o primitivo teatro português

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    Bibli oteca BreveSRIE LITERATURA

    O PRIMITIVO TEATRO PORTUGUS

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    LUIZ FRANCISCO REBELLO

    O Primitivo Teatro

    Portugus

    M.E.I.C.SECRETARIA DE ESTADO DA INVESTIGAO CIENTFICA

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    Ttul o O Primitivo Teatro Portugus Bi bli oteca Breve / V olume 5 Instituto de Cultura PortuguesaSecretaria de Estado da Investigao CientficaMinistrio da Educao e Investigao Cientfica I nst i tuto de Cul tura Port uguesa Direitos de traduo, reproduo e adaptao,reservados para todos os pases 1 . edio 1 977 Composto e impresso nas Oficinas Grficas da Livraria Bertrand Venda Nova Amadora PortugalMaio de1 977

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    N DICE

    Pg.

    O Teatro uma totalidade.............................................................6Pr-histria do teatro portugus.................................................1 0O sacro e o profano......................................................................1 8Primeiras manifestaes culturais: o arremedilho................21 Representaes litrgicas .............................................................28 As laudes de Andr Dias ..........................................................35Momos e entremezes nas festividades rgias ....................40Reflexos teatrais no Cancioneiro Geral .................................54Os entremezes de Henrique da Mota........................................59

    Documentrio Antolgico

    Jograis e trovadores ......................................................................63 Teatro litrgico ..............................................................................69Os momos......................................................................................74Cancioneiro Geral......................................................................99

    BIBLIOGRAFIA........................................................................111

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    1 . O TEATRO UMA TOTALIDADE

    um erro, em que muitos incorrem ainda comfrequncia, conceber a histria do teatro como umsimples captulo da histria da literatura. As razes desseerro remontam antiguidade clssica, quando Aristteles na suaPotica considerou o espectculo aparte menos importante do teatro, pois a tragdia

    subsiste inteiramente sem a representao e sem o jogodos actores, concepo esta que os teorizadores daRenascena entronizaram em dogma absoluto. A partirdo sculo XIX, este conceito, cada vez mais distanciadoda prtica do teatro, entrou em crise: ao defender alivre circulao dos manuscritos pelos teatros,destinando-os exclusivamente representao, Hegel vibrou-lhe o primeiro golpe, a que vrios outros sesucederiam, permitindo uma crescente emancipao daarte dramtica mediante a colocao do acento tnicona noo deespectculo . Rompendo com a tradioliterria do teatro ocidental (ou, mais propriamente, com

    a teorizao sedimentada a partir de uma leitura

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    unilateral desse teatro), o encenador ingls GordonCraig cristalizou, numa frmula que ficou clebre,inserida num texto datado de1 905, todo esse longotrabalho de reviso esttica: A arte do teatro no arepresentao dos actores, nem a pea escrita pelo autor,nem a encenao, nem a dana; , sim, constituda pelosdiversos elementos que compem o espectculo ogesto, que a alma da representao; as palavras, queso o corpo da pea; as linhas e as cores, que so aprpria existncia do cenrio; o ritmo, que a essnciada dana. Assim, o teatro uma totalidade, em que o texto a

    componente literria se no situaantes nem paraalm do espectculo, mas no centro deste, ncleo de queirradiam os demais elementos integrantes dessatotalidade. Na verdade, a criao teatral no se esgota noacto puramente literrio que lhe est na origem, pois aspalavras escritas pelo autor (o corpo da pea, diziaCraig) exigem a voz dos actores que ho-de murmur-las ou grit-las; as personagens a quem o autor atribuiessas palavras requerem o corpo dos comediantes emque ho-de habitar; essas personagens, que ao seremconcebidas pelo autor possuem apenas uma dimensotemporal, reclamam o espao fsico onde possamdescrever a parbola da sua existncia fictcia, mas nempor isso menos autntica. Todos estes elementos apalavra e a voz, a personagem e o gesto, o tempodramtico e o espao cnico coexistem virtualmenteno texto, que em germe os contm, e a encenao queos promove e projecta na sua dimenso exacta, aomesmo tempo que possibilita o momento final edecisivo da criao teatral, que o do encontro com opblico ao qual se destina. Razes histricas

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    espectculo atinja o pblico, que entre este e aquele seestabelea uma correspondncia seja pelos canais daadeso emocional ou da reflexo crtica, da distanciaoou da participao. Mas o pblico no uma entidadeabstracta; a sua formao condicionada pelasestruturas econmicas e sociais de um lugar e um tempodeterminados. O que leva, necessariamente, aequacionar o problema do teatro, se o quisermosabarcar na sua integralidade, fora das super-estruturasteatrais.

    Qualquer estudo, pois, que se pretende empreenderde uma dada poca da histria do teatro, ter de atendera estas duas coordenadas: ter de considerar o teatrodessa poca como um fenmeno scio-cultural, isto ,no como um facto puramente literrio, nem desligadodas circunstncias materiais de produo quecaracterizam o perodo estudado.

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    2. PR-HISTRIADO TEATRO PORTUGUS

    Estas consideraes preliminares ajudam-nos adesmontar a tese, que muitos manuais de histria danossa literatura ainda hoje acolhem e reproduzem,segundo a qual o teatro portugus teria nascido nosalvores do sculo XVI, com Gil Vicente, antes do qualno existiria. Assenta essa tese, por um lado, na rubrica

    anteposta pelo filho do poeta ao monlogo do Vaqueiro (nome por que ficou mais conhecido oA uto da V isitao com que abre aCompilao de todas as obras de Gil V icente, editada em1 562, e que exactamente sessentaanos antes se representara nos paos reais de Lisboa, nanoite de 7 para 8 de Junho): a se diz, com efeito, seressa no s a primeira coisa que o autor fez, mas aindaque em Portugal se representou, o que viria confirmara rubrica final do mesmo auto, onde este apresentadocomo coisa nova em Portugal. Uma outraconfirmao seria fornecida por umas trovas de Garciade Resende, includas naMiscelnea (que se publicou em1

    554), em que se alude s representaes/de estilo mui

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    eloquente,/de mui novas invenes,/e feitas por Gil Vicente o qual, acrescenta o compilador doCancioneiro Geral, foi o que inventou/isto c, e ousou/com mais graa e mais doutrina. Por outro lado,o (prtico) desconhecimento de textos dramticosescritos anteriores obra vicentina, parece corroboraresta prioridade atribuda ao autor dasBarcas. Nenhumdestes argumentos, porm, se apoia numa base cientficasria e persuasiva, e qualquer deles oferece largamente oflanco crtica.

    Comecemos pelo testemunho de Lus Vicente. Paraalm de um natural e compreensvel desejo de valorizara obra paterna, que s por si bastaria para induzir-nos aacolher com reserva os termos absolutos em que ele formulado, tantas so as lacunas e inexactides(sobretudo no que respeita fixao da cronologia dosautos compilados) de que enferma a colectnea, que amais elementar prudncia nos leva a no aceit-lo. Odepoimento de Garcia de Resende (ainda que TefiloBraga pretenda atribu-lo a um impulso malvolo,amesquinhando a obra genial do poeta, porque noseguira a nova corrente do Humanismo italiano, o quese nos afigura uma gratuita suposio) teria j um outropeso, se o prprio Resende lhe no houvesse reduzidoconsideravelmente o alcance ao descrever, nas suascrnicas, diversas manifestaes corteses de naturezainequivocamente teatral, que precederam os autos deGil Vicente e cujo esprito, como veremos, esteassimilou; e, sobretudo, ao incluir noCancioneiro Geral um grande nmero de composies que, v-lo-emostambm, daquela natureza participam.

    No menos falacioso o argumento que se funda naausncia (meramente relativa alis) de textos anteriores

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    aos primeiros autos vicentinos. Gaston Baty e RenChavance, na suaV ida da A rte Teatral, das Origens aos N ossos Dias (Paris,1 932), lembram muito judiciosamenteque o facto de ter perdido a maior parte dosmonumentos da literatura dramtica francesa anterior aosculo XV no significa que ela inexistisse, assim comoao longo hiato que se verifica no teatro espanhol entre oA uto dos Reis Magos (datado da segunda metade dosculo XII) e os esboos dramticos de GomezManrique (sculo XV) tambm no pode atribuir-seigual significado. Mas h, noutras zonas da literaturaptria, exemplos afins, cuja meditao deveria induzir osque acreditam num teatro portugus nascidomiraculosamente por gerao espontnea a umaprudncia maior no emprego de certos argumentos,como este a que vimos aludindo. Um desses exemplos-nos fornecido por Ferno Lopes, o pai dahistoriografia portuguesa, que teve no entanto vriospredecessores (como ele prprio reconhece), muitoembora as suas obras no hajam chegado at ns. Ooutro, mais eloquente ainda, diz respeito Poesia, oumelhor, ao aparente silncio da poesia portuguesa entremeados do sculo XIV e do sculo XV silncio queseria errado interpretar como ocluso momentnea dolirismo nacional: quando muito, a falta de textos (queno deve confundir-se com a sua inexistncia, poisapenas significa desconhecermo-los actualmente) poderimputar-se a uma crise de crescimento de uma poesiaque comeava a emancipar-se dos esquemasparalelsticos da tradio galega e demandava, sob oinfluxo do esprito renascente, novas formas e novosestilos. Quem se atreveria a concluir, dessa ausncia detextos, que a voz da poesia portuguesa tivesse

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    emudecido durante um sculo, que durante um sculohouvesse estancado o veio do lirismo nacional? Eisporque se nos afigura revestir-se, neste sector como alisde um modo geral em todos os captulos da Histria daLiteratura, de uma premente acuidade a severaadvertncia de Leo Spitzer aos teorizadores da culturapara que no construam as suas falazes arquitecturassobre a rea movedia do estado momentneo etransitrio da sua informao histrica, em vez de ofazerem sobre factos permanentes da cultura.

    , precisamente, a considerao desses factospermanentes da cultura que nos leva a rejeitar a teseabsurda de que, antes de Gil Vicente, o teatro fossedesconhecido em Portugal. No se compreenderia comefeito, que as manifestaes dramticas caractersticas daIdade Mdia tanto as de natureza religiosa como asprofanas comuns a toda a Europa como pode dizer-seque eram, no houvessem chegado ao extremo ocidentalda pennsula ibrica. Como aceitar, por exemplo, que,no obstante a interdependncia das literaturas lusitanae espanhola (de que expressivo testemunho o lirismogalaico-portugus dos nossos primeiros Cancioneiros),os ecos do teatro medieval castelhano no tivessemrepercutido em Portugal? Como explicar que as ordensreligiosas, de cujo seio os mistrios e as moralidadesemergiram, separando-se gradualmente do rituallitrgico, ao instalar-se em Portugal no trouxessemconsigo esses fermentos de que germinou o teatromoderno? Como admitir que jograis e trovadores, nassuas peregrinaes por terras lusitanas, no inclussemno seu repertrio a narrao, dialogada e mimada, deepisdios burlescos ou inspirados nas novelas decavalaria, nos evangelhos e nos livros hagiogrficos, que

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    to grande popularidade alcanaram noutros pases eque embrionariamente eram j teatro? Permevel adiversas influncias culturais, que nomeadamenteatravs do caminho francs conducente a Santiago deCompostela e dos trovadores oriundos da Provena lhechegaram, como poderia a sociedade portuguesamanter-se refractria ao irresistvel e impetuoso surtodramtico medieval? E, alargando o mbito da questo aum plano mais genrico: acaso ser concebvel que oinstinto mimtico, a natural propenso ldica, aespontnea tendncia imitativa, que se encontram naorigem do teatro, durante os trs sculos e meio queaproximadamente decorreram desde a fundao danacionalidade representao do primeiro auto vicentino, se no tivessem manifestado em Portugal?

