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L ÉGUA MEIA Ensaio Fotográfico: Juraci Dórea Juraci Dórea O PRESÉPIO SERTANEJO de Crispina dos Santos Certa feita, em conversa que foi registrada pela professora Selma Soares, a ceramista feirense Crispina dos Santos confessou que em seus tempos de menina “jogava o ABC fora, no mato, para ir pegar no barro” e que chegava até a deixar “de comer para fazer figuras”. À parte o arrependimento da ceramista por não ter aprendido a ler na época em que teve oportunidade, o depoimento revela o seu apego, desde cedo, a uma atividade que a acompanharia praticamente por toda a vida: a modelagem de pequenas figuras de barro para o presépio. Hoje, com quase 80 anos de idade e com a saúde debilitada, ela já não tem condições de trabalhar. Suas peças, no entanto, podem ser encontradas na Casa do Sertão, da Universidade Estadual de Feira de Santana, e em mãos de uns poucos colecionadores da cidade, mas, pela fragilidade dos materiais com que foram confeccionadas, tendem a desapa- recer. Este ensaio fotográfico é o registro de uma pequena parte da obra de Crispina dos Santos e mostra trabalhos realizados nas décadas de 80 e 90. a a a a

O PRESÉPIO SERTANEJO de Crispina dos Santos - uefs.br · LÉGUA & MEIA: REVISTA DE LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL — 101 Ensaio Fotográfico: Jur aci Dórea Juraci Dórea O PRESÉPIO

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LÉ G U A & ME I A : R E V I S T A D E L I T E R A T U R A E D I V E R S I D A D E C U L T U R A L — 101

Ensaio Fotográf ico: Juraci Dórea

Juraci Dórea

O PRESÉPIO SERTANEJOde Crispina dos Santos

Certa feita, em conversa que foiregistrada pela professora Selma Soares, aceramista feirense Crispina dos Santosconfessou que em seus tempos de menina“jogava o ABC fora, no mato, para ir pegarno barro” e que chegava até a deixar “decomer para fazer figuras”. À parte oarrependimento da ceramista por não teraprendido a ler na época em que teveoportunidade, o depoimento revela o seuapego, desde cedo, a uma atividade que aacompanharia praticamente por toda avida: a modelagem de pequenas figuras debarro para o presépio. Hoje, com quase 80anos de idade e com a saúde debilitada,ela já não tem condições de trabalhar. Suaspeças, no entanto, podem ser encontradasna Casa do Sertão, da UniversidadeEstadual de Feira de Santana, e em mãosde uns poucos colecionadores da cidade,mas, pela fragilidade dos materiais com queforam confeccionadas, tendem a desapa-recer. Este ensaio fotográfico é o registrode uma pequena parte da obra de Crispinados Santos e mostra trabalhos realizadosnas décadas de 80 e 90.

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A cerâmica representava, até poucas décadas atrás,uma das mais significativas manifestações da cultu-ra popular em Feira de Santana. Como em outrasregiões do Estado da Bahia, também na cidade emque se abrem as portas do sertão, ela assumia duasexpressões bem distintas. A primeira, de cunho uti-litário, era chamada de “louça de barro” e consistiaem utensílios para uso doméstico, como potes,panelas, porrões, pratos, frigideiras, tachos,cuscuzeiros, alguidares, caburés, fogareiros etc.

Esse tipo de cerâmica, no caso específico de Fei-ra de Santana, apresentava feição rústica e decoraçãoextremamente simplificada. Produzida na zona ru-ral por oleiras que utilizavam procedimentos técni-cos rudimentares e um barro muito poroso, mos-trava, em geral, pouca resistência. Ainda assim, cos-tumava fazer parte do cotidiano dos lares feirenses,sendo procurada por pessoas de todas as camadassociais. Até hoje reconhece-se que certos pratos tra-dicionais da culinária baiana – moquecas e feijoadas,por exemplo – têm sabor especial quando prepara-dos em vasilhame de barro.

