως οὐκ ἔστι
Falando do ser (ἐὸν) a deusa enuncia que eacute ingecircnito e impereciacutevel depois disso como
costuma fazer ela apresenta seu argumento mas desta vez em forma de pergunta Ela pergunta que
geraccedilatildeo (γένναν) tu procurarias para ele Como de onde teria crescido (αὐξηθέν) Do natildeo ser natildeo
te permitirei (ἐάσσω) afirmar (φάσθαι) ou operar cognitivamente (νοεῖν) porque o natildeo ser (οὐκ
ἔστι) eacute indiziacutevel e cognitivamente natildeo operaacutevel (οὐδὲ νοητόν) A deusa diz algo muito especial ela
diz natildeo te permitirei dizer ou operar cognitivamente usando a forma futura do verbo para
expressar um preceito severo de forte tom imperativo natildeo diga e natildeo opere cognitivamente o natildeo
ser Esta eacute a expressatildeo de uma lei imperativa referida ao pensamento mas ainda antes eacute a expressatildeo
da impossibilidade psicoloacutegica sobre a qual aquela lei se baseia natildeo eacute permitido pensar (operar
cognitivamente) e dizer o que natildeo eacute porque eacute [psicologicamente] impossiacutevel operar
cognitivamente o natildeo ser e logo eacute tambeacutem impossiacutevel dizecirc-lo
191
Para a elucidaccedilatildeo do aspecto psicoloacutegico podemos dividir a passagem em duas etapas
1) uma asserccedilatildeo hipoteacutetica o ser eacute gerado
2) a rejeiccedilatildeo da asserccedilatildeo pelo Preceito da Deusa eacute impossiacutevel que os ser seja gerado
do natildeo ser
Esta segunda etapa pode ser dividida em trecircs momentos
2a) eacute impossiacutevel que o ser seja gerado do natildeo ser
2b) porque natildeo eacute permitido operar cognitivamente que ele poderia vir do natildeo ser
2c) porque eacute impossiacutevel operar cognitivamente o natildeo ser ou dizecirc-lo
Agora vamos inverter a sequecircncia i) eacute impossiacutevel operar cognitivamente e dizer o natildeo ser
ii) por conseguinte o natildeo ser natildeo pode ser operado cognitivamente como parte de qualquer
argumento real (como parte do caminho da Persuasatildeo) iii) por conseguinte natildeo se deve (pensar e)
afirmar que o natildeo ser pode ser gerador do ser (ἐὸν) O preceito da Deusa aqui dado explicitamente
eacute o natildeo ser natildeo pode ser usado como parte de um argumento Como se pode notar este eacute um
corolaacuterio do Preceito da Deusa enunciado no fragmento 7
Podemos dizer o mesmo com outras palavras Na primeira etapa 1) haacute uma meditaccedilatildeo que
estabelece a impossibilidade de operar cognitivamente com o natildeo ser com a asserccedilatildeo
complementar de que eacute impossiacutevel que o ser possa natildeo ser esta eacute uma observaccedilatildeo do
comportamento da mente Na segunda etapa 2) Parmecircnides observa que os homens fazem
confusatildeo pois acreditam que seja possiacutevel operar cognitivamente com o natildeo ser assim ele
considera dois tipos de homem aquele que conhece esta impossibilidade (o homem saacutebio instruiacutedo
pela deusa) e aquele que natildeo a conhece (os mortais) esta eacute uma observaccedilatildeo do comportamento do
sistema humano de conhecimento A terceira etapa 3) eacute a aplicaccedilatildeo da ferramenta certa na praacutetica
do conhecimento enunciando um preceito que conduz o inqueacuterito pelo caminho correto este eacute o
192
enunciado de um criteacuterio de verdade A primeira etapa eacute psicoloacutegica a segunda eacute gnosioloacutegica e
finalmente a terceira eacute epistemoloacutegica
Nestas poucas linhas podemos ver todo o pensamento bem estruturado de Parmecircnides o que
explica muito bem o porquecirc ele continua sendo um filoacutesofo vivo ateacute nosso debate contemporacircneo
De fato sua epistemologia estaacute fundada sobre uma gnosiologia a qual estaacute ela mesma fundada
sobre uma observaccedilatildeo psicoloacutegica E esta observaccedilatildeo psicoloacutegica eacute realizada tatildeo bem e
profundamente que o resultado eacute uma autecircntica lei ontoloacutegica natildeo ser eacute o nome que damos agravequilo
que natildeo pode ser pensado Portanto este insight vertical tem consequecircncias sobre muitos niacuteveis ao
mesmo tempo como funccedilatildeo psicoloacutegica natildeo podemos pensar (isto eacute natildeo podemos operar de
forma cognitiva com) o natildeo ser como funccedilatildeo gnosioloacutegica natildeo podemos conhecer o natildeo ser como
funccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo podemos usar este conceito na descriccedilatildeo do mundo porque eacute fonte de
erro A estrutura feacuterrea das conexotildees entre esses muacuteltiplos niacuteveis expressa por sua filosofia
constituiraacute o desafio parmenidiano que intrigaraacute Platatildeo Aristoacuteteles e quase todos os grandes
filoacutesofos ateacute o presente
5212 DK B 812-18
Nos versos seguintes Parmecircnides reforccedila todos os niacuteveis de sua visatildeo
οὐδέ ποτ ἐκ μὴ ἐόντος ἐφήσει πίστιος ἰσχύς
γίγνεσθαί τι παρ αὐτό τοῦ εἵνεκεν οὔτε γενέσθαι
οὔτ ὄλλυσθαι ἀνῆκε Δίκη χαλάσασα πέδηισιν
ἀλλ ἔχει ἡ δὲ κρίσις περὶ τούτων ἐν τῶιδ ἔστιν
ἔστιν ἢ οὐκ ἔστιν κέκριται δ οὖν ὥσπερ ἀνάγκη
τὴν μὲν ἐᾶν ἀνόητον ἀνώνυμον (οὐ γὰρ ἀληθής
ἔστιν ὁδός) τὴν δ ὥστε πέλειν καὶ ἐτήτυμον εἶναι
a) DK 812-13a Noacutes pulamos o verso DK 811 porque embora pareccedila relacionado agraves duas vias de
193
pensamento de fato se refere ao ἐὸν o estudo do qual natildeo nos interessa aqui Assim podemos
comeccedilar lendo o verso DK 812 ldquoa forccedila da persuasatildeo (πίστιος ἰσχύς) natildeo permitiraacute que nada venha
a ser ao seu lado (παρ αὐτό) vindo do natildeo serrdquo Parmecircnides diz que nada pode vir a ser do natildeo ser
nem mesmo um ser ao lado do que jaacute eacute Significa que aquilo que parece ser uma nova existecircncia
no mundo quando esse novo existente vem a ser eacute apenas a visatildeo que resulta de uma falta de
recurso da mente comum (dos mortais) na qual natildeo haacute persuasatildeo verdadeira Com efeito a
persuasatildeo verdadeira tem uma forccedila tatildeo grande que natildeo permite que nenhuma coisa venha a ser do
nada como a deusa dissera no verso 87-8 Essa imagem da forccedila da persuasatildeo reforccedila a
interpretaccedilatildeo do verso 129 onde Parmecircnides fala de mente firme (ἀτρεμὲς ἦτορ) isto eacute uma
mente onde as conexotildees entre as partes do caminho satildeo tatildeo fortes que o vacilar dos pensamentos
entre ser e natildeo ser entre afirmaccedilatildeo e negaccedilatildeo natildeo pode acontecer A forccedila da persuasatildeo manteacutem
firme o argumento na mente portanto esta forccedila natildeo permite o argumento duvidoso (oscilante) da
geraccedilatildeo a partir do natildeo ser porque o natildeo ser eacute impossiacutevel e natildeo pode ser usado no argumento
b) DK 813b-15a ldquoPois Dike natildeo permite nem geraccedilatildeo (ἀνῆκε) nem perecimento (γενέσθαι)
soltando as correntes (χαλάσασα πέδηισιν) mas as manteacutemrdquo Esta passagem eacute muito importante
porque faz uma equivalecircncia entre a forccedila da persuasatildeo e as correntes de Dike a qual
tradicionalmente eacute a deusa da justiccedila236 De um lado noacutes sabemos que naquele periacuteodo os nomes
dos deuses estavam sendo utilizados na forma linguiacutestica de gecircnero neutro indicando de maneira
impessoal alguns processos naturais representados por aqueles deuses237 Que a justiccedila possa ser
236No caminho oposto Cassin a qual acredita fazer uma equivalecircncia entre as amarras das deusas parmenidianas e as
amarras que manteacutem ao mastro Ulisses quando ouve o canto das sereias (Cassin 1987) 237Kahn 1960 Parmecircnides escolhe escrever de maneira tradicionalista em verso e usando a linguagem eacutepica por este
194
um processo natural do mundo pode soar algo improacuteprio para a nossa compreensatildeo mas era bem
aceitaacutevel para a mente antiga como vemos por exemplo em Anaximandro DK B 1 Isto significa
que a justiccedila era considerada um tipo de ordem de todas as coisas natildeo uma ordem a partir de algo
externo aplicada agraves coisas (como por exemplo no pensamento cristatildeo onde a justiccedila eacute uma ordem
divina externa ao mundo vinda de Deus por meio de suas leis e que o homem pode respeitar ou
natildeo) mas uma ordem interna das coisas Conhecer o comportamento de Dike a deusa da justiccedila
significa conhecer o comportamento do mundo (isto eacute uma norma de comportamento do mundo
algo proacuteximo do que noacutes chamamos de lei da natureza) Por outro lado Parmecircnides descobre esta
ordem com um processo de meditaccedilatildeo238 alcanccedilando o entendimento de que o natildeo ser absoluto
natildeo pode ser pensado e ao mesmo tempo eacute impossiacutevel que ele tenha alguma realidade Portanto
todo argumento que implica o natildeo ser como algo que eacute estaacute errado como eacute o caso do argumento
sobre a crenccedila da existecircncia da geraccedilatildeo e do perecimento Dike neste caso representa uma ordem
interna de tudo que eacute tanto o mundo fiacutesico quanto o mundo dos pensamentos Ambos os mundos
tecircm a mesma ordem a mesma lei de comportamento um tipo de ordem que Parmecircnides chama
Dike e que noacutes chamariacuteamos de lei ontoloacutegica pois Dike eacute ao mesmo tempo uma lei da physis e
uma lei que pode ser um recurso para a mente humana (o caminho para as operaccedilotildees cognitivas)
motivo seus deuses e deusas satildeo reportados ao estaacutegio eacutepico e descritos na forma antropomoacuterfica tradicional 238Esta reflexatildeo sem base direta na experiecircncia eacute algo que ainda acontece naqueles ramos da ciecircncia que natildeo tecircm outra
opccedilatildeo senatildeo prescindir do suporte empiacuterico e experimental Curiosamente um destes ramos ainda eacute uma reflexatildeo
cosmoloacutegica tendo quase o mesmo objeto dos preacute-socraacuteticos trata-se de um ramo da Fiacutesica a Cosmologia A
Cosmologia fiacutesica da atualidade tem uma escala tatildeo imensa que se encontra muito aleacutem das capacidades
experimentais e trabalha apenas com cenaacuterios imaginaacuterios com o uacutenico suporte de coerecircncias internas segundo o
instrumental proacuteprio da Fiacutesica isto eacute Matemaacutetica e ciecircncias afins Por este seu caraacuteter natildeo experimental eacute chamada
de Cosmologia Especulativa
195
Esta multifuncionalidade de Dike239 a lei que estabelece os limites do comportamento do mundo
