O PRINCIPIALISMO NA BIOÉTICA

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O PRINCIPIALISMO NA BIOTICA Alexandre Jorge Alexandre Bieluczyk Regiano Bregalda1 1. Introduo

Os princpios bsicos que orientam a experimentao com seres humanos nas cincias do comportamento e da biomedicina foram introduzidos a partir de 1974, pelo Congresso NorteAmericano. A preocupao surgiu com os escndalos do caso Tuskegee e especialmente com os experimentos da II Guerra Mundial. Como resoluo foi publicado o relatrio Belmont Report e trs princpios para justificar as normas para os procedimentos de experimentao: 1) respeito pelas pessoas; 2) a beneficncia; e 3) justia. Normatizando somente a experincia com seres humanos, e no com outros animais e nem com o meio ambiente, os princpios no foram acolhidos com a mxima aprovao pela sociedade cientfica. Cinco anos depois, os bioeticistas Beauchamp, seguindo tendncias ticas utilitaristas, e Childress, defensor do deontologismo, refletiram e aprofundaram os trs princpios estabelecidos em 1974 e acrescentaram o princpio da no-maleficncia, como distino da beneficncia. Uma razo para fazer essa distino a de que os deveres negativos da no-maleficncia possuem algumas especificidades que parecem torn-los prioritrios em relao aos deveres de beneficncia (DALL AGNOL, 2004, p. 28). O principialismo uma teoria mista, isto , agrupa princpios deontolgicos (nomaleficncia e justia) e teleolgicos (beneficncia e autonomia). Num primeiro momento, o principialismo fundamenta-se nos princpios deontolgicos, com base na teoria frankena ou at mesmo de Hume. Por no apresentar um carter rigoroso, como a tica kantiana ou utilitarista de Mill, o principialismo denominado de prima facie (cada princpio vale enquanto consideraes morais no estiverem em jogo. Ex: a promessa vale, enquanto o dever da justia no emergir) compem de deveres no absolutos e no metafsicos. Deste modo, o principialismo distingue-se tanto da tica de Kant quanto da tica de Mill onde os princpios ticos fundamentais (o Imperativo Categrico e o Princpio da Utilidade) possuem validade absoluta (DALL AGNOL, 2004, p. 29). No segundo momento, importante salientar que princpios no so regras, mas prescries universais ou gerais.1

Acadmicos do Curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo.

2. Os princpios da biotica 2.1 Respeito autonomia Autonomia na perspectiva principialista no tem a conotao da tica kantiana da autoimposio de leis, mas trata-se de respeitar a liberdade e a capacidade do sujeito de escolher. Segundo Beauchamp e Childress para uma ao ser autnoma necessita de trs elementos: 1) a intencionalidade; 2) o conhecimento; e 3) a no-interferncia. Nesse sentido, entende-se a autonomia como um processo construtivo que o ser humano vai edificando a partir de uma srie de condies biolgicas, psquicas e socioculturais. A conceitualizao apresentada livra-se de alguns problemas tericos encontrados em outras linhas conceituais, que apontam a autonomia como um querer de segunda ordem. Assim, torna-se mais objetivo a apresentao dos pressupostos que fundamentam o princpio do respeito autonomia, pontuados na sequncia: 1. Que o desejo do agente seja de primeira ordem, ou seja, que suas deliberaes sejam pautadas na autonomia e no respeito mesma (de si e do outro); 2. No existe uma ao autnoma sem que haja intencionalidade e conhecimento, isto , a autonomia liga-se a um sujeito da ao que sofre interferncias. A possibilidade de um indivduo de autodeterminar-se a agir o que importa para caracteriz-lo como autnomo, como pessoa. (DALL AGNOL, 2004, p. 31). 3. A autonomia no absoluta e sempre est ligada com a responsabilidade. Por conseguinte, a autonomia no sinnimo de liberdade irrestrita, mas de autodeterminao (p. 32). 4. O dever de respeitar a capacidade do outro de deliberar sobre suas aes. Devemos respeitar as vises dos indivduos e seus direitos na medida em que seus pensamentos e aes no causem dano srio para outras pessoas. (DALL AGNOL, 2004, p. 32). 5. Da liberdade, isto , as aes autnomas no devem estar sujeitas a coaes pelos outros. O respeito escolha das pessoas devem ser respeitadas com profunda obrigao. 6. O respeito pessoa enquanto tal e no a autonomia, isto , a pessoa deve ser compreendida como um princpio tico fundamental. 7. O consentimento como validade do respeito pessoa, exige trs componentes: 1) precondies; 2) elementos informativos; e 3) elementos consensuais. Nos casos dos pacientes

