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MARCIAL BARRETO CASABONA O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA DOUTORADO EM DIREITO PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO - 2007

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE NO … · desceu-se à legislação infraconstitucional, o Código Civil vigente, abordando os pontos relativos ao princípio ali constantes

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MARCIAL BARRETO CASABONA

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE NO

DIREITO DE FAMÍLIA

DOUTORADO EM DIREITO

PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICASÃO PAULO - 2007

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MARCIAL BARRETO CASABONA

O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOLIDARIEDADE NO

DIREITO DE FAMÍLIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito (Direito Civil), sob a orientação do Professor Doutor Rogério Ferraz Donnini.

SÃO PAULO2007

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Banca Examinadora

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“O homem só é homem pela solidariedade, que o une a seus

semelhantes; o homem só pode viver por essa

solidariedade; o homem só pode diminuir o sofrimento que

lhe oprime por essa solidariedade. Por conseqüência, todo

ato de vontade individual que tende a realizar essa

solidariedade deve forçosamente se impor a todo homem.”

(Léon Duguit)

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Dedico esta obra a Roberto Azevedo.

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AGRADECIMENTO

Agradeço a Rogério Ferraz Donnini, magnífico orientador e melhor amigo.

Agradeço a Paulo Henrique Fernandes Silveira, Maria Carolina Bermond e Eliana Riberti Nazareth pelo incentivo e pela troca de idéias.

Esta obra resulta do meu interesse pelo Direito de Família e pelo desejo de vê-lo cada vez melhor refletido e aplicado; resulta, também, de meu profundo desejo de que possa significar um estímulo a meus filhos, especialmente ao Luiz Felipe, ao esforço, à luta pela vida e pelos seus ideais.

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RESUMO

Esta tese de doutorado tem por objeto a defesa da aplicação do princípio

constitucional da solidariedade (art. 3º, inciso I, Constituição Federal) no Direito de

Família. O trabalho é composto de uma introdução (capítulo I), na qual

minuciosamente se declara o percurso que será seguido. Em seguida, capítulo II,

é realizada uma pesquisa de natureza filosófica, buscando as origens do instituto

da solidariedade. Partiu-se de Aristóteles e de sua idéia de justiça e amizade, que

se entrelaçam com a caridade. A partir daí, o trabalho foi trazendo o pensamento

apenas dos mais importantes filósofos que trataram dos três assuntos. Concluiu-

se com o estudo de socialistas utópicos e o desdobramento da caridade em

solidariedade como dever, e, portanto, instituto jurídico. No capítulo III, é

abordado o solidarismo jurídico e seus mais significativos representantes. A

seguir, no capítulo IV, estudaram-se princípios, cláusulas gerais, conceitos legais

indeterminados, como meio de melhor se localizar a natureza jurídica do princípio

objeto deste trabalho. Fez-se, também, uma breve incursão pelo tema dos direitos

humanos, que guarda absoluta relação com o escopo desta tese. Em

continuidade, capítulo V, analisou-se o princípio da solidariedade em algumas das

mais importantes constituições em vigor, para juntar no capítulo VI com a

abordagem do mesmo princípio na constituição brasileira. Como decorrência

absolutamente lógica do caminho, enveredou-se pelo regramento da família nas

principais constituições estrangeiras e nas brasileiras. A partir daí, capítulo VIII,

desceu-se à legislação infraconstitucional, o Código Civil vigente, abordando os

pontos relativos ao princípio ali constantes ou faltantes. O trabalho é encerrado

com breve conclusão, na qual é deduzida de forma sucinta e objetiva a tese

defendida (capítulo IX).

Palavras-chave: amizade, caridade, justiça, solidariedade, princípio, cláusula geral, conceito legal indeterminado, direito humano, constituição, Código Civil, família.

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ABSTRACT

The objective of this PhD thesis is the defense of the application of the

constitutional principle of solidarity (art. 3°, clause I, Federal Constitution) within

family law. This assignment consists of an introduction (Chapter I), in which the

course to be followed is carefully laid out. Chapter II consists of a philosophical

investigation pursuing the origins of the instinct of solidarity.

Aristotle and his ideas of justice and friendship, which are strongly connected to

charity, was taken as a starting point. From there on, only the thoughts of the

most important philosophers who dealt with these three matters were included,

We end with the study of utopian socialists and the development of charity and

solidarity as a duty, and thus forensic institution.

In chapter III juridical solidarity and its most significant representations are

approached,

Next, in chapter IV, principles, general clauses, undetermined legal concepts were

studied, as a means to best pinpoint the juridical nature of the principles

underlying this study. A brief incursion in the subject of human rights, which bears

a close relation to the scope of this thesis, was also made.

Next, chapter V analyses the principle of solidarity in some of the most important

constitutions in force, leading in chapter VI to the approach of the same principle in

the Brazilian constitution. As an absolutely logical following, family regulations in

the Brazilian, and in the main foreign constitutions were studied.

From there, in chapter VIII, the inferior to the constitution legislation, the Civil Code

in force were considered, tackling the questions related to the included or missing

principles. The study is terminated with a brief conclusion from which the thesis

here defended is drawn succinctly and objectively. (chapter IX)

Key words: friendship, charity, justice, solidarity, principle, general clause,

undetermined legal concept, human rights, constitution, Civil Code, family.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................101.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................................111.2. APRESENTAÇÃO DO TEMA E PLANO DE TRABALHO............................................................12

2. VALOR E CONCEITOS DE SOLIDARIEDADE, AMIZADE, DIREITO E JUSTIÇA.............................182.1. DA PALAVRA SOLIDARIEDADE .................................................................................................182.2. DA JUSTIÇA .................................................................................................................................19

2.2.1. Justiça na Grécia Antiga........................................................................................................212.2.1.1. Leis divinas.....................................................................................................................212.2.1.2. Famílias, fratrias e clãs ..................................................................................................222.2.1.3. Justiça familiar e vingança – thémis e timoría ...............................................................232.2.1.4. O chefe de família - basileús..........................................................................................242.2.1.5. Contrato de amizade - philótes. .....................................................................................252.2.1.6. Primeiras legislações gregas e a lei de talião................................................................27

2.3. TEORIA CLÁSSICA DA JUSTIÇA................................................................................................282.3.1. Aristóteles ..............................................................................................................................28

2.3.1.1. Virtude e felicidade para Aristóteles...............................................................................282.3.1.2. Ética e política para Aristóteles......................................................................................292.3.1.3. A Justiça para Aristóteles...............................................................................................302.3.1.4. Amizade para Aristóteles ...............................................................................................32

2.3.2. Marco Túlio Cícero ................................................................................................................342.3.2.1. Justiça e Amizade para Cícero. .....................................................................................342.3.2.2. A República, a Lei e o Direito em Cícero.......................................................................36

2.4. TEORIA DA JUSTIÇA CRISTÃ ....................................................................................................372.4.1. Justiça e Caridade de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino ........................................37

2.4.1.1. Velho e o Novo Testamento...........................................................................................372.4.1.2. A vida feliz ......................................................................................................................392.4.1.3. Justiça, paz e bem comum ............................................................................................412.4.1.4. Caridade e perdão..........................................................................................................452.4.1.5. A caridade difere da amizade. ......................................................................................46

2.5. A TEORIA MODERNA DE JUSTIÇA............................................................................................472.5.1. Escola Clássica do Direito Natural ........................................................................................48

2.5.1.1. O pensamento de Huig Van Der Groot (Hugo Grócio) ..................................................482.5.1.2. O pensamento de Samuel Puffendorf............................................................................50

2.5.2. Os defensores do Contrato Social.........................................................................................512.5.2.1. Absolutismo de Hobbes .................................................................................................512.5.2.2. John Locke e o Liberalismo ...........................................................................................552.5.2.3. Jean Jacques Rousseau................................................................................................57

2.5.3 Escola Histórica do Direito .....................................................................................................602.5.3.1. Montesquieu...................................................................................................................602.5.3.2. Savigny...........................................................................................................................62

2.5.4. Immanuel Kant.......................................................................................................................642.5.5. George Wilhelm Friedrich Hegel ...........................................................................................71

2.5.5.1. A dialética em Hegel ......................................................................................................712.5.5.2. Hegel e o Historicismo ...................................................................................................732.5.5.3. A teoria dos Espíritos e a filosofia do Direito para Hegel...............................................74

2.6. A TEORIA DE JUSTIÇA SOCIAL .................................................................................................752.6.1. O Conceito de Solidariedade após a Revolução Industrial ...................................................75

2.6.1.1. Revolução industrial (1780-1860) ..................................................................................752.6.1.2. Trabalho nas indústrias..................................................................................................762.6.1.3. Leis dos pobres e caridade institucional ........................................................................772.6.1.4. Organização dos trabalhadores e solidarismo...............................................................782.6.1.5. A solidariedade incorporada pela sociologia .................................................................81

2.6.2. A teoria de Justiça de John Rawls ........................................................................................83

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3. O SOLIDARISMO JURÍDICO...............................................................................................................863.1. A SOLIDARIEDADE PARA LEON DUGUIT.................................................................................873.2.O PENSAMENTO DE GEORGES GURVITCH.............................................................................893.3. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O SOLIDARISMO JURÍDICO ............................................91

4. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE...................................................................................................924.1. PRINCÍPIOS, NORMAS, CLÁUSULA GERAL E CONCEITO LEGAL INDETERMINADO. ........924.2. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E OS DIREITOS HUMANOS .............................................100

5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL ESTRANGEIRO ..............1085.1. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917 ..............................................1085.2. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ DE 1919.....................................................1145.3. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES FRANCESAS ...........................1195.4. CONSTITUIÇÃO ITALIANA DE 1948.........................................................................................1225.5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAS DEMAIS CONSTITUIÇÕES EUROPÉIAS. ............126

6. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ........................................1276.1. PRECEDENTES HISTÓRICOS..................................................................................................1276.2. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO VIGENTE ......................................132

7. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA......................................................1367.1. FAMÍLIA: CONCEITO E TRANSFORMAÇÕES. REDESCOBERTA DA SOLIDARIEDADE

FAMILIAR ...................................................................................................................................1367.2. A FAMÍLIA E O DIREITO CONSTITUCIONAL...........................................................................146

7.2.1. A Família nas Constituições Estrangeiras...........................................................................1487.2.1.1. A família na Constituição Italiana (1948) .....................................................................1487.2.1.2. A família na Lei Fundamental Alemã - Bonn am Rhein (1949) ...................................1507.2.1.3. A família na Constituição Portuguesa (1976) ..............................................................1517.2.1.4. A família na Constituição Suíça (1999)........................................................................155

7.2.2. A família nas demais Constituições Estrangeiras. ..............................................................1567.3. A FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ..........................................................................157

8. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA FAMÍLIA CONSAGRADA NO NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO......................................................................................................................................1808.1. O DIREITO/DEVER DE SOLIDARIEDADE E A RELAÇÃO DE CONJUGALIDADE.................182

8.1.1. Casamento ..........................................................................................................................1828.1.2. União estável .......................................................................................................................183

8.2. AS RELAÇÕES DE PARENTESCO E O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE ...........................1848.3. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E A PROTEÇÃO DOS FILHOS NA DISSOLUÇÃO DA

RELAÇÃO DE CONJUGALIDADE.............................................................................................1858.4. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E O BEM DE FAMÍLIA ....................................................1888.5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E O DEVER DE PRESTAR ALIMENTOS.......................1908.6. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E OUTROS INSTITUTOS...............................................191

9. CONCLUSÃO.....................................................................................................................................193

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................................................195

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1. INTRODUÇÃO

1.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Vive-se uma época que alguns muito alardemente denominam pós-

moderna1.

É tempo do consumo, no qual alguns pensam (o que lhes convêm) e

conduzem o resto do mundo a “pensar o que os primeiros lhes fazem pensar”

(Karl Marx)2. É uma espécie de tirania da maioria (John Stuart Mill)3, embrutecida

por uma sociedade em que o homem cada vez mais se isola, se fecha em seus

casulos (cada vez menores e mais caros), não se relaciona com seus

semelhantes, que, em verdade, são seus competidores, não seus iguais. Hoje, há

pouco afeto, muita convivência, e o afeto no mais das vezes é carência, é falta.

Amor é uma palavra cada vez mais distante da clara realidade.