seraacute importante mais adiante para entender a equivalecircncia entre pensado e pensar (operar
cognitivamente) nos versos 834-38
c) DK 815-18 ldquoA decisatildeo (κρίσις) a respeito dessas coisas estaacute nisto eacute ou natildeo eacute Estaacute decidido
como era necessaacuterio de um lado deixar o que eacute natildeo operaacutevel cognitivamente e sem nome (pois natildeo
eacute verdadeiro caminho) e de outro lado ser e ser verdadeirordquo Vamos por partes Parmecircnides potildee
em praacutetica o Preceito da Deusa relembrando que um dos dois caminhos eacute inoperaacutevel
cognitivamente (ἀνόητον) e sem nome (ἀνώνυμον) enquanto o outro eacute real e verdadeiro caminho
Aqui temos que lembrar que decidir eacute uma accedilatildeo possiacutevel somente ao homem que conhece o
caminho da persuasatildeo verdadeira pois os mortais satildeo ἄκριτα φῦλα gente sem capacidade de
decidir Agora este homem estaacute diante de um problema da realidade o que satildeo aquelas coisas que
noacutes chamamos de geraccedilatildeo e perecimento (incluindo nascimento e morte) Para os mortais a soluccedilatildeo
vem de uma confusatildeo entre ser e natildeo ser assim eles acreditam que eles decidem mas eles natildeo
decidem Por outro lado em face deste problema o homem que sabe e que tem os recursos precisa
pocircr estes uacuteltimos em praacutetica Pocircr os recursos em praacutetica significa exatamente aplicar o Preceito da
Deusa isto eacute introduzir a oposiccedilatildeo absoluta entre ser e natildeo ser Com este recurso a decisatildeo eacute
possiacutevel e ademais eacute uma decisatildeo de persuasatildeo verdadeira Temos aqui uma decisatildeo feita por uma
disjunccedilatildeo escolhendo eacute ou natildeo eacute Embora se trate dos mesmos termos dos dois caminhos do
fragmento DK 2 o argumento eacute muito diferente No fragmento DK 2 haacute um processo de meditaccedilatildeo
com uma reflexatildeo sobre o natildeo ser que permite apenas dois caminhos tendo ambos a mesma origem
239Unidade e multiplicidade de Dike eacute desenvolvida em Ruggiu 1975 p 85-101
196
a negaccedilatildeo do natildeo ser mas apenas um leva agrave meta enquanto outro leva para lugar nenhum Os dois
caminhos do fragmento DK 2 natildeo tecircm nenhuma relaccedilatildeo loacutegica entre si (eles tecircm uma relaccedilatildeo
ontoloacutegica) mas expressam a realidade da reflexatildeo sobre o natildeo ser e satildeo o resultado de uma
experiecircncia aquele ponto de partida empiacuterico de qualquer metafiacutesica no fragmento DK 2 os dois
caminhos satildeo o resultado de um argumento que comeccedila com uma meditaccedilatildeo (sabemos isso pelas
palavras da deusa que diz que satildeo caminhos para as operaccedilotildees cognitivas νοῆσαι ou seja ela estaacute
refletindo sobre a reflexatildeo) e continua com as passagens intermediaacuterias (eacute eacute caminho de persuasatildeo
que acompanha a verdade enquanto natildeo eacute eacute cognitivamente natildeo operaacutevel e tambeacutem indiziacutevel) ateacute
a conclusatildeo enunciada no comeccedilo estes satildeo os uacutenicos caminhos para o pensar Muito diferente eacute
o caso dos versos em questatildeo (DK B 815-16) onde eacute e natildeo eacute natildeo satildeo conclusatildeo do argumento
mas o instrumento a ser usado para entender algo especiacutefico do mundo De fato Parmecircnides
considera que haacute os eacute e natildeo eacute vindos da percepccedilatildeo da realidade 1) como na geraccedilatildeo que apresenta
a passagem de algo vindo do natildeo ser algo que natildeo existia antes e vai para o ser aquele algo que
de fato existe agora 2) e como no perecimento que apresenta a passagem de algo indo do ser algo
que existia ao natildeo ser quando esse algo natildeo existe mais Agora estes ser e natildeo ser que surgem
da percepccedilatildeo da realidade precisam ser comparados com o Preceito da Deusa que diz que eacute e natildeo
eacute estatildeo em oposiccedilatildeo radical De forma que tendo ela dito que natildeo eacute eacute um caminho natildeo verdadeiro
na aplicaccedilatildeo ao estudo da geraccedilatildeo e do perecimento eacute preciso abandonaacute-lo isto eacute eacute preciso
eliminar o natildeo ser do entendimento que parece vir da percepccedilatildeo da realidade A diferenccedila entre o
homem saacutebio instruiacutedo pela deusa e os mortais natildeo eacute a percepccedilatildeo em si mas o uso ou natildeo do
recurso que corrige a percepccedilatildeo Para o homem saacutebio instruiacutedo pela deusa geraccedilatildeo e perecimento
satildeo eliminados porque eacute eliminada aquela parte do argumento o natildeo ser com a qual se daacute a
passagem e o tracircnsito entre ser e natildeo ser como a deusa diz nos versos seguintes (DK B 819-21)
197
Em conclusatildeo podemos ver neste trecho como pocircr em praacutetica o Preceito da Deusa
Parmecircnides faz algumas distinccedilotildees Todo homem tem uma noccedilatildeo da realidade e todo homem
percebe a realidade da mesma maneira Esta maneira poreacutem distorce a realidade porque a mente
pelo haacutebito multiexperiente erra Qual eacute o erro Eacute um erro que acontece na mente eacute a confusatildeo
entre ser e natildeo ser Isto significa que errar eacute estrutural ao homem (mergulhado em sua cultura)
porque o problema natildeo se daacute quando ele escolhe ou decide mas antes da decisatildeo O problema estaacute
na estrutura que toma decisotildees ou seja na mente Parmecircnides diz que a origem eacute cultural (o haacutebito
multiexperiente da mente) e que a estrutura da mente condicionada que percorre o caminho de
confusatildeo entre ser e natildeo ser levaraacute a uma concepccedilatildeo de mundo onde tudo vai aleacutem dos limites
daquilo que eacute atravessando o territoacuterio impossiacutevel do natildeo ser A maneira tradicional de ver o
mundo estaacute errada Parmecircnides diz porque confunde algo que natildeo deveria ser confuso De fato o
ser que penetra na regiatildeo do natildeo ser quer realizar algo impossiacutevel porque a lei do mundo (Dike)
considera isto injusto Eacute fora da lei e injusto o ir aleacutem gerando e perecendo em direccedilatildeo ao natildeo ser
e Dike natildeo permite esta invasatildeo no natildeo ser ela manteacutem com correntes o ser dentro do que eacute Dike
eacute uma lei do mundo imanente ao mundo assim a oposiccedilatildeo radical entre ser e natildeo ser pertence ao
mundo e por isto eacute tambeacutem uma estrutura do pensamento verdadeiro aquele pensamento que anda
no caminho da verdadeira persuasatildeo Os homens podem entender esta lei e conhecendo-a podem
corrigir a maneira de pensar naquela parte do processo mental entre a percepccedilatildeo e o pensamento
Em outras palavras Parmecircnides sugere o uso do instrumento da natildeo contradiccedilatildeo (entre ser e
natildeo ser) natildeo depois mas antes do resultado do pensamento isto eacute antes do enunciado como a
deusa diz em DK B 87-8 (οὐδ ἐκ μὴ ἐόντος ἐάσσω φάσθαι σ οὐδὲ νοεῖν) ou seja durante o
processo de pensar (operar cognitivamente) Para entender ao que Parmecircnides se refere com
processo de pensar (o caminho para as operaccedilotildees cognitivas) eacute preciso relembrar duas coisas
198
primeiro ele estaacute falando de um caminho especiacutefico do pensar segundo estaacute falando do caminho
de pesquisa deixando de lado os outros processos de pensamento No caso do inqueacuterito o caminho
(feito passo a passo) natildeo permite nenhum passo que use o natildeo ser porque a impossibilidade do natildeo
ser torna inuacutetil o inteiro encadeamento no qual possa ser encontrado um uacutenico elo que contenha o
natildeo ser No caso dos versos DK 87-8 quando a deusa diz ldquoEu natildeo permitirei etcrdquo ela quer dizer
ldquoEu natildeo te permitirei operar cognitivamente e dizer esta conclusatildeo o ser tem geraccedilatildeo porque os
passos deste caminho (os elos do encadeamento) do pensar e do dizer (argumento) incluem o natildeo
serrdquo Em outras palavras cada passo do inqueacuterito pode ser usado para o proacuteximo passo somente se
eacute filtrado pelo Preceito da Deusa (veremos isto melhor na anaacutelise nos proacuteximos versos DK 834 e
ss) O processo de pensar eacute entatildeo o percurso que leva ao enunciado o processo de pensar eacute o
argumento eacute no argumento que eacute preciso aplicar o Preceito da Deusa (e natildeo no enunciado que dele
resulta) Parmecircnides demanda uma mudanccedila na articulaccedilatildeo do pensar algo que como sabemos
realmente aconteceu depois dele o desenvolvimento de um novo modo de organizaccedilatildeo da cultura
humana aquele modo que chamamos pensamento racional em oposiccedilatildeo ao pensamento miacutetico
5213 DK B 826-8
ldquoMas imoacutevel (ἀκίνητον) jaz dentro de limites (ἐν πείρασι) de fortes correntes sem iniacutecio
(ἄναρχον) e sem fim (ἄπαυστον) pois geraccedilatildeo e perecimento foram afastados a persuasatildeo
verdadeira (πίστις ἀληθής) os empurrou para traacutesrdquo Mais uma vez temos primeiro o enunciado ou
seja o resultado do argumento assim o ser eacute imoacutevel sem comeccedilo nem fim Depois do enunciado
temos o argumento geraccedilatildeo e perecimento foram repelidos pela persuasatildeo verdadeira obtida
podemos acrescentar pela aplicaccedilatildeo do Preceito da Deusa Mais uma vez temos a clara sequecircncia
199
do argumento parmenidiano
5214 DK B 834-8
ldquoO mesmo satildeo operar cognitivamente (νοεῖν) e o fato pelo qual se daacute a operaccedilatildeo cognitiva
(νόημα) Com efeito natildeo sem o ser (οὐ ἄνευ τοῦ ἐόντος) no qual (ou pelo qual) eacute declarado tu
encontraraacutes a operaccedilatildeo cognitiva pois natildeo haacute nem haveraacute nada aleacutem do ser pois Moira acorrentou-
o para ser inteiro e imutaacutevelrdquo Estes versos apresentam muitos problemas tanto filoloacutegicos quanto
filosoacuteficos Tentaremos escapar da necessidade de atravessar este difiacutecil territoacuterio concentrando
nosso foco sobre o primeiro verso O sentido geral da inteira passagem embora com algumas
discordacircncias entre os estudiosos pode ser considerado este pensar (ou conhecer) e o
sujeitoobjeto do pensar (ou do conhecer) satildeo o mesmo porque sem o ser eacute impossiacutevel pensar ou
conhecer algo isto eacute eacute impossiacutevel pensar ou conhecer o que natildeo eacute porque sem o ser natildeo haacute nada
Creio que o acento sobre o aspecto psicoloacutegico do pensamento parmenidiano pode ajudar a