O consumo da louça de barro chegou a ser tãodifundido entre a população que na antiga feira livre– que às segundas-feiras ocupava quase todo o cen-tro da cidade – havia um local denominado de “fei-ra das panelas”, onde podiam ser encontrados co-merciantes dos mais diversos tipos de utensílioscerâmicos e, principalmente, as louceiras da região.

A outra faceta relevante da cerâmica feirense erarepresentada pelas figuras para presépios. Confecci-onadas apenas no período que precedia o Natal,essas pequenas e expressivas peças feitas de barro

cru destinavam-se, em princípio, aos presépios lo-cais, também conhecidos como lapinhas. Ou seja,ao contrário de muitos lugares, não eram brinque-dos ou simples objetos de decoração, tinham a fina-lidade de dar vida aos cenários criados pelo povopara evocar o sítio e as circunstâncias do nascimentode Jesus Cristo. Assim, em meio a inventivasambientações – que incluíam musgos, galhos desapateira, gravatás, casario recortado em cartolina,areia, pedras, búzios, montanhas elaboradas compapel pintado, lagos feitos com espelho etc. –, asfiguras de barro assumiam papel fundamental, querenriquecendo plasticamente a cena, quer compondoa iconografia da Natividade, quer estabelecendo amediação entre o relato bíblico e o imaginário po-pular sertanejo.

Sabe-se que a tradição dos presépios chegou aoBrasil via colonização portuguesa, incorporando-sedefinitivamente à cultura nacional a partir do séculoXVIII. No princípio, os presépios eram ligados ape-nas à Igreja. Com o tempo, entretanto, populariza-ram-se, tornando-se um costume que alcançou asresidências, independentemente da classe social. Nes-se sentido, explica a professora Vânia Bezerra deCarvalho, a evolução dos presépios assumiu direcio-namento duplo: “os das igrejas, que, feitos por ar-tistas, acompanharam a evolução dos períodos ar-tísticos – dita arte erudita – e os que, se introduzin-do nos lares, passam a serem feitos ao gosto dosleigos. Observamos, deste modo, diferentes linhasde tratamento das imagens e cenários nas represen-tações do presépio, ao longo da sua trajetória.” (Car-valho, 1990, p. 6)

Presépio sertanejo

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Em outras palavras, o desenvolvimento dos pre-sépios em mais de uma direção, entre outros aspec-tos, estimulou o surgimento de novas interpreta-ções dos componentes típicos da cena da Nativida-de, fazendo-os assumir facetas e expressões varia-das, segundo o lugar e o contexto cultural em queestavam inseridos.

Em Feira de Santana, o costume de armar presé-pio perde-se no tempo, mas, nas versões de que setem notícia, há constantes alusões à presença dasfiguras de barro. Na década de 50, por exemplo, oestudioso Carlos José da Costa Pereira, pesquisandoa cerâmica popular realizada na Bahia, registrou nacidade o costume de modelar figuras para o presé-pio. Chamando a atenção para a diversidade temáticade tais figuras, escrevia ele: “temos as peças de Feirade Santana, modeladas em barro cru e pintadas comanilina ordinária, descorando-se facilmente. Diver-sos são os temas explorados – velha fumando ca-chimbo (com a cabeleira de algodão); casal de noi-vos, com vestes de papel crepom, ela com véu defiló; homem na canoa, casal na praia, jegue com pi-pas d’água, galos, bois, cavalos... – sendo que, devez em quando, surgem peças com aplicações depurpurina.” (Pereira, 1957, p. 119-120)

Cumpre considerar que a modelagem dessas fi-guras – seguindo uma tradição já existente na pro-dução da cerâmica utilitária local – era uma atividadepredominantemente feminina. Envolvendo, emgeral, as camadas mais pobres da população, o atode fazer figuras representava para muitas mulheres,no período das festas natalinas, a possibilidade decomplemento do sempre apertado orçamento do-méstico. O jornalista Lucílio Bastos, que alcançou o

tempo das grandes “fazedeiras de figuras” de Feirade Santana, comenta:

“Muitas faziam apenas para o próprio presé-pio. Outras acumulavam durante meses em umquarto, na sala, embaixo da cama e, quando esta-vam bem sequinhas, pintavam de alvaiade e anilinade todas as cores e na feira do Natal lá estavam elasno passeio do mercado vendendo-as por 500 réis.”(Bastos, 1977, p. 6)

A comercialização das figuras, inicialmente, acon-tecia dentro do próprio Mercado Municipal, sem-pre no período do Natal. Depois, passou a ser feitana área externa, no passeio que dá para a praça JoãoPedreira. No interior do mercado, as “fazedeiras defiguras” arrumavam em linha suas bancas improvi-sadas, dotando o velho estabelecimento, abarrota-do de sacos de farinha, feijão, milho e de toda sortede produtos regionais, de um colorido todo parti-cular. E não eram poucas as “fazedeiras de figuras”de Feira de Santana. Com uma ponta de nostalgia,é ainda Lucílio Bastos quem evoca os muitos no-mes: “a minha cabeça ficou povoada de lembran-ças. Desfilaram uma após outra, Crispina, Caíta,Eulina, Judite, Narcisa, Maria de Ostílio, Antídia,todas fazendo cavalos, bois, homens, mulheres,reis, aves, um mundo de coisas moldadas na argilavisguenta da pedreira de Dona Pomba, ou de terraslá do DNER, quando a Rio-Bahia ainda não co-nhecia o asfalto. D. Gininha quando estava deboa maré, também fazia. (Bastos, 1977, p. 6)

No universo acima referido, um nome semprese destacou entre os demais, não apenas por estarassociado a uma longa e persistente labuta com obarro, mas, sobretudo, pelo caráter inventivo e sin-

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gular de suas figuras: o da ceramista Crispina dosSantos. Nascida num povoado denominado deCamondongo, nas proximidades de Humildes, dis-trito de Feira da Santana, em 25 de outubro de 19271 ,ela passou a infância na zona rural, onde aprendeucom sua mãe, Lúcia dos Santos, uma das muitaslouceiras do município, a lidar com o barro.

Em entrevista gravada pelo professorRaymundo Luiz Lopes, na década de 80, ela explica:“Com idade de 8 a 9 anos2 eu comecei a aprender,mãe fazia louça, eu fazia um bocado de caburé, mãefazia, eu fazia tombém, depois mãe fazia figura, eutombém fazia figura”. (Santos, 1982, p. 89)

Algumas louceiras, é verdade, na época do Na-tal, além das peças utilitárias, costumavam confecci-onar as figuras destinadas aos presépios. Desse am-biente teria nascido o contato da pequena Crispinacom a cerâmica e, em especial, com as figuras debarro. Com a morte de sua mãe, entretanto, ela foiforçada a mudar-se para a cidade de Feira de Santana,perdendo, ainda adolescente, os vínculos com asatividades e com o mundo de sua infância. A vidaurbana não lhe permitiu, obviamente, dar segui-mento ao ofício de louceira, porém não conseguiuapagar de todo suas vivências no esquecido povoa-do de Camondongo. Prova disso é que, logo emseguida, ela descobriria que também em Feira deSantana havia espaço, na época do Natal, para a mo-delagem de figuras de barro. A partir daí, Crispinados Santos nunca mais parou de fazer figura.

Não se deve pensar, no entanto, que a trajetóriada ceramista desenvolveu-se com facilidade, poisinúmeros foram os percalços de ordem domésticaque ela teve de superar para manter a sua paixão

pelas figuras de barro. Apesar das dificuldades, con-seguiu estabelecer, ao longo de quase toda a suavida, uma rotina que lhe permitia, no período queantecedia ao Natal, dedicar-se de corpo e alma à mo-delagem das figuras para presépios.