São palavras duras essas. O autor não se preocupa se isso é realismo ou

se pode ser visto como pessimismo. Gostaria que os humanos se amassem, se

doassem, o que tornaria esse trabalho menos útil. Assim não é, porém. Esta obra

trata da solidariedade. Quando o homem tem sentimentos espontâneos de ajuda

ao próximo, está-se no campo da caridade, mas quando assim não é, a conduta

de auxílio ao semelhante há que ser imposta pela norma. E, então, caridade mais

não é: está-se diante do instituto jurídico da solidariedade, imprescindível para

que a sociedade tenha sustento, para que não se esfacele.

Esta obra trata do dever que cada humano tem de socorrer o outro, cada

grupo de se unir ao outro e lutar por um mundo menos economizado, menos

1 “Uma sociedade marcada pelo capitalismo pós-industrial, consumo exacerbado, movimento constante, efemeridade e fragilidade dos laços afetivos entre as pessoas.” BAUMAN, Zigmunt. O Mal-estar da pós-modernidade. São Paulo: Zahar, 1998.2 Vide: MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista.

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utilitarista, mais digno do orgulho que o humano tem de sua humanidade, mais

harmonioso, mais justo, enfim.

1.2. APRESENTAÇÃO DO TEMA E PLANO DE TRABALHO

O mundo moderno vive um quadro de perplexidade, provocado pelas

intensas transformações sociais, políticas, econômicas, culturais, científicas e

tecnológicas.

A despeito de esse redimensionamento se apresentar sob diversos

aspectos, o fenômeno chamado “globalização” produziu profunda mudança no

mundo inteiro, principalmente, no que diz respeito à família.

Hoje, é fácil verificar que as pessoas se casam mais tarde, isso quando se

casam. Cresce o número de pessoas que se divorciam, sendo que muitos

divórcios são iniciados pelas mulheres. Mas não é só. Muitos casamentos incluem

ao menos um divorciado. Mas o novo casamento de divorciados também vem

diminuindo. Por seu turno, mais mulheres criam filhos sozinhas.

As mulheres estão tendo menos filhos, sendo certo que aumentaram os

nascimentos sem casamento. Igualmente, cresceu o número de mulheres que

optam por não ter filhos.

Cada vez mais os filhos fora do casamento são registrados por ambos os

pais. E, embora a maioria dos filhos viva com ambos os pais naturais, muitas

crianças têm um padrasto ou madrasta. Aumentou muito a experiência de

crianças com mudanças na família.

Cada vez mais as mulheres casadas trabalham fora. Igualmente, há um

número significativo de mães solteiras trabalhando fora. A maioria dos pais

trabalha em tempo integral.

Atualmente, com o avanço da medicina, há um número significativo de

pessoas acima de 65 e de 75 anos. Em outras palavras, a expectativa de vida

aumentou. Neste contexto, observa-se que há cada vez mais mulheres idosas

vivendo com os parentes e não com os maridos e vice-versa.

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Não se pode esquecer, também, o aumento das relações homoafetivas, a

exigir não só o estudo do fenômeno social pela ciência jurídica, como também a

efetiva proteção do direito positivo.

Alguns autores, ao estudar o futuro da humanidade, especialmente o futuro

da família, ressaltam as seguintes tendências do século XXI: mais pessoas nunca

se casarão; mais casais coabitarão sem casamento; mais crianças nascerão de

casais não casados; um terço a dois quintos dos casamentos terminarão em

divórcio; menos pessoas se tornarão a casar; mais crianças viverão com apenas

um dos pais; mais crianças viverão com padrasto ou madrasta; haverá mais

pessoas idosas aos cuidados de parentes. 4

Como se observa, as questões familiares, nesse contexto, são ainda mais

complicadas e complexas. Como se verá nesta tese, não há mais um só conceito

de família, mas vários conceitos, que variam no tempo e no espaço.

É nesta conjuntura que, nesta tese, se abordará o discurso da

solidariedade.

Um dos objetivos deste trabalho consiste em fazer uma análise sobre um

instituto jurídico específico, característico do direito contemporâneo, denominado

princípio da solidariedade.

Em franca discussão acadêmica, dá-se a importância da atuação humana

pautada na solidariedade como forma de garantir a vida e a felicidade no mundo

moderno.

O valor solidariedade teve sua origem na caridade, antes ligada à amizade,

uma das três virtudes teologais. 5

O cristianismo não só consagrou a pessoa humana como portadora de um

valor absoluto, através da mensagem de igualdade de todos os homens,

4 EEKELAAR, John & MACLEAN, Mavis. A Reader on Family Law. Grã-Bretanha: Oxford University Press, 1994, pp. 31 e ss., apud GLANZ, Semy. A família mutante – sociologia e direito comparado: inclusive o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 69.5 “As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão. Informam e vivificam todas as virtudes morais. São infundidas por Deus na alma dos fiéis para serem capazes de agir como seus filhos e merecer a vida eterna. São o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas faculdades do ser humano. Há três virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade.” in Catecismo da Igreja Católica, Edições Loyola, p. 488.

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independentemente de origem, raça, sexo ou credo6, mas também inaugurou o

tema da caridade, preceito ético de extrema importância para a humanidade.

A caridade é uma atitude geral e regular que o cristão deve assumir em

relação ao próximo e não depende do comportamento deste. Nisso a caridade

cristã se mostra diferente da moralidade pagã; ninguém questiona o dever de

amar aos próprios amigos, mas Jesus pede mais que isso, a caridade exigida por

Jesus é universal. 7

Como é de conhecimento geral, o cristianismo influenciou sobremaneira o

pensamento atual. 8 Posta assim a questão, é de se dizer que o preceito

“caridade” acabou por se desdobrar no preceito ético que hoje se denomina

“solidariedade”.

Por sua vez, o discurso da solidariedade, que originariamente pertencia ao

campo da moralidade e da ética, passou a freqüentar com destaque os debates

jurídicos das sociedades ocidentais, em razão da reaproximação entre a ética e o

direito9.

O princípio da solidariedade, como se verá, é um paradigma jurídico. É não

só uma orientação para a atuação do legislador, mas, também, uma referência

importantíssima para a compreensão do funcionamento das práticas jurídicas

positivas do direito atual. 10

6 Na Carta de São Paulo aos Gálatas, capítulo 3, versículo 28, lê-se: “não há judeu, nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”.7 MACKENZIE, John L. Dicionário bíblico. (tradução Álvaro Cunha ... et al.; revisão geral Honório Dalbosco) São Paulo: Paulus, 1983, p. 35-36.8 “O Cristo e o cristianismo seguem como as principais referências da civilização ocidental. De tal sorte é assim que nem pensamos nisso. Culturas vitoriosas são estáveis, pacíficas, civilistas e até um tanto frívolas na proteção de seus fundamentos. (...) É claro que o que vai acima se presta ao contencioso. Especialmente num tempo em que toda evidência serve à contestação. As culturas vitoriosas dão à luz os críticos de seus próprios fundamentos. É a melhor evidência de um triunfo. Assim, haveria ali a indisfarçável afirmação da supremacia de uma visão de mundo. Cristo é e seguirá sendo a principal referência do que reconhecemos no Ocidente como a nossa “cultura” porque somos todos cristãos. Se não formos pela fé, seremos pela história; se não formos porque devotos da Revelação, seremos porque caudatários de uma revolução. Cristãos, ateus, judeus, islâmicos, budistas, materialistas, espíritas, agnósticos, comungamos de um patrimônio que entendemos como um ideal de civilização e justiça. (AZEVEDO, Reinaldo. Somos todos cristãos. Revista Veja. Editora Abril: São Paulo, edição 1988 – ano 39 – nº 51 – 27 dez. 2006, p. 66)9 TORRES, Sílvia Faber. “O princípio da solidariedade no Direito Público Contemporâneo”. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 90.10 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 5.

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Enfim, é uma regra de juízo11 para as práticas jurídicas.

O princípio da solidariedade possui aplicação nos diversos ramos da

ciência do direito.

Esta tese tem por objeto o exame da solidariedade sob a ótica jurídica,

buscando identificar sua aplicação efetiva, enquanto um dos princípios

fundamentais da República Federativa do Brasil, como norma orientadora da

legislação infraconstitucional do Direito de Família e das sucessões.

Uma das hipóteses deste trabalho é, levando-se em conta a realidade

atual, abordar a questão do princípio da solidariedade e mostrar a possibilidade

de a ciência do direito auxiliar na criação efetiva de uma sociedade solidária

baseada numa democracia social e pluralista.

Procurar-se-á, no final desta tese, sempre a partir do citado princípio da

solidariedade, demonstrar a passagem da família socioafetiva para a família

sócio-solidária.

Com efeito, a filosofia e a ciência jurídica contemporânea exigem uma

mudança de atitude do pesquisador. Como diz G. Bachelar12, passa-se “do por

que ao por que não”.

Não se pretende aqui esgotar totalmente o assunto. Seguramente, hoje

não se pode mais pensar o mundo do Direito de maneira estática. “O

conhecimento do real não é jamais imediato e pleno; as revelações do real são

sempre recorrentes”.13 O conhecimento é sempre uma tentativa, comporta

sempre retificações, tanto mais no domínio das ciências humanas e sociais, como

é o direito.

Antes de expor a principal orientação metodológica que norteia esta tese,

torna-se necessário reafirmar a primeira regra de todo método: não se pode

compreender o que se encontra se não se sabe o que se procura.

11 Sobre a noção de “regra de juízo”, vide EWALD, François: Foucault: A Norma e o Direito. Tradução de Antonio Fernando Caiscais. Lisboa, Vega, 1993, pp. 59-66, 209 e ss. 12 BACHELARD, G. La Formation de l’Espirit Scientifique. Paris, J. Vérin Édition, 1977, p. 13 e 14 (grifo nosso).13Id. Ibidem.

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Nesta parte da tese, buscar-se-á, também, responder ao seguinte

questionamento: o princípio da solidariedade aqui estudado se encontra entre os

direitos fundamentais de terceira geração?

Também será objeto deste estudo a família, sob o prisma do direito

constitucional brasileiro e estrangeiro. Evidentemente, é de conhecimento geral a

extraordinária relevância que, nos últimos anos, ganhou a chamada

constitucionalização do direito civil, sendo inadequada a abordagem do tema no

Direito de Família sem este exame preliminar da questão constitucional.

Certamente, esta abordagem não terá a pretensão de aprofundar o

assunto, porquanto o objeto da tese é matéria de direito civil e, mais

especificamente, do Direito de Família.

A terceira parte do trabalho abordará o Direito de Família. Verificar-se-á em

que dispositivos do livro IV do Código Civil – DO DIREITO DE FAMÍLIA – acha-se

aplicado o princípio da solidariedade e como isso se dá, com a devida e

necessária observação a respeito da adequação ou não de sua aplicação.

Nesta mesma parte, serão criticados os artigos do Código Civil que

deixaram de atender o princípio constitucional da solidariedade.

A importância deste trabalho tem forte ligação com o pesquisador. Seu

objeto e a delimitação do estudo são frutos de seu interesse, curiosidade e

também de seu compromisso com a realidade, e é essa interação que pode

enriquecer a compreensão do objeto.

O fulcro maior desta tese se dá a partir do princípio da solidariedade e do

estudo das normas de Direito de Família. Dentro deste enfoque, apresentam-se

sugestões sobre como o operador do direito deve aplicar o citado princípio, tudo

tendo em mente a realidade social do século XXI, caracterizada por uma

sociedade de consumo, acentuadamente urbana e tecnológica.

Com isso, se bem resultar a empreitada, estar-se-á trazendo para o Direito

de Família uma contribuição no sentido de ser ele adaptado e completado ao

princípio constitucional que é título desta tese.

O trabalho é encerrado com a necessária conclusão.

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2. VALOR E CONCEITOS DE SOLIDARIEDADE, AMIZADE, DIREITO E

JUSTIÇA.

2.1. DA PALAVRA SOLIDARIEDADE

Inicialmente, antes de se estabelecer um conceito sobre solidariedade, é

necessário buscar o sentido etimológico da palavra.

O dicionário Aurélio15 apresenta, dentre outros, os seguintes significados

da palavra “solidariedade”:

SOLIDARIEDADE

[De solidári(o) + edade]

Substantivo feminino

Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade.

Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s).