desprovidos de tais condies seus representantes devem assumir o consentimento, partindo do princpio dos melhores interesses do representado. 8. Impedimento do paternalismo, ou seja, a negao da liberdade do outro e manifestao dos interesses prprios. Pontuado, de forma genrica, os elementos fundamentais em torno do princpio do respeito autonomia, podemos recorrer ordem constitucional brasileira que garante o direito autonomia ao prescrever que nenhum cidado obrigado a fazer algo seno de acordo com a lei. Isso justifica o poder de deliberao dos sujeitos com condies de autonomia. 2.2 No- maleficncia O princpio da no-maleficncia, no citado no Relatrio Belmont, vincula-se ao princpio da maleficncia, por defender o bem das outras pessoas sem provocar danos com intencionalidade. Passou a ser distinguido na tica biomdica e encontrado no juramento hipocrtico primum non nocere (em primeiro lugar, no causar dano). Embora, as divergncias em relao temtica, o princpio da no-maleficncia pode ser definido da seguinte maneira: No causes danos aos outros (DALL AGNOL, 2004, p. 39) nem intencionalmente, nem desnecessariamente. Nesse sentido, percebe-se uma obrigao do agir em favor do bem. Sem nenhuma sobrevalorizao de um princpio sobre o outro, o principialismo da nomaleficncia expe-se no de modo a priori, mas refora a ideia da obrigao de fazer o bem aos outros, ou na impossibilidade de faz-lo, evitar o mal, o dano. Assim, diferencia do princpio da beneficncia que procura respeitar o interesse dos outros.Se refletirmos, todavia, mais atentamente sobre a relao entre o princpio da nomaleficncia e o da beneficncia, percebemos que parece existir uma passagem gradual entre o no causar dano e o agir no interesse dos outros. Quer dizer, em primeiro lugar devemos evitar o mal e, ento, fazer o bem (DALL AGNOL, 2004, p. 40).

Nesse sentido, se pudssemos colocar uma hierarquia de princpios, primeiramente no se deveria causar dano; depois prevenir o mal; remover o mal; e promover o bem. Para tanto, no intuito de fundamentar a ideia do fazer bem aos outros, se faz necessrio esclarecer o que significa o conceito de dano. A discusso proposta no interior do princpio em questo aceita a ambigidade do termo que representa tipos de males das dimenses fsicas, psicolgicas, moral e at material.

Devido ambigidade, o princpio da no-maleficncia s possui validade prima facie e deve ser contraposto aos outros princpios, principalmente da beneficncia. Referindo-se ao profissional e no ao paciente, o princpio da no-maleficncia defende a posio do bem em primeiro lugar a pessoa. Nesse sentido, algumas perguntas da rea mdica podem ser feitas: 1) deixar algum morrer depois de uma parada cardaca, isto , no reanim-lo causar-lhe dano?; e 2) assistir algum no processo de morrer causar-lhe dano? A questo que norteia as problemticas gira em torno da diferena entre matar e deixar morrer. As questes mencionadas so difceis de responder, pois envolvem a anlise de um conjunto de princpios que proporcionam o exame harmnico das situaes, como da reverncia vida. Isto mostra duas coisas importantes: (i) que os quatros princpios do chamado principialismo devem funcionar juntos e de maneira harmnica, complementando-se um ao outro; (ii) que talvez seja necessrio introduzir outros princpios nessa teoria da biotica (DALL AGNOL, 2004, p. 43). 2.3 Beneficncia O termo beneficncia significa fazer o bem aos outros. Nesse sentido, a beneficncia o princpio elementar da biotica e de carter teleolgico, edificado a partir do utilitarismo. Na abordagem terica que nos guia, o princpio da beneficncia no exige uma distino do princpio da utilidade como dos autores de Principles of Biomedical Ethics, mas nos obriga a agir em benefcio dos outros. Levando ao p da letra, a beneficncia poderia ser resumida na seguinte mxima: Faa o bem aos outros. Nesse sentido, os profissionais da sade estariam obrigados a fazer o possvel para restabelecer a sade do paciente, mesmo em casos de riscos. Embora, a obrigatoriedade seja explcita, os deveres da beneficncia no se enquadram em alguns sistemas ticos por assumir uma relao particular ou por ser considerada alm-dever. O que pode ser dito, que a beneficncia assumida como sendo prima facie, enquanto focada no profissional da sade. A beneficncia divide-se em: 1) geral ao relacionar com todas as pessoas de forma indistinta e imparcial; e 2) especfica por estar relacionada com pessoas em que se estabelecem relaes especiais. No caso especfico, o grau de obrigatoriedade maior e no deve ser confundido com caridade, mas com o dever da beneficncia. Ele/a (profissionais da sade) tem o dever de agir em