Algumas das figuras criadas pela ceramistafeirense, naturalmente, nasceram de suas vivênciasrurais. Outras surgiram da observação do ambienteurbano de Feira de Santana, numa fase em que acidade tinha feições e costumes bem diferentes dosde hoje em dia. Ainda estão vivos, na memória deCrispina dos Santos, os motivos que a inspiravame, também, a maneira como ela foi incorporando aoseu repertório criativo o mundo que a cercava. Dizque ao chegar em Feira de Santana já sabia fazer figu-ras, e acrescenta: “mas eu num fazia todos passoque tô fazeno hoje. Eu aprendi mais olhando as-sim, quando eu via no pasto um bocado de vacaparida, eu gravava, chegava em casa pegava um bolode barro e fazia igual, via um carneiro, via um cavalo,via um bode, eu fazia igual, via uma cachorra parida,eu olhava, gravava e fazia. Eu tinha vontade, gosta-va de olhar pra poder fazer as figura. (Santos, 1982,p. 89)

Essa vontade de apreender os elementos do co-tidiano remete ao processo de criação da ceramista,porém, mais do que isso, contribui para dar às suasfiguras um ar de vida e graça, distanciando-as doaspecto repetitivo que normalmente baliza o traba-lho artesanal. Não é difícil perceber que ela chegou aum estilo muito particular, distinto do praticadopelas demais “fazedeiras de figuras” feirenses, e quesuas peças alcançaram um nível expressional com-parável ao dos grandes ceramistas brasileiros.

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das nas Escrituras, ora na tradição oral, definindo oselementos essenciais do presépio. Assim é que, aocabo de certo tempo, certas presenças tornaram-seobrigatórias nos cenários concebidos para evocar achegada do Messias, entre elas: o Menino, o boi, oburro, os anjos, os pastores, Maria, José, os reismagos, a estrela e a gruta ou manjedoura.

Inicialmente esculpida ou pintada, a cena da Na-tividade ainda passaria pela famosa encenação feitapor São Francisco de Assis, em 1223, na aldeia deGreccio, antes de assumir, no século XVI, uma for-ma mais próxima da concepção que se tem hoje dopresépio, com figuras ou grupos de figuras isoladase sofisticados cenários.

Dentre os elementos anteriormente relaciona-dos, integravam o presépio idealizado por Crispinados Santos apenas o boi, o pastor, o anjo, os magose o Menino. Cada uma dessas figuras, no entanto,era interpretada pela ceramista de um modo peculi-ar, explicitando, por um lado, jeitos e conteúdos ser-tanejos e, por outro, a sua maneira de lidar com osagrado. Note-se que no seu presépio não havia,além do Menino, outras figuras de santos. Ela nun-ca se arriscou, por exemplo, a fazer as imagens deJosé ou da Virgem Maria – e mesmo o seu Meninoera elaborado de forma estilizada e em escala reduzi-da. “Eu não gostava de fazer porque... santo, agentefazer... fazer Nosso Senhor de barro!... Aí eu dizia:não faço não, que é um pecado... eu tinha medo...”(Santos, 2004), justificava-se. Igual sentimento di-ante do sagrado parecia ter também o famosoceramista brasileiro mestre Vitalino, que, segundoregistro do estudioso René Ribeiro, “respeitava tan-to o sagrado que nunca modelou nenhum santo

O elemento norteador de todo o trabalho deCrispina dos Santos era, sem dúvida, o presépio,mas isso estava longe de ser, tanto na forma quantonos significados, uma limitação. Primeiro, pela vi-são pessoal que a ceramista tinha a respeito do as-sunto; segundo, porque o presépio concebido porela estava visivelmente atrelado ao imaginário serta-nejo. Ou seja, acrescentava ao episódio de Belémtambém as cores, os personagens e os conteúdosregionais.