esclarecer estas palavras Antes de tudo a expressatildeo o mesmo (ταὐτὸν) natildeo pode ser traduzida
como idecircntico Trata-se do mesmo na semacircntica arcaica que significa pertencer ao mesmo ramo
genealogia povo tribo Por exemplo todas as pessoas de Roma satildeo o mesmo isto eacute satildeo Romanos
No caso de Parmecircnides ele estaacute tentando descrever dois fatos que parecem ser diferentes mas ele
diz ele pertencem ao mesmo fato o mesmo acontecimento Numa linguagem muito moderna e
levando em conta que Parmecircnides estaacute falando do mundo fiacutesico (ἐόν) podemos traduzir com eles
pertencem ao mesmo evento O evento naturalmente eacute o ἐόν para o qual o fragmento 8 eacute dedicado
Como em outras partes da filosofia parmenidiana a descriccedilatildeo do mundo fiacutesico inclui a lei que
governa aquele fato fiacutesico Assim o mesmo significa que os fatos que ele estaacute descrevendo satildeo
200
submetidos agrave mesma lei de comportamento fiacutesico
Operar (na parte cognitiva da mente) e aquilo pelo qual se daacute a operaccedilatildeo cognitiva pertencem
ao mesmo evento De fato se algo eacute declarado este algo possui realidade porque a declaraccedilatildeo aqui
natildeo eacute uma declaraccedilatildeo qualquer Natildeo podemos esquecer que Parmecircnides aqui estaacute aplicando seu
meacutetodo agrave physis isto eacute ao mundo Quando fala sobre declaraccedilatildeo de algo nesse contexto ele quer
dizer a verdadeira declaraccedilatildeo o enunciado verdadeiro e o discurso verdadeiro de fato a fala
verdadeira segue a persuasatildeo verdadeira Assim no discurso verdadeiro quando ele fala sobre algo
faz afirmaccedilotildees verdadeiras porque 1) o pensamento verdadeiro sobre algo e 2) a operaccedilatildeo cognitiva
operada com o recurso (o Preceito da Deusa) pertencem ao mesmo evento isto eacute agrave mesma
realidade verdadeira a realidade do ἐόν Mais uma vez o recurso eacute mostrado pela imagem da
Moira (o Fado) acorrentando todas as coisas num inteiro de uma forma que sem passado e futuro
(que introduziriam o natildeo ser pois as coisas que devecircm viriam do natildeo ser e iriam para o natildeo ser)
natildeo haacute ser que venha e vaacute e natildeo haacute outra coisa exceto o ser que jaacute existe
Aqui Parmecircnides cumpre um grande passo no desenvolvimento do conhecimento humano
porque ele afirma a identidade de funccedilatildeo entre o pensar humano verdadeiro e o pensamento
verdadeiro a respeito de algo Ele diz que o sujeito e o objeto pertencem agrave mesma ordem da physis
e eacute esta pertinecircncia que permite a possibilidade do conhecimento240 Esta mesma ordem natildeo eacute
aquela adquirida pelo haacutebito multiexperiente mas eacute a ordem do percurso cognitivo do eacute Atender
240Nota epistemoloacutegica Vale lembrar que anteriormente a Parmecircnides o conhecimento verdadeiro era reservado soacute
aos deuses (Xenoacutefanes DK 21 B 18 e 24 Alcmeon DK 24 B 1) Ao estabelecer uma mesma lei entre o pensar e o
ente que eacute pensado Parmecircnides estabelece um princiacutepio pelo qual o mundo (que naquela eacutepoca incluiacutea os deuses
diferentemente do pensamento cristatildeo que potildee o deus fora do mundo) e o pensar o mundo obedecem agrave mesma lei
autorizando epistemologicamente desta forma o pensamento humano a alcanccedilar e incluir o mundo inteiro no seu
objeto de conhecimento verdadeiro
201
a esta ordem permite o conhecimento verdadeiro porque atender ao Preceito da Deusa permite a
relaccedilatildeo entre o pensar isto eacute aquele pensador que pensa com as operaccedilotildees cognitivas verdadeiras
com o pensamento do objeto expresso em declaraccedilotildees verdadeiras o sujeito pensador (o homem
saacutebio que segue o Preceito da Deusa) pode conhecer a verdade do objeto porque o mundo (que
inclui sujeito e objeto) eacute ordenado pelo mesmo preceito que Dike e Moira potildeem em accedilatildeo
acorrentando o ἐόν num todo
522 O fragmento DK 4
O fragmento DK 4 eacute um dos mais misteriosos do poema Natildeo estaacute clara a sua posiccedilatildeo na
ordenaccedilatildeo dos fragmentos Diels o colocou entre o 3 e o 5 mas hoje isto eacute contestado por muitos
estudiosos Na minha opiniatildeo que natildeo pode ser justificada aqui241 ele pertence agrave primeira parte do
poema mas talvez na seccedilatildeo da discussatildeo do ἐὸν ou seja no fragmento DK 8 eacute impossiacutevel poreacutem
decidir mais precisamente em que parte do fragmento deve ser colocado de forma que eu o deixo
no uacuteltimo lugar antes do fim da fala da deusa a respeito da verdade (DK 850) O fragmento foi
transmitido por Clemente de Alexandria
λεῦσσε δ ὅμως ἀπεόντα νόωι παρεόντα βεβαίως
οὐ γὰρ ἀποτμήξει τὸ ἐὸν τοῦ ἐόντος ἔχεσθαι
οὔτε σκιδνάμενον πάντηι πάντως κατὰ κόσμον
οὔτε συνιστάμενον
A grande problemaacutetica da traduccedilatildeo eacute bem conhecida pelos estudiosos e se reflete na
241A discussatildeo da posiccedilatildeo do fragmento DK 4 requereria a discussatildeo da exegese do poema como um todo Por outro
lado o assunto do fragmento DK 4 eacute perifeacuterico em relaccedilatildeo ao tema da presente tese e reportar ainda que
parcialmente aquela discussatildeo sobrecarregaria (dada a grande e intensa discordacircncia dos estudiosos)
desnecessariamente o texto retirando o foco do tema principal o natildeo ser
202
insatisfaccedilatildeo geral com os resultados que satildeo muito diferentes para cada interprete242 Nesse caso
nem o sentido geral recebe um acordo dos estudiosos assim podemos ir diretamente para a
interpretaccedilatildeo do ponto de vista psicoloacutegico ldquoObserve com a operaccedilatildeo cognitiva (νόωι) as coisas
ausentes como sendo (ὅμως) presentes firmemente pois [subentendido a operaccedilatildeo cognitiva
νόος] natildeo dividiraacute (οὐ γὰρ ἀποτμήξει) o ente de aderir (ἔχεσθαι) do ente (τοῦ ἐόντος) nem pelo
espalhamento em todas as direccedilotildees em todo lugar nem pela uniatildeordquo
Do nosso ponto de vista psicoloacutegico a interpretaccedilatildeo deste fragmento resulta simples e clara
se fizermos algumas consideraccedilotildees Antes de tudo noacutes temos os nossos instrumentos o Preceito
da Deusa e as correntes de Dike e Moira depois sabemos que estas correntes precisam estar
tambeacutem no pensar (as operaccedilotildees cognitivas verdadeiras) e no mundo Mas se o mundo natildeo parece
acorrentado eacute porque noacutes estamos olhando para ele sem o recurso (ἀμηχανίη) como o olham os
mortais A primeira palavra que encontramos eacute λεῦσσε que eacute a forma imperativa do verbo λεύσσω
observar fitar A deusa diz ao disciacutepulo olhe atentamente Natildeo eacute um convite eacute uma ordem
imperativa como muitas outras ao longo do poema para que o disciacutepulo obedeccedila e faccedila aquilo O
que ele tem que fitar A deusa diz que ele tem que olhar atentamente as coisas ausentes (ou as
coisas afastadas) como firmemente presentes (ou proacuteximas) E a deusa acrescenta que o kouros
precisa fazer isto com a mente (νόωι dativo instrumental) Noacutes jaacute sabemos que nesse caso νόωι
significa pelas operaccedilotildees cognitivas da mente e tambeacutem sabemos que este olhar eacute o recurso da
mente que os mortais natildeo tecircm (por esta razatildeo eles perambulam como surdos e cegos) Portanto ateacute
242 Este fragmento raramente eacute estudado em si mas quase sempre em relaccedilatildeo agrave doutrina geral do ser no poema Uma
exposiccedilatildeo de algumas interpretaccedilotildees se encontra em Marques 2007
203
agora os instrumentos satildeo claros e conhecidos porque foram apresentados nas partes anteriores do
poema sumariamente olhe com a mente usando o recurso isto eacute com o Preceito da Deusa
O proacuteximo passo consiste em entender o que poderia significar o fato que coisas ausentes
devem ser vistas como presentes Como sempre a razatildeo para o preceito eacute dada depois do
enunciado portanto poderiacuteamos encontrar vestiacutegios nos versos seguintes No segundo verso natildeo
haacute um sujeito claro para a oraccedilatildeo e o verbo ἀποτμήξει pode ser da 2a pessoa em voz meacutedia ou da
3a pessoa em voz ativa do futuro de ἀποτμήγω se noacutes aceitamos como 2a pessoa o sujeito eacute a
mesma pessoa para a qual o imperativo eacute direto isto eacute o kouros se noacutes aceitarmos como 3a pessoa
o sujeito eacute o mesmo da primeira oraccedilatildeo isto eacute o νόος isto eacute as operaccedilotildees cognitivas Levando em
conta que as operaccedilotildees cognitivas satildeo referidas ao kouros do nosso ponto de vista esta
ambiguidade gramatical natildeo eacute importante e o sentido geral permanece o mesmo o sujeito eacute um
operador cognitivo isto eacute as operaccedilotildees cognitivas do kouros Vamos entatildeo escolher a 3a pessoa
apenas para permitir que o tom imperativo da deusa seja mais universal
As operaccedilotildees cognitivas natildeo separaratildeo o ente de aderir ao ente Isto significa que as
operaccedilotildees cognitivas verdadeiras natildeo cortaratildeo as correntes que tornam todas as coisas um todo As
coisas natildeo podem ser separadas e o olhar (o recurso) das operaccedilotildees cognitivas verdadeiras natildeo
separaraacute o ente do ente ou tambeacutem o ente do todo ao qual pertence Parmecircnides diz que eacute o olho
com recurso (o Preceito da Deusa) que vecirc todas as coisas num todo Pela mesma razatildeo as coisas
natildeo podem ser vistas como espalhadas ou concentradas Ateacute agora eacute muito claro e estaacute dentro de
nossa interpretaccedilatildeo anterior Resta o problema de entender ἀπεόντα e παρεόντα
Para poder entender como as coisas ausentes devem estar presentes para o olho da mente
com recurso precisamos nos perguntar em quais circunstacircncias as coisas presentes parecem estar
ausentes para a mente comum Esta me parece uma observaccedilatildeo psicoloacutegica surpreendente de
204
Parmecircnides No nosso comportamento psicoloacutegico comum noacutes observamos as coisas como se
fossem isoladas umas das outras Se eu observo um livro eu considero este livro como uma coisa
isolada do resto do mundo e por isso eu digo o livro estaacute sobre a mesa Considero o objeto isolado
livro sobre o objeto isolado mesa Este isolamento dos objetos eacute o resultado de um processo
normal de nossa cogniccedilatildeo que noacutes chamamos atenccedilatildeo A atenccedilatildeo eacute uma maneira dos nossos