funo do bem do paciente, isto , de seu bem-estar, da promoo de sua sade e da sua preveno da doena (DALL AGNOL, 2004, p.45). Na perspectiva da beneficncia podem-se citar algumas regras que se aproximam do princpio da no-maleficncia, como: 1) proteger e defender os direitos dos outros; 2) prevenir dano; 3) remover as condies que iro causar dano aos outros; 4) ajudar pessoas deficientes; e 5) resgatar pessoas em perigo. Embora, aja certa aproximao necessrio fazer uma diferenciao. As regras da no-maleficncia so proibies de aes, que visam no causar danos aos outros. Enquanto, a beneficncia no mbito geral no trata de condies jurdicas, apenas a censura moral; e a de cunho especfica indica a ao em benefcio de outrem. A linha divisria do princpio da no-beneficncia e da beneficncia tnue e difcil de encontr-la. No entanto, preciso ter o cuidado para no cair em seu limite denominado de paternalismo, restringindo aes autnomas. Um ponto terico importante relacionado com uma teoria tica pluralista como o principialismo a limitao recproca entre os princpios. Por exemplo, aceitar o princpio do respeito autonomia significa limitar a abrangncia do princpio da beneficncia (DALL AGNOL, 2004, p.47). Por essa via, o paternalismo s se torna justificvel quando a vida do agente estiver em extremo perigo. Diante, da limitao e da prpria complexidade dos princpios, de alguns casos deve ser escolhido um deles para guiar de forma coerente e a harmnica a ao. Parece que a aplicao conjunta de princpios possvel e que cada situao particular que vai decidir qual deles tem mais fora (DALL AGNOL, 2004, p.48). 2.4 Justia De todos os princpios da biotica, o da justia o mais complexo e polmico. Por justia entende-se tratar bem os iguais e diferentemente os desiguais um princpio formal da justia presente j no pensamento aristotlico. Por no apontar o que igualdade e nem quem so os iguais, podemos reformular o conceito de justia formal dizendo: trate equitativamente s pessoas. Dessa designao formal surgem algumas leis, como: 1) respeite cada pessoa na sua individualidade; 2) trate os direitos de todos igualmente; e 3) considere os interesses e as necessidades especficos de cada indivduo.

O segundo entendimento de justia restringe-se ao campo material, ou seja, uma conceitualizao estabelecida a partir dos seguintes critrios: 1) a cada um de modo igual; 2) a cada um segundo a necessidade; 3) a cada um segundo o mrito; 4) a cada um segundo a contribuio individual; e 5) a cada um segundo as leis do mercado. Nessa perspectiva, podemos encontrar as diversas ideologias e linhas tericas que partem dessa conceitualizao material de justia, como: utilitaristas, comunitaristas, igualitrias, etc. A partir do conceito de justia material emergem duas questes no campo da biotica: 1) a igualdade de oportunidades gnero, raa, idade, nacionalidade, etc, no critrio para distribuir bens e nem para proporcionar oportunidades; e 2) dar conta de um padro mnimo ou o cuidado assistencial para todos. Nesse sentido, podemos apresentar o conceito de justia material da seguinte maneira: distribua eficazmente os bens segundo a necessidade. Dentro das ideias apresentadas, percebe-se que a justia material perpassa duas outras dimenses: poltica e social. 3. Principais dificuldades da teoria principialista Algumas dificuldades rondam a teoria principialista na relao entre profissionais e pacientes. Vejamos: 1) formalismo dos princpios: construes categricas que tornaria inoperante para conduzir a ao; 2) generalismo dos princpios: quanto mais universais mais distantes das prticas humanas; 3) no do conta de casos particulares; 4) rigidez dos princpios: pretendem valer para sempre; 5) desvalorizao epistmica desses princpios para valerem como prima facie, ganhando a ambigidade entre o objetivo e subjetivo. Embora, o principialismo encontra dificuldades na exposio terica da sua estrutura no o caso de abandonar por completa as suas formulaes, muito menos de reduzir a uma teoria do senso comum. Outras oposies infundadas so direcionadas ao principialismo, por exemplo: 1) a tica das virtudes que busca defender a ideia de que existem outros elementos da vida moral mais fundamentais que os princpios, isto tica das virtudes. Baseada num modo de ser a partir dos costumes, do carter, etc, a crtica feita ao principialismo no se sustenta, pois o principialismo no