A iconografia católica que representa a Nativida-de, convém lembrar, não surgiu da noite para o dia.Foi, aos poucos, sendo consolidada, firmando-sena tradição oral e nas manifestações artísticas, emprincípios da nossa era. A celebração do nascimentodo Menino Jesus pelos cristãos, a rigor, inicia-se emfinais do século III, pois “é precisamente dessaaltura que datam os primeiros testemunhos re-ferentes a peregrinos que se dirigiam ao local donascimento de Cristo, a gruta de Belém.”(Gockerell, 1998, p. 7)

A primeira representação artística da Natividade,no entanto, segundo o estudioso Cláudio Pastro,foi realizada, no início do século IV, na tampa deum sarcófago. Trata-se de um baixo-relevo que seencontra no Museu das Termas, em Roma. Nessaimagem, observa Pastro, há uma árvore que “indicaa cabana, um pastor que medita apoiado a um bas-tão; um rústico cocho com folhas, no qual é coloca-do o menino envolto em faixas; e inclinados sobreele, as cabeças do burro e do boi.” (Pastro, 1993, p.224)

A partir do século IV, surgiram outras represen-tações plásticas do nascimento de Jesus, ora apoia-

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como boneco “ (Ribeiro, 1985, p. 74). Assim comoa ceramista de Feira de Santana, mestre Vitalinodissociava a criação de suas figuras da atividade dossanteiros, dizendo: “Isso fica para os imaginário”.(Ribeiro, 1985, p. 74)

Em contrapartida, Crispina dos Santos enriqueciaseu presépio com um mundo de coisas e seres ins-pirados no cotidiano sertanejo. Disso resulta umrepertório diversificado, cheio de poesia e imagina-ção, que pode ser reunido em cinco núcleos temáticos.São eles:

1. Animais: boi, onça, pavão, galo, cobra, galinha,cágado, coelho, carneiro, girafa, lagartixa, camaleão,pato, jumento, tatu, cisne, veado etc.

2. Formas humanas. Subdividido em:- Cenas de trabalho: mulher carregando lenha, mulher

com pote na cabeça, mulher pilando milho, mu-lher carregando cesta de frutas, mulher fazendorenda etc.

- Tipos regionais: violeiro, vaqueiro, caboclo, velha fu-mando cachimbo, baiana etc.

- Personagens bíblicos: Deus Menino, reis magos etc.- Outros: marinheiro, padre, estudante etc.3. Imagens míticas: sereia, anjo, Papai Noel.4. Grupos de figuras: pastor, pombal, vaca parida, ca-

samento, galinha com pintos etc.5. Registros urbanos: burrinho d’água.

As figuras de Crispina dos Santos chamam aatenção pela expressividade, pelo colorido vistosoe, também, pelo teor documental, vez que flagramos vários elementos identitários de Feira de Santana.O vaqueiro e o boi, por exemplo, estão profunda-mente enraizados no passado pastoril do municí-pio. Lembram uma época em que, sob o olhar curi-

oso da população, as boiadas atravessavam a cidadeem direção ao Campo do Gado. As baianas reme-tem à Festa de Santana e, em particular, aos antigosdesfiles da Lavagem da Igreja e da Levagem da Le-nha. Os anjos, sempre pintados de branco ou deazul ultramar, evocam a indumentária das criançasna tradicional procissão de Senhora Santana. Há ain-da o burrinho d’água, lembrança dos aguadeiros edo tempo em que Feira de Santana não contava ain-da com água tratada. Finalmente, as cenas de traba-lho são retratos contundentes do nosso cotidianorural.

Toda a preparação do material para a confecçãodas figuras, inclusive a escolha do barro, sempre foifeita pela própria ceramista. Como as peças não iamao forno, era preciso ter cuidados especiais com otipo de barro utilizado, pois dele dependia a resis-tência das peças. Com a prática, ela passou a distin-guir com facilidade um bom barro para fazer figu-ras, em geral uma argila de aspecto avermelhado,encontrada em vários pontos da cidade.

Nas vizinhanças dos lugares em que ela residiuem Feira de Santana, tanto no Calumbi como noTanque da Nação, era comum esse tipo de argila. Noinício, o barro vinha dos terrenos de D. Pomba,hoje bairro da rua Nova; depois, começou a ser reti-rado do Horto, nas proximidades da rua da Aurora.Com o crescimento da cidade e a conseqüente urba-nização dessas áreas, a ceramista passou a utilizarmaterial proveniente do Centro de Abastecimento,onde os cortes feitos no terreno para a implantaçãoda obra deixavam a argila exposta em vários pon-tos.