processos perceptivos e cognitivos pela qual uma coisa que eacute o objeto de nossas atenccedilotildees eacute
separada do resto do mundo este permanece em segundo plano em relaccedilatildeo ao objeto de nossa
atenccedilatildeo Assim pelo comportamento psicoloacutegico eu seleciono objetos para a minha atenccedilatildeo um
livro uma mesa uma xiacutecara e os considero um de cada vez para as minhas finalidades Quando
esta atenccedilatildeo eacute organizada numa consideraccedilatildeo consciente de um uacutenico objeto eu digo ldquoum livrordquo
Assim a minha ideia de livro eacute extraiacuteda da realidade e o livro real revive em minha mente natildeo
como aquele livro concreto relacionado naquele momento com aquela mesa naquele ambiente
etc mas como uma ideia A ideia de livro eacute algo extraiacutedo da realidade e noacutes chamamos esta
extraccedilatildeo de abstraccedilatildeo (do latim ab traho levo embora)
A realidade eacute um conjunto de coisas sempre juntas todas elas Mas a mente comum vecirc as
coisas como separadas umas das outras Quando penso livro eu faccedilo uma ideia como se o livro
fosse algo rodeado pelo nada isto eacute o que a mente comum faz quando pensa de forma abstrata
Mas o livro concreto estaacute sempre mergulhado no todo da realidade e eu natildeo posso nunca encontrar
um livro isolado rodeado por uma espeacutecie de coisa real que poderia ser o nada De fato diz
Parmecircnides natildeo haacute dispersatildeo nem concentraccedilatildeo no mundo ordenado243 (κατὰ κόσμον) e quando
243 Embora esta seja uma expressatildeo eacutepica que significa em ordem ou ordenadamente (Taraacuten 1965 p 47-48 Coxon
205
noacutes vemos um mundo com dispersatildeo e concentraccedilatildeo noacutes estamos olhando como surdos e cegos
como as pessoas sem recurso Mas as operaccedilotildees cognitivas verdadeiras da mente natildeo cortaratildeo as
correntes que ligam todas as coisas no ser no todo no ἐὸν Portanto as operaccedilotildees cognitivas da
mente devem olhar junto com o livro que a mente comum vecirc como presente tambeacutem a mesa e a
xiacutecara e as outras coisas as quais embora pareccedilam estar ausentes de fato na realidade estatildeo
presentes Esta fatal (divina) inteira presenccedila deve ser vista (eacute necessaacuterio que seja vista λεῦσσε
imperativo) pelo homem com recurso
Se esta interpretaccedilatildeo estaacute correta estamos diante da primeira descriccedilatildeo do processo de
abstraccedilatildeo da cultura ocidental Isto tornaria Parmecircnides um observador realmente extraordinaacuterio
do comportamento da mente desde o comportamento psicoloacutegico ateacute as implicaccedilotildees cognitivas
epistemoloacutegicas e filosoacuteficas
523 O fragmento 16
Este fragmento tambeacutem eacute extremamente controverso chega ateacute noacutes pela Metafiacutesica de
Aristoacuteteles e pelo de Sensu de Teofrasto eis o texto oferecido por Diels-Kranz244
ὡς γὰρ ἕκαστος ἔχει κρᾶσιν μελέων πολυπλάγκτων
τὼς νόος ἀνθρώποισι παρίσταται τὸ γὰρ αὐτό
ἔστιν ὅπερ φρονέει μελέων φύσις ἀνθρώποισιν
καὶ πᾶσιν καὶ παντί τὸ γὰρ πλέον ἐστὶ νόημα
2009 308) haacute alguns autores que traduzem atraveacutes do mundo (por exemplo OBrien 1987 p 21 across the
world) o sentido de mundo era um sentido novo que vinha se configurando desde Anaximandro no entanto o
puacuteblico de Parmecircnides ainda natildeo podia natildeo associar a este termo o sentido tradicional de ordem Para um status
questionis do termo κόσμος veja-se Finkelberg 1998 244A exegese eacute extremamente problemaacutetica e em geral a criacutetica mais recente prefere a versatildeo de Teofrasto
206
Cavalcante de Souza traduz245
Pois como cada um tem mistura de membros errantes
assim a mente nos homens se apresenta pois o mesmo
eacute o que pensa nos homens eclosatildeo de membros
em todos e em cada um pois o mais eacute pensamento
Mais uma vez estamos diante de um texto que natildeo soacute natildeo apresenta unanimidade de
traduccedilatildeo como tambeacutem natildeo apresenta sequer um acordo sobre o seu sentido geral 246 Tanto
Aristoacuteteles quanto Teofrasto citam a passagem em relaccedilatildeo agrave discussatildeo da relaccedilatildeo entre sensaccedilatildeo e
pensamento A citaccedilatildeo de Aristoacuteteles aparece descontextualizada enquanto aquela de Teofrasto
conteacutem algum comentaacuterio entretanto ambas satildeo insuficientes para um claro entendimento da
mensagem parmenidiana O resultado eacute ateacute mesmo uma dificuldade de colocaccedilatildeo do fragmento na
primeira parte ou na segunda do poema ao se acentuar o aspecto da discussatildeo sobre a mente se
reconduz a citaccedilatildeo a ser fragmento da primeira parte ao se enfatizar o aspecto bioloacutegico se manteacutem
a citaccedilatildeo como fragmento da segunda parte Diels opta pela segunda e o numera como fr 16 Apesar
da grande autoridade do helenista alematildeo vozes discordantes apareceram e jaacute nos anos 50 Loenen
propotildee uma colocaccedilatildeo na primeira parte 247 no mesmo sentido tambeacutem Mourelatos 248 e
Robinson 249 que reconhecem no fragmento ecos da linguagem da primeira parte mais
recentemente alguns estudiosos mantecircm esta colocaccedilatildeo e alguns o fazem jaacute em outros contextos
245Cavalcante de Souza 1978 p 125 246 Como exemplo de discordacircncia radical vejam-se esses dois artigos do mesmo nome Parmenides theory of
knowledge (Vlastos 1946) e Parmenides theory of knowledge (Philip 1958) 247Loenen ldquo[] to be quite precise it probably came immediatly after fr 3rdquo (1959 p 50 e ss) 248Mourelatos 2008 p 253 e ss 249 Robinson (1975 p 631-632) inclui este fragmento no seu estudo sobre o grupo de fragmentos a respeito da
determinaccedilatildeo da realidade (ascertainment of the real)
207
criacuteticos do poema250 Ao lado destes continuam havendo importantes criacuteticos que satildeo defensores
da colocaccedilatildeo na segunda parte Esse breve apanhado aqui relatado quer ser uma razatildeo evidente
da cripticidade do texto parmenidiano Se natildeo haacute acordo nem sequer sobre que parte do poema
colocar o fragmento se pode imaginar o grau de desacordo sobre a interpretaccedilatildeo Aparentemente
haacute no fragmento a explicitaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo entre a mente e o corpo (os membros μελέων) no
entanto ateacute isto estaacute sendo posto em questatildeo251
Devido a toda esta problematicidade de interpretaccedilatildeo este fragmento embora possua um
evidente vocabulaacuterio psicoloacutegico (τὼς νόος ἀνθρώποισι παρίσταται τὸ γὰρ αὐτό ἔστιν ὅπερ
φρονέει τὸ γὰρ πλέον ἐστὶ νόημα) natildeo apresenta duas condiccedilotildees importantes para a nossa
pesquisa A primeira consiste em ter um bom grau de inteligibilidade este fragmento assim como
tambeacutem o fragmento DK B 3 natildeo o tem A segunda eacute apresentar um comportamento da mente
este fragmento apresenta uma teoria meacutedica do pensamento (para os que o colocam na segunda
parte do poema) ou associaccedilatildeo das sensaccedilotildees agrave mente interferindo no processo de conhecimento
da verdade (para quem o coloca na primeira parte do poema) e natildeo um comportamento da mente
Assim apesar de representar um material psicoloacutegico precioso252 para outros enfoques se revela
250Um exemplo notaacutevel eacute a interpretaccedilatildeo de Cordero o qual coloca o fr 16 logo apoacutes o fr 6 atendendo natildeo somente a
uma interpretaccedilatildeo diferente mas tambeacutem a uma nova ordenaccedilatildeo dos fragmentos que garante ele (o trabalho estaacute
escrito mas eacute ineacutedito) supera a divisatildeo tradicional do poema em aletheia e doxa (Cordero 2008 p 72-74) 251 Kurfess (2014) com razotildees interessantes propotildee traduzir μέλεα por uacutetero colocando assim o fragmento entre
aqueles de embriologia 252Por exemplo a interpretaccedilatildeo de Frankel seria do ponto de vista psicoloacutegico extremamente interessante ldquoThe first
sentence of the fragment says the ratio of the two elements of which a person consists (Light and Dark Being and
Not-being) is subject to great fluctuations and these changes are accompained by corresponding fluctuations in his
powers of insight and his whole way of looking at thingsrdquo (Frankel 1975 p 17) Lamentavelmente essa
interpretaccedilatildeo assim como as demais possui uma instabilidade que depende do proacuteprio texto e portanto natildeo eacute
aproveitaacutevel
208
insuficiente para o aproveitamento para a nossa anaacutelise
524 Conclusatildeo
Com esta segunda parte do estudo concluiacutemos nossa busca pelo vocabulaacuterio psicoloacutegico do
poema parmenidiano e pela averiguaccedilatildeo da existecircncia de um Parmecircnides observador do
comportamento da mente humana isto eacute de um Parmecircnides psicoacutelogo A nossa analise revelou um
Parmecircnides excelente psicoacutelogo Depois da primeira seccedilatildeo vimos no capiacutetulo 2 a extraordinaacuteria
observaccedilatildeo da impossibilidade de se pensar o natildeo ser vimos tambeacutem a reflexatildeo a respeito desta
impossibilidade e as consequecircncias que ele extraiu tanto no plano da possibilidade de
conhecimento quanto no plano filosoacutefico elaborando um meacutetodo corretivo do desvio cognitivo da
mente E nesta segunda seccedilatildeo vimos a aplicaccedilatildeo desse meacutetodo (do ponto de vista psicoloacutegico) e
talvez a primeira descriccedilatildeo do processo mental de abstraccedilatildeo Principalmente vimos a organicidade
e forccedila estrutural do pensamento de Parmecircnides que apoia passo a passo todas as suas afirmaccedilotildees
umas nas outras partindo da impossibilidade de se pensar o natildeo ser e chegando na descriccedilatildeo
coerente de um mundo sem mutaccedilatildeo passando pelas etapas intermediaacuterias da compreensatildeo do erro
nos argumentos devido a um desvio cognitivo do meacutetodo para corrigir o erro da criacutetica ao
pensamento comum e da apresentaccedilatildeo argumentada das caracteriacutesticas verdadeiras do eon o
mundo
53 O preceito da deusa
Apoacutes nosso percurso pelo fragmento 2 e pela discussatildeo do meacutetodo parmenidiano podemos
agora voltar ao tantas vezes jaacute nomeado Preceito da Deusa Na verdade a deusa parmenidiana
209
oferece muitos preceitos desde o nem conhecerias o que natildeo eacute [hellip] e nem o dirias de 27-8 ateacute o