    A carncia de textos escritos e o carcter oralde todas as literaturas nos seus primrdios pode muitobem explic-la, com especial adequao no que ao teatrose refere est longe de constituir um biceintransponvel a que haja um teatro pr-vicentino. Alis,esses textos existem, ainda que em nmero reduzido; e,sobretudo, a par deles possumos documentos que nosdo indirectas, mas preciosas e irrecusveis notcias deum teatro anterior a Gil Vicente, em cuja obra,transfigurados pelo seu gnio potico, subsistem osprincipais elementos desse teatro.

    De resto, e mesmo descontada a influncia dodrama pastoril castelhano de um Juan del Encina (a quetambm Garcia de Resende no deixava de referir-se nassuas trovas citadas), dificilmente se compreenderia queGil Vicente, ou como ele qualquer outro autor isolado,pudesse fazer nascer ex nihilo um teatro. O perfeitoacabamento esttico da obra vicentina, a multiplicidade

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    Desprezando preconceituosamente o elementoespectacular, em nome de uma abstracta pureza literriaque as grandes obras da dramaturgia universal repelem,aqueles que assim pensam, amarrados a uma estreita viso unilateral do teatro, acabam por ter de remeter-sea uma explicao ainda mais vaga, ainda mais gratuita,ainda mais abstracta, para radicar no autor daFarsa de Ins Pereira a fundao do nosso teatro: o gnio de Gil Vicente.

    Se pomos de parte uma tal explicao, cujo intrnsecoromantismo bastaria para a tornar desde logo suspeita moderna crtica literria, no evidentemente porrecusarmos a impetuosa genialidade do dramaturgo quefazia os autos a el-rei como tambm a fermentaodramtica que, em Inglaterra e pela mesma poca,precedeu Shakespeare, ou Molire em Frana no sculoseguinte, em nada lhes diminui o gnio incontestvel.Mas a personalidade e a obra do criador do teatronacional como categoria literria autnoma e a quereside a verdadeira grandeza de Gil Vicente nopoderiam estruturar-se sem os grmenes dramticos danossa Idade Mdia, nem desenvolver-se sem ascondies que a corte do Rei Venturoso lhesproporcionou. Com Gil Vicente, pois, o teatroportugus apenas abandona o estado larvar,embrionrio, em que desde a fundao da nacionalidadeat aos fins do sculo XV vegetava, para assumir enfimuma existncia literria. Numa palavra: sai da sua pr-histria para entrar na sua histria propriamente dita.

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    3. O SACRO E O PROFANO

    Assim como na antiguidade clssica o teatro nasceudo culto dionisaco, assim tambm as origens do teatromoderno aparecem, por entre as brumas da IdadeMdia, confundidas com a ritologia crist embora nelase no esgotem. Os estudos magistrais de um Karl Young e de um Gustave Cohen estabeleceramdefinitivamente essa genealogia, que poder surpreenderna medida em que se recordem as perseguiessistemticas, os contnuos ataques desencadeados pelaIgreja contra os cmicos e o teatro. No ano de1 207(para no falar j de proscries e antemas anteriores,como aqueles que em 31 4 o Conclio de Arles fezdesabar sobre jograis, saltimbancos e actores) o PapaInocncio III proibia, no interior dos templos, todas asmanifestaes que no se revestissem de um carcterestritamente litrgico. No mesmo sculo, em Espanha, aLei das Sete Partidas de Afonso X, o Sbio quereinou de1 252 a1 284 do mesmo passo que vedavaaos clrigos fazerem jogos de escrneo, assistirem aeles ou consentirem que se fizessem nas igrejas,

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    autorizava a representao do nascimento de NossoSenhor Jesus Cristo, em que se mostra como o anjo veioaos pastores e lhes disse como era Jesus Cristo nascido;e outrossim de como os trs reis magos o vieram adorar;e da sua ressurreio, que mostra como foi crucificado eressurgiu ao terceiro dia: tais coisas como estas, quemovem o homem a fazer bem e a haver devoo na f,podem faz-las, mas devem faz-las compostamente ecom grande devoo. Daqui resulta que a condenaodos theatrales ludi se no estendia evocaodramtica ou, mais propriamente, para-dramtica dos dois grandes mistrios da cristandade: a Incarnaoe a Ressurreio. Ora, conhecidas as relaes existentesentre a corte do monarca castelhano, que foi sogro deD. Afonso III e av de D. Dinis, e a portuguesa, ambasas quais serviram de bero poesia trovadoresca, deestranhar seria que tais representaes no tivessemlugar tambm nas catedrais e nos mosteiros lusitanos, e,seguindo a evoluo natural do drama litrgico medievo,do altar-mor no transitassem para o adro e deste para apraa pblica, at se autonomizarem por completo.

    Foi, de resto, a interdio de jogos profanos nointerior dos templos, aliada ao declnio do primadoespiritual da Igreja, que deu causa secularizao doteatro, o qual, liberto dos formalismos rituais, assumiuuma feio predominantemente popular, de harmoniacom as exigncias do novo pblico iletrado a que passoua dirigir-se. Assim comeou, por um fenmeno decissiparidade frequente na histria das literaturas, aestabelecer-se uma separao entre o drama hiertico eo drama laico aquele circunscrito s cerimniaseclesisticas, confundido com o culto, este tomando deincio como pretexto festividades religiosas mas a breve

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    trecho afastando-se delas, quer pela sua forma, querpelo seu esprito. Se s manifestaes de um e de outroacrescentarmos as de um teatro ulico (ou aristocrtico,como alguns historiadores preferem chamar-lhe),radicado na corte e destinado por via de regra acomemorar e ilustrar acontecimentos festivos, teremosenunciado as vrias faces do triedro sob que o teatromedieval se nos apresenta. Nem sempre essas trs facesse mostraro rigorosamente extremadas, antes seinterpenetram as mais das vezes: o drama profano noesquece facilmente as suas origens sagradas, e asrepresentaes ulicas mantm estreitos pontos decontacto com as duas outras. Assim tambm, comoiremos ver, aconteceria entre ns.

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    4. PRIMEIRAS MANIFESTAES TEATRAIS: O ARREMEDILHO

    O testemunho mais antigo que se conhece demanifestaes teatrais na Idade Mdia portuguesatransporta-nos quase aos primrdios da nacionalidade:ao ano de11 93, para maior exactido. Trata-se de umacarta (que se conserva na Torre do Tombo), datada doms de Agosto desse ano, confirmativa de uma doao

    feita pelo rei D. Sancho I da propriedade de umas terrasem Canelas, lugar da freguesia de Poiares do Douro, aojogral Bonamis e a seu irmo Acompaniado, em paga deum arremedilho que estes haviam representado na suacorte; esta doao foi confirmada em1 222 por D. Afonso II a Bonamis e aos herdeiros de Acompaniado,entretanto falecido. Diz, textualmente, esse documento,transcrito por Sousa Viterbo no seuElucidrio: N os mimi supranominati debemus Domino N ostro Regi pro reboratione unum arremidilum .

    Seria assim o arremedilho a clula originria do teatroportugus, a partir da qual se formou no dizer de

    Tefilo Braga o fio da tradio dramtica entre ns,

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    se nasBarcas, por exemplo, ou no Auto da Feira ) demaneira to flagrante ilustra. A prpria etimologia da palavra arremedilho insinua

    que se trataria de uma representao elementar em que adeclamao e a mmica se combinavam para tornar maisatraente e persuasiva a fbula contada pelos jograis aoseu auditrio popular ou corts: como que a iluminuraanimada das novelas ou das canes picas da IdadeMdia, na definio expressiva de Oscar de Pratt.Remedadores , com efeito, se chamavam no reinado de Afonso X de Castela (di-lo uma declarao do trovadorGuiraut Riquier, de1 275, que os aproximava doscontrafazedores provenais), os jograis especializadosna arte de imitar; e uma dasCantigas de Santa Maria, doRei Sbio, conta a histria de um jogral que quisremedar como seja a imagem de Santa Maria, e torceu-se-lhe a boca e o brao. Num dos versos dessa mesmacantiga depara-se-nos o termo remedilho, queMenndez Pidal define como sendo o espectculo quedava o remedador. Parece, assim, no haver dvidas deque estamos perante uma verdadeira manifestaodramtica, embora incipiente e rudimentar; e tanto que,em pleno sculo XVI, o autor da annimaObra da Gerao H umana (Gil Vicente?), na cena introdutria, eChiado (noA uto da Natural Inveno ) designam porarremed(i)ao uma modalidade cnica que, na obra do ltimo, se d tambm como sinnimo de comdia,representao, auto ou prtica.

    Foi nos sculos XIII e XIV, e sobretudo nos reinadosde D. Afonso III ( 1 248-1 279) e seu filho D. Dinis( 1 279-1 325), que a poesia jogralesca viveu entre ns operodo mais florescente. Apesar de o regimento da casareal, de1 250, proibir que houvesse mais de trs jograis

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    na corte ou jogralesas (denominadas soldadeiras) queno viessem de passagem ou se demorassem mais detrs dias, a verdade que em nenhuma outra poca togrande nmero de jograis e trovadores dever ter-sereunido na corte portuguesa o que autoriza a concluirque as representaes de arremedilhos fossem, ento,frequentes. No era, de certo, infundadamente que ojogral Joo Airas, de Santiago, numa das suas cantigas,aludia s ricas e nobres Cortes que faz el-rei. (Convmesclarecer que o trovador se distingue do jogral por umacondio social e um grau de cultura mais elevados, eest para ele como, na antiguidade clssica, o aedo ourapsodo relativamente ao mimo e ao histrio. Mas estadistino, que alis aparece glosada em vrias cantigasde escrneo e mal-dizer, por via de regra mais tericado que prtica.) Abundam, alis, nosCancioneiros dos sculos XIII

    (Ajuda) e XIV (Vaticana e Biblioteca Nacional) ascomposies poticas de esquema dialgico, outenes,que um breve tratado de versificao, anexo ao ltimodos citados Cancioneiros, assim define: Outras cantigasfazem os trovadores que chamam tenes, porque sofeitas por maneira de razo que um haja contra outro,em que diga aquilo que por bem tiver na prima cobra(isto , copla) e o outro responda-lhe na outra dizendo ocontrrio. Estas se podem fazer de amor, ou de amigo,ou de escrneo, ou de mal-dizer. Poderiam multiplicar-se exemplos de tais composies, desde as cantigas detrovadores e jograis como Pedro Meogo, Bernaldo deBonaval, Paio Gomes Charinho, Fernando Esguio,Loureno, o prprio rei D. Dinis, que tomam a formadum dilogo com o namorado, a me, a amigaconfidente, s polmicas em verso que aqueles entre si

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    travaram, com a questo do Guarecer por trovar emque intervieram o jogral Loureno, Joo Garcia deGuilhade, Joo de Aboim, Joo Soares Coelho e Joo Vasques. A sua estrutura subsiste noCancioneiro Geral deGarcia de Resende (a querela do Cuidar e Suspirar, oprocesso de Vasco Abul em que interveio Gil Vicente, aporfia entre o conde de Vimioso e Aires Teles sobre aquesto de desejar e bem-querer) e nas clogas de umS de Miranda, de um Bernardim Ribeiro ou de umRodrigues Lobo; seria, no entanto, excessivo qualificar,por essa razo apenas, de dramticas tais composies.O que, todavia, as aproxima do teatro o facto claramente testemunhado pelas iluminuras que ornam oCancioneiro da A juda, nas quais se vem msicos, cantorese bailarinas de elas serem representadas, de atenussima aco que nelas se contm (e que justifica ter Vitorino Nemsio descrito a cantiga de amigo comoum pequenodrama lrico, de amor depurado eprofundo, nascido da vida caseira e criado no longoapartamento) ser arremedada por jograis e jogralesasou soldadeiras. Outro vnculo h, porm, ainda arelacionar a poesia trovadoresca com a literaturadramtica ulterior: nas cantigas de escrneo e mal-dizer que, pela primeira vez, aparece o tipo do fidalgoarruinado e jactancioso que, mais tarde, um Gil Vicentee um Francisco Manuel de Melo haviam de submeter sua impiedosa lupa satrica.