O preparo do barro envolvia várias etapas. Pri-meiro, ele era pisado e, depois, molhado até adquirirplasticidade. Em seguida, amassado, fase em que

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todas as impurezas deviam ser retiradas. Após esseprocesso, o barro estava pronto para o uso, trans-formando-se em pequenos bolos, que, recobertospor um pano úmido, iam sendo pouco a poucoutilizados.

Modeladas sem a ajuda de instrumentos, as fi-guras de Crispina dos Santos revelam certa simplifi-cação formal. Nelas não se percebe, por exemplo, origor com os detalhes e, muito menos, a manuten-ção das proporções verdadeiras dos objetos e seresque imitam. Ainda que baseadas na interpretaçãonaturalista da realidade, revelam elementosabstratizantes, deformações e, até, de um certo graude estilização. O tratamento decorativo muito ela-borado surge aqui como uma espécie de contrapontopara essa tendência simplificadora, mas terminaenfatizando ainda mais o caráter metafórico das pe-ças.

Outro aspecto: as figuras não eram queimadas.Após a fase da modelagem, simplesmente ficavamdias e dias a secar à sombra, espalhando-se por to-dos os cômodos da casa. Na concepção da ceramista,a queima tiraria a beleza das peças. “Se quiser quei-mar alguma figura, bota a queima, mas não fica bo-nita... porque se queimar não tem a vestimenta”(Santos, 2004), diz ela.

A “vestimenta” é na verdade a pintura, etapaque ela iniciava após a secagem completa das peças.Também nessa fase, a ceramista preparava seus ma-teriais. Os pincéis, amarrando chumaços de algodãoem taliscas de madeira. As tintas, agregando cola apigmentos variados adquiridos no comércio de Fei-ra de Santana. No princípio, ela usava tabatinga ealvaiade. Mais tarde, a tabatinga foi substituída pe-los tradicionais pigmentos Xadrez, o que contribuiupara enfatizar ainda mais o colorido das figuras, es-

pecialmente pelo uso do amarelo, do vermelho e doazul ultramar. Deve-se notar que Crispina dos San-tos nunca abandonou o uso dessas tintas, mas como tempo ampliou seu universo cromático, recorren-do às tintas industrializadas, utilizadas principalmen-te para realçar os detalhes.

A pintura sempre foi, sem dúvida, um pontosmarcantes das figuras criadas pela ceramista. Nessesentido, chamam a atenção a sua preferência pelas ascores vibrantes e o seu paciente labor ornamental.Percebia-se o cuidado com que “saía bordando” asfiguras, como costumava dizer, trabalhando cada de-talhe, complementando com as tintas e as cores osvazios deixado pela modelagem. Para dar maisexpressividade às peças, ela ainda costumava agregarao barro materiais como algodão, renda, pena degalinha areia prateada, gravetos etc.

Crispina dos Santos normalmente começava afazer figuras a partir do mês de setembro. Em prin-cípios de dezembro quase todas as peças já estavamprontas. Só então iniciava a fase da pintura. Às ve-zes, uma data, em particular, determinava esse iní-cio: 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Con-ceição. A comercialização das figuras vinha em segui-da, nas proximidades do Natal, uma ou duas feirasantes.

No passado, isso ocorria no Mercado Municipal,no centro da cidade. Com a mudança da feira livre,em 1977, e a conseqüente transformação do velhomercado em Mercado de Arte Popular (MAP), para-doxalmente as figuras passaram a ser vendidas noCentro de Abastecimento. Mesmo assim, não erafácil para a ceramista encontrar um canto em quepudesse armar sua barraca, sem ser importunadapelos fiscais. Nos últimos anos, ela havia deixadotambém de ir ao Centro de Abastecimento e as pe-

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ças passaram a ser adquiridas apenas em sua residên-cia, na rua Farmacêutico José Alves, 439, no bairrodo Tanque da Nação.