eacute ou natildeo eacute do 816 e aleacutem No entanto o preceito siacutentese de todos os outros e em sua versatildeo
operativa ou seja numa foacutermula que pode ser aplicada eacute aquele reportado (e tornado famoso) por
Platatildeo e enumerado por Diels no fragmento 7 e versos 71-2 Jaacute encontramos essa citaccedilatildeo no
primeiro capiacutetulo ao falar do testemunho de Platatildeo (p XX) e ali fizemos uma distinccedilatildeo entre a
semacircntica parmenidiana e a semacircntica platocircnica por natildeo conhecermos ainda a semacircntica
parmenidiana renunciamos temporariamente a traduzir os versos e com a ajuda da semacircntica
platocircnica apenas salvamos a sintaxe de forma a manter uma referecircncia para a sucessiva anaacutelise do
texto do poema Depois jaacute conhecendo a semacircntica do natildeo ser em Parmecircnides reapresentamos
esses dois versos no 2ordm paraacutegrafo do capiacutetulo 2 oferecendo a traduccedilatildeo e sentidos dentro da
sequecircncia apresentada pelo poema quanto agrave discussatildeo do meacutetodo que Parmecircnides propotildee no
fragmento 2 Agora podemos nos dedicar a uma discussatildeo mais geral desses dois versos pois
como indica a citaccedilatildeo de Platatildeo representam a essecircncia da mensagem da filosofia parmenidiana
Vamos relembrar a letra dos versos
Natildeo prevaleccedila (οὐδαμῆι) jamais (μήποτε) isto (τοῦτο) ser os natildeo entes
Tu poreacutem desta via de inqueacuterito afasta o pensamento
Estabelecido o sentido metodoloacutegico dentro do poema podemos verificar uma sua
generalizaccedilatildeo O texto nos diz que (1) haacute uma via de inqueacuterito da qual eacute necessaacuterio se manter
afastados isto significa que este preceito se aplica agrave via de inqueacuterito agrave busca pelo saber isto eacute agrave
filosofia no sentido mais geral do termo (2) No inqueacuterito diante das duas vias possiacuteveis uma tem
que ser evitada a saber aquela que pretende que os natildeo entes sejam (3) Que os natildeo entes sejam
nunca prevaleceraacute
O preceito da deusa se baseia numa distinccedilatildeo que se revela no (1) por um lado haacute uma
210
estrutura do mundo por assim dizer objetiva e por outro lado haacute uma compreensatildeo subjetiva
desta estrutura O mundo considerado enquanto objeto apresenta a estrutura que se revela na
oposiccedilatildeo radical entre ser e natildeo ser (3) O pensamento de inqueacuterito um ato do sujeito pode ou natildeo
refletir esta estrutura por isto se oferecem ao sujeito duas vias (2) Esta distinccedilatildeo parmenidiana
representa por um lado a ruptura do realismo ingecircnuo cognitivo e por outro lado a consciecircncia
de que a esta ruptura eacute necessaacuterio oferecer um reparo Posto que o mundo estaacute estritamente ligado
pelas correntes na necessidade (3) o pensamento que queira investigar o mundo ndash e que
inexoravelmente se encontra diante de duas possibilidades (2) a de seguir o caminhos com os
nexos soltos ou o caminho com os nexos estreitos ndash precisa seguir o caminho de nexos estreitos
(1) definido pelo preceito mantenha-se afastado da via onde prevalece que os natildeo entes sejam
Reaproximando estas palavras a uma linguagem mais familiar para noacutes podemos dizer natildeo
argumente (mantenha-se afastado da via) com a identidade entre natildeo ente e ente (onde prevalece
que os natildeo entes sejam) O preceito pode entatildeo ser generalizado desta forma no caminho de
inqueacuterito que acompanha a verdade o ente natildeo pode ser idecircntico ao natildeo ente Generalizando mais
ainda temos o Preceito da Deusa
em relaccedilatildeo ao argumento algo natildeo pode ser e natildeo ser
Note-se que este eacute o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo parmenidiano no campo do pensamento
e portanto eacute um princiacutepio do pensar eacute um princiacutepio loacutegico Jaacute como vimos no primeiro paraacutegrafo
do capiacutetulo 2 o princiacutepio ontoloacutegico eacute o seguinte
natildeo ser eacute impossiacutevel
A estrutura cristalina do pensamento de Parmecircnides pode ser colhida somente se livrando das
camadas culturais poacutes-platocircnicas de forma que a tarefa de evidenciar esse nuacutecleo filosoacutefico se
torna muitas vezes difiacutecil e ateacute mesmo ingloacuteria Tome-se por exemplo o magniacutefico e virtuosiacutestico
211
trabalho de Scott Austin Being bounds and logic de 1986 O autor aceita que Parmecircnides introduz
o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo mas sua anaacutelise se reversa inteiramente sobre a sintaxe e ele conclui
que Parmecircnides realizou a generalizaccedilatildeo deixando cair (dropping) os predicados253 assim seria
um caminho de contradiccedilatildeo sintaacutetica que gerou em Parmecircnides a reatividade agrave contradiccedilatildeo
fazendo-o afinal rejeitar as afirmaccedilotildees contraditoacuterias eacute e natildeo eacute Penso que a contradiccedilatildeo em
Parmecircnides natildeo seja uma questatildeo de ouvido pois a contradiccedilatildeo para o ouvido eacute a contradiccedilatildeo
comumente percebida bem antes de Parmecircnides na linguagem comum Penso que Parmecircnides eacute
bem consciente da questatildeo filosoacutefica da contradiccedilatildeo como aliaacutes vimos abundantemente neste
trabalho pelos seguintes temas apresentados no poema a psicologia da convicccedilatildeo o criteacuterio para
a verdade o conflito entre explicaccedilotildees diversas em relaccedilatildeo aos mesmos fenocircmenos em escala
ampla (desde ao menos seu mestre Xenoacutefanes) a reflexatildeo sobre o natildeo ser nitidamente e
253Um exemplo eacute reportado na paacutegina 33 ldquoIf a division is or generates a hole in being then there will be a place where
what-is is not continuous and soacute the sentence what-is here divided and is there not divided would have to be true
Similarly if what-is is bigger somewhere then it is smaller somewhere eles (as Parmenides clearly realizes in 46-
48) and so it is here bigger there not bigger would have to be true [hellip] I suggeste that Parmenides saw this as an
instance of something like contradiction and would claim that saying of what-is that it is bigger and not bigger
makes being be both Parmenides ears do not (for philosophical purposes at least) register here there contrast
He allows himself to be deaf because his logic focuses on the terms directly introduced by the copula to the
exclusion of the qualifiers somewhat in the manner of the logic of Platos Phaedo in which what is ontologically
suspect about entities like Simmias and Cebes (or what clues us into their ontological derivativeness) is that they
can be both taller and shorter never mind than whomrdquo
Uma criacutetica que eacute feita a este tipo de argumento eacute que esta reduccedilatildeo ndash onde aqui e ali satildeo abandonados restando
somente o ser como sendo maior e menor ndash eacute que para que a reduccedilatildeo aconteccedila eacute necessaacuterio que os adveacuterbios sejam
levados em conta para depois serem abandonados (Thom 1999 p 155) o que exclui que Parmecircnides seja surdo
a eles Mas o argumento principal a meu ver eacute a inversatildeo da linha de raciociacutenio isto eacute natildeo eacute pelo fato de que o
eon sendo maior aqui e menor ali seria maior e menor (excluindo os adveacuterbios que supostamente Parmecircnides natildeo
ouve) e portanto apresentaria uma contradiccedilatildeo ser e natildeo ser inaceitaacutevel mas eacute pelo fato de que o natildeo ser eacute
inaceitaacutevel que o eon natildeo pode ser maior e menor ou maior aqui e menor ali Estaacute mais do que claro no poema que
Parmecircnides exclui a induccedilatildeo (ou seja uma suposta observaccedilatildeo do eon como sendo maior e menor em cima da qual
ele elabora uma teoria particular para aquele fenocircmeno) e expotildee sua visatildeo do eon a partir do pressuposto da
exclusatildeo do natildeo ser exclusatildeo que explica a homogeneidade e portanto a impossibilidade do eon ser maior aqui ou
ali Esta inversatildeo eacute tanto mais notaacutevel quanto o fato de Austin atribuir a Parmecircnides uma surdez que o proacuteprio
Parmecircnides atribui aos mortais
212
magistralmente exposta no fragmento 2 e a elaboraccedilatildeo de um meacutetodo de pesquisa natildeo somente
utilizado por ele mas ateacute mesmo ensinado pela boca de uma deusa num poema didaacutetico Todo
este aparato natildeo se apoia apenas no ouvido mais ou menos deficiente de Parmecircnides mas num
autecircntico esforccedilo filosoacutefico aquele eterno esforccedilo humano de entender a si proacuteprio sua vida seu
mundo e o mundo de todos noacutes
Assim como Austin acusa Parmecircnides de ser surdo assim tambeacutem Jonathan Barnes o acusa
de ser cego254 Para o quecirc Parmecircnides seria cego Seria cego para a ambiguidade loacutegica de suas
foacutermulas linguiacutesticas De fato Barnes reconstroacutei os argumentos de Parmecircnides e depois de ter
montado passo a passo os vaacuterios argumentos se dedica a aprofundar o ldquocaminho da ignoracircnciardquo (o
caminho do natildeo ser que ele reconstroacutei utilizando os fragmentos 2 e o 6) Primeiro expotildee o caminho
em 15 passos e depois afirma que o 11ordm eacute falso eis suas palavras no The presocratic philosophers
ldquo(11) (ⱯX) (if X does not exist X cannot exist) [hellip] premiss (11) is false and obviously false Not
all nonentities are impossibilia many things might but do not existrdquo (p 157) Esta a interpretaccedilatildeo
de que algumas coisas embora natildeo existam poderiam existir natildeo estaacute dentro do horizonte
especulativo de Parmecircnides porque ele natildeo pensa em termos de essecircncia e existecircncia255 e ademais
recusa exatamente a possibilidade de que os natildeo entes venham a ser como reza o Preceito da Deusa
Se se interpreta a impossibilidade da existecircncia dos natildeo entes agrave luz do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo
254Diz Barnes ldquoParmenides I suggest was blind to the ambiguity of the sentence he used he supposed that he could
as it were take advantage in one and the same proposition both of the truth of (16) and of the logical implications
of (17) Parmenidesrsquo philosophy rests if I am right on an untruism it is some slight consolation that his was by no
means the last system to be built on such a sandy foundationrdquo (Barnes 1982 p 167) 255O tema da essecircncia e existecircncia em Parmecircnides eacute raramente tratado um dos raros artigos a respeito eacute de Austin