Observa-se na atualidade que a palavra “solidariedade” vem sendo

retomada e tem sido estudada pelos mais diversos ramos do pensamento

humano. No entanto, essa recuperação parece não conservar a origem do

conceito. É provável que tenha sofrido mudanças, readequações, reformulações e

negações. Pode ainda ter deixado de ser um conceito para se transformar em

uma idéia, noção, uma expressão ideológica.

Pedro Buck Avelino define a solidariedade como:

Atuar humano, de origem no sentimento de semelhança, cuja finalidade objetiva é possibilitar a vida em sociedade, mediante respeito aos terceiros, tratando-os como se familiares fossem; e cuja finalidade subjetiva é se auto-realizar, por meio da ajuda ao próximo.16

Por sua vez, Wladimir Novaes Martinez, em estudo voltado para a área do

direito previdenciário, leciona que:

15 Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0 - O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa corresponde à 3ª edição, 1ª impressão da Editora Positivo, revista e atualizada do Aurélio Século XXI, O Dicionário da Língua Portuguesa, contendo 435 mil verbetes, locuções e definições. ©2004 by Regis Ltda.16 AVELINO, Pedro Buck. Princípio da solidariedade: imbricações históricas e sua inserção na constituição de 1988. Revista de Direito Constitucional e Internacional, nº 53, out./dez. São Paulo: RT, 2005, p.250.

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A solidariedade social é projeção do amor individual, exercitado entre parentes e estendido ao grupo social. O instinto animal de preservação da espécie, sofisticado e desenvolvido no seio da família, encontra na organização social ambas as possibilidades de manifestação. 17

Apresentados alguns conceitos do valor solidariedade, questiona-se se tal

pode ser considerado um princípio, um direito ou um dever na ordem jurídica.

Esse é o objetivo da próxima parte do trabalho.

2.2. DA JUSTIÇA

Antes de ingressar inteiramente no tema desta tese, qual seja, o princípio

da solidariedade, é necessário fazer uma breve dilação ao que a doutrina

denomina axiologia jurídica e/ou deontologia jurídica.

A noção de direito sempre esteve ligada à teoria de justiça. O direito, à

exceção do positivismo jurídico de Kelsen18, é sempre visto, pelos juristas, como

um esforço para realizar a justiça19.

17 MARTINEZ, Wladimir Novaes Martinez. Princípios do direito previdenciário. São Paulo: RT, 1995, p. 78.18 HANS KELSEN - Jurista austro-húngaro nascido em Praga, criador da teoria pura do direito, foi o principal representante do positivismo jurídico através da obra “Hauptprobleme der Staatsrechtslehre”. Elaborou a constituição austríaca (1920) quando era juiz da Suprema Corte Constitucional da Áustria. Em 1940, emigrou para os Estados Unidos, onde foi professor das universidades de Harvard e de Berkeley, na Califórnia. Publicou, ainda, Principles of International Law. Hans Kelsen desenvolveu sua doutrina visando à desvinculação do Direito de outras ciências, purificando seu conteúdo de toda a ideologia política e de todos os elementos de ciência natural. Sua intenção foi elevar a Ciência Jurídica à altura de uma genuína ciência, com objetividade e exatidão. Essa meta

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Gurvitch 20, um dos grandes estudiosos do direito, assim como M. Hauriou,

B. Cardozo, dentre outros, reconhecem que “um elemento constitutivo de todo o

direito é um elemento ideal, a JUSTIÇA”. Igualmente, já dizia Del Vecchio: “A

noção de justo é a pedra angular de todo o edifício jurídico”. 21

Incontestavelmente, o debate entre os juristas não diz respeito à estreita

relação entre a justiça e o direito, mas sim à concepção de justiça.

O que é a justiça?

O estudo da justiça, como parte fundamental do direito, conduz a um

sistema de valores, pois a justiça é um dado axiológico continuamente

confrontado com outros valores, como a ética e a moral.

Diversas são as acepções, conceitos e teorias de justiça. Aliás, o estudo

das teorias da justiça, sem dúvida, é um dos principais temas da ciência jurídica.

A justiça, em sua acepção subjetiva, significa a virtude em geral; numa

acepção menos ampla, seria não a virtude em geral, mas apenas o conjunto de

virtudes sociais ou virtudes de relação e convivência humana. Todavia, em

sentido estrito, a justiça designa uma virtude com objeto especial. Nessa acepção,

“a essência da justiça consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma

igualdade”, definição clássica de São Tomás de Aquino22. Por sua vez, em sua

acepção objetiva, justiça é o que se aplica à ordem social para garantir para cada

um aquilo que lhe é devido. 23

Este título não tem a ambição de dar respostas, formular conceitos,

tampouco iluminar as mentes dos leitores com o brilhantismo do pensamento

socrático, aristotélico, kantiano, tomista, kelseniano, etc.

Sem grandes pretensões, estudar-se-ão as três principais teorias de

justiça, a saber: teoria clássica da justiça, teoria moderna da justiça e teoria da

DA SILVA. Francisco Viegas. Relatividade da Justiça na Jurisdição. Revista Escola Direito, São Paulo, 5(1): 343-352, Jan./Dez. 2004.20 GURVITCH, G. Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: Kosmos, 1964, p.34.21 DEL VECCHIO, G. Justice, Droit, État. Sirey, 1938, §1, p. 4 apud MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito. 25ª ed., 2ª tiragem – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 122.22 “Ratio justitae in hoc consistit quod alteri reddatur quod ei debetur secuncum aequalitatem”.23 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito. 25ª ed., 2ª tiragem – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 128 e ss.

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justiça social. O preceito solidariedade inaugura, como se verá adiante, a noção

de justiça social.

2.2.1. Justiça na Grécia Antiga24

2.2.1.1. Leis divinas

Coube ao historiador Fustel de Coulanges (1830-1889) destacar, pela

primeira vez, a relação intrínseca entre a religião e o direito nas sociedades

arcaicas. Sua obra monumental, A cidade antiga – estudos sobre o culto, o direito,

e as instituições da Grécia e de Roma (1864), ajudou a traçar as linhas de

pesquisa de renomados sociólogos, antropólogos e historiadores do direito. 25

Anterior ao advento da escrita (graphé), as leis (thémistes) 26 antigas eram

sustentadas por uma tradição religiosa. Essas leis eram proferidas por

reis/sacerdotes que se julgavam inspirados pelos deuses. Eram leis milenares,

implacáveis, cuja origem ninguém sabia ao certo. É o que explica Fustel de

Coulanges:

A lei antiga não precisava de justificativas. Por que haveria ela de as ter? Não necessitava de explicar suas razões; não era obra da autoridade; existia porque os deuses a fizeram. A lei não se discute, impõe-se. Os homens obedecem-lhe porque crêem nela. Durante longas gerações as leis eram apenas orais; transmitiam-se de pai para filho como as crenças e as fórmulas de oração. 27

Para compreensão desta sociedade arcaica que sustenta esta forma de lei,

é preciso coletar atentamente os dados históricos fornecidos por Homero em suas

duas grandes epopéias: a Ilíada e a Odisséia.

24 Parte dos textos utilizados neste capítulo e no seguinte foi material utilizado em aulas particulares ministrada pelo Prof. Dr. Paulo Henrique Silveira no período de 2003 a 2006.25 Ainda no século XIX, o livro de Coulanges se faz notar nos estudos: Da divisão do trabalho (1893) e no Proibição do incesto e suas origens (1896), de Émile Durkheim, e no A religião e as origens do direito penal(1897), de Marcel Mauss. No início do século XX, Coulanges influencia, direta ou indiretamente, os livros: Solidariedade de família no direito criminal da Grécia (1904) e os Estudos sociais e jurídicos sobre a antiguidade clássica (1906), de Gustave Glotz, e o livro Investigações sobre o desenvolvimento do pensamento jurídico e criminal na Grécia (1917), de Louis Gernet. 26 Platão refere-se à lei não-escrita (ágraphon) como oriunda de costumes ancestrais {PLATÃO, As leis, 793a}. 27 FUSTEL DE COULANGES, A cidade antiga, p. 153.

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2.2.1.2. Famílias, fratrias e clãs

No tempo de Homero, século IX antes de Cristo, as famílias (géne) 28 eram,

econômica e juridicamente, auto-suficientes (autarkés). Faziam parte do genós as

pessoas que tivessem qualquer laço de parentesco. Alguns géne possuíam centenas

de pessoas:

Embora casados, os cinqüenta filhos e as doze filhas de Príamo habitam a mesma casa paterna. Se o grupo gentílico tem, como coletividade, obrigações em relação à cidade, os indivíduos que o compõem dependem unicamente da família. O grupo conserva a sua autonomia, tem o seu chefe, o seu culto, a sua administração, a sua justiça. 29

Em algumas regiões, necessidades econômicas e militares levaram as

famílias (géne) a se agruparem em fratrias (phratríai), e as fratrias, em tribos ou clãs

(patraí).

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antiga é, desta forma, mais uma associação religiosa do que uma associação natural. 33

2.2.1.3. Justiça familiar e vingança – thémis e timoría

As leis divinas e eternas, que compõem a justiça familiar (thémis),

garantem a ordem do génos. Estas leis proíbem: os sacrilégios, os ultrajes aos

mortos, as ofensas aos parentes, os adultérios, os incestos, os parricídios, os

assassinatos e toda forma de injúria ou de atentado contra as autoridades da

família. Por outro lado, a mesma thémis suscita os laços de hospitalidade (xenía)

e os contratos de amizade (philótes). 34

O principal objetivo dessas leis era preservar a paz. 35 A rígida hierarquia

no interior do génos e as severas penitências aos infratores procuravam garantir o

respeito (aidós) às leis e a manutenção da ordem. Acreditava-se que as thémistes

transgredidas, e que não recebessem punição, provocariam a ira divina (némesis)

contra toda a cidade. É o que assevera Hesíodo:

Amiúde paga a cidade toda por um único homem mau que se extravia e que maquina desatinos.

Para eles do céu envia o Cronida grande pesar: fome e peste juntas, e assim consomem-se os povos, as mulheres não parem mais e as casas se arruínam pelos desígnios de Zeus olímpio. 36

Uma vez que toda a cidade, ou seja, um conjunto de clãs, fratrias e

famílias, paga pelo delito religioso (hýbris) de uma única pessoa, a punição

envolve toda a coletividade. Um sentimento de vingança (timoría) 37 une as pessoas

para punirem aquele que ameaça a sorte de todos. Nesse sentido, argumenta

Louis Gernet, a timoría não traduz uma vingança pessoal, mas a necessidade de

justiça produzida por uma solidariedade coletiva: “Na verdade, se o assassinato

impõe a vingança (timoría), é porque ele desencadeia uma força imperiosa,

33 FUSTEL DE COULANGES, A cidade antiga, p. 34.34 HOMERO, Odisséia, canto XIV, vv. 56-8.35 GLOTZ, A cidade grega, p. 6.36 HESÍODO, Os trabalhos e os dias, vv. 240-5. Nesse mesmo sentido, verificar passagem da Ilíada, canto XII, vv. 385-95.37 A palavra timoría significa “preservar a timé”, ou seja, preservar a dignidade dos phíloi, dos parentes e amigos preciosos {GERNET, Anthropologie de la Grèce antique, p. 340}.

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aquela da solidariedade do clã que se exprime na idéia da ‘assistência’

recíproca.”38

Segundo Marcel Mauss, a vingança é um efeito dessa unidade religiosa. 39

Por outro lado, o dever de vingança reanima essa unidade do clã; o que era efeito

passa a ser condição, as regras da justiça sustentam e são sustentadas pela

coesão social. Acredita-se que a impunidade possa provocar, além da ira divina,

doenças misteriosas nos parentes que se furtam ao dever de vingança. 40 Em

muitos casos, a vingança da coletividade gerava a guerra entre os géne. A guerra

dos aqueus (gregos) contra os troianos é um exemplo de confronto motivado pela

vingança.

2.2.1.4. O chefe de família - basileús

Cada família possuía um chefe encarregado de memorizar e de impor as

leis divinas. Homero associa o poder deste chefe de família à posse de um cetro

sagrado, que ele herda de um antepassado direto. 41 Alguns poetas o chamam de

rei soberano (basileús). É tarefa do basileús convencer seu povo a ter dignidade

(timé) e respeito (aidós) pelos deuses e por suas leis. 42 Pensava-se que o

sangue do basileús era o mais puro da família, e que seu poder refletia

diretamente o poder dos deuses cultuados.