    Com a descoberta da imprensa e a difuso do livro, aesfera de aco dos jograis vai-se reduzindoprogressivamente, e o arremedilho entra numa fase deacentuado declnio, de que sintomtica prova aabolio do privilgio de foro especial, decretada pelasOrdenaes Afonsinas de1 446 para os jograis,

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    trejeitadores ou trues e goliardos. Todavia, aactividade destes ltimos cujos sermes burlescos,to frequentes em toda a Europa medieval, ostentamuma profunda analogia com os arremedilhos subsistepara alm daquela data, como se evidencia por vriosdocumentos posteriores: uma carta de perdo do rei D. Joo II, datada de1 482, que alude a um escolar emartes, morador em Setbal, de nome Rodrigo Alves,que pregava como italiano e remedava judeus emmaneira de capelo e rabi, e dizia:d-lhe, d-lhe, e querespondia o juiz e tabelies e alcaide em som de missa, eque dizia uma paixo de um frade e de uma freira, e um veredignum de um clrigo que roubaram em umcaminho, e se acabava em uma voz:bebamus, tudocantado por som de missa; um alvar do mesmosoberano, de1 492, relativo a um biscainho judeu, Jacob Cofem, morador em Silves, que com outrosjudeus foi preso por se dizer contra eles que pelaPscoa fizeram jogos com diabos e gadanhos, eandavam aps um que andava vestido como mulher,dizendo-lhe doestos e fazendo tudo em desprezo danossa santa f; um poema satrico de lvaro de BritoPestana, includo noCancioneiro de Resende (que poderdatar-se de1 480), em que se faz referncia aosestudantes pregadores/(que) metem SantasEscrituras/em sermes/derivados em amores/(e) fazemde falsas figuras/ tentaes; e uma constituio dobispado da Guarda, de1 500, em que se condena oabominvel costume praticado em algumas festas doano, assim como em dia de Santo Estvo, de sefazerem imperadores e reis e rainhas e irem-se com eless igrejas levando consigo jograis, os quais mandam pre pem no plpito da igreja, donde dizem muitas

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    desonestidades e abominaes. Em diversos passos daobra de Gil Vicente se deparam igualmente vestgiosdesta herana, seja noPranto de Maria Parda (que acontrafaco burlesca dos Planctus litrgicos do ciclopascal, seja nas parfrases cmicas do Pater Nosterincludas nas farsas doV elho da Horta e do Clrigo da Beira (e, nesta ltima, tambm a da Salve Regina), sejanos prlogos daExortao da Guerra e doA uto deMofina Mendes, seja, enfim, no sermo que sobre o tema Amor vincit omnia um frade vindo do inferno prega noA uto das Fadas . , pois, com o gnio de Gil Vicente que seopera a mutao qualitativa do arremedilho em verdadeira e autntica criao dramtica.

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    5. REPRESENTAES LITRGICAS

    Mas sobretudo a partir dos textos conciliares, enomeadamente das constituies sinodais, que se infere,ainda que por via indirecta, a existncia entre ns, dosculo XIII em diante, de manifestaes teatrais emconexo directa com a liturgia do rito catlico.

    Nos estatutos que D. Frei Telo, arcebispo de Braga,promulgou em1 281 , adverte-se solenemente o clero deque no dever ter contactos com jograis, mimos ehistries o que prova,a contrario , a existncia derepresentaes relacionadas com actos do culto nasquais se introduziriam elementos profanos, pois ossnodos no legislavam para situaes irreais, comoobserva judiciosamente Mrio Martins. No entanto,apesar da proibio ordenada, tudo leva a crer que taisrepresentaes continuaram a fazer-se, uma vez quedocumentos conciliares posteriores reiteradamente adecretaram. Assim, no limiar do sculo XV, uma dasconstituies do arcebispo de Lisboa, D. Joo Estevesda Azambuja (entre1 402 e1 41 4), determinava que nocantassem, nem danassem, nem bailassem, nemtrebelhassem nos mosteiros e igrejas cantos, danas etrebelhos deshonestos; esta interdio era exclusiva dascerimnias religiosas, pois as Ordenaes Afonsinas de1 446 obrigavam as comunas judaicas a concorrer comdanas, guinolas e trebelhos s recepes reais que seefectuassem em qualquer cidade. Em1 436 o rei D.Duarte, exprobrando os que em igrejas, mosteiros,oratrios e ermidas com jogos e tangeres e cantigas(...) turvavam o ofcio divino e as oraes de algunsbons cristos e faziam viglias e romagens aos ditoslugares e dormiam neles e por instigao diablica assim

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    de dia como de noite tresmudavam as oraes quehaviam de fazer a Deus em blasfmias, cantigas eautos ,impunha-lhes que, futuramente, cumprissem as suasdevoes sem fazer outros jogos nem cantares nemtangeres que a Deus no fossem prazentes (isto ,aprazveis). Retenha-se, da transcrio que precede, peloseu particular interesse, a referncia explcita exactamente cem anos antes da morte de Gil Vicente, ea cerca de trinta do ano provvel do seu nascimento aos autos como categoria dramtica preexistente obra vicentina, e j ento largamente divulgada, pois deoutro modo no se justificaria aquela referncia. Alis,um dos poetas doCancioneiro Geral , Duarte de Brito,evoca os autos apresentados nas festas da Imperatriz ou seja, durante as cerimnias do casamento daInfanta D. Leonor com Frederico III, Imperador da Alemanha, que tiveram lugar em1 451 , e a que maisadiante teremos ocasio de aludir.

    Censura idntica que formulara D. Duarte o ques vem demonstrar a permanncia de um gnerodramtico longamente enraizado nos usos e costumespopulares e que neles persistiria atravs dos sculos ressurge nas constituies decretadas pelo arcebispobracarense D. Lus Pires, por ocasio do snodocelebrado em1 477 na catedral do Porto. Mas a, ao ladoda proibio oficial de tais prticas havidas pordesonestas depara-se-nos j uma aluso directa,permissiva, s representaes litrgicas, cuja importncia desnecessrio encarecer. Efectivamente, depois de sedefender (proibir) que tanto os homens como asmulheres e os eclesisticos como os seculares que porcumprir sua devoo quiserem ter viglia em algumaigreja ou mosteiro, capela ou ermida faam, consintam

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    ou dem lugar a que a se faam jogos,momos , cantigasnem bailes, nem se vistam homens em vestiduras demulheres, nem mulheres em vestiduras de homens, nemtanjam sinos nem campanas, nem rgos nem alades,guitarras, violas, pandeiros, nem outro nenhuminstrumento ou que na procisso do Corpo de Deus sefaam jogos nem representaes, estipula-se, para afesta e noite de Natal, que no cantem chanceletasnem outras cantigas algumas, nem faam jogos no corona igreja,salvo se for alguma boa e devota representao como a do Prespio ou dos reis magos, ou de outras semelhantes a elas , asquais faam com toda a honestidade e devoo e semriso nem outra turvao.

    Proscreviam-se, pois, alm das cantigas e danas, osmomos (que por aqui se v no serem divertimentosde natureza exclusivamente corts) e os jogos profanos,ou seja, a intromisso de episdios burlescos,susceptveis de provocar o riso e perturbar os fiis, nocerimonial litrgico costume que iria generalizar-senos autos de devoo do sculo XVI, em que sofrequentes os intermdios cmicos, desligados as maisdas vezes da linha dorsal da aco, como o episdio deMofina Mendes no auto homnimo de Gil Vicente, oprocesso do roubo dos frangos noA uto de S. V icente , de Afonso lvares, ou a cena das recriminaes deBrancanes contra o marido Joo Pires noA uto de Santo A ntnio, do mesmo autor. Mas em contrapartidaautorizava-se, em termos expressos, a representao decenas alusivas do ciclo natalcio o nascimento deCristo, a adorao dos Magos e outras semelhantes,entre as quais seguramente se incluiria a anunciao aospastores. Seguramente, dizemos porque o testemunhomais antigo que possumos de um drama litrgico na

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    nossa Idade Mdia constitudo por um breve dilogo,em latim, com os pastores acerca da natividade deCristo, descoberto pela musicloga francesa SolangeCorbin num brevirio do sculo XIV, procedente domosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Pastores, dizei o que vistes e anunciai o nascimento do Senhor (traduzimos) entoava o oficiante, dirigindo-se aos pastores, os quaislhe respondiam: V imos o menino envolvido em panos, e um coro de anjos louvando o Salvador . Em seguida cantava-se osalmoLaudate Dominum e o hinoA solis hortus ; e acerimnia prosseguia. pouco, sem dvida. Mas apersonificao dos pastores, implcita no texto, que aexige, e o esboo de dilogo travado, anunciam j oteatro e constituem o primeiro elo conhecido de umatradio que, dois sculos depois, iria culminar nos autos vicentinos, endereados s matinas do Natal. Dessatradio que Gil Vicente no podia ignorar, e de que asua obra tributria pelo menos tanto quanto dasclogas castelhanas de Juan del Encina e de LucasFernandez nos fala uma carta que Ochoa de Ysssaga,embaixador dos reis catlicos na corte portuguesa, aestes dirigiu em 25 de Dezembro de1 500, descrevendominuciosamente os momos representados no dia deNatal: a se diz que, na vspera desse dia, o rei e a rainha(D. Manuel e D. Maria de Castela, que pouco tempoantes se haviam consorciado) ouviram as matinassolenemente, com rgos, chanonetas e pastores, quena devida altura entraram na capela danando ecantandogloria in excelsis Deo...