(2011) que mostra com pouca palavras que a questatildeo natildeo eacute tatildeo simples como pode parecer e que afinal o que
estaacute em jogo eacute a dinacircmica entre apresentaccedilatildeo e representaccedilatildeo do Ser (pace Heidegger diz Austin) assunto no qual
os preacute-socraacuteticos tecircm muito a contribuir
213
segundo a formulaccedilatildeo de Aristoacuteteles (ou ateacute mesmo de Platatildeo) entatildeo estariacuteamos diante de uma
falsidade Mas Parmecircnides adverte especificamente para se afastar do caminho onde prevalece que
os natildeo entes sejam Dizer que a proposiccedilatildeo (11) eacute uma falsidade significa trair o nuacutecleo da filosofia
parmenidiana significa desconsiderar o Preceito da Deusa e julgar o texto com os olhos platocircnicos
aristoteacutelicos ou ateacute mesmo contemporacircneos ou melhor ironia dos textos significa ver o mundo
como os mortais que Parmecircnides considera como cegos justamente ali onde Barnes restitui a
acusaccedilatildeo a Parmecircnides
Essa mesma situaccedilatildeo de natildeo aceitar ou desconsiderar os preceitos explicitados por
Parmecircnides levou muitos criacuteticos renomados e influentes a cometer imprecisotildees agraves vezes graves
na interpretaccedilatildeo do texto parmenidiano Tome-se em mais um exemplo Owen256 afora a inversatildeo
arbitraacuteria entre os modais de 23 e 25 (must no lugar de cannot em 23 e cannot no lugar de must
em 25 p 91 n 1) de ldquoconsequecircncias desastrosasrdquo257 haacute uma recusa de se aceitar as regras do
jogo definidas por Parmecircnides A recusa se expressa atribuindo a Parmecircnides um erro aquele de
afirmar que natildeo se pode falar do que natildeo existe Mas que o natildeo ser seja indiziacutevel eacute uma afirmaccedilatildeo
que quando analisada atentamente nem que seja apenas uma anaacutelise no plano etimoloacutegico levaria
agrave conclusatildeo que indiziacutevel e contraditoacuterio pertencem natildeo soacute ao mesmo campo semacircntico mas ateacute
mesmo ao mesmo campo etimoloacutegico para Parmecircnides natildeo ser (o que natildeo existe na versatildeo de
Owen) eacute contraditoacuterio Mas ao inveacutes de concluir que o natildeo ser eacute contraditoacuterio Owen conclui que
Parmecircnides estaacute errado ldquowhat is mistaken is his claim that we cannot talk of the non-existent We
256Owen (1960) 257Eacute a expressatildeo de OBrien em sua anaacutelise detalhada do artigo de Owen (OBrien 1987 p 187)
214
can of course mermaids for instancerdquo (p 94 n 1) Mais uma vez o Preceito da Deusa eacute
desconsiderado para aplicar a Parmecircnides a nossa visatildeo de possiacutevelimpossiacutevel contraditoacuterionatildeo-
contraditoacuterio
No comeccedilo do seacuteculo XX Burnet em oposiccedilatildeo a uma linha interpretativa anterior258 jaacute
falava de um meacutetodo rigoroso de argumentar presente no poema259 embora natildeo explicitava em que
consistia o meacutetodo e em que consistia o rigor sucessivamente Zafiropulo em 1950 fala de duas
principais contribuiccedilotildees uma das quais foi aquela de evidenciar as antinomias260 e Jameson em
1958 afirma que o poema potildee certos axiomas e traccedila suas implicaccedilotildees261 Todavia outras vozes
comeccedilaram a se levantar tentando reduzir a discussatildeo loacutegica e ontoloacutegica parmenidiana a uma
mera conscientizaccedilatildeo das regras da gramaacutetica grega Por exemplo Stannard em 1960 reclamando
da imprecisatildeo e obscuridade da linguagem dos criacuteticos afirma ldquoMy own feeling is that he
[Parmenides] was simply and intuitively following the syntactical structure of the only language
known to himrdquo262 Surgem nesta eacutepoca aquelas interpretaccedilotildees na linha da linguiacutestica agraves quais
258Por exemplo Gomperz em 1910 diz que o pensador desejoso de conhecimento (isto eacute Parmecircnides) se rebelava
contra a afirmaccedilatildeo de que as coisas satildeo e natildeo satildeo reduzindo uma eventual questatildeo de problematizaccedilatildeo loacutegica a
uma suposta ldquorazatildeo sadiardquo do pesquisador (ed italiana de 1963 p 259 ldquoContro una tale proposizione [as coisas
satildeo e natildeo satildeo nda] la sana ragione si rivoltograverdquo) 259Burnet 1920 sect 87 ldquoThe great novelty in the poem is the method of argument [hellip] This method Parmenides
carries out with utmost rigourrdquo 260Zafiropulo 1950 p 48 ldquoMais ce sont meacuterites intriacutensegraveques [hellip] qui rendent leacutecole dEacuteleacutee immortelle [hellip] quelle
avait la premiegravere mis em lumiegravere les antinomiesrdquo 261Jameson 1958 p 15 [O poema traz em uma das quatro sessotildees] ldquoA discussion of principles which lays down
certain axioms and traces their implications (B 23 6 7) rdquo 262Stannard 1960 p 530 Um exemplo da insatisfaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos criacuteticos estaacute nestas palavras (dirigidas a Vastos)
ldquoThus Vlastos assertion that Parmenides most important single contribution to the history of thought was his
projection of the logic of Being upon the alien world of Becoming would be hard to deny in the absence of
knowing what Vlastos considers the nature of logic to berdquo (p 527) O texto ao qual Stannard se refere estaacute em
Vlastos (1946 p 76)
215
segundo o testemunho de Charles Kahn263 se teve necessariamente que responder Uma obra
importante e influente desse ponto de vista foi a de Guido Calogero o qual na sua anaacutelise da
loacutegica parmenidiana depois de ter feito derivar as concepccedilotildees de Parmecircnides mais uma vez da
liacutengua grega (concepccedilotildees que natildeo poderiam surgir se ele falasse outro tipo de liacutengua) afirma ateacute
mesmo que ldquoA histoacuteria da loacutegica ocidental eacute neste sentido a histoacuteria dos esforccedilos com os quais o
pensamento lentamente de liberta da servidatildeo parmenidianardquo264 A criacutetica a este tipo de postura do
ponto de vista filosoacutefico eacute faacutecil antes de tudo explicar uma concepccedilatildeo filosoacutefica com uma
concepccedilatildeo linguiacutestica natildeo explica apenas desloca o problema da filosofia agrave linguiacutestica depois
obviamente uma explicaccedilatildeo linguiacutestica de tipo teacutecnico natildeo explica a questatildeo filosoacutefica evidenciada
pelo problema linguiacutestico e para entendecirc-la teriacuteamos que recair na filosofia de novo desta vez na
filosofia da linguiacutestica ou da linguagem com o resultado de ver voltar pela porta de traacutes o que
expulsamos pela porta da frente e o proacuteximo passo seria a explicaccedilatildeo da linguagem pelas estruturas
cognitivas e depois psicoloacutegicas e bioloacutegicas etc numa sequecircncia de reducionismo que vai
repropor inexoravelmente o mesmo problema filosoacutefico cada vez com uma roupagem diferente
Embora estudos como esses de Kahn e Calogero natildeo tenham ajudado muito na minha
opiniatildeo na compreensatildeo filosoacutefica de Parmecircnides ajudaram consideravelmente no
aprofundamento dos estudos filoloacutegicos e na melhor articulaccedilatildeo do texto do poema
Simultaneamente uma melhor compreensatildeo filosoacutefica veio mais propriamente da produccedilatildeo
263Kahn 2003 p Viii ldquoThus my original project was philological and hermeneutical However this project was altered
by my concern with the attacks on this concept from relativists and positivists who claimed that the metaphysics
of Being resulted simply from linguistic confusion or from the reification of local peculiarities of vocabularyrdquo 264Calogero 1967 p 153 ldquoLa storia della logica occidental egrave in questo senso la storia degli sforzi con cui il pensiero
lentamente si affranca dalla servitugrave parmenideardquo
216
filosoacutefica da primeira metade do seacuteculo XX refiro-me a pensadores como Nietzsche Bergson
Heidegger Sartre e outros numa onda de propostas que estimularam a busca de antigas referecircncias
para novas concepccedilotildees Os resultados foram os endereccedilos heideggerianos e mais genericamente
contemporacircneos no estudo da filosofia antiga mas tambeacutem os endereccedilos parmenidianos no
desenvolvimento da filosofia contemporacircnea como por exemplo um movimento chamado de neo-
parmenidismo italiano cujo primeiro representante Severino propotildee uma reflexatildeo sobre o devir
a partir de um artigo dos anos 60 Ritornare a Parmenide E ainda por outro lado os estudos de
Loacutegica encontraram um vigor jamais visto antes antes de tudo com os claacutessicos como Frege mas
depois na primeira metade do seacuteculo XX com grandes loacutegicos como Russell e Goumldel Todas estas
premissas redundaram num extraordinaacuterio desenvolvimento dos estudos preacute-socraacuteticos e mais
especificamente parmenidianos com grandes estudiosos muitos dos quais citados aqui neste
trabalho
Especificamente em relaccedilatildeo agrave loacutegica de Parmecircnides o desenvolvimento das assim chamadas
loacutegicas natildeo claacutessicas fez com que natildeo soacute a aporia eleaacutetica natildeo fosse mais desprezada descartada
ou desconsiderada como acontecia antes mas se tornasse emblema de uma maneira de ver o
mundo que se compraz ateacute mesmo em criar novos mundos265 Assim as loacutegicas atuais criam
mundos impossiacuteveis escherianos e aporeacuteticos e tecircm em Parmecircnides o seu xodoacute uma referecircncia
certa e certeira justamente naquela ambiguidade entre ser e devir entre mutaacutevel e imutaacutevel outrora
265Um panorama das muitas vertentes das loacutegicas natildeo claacutessicas (e de alguns dos debates entre elas) pode ser visto em
Teorie dellassurdo (Berto 2006) Nesse livro eacute possiacutevel constatar a importacircncia do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo
na loacutegica atual e sobretudo a importacircncia da noccedilatildeo de natildeo ser implicada em cada vertente Soacute para dar um exemplo
o livro mostra uma parte da discussatildeo a respeito da negaccedilatildeo dacostiana (aquela utilizada por Newton da Costa na
sua elaboraccedilatildeo de certos sistemas paraconsistentes) a qual natildeo eacute considerada por muitos como uma autecircntica
negaccedilatildeo (Veja-se o artigo nas pp 132-5)
217
causa de indignaccedilatildeo natildeo soacute entre os filoacutesofos mas entre os proacuteprios loacutegicos A esta criatividade da