Na estrutura hierárquica da família e do clã, o basileús é a pessoa mais

poderosa. Ele não precisa prestar contas de suas decisões, a não ser aos

deuses, os quais ele mesmo trata de interpretar. Ésquilo ilustra o terror dos

desmandos dos reis na trilogia Oréstia: inspirado por um presságio dos deuses, o

rei Agamêmnon decide sacrificar a própria filha, a menina Ifigênia. 43

Nessa organização jurídica, não há espaço para julgamentos; quando

muito, a pessoa condenada pode pedir clemência ao rei ou aos deuses. Os

38 GERNET, Recherches sur le developpement de la pensée juridique et morale em Grèce, p. 143. Émille Durkheim chama esta forma de solidariedade de mecânica {DURKHEIM, Divisão do trabalho, p. 154}.39 MAUSS, “Origines religieuses do droit pénal”, p. 685.40 Nas Coéforas, Ésquilo fala do fantasma que “assombra” o parente de uma vítima {ÉSQUILO, Oréstia –Coéforas, vv. 272-4}. 41 HOMERO, Ilíada, canto IX, vv. 98-102. As sociedades primitivas chamam este objeto sagrado de totem, e o conjunto de proibições legais de tabu {FRAZER, La rama dorada, p. 41; FREUD, Totem e tabu, p. 1790}. 42 HESÍODO, Teogonia, vv. 75-90.43 ÉSQUILO, Oréstia - Agamêmnon, vv. 228-248.

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únicos opositores das determinações do basileús são os oráculos, 44 que também

reivindicam o poder de interpretar os mandamentos divinos. De todo modo, faça o

que fizer, rei algum pode infringir as leis que ele mesmo deve promover entre os

membros da família e do clã. As thémistes limitam o poder do basileús. Desde

Homero, a isonomía firma-se como uma exigência na Grécia Antiga.

A Trilogia tebana, de Sófocles, fornece um exemplo paradigmático de um

basileús condenado por desrespeitar as thémistes: Édipo infringe duas leis divinas

ao cometer o incesto e o parricídio. A impunidade do rei Édipo provoca a ira divina

contra seus concidadãos, tornando inférteis as mulheres e os campos. Na

tragédia, os oráculos prevêem que apenas o sacrifício do rei poderia conter a ira

divina. Na segunda parte da Trilogia tebana, Antígona cobra a isonomía do rei

Creonte, que ameaça desrespeitar as leis não-escritas:

Não reconheço nas tuas ordens força que a um mortal permita violar aquelas não-escritas e intangíveis leis dos deuses.

Elas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; ninguém sabe quando foram promulgadas.45

2.2.1.5. Contrato de amizade - philótes.

Como demonstrou Gustave Glotz no seu doutorado, Solidariedade de

família no direito criminal da Grécia, a concepção de justiça familiar (thémis)

influencia, diretamente, a coesão social naquela sociedade. Em sua perspectiva

mais sombria, ao convocarem toda a família para vingar os crimes cometidos, as

thémistes promovem uma solidariedade ativa, que pode levar à guerra. Por outro

lado, inúmeros rituais antigos procuram selar contratos de amizade (philótes)

entre estrangeiros (xénoi). Como assevera Homero, o próprio Zeus é o deus

protetor dos estrangeiros e dos errantes, é sua thémis que obriga as pessoas a

cumprirem os deveres de hospitalidade: “A thémis não me permite ultrajar um

estrangeiro, mesmo que viesse alguém ainda mais miserável do que tu, pois é de

Zeus que vêm todos os hóspedes e todos os miseráveis.” 46

44 Este seria um interessante tema de pesquisa sobre a política antiga: como atestam as tragédias gregas, os oráculos, como o famoso Tirésias, exerceram uma oposição ao poder do basileús.45 SÓFOCLES, Antígona. In. Três tragédias gregas, vv. 450-7. 46 HOMERO, Odisséia, canto XIV, vv. 56-8.

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Na base dessa estrutura social, há um socialismo primitivo. Em sua

clássica pesquisa sobre a relação de amizade nas sociedades primitivas, o

“Ensaio sobre a dádiva”, Marcel Mauss destaca a importância da troca de

presentes nesses rituais. Como prova de amizade, as famílias ofereciam contratos

de casamento:

Na sua forma mais antiga (e em um meio de nobreza que a poesia épica nos faz conhecer), o casamento é um fato de comércio contratual entre grupos familiares; a mulher é um elemento desse comércio. A sua função é selar uma aliança entre grupos antagônicos. 47

Seja como laço de cooperação entre estrangeiros, seja como contrato de

casamento, a philótes foi uma conseqüência direta da thémis:

Nesses tempos, a relação estabelecida pela amizade está longe de ser puramente sentimental, ela é, sobretudo, uma relação jurídica. Um homem chama de amiga (phílon) uma mulher ou uma casa, pois esta mulher é dele, e porque a casa lhe pertence. Nesses casos, o coração não tem importância. Por isso Homero, para referir-se ao ‘amor’, constantemente acrescenta: ‘amar em seu coração’. São, naturalmente, phíloi, os homens que se unem pelos deveres do respeito (aidós), parentes e aliados, companheiros e criados. 48

Entre os séculos VII e VI antes de Cristo, com o desenvolvimento do

comércio (empórios), surgem, na Grécia, a moeda (nómisma) e as primeiras

legislações. A justiça familiar (thémis) começava a perder espaço para a justiça

(díke) e para as leis (nómoi) escritas da cidade (pólis). Este processo acabaria por

enfraquecer o poder do basileús e a solidariedade familiar oriunda das thémistes:

Os chefes dos grandes géne perdiam para sempre os privilégios de determinar e interpretar segundo o seu arbítrio as fórmulas que deviam pautar a vida social e política. Era o fim das thémistes que se originavam de uma tradição tenebrosa, das thémistes deformadas por memórias infiéis ou por consciências venais; soava a hora do nómos promulgado à luz do dia, repartindo com precisão os direitos e os deveres e, posto que também revestido de caráter sagrado, variável segundo as exigências do interesse comum. De uma só vez, ruía o regime gentílico, corroído na base. Estabelecia-se uma relação direta entre Estado e indivíduos. A solidariedade da família, tanto na forma ativa como passiva, já não tinha razão de ser. Em todos os casos em que o próprio Estado não reconhecia, pelo menos implicitamente, o direito de vingança ou de

47 VERNANT, Mito e pensamento entre os gregos, p. 207. No seu doutorado, As estruturas elementares do parentesco, Lévi-Strauss defendeu a tese de que a proibição do incesto nas sociedades primitivas justifica-se por esta relação de trocas, e não pelo temor ao totem, como defendera Freud no Totem e Tabu. Segundo Gernet, algumas festas populares promoviam casamentos coletivos {GERNET, Anthropologie de la Grèce antique, p. 39}.48 GLOTZ, Études sur l’antiquité grecque, p. 22. Sobre o sentido contratual da amizade arcaica, ler de David Konstan: A amizade no mundo clássico, p. 36.

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transação privadas, impunha a sua jurisdição à parte lesada e, para fazê-la aceitar, reprimia todas as violências com uma severidade que, no entanto, jamais devia ultrapassar a lei de talião. 49

2.2.1.6. Primeiras legislações gregas e a lei de talião

No sétimo século antes de Cristo, surge a primeira legislação na Grécia.

Promulgadas por Zaleucos de Locres, essas leis escritas restringiram o direito de

vingança das thémistes. A partir de então, apenas o Estado tinha o poder de

autorizar a vingança, mesmo assim limitada ao talião. Para Glotz, com a

severidade das punições, Zaleucos procurava mostrar a rigidez do poder do

Estado. 50

Por volta do ano 621 antes de Cristo, as thémistes e o poder dos géne

sofrem novo abalo com as leis de Dracon. Este legislador pretendia combater os

abusos do direito de vingança, substituindo a guerra privada pela repressão

social:

Dracon deixa livre o génos para julgar seus membros, consagra tacitamente o direito do marido sobre a esposa, do pai sobre as crianças, do senhor sobre os escravos, e se guarda a tal ponto de penetrar no interior da família, que ele não intervém nem mesmo no caso do parricídio. Mas ele não tolera mais que uma família lesada por uma outra que faça justiça por conta própria. 51

Em sua cuidadosa análise dos termos jurídicos gregos, Gernet mostra

como a palavra timé deixa de significar apenas dignidade para adquirir o sentido

de uma reivindicação. Após as leis escritas e a criação dos tribunais de justiça, o

direito de vingança (timoría) do génos passa a depender de uma reivindicação

(timé) legal. 52 A legislação de Dracon determina que apenas parentes próximos

podem exigir vingança. E mais: para que os tribunais acatassem o direito de

vingança, todos os parentes deveriam concordar com a pena. Começavam a ser

levadas em conta as decisões individuais contra a antiga unidade imposta pelo

génos.

49 GLOTZ, A cidade grega, p. 88. Dodds defende esta mesma tese no seu Os gregos e o irracional, p. 41.50 GLOTZ, Histoire Grecque, p. 240.51 GLOTZ, Histoire Grecque, p. 421.52 GERNET, Recherches sur le developpement de la pensée juridique et morale em Grèce, p. 143. É interessante notar que a palavra latina vindicare significa: reivindicar e vingar.

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Em 594 antes de Cristo, sobe ao poder o poeta Sólon, a Grécia ganha uma

nova legislação. Sólon antecipa o espírito da filosofia e das artes da Idade

Clássica. Contra a violência e o permanente estado de guerra e de conflito dos

géne, Sólon elege a moderação como princípio fundamental de suas leis. O

fortalecimento do Estado e a garantia dos direitos individuais, como o da

propriedade, garantem a independência do indivíduo frente à família. 53

Definitivamente, entre a ânsia de vingança familiar e aqueles que cometem crimes

e excessos, surge um direito público, com leis escritas conhecidas por todos e a

possibilidade de um julgamento.

Essa mudança radical nos sentidos de justiça e de lei promoveu

transformações políticas e econômicas; as relações sociais no interior da família e

fora dela foram profundamente alteradas. Segundo os grandes estudiosos do

período, a sociedade já não dependia mais da solidariedade familiar, pelo menos

não desta solidariedade familiar que antecede os contratos escritos e que era

fortalecida pelo direito familiar e religioso de vingança.

Estava aberto o espaço de discussões políticas e filosóficas sobre a idéia

de justiça e de amizade, espaço que seria ocupado por teóricos brilhantes do

período Clássico e do helenismo greco-romano.

2.3. TEORIA CLÁSSICA DA JUSTIÇA

No pensamento jurídico clássico havia uma tendência de identificar a

justiça ao ideal moral.

2.3.1. Aristóteles

2.3.1.1. Virtude e felicidade para Aristóteles

No primeiro livro do Ética a Nicômaco, Aristóteles investiga os fins que

podem dirigir o comportamento dos homens. Para o filósofo, nem o prazer,

próprio dos escravos e dos animais, nem a honra, frágil bem que se sujeita à

53 GLOTZ, op. cit, p. 421.

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opinião alheia, estão à altura de nossas possibilidades racionais de escolha. Para

Aristóteles, a virtude (aretés) é a grande finalidade da existência humana, o que

torna o homem superior aos outros animais. Esta é a finalidade que ele sonha

para os filhos Nicômaco e Eudêmio, esta é a finalidade que ele desejaria

encontrar nos cidadãos atenienses e na pólis organizada a partir das novas leis

escritas.

A virtude deve guiar o comportamento ético e racional a partir da prudência

(phrónesis). 54 Aristóteles não cria um catálogo das ações boas ou ruins. No

mesmo espírito dos diálogos socráticos e dos poemas e leis de Sólon, Aristóteles

defende o princípio da autárkeia, da auto-suficiência dos homens para se

decidirem por suas ações de uma maneira virtuosa, ou seja, da melhor maneira

possível para cada circunstância.

A racionalidade (lógos) e a educação (paideía) formam o homem para

viver em sociedade, livre dos ímpetos da paixão, para criar e respeitar as

melhores leis e para aplicar a justiça na vida pública e na vida privada. É com

essa lição aos filhos e à humanidade que Aristóteles principia sua ética.