Hoje, essa casa, que no período do Natal dava aoTanque da Nação um colorido especial, encontra-sefechada. Crispina do Santos está morando atualmen-te com sua filha e recupera-se de uma cirurgia noombro. Já faz alguns anos que ela deixou de fazerfiguras, mas ainda alimenta a esperança de, um dia,ainda voltar a trabalhar com o barro.

Apesar de ter tentado passar sua experiência paraalgumas crianças do bairro, ao que parece, ela não vaideixar discípulos. É pena, pois isso significa que estáse apagando uma das mais fortes expressões cultu-rais desta nossa desajeitada cidade sertaneja: as figu-ras de barro para presépios.

Já que assim é, registre-se, ao menos, a relevânciada contribuição da ceramista para a arte de Feira deSantana. Cite-se seu nome entre os grandes criado-res feirenses, uma vez que agora, como disse LéliaCoelho Frota, referindo-se ao mestre Vitalino, “es-tão ultrapassados os obstáculos epistemológicos queconsideravam inferior, à erudita, a arte do povo” (Frota, 1986, p. 9). E mais: assim como a produçãodo mestre de Caruaru, a arte de Crispina dos Santos“tem autoria, padrões de gosto e fruição estética pró-prios, equiparando-se às dos artistas da norma cultaa sua força de representação simbólica e a sua inven-ção formal.” (Frota, 1986, p. 9)

NOTAS

1 Não há certeza quanto ao ano do nascimentode Crispina dos Santos. 1927 é o que consta emseus documentos, mas se trata de uma data aproxi-mada, estabelecida por sua filha, Margarida NeuzaRibeiro Machado, para efeito de registro civil, combase em certos acontecimentos da vida da ceramista.

2 Trata-se também aqui de idade aproximada.Considerando-se a tradição rural, em que as criançascomeçam a trabalhar muito cedo, a ceramista prova-velmente iniciou o seu contato com o barro antesdos 8 ou 9 anos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTOS, Lucílio (1977). O presépio está morren-do! Feira Hoje, Feira de Santana, 08 jan.

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GOCKERELL, Nina (1998). Presépios; trad. RuthCorreia. Lisboa: Taschen.

PASTRO, Cláudio (1993). Arte sacra: o espaço sagradohoje. São Paulo: Loyola.

PEREIRA, Carlos José da Costa (1957). A cerâmicaPopular da Bahia. Salvador: Progresso.

RIBEIRO, René (1985). O estilo da cerâmica deVitalino. In: GUERRA, Flávio (Coord.). Antolo-gia de folclore e cultura popular nordestina. Recife: ASA.

SANTOS, Crispina (1982). Crispina, artesã feirense.Sitientibus. Feira de Santana: UEFS, n. 1, jul./dez. Entrevista concedida a Raymundo LuizLopes.

SANTOS, Crispina (2004). Entrevista inédita con-cedida a Juraci Dórea. Feira de Santana. 26 mar.

Juraci Dórea é artista plástico e poe-ta. Arquiteto diplomado pela Univer-sidade Federal da Bahia e Especialistaem Desenho, Registro e Memória Vi-sual pela UEFS é mestrando do Pro-grama de Pós-Graduação em Literatu-ra e Diversidade Cultural da UEFS.Participou, a partir dos anos 60, denumerosas exposições no Brasil e noexterior, dentre as quais: 19ª BienalInternacional de São Paulo (1987), 43ªBienal de Veneza (1988), 3ª Bienal deHavana (1989), Pintura e Escultura doNordeste do Brasil, Lisboa (1996) eProjeto Terra, Université Paris 8,Vincennes Saint-Denis (1999). Publi-cou: Eurico Alves, poeta baiano (1978),O cavalo sépia (1979) e Terra (1985).

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DÓREA, Juraci.O presépio sertanejo

de Crispina dos Santos.Légua & meia:

Revista de literatura e diversidade cultural.

Feira de Santana: UEFS,v. 3, nº 2, 2004,

p. 101-114.