loacutegica contemporacircnea deve se acrescentar que os estudos de histoacuteria da loacutegica tendem a
redimensionar a visatildeo aritotelico-cecircntrica da loacutegica antiga e claacutessica266 De fato os novos estudos
se propotildeem a elucidar as necessaacuterias premissas culturais a partir das quais Aristoacuteteles trabalhou
com ampla importacircncia dada a Parmecircnides e ao eleatismo como um todo267 Assim de um tempo
para caacute os estudos sobre Parmecircnides se multiplicam ao ponto de que natildeo bastam mais artigos para
tratar de aspectos especiacuteficos mas se recorre a textos mais longos livros porque o aprofundamento
e a articulaccedilatildeo continua requerendo cada vez mais espaccedilo principalmente quando se trata de textos
de inesgotaacutevel riqueza como o de Parmecircnides Assim ldquoParmenide e la negazione del tempordquo268
ldquoParmenide scienziato269rdquo ldquoDie Konzeption des noein bei Parmenides von Eleardquo270 e muitos
outros incluindo o presente trabalho que tambeacutem estuda um aspecto especiacutefico do poema
Na literatura atual parmenidiana mais geral jaacute se aceita (mas jaacute se aceitava antes como
vimos e ateacute mesmo Simpliacutecio jaacute aceitava271) que Parmecircnides fazia uso mais ou menos consciente
do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo272 Na literatura atual ligada agrave loacutegica ou agrave histoacuteria da loacutegica poreacutem
266Bochenski 1961 Kneale 1962 267Para um panorama da problemaacutetica cfr Sardo (1985) e para algum desenvolvimento cfr Mason (2000) 268Pulpito (2005) 269Cordero et al (2008) 270Marcinkowska-Rosol (2010) 271Simpliacutecio In Physica 117 2-3 ldquoQue as proposiccedilotildees em contradiccedilatildeo natildeo sejam verdadeiras ao mesmo tempo ele o
diz com aquelas palavras com as quais censura aqueles que unem os opostosrdquo (ὅτι δὲ ἡ ἀντίφασις οὐ συναληθεύει
δι ἐκείνων λέγει τῶν ἐπῶν δι ὧν μέμφεται τοῖς εἰς ταὐτὸ συνάγουσι τὰ ἀντικείμενα) 272Num trabalho singular Imbraguglia acredita encontrar no poema dois inteiros sistema axiomaacuteticos No entanto ele
acha que a noccedilatildeo de contraditoriedade ainda natildeo estava inteiramente clara falando de certa sua suposiccedilatildeo a respeito
de algumas passagens do poema ele diz ldquoo fato que Parmecircnides pudera acreditar nisto [uma suposta contradiccedilatildeo
explicada anteriormente] demontra que a noccedilatildeo de contraditoriedade ainda natildeo era de todo clarardquo (ldquoil fatto che
Parmenide lo abbia potuto credere dimostra che la nozione di contraddittorietagrave non era stata ancora del tutto
chiaritardquo Imbraguglia 1974 p 151 n 73) Por estas palavras parece que a noccedilatildeo de contraditoriedade eacute uma uacutenica
e absoluta uma noccedilatildeo simplesmente a ser alcanccedilada coisa que Parmecircnides natildeo teria feito e que noacutes modernos
218
se aceita mais explicitamente e quase sem rodeios Veja-se esse exemplo o autor Paul Thom sem
maiores explicaccedilotildees afirma
The parmenidean formulations are
Never will this prevail that what is not is (B71 Barnes translation)
For neither is there anything which is not (B846 Barnes translation)273
Depois de uma raacutepida comparaccedilatildeo com as formulaccedilotildees de Platatildeo e de Aristoacuteteles afirma que
a foacutermula do princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo de Parmecircnides eacute esta (NC) Not (what-is-not is)274 Eu
natildeo acho que os loacutegicos tenham que ser menos concisos do que satildeo no entanto tenho fortes
duacutevidas de que um leitor natildeo versado no poema de Parmecircnides e na literatura que tenta interpretaacute-
lo a partir das ldquoexplicaccedilotildeesrdquo loacutegicas desse tipo tenha alguma chance de entender o que eacute para
Parmecircnides what-is-not e o que significa (what-is-not is) e porque tenha que ser negado Not (what-
is-not is) Simplificaccedilotildees similares acontecem na maioria dos estudos que compulsei e o hiato estaacute
afinal configurado de um lado temos os estudos de histoacuteria da filosofia antiga que se dedicam
principalmente agrave ontologia ou agrave epistemologia parmenidiana do ponto de vista do ser e de outro
lado temos os estudos de tipo mais analiacutetico ou os estudos dos loacutegicos que pecam no
aprofundamento da mensagem filosoacutefica do eleata
O trabalho aqui presente tentou se colocar nesse hiato mostrando com o instrumental da
histoacuteria da filosofia (e natildeo com o instrumental da loacutegica) que haacute uma clara consciecircncia em
fizemos Penso que a realidade histoacuterica e a filosoacutefica sejam diferentes As noccedilotildees satildeo histoacutericas e portanto
relativas a sua eacutepoca ademais do ponto de vista filosoacutefico a noccedilatildeo de contraditoriedade utilizada por Imbraguglia
eacute muito mais limitada do que aquela proposta por Parmecircnides 273Thom 1999 p 153 274ib p 154
219
Parmecircnides antes de tudo do problema inicial a distinccedilatildeo do discurso confiaacutevel do natildeo confiaacutevel
e depois do estabelecimento de um autecircntico meacutetodo filosoacutefico apoiado na rocha dura da ontologia
incontrovertiacutevel Da reflexatildeo cosmoloacutegica agrave elaboraccedilatildeo discussatildeo e aplicaccedilatildeo do meacutetodo tudo eacute
consciente em Parmecircnides incluindo-se aiacute a proacutepria palavra contradiccedilatildeo utilizada pela primeira
vez por ele e destinada a permanecer e que somente uma visatildeo aritstoteacutelico-cecircntrica impediu de
enxergar antes embora esteja claramente no poema em vaacuterias passagens por exemplo em οὔτε
φράσαις (DK B 28 natildeo diraacutes) ou entatildeo mais proacuteximo agrave nossa expressatildeo que eacute impessoal οὐ
φατὸν (DK B 88 natildeo diziacutevel)275
Assim o Preceito da Deusa desde o poema de Parmecircnides passando pelas primeiras
modificaccedilotildees platocircnicas e aristoteacutelicas chega ateacute nossos dias pelo lado loacutegico como objeto de
atenccedilatildeo das loacutegicas natildeo claacutessicas e pelo lado da ontologia como objeto da atual discussatildeo
filosoacutefica ateacute mesmo poacutes-moderna276
275Veja-se esta elaboraccedilatildeo de Berti ldquoPode-se dizer que a primeira apariccedilatildeo oficial da contradiccedilatildeo ndash embora ainda natildeo
chamada com seu nome ndash na histoacuteria da filosofia acontece entre o VI e o V seacuteculo ordf C no poema de Parmecircnides
O sentido mais oacutebvio da contraposiccedilatildeo entre as duas famosas vias [] eacute de fato aquele de uma oposiccedilatildeo entre
afirmaccedilatildeo (kataphasis) e negaccedilatildeo (apoacutephasis) isto eacute aquilo que depois seraacute chamada por Aristoacuteteles de
contradiccedilatildeo (antiacutephasis)rdquo Berti (1987 p 13) A linguagem aristoteacutelica eacute atribuiacuteda diretamente a Parmecircnides sem
que sequer Parmecircnides tenha oposto ou colocado em contradiccedilatildeo as duas vias 276Veja-se um panorama em Priest et alii 2004
220
6 CONCLUSAtildeO
Este estudo procurou evidenciar a noccedilatildeo de natildeo ser em Parmecircnides Embora a historiografia
poacutes-hegeliana tenha preferido se dedicar ao tema do ser Parmecircnides fala amplamente do natildeo ser
e utiliza amplamente a forma gramatical negativa e a argumentaccedilatildeo pela negaccedilatildeo No entanto a
noccedilatildeo de natildeo ser que pelos documentos que possuiacutemos resulta ser historicamente uma novidade
introduzida pelo eleata no pensamento ocidental uma autecircntica estreia natildeo podia ser fruto se natildeo
de uma reflexatildeo criativa dada a sua natureza semacircntica de natildeo se referir a nenhuma positividade
da realidade
A natureza reflexiva do saber preacute-parmenidiano natildeo estaacute documentada e apesar da cultura
difusa do ldquoΓνῶθι σαυτόνrdquo e do testemunho de Heraacuteclito do ldquoἐδιζησάμην ἐμεωυτόνrdquo (este
provavelmente posterior a Parmecircnides) o saber atribuiacutedo tanto aos mileacutesios quanto aos pitagoacutericos
eacute mais um saber voltado agrave compreensatildeo da realidade externa do que ao conhecimento do sujeito
O poema parmenidiano eacute o primeiro a apresentar uma preocupaccedilatildeo com o pensamento e com seu
papel no conhecimento da realidade mas os criacuteticos pouco se dedicaram a estudar natildeo o que
Parmecircnides diz do pensamento mas o que ele diz do pensar Para estabelecer uma geneacutetica miacutenima
da noccedilatildeo de natildeo ser era necessaacuterio verificar a preocupaccedilatildeo de Parmecircnides com o pensar de forma
a justificar ndash se os resultados o permitissem ndash um interesse pela atividade cognitiva concreta e pelo
seu funcionamento
Foi assim que como certos artesatildeos que inventam e constroem suas proacuteprias ferramentas
especiacuteficas para certas manufaturas especiacuteficas tivemos que investigar se e em que medida
Parmecircnides se dedicou ao estudo do pensar de forma a definir algumas noccedilotildees que pudessem
ajudar a entender natildeo soacute o natildeo ser dentro da ontologia parmenidiana mas principalmente o natildeo ser
221
como objeto especiacutefico das atenccedilotildees do eleata Empreendemos assim a verificaccedilatildeo ao longo da
letra do poema da presenccedila de noccedilotildees relacionadas ao comportamento da mente humana ou seja
a verificaccedilatildeo de noccedilotildees que revelassem o Parmecircnides psicoacutelogo Esclarecido o fato de que
buscaacutevamos o Parmecircnides psicoacutelogo no sentido moderno da palavra ndash possivelmente um psicoacutelogo
que chamariacuteamos de cognitivista e natildeo psicoacutelogo cliacutenico como o clichecirc cultural atual tende a
pensar ndash diferenciando-o do sentido tradicional de estudioso da alma (conceito ambiacuteguo
atualmente) passamos a estudar o poema exaustivamente Tambeacutem para este estudo tivemos que
construir uma nossa ferramenta especiacutefica que consistiu numa traduccedilatildeo especiacutefica do verbo noein
e de seus cognatos a traduccedilatildeo utilizada foi tomada da caracterizaccedilatildeo oferecida por Parmecircnides
uma dinacircmica da mente em sua atividade de conhecimento (DK B 22) que nos permitiu chegar a
uma terminologia esteticamente improacutepria para um poema de 25 seacuteculos de idade mas com um