Ao perseguir a virtude, ao agir de acordo com ela, o homem se aproxima

da felicidade e da boa sorte (eudaimonía). O homem é um animal social que

encontra nas ações virtuosas sua principal realização. A honra e o prazer não

devem ser escolhidos como fins em si mesmos. O reconhecimento social e o

prazer mais elevado devem surgir como conseqüência da ação virtuosa.

2.3.1.2. Ética e política para Aristóteles

Tanto na ética como na política, a justiça (díke) é a disposição da alma que

direciona o pensamento e a ação virtuosa em vista da excelência moral perfeita.

Ainda que seus significados estejam muito próximos, a prudência e a justiça não

são sinônimos. Em muitas partes do livro Ética a Nicômaco, Aristóteles refere-se

às ações justas como sendo, também, moderadas e prudentes. No entanto, a

54 Para Pierre Aubenke, a prudência de Aristóteles é o substituto humano para as falhas da providência, e uma previdência ante um porvir obscuro. Por estas razões, a palavra latina prudentia, contração de providentia, é uma boa tradução para a phrónesis de Aristóteles {AUBENKE, A prudência em Aristóteles, p.155}.

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prudência indica uma moderação nas escolhas e nas paixões que nem sempre

tem efeitos sociais. A prudência e a moderação funcionam como remédios, auto-

medicamentos para as paixões e para os desejos. Já a justiça implica numa

relação entre as atitudes da pessoa e o seu meio social:

Com efeito, a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também ao próximo (...) De fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso para os outros, quer se trate de um governante, quer se trate de um companheiro da comunidade. 55

Nessa perspectiva, seja no âmbito das relações éticas, entre elas as do clã

ou da família, seja na pólis regida por boas leis, a justiça deve delimitar a relação

com o próximo. Por outro lado, assim como a virtude, os atos justos tendem a

produzir e a preservar a felicidade.

2.3.1.3. A Justiça para Aristóteles

Aristóteles56, como visto antes, e que logo abaixo será melhor enfocado, no

Livro V, de sua obra Ética à Nicômaco, afirmava que a justiça é uma virtude

completa. 57

Para Aristóteles, ser um homem justo é ao mesmo tempo ser piedoso,

aguerrido e sensato, é apresentar atributos como prudência, honestidade e

moderação, dentre outros.

Na ética aristotélica, a justiça é uma virtude moral própria da pessoa, sendo

encarada como uma característica comportamental, que dirige a ação do

indivíduo em face da lei geral e particular. O bom cidadão é virtuoso não só pelo

55 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1130a.56 384-322 a.C.57 “A justiça é a virtude perfeita, embora com uma qualificação, a saber, que mostrada por outrem. É por isso que muitas vezes se pensa que a justiça é a principal das virtudes, mais sublime ‘do que a estrela vespertina ou do que a estrela d’alva’; e temos o provérbio: ‘Na justiça encontra-se, em suma, toda a virtude.’ A justiça é a virtude perfeita porque é o exercício da virtude perfeita; e é perfeita num grau especial, porque quem a possui pode praticar sua virtude em relação a outros e não apenas a si mesmo; pois há muitos homens que podem praticar a virtude em seus assuntos privados, mas não podem fazê-lo em suas relações com o outro.” ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V. Editora Universidade de Brasília (UNB).

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fato de cumprir a letra da lei, mas também por sua disposição interior permanente

de cumprir seus deveres legais perante a comunidade. 58

O filósofo, após perscrutar o sentido da palavra justiça, correlacionando-a

com sua antítese a injustiça, chega a esboçar o que, hoje, se denomina eqüidade.

Em outras palavras, a definição de justiça pressupõe a definição de injusto,

que é a violação da proporção, ou seja, da igualdade. O justo, portanto, é a

igualdade. Sendo assim, Aristóteles privilegia o aspecto distributivo da justiça.

Ele é o autor da famosa distinção que acompanha toda a filosofia jurídica

do ocidente de forma imperecível, qual seja: a justiça distributiva e comutativa.

A justiça distributiva ou proporcional, por ele comparada a uma proporção

geométrica, é aquela que leva em consideração o valor das pessoas, distribuindo

desigualmente entre elas as funções, bens, cargos, honrarias e direitos, na

medida em que se desigualam em méritos ou capacidades.

A justiça comutativa prescinde do valor pessoal para só levar em conta as

coisas, ações ou serviços, a fim de que haja uma equivalência entre o dado e o

recebido, na base de um critério de igualdade.

E essa espécie de justiça é chamada de justiça equiparadora, retificadora,

corretiva. Ao juiz cabe fazer com que prevaleça a igualdade na distribuição dos

bens quando rompido o equilíbrio social, porque é desejável uma paridade entre

pessoas ligadas juridicamente.

Diz ele que a eqüidade é a melhor espécie de Justiça, verbis:

Por conseguinte, a justiça e a equidade são a mesma coisa, e ambas são boas, embora a equidade seja melhor. A fonte da dificuldade é que a eqüidade, embora justa, não é a justiça legal, mas sim uma retificação da justiça legal.59

A justiça aristotélica influenciou o pensamento filosófico de São Tomás de

Aquino e de outros filósofos que se seguiram. Werner Goldschmidt 60, ao estudar

58 Id. Ibidem, p. 91/111.59 ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Brasília: Editora Universidade de Brasília (UNB), p. 109.60 GOLDSCHMIDT. Werner. La Ciência de la Justicia. Madrid: Aguilar, 1958, p.5.

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o tema enfocado, em obra célebre, assim se pronuncia sobre a influência de

Aristóteles:

(...) La estructura de la Justicia - En la Etica a Nicómaco, de Aristóteles, se encuentra al principio igualmente la captación de la justicia como virtud; más exactamente, no como virtud especial, sino la equiparación de justicia y virtud, la cual, desde luego, ya se remuenta a Platón, se conserva en Cicerón, es aceptada por teología cristiana y subsiste en la Edad Moderna hasta Leibniz.61

2.3.1.4. Amizade para Aristóteles

Nos livros VIII e XIX do Ética a Nicômaco, Aristóteles trata do tema da

amizade. Não seria possível abordar este conceito sem antes analisar os temas

da virtude, da felicidade e da justiça: “Depois do que já dissemos cabe-nos

examinar a natureza da amizade (philía), pois ela é uma forma de excelência

moral ou é concomitante com a excelência moral, além de ser extremamente

necessária na vida.” 62

Retomando uma idéia já debatida por Platão no diálogo Lísis, 63 Aristóteles

analisa a tese de que a amizade só é possível entre pessoas igualmente

virtuosas. Segundo essa tese outorgada aos filósofos Pitágoras e Empédocles, só

a pessoa boa e virtuosa seria capaz de amar o bom e o virtuoso numa pessoa

que tivesse estas mesmas qualidades, e só nestas condições a amizade seria

possível.

Para Aristóteles, nem a excelência moral, nem a amizade fazem parte da

essência de quem quer que seja. Tanto a virtude quanto a amizade devem ser

cultivadas e alimentadas regularmente pelas pessoas. Neste sentido, uma pessoa

que preza a justiça e a virtude possui grande potencialidade para as relações de

amizade. Mas a amizade não é exclusiva das pessoas comumente virtuosas.

Uma pessoa que não esteja acostumada a praticar ações justas pode vir a

aprender sobre a justiça a partir da relação de amizade com uma pessoa justa.

61 A estrutura da justiça - Na Ética a Nicômaco, de Aristóteles, encontra-se ao princípio também a captação da justiça como a virtude; mais exatamente, não como o virtude especial, mas a comparação da justiça e davirtude, a qual, naturalmente, já remonta a Platão, se conserva em Cícero, é aceita pela teologia cristã e subsiste na Idade Média até Leibniz.62 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1133b. 63 PLATÃO, Lísis, 214b.

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Não fosse dessa maneira, haveria pouca ou nenhuma esperança na formação de

crianças perversas. Nesse sentido, a amizade precede a idéia da justiça:

Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam de amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa. 64

Há amizade entre pessoas que tenham boa vontade recíproca

(benevolência) e se desejem bem. Isso pode ocorrer entre cidadãos, entre

familiares ou entre meros companheiros de viagem. Assim, como existem

diferentes formas de associação, existem diferentes formas de amizade entre as

pessoas:

A extensão da amizade é limitada ao âmbito de sua associação, da mesma forma que a extensão da existência da justiça entre tais pessoas. O provérbio ‘os bens dos amigos são comuns’ é a expressão da verdade, pois a amizade depende da participação. Os irmãos e os membros de uma confraria têm tudo em comum, mas as outras pessoas às quais nos referimos têm somente certas coisas em comum – algumas mais, outras menos – pois nas amizades também há maior ou menor intensidade. As reivindicações de justiça em relação à amizade também diferem; os deveres dos pais para com os filhos e os dos irmãos entre si não são idênticos, nem aqueles dos membros de uma confraria e os dos cidadãos em geral, e da mesma forma com as demais espécies de amizade. 65

Ao destacar a diversidade das relações de amizade, Aristóteles afasta-se

de uma predeterminação mística ou cosmológica da amizade. Para Empédocles,

por exemplo, a sucessão das encarnações determina o tipo de amizade possível

para cada homem e para cada forma de existência, numa relação predeterminada

pelo cosmo. 66

Segundo Aristóteles, as razões que motivam a amizade são

antropológicas. As pessoas procuram a amizade para obter reciprocidade no

prazer da companhia, para obter reciprocidade de interesses ou para obter a

reciprocidade e a constância no querer o bem do outro. Os três motivos são

eminentemente psicológicos. Nada de divino ou de cosmológico interfere

diretamente na possibilidade destas relações de amizade.

64 ARISTÓTELES, op. cit, 1155a. 65 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1160a.66 CARDOSO, “A paixão da igualdade, paixão da liberdade: a amizade em Montaigne”, p.171.

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A forma mais perfeita e rara de amizade, a que visa o bem do próximo,

exige que a pessoa seja virtuosa e que encontre amigos virtuosos que estejam

dispostos a fazer o bem ao outro. Esta é a forma de amizade mais duradoura,

uma vez que ela é determinada pelas qualidades do amigo, e não por um prazer

ou um interesse circunstancial. Por outro lado, é uma amizade que pressupõe

tempo e intimidade para que se conheça o amigo e para que se comprovem suas

intenções. Amizades desse tipo fazem parte da felicidade das pessoas

virtuosas.67

É preciso destacar, ainda, que não há uma correspondência direta entre a

forma de associação ou de amizade e a motivação psicológica daquela forma de

união. As relações familiares, por exemplo, podem estimular amizades que visem

o prazer, o interesse ou o bem do outro. Mas, de uma maneira ou de outra, há a

justiça e a reciprocidade em qualquer laço de amizade.

2.3.2. Marco Túlio Cícero

2.3.2.1. Justiça e Amizade para Cícero.

As idéias de Aristóteles sobre a ética, a justiça e a amizade marcam,

profundamente, a filosofia helenista. Elas reverberam no ceticismo, no epicurismo

e, especialmente, nos estoicismos grego e romano. Em muitos pontos, a filosofia

de Marco Antônio Cícero é herdeira desta ética aristotélica. No livro “Dos

deveres”, Cícero retoma a articulação estabelecida por Aristóteles entre a justiça

e a amizade. Como para Aristóteles, a justiça ciceroniana pauta as relações de

amizade. Para haver justiça nas relações de amizade, é preciso aprender a

honrar a palavra e a respeitar os acordos. 68

Pelo menos num ponto, Cícero se distancia das análises de Aristóteles.

Para Cícero, há uma verdadeira amizade, 69 justamente aquela que Aristóteles

considera a mais rara e perfeita, possível, apenas, entre homens virtuosos e que

só querem o bem do amigo. Portanto, a amizade pelo prazer da companhia e,

67 ARISTÓTELES, op. cit., 1170a.68 CÍCERO, Dos deveres, I, VII, 23. 69 Neste ponto, Cícero aproxima-se de Platão, que já defendia a tese de uma amizade verdadeira (alethés philía) {PLATÃO, Lísis, 214d.}.

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especialmente, a amizade por interesse não devem ser vistas como formas puras

de amizade, porque contaminadas por interesses outros.