compatvel com as virtudes; 2) a axiologia que defende que os valores so mais importantes do que os princpios abstratos da ao; 3) no Brasil entende-se o principialismo como Made is USA como uma provocao para edificarmos uma biotica latino-americana. No entanto, esse argumento uma falcia gentica, pois no se pode reduzir a justificao de uma teoria a seu contexto originrio; 4) a crtica ao principialismo por no estar fundado numa metafsica tambm no se sustenta. Em busca de uma solidificao a biotica no est privada a uma corrente terica, mas deve ser pensada, reformulada e ampliada por vrias correntes que possibilitam o dilogo e a abertura no processo edificado. 4. A questo da validade dos princpios A veracidade, a privacidade, a confidencialidade e a fidelidade seguem as normas elementares do principialismo, ou seja, orientam-se pelo valor da prima facie e no so absolutas. Nessa perspectiva, a validade revela um campo misto do principialismo relao entre o deontolgico e o teleolgico. Os princpios so guias de ao que exigem o julgamento na aplicao, dependendo do carter do agente. princpios devem justificar tanto regras particulares de ao quanto modos de ser, virtudes ( DALL AGNOL, 2004, p. 56). O princpio prima facie representa um avano na busca pelos alicerces da tica biomdica e da biotica em geral. 5. Problematizao A partir dos fundamentos apresentados da biotica principialista elencamos algumas problemticas em torno dos alicerces que guardam os elementos necessrios da metodologia ideada para abordar questes concretas da vida. A problemtica que emerge tem origem dos prprios princpios, das articulaes e do prprio principialismo. Os princpios apresentam objetividade na linguagem e so acessveis tanto aos profissionais como aos leigos. Contudo, na medida em que exige um aprofundamento comea a surgir as dificuldades. Por exemplo: pelo princpio da autonomia a vontade do sujeito precisa ser respeitada,

isto , o consentimento do indivduo indispensvel em qualquer tipo de tratamento. No entanto, nem sempre essa vontade to livre como se projeta, pois muitas das decises so frutos da manipulao e alienao oriundos dos profissionais ou ento do prprio indivduo. A soluo da problemtica no est no jogo das informaes, mas na forma categrica do princpio da autonomia. Absolutizar o princpio da autonomia excluindo a manipulao e a alienao seria reconhecer a legitimidade da explorao e conceder a legitimidade para pratic-la. Para amenizar o valor absoluto da autonomia pode-se recorrer aos princpios da maleficncia ou no maleficncia que tambm apresentam seus perigos. Fazer o bem e no causar danos pode desencadear o paternalismo, isto , agir em favor do outro sem o consentimento do mesmo. Nesse sentido, faz-se necessrio perguntar quem vai definir o que o bem ( o sujeito atuante ou o beneficirio) e o que se entende por bem. A primeira questo exige um dilogo entre os dois princpios em questo com o princpio da autonomia, tarefa nada fcil; e a segunda pressupe no jogo outros princpios, assim como outros valores, interpretaes etc. Assim, os princpios da maleficncia e no maleficncia pela necessidade da participao de outros elementos para discutir o que vlido acaba perdendo sua neutralidade e sua operatividade. O princpio da justia tambm apresenta suas problemticas no que tange a equidade no acesso aos recursos. Depende de uma filosofia poltica que ajude a refletir a neutralidade e a operatividade da justia. Aplicando os quatros princpios nem sempre vamos ter xito, e pelo contrrio, muitas vezes pode-se perceber a inoperncia dos mesmos. Por exemplo: 1) em casos de aborto ou eutansia, as formulaes fundamentais do principialismo no desencadeiam solues. Tomando o princpio da autonomia teramos que admitir o aborto e eutansia como voluntrios, praticveis a pedido da vontade do sujeito. Isso chocaria com o princpio da maleficncia ou no maleficncia tais como so entendidos pelos intervenientes; 2) em casos da vontade do sujeito de tratar-se de uma grave doena e precisa esperar meses e anos em filas para o atendimento mdico. O princpio da vontade choca-se com o princpio da justia, da maleficncia e da no maleficncia. Enfim, podemos perceber que os fundamentos do principialismo entram em conflito com as singularidades e suas diversas circunstncias. Da surge casustica que busca evitar o subjetivismo por meio de um aparelho metodolgico amplo, ignorando a participao efmera no processo de deciso e deliberao.

5. Referncia DALLAGNOL, Darlei. Biotica: princpios morais e aplicaes. DP&A: Rio de Janeiro, 2004. p.27-60.