    Mas o mistrio da Incarnao tem, na simbologiacrist, a sua contrapartida no mistrio da Ressurreio,um e outro correspondentes aos mitos pagos dosolstcio de Inverno e do equincio da Primavera. Ao

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    Officium Pastorum sucede, assim, no plano da liturgiapara-dramtica, aV isitatio Sepulchri: em ambos aperguntaQuem quaeritis? dirigida no primeiro casoaos pastores que o anjo guiava at ao prespio, nosegundo aos peregrinos que demandavam o tmulo de Jesus engendra um dilogo atravs do qual j o teatrose insinua. semelhana, porm, do que vimosacontecer no tocante ao ciclo natalcio, escasseiam entrens os textos comprovativos de representaeslitrgicas relacionadas com o ciclo pascal. Todavia, inegvel a existncia de tais representaes, que faziamparte integrante das procisses solenes realizadas porocasio das festas do Corpo de Deus.

    Remontam ao tempo do reinado de D. Joo I ( 1 385-1 433) as mais antigas notcias que nos chegaram dessasprocisses, cuja popularidade vrios documentos coevosatestam. Nelas tomavam parte, alm das autoridadeseclesisticas e civis, representantes das corporaes,mesteres e ofcios artesanais, que tinham a seu cargopersonificar mediante caracterizao e indumentriaapropriadas diversas figuras bblicas ou simplesmentealegricas: santos e apstolos, com os respectivosinstrumentos emblemticos (S. Pedro e a chave, S. Pauloe a espada, S. Tiago e o bordo, a cabaa e o sombreirode peregrino, S. Bartolomeu e o cutelo, S. Filipe e acruz, S. Tom e um punhal, S. Joo Evangelista umatbua pintada e uma palma), anjos vestidos de alvas,cintos e amitos com as suas caras e diademas, diabosvestidos de saia preta e com caraa. Que entre essaspersonagens se desenvolvessem pequenos episdiosteatrais, breves cenas dramticas, esbocetos de autos,parece fora de dvida: noRegimento dos sacristes-mores do Mosteiro de A lcobaa , aps a descrio das festas do

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    Corpus Christi celebradas nessa vila em1 435, alude-sea outros jogos muitos que a h, que no so aquiescritos porque se mudam cada um ano. A naturezadramtica tendencialmente dramtica, est claro desses jogos confirmada pelas constituies sinodaisde 1 477, a que j fizemos referncia, em que se probeaos leigos que na procisso que se faz no dia e festa doCorpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo faamtais jogos nemrepresentaes que sejam maus ou de quese siga deshonestidade, riso ou turvao isto porqueem alguns lugares deste arcebispado (...) osbeneficiados ou sacristes das igrejas ou mosteirosmuitas vezes emprestam as vestiduras sagradas para osjogos e tangedores e paraoutras representaes que osconcelhos ordenam nas ditas procisses. ( curiosoacrescentar que D. Joo II, por uma carta de1 482, mandou comemorar o aniversrio da batalha do Torocom toda a solenidade e cerimnia, ofcios e jogos,assim to cumpridamente como se costuma fazer em diade Corpo de Deus, acompanhando essa carta de umRegimento que evidenciava o carcter potencialmentedramtico dessas manifestaes que em1 486 mandouaplicar aos festejos da proclamao honorfica doDuque de Stuxe e em1 487 s comemoraes da tomadade Mlaga aos mouros.) Aquela interdio doemprstimo de vestiduras sagradas, de ornamentos ecousas da igreja, imposta pelas constituies de D. LusPires, entendia-se, porm, apenas como nos revelauma constituio do bispado de Coimbra, publicada em1 521 para os jogos e autos seculares, mas no paraas representaes que se fazem nas igrejas ou procisses solenes como em dia de Corpo de Deus ou outros actossemelhantes que se fazem em louvor de Deus. E em

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    termos ainda mais explcitos, o bispo do Portoconsentia, em1 538 de certo coagido pela fora deuma tradio que ainda hoje perdura em vriaslocalidades nortenhas, sobretudo na provncia de Trs-os-Montes que ao passar a procisso pela rua nova sefizesse umauto de alguma histria devota, desde que seobservasse a devida compostura (estando todos em psem barretes diante do sacramento). A aco negativada Inquisio, que entre ns se estabelecera dois anosantes, viria, porm, travar esta tendncia para umaaproximao maior entre a Igreja e o Teatro: em1 565 oarcebispo de vora D. Joo de Mello opunha-se a que,mesmo em viglias de Santos ou de alguma festa, sefizessem representaes ainda que sejam da Paixo deNossa Senhor Jesus Cristo, ou da sua Ressurreio, ouNascena. Tambm no desconheceria Gil Vicente esta tradio,

    qual pagou alis o seu tributo, embora limitado: noprtico da sua obra, oA uto de S. Martinho, que data de1 504, permite-nos afirm-lo, pois diz a rubrica inicial foi representado mui caridosa e devota Senhora aRainha D. Leonor na Igreja das Caldas, na procisso doCorpus Christi. Ser este, assim, mais um argumento aopor aos que se obstinam em negar quaisquerantecedentes a essa obra.

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    membros da Confraria do Bom Jesus (que fundara emS. Domingos de Lisboa, no ano de1 432), cujo ardente,por vezes ingnuo, misticismo no desdenha recorrereventualmente forma dramtica para se exprimir.Intitula-se o livro, que data de1 435,L audes e cantigas espirituais e oraes contemplativas do muito santo e bom Deus Jesus, Rei dos Cus e da terra, e da muito alta e gloriosa sua madre, semprevirgem santa Maria ; e seu autor Andr Dias,bispo de Mgara e de Ajcio ( 1 348-1 437?), que usoutambm os nomes de Andr Hispano, Andr Escobar e Andr de Rendufe. Escritas em lngua vulgar para seremcantadas em altas vozes no decurso de cerimniasreligiosas, com rgos e trompas, com alades e outrosinstrumentos e acompanhamento de danas, circula naslaudes e cantigas de Andr Dias mau grado a suaexpresso literria tosca e embotada, o seu ritmonegligente, as suas rimas fceis uma inspiraoabundante e pletrica, que transborda para l dasparedes do claustro e se espalha no mundo rumorejantedo ar livre, apela para os sentimentos comuns, para aalegria vital que se expande no canto e na dana,conforme justamente observa Antnio Jos Saraiva. Pora j se aproximam elas do teatro, de cujas origens ocanto e a dana, com instintivas manifestaes de umaexaltao sagrada, so indissociveis. Mas sobretudoquando abandonam a estrutura monolgica e assumema forma dialogal que a sua paradramaticidade aflora, demodo particularmente sensvel nas composiesinspiradas no tema da Paixo de Cristo. A angstia, odesespero, a dor de Maria ao ver o filho torturado ecrucificado deixam de ser narrados e passam, ento, aexprimir-se em discurso directo: so, propriamente,

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    representados . Assim se efectua o trnsito da poesia lricapara a poesia dramtica.

    Os anos que Andr Dias viveu na Itlia (asLaudes e cantigas espirituais foram escritas e publicadas emFlorena) t-lo-o familiarizado com as laudi que, na viragem do sculo XIII, para o sculo XIV, o fradefranciscano Jacopone da Todi comps e abriramcaminho s sacras representaes, to frequentes nesteltimo sculo e no seguinte. O prelado portugusescreveu diversas parfrases da mais clebre dessaslaudi: aLauda da Crucificao ou (como geralmenteconhecida)Pranto de N ossa Senhora sem, no entanto,igualar a extraordinria vibrao dramtica do modelooriginal. Algumas de tais parfrases a Orao e laudada morte e paixo do bom Jesus, o Pranto da VirgemSanta Maria na morte e paixo do bom Jesus, a Prosae lauda da Paixo so ainda apenas um monlogo;mas outras, como o Pranto breve que fazia SantaMaria, da morte de Jesus Cristo, inserem-se j numesquema dialogado, rudimentar sem dvida, que numastrovas evocativas das Horas da Paixo e da Cruz sealarga a diversas personagens (Maria Madalena, NossaSenhora, Cristo, Judas e os judeus). Tambm o tema doPeregrino a apario de Cristo aos discpulos, aps aressurreio fornece ao autor dasL audes matria-primapara um breve esboo dramtico.

    No custa admitir que o apelo de Andr Dias para queos seus cantares, hinos, prosas e laudes fossem emaltas vozes cantados, bailados, danados, orados etangidos tivesse sido escutado pelos membros daConfraria do Bom Jesus, aos quais se dirigia. A sua virtual teatralidade encontraria, assim, a mais persuasivaconfirmao. Por outro lado, no difcil estabelecer

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    um nexo entre as laudes de Andr Dias e os autos deinspirao religiosa dos nossos autores dramticos deQuinhentos. As loas de Santos compostas por aqueleestaro, juntamente com aL egenda urea de Jacob Voragine, na origem dos autos hagiogrficos de Afonso lvares, Baltasar Dias ou Ferno Mendes; e o nicoauto desse tipo que Gil Vicente escreveu (oA uto de S.Martinho ) pe em cena um episdio evocado por AndrDias numa das suas trovas. E se certo que o tema daPaixo s incidentalmente e indirectamente ocorrena obra vicentina (haja em vista oDilogo sobre a Ressurreio, o final doA uto da Alma ou o do Breve Sumrio da Histria de Deus ), e que o nico Pranto quenela figura o de Maria Parda, contrafaco burlesca doPlanctus mariano, cujas origens h que buscar alisnoutra zona de influncias (que foi, como j dissemos, ados goliardos), em contrapartida oPranto de N ossa Senhora, de Frei Antnio de Portalegre ( 1 547) e osA utos da Paixo de Baltasar Dias (que se perdeu) e do PadreFrancisco Vaz ( 1 559) atestam a continuidade de umatradio que outras fontes documentais comprovam.Poderia, ainda, sugerir-se um paralelismo entre os temasdo Peregrino, versado por Andr Dias, e do Samaritano,que Gil Vicente teria dramatizado naObra da Gerao H umana (anonimamente publicada). Alis, umsentimento comum inspira a obra de ambos, sentimentoque radica no esprito franciscano que topronunciadamente numa e noutra se manifesta, e quelevou Eugnio Asensio, a qualificar de laude oA uto dos Quadros Tempos vicentino. Talvez Gil Vicente e osautores da sua poca no conhecessem as laudes de Andr Dias. Nem por isso deixam elas de constituir umantecedente que importa, como tal, considerar e que,

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    atenta a penria da literatura dramtica pr-vicentina,seria absurdo desprezar.

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    7. MOMOS E ENTREMEZESNAS FESTIVIDADES RGIAS

    Todas as manifestaes teatrais ou, maisrigorosamente, para-teatrais que at aqui evocmos,profanas ou religiosas, situam-se numa esfera,demarcada pelas suas prprias origens, mais popular doque aristocrtica, ainda que por vezes (como no casodos arremedilhos jogralescos) a corte pudesse ser o lugar

    da sua apresentao. De uma outra categoria dramtica,que assumiu uma importncia crescente nos cem anosque precederam a apario de Gil Vicente, iremos agorafalar: osmomos , divertimentos corteses por excelnciaem que tomavam parte fidalgos, pajens e at o prpriomonarca, encenados por ocasio de festividades rgias eque extraam os seus temas do cancioneiro ou, maisfrequentemente, das novelas de cavalaria, cujosepisdios e personagens transpunham em termoscnicos mediante uma aco mimada, danada eeventualmente recitada. Contudo, o seu carcterpredominantemente aristocrtico no impedia o povo

    de a eles, por vezes, assistir, como sucedeu em1

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    Medicis, inspiradas nas remotas fontes da arte antiga eaos momos castelhanos a que aludem aCrnica de Juan II e a Relacin do condestvel Miguel Lucas ou oBreve Tratado para unos Momos que fez Gmez Manrique, em1 467, por incumbncia da futura Rainha Catlica D.Isabel de Espanha.

    Deve-se aos jograis a divulgao, na corte portuguesa,das novelas de cavalaria, que ali foram conhecidas apartir dos derradeiros anos do reinado de D. Afonso IIIou primeiros do de D. Dinis, como se depreende datraduo daDemanda do Santo Graal , que data do ltimoquartel do sculo XIII. O esprito guerreiro que pulsavanesses romances em prosa, tpico da sociedade feudal,encontrou numa nao que s h pouco havia cessadode combater contra os rabes (a tomada do Algarve, aque se seguiu a definitiva expulso dos mouros,completara-se em1 249) terreno propcio para germinar,como para o seu reflorescimento acharia condiesidneas, dois sculos depois, na poca das Descobertas.Por outro lado, esses romances, mediante os quais seefectua a transio da literatura oral para a literaturaescrita, apoiavam-se num estilo que os tornavaespecialmente aptos recitao em pblico: naH istria da L iteratura Portuguesa , de Antnio Jos Saraiva e scarLopes, chama-se a ateno para as frequentesinterpelaes ao ouvinte, a abundncia das interjeiesexclamativas, tal como Dmaso Alonso, nos seusEnsayos sobre Poesia E spaola , salienta o carcterdramtico do dilogo noCantar de mio Cid . Mas a suarepresentao, ou figurao animada, exigia um aparatocenogrfico de que a modstia de recursos dos jograisera manifestamente insuficiente para os dotar. Aparatoque iremos encontrar nos sumptuosos momos reais de

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    Quatrocentos, cuja fama chegou a transpor fronteiras, ede que vrios documentos contemporneos dasCrnicas ao Cancioneiro Geral deixaram fieltestemunho.

    Ferno Lopes, na segunda parte daCrnica de D. Joo I (captulo 96), alude aos vrios e luzidos jogos celebrados(em 1 387) no banquete das npcias do rei da BoaMemria, em cujoLivro da Montaria se faz a apologia dossaraus, danas e tangeres da corte. Zurara, naCrnica da Tomada de Ceuta , refere-se com entusiasmo aosmomos de to desvairadas maneiras que, por ordemdo Infante D. Henrique, assinalaram as festas daEpifnia, em Viseu, no ano de1 41 4. Maiscircunstanciada notcia, porm, nos d um documento,originariamente redigido em francs, em que se relata a viagem da embaixada flamenga que veio a Portugalcontratar o casamento de Filipe, duque de Borgonha,com a Infanta D. Isabel, filha de D. Joo I. Entre as vrias cerimnias festivas ento levadas a efeito, o autordesse relato descreve um banquete que teve longadurao, oferecido pelo Infante D. Duarte ao rei seupai e infanta sua irm no dia 26 de Setembro de1 429,findo o qual se realizaram justas. Segundo o relato,cavaleiros e gentishomens, armados com todas as suasarmas e vestidos e adereados como para justar, vinhama cavalo, acompanhados do seu squito, e cada umchegando em frente da mesa do senhor ou da damahomenageados, depois de fazer a vnia inclinando ocavalo, entregava-lhe uma carta dobrada, na qual diziaser um cavaleiro ou gentilhomem de nome estranho,que ele a si prprio se atribua, e que vinha de estranhase longnquas terras em busca de aventuras: um, dosdesertos da ndia; outro, do paraso terrestre; outro, do

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    mar; outro, da terra; e que, tendo ouvido novas dagrande festa que ali se celebrava, a ela acorrem,declarando-se pronto a bater-se em torneio ou terararmas com os que naquela corte lhe aceitassem odesafio. E, lida a carta, o senhor ou a dama mandavamum arauto dizer ao homem de armas, que diante da suamesa esperava a resposta:Cavaleiro ou senhor, sereis libertado ; e ento o cavaleiro, feita a devida vnia, partiacomo entrara, armado e montado no seu cavalo. Estescavaleiros envergavam, ainda segundo o mesmo relato,fantsticos trajes: um deles vinha, tal como o seu cavalo,todo coberto de picos, como um porco-espinho; umoutro, vestido de globo terrestre e acompanhado desete planetas, cada um deles graciosamente figuradoconforme a sua propriedade; e vrios outrosgraciosamente vestidos e mascarados conforme o seuprazer. No pode deixar de concluir-se, acompanhando Antnio Jos Saraiva, que este cerimonial flagrantemente uma representao dramtica dos temasdos romances de aventuras.

    Iniciara-se, entretanto, sob a gide de D. Joo I, apoltica de expanso ultramarina, que viria a culminar,econmica e geograficamente, com a fundao dafeitoria de S. Jorge da Mina ( 1 482) e a ultrapassagem doCabo da Boa Esperana ( 1 487) no reinado de D. JooII, e, no de D. Manuel, com o descobrimento docaminho martimo para a ndia ( 1 498) e do Brasil( 1 500). O esprito aventureiro e combativo das novelasde cavalaria prolongava-se assim, reanimado pelaepopeia das descobertas; e, sobrevivendo ao crespsculodo mundo feudal, que as engendrara, transpunha olimiar do incipiente mundo burgus. Na descrio dasfestas palacianas de1 429, a referncia s estranhas e

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    longnquas terras de onde os cavaleiros fantasiadosdeclaravam proceder, constitui sinal iniludvel dessamentalidade expansionista, que, acompanhada darevelao de novas raas e de novos costumes, obtevemais completa expresso nos momos representados nascortes de D. Afonso V, D. Joo II e D. Manuel.

    De 1 3 a 25 de Outubro de1 451 , precedendo a partidapara o estrangeiro da Infanta D. Leonor, irm de D. Afonso V, que em 9 de Agosto desse ano se casara comFrederico III, Imperador da Alemanha, realizaram-seem Lisboa espectaculares festejos, de que umatestemunha presencial o padre Nicolau Lanckmann,de Walckenstein, um dos dois mandatrios enviados aPortugal pelo Imperador alemo com poderes especiaispara o representarem na cerimnia nos transmitiu, soba forma de dirio (escrito em latim e publicadooriginariamente em1 503), um relato minucioso efidedigno. A descrio de Lanckmann no deixa dvidasacerca da natureza tendencialmente dramtica dessesfestejos, que decorreram at mesmo naqueles aspectosde que o teatro em princpio mais ausente se diria estar,como seriam as justas e os torneios sob o signometamrfico da representao, especialmente os quetiveram lugar nos dias1 4 e 21 de Outubro, a que porisso cumpre fazer aqui destacada referncia. Noprimeiro desses dias, narra o embaixador de FredericoIII, ordenaram-se vrios divertimentos ( ludi , vocbuloque tambm se empregava para designar representaesteatrais) que consistiram na perfigurao das cerimniasda eleio imperial de Frederico por sete eleitores doSacro Imprio Romano, da sua aclamao pelo Bispo deColnia, e da sua coroao (bem como da Infanta D.Leonor) pelo Sumo Pontfice, ladeado de cardeais

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    tudo com discursos e cartas. Pouco depois, umfamoso Doutor proferiu um discurso evocando osfastos da histria de Portugal, cujos reis quantos temhavido desde o princpio at ao presente Rei Senhor D. Afonso eram representados por figurantes vestidos,armados e coroados regiamente. De um lugarpreparado maneira de Paraso, na torre mais alta daIgreja Metropolitana, desceram a seguir, por artficiohumano, dois meninos vestidos de anjos, um trazendouma coroa de oiro para a Imperatriz, o outro um aafatecom rosas, que espargiu sobre a sua cabea, e cada umrecitou um texto alusivo. Trs outros meninos,simbolizando as virtudes teologais, com as respectivasinsgnias, dirigiram depois homenageada uma saudaoem verso. Por fim, treze figurantes trajando comoprofetas, cada um deles com seu livro na mo, vaticinaram aos desposados um futuro venturoso.

    No dia 21 de Outubro um indivduo vestido comgrande luxo, acompanhado de numerosa comitiva,dizendo ser o rei de Tria e trazer consigo trs filhos,Heitor, Pramo e Ajax, em trajes reais, e com esplndidoaparato, apresentou-se declarando que viera de longesterras ultramarinas (recorde-se a aluso s estranhas elongnquas terra contida nos momos de1 428) paratomar parte nas justas ordenadas por D. Afonso V, oqual aceitou o desafio. E continua Lanckman fizeram-se aqueles esplndidos e brilhantes passos dearmas como nenhuns iguais foram vistos antes, a queassistiu muita nobreza da Inglaterra, Esccia, Irlanda,Sevilha e outros pases.

    Um evidente propsito derepresentao, de recriaopara fins espectaculares de episdios reais (a eleio,aclamao e coroao do Imperador) ou simplesmente

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    alegricos (a saudao Imperatriz recitada pelos anjose pelas virtudes teologais, o vaticnio dos profetas, orepto do rei troiano), presidiu aos festejos descritos pelodelegado de Frederico III, e no se afigura errneoperscrut-lo at no prprio torneio justado entre D. Afonso V e seus companheiros de armas e o suposto reide Tria e seus filhos, sabido, como judiciosamenteobserva scar de Pratt, que ao findar o perodomedieval os torneios eram j a simples figurao dosepisdios cavalheirescos propagados pelas narrativaspicas.Teatro , pois na acepo mais elementar, pr-literria ainda, da palavra; teatro que se manifestavaigualmente nos combates simulados entre mouros ecristos, no desfile de selvagens das vrias partes domundo e de longnquas ilhas do mar sujeitas ao rei dePortugal, dizendo terem sido mandados por seus chefesa estas festas nupciais, na sucesso de engenhososartifcios maquinados, representando os maisestranhos e fabulosos animais (uma serpente horrvel,com o pescoo erguido, na qual vinha um guerreiroformosamente armado, que requeria e reptava acombater, justar e correr canas; um enorme elefanteque trazia no dorso uma torre com pequenos baluartesde madeira, em que estavam quatro trombeteiros equatro meninos etopes com pequenas lanas e canascompridas, atirando laranjas ao povo; um animalhorrvel, semelhando um drago, levado por quarentahomens, sobre o qual ia sentado um cavaleiro,esplendidamente armado e com um diadema nacabea), nos vrios disfarces sob os quais seapresentavam no s os figurantes que se exibiam nosdiversos entremezes como, at, as montadas quecavalgavam. Nicolau Lanckmann refere-se, no seu

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    dirio, a oito guerreiros em cavalos de diversas cores,cobertos de panos samedins, dos quais o primeiro,representava, na figura e na cor, um verdadeiro veado;o segundo figurava um unicrnio; o terceiro imitava afigura de um boi; o quarto apresentava a forma do leo;o quinto mostrava o capricrnio; o sexto era um ursoselvagem; e assim outras figuras os demais cavalos. ERui de Pina, naCrnica de D. A fonso V (captulo1 31 ), emque tambm alude aos momos e muitos entremezesde grandes invenes que assinalaram as festas nupciaisde 1 451 , saudosamente evocadas por um poeta doCancioneiro Geral , Duarte de Brito, descreve-nos osrespectivos comparticipantes vestidos de guedelhas deseda fina, como selvagens, em cima de bons cavalos,envestidos e cobertos de figuras e cores de alimraisconhecidas e outras disformes.

    O mesmo cronista, desta vez naCrnica de D. Joo II (captulo 21 ), menciona as grandes festas de toiros,canas e momos com que, em1 486, foi recebida nacorte daquele monarca um tal Monseor Duarte, senhordEscallas em Inglaterra, irmo da rainha de Inglaterra,mulher que foi del-rei D. Duarte. Mas o esplendor detodas essas festas depressa foi suplantado pela riqueza e variedade dos momos que o Prncipe Perfeito, quatroanos depois, mandou fazer em vora, por ocasio dascerimnias do casamento de seu filho Afonso com aprincesa D. Isabel de Castela, e que foram precedidospor outros em comemorao do anncio dos esponsais,nos quais tomaram parte o rei e os fidalgos da cortecom muita graa e gentileza de cores e divisas, comopara seus propsitos se requeria. Garcia de Resende,que numas trovas da suaMiscelnea saudosamente osevoca, chama-lhes, naV ida e feitos del-rei D. Joo II

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    (captulo 1 27), muito excelentes e singulares,acrescentando que eram tantos, to ricos e galantes,com tanta novidade e diferenas de entremezes, quecreio que nunca outros tais foram vistos. E aocompar-los s fbulas de Amadis e Esplandio, omoo de escrevaninha de D. Joo II implicitamente osfiliava na tradio pica dos romances medievais decavalaria. Tanto Resende como Rui de Pina fixaram, nas pginas

    das suas Crnicas, as invenes, os entremezes maissalientes desses festins, que se prolongaram por todo oms de Dezembro at ao Natal, e deixariam sulcoprofundo no s na vida da corte como at na histriado nosso teatro, em cuja evoluo desempenharamnotvel papel. Da sua extraordinria repercusso falam,por um lado, a ateno que se lhes concedeu nessasCrnicas e os vrios ecos disseminados peloCancioneiro Geral , impresso um quarto de sculo mais tarde,nomeadamente ao transcreverem-se as letras ecimeiras ostentadas pelos cavaleiros que tomaram partenas justas reais e bem assim as trovas escritas porFerno da Silveira para um dos entremezes includosnos momos de1 490 (uma mourisca ou festa demouros, divertimento de incluso obrigatria nas festasrgias, segundo Garcia de Resende refere naMiscelnea ); e, por outro lado, uma curiosa Arenga ou relao fieldas festas que se fizeram na cidade de vora no prazodo casamento do Prncipe D. Afonso, em versos deressaibo nitidamente popular, recolhida por TefiloBraga no seu volume sobreGil V icente e as origens do Teatro N acional : a se faz explcita referncia srepresentaes de galantes momos e entremezesinfindos/que a todos bem aprouveram, bem com aos

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    diversos lugares, magnificamente decorados, em que taisrepresentaes decorreram um porto soberbo,ingentes estrados, arcos aparatosos, um Parasoonde todas as ordens do Cu/estavam ordenadas, umgrande castelo/feito de vrias madeiras, volta doqual se viam trinta tendas marciais... Inteiramente sejustifica, alis, a ressonncia popular destas festas, poisque o povo nelas tomou parte directa, como sedepreende dos muitos e bem naturais entremezes erepresentaes que, segundo Rui de Pina, houve napraa e em outras partes pelas ruas tudo com muitariqueza, concerto e grandssima perfeio, acrescentaResende.

    No improvvel que Gil Vicente que teria, ento,cerca de 25 anos haja assistido a estas representaes,as quais verosimilmente contribuiram para o despertarda sua vocao dramtica. A legitimidade destasuposio reforada pela semelhana que existe entrealguns dos episdios de que elas se compunham e osautos narrativos e alegricos do poeta quinhentista, emque se prolongam o esprito cavaleiresco e a tradiocenoplstica dos momos do sculo XV. Assim, porexemplo, quando Garcia de Resende alude a umacompanhia de atabaleiros que se apresentavam todossem figuras de homens, uns feitos de feio de bugios,to naturais que ningum os teve por homens, e outrosem figuras de lees reais, com as felpas douradas muitonaturais, imediatamente ocorre um paralelo com atransformao em peixes e aves dos fidalgos e damas dacorte, que os planetas, reunidos em conclio, decidem nacomdia vicentina dasCortes de Jpiter ; com a serpente eo leo que aparecem naDivisa da Cidade de Coimbra ; ecom as sortes ventureiras dos galantes por animais e

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    das damas por aves que noA uto das Fadas sodistribudas queles e a estas. E a descrio do primeiromomo, na Crnica de Rui de Pina (captulo 47) noqual o prprio D. Joo II veio invencionado Cavaleirodo Cisne, com muita riqueza, graa e gentileza, porqueentrou pelas portas da sala com uma grande frota degrandes naus (nove batis grandes, em cada um seumantedor, segundo Garcia de Resende), metidas empanos pintados de bravas e naturais ondas do mar, comgrande estrondo de artilharias que jogavam, e trombetase atabales e menestris que tangiam, com desvairadasgritas e alvoroos de apitos de fingidos mestres, pilotose mareantes, vestidos de brocados e sedas, e verdadeirose ricos trajes alemes evoca irresistivelmente a cenada tempestade martima noTriunfo do Inferno e, por outrolado, a nau da grandura de um batel, aparelhada detodo o necessrio para navegar que Gil Vicente ps emcena naN au de A mores assim como os dois batis,infernal e celestial, daTrilogia das Barcas , que tiveramoutro precedente ainda no bergantim artificialmentefeito utilizado nos momos de1 500.

    Com estes momos do Natal de1 500 ainda maisnos aproximamos (e no s em sentido cronolgico: o Monlogo do V aqueiro surgiria dentro de dois anos apenas)do teatro vicentino. J, incidentalmente, mostrmosserem os pastores que, em plena missa do galo,entravam na capela danando e cantando, os mesmosque em breve iriam dialogar nos primeiros e ingnuosautos de devoo de Gil Vicente. Mas os vriosentremezes representados no dia de Natal que oembaixador Ochoa de Ysssaga, na carta endereada aosReis Catlicos, a que aludimos, se no limita a descrever,pois reproduz ainda o texto (em verso e em prosa) de

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    alguns deles recorrem a determinados smboloserticos, em que to prdigo se mostraria o nosso teatrode Quinhentos. Entre esses smbolos avulta o do hortode amores, que corresponde ao pomar onde D.Duardos (na comdia homnima de Gil Vicente) eFlerisel (no annimoA uto dos Stiros ), ocultando a sua verdadeira condio social, servem aquela a quemamam, e ao jardim onde o Amadis de Mestre Gil dialogacom Oriana e a Bela Menina (no auto homnimo deSebastio Pires) surpreendida pelo fidalgo de Frana. Variantes desse smbolo so, ainda, o bosqueencantado, que por duas vezes aparece nos momosdescritos por Ochoa de Ysssaga, e o castelo onde jazprisioneira a amada, que Gil Vicente utiliza nascomdias daDivisa da Cidade de Coimbra e daFrgua de A mores, em cuja rubrica inicial explicitamente se diz queo castelo de que aqui se fala por metfora. Em todosestes tpicos transparece a concepo do amor corts,entendido como vassalagem prestada pelo amador mulher amada, qual o propunham as novelas decavalaria e as cantigas de amigo dos Cancioneiros; mas,nos momos de1 500, eles servem ao mesmo tempo paraexaltar a poltica rgia de descobrimento e conquista denovos e distantes territrios no nomeados, /ocultos,nunca falados,/desde o cabo do Oriente, de ilhas etesouros/encobertos, como declara uma daspersonagens, dirigindo-se ao rei D. Manuel e rainha D.Maria, filha dos Reis Catlicos de Espanha.

    Por aqui se v faltar razo a Antnio Jos Saraivaquando nos apresenta os momos quais espectculosmudos a que a corte estava habituada, nos festejos doNatal ou Pscoa, de nascimentos, casamentos rgios ououtros, pois, se a pantomima neles desempenhava

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    papel predominante, o elemento literrio todavia noandava ausente, embora ocupasse lugar subalterno. Acarta do embaixador espanhol , sob esse aspecto,reveladora, e bastaria para dissipar dvidas, que alis osdocumentos anteriores a ela dificilmente consentiriam.Recorde-se que Nicolau Lanckmann, ao descrever osfestejos de1 451 , transcreve o texto de alguns dosepisdios ento representados; e, quanto aos restantes, aexistncia de um texto declamado por actoresimplicitamente resulta da prpria descrio. TambmRui de Pina e Resende, quando se referem ao entremezdo Cavaleiro do Cisne, integrado nos momos de1 490,no deixam de nos dizer que este saiu com suafala, eem joelhos deu Princesa umbreve conforme a suateno de a querer servir nas festas do seu casamento,breve que se publicouem alta voz , acrescentando Ruide Pina que logo vieram outros momos compalavras e invenes de muita ardideza e galantaria. Nas pginasdo Cancioneiro Geral , alis, multiplicam-se os vestgiosdesses textos, que preludiam a dramaturgia vicentina.Eis porque ainda hoje reputamos vlida, nas suas linhasgerais, a definio que, no princpio deste sculo,Carolina Michalis de Vasconcelos propunha para osmomos: representaes mmicas, acompanhadas dedana figurada e algumas vezes de palavras apropriadasao carcter das pessoas representadas.

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    8. REFLEXOS TEATRAISNO CANCIONEIRO GERAL

    Publicado em1 51 6 quando Gil Vicente havia jfeito representar obras da importncia doA uto da ndia edo V elho da Horta, e no ano que precedeu a criao daBarca do Inferno o Cancioneiro Geral , organizado porGarcia de Resende, recolhe um vasto material potico,em lngua portuguesa e castelhana, produzido sob os

    reinados de D. Afonso V, D. Joo II (de quem ocompilador foi secretrio particular) e D. Manuel (cujafamosa embaixada ao Papa Leo X secretariou),abrangendo, pois, um perodo excedente a meio sculo.No prlogo dirigido pelo autor da colectnea a esteltimo monarca, a apologia da arte de trovar teoricamente votada memorizao dos grandesfeitos nacionais, mas de facto reduzida s dimenses deum lirismo confidencial e palaciano, ou, j menosfrequentemente, epigramtico radica-se na convicode ser ela nas cortes dos grandes prncipes, muinecessria na gentileza, amores, justas emomos . Esta

    referncia expressa s representaes dramticas que

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    (acabamos de v-lo) tanto ilustraram a corte dos reisportugueses no sculo XV, se por um lado permiteajuizar da importncia que assumiram, por outroevidencia que elas se no limitavam a meraspantomimas, pois que a arte potica era chamada aparticipar tambm ainda que acessoriamente nessesespectculos. Assim se explicam as repetidas alusesque, por todo oCancioneiro, se fazem a manifestaes denatureza teatral: os autos representados nas festasnupciais de1 451 , que Duarte de Brito nostalgicamenterecorda; os entremezes de que falam lvaro de BritoPestana, Pro de Sousa Ribeiro e Duarte da Gama (noh a mais antremeses/no mundo universal/do que hem Portugal/nos Portugueses!); os momos que lvaro Barreto, e Pedro Homem evocam nos seus versos. Um destes poetas, lvaro Barreto, chega a citar,numas trovas a D. Afonso V, o nome de Rui de Sousa(que comparece nas pginas doCancioneiro , mas nonessa qualidade) como autor de momos: Rui de Sousaque bem cabe/nesta terra em que somos/por talfazedor de momos/qual entre ns se no sabe.

    Mas a presena do teatro noCancioneiro de Resende(que adjectivando-se de geral, implicitamente seobrigava a comportar, ao lado da poesia lrica e satrica,a poesia dramtica) no se limita a estes indirectostestemunhos. A forma apostrofante de muitas das suascomposies aproxima-as de verdadeiros monlogos e engendra, com frequncia, um encadeado de rplicas etrplicas que, virtualmente, j um esboo de dilogodramtico, semelhana das tenes da poesiatrovadoresca dos sculos XIII e XIV. Logo a abrir acolectnea, o longo debate sobre o Cuidar e suspirar,em que participaram vrios poetas, e que data de1 483-

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    trasladao do mosteiro velho de Santos para o novomosteiro de Santiago, as quais se realizaram a 24 deSetembro de1 490; e, com maior interesse, o breve doconde de Vimioso (D. Francisco de Portugal1 478?-1 549) de um momo que fez sendo desavindo, no quallevava por entrems um anjo e um diabo. Muitoesquematicamente, dramatiza-se nesta ltimacomposio o debate de um cavaleiro enamorado entreum diabo, que o tenta, e um anjo, que o protege e traz presena da sua amada, cuja benevolncia solicita paraele. Das quatro personagens intervenientes, duas apenas o Cavaleiro, que na fala inicial resume, em prosa, oconflito em seu ntimo travado, e o Anjo, que dirige dama a cantiga final tm a seu cargo a parte declamadado entremez; as duas restantes (a Dama e o Diabo)permanecem silenciosas. Mas j, sem dvida, umesboo de teatro e que, embora rudimentarmente,prefigura o debate que Gil Vicente amplificaria, com oseu gnio criador, noA uto da Alma e nos trs autos dasBarcas.

    Estamos, no entanto, ainda em regies circum- vizinhas da literatura dramtica propriamente dita. NemD. Francisco de Portugal nem Pro de Sousa Ribeiro,nem Ferno da Silveira nem o Rui de Sousa fazedor demomos lembrado por lvaro Barreto, podero serconsiderados verdadeiros dramaturgos, ainda que hajamcolaborado em manifestaes artsticas cuja potencialteatralidade no se afigura susceptvel de controvrsia.Nas pginas doCancioneiro Geral surge-nos, porm, umautor para quem a poesia se estrutura dramaticamente,para quem o dilogo o modo natural de expresso:queremos, j se deixa ver, aludir a Henrique da Mota.

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    9. OS ENTREMEZESDE HENRIQUE DA MOTA

    Alm do processo de Vasco Abul, que organizou, eem que Gil Vicente interveio (essa , alis, a nicaapario do autor dasBarcas na colectnea), e dealgumas composies poticas menores, a participaode Henrique da Mota noCancioneiro de Resende abrangequatro pequenos trechos dialogados que, se os

    examinarmos de perto, so outras tantas amostras deteatro. J em1 924 Leite de Vasconcelos ao pblicar, soba sua virtual forma dramtica, as trovas de Anrique daMota a um alfaiate de D. Diogo, sobre um cruzado quelhe furtaram no Bombarral, chamou a ateno para aque ele considerava uma das mais antigas peas doteatro portugus, justamente estranhando que, at essadata, nenhum dos historiadores deste houvesse atentadona dramaticidade orgnica dessas trovas. E, ao mesmotempo, abriu o caminho para que a restante produo deHenrique da Mota fosse abordada de um ponto de vistaidntico. Hoje, estudiosos como Rodrigues Lapa,

    Andre Crabb Rocha, Antnio Jos Saraiva, so

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    unnimes em reconhecer a natureza teatral dacontribuio prestada por Henrique da Mota aoCancioneiro Geral. Tal como aFarsa do A lfaiate , as trovas a um clrigo

    sobre uma pipa de vinho que se lhe foi pelo cho, aohortelo que a Rainha tem nas Caldas ou a uma mulamuito magra e velha, so breves quadros de costumes,de aco concisa e esquemtica, em que tomam partediversos interlocutores, cuja tipificao (obtida,geralmente, mediante processos lingusticos de seguroefeito cmico) atinge por vezes uma impressiva nitidez.Sob vrios aspectos, e mau-grado o seu elementarismo,desponta nos entremezes de Henrique da Mota a stira vicentina: quem, ao escutar a lamentao do clrigo por ver entornada a sua bebida predilecta (essa rosa, comolhe chama), no sente acudir-lhe lembrana oPranto de Maria Parda porque viu as ruas de Lisboa com topoucos ramos nas tabernas e o vinho to caro? E asuspeita insinuada acerca das relaes entre o clrigo e anegra a quem este acusa de lhe haver entornado o vinho(mas o receio de que ela v dizer ao juiz... que suamanceba leva-o, prudentemente, a retirar a acusao)porventura no induz a aproxim-lo do frade folio edevasso doA uto da Barca do Inferno , do cura de quem sediz no A uto Pastoril Portugus que no lhe escapamulher e do que naFarsa de Ins Pereira tentou lanarmo de Lianor Vaz, doClrigo da Beira, daquele cujosgraciosos amores no correspondidos se narram noA uto dos Fsicos de todos os eclesisticos, enfim, quemantm as regras das vidas casadas, to certeiramentealvejados no prlogo da comdia sobre aDivisa da Cidade de Coimbra? Mas no dever estabelecer-se umparalelo mais evidente ainda entre a deciso que o juiz

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    Gonalo da Mota profere acerca da moeda furtada aoalfaiate Manuel, cristo novo, e as sentenas disformesde Pro Marques, oJuiz da Beira vicentino uma dasquais, precisamente, incide tambm sobre uma moedade cruzado, que ambos os juzes sentenciam porperdida, o primeiro por hav-la o queixoso ganhadosem temor de Deus nem medo, o segundo por suaalma de judeu?

    Supe-se que aFarsa do A lfaiate haja sido composta (ea sua incluso noCancioneiro Geral justifica, outrossim, asuposio de que tenha sido representada na corte, bemcomo os demais esboos teatrais de Henrique da Mota)entre 1 496 e 1 506 vinte ou trinta anos, porconseguinte, antes doJuiz da Beira, que de1 525 ou 26. A L amentao do Clrigo precede, igualmente, oPranto de Maria Parda, datvel de1 522 seis anos aps apublicao doCancioneiro. Situada a meio do caminhoque dos arremedilhos jogralescos e dos entremezesintercalados nos momos palacianos conduz aos autos es comdias vicentinas, a obra sumria de Henrique daMota d-nos a impresso como justamente observa Andre Crabe Rocha de uma criana que balbuciaprimeiro e depois articula. Na verdade, o teatroportugus, balbuciante desde o incio da nacionalidadeat aos fins do sculo XV, comea a articular comHenrique da Mota e s adquire com Gil Vicente o plenouso da fala.

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    Documentrio antolgico

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    1 . JOGRAIS E TROVADORES

    Que as cantigas de amigo, de escrneo e de mal-dizer dos nossos Cancioneiros medievais no so teatro, evidente mas no o menos que a sua estrutura lrico-dramtica,sobretudo quando tomam a forma dialogal de tenes, dele as aproxima, permitindo falar ento em pr-( ou para-) teatro.

    So disso exemplo as trs cantigas de amigo e o curto poema satrico ( sirvents ) seleccionados para este volume,cuja linguagem no hesitmos em actualizar, procurando manter-lhes o estilo, a fim de os tornar mais acessveis ao leitor. A s duas primeiras so de autoria de um segrel e um

    jogral galegos, Bernaldo de Bonaval e Pedro Meogo, que viveram na primeira metade do sculo X III; a terceira deve- se a D. Dinis ( 1261-1325 );e o epigrama a A ires Nunes,clrigo de Compostela, talvez jogral da Corte castelhana e um dos maiores poetas do sculo XIII ( V . N emsio ).

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    BERNA LDO DE BONA V A L: CA NTIGA DE A MIGO

    (TROVADOR): Ai, formosinha, se bem cuidais,

    longe da vila, por quem esperais?(DAMA):

    Vim atender meu amigo.(TROVADOR):

    Ai, formosinha, se dizer-me qureis,longe da vila, a quem atendeis?

    (DAMA): Vim atender meu amigo.

    (TROVADOR): Longe da vila, por quem esperais?

    (DAMA): Dir-vo-lo-ei, pois me perguntais:

    Vim atender meu amigo.

    (TROVADOR): Longe da vila, a quem atendeis?

    (DAMA): Dir-vo-lo-ei, pois que o no sabeis:

    Vim atender meu amigo.( Cancioneiro da V aticana , 728;Cancioneiro da

    Biblioteca Nacional , 1 070)

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    PE R O M E O G O: CA N T I G A D E A M I G O

    (ME): Responde, filha, minha linda filha

    porque tardaste na fonte fria?

    (FILHA): Os amores hei!

    (ME): Responde, filha, minha filha lou,

    porque tardaste na fria fonte?

    (FILHA): Os amores hei.

    Tardei, minha me, na fonte fria,cervos do monte a gua turvavam:Os amores hei. Tardei, minha me, na fria fonte,

    cervos do monte turvavam a gua:Os amores hei.(ME):

    Mentis, minha filha, mentis por amigo:nunca vi cervo que turvasse o rio.

    (FILHA): Os amores hei.

    (ME): Mentis, minha filha, mentis por amado;

    nunca vi cervo que turvasse o mar.

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    ( FILHA): Os amores hei.

    ( Cancioneiro da V aticana , 797;Cancioneiro da Biblioteca Nacional , 11 40)

    D . D I N I S: CA N T I G A D E A M I G O

    (DAMA): Dizei-me, por Deus, amigo:

    tamanho bem me quereiscomo vs a mim dizeis?

    (CAVALEIRO): Sim, senhora, e mais vos digo:

    no cuido que outro homem queirato grande bem no mundo a mulher.

    (DAMA):

    No creio que tamanho bem vs me pudsseis querer,quo grande me estais a dizer.

    (CAVALEIRO): Sim, senhora, e mais vos direi:

    no cuido que outro homem queirato grande bem no mundo a mulher.

    (DAMA): Amigo, eu no vos crerei,

    pela f que devo a Nosso Senhor

    que me haveis to grande amor.

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    (AIRES NUNES):

    E em Cister, onde a verdade soasempre morar, disseram-me que nomorava ali desde longa estaoe nenhum frade j a conhecia,nem o abade a deixaria entrarse acaso ali quisesse ir parar,to fora ela andava daquela abadia.E em Santiago, sendo albergadona minha pousada, chegaram romeiros,perguntei-lhes e disseram-me:

    (ROMEIRO):

    Por Deus! Levais o caminho muito errado,pois, se a verdade quiserdes achar,outro caminho convm de a buscar,que no h dela aqui novas nem mandado.

    ( Cancioneiro da V aticana , 455;Cancioneiro da Biblioteca Nacional , 852)

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    2. TEATRO LITRGICOO Pranto breve que fazia Santa Maria, da morte de

    Jesus Cristo,que a seguir reproduzimos, restitudo sua virtual forma dramtica e actualizado na linguagem ( tal como fizemos em relao aos trechos anteriores desta curta antologia ), foi extrado das Laudes e Cantigas Espirituaisque AndrDias, abade do mosteiro de Santo Andrde Rendufe, sagrado bispo em 1408 pelo Papa Gregrio XII, publicou em Florena no ano de 1435,

    poucos anos antes de falecer monagenrio, e pode considerar-se um expressivo e raro exemplo, na nossa literatura medieval, de esboo de drama litrgico, evocativo das laudesmbrias do sculo anterior, encorporado mais tarde nos autos de devoode Gil V icente e alguns dos seus continuadores.

    A N DR DIA S: PRAN TO DE SA N TA MA RIA

    (MARIA): Vs que amais o criador,

    tende ora em menteo meu pranto e grande dor.

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    Eu sou aquela virgem santaque tenho o corao muito tristepor a morte do meu filho,meu prazer e esperana, e meu doce viso1 ,que foi cruelmente crucificadopor cada um pecador.

    meu filho, pessoa to bela,manda agora algum confortoa mim, tua madre muito mesela2,e deixa-me agora em bom porto,porque fico muito pobrela3,e que te criei com grande amor.

    cabea to bela e muito delicadado meu filho bem-aventurado, como te vejo muito inclinada!E tu, meu filho muito amado,como te vejo muito desonrado!E de coroa de espinhos s ensanguentado,por grande doesto e desonor.

    Os teus olhos so cerradose a tua barba depenada,os teus narizes sentem fedoresmuito sujos e ribaldos4,e a tua face muito desassemelhada,e todo tremes e hs grande pavor.

    A tua boca, muito corts e ensinada, Todos a perguntam, e ela no fala;e quando responde, de todos blasfemada,

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    e de fel e azedo por escrnio abeverada5,porque da nossa salvao grande desejo havias,oh tu, nosso salvador!

    As tuas mos so em a cruz estendidas,e muito mal atormentadas,e os teus braos padecem muito feridas,e de grandes pregos as tuas mos so muito

    [esfuracadas,de que eu, triste, hei muito grande dor.

    E os vossos ps, como so atormentados,que tanto tempo por nos pregar foram

    [cansados,e vede ora como so galardoados,cruelmente so enclavados,filho meu, Jesus, de tudo muito sabedor!

    E o vosso lado perfurou-o um cavaleiro[com sua lana,

    e logo da parte do vosso corao saiu assaz[de sangue e gua,

    porque a nossa culpa j perdoadapor vs, nosso Senhor Jesus Cristo e nosso

    [redentor.

    Agora, filho meu, pois que vos finais,a mim, desamparada, a quem me encomendais?Ou que ajuda de minha vida me deixais,porque de mim eu no posso mais sentir,seno chorar e carpir,enquanto eu neste mundo viva for?

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    (CRISTO): madre senhora, no choreis!

    Eu vos encomendo a meu primo Joo e meu[parente,

    e a ele por filho recebereis.E vs, meu primo, a minha me servireis,como bom e leal servidor.

    ( E a sua madre virgem Maria ficou muito esmorecida, e chorava e dizia :)

    (MARIA): E que escambo6 este, mesquinha,

    porque sempre chorarei por vero meu filho, e minha esperanade todo ser perdida com dolor?!

    (CORO): E choraremos ora porm todos com esta

    [senhora,que assim ora muito dolorosa,e lhe demandemos agoraque sempre nos seja piedosa,e tudo aquilo que lhe demandarmosnos seja muito graciosa,ante o seu filho, de todo o mundo fazedor.

    A men.

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    1 Rosto.2Msera.3 Pobrezinha (aportuguesamento do vocbulo italiano

    poverella ).4Perversos.5Embebida.6 Troca, substituio.

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    3. OS MOMOS

    Em relatos de testemunhas presenciais, nas pginas dos cronistas e nas trovas do Cancioneiro Geral,evidencia-se a teatralidade, ainda que elementar, dos momos representados na corte: ao roteiroou argumento dos vrios episdios ( entremezes ) que os integram, acrescenta-se por vezes o texto que os acompanhava, ou o seu resumo. Inclumos nesta antologia excertos do dirio do padre Nicolau L anckmann,

    de Walckenstein, que foi um dos embaixadores delegados pelo Imperador Frederico III da A lemanha para o representar nas cerimnias do seu casamento com a Infanta D. L eonor, filha de D. Duarte e irmde D. A fonso V , em 1451 ( seguindo, com ligeiras alteraes, a traduo dada por L uciano Cordeiro no volume Uma Sobrinha do InfanteImperatriz da Alemanha e Rainha da Hungria);excertos de uma Arenga ou Relao das Festas que se fizeram nacidade de vora no prazo do casamento do prncipe D. Afonsocom a princesa D. I sabel de Castela, no ano de 1490 ( transcrita por Tefilo Braga das Obras Inditasde

    A ires Teles de Menezes ); e a carta em que Ochoa de

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    Ysssaga, embaixador dos reis catlicos de Espanha na corte portuguesa, descreve a estes, com larga cpia de pormenores,as festas realizadas no N atal de 1500 ( traduzida a partir do texto publicado por Fidelino de Figueiredo na Revue dHistoire du Thtre Portugais, em 1952 ).

    A S FESTA S N UPCIA IS DE 1451

    No dia de Santo Colomano, que o dia1 3 do ms deOutubro, a Noiva, Dona Leonor, por todos chamadaImperatriz, foi solenemente conduzida pelo Senhor Reide Portugal, D. Afonso, e seu irmo o Infante D.Henrique, tio deles, com as duas Senhoras Infantas,irms da Senhora Imperatriz, ao Palcio, junto doCastelo Real, dentro dos muros da cidade, construdono alto do monte, onde cearam a uma mesa e osoradores (os Embaixadores de Frederico III,Lanckmann e Motz) em outra, mais baixa.

    E acabada a ceia, seguiram-se por toda a noite danase divertimentos vrios e encantadores.Em primeiro lugar vieram presena da SerenssimaSenhora Dona Leonor, Imperatriz, os reis de armas earautos, representantes das vrias Rainhas de toda aCristandade, em nome de cada uma das quaisapresentaram uma carta escrita Senhora Imperatriz.

    Em seguida veio o Infante D. Fernando com a suacomitiva, todos primorosamente vestidos numa s cor,e trazendo ele na mo uma carta em que anunciava a suachegada, com os seus cavaleiros, para assistir a estasfestas nupciais.

    Logo atrs vieram selvagens das vrias parte domundo e de longnquas ilhas do mar sujeitas ao

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    Serenssimo Rei de Portugal, dizendo: Fomos mandados por nossos chefes a estas festas nupciais . Vinham tambmhomens e mulheres nus, habitantes de uma ilhachamada Canrias, a qual ilha o Senhor Rei de Portugal,D. Duarte, casualmente descobriu. A seguir o Serenssimo Senhor D. Afonso, Rei dos

    Algarves e de Ceuta, e senhor irmo mais velho daSenhora Imperatriz, veio com os seus cavaleiros,chamados e escolhidos especialmente para este fim,todos com trajes ricos, bordados a oiro e feitos aprimor, entregando ele Senhora Imperatriz, sua irm,uma carta em que dizia que fora chamado com os seuscompanheiros e fortssimos guerreiros, de longnquaspartes da Terra, quelas festas nupciais, e que desejavamilustrar-se nelas por feitos de armas. Vieram depois ilustres alemes, com crespas cabeleiras

    at aos ombros, trazendo uma carta, e perante a SenhoraImperatriz protestaram que vinham da Alemanha,eleitos para estas festas nupciais, oferecendo-se para sedefrontarem com todas e quaisquer naes.

    No dia 1 4 do ms de Outubro a Senhora DonaLeonor, Esposa e Imperatriz, foi conduzida do RealCastelo, com grande honra e aparato, a um certo Palciono centro da cidade, onde se tinham ordenado vriosludi (divertimentos). porta deste palcio estavam sentados sete Eleitores

    do Sacro Imprio Romano, com toda a pompa, os quais,conforme suas cartas, elegeram o Serenssimo SenhorFrederico, Rei dos Romanos, por ImperadorDignssimo.

    Em segundo lugar estava o Senhor Bispo de Colniacom os Eleitores, aclamando Imperador o mesmoSenhor.

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    Em terceiro lugar, da parte oposta, sentava-se o SumoPontfice, Senhor Papa, com os Senhores Cardeais,impondo a Coroa e as Insgnias Imperiais ao Senhor Reidos Romanos, Frederico, e a sua esposa, Senhora edonzela Leonor, tambm com discursos e cartas.

    Depois, em quarto lugar, isto : em frente IgrejaMetropolitana, onde repousa o corpo de S. Vicente,estava sentado o Reverendssimo Senhor Bispo, comseus cnegos e demais clerezia, com as respectivas vestes sacerdotais, proclamando Imperatriz a NoivaSenhora Dona Leonor, que estava presente, a cavalocom seus irmos e irms e os Oradores. E lanando-lhea beno, o Senhor Bispo dizia-lhe:

    Que o teu nome e a tua semente cresam e floresam e se multipliquem como a areia do mar. E a bno do Omnipotente desa sobre ti, e a tua gerao seja longa e abenoada para servio de todos os povos cristos.

    Entretanto, da alta torre da sobredita igreja desceu,

    por artifcio humano, um menino, maneira de anjo,trazendo uma coroa de oiro para a Senhora Imperatrizdesposada; e vinha pelo ar cantando assim:Recebe esta coroa, aqui na terra, para que sejas no cu coroada por Deus,acima de todos os elementos.

    E ali fora tambm preparado um lugar, maneira deParaso, do qual um menino, fazendo de anjo nasalturas, veio pelo ar atravs de uma janela da torre,trazendo um aafate doirado com rosas, e esparzindo-assobre a cabea da Senhora Imperatriz, cantando: Recebe estas flores e rosas, para que tu e a tua descendncia floresam na terra, e com a flor da virtude, depois de longos anos no mundo,meream receber no cu a flor da eterna bem-aventurana.

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    Em quinto lugar, junto da referida igreja, do ladoocidental, foi feita uma estncia em que havia muitopovo reunido, aproximadamente vinte mil pessoas deambos os sexos, e onde um notvel Doutor pronunciouum discurso de quase meia-hora, em honra e louvor doSenhor Imperador e de sua Esposa.

    Neste mesmo stio viam-se tantas personagens reais, vestidas, armadas e coroadas regiamente, quantos osReis de Portugal e dos Algarves que tem havido desde oprincpio at ao presente Rei Senhor D. Afonso. E alioutro famoso Doutor narrou brilhantemente os grandesfeitos por eles praticados em prol da f crist e darepblica, e quantas vezes haviam exposto a vida contrapagos e infiis, e as vitrias que haviam alcanado; ecomo haviam sempre assistido e obedecido SantaIgreja Romana, e como tinham subjugado os Africanose implantado a f catlica em muitas partes.

    Ouvi ento quo grande era a constncia da f cristno Reino de Portugal, e como os reis portugueseshaviam afrontado a morte contra os Brbaros