Cícero preocupa-se em definir a justiça ao lado da injustiça, e as condições

para a amizade ao lado das condições para a inimizade. É preciso conhecer bem

o amigo e suas verdadeiras intenções para poder julgar sua amizade. Mais ainda,

é preciso saber-se o dono de determinadas virtudes para poder estabelecer um

laço de amizade verdadeiro: “Quem contempla um amigo verdadeiro contempla

como que uma imagem de si mesmo.” 70

A amizade funciona como espelho e critério para o próprio exercício da

justiça e da virtude. Antes mesmo de saber escolher os amigos, é preciso fazer-

se merecedor da amizade verdadeira:

Muitos homens, porém, contra a razão, para não dizer sem vergonha, erram ao querer ter um amigo tal qual eles mesmos não conseguem ser, esperando dele serviços que eles mesmos não lhes prestam. Ora, antes de tudo convém ser homem de bem para depois procurar um semelhante. Entre pessoas assim é que a estabilidade na amizade, da qual vimos falando, se pode consolidar, desde que elas, unidas pela benevolência, primeiro dominem as paixões que escravizam os demais, depois amem a equidade e a justiça, assumam suas obrigações recíprocas, só peçam umas às outras serviços conformes à moral e ao direito e, além da estima e do amor, se proporcionem respeito mútuo. 71

A amizade verdadeira não coincide com a idéia de reciprocidade dos

pitagóricos. Não é preciso dar exatamente o que se recebeu para provar a

amizade verdadeira. Exige-se, muito mais, a constância e a generosidade do que

o cálculo entre o dar e o receber. Este desprendimento material é justamente o

que baliza a amizade verdadeira:

A meu ver, há bem mais largueza e generosidade na amizade verdadeira, que não cuida em minúcia se perdeu mais do que ganhou. Pois não se deve recear perder o que ofertou, semear sem colher ou exceder-se em sua diligência. 72

Essas idéias de Aristóteles e de Cícero sobre a justiça e a amizade

marcam profundamente os filósofos cristãos. Por um lado, o cristianismo

sustenta, como faz Aristóteles, a possibilidade de um laço entre os homens que

70 CÍCERO, Lélio – da amizade, VII, 23.71 CÍCERO, Lélio – da amizade, XXII, 82.72 Ibidem, 58.

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semelhantes. Porque nenhuma coisa é tão parecida com a outra, tão exatamente sua contraparte, como todos nós somos uns dos outros. 74

Diz Clarence Moris75, citando Sabine:

(...) Cícero é o canal através do qual a teoria do direito natural flui dos gregos para os antigos cristãos, e depois para os grandes escolásticos medievais. ‘Dessa maneira’, diz Sabine, ‘a crença em que a justiça, o direito e a igualdade e o procedimento eqüitativo deveria fundamentar a lei tornou-se lugar comum na filosofia política européia.

2.4. TEORIA DA JUSTIÇA CRISTÃ

2.4.1. Justiça e Caridade de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino

2.4.1.1. Velho e o Novo Testamento

As filosofias de Santo Agostinho76 e de São Tomás77 estão cercadas das

idéias dos grandes filósofos gregos, especialmente de Platão e de Aristóteles. No

74 CÍCERO, As Leis, Livro I. apud MORIS, Clarence. Os grandes fisosófos do direito: leituras escolhidas em direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002 – (Coleção justiça e direito), p. 34.75[ MORIS. Clarence. Os grandes fisosófos do direito: leituras escolhidas em direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002 – (Coleção justiça e direito), p. 34-35.76 Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de ordem espiritual. Entrementes - depois de maduro exame crítico -, abandonara o maniqueísmo, abraçando a filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte, chegara a uma concepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto, a conversão moral demorou ainda, por razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e de alguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos e, na Páscoa do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cujas doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade. Depois da conversão,

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entanto, como não poderia deixar de ser, o fundamento destas filosofias está na

Bíblia.

No velho e no novo Testamento, encontram-se várias passagens que

tratam da justiça e do amor. Há uma grande polêmica a respeito das diferenças

entre os dois testamentos, especialmente no que concerne ao conceito de justiça.

É famosa a passagem do velho Testamento que diz: “Pagarás vida por vida, olho

por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura,

ferimento por ferimento, contusão por contusão” {Êxodo, XXI, 23}.

Noutra passagem, lê-se: “Se um homem ferir um compatriota, far-se-á a ele

o que ele fez: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; infligir-se-á a ele

o mesmo ferimento que ele infligiu ao outro” {Levítico, XXIV, 19}.

Essas duas passagens do velho Testamento parecem expressar

claramente a velha lei de talião. Elas indicam a mesma idéia de justiça

prefigurada pelas primeiras legislações gregas, de Zaleucos, de Locres e de

Dracon. Mais ainda, elas evocam o sentimento de vingança provocado pelos

crimes e pela injustiça.

Em contraponto a essa concepção de justiça e de vingança, inúmeras

passagens do novo Testamento trazem as idéias do perdão e do amor como

fundamentos do cristianismo. Neste sentido, vale citar uma passagem dos Romanos:

Não retribuais a ninguém o mal pelo mal; tomai a peito fazer bem diante de todos os homens. Se for possível, no que depender de vós, vivei em paz com todos os homens. Não vos vingueis, meus diletos, mas deixai agir a cólera de Deus, pois está escrito: A mim pertence a vingança, eu é que retribuirei, diz o senhor {Romanos, XII, 17-19}.

as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.77 São Tomás de Aquino, tido como santo pela Igreja Católica, foi um frade dominicano e teólogo italiano. Nascido numa família nobre, estudou filosofia em Nápoles e foi depois para Paris, onde se dedicou ao ensino e ao estudo de questões filosóficas e teológicas. Aos 19 anos, fugiu de casa para se juntar aos dominicanos. Conseguiu entrar na Ordem fundada por São Domingos de Gusmão. Foi mestre em Paris e morreu na Abadia de Fossanova quando se dirigia para Lym a fim de participar do Concílio de Lym. Seus interesses não se restringiam à religião e à filosofia, mas também interessou-se pelo estudo de alquimia, tendo publicado uma importante obra alquímica chamada "Aurora Consurgens". O mérito transcendente de São Tomás consistiu em introduzir aristotelismo na escolástica anterior. A partir de São Tomás, a Igreja tem uma teologia(fundada na revelação) e uma filosofia (baseada no exercício da razão humana) que se fundem numa síntese definitiva: fé e razão. São Tomás é considerado um dos maiores mestres da Igreja, pois conseguiu alcançar um profundo entendimento da espiritualidade cristã. É também conhecido como o Doutor Angélico. Seu mais importante trabalho filosófico intitula-se “Suma Teológica”

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A interpretação corrente entre os filósofos cristãos é que o novo

Testamento não se opõe ao conceito de justiça do velho Testamento. Tratar-se-ia,

muito mais, de uma elucidação daquele conceito. Mesmo considerando a justiça

do novo Testamento como a expressão de uma idéia de reciprocidade, caberia a

Deus fazê-la, e não aos homens:

Por teu endurecimento, por teu coração impenitente, acumulas, contra ti um tesouro de cólera para o dia da cólera, no qual se revelará o justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras: vida eterna para aqueles que, por sua perseverança em praticar o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade, mas cólera e indignação para aqueles que, por rebeldia, revoltam-se contra a verdade e se submetem à injustiça {Romanos, II, 5-8}.

2.4.1.2. A vida feliz

Para Santo Agostinho e para São Tomás, a caridade é a expressão da

justiça divina. A respeito deste conceito, os dois teólogos não divergem. Para

Agostinho, a discussão sobre a caridade insere-se na procura da felicidade.

Filósofo e bispo de Hipona, Agostinho sustenta suas teses, ora com

argumentos racionais, ora com a autoridade (auctoritas) de Cristo, das Escrituras

e da Igreja. Por vezes, a razão (ratio) o auxilia em sua interpretação das

Escrituras, noutras vezes, ela parece indicar-lhe a auctoritas das Escrituras como

última saída para a condição humana. As duas estratégias aparecem em sua

investigação sobre o bem supremo (summum bonum) que nos leva à vida feliz

(beata vita).

Muitos são os bens que nos prometem alegrias na vida. À força de pensar

dessa maneira, o ímpio sugere que “desfrutemos as coisas boas do presente” e

“embriaguemo-nos com os melhores vinhos e perfumes” {Sabedoria, II, 6-7}.

Acontece que todos os bens deste mundo estão sujeitos aos “caprichos da sorte”. 78 Mesmo os bens que nos prometem certa permanência não escapam à

efemeridade da vida:

A vida desaparece de dia para dia uma vez que se vai precipitando para a morte; não tem permanência, não permanece idêntica a si mesma, não

78 SANTO AGOSTINHO. A vida feliz. São Paulo: Edições Paulinas, 1993, p. 52.

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está sempre presente, nunca é verdadeiramente um fato, porque é sempre um ainda não ou um não-mais. 79

Entre vícios e pecados, a cobiça (cupiditas) nos leva a amar aquilo que não

encontramos em nós mesmos, o que não somos e não podemos ser: coisas de

um mundo que está sempre a nos escapar, “lembranças do hóspede de um dia

que passa” {Sabedoria, V, 14}. Amando o que não está em nós, tornamo-nos

reféns do que não podemos manter. Doença da existência, o amor pelo efêmero é

a causa dos tantos temores que nos angustiam: medo de perder a fortuna, medo

de perder a glória, medo de perder aqueles que mais amamos. Não só o de fora

se desfaz no tempo. Nesse mundo passageiro, um pouco a cada dia, perdemos a

nós mesmos – como finíssimos grãos de areia que deslizam rápido demais numa

ampulheta, enfrentamos diariamente o pior de todos os medos: o de perder a

vida.

Estudioso das diversas correntes da medicina da alma (animi medicina),

gregas e romanas, Agostinho aconselha um tratamento difícil. Para desprender-se

do transitório, é preciso esquecer-se de si e das alegrias fugazes, é preciso isolar-

se do mundo e de tudo que seja “amigo do mundano” {Tiago, IV, 4}. São medidas

necessárias para vencermos o medo da perda.

Ainda assim, continuamos distantes da eternidade. Afinal de contas, negar

o efêmero não é a mesma coisa que conquistar o eterno. Essas questões

perturbam o sábio, que persegue o bem supremo ao mesmo tempo que busca a

perfeição da alma. Atento aos preceitos da razão, o sábio elege a virtude (virtus)

como guia do seu comportamento: “A razão é o olhar da alma. Mas como nem todo

aquele que olha vê, o olhar bom e perfeito, aquele ao qual segue a visão, tem o

nome de virtude.” 80

A razão não fornece todos os remédios. Para enxergar a verdade que tanto

procura, o sábio precisa crer no objeto de sua felicidade, e precisa ter esperança

de poder alcançá-lo. Numa fórmula inusitada, que certamente agradaria ao

psicanalista menos religioso, Agostinho define a vida como o processo do desejo,

como esperança lançada num futuro absoluto. É nesse passo que o sábio acaba

79 ARENDT, H. O Conceito de amor em Santo Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget, s/d, p. 24.80 SANTO AGOSTINHO. Solilóquios. São Paulo: Edições Paulinas,1993, 13, p. 42.

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se rendendo às palavras de São Paulo: “A esperança nunca se frustra, pois a

caridade de Deus está difundida em nossos corações pelo Espírito Santo, que por

ele nos comunica” {Romanos, V, 5}. 81

A intellige do filósofo pede o auxílio da credas do religioso, e a ratio dá

lugar à auctoritas. A medicina da alma de Agostinho nos leva às Escrituras: “a

ratio demonstra que apenas Deus pode ser o bem supremo do homem”. 82

Negando os bens mundanos, negando o falso amor que o prende ao efêmero, o

sábio procura em seu coração o eterno no presente, procura o amor a Deus:

Quando amo o meu Deus, é a luz, a voz, o alimento, o perfume o abraço do homem interior que amo. Lá onde resplandece a parte da minha alma que não circunscreve espaço algum, onde ressoa a voz que o tempo não arrebata, onde exala o perfume que o vento não espalha, onde se saboreia o alimento que o apetite não diminui, onde se sente o contacto que a saciedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus.83

Mais do que lembrar de Deus, no espaço da interioridade, é preciso

lembrar-se do seu perdão. É a esse perdão que se deve remeter a cada falta, a

cada pecado cometido. Por essas razões, Agostinho escreve suas Confissões:

suas confissões diárias prestam testemunho da justiça divina.

2.4.1.3. Justiça, paz e bem comum

Nas obras de Santo Agostinho e de São Tomás, a justiça visa a paz entre

os homens. A justiça divina, que nem sempre é compreensível aos olhos da razão

humana, pressupõe um dado ordenamento. Cabe aos homens respeitar este

ordenamento, que tem como princípio a paz. 84 Neste sentido, uma justiça que

estimule o talião ou a vingança entre os homens fugiria dos princípios cristãos.

Para o cristão, a caridade é a expressão da justiça divina, e não a

vingança. A justiça divina une e agrega os homens, procura retirar suas mágoas e

apagar suas dívidas. Não é apenas daquele universo da justiça arcaica, da

thémis grega que os filósofos cristãos pretendem se afastar, mas da justiça

81 SANTO AGOSTINHO, Costumbres de la Igresia catótica. Madrid: La Editorial Católica, 1975, 23, p. 253. Em muitos outros textos, Agostinho cita outra passagem das Escrituras para destacar essa mesma idéia: “uma caridade nascida de um coração puro, duma consciência reta e duma fé sincera” {Timóteo, I, 5}.82 HULTGREN, P. Le commandement d’amour chez Augustin. Paris: J Vrin, 1939, p. 29.83 SANTO AGOSTINHO, Confissões. São Paulo: Edições Paulinas, 1984, X, 8, p.254. 84 ARQUILLIÈRE, L’augustinime politique, p. 63.

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marcada pelo poder econômico e pela ganância das pessoas. Daí as palavras de

santo Agostinho: “A família dos homens que não vivem da fé procura a paz

terrena nos bens e comodidades desta vida temporal.” 85

Segundo Santo Agostinho, a justiça consiste em “dar a cada um o que lhe

é devido.” 86 Cabe a Deus cumprir essa verdadeira justiça, cabe a Ele repartir, no

momento propício, o que é devido a cada um.87

Em sua obra ‘Cidade de Deus’, Santo Agostinho assevera que, quando

Deus criou o homem, lhe deu o domínio sobre os animais, mas não sobre os

outros membros e sua própria espécie. Em verdade, os seres humanos estavam

destinados a viver juntos, em harmonia e igualdade, sob a lei natural, cujos

preceitos reduzem-se a um único: não fazer ao outro aquilo que não quer que o

outro lhe faça.

Todavia, quando o pecado entrou no mundo, tornou-se impossível a

cooperação social. Surgiu o desejo de governar e controlar. Assim, o Estado é a

institucionalização do desejo humano de dominar.

Não obstante, o Estado exerce funções positivas de controle e influência

limitadora, caso contrário os homens destruiriam-se uns aos outros.

Observa Santo Agostinho que os mecanismos legais e judiciais do Estado

são demasiado falhos, uma vez que o inocente é condenado e o culpado posto

em liberdade. Apesar disso, o Estado tem um objetivo divino, pois é útil quando se

trata de punir o perverso por seus pecados, ao mesmo tempo em que põe à prova

e aperfeiçoa o justo em sua peregrinação terrena.

Isso não quer dizer que o Estado faz a verdadeira justiça. A justiça terrena

que ele pode fazer funcionar é apenas uma pálida cópia da vera iustitia.

A justiça terrena consiste em suprimir o conflito e criar a conformidade com

a ordem externa, de modo que se possa, de algum modo, viver em comunidade.

Enquanto a verdadeira justiça, ao contrário, é uma condição na qual o conflito

está de todo ausente. É a condição na qual os vivos estão unidos em comunhão

85 SANTO AGOTINHO, A cidade de Deus, Livro XIX, cap. XVII, p. 1929.86 SANTO AGOTINHO, op. cit., Livro XIX, cap. IV, p. 1885.87 A verdadeira justiça só prevalecerá no final da história. SANTO AGOSTINHO, op. cit., p.1885.

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pelo amor de Deus. Contudo, adverte Santo Agostinho que a verdadeira justiça só

prevalecerá no final da história, quando a Cidade de Deus, livre de todas as

associações impuras, se tornará, em definitivo, herdeira das bem-aventuranças.

Igualmente, São Tomás define a justiça nos seguintes termos: “a justiça

consiste em dar a cada um o que lhe é devido.” 88

Para designar a justiça geral de Aristóteles, Tomás de Aquino utiliza o

termo justiça legal. Ele também estabelece distinção entre a justiça legal e a

justiça particular, asseverando que a diferença reside no sujeito a quem é devido

o ato.

A justiça (...) ordena o homem com relação a outrem, o que pode ter lugar de dois modos: primeiro, a outro considerado individualmente, e segundo, a outro em comum, isto é, na medida em que aquele que serve a uma comunidade serve a todos os homens que nela estão contidos.89

Nesse sentido, deve-se dizer que a justiça que diz respeito àquilo que é

devido a outro considerado individualmente é a justiça particular, enquanto a

justiça que diz respeito àquilo que é devido a outro em comum ou à comunidade é

a justiça legal. Por outro lado, o objeto da justiça particular é o bem particular,

enquanto o objeto da justiça legal é o bem comum. 90

Assevera ainda o filósofo que a justiça legal não esgota o conceito de

justiça. Daí a necessidade da justiça particular. Segundo seu ensinamento, é

preciso uma justiça que regule diretamente aquilo que é devido aos membros

determinados da comunidade, nas distribuições (justiça distributiva91) e nas trocas

(justiça comutativa): esta é a justiça particular.

Por sua vez, o conceito de justiça distributiva de São Tomás é mais amplo

que o de Aristóteles. Para ele, a justiça distributiva não se faz presente apenas na

comunidade política, mas também na comunidade de ensino, na comunidade

familiar, etc.

88 AQUINO, Tomás. Suma Teológica. II – II, questão 60, artigo 3. Madri: BAC, 1958.89 Id. op.cit., questão 58, artigo 5º.90 Conf. BARZITTI, Luis Fernando. Justiça Social – Gênese, estrutura e aplicação de um conceito. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/Artigos/ART_LUIS.htm> Acesso em: 10 mar. 2006.91 Aquela que “reparte proporcionalmente o que é comum”. TOMÁS DE AQUINO, op.cit., questão 61, artigo 1º.

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A justiça comutativa é a denominada corretiva em Aristóteles, só que mais

ampla. Com efeito, enquanto na concepção aristotélica o sujeito da “correção” só

pode ser o juiz, em São Tomás, o sujeito da comutação pode ser qualquer um

que se engaje em determinado tipo de relação social, pois a justiça comutativa é

aquela que regula as trocas que se realizam entre duas pessoas. 92

Mas a justiça também abrange a sociedade dos homens. Para São Tomás,

“a justiça ordena o homem nas suas relações com outrem”. 93 A justiça legal deve

ordenar os atos de todos para o bem comum. A esta justiça, afirma São Tomás,

devem-se acrescentar as virtudes secundárias, como a misericórdia e a

liberalidade. Com a liberalidade, damos ao outro não apenas o que lhe é devido,

mas o que é nosso. Isso não significa que haja uma contradição entre a justiça e

a liberalidade. Ao dar o que é nosso ao mais necessitado, vamos além da justiça,

além do que está estabelecido na ordenação do bem comum. Por outro lado,

nada do que se dá de bom grado fere a justiça que garante o que é nosso. Nesse

sentido, diz São Tomás:

A justiça é observada para com todos, ao passo que a todos não pode estender-se a liberalidade. E, além disso, a liberalidade, pela qual damos do que é nosso, funda-se na justiça, pela qual a cada um se lhe conserva o seu. 94

Com relação à distinção entre a justiça divina e a justiça humana, o

pensamento de São Tomás é semelhante ao de Santo Agostinho.

São Tomás defende que a justiça humana é um valor construído a partir da

experiência, mas só pode anelar a perfeição da justiça divina.

Em sentido próprio, somente Deus é Juiz, porque só Ele pode fazer Justiça.

No entanto, também o homem pode julgar, realizando a sua justiça, que é precária e

defeituosa porque é humana, e sua natureza humana é limitada. A justiça humana

está sempre a caminho da justiça divina. É uma relação de imperfeição e perfeição.

Em suma, segundo o doutor angélico, é certo ao homem julgar95.

Entretanto, São Tomás estabelece três condições para que este julgamento seja

92 Ibidem.93 SANTO TOMÁS, Suma teológica, questão LVIII, artigo 5. 94 SANTO TOMÁS, op. cit., artigo 5. 95 Cf. Suma, 2-2-, q.60.

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lícito, no sentido de corresponder a um ato de justiça96:a) que proceda de uma

inclinação de justiça; b) que emane de uma autoridade superior; c) que seja

realizado segundo a prudência.

Estando ausente qualquer dessas condições, o juízo não será lícito, mas

vicioso, pois, se é contrário, a justiça é um juízo injusto, se julga sem ter

autoridade é um juízo usurpado, e, quando falta prudência, no sentido de certeza

racional, o juízo é temerário por embasar-se em dúvidas e conjecturas97.

O pensamento de São Tomás de Aquino serviu de inspiração para o

conceito de justiça social na ética social cristã. 98

2.4.1.4. Caridade e perdão

Em face da caridade de Deus, somos perdoados e nos reconhecemos

melhores. Sob este aspecto, amando a Deus, amamos a nós mesmos. Estaremos

longe de acertar, apostando que esse amor tenha algo do narcisismo dos nossos

tempos. Muito pelo contrário, esse amor é fruto de uma renúncia, do

esquecimento daquilo de si que habita o mundano. É o eterno em nós que

aprendemos a amar, uma vida em conformidade com Deus e não em

conformidade consigo mesmo. 99

Por outro lado, esse amor a si nada tem a ver com o desamor pela

humanidade. À medida que somos companheiros de destino (consortes), ao amar

o próximo, reconhecemos a própria condição humana. Num mundo ora ordenado

pela caridade, fazemos parte de um mesmo conjunto (societas): “Tende um

mesmo amor, um mesmo coração, procurai a unidade” {Filipenses, II, 2}. Fugir

para a solidão (fuga in solitudinem), esquecer ou desistir do outro, seria como

romper esse conjunto; em última instância, seria como romper os laços da

caridade:

96 Cf. Suma, 2-2, q.60 a.2.97 Cf. Suma, 2-2, q.60 a.2.98 A Encíclica “Quadragésimo anno” de Pio XI, de 1931, é a primeira das encíclicas sociais a utilizar o termo “justiça social”. Nela o conceito é, em geral, aplicado à economia. Todavia, a justiça social não se refere somente à esfera econômica, mas sim à vida em sociedade como um todo. Com efeito, na Encíclica “Divini Redemptoris”, de 1937, Pio XI repete a idéia de que a justiça social deve reger toda a sociedade, não se restringindo a orientar a dimensão econômica: a justiça social deve regular “a ordem econômica e a organização civil”. PIO XI, Divinis Redemptoris, n.32.99 SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, vol. II, Livro XIV, cap. IV, p. 1243.

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Não será bom o amor a ti mesmo se for maior que o que tens a Deus. E o mesmo que fazes contigo, deves fazer ao próximo, para que ele também ame a Deus com perfeito amor. Não existe amor a ti mesmo se te afanas de orientar o próximo até o bem que tu persegues. 100

Assim como o leite bom escorre do peito de uma mulher sagrada, a

caridade deve alimentar as relações sociais: entre marido e esposa, pais e filhos,

entre irmãos, chefes e subordinados, enfim, entre todos que são e estão

próximos: “A memória de nossos primeiros pais une cidadãos com cidadãos,

nações com nações, enfim, todos os homens, não apenas pelos laços de

sociedade, mas pela fraternidade (fraternitate).” 101

Amar o próximo é também amar a si mesmo – tanto quanto o outro é um

eu. A caridade é um amor divino, uma ágape, diriam os gregos, que perpassa três

sentidos: amor a Deus, amor a si e amor ao próximo (amor Dei, amor sui e amor

proximi).102 Noutras palavras, a comunhão com Deus não seria possível sem a

comunhão com o outro. Mais ainda: “Não há como chegar à felicidade ou a Deus,

objeto de seu amor, se tu desprezas o próximo”. 103

Pelos caminhos da ratio e da auctoritas, chegamos ao mesmo amor. Assim,

renovam-se as esperanças de uma vida feliz, que não é aqui, neste lugar, mas logo

além, onde e quando possamos ser só caridade.

2.4.1.5. A caridade difere da amizade.

No seu longo tratado sobre a caridade, questão 26 da Suma Teológica,

São Tomás contrapõe as teses de Santo Agostinho às de Aristóteles. No primeiro

artigo do tratado, São Tomás pontua as semelhanças e as diferenças entre o

conceito de amizade aristotélico e a caridade cristã. Por várias razões, a caridade

não coincide com todas as formas de amizade analisadas por Aristóteles. Entre

as formas de caridade, está o amor a Deus. Este amor não implica a convivência

ou a conversação com o divino, como é comum entre pessoas amigas. Segundo

100 SANTO AGOSTINHO. Costumbres de la Igresia catótica. Madrid: La Editorial Católica, 1975, 49, p. 279.101 SANTO AGOSTINHO, op. cit., 63, p. 291. É pertinente lembrar que frater é sinônimo de proximus. 102 Agostinho refere-se aos dois mandamentos: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu pensamento”, e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” {Mateus, XXII, 37-9}.103 SANTO AGOSTINHO, op. cit., 51, p. 280. Próximo disso: “Se alguém possui os bens deste mundo,/ e vê seu irmão passar necessidade/ e se fecha a toda compaixão,/ como permaneceria nele o amor de Deus? Não amemos com palavras nem com a língua,/ mas com obras e em verdade” {João, III, 17-8}.

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Aristóteles, a amizade implica na reciprocidade, quando a caridade é necessária

mesmo entre inimigos. Além disso, entre os motivos da amizade, Aristóteles

destaca o prazer e a utilidade. Para o cristão, a benevolência é o único motivo da

caridade.104

O conceito de amizade aristotélico visa dar conta das mais diversas

relações sociais que surgem a partir do desenvolvimento da pólis e do comércio.

Parte destas relações está marcada por diferenças econômicas e políticas entre

os cidadãos. Tanto para Santo Agostinho, como para São Tomás, a caridade não

faz esta espécie de distinção: “Como é claro em Santo Agostinho, não há senão

uma razão de amar a todos os que são nosso próximo, a saber: Deus. Logo,

devemos amar igualmente a todos os que são nossos próximos”. 105

Nesse sentido, a caridade cristã, pelo menos entre seus principais

filósofos, implica numa forma de benevolência que transcende os limites das

relações e interesses políticos e econômicos.

2.5. A TEORIA MODERNA DE JUSTIÇA

No século XVII, firma-se a Escola Clássica do Direito Natural, formada num

racionalismo eminentemente abstrato, que, partindo dos fundamentos do Direito,

elaboraria a moderna concepção de Estado de Direito liberal-burguês. Nesta

escola de pensamento, destacam-se, dentre outros, John Locke, Thomas Hobbes

e Samuel Puffendorf.

A partir do Renascimento, período caracterizado pela valorização do

homem, o direito vai deixar de ser visto como resultado da natureza sagrada

transcendental, divina e vai passar a ser observado como obra da natureza

humana.

A ruptura entre o direito clássico e o direito moderno se deve tanto à

conjuntura epistemológica, provocada pelo nascimento da ciência moderna,

quanto à conjuntura histórica, marcada tanto pela Reforma, pelas guerras de

104 SANTO TOMÁS, Suma Teológica, V, questão 23, artigo 1.105 SANTO TOMÁS, op. cit., artigo 6.

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Religião, quanto pelo fim do modelo do Império e o nascimento do Estado no

sentido moderno do seu termo.

2.5.1. Escola Clássica do Direito Natural

2.5.1.1. O pensamento de Huig Van Der Groot (Hugo Grócio)

A primeira figura conhecida e proclamada de jus-naturalista é o holandês

Huig Van Der Groot (1583-1645), cujo nome foi alatinado para Grócio.

Ele escreveu “De Jure belli ac pacis” , em 1625, que, segundo Miguel

Reale, se apresenta como o primeiro tratado de Direito Natural, ou melhor,

primeiro tratado autônomo de Filosofia do Direito. 106

Foi chamado fundador do Direito Natural e sua obra foi considerada o

primeiro tratado de direito natural digno do pensamento moderno.

Grócio adota como idéia fundamental e básica de seu pensamento

filosófico-jurídico aquela de Aristóteles, ou seja, que o homem é por natureza

social e destinado a viver em certa forma de sociedade.

Contudo, o Direito, segundo ele, tem a sua existência demonstrada pela

razão (não se mostra por revelação).

Com efeito, não é mais Deus ou a ordem divina a base do direito, mas a

natureza humana e a natureza das coisas. O Direito Natural não mudaria seus

ditames na hipótese de inexistência de Deus, nem poderia ser modificado por ele.

“Et haec quidem, quae jam diximus, locum aliquem haberent, etiamsi daremus,

quod sine summo scelere dari nequit, non esse Deum, aut non curari abe o

negotia humana.” 107

Por conseguinte, ainda que “por sacrilégio” se negasse a existência de

Deus, ou ainda se Este não prestasse atenção nos negócios humanos, a justiça

seria o fundamento do mundo ético, e o Direito nasceria sempre do instinto

sociável e da razão humana.

106 REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 107.107 GROCIO, Hugo. De jure belli ac pacis, Prolegomena, nº XI.

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Partindo dessa premissa de que o homem tem uma natureza social, para

que esta se torne possível, conclui, pela reta razão, a existência do Direito.

“Portanto, não há nada de arbitrário no direito natural, como não há arbitrariedade

na aritmética. Os ditames da reta razão são o que a natureza humana e a

natureza das coisas ordenam.” 108

Miguel Reale assim defende a postura de Hugo Grocio:

Vivendo em uma época de intensas e profundas divergências sobre os princípios essenciais da religião cristã; assistindo, no plano doutrinário e político-militar, às conseqüências da Reforma de Lutero, o grande jurista preferiu explicar o Direito, indispensável à ordem e à paz, de maneira que pudessem ser aceitos os seus preceitos por homens de todos os credos. Alicerçar a sua obra em autoridades eclesiásticas ou textos evangélicos era, como ele bem o compreendia, tomar partido na contenda, provocar discussões estéreis intermináveis, quando o que importava era assentar os princípios fundamentais da organização jurídica dos povos reclamada por seu espírito humanista e de cristão.109

No dizer do autor, a novidade trazida por Grócio é a idéia de que o próprio

homem possui um sentimento do justo, sentimento este autônomo. O homem é

levado naturalmente a querer o que é justo.

Grócio declara que “Direito Natural é aquilo que a reta razão demonstra ser

conforme a natureza sociável do homem.” E, segundo o mesmo raciocínio:

“injusto é aquilo que repugna à natureza sociável dos seres dotados de razão.”110

Grócio também contribuiu para a criação do Direito Internacional, pois, para

ele, a lei natural é o que regula a convivência das diversas nações, é o Direito das

Gentes, e esse direito é um fragmento destacado da lei natural.

Para o filósofo, tanto as relações entre os indivíduos, como as relações

entre os indivíduos e os governos, e, por fim, as relações entre os diversos

Estados baseiam-se na idéia de um contrato. Observe-se aqui que a idéia de

contrato é empregada para explicar a origem do Direito positivo e não a origem da

sociedade.

108 BAPTISTA, HUCK, CASELLA (Coords.). Direito e comércio internacional, 1994, p.367 apud BITTAR,Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. São Paulo, Atlas, 2001, p. 223.109 REALE, Miguel. Horizontes do Direito e da História. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 107.110 Ibidem, p. 108 e 109.

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Vale lembrar que os contratos aqui são de cumprimento obrigatório, porque

impostos pelas próprias partes que os assinam. É dessa posição que surge a

famosa máxima do Direito: “pacta sunt servanda”. Referido princípio é da máxima

importância para o Direito Natural. Seu objetivo era estabelecer a paz mundial

mediante tratados e, para que estes tratados não fossem desrespeitados, ele

convertia em princípio básico de todo o Direito Natural o mandamento ético de

que aquilo que é pactuado deve ser cumprido.

Ademais, os contratos eram feitos pela reta razão que, por meio do uso do

raciocínio dedutivo, aquilatava os princípios do Direito Natural pertinentes ao

Direito Internacional.

Miguel Reale atribui a Grócio a revelação de um novo valor, qual seja, a

auto-suficiência dos direitos inatos do homem, independentemente da existência

ou não de Deus. Afirma ser o pensamento de Grócio uma “corajosa

insinuação”.111

2.5.1.2. O pensamento de Samuel Puffendorf

Samuel Freiherr von Puffendorf, nascido na Alemanha (1632-1694), é,

também, um dos mais notáveis escritores da Escola do Direito Natural. Escreveu

“De iure natura et gentium libri octo” (1672), na qual sustenta que a ordem jurídica

é completamente independente da ordem moral. Já que a essência da moralidade

só consiste na vontade reta, impossível é definir como moral uma ordem exterior,

que é objeto do direito, e admitir que o direito penetra na consciência, templo da

moralidade.

Puffendorf conjectura que os homens, no seu estado de natureza, eram

livres, porém por interesses, e, ante a falta de garantia dos seus direitos, tiveram

de se submeter a um soberano, criando o Estado. Seguindo as pegadas de

Grócio, definitivamente, não se admite nenhuma ligação do Direito à Teologia.

Todavia, consegue conciliar a “reta razão” com “Deus”.

Que a soberania resulte imediatamente das convenções humanas, isto não impede, sublinhe-se, que, para torná-la mais sagrada e inviolável,

111 REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno – 2ª ed. – São Paulo: Saraiva – 1998, p. 75.

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seja dispensável encontrar um princípio mais importante e que a autoridade dos príncipes não seja de direito divino ao mesmo tempo que humano. Então, depois que os homens se multiplicaram consideravelmente, a reta razão lhes tendo feito ver que o estabelecimento das sociedades políticas era absolutamente necessário para a ordem, a tranqüilidade e a conservação do gênero humano. Deus enquanto criador deve também ser considerado o criador das sociedades políticas e, por conseqüência, da soberania, sem a qual aquelas não poderiam ser concebidas. 112

Segundo Puffendorf, o Direito Natural é imutável, perene às

transformações históricas e não susceptível aos diversos costumes e tradições

diferentes dos povos.

Seria necessário juntar tudo o que os diferentes povos consideram como Direito e sobre o que todos e cada um estão de acordo. É verdade, esta via é incerta, infinita e quase impraticável..., pois eu creio que não há uma prescrição do Direito Natural que não contradiga os costumes abertamente admitidos por não importar qual povo...

Sobre este autor diz Del Vecchio:

(...) Antes de mais nada, abordou o problema da distinção entre o Direito e a Teologia. Além disto, distinguiu o direito natural do direito positivo, estabelecendo nítida antítese entre ambos. Ao primeiro concedeu a primazia: é anterior ao Estado, mantém sempre o seu império, e subordina a si o direito positivo. Ao direito natural cabe fornecer as normas diretivas da legislação.113

Grócio e Puffendorf constituem os mais notáveis representantes daquele

ramo do jus-naturalismo, que se denominou de autonomia do direito natural.

2.5.2. Os defensores do Contrato Social

2.5.2.1. Absolutismo de Hobbes

Tomas Hobbes foi contemporâneo de Grócio e de Puffendorf, natural da

Inglaterra (1588-1679). Escreveu “De Cive” (1642) e “Leviathan” (1651).

Fruto de uma época turbulenta da história inglesa, agitada por inúmeros

confrontos, segundo noticiam os compêndios de História da Filosofia do Direito,

Hobbes foi uma pessoa que teve traçada nas linhas caracterizadoras da sua

112 PUFFENDORF, Samuel apud DUFOUR, Droits de l’homme, droit naturel et histoire, 1991, p.105.113 DEL VECCHIO, Lições de Filosofia do Direito, p. 86.

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personalidade as conseqüências espirituais do tempo anormal, de lutas, em que

viveu e que muito o influenciou na formação de sua mentalidade.

Hobbes constrói a sua filosofia jurídica e política sobre diferente base.

Parte do oposto de que partiram Grócio e Puffendorf. Diz ele que o homem não é

sociável por natureza. É naturalmente egoísta, só procurando o seu bem, é

insensível ao bem alheio. E caso fosse o homem governado em atenção, apenas,

aos seus naturais pendores ou apetites, seria inevitável uma guerra permanente

entre todos, pois cada qual teria em vista obter só vantagens para si em

detrimento dos restantes. Nesse estado de natureza, o direito individual não tem

limites e há um direito de todos em tudo.

Para Hobbes, a natureza