potencial de esclarecimento muito grande para a nossa sensibilidade atual operaccedilotildees cognitivas
da mente Os resultados natildeo demoraram a aparecer e aleacutem da constataccedilatildeo de que Parmecircnides foi
um autecircntico e bom observador do comportamento da mente humana tanto individual quanto em
grupos sociais chegamos a um conceito essencial para o estudo do natildeo ser presente virtualmente
no poema pela presenccedila da recusa de seu oposto Parmecircnides diz que os mortais que nada sabem
natildeo tecircm os recursos (DK B 65 ἀμηχανίη singular no grego) afirmando virtualmente que o homem
saacutebio tem esses recursos ἡ μηχανή Graccedilas a esta noccedilatildeo foi possiacutevel estabelecer que a diferenccedila
entre os mortais que nada sabem e o homem saacutebio instruiacutedo pela deusa eacute um recurso do pensar
(natildeo do pensamento posto que o pensamento eacute o resultado do pensar) isto eacute de sua atividade
cognitiva O processo de varredura do poema em busca de noccedilotildees psicoloacutegicas foi interrompido
diante daquelas partes que requeriam a noccedilatildeo de natildeo ser uma noccedilatildeo ainda natildeo clara no capiacutetulo 1
e somente retomado e concluiacutedo no capiacutetulo 3 depois da posse daquela noccedilatildeo
222
A ausecircncia da μηχανή nos mortais e sua presenccedila no homem saacutebio geraram dois
correspondentes problemas 1) em que consiste esta deficiecircncia e 2) em que consiste o recurso A
deficiecircncia Parmecircnides nos diz consiste na confusatildeo entre ser e natildeo ser o recurso entatildeo
necessariamente tem que ser um instrumento que diferencie ser de natildeo ser Tratava-se portanto de
buscar uma definiccedilatildeo autocircnoma do natildeo ser que o distinguisse completamente da noccedilatildeo de ser Foi
o que fizemos na primeira parte do segundo capiacutetulo
A anaacutelise do fragmento 2 teve como referecircncia o modelo sintaacutetico (mas natildeo semacircntico) da
citaccedilatildeo feita por Platatildeo (Sofista) daquela que eacute por razotildees intrinsecamente filosoacuteficas e por razotildees
circunstanciais reveladas por Platatildeo a essecircncia da filosofia parmenidiana a oposiccedilatildeo radical entre
ser e natildeo ser Desta forma foi possiacutevel evitar a discussatildeo desde o iniacutecio da complicada e
problemaacutetica interpretaccedilatildeo do ἔστιν sem sujeito de DK B 23 pois o seu natildeo esclarecimento natildeo
comprometia a metodologia que seguimos posto que a referecircncia platocircnica relacionando ser e natildeo
ser garantia a possibilidade se obter a noccedilatildeo do ser (e portanto do ἔστι) a partir daquela de natildeo ser
O primeiro dado a emergir foi a discussatildeo feita por Parmecircnides a respeito da persuasatildeo Esta
persuasatildeo eacute um momento do ato cognitivo que se potildee entre o objeto e a sua apreensatildeo correta por
parte do sujeito em outras palavras Parmecircnides tinha consciecircncia de que eacute possiacutevel se convencer
e julgar verdadeiros tanto os discursos verdadeiros quanto os enganosos Assim a busca
parmenidiana devia verter sobre um tipo de recurso que fosse extra-mental um mecanismo de
controle dissociado da espontaneidade reflexiva do homem comum que pudesse escapar da
armadilha da persuasatildeo que faz considerar verdadeiro ateacute mesmo o que verdadeiro natildeo eacute Isto
comporta a recusa de algum comportamento mental espontacircneo em favor de um comportamento
mental corrigido artificialmente
A anaacutelise do fragmento 2 revelou que o comportamento mental a ser recusado eacute a noccedilatildeo de
223
natildeo ser como de algo de alguma forma existente O pensamento espontacircneo (o dos mortais)
considera o natildeo ser como algo que embora natildeo sendo o mesmo eacute o mesmo que o ser Parmecircnides
recusa que o natildeo ser tenha algum valor cognitivo e com surpreendente lucidez filosoacutefica afirma
que o natildeo ser eacute uma noccedilatildeo impossiacutevel (para as operaccedilotildees cognitivas) pois natildeo pode ser indicado
(οὔτε φράσαις) e natildeo pode ser pensado (οὔτε ἂν γνοίης) Com esta noccedilatildeo de impossibilidade do
natildeo ser se estabeleceu o princiacutepio ontoloacutegico de Parmecircnides o natildeo ser eacute impossiacutevel a partir da
reflexatildeo concreta da impossibilidade de negar o que existe A passagem da negaccedilatildeo da existecircncia
do ente individual para a negaccedilatildeo de todos os entes e afinal do ser enquanto todo interrompe a
discussatildeo sobre as funccedilotildees gramaticais (e linguiacutesticas) de einai e seus cognatos (como por
exemplo a diferenciaccedilatildeo entre sentido existencial predicativo veritativo e outros) posto que a
(tentativa da) negaccedilatildeo do todo anula as referecircncias linguiacutesticas e se coloca em territoacuterio
francamente filosoacutefico procurando refletir os pressupostos cognitivos (e portanto tambeacutem os
pressupostos da linguagem) que satildeo origem e natildeo consequecircncia das funccedilotildees linguiacutesticas Foi
assim identificada uma reflexatildeo genuinamente metafiacutesica a respeito dos limites e do aleacutem-limites
do pensar Parmecircnides estabelece o que eacute impossiacutevel de ser pensado (e dito) a esta impossibilidade
daacute o nome de natildeo ser
Estabelecida a noccedilatildeo de natildeo ser como uma virtualidade imaginada pelo pensar mas ao
mesmo tempo uma impossibilidade concreta do pensar chegamos antes de tudo agrave definiccedilatildeo da
noccedilatildeo de natildeo ser o natildeo ser eacute a impossibilidade de pensar e dizer logo eacute o que se opotildee agrave
possibilidade de dizer (e pensar) o natildeo ser eacute contra o dizer (e pensar) o natildeo ser eacute contra-dictoacuterio
(do latim dico) eacute contraditoacuterio Por este motivo por ser contraditoacuterio o segundo caminho (DK B
25) deve ser evitado O outro uacutenico caminho eacute aquele que recusa a contradiccedilatildeo do natildeo ser e que
deve ser seguido eacute aquele que Parmecircnides chama de caminho da persuasatildeo que acompanha a
224
verdade assim formulado eacute e eacute impossiacutevel que seja contradiccedilatildeo este caminho que se afasta do
outro do caminho do natildeo eacute e que eacute necessaacuterio que seja natildeo ser uma necessidade que identifica
aquela virtualidade da qual se manter afastados
Com as duas noccedilotildees de natildeo ser e ser jaacute esclarecidas no paraacutegrafo seguinte passamos a
examinar a discussatildeo que Parmecircnides faz a respeito dessas noccedilotildees Enquanto no fragmento 2 a
deusa explica questotildees relativas agrave formas impossiacuteveis e natildeo impossiacuteveis de pensar nos fragmentos
6 e 7 ela discute a posiccedilatildeo comum e sua origem numa confusatildeo cognitiva perpetrada pelos haacutebitos
culturais Por isso para que o disciacutepulo natildeo seja levado a pensar como os mortais ela oferece seu
preceito que chamamos de Preceito da Deusa onde afirma que eacute preciso se manter afastados da
concepccedilatildeo que faz com que os natildeo entes sejam O disciacutepulo deve negar que o natildeo ser eacute pois
somente o ser eacute e afinal como sintetizamos no paraacutegrafo anterior em relaccedilatildeo ao argumento algo
natildeo pode ser e natildeo ser Este princiacutepio eacute o primeiro modelo historicamente identificaacutevel daquele
que viraacute a ser conhecido como princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo Para diferenciaacute-lo dos princiacutepios
platocircnicos e aristoteacutelico e os demais que a moderna loacutegica nos traz o chamamos de Preceito da
Deusa tentando manter assim algo de sua caracteriacutestica originaacuteria a mitologia terreno sobre o
qual nasceu o assim chamado pensamento racional
No terceiro paraacutegrafo vimos o Preceito da Deusa em accedilatildeo e nos limitamos exatamente agrave sua
accedilatildeo sem entrar na discussatildeo ontoloacutegica e cosmoloacutegica que a proposta parmenidiana traz
Descobrimos assim que o Preceito da Deusa eacute a ferramenta principal a partir da qual Parmecircnides
forma uma imagem de mundo uacutenica na histoacuteria do pensamento ocidental aparentemente defendida
por Zenatildeo mas pelo que se sabe seguida apenas por Melisso Do ponto de vista loacutegico o Preceito
da Deusa a μηχανή capaz de garantir a persuasatildeo verdadeira natildeo conseguiu explicar as opiniotildees
dos mortais como o proacuteprio Parmecircnides admite e alerta Mas forte em seu meacutetodo Parmecircnides
225
natildeo abre matildeo do Preceito e prefere manter separados os dois discursos o verdadeiro presidido
pelo Preceito da Deusa e o discurso de ordem enganadora natildeo presidido pelo Preceito da Deusa
deixando em aberto com admiraacutevel honestidade intelectual uma eventual unificaccedilatildeo destes dois
mundos
Jaacute no terceiro capiacutetulo revimos os resultados obtidos tanto na noccedilatildeo de natildeo ser quanto a
respeito do preceito da Deusa Constatamos que a aporia eleaacutetica reportada como exemplo
negativo pelos doxoacutegrafos que comentavam Aristoacuteteles readquiriu focirclego modernamente
exatamente na medida em que a filosofia aristoteacutelica vai perdendo sua centralidade na filosofia jaacute
com Hegel que considera Parmecircnides o primeiro e verdadeiro filoacutesofo e mais recentemente na
ontologia colocando novamente em discussatildeo a possibilidade de um tracircnsito entre o ser e o nada
tracircnsito negado por Parmecircnides mas resgatado primeiro por Platatildeo e depois por Aristoacuteteles e na
loacutegica onde o Preceito da Deusa readquiriu forccedila exatamente com aquelas loacutegicas natildeo-claacutessicas
que passaram a trabalhar sem o predomiacutenio da loacutegica aristoteacutelica e de seu princiacutepio de natildeo-
contradiccedilatildeo
Dentro deste debate atual se situa o presente trabalho que procurou esclarecer ou ao menos
esclarecer um pouco mais as noccedilotildees de natildeo ser e sua hipoacutestase virtual o nada a partir dos quais
pode se entender um pouco mais claramente o Preceito da Deusa referecircncia do pensar no eleatismo
Assim o autor espera ter contribuiacutedo por um lado a este debate atual e por outro lado no campo
mais propriamente da histoacuteria da filosofia antiga ao esclarecimento da para noacutes singular maneira
de pensar dos preacute-socraacuteticos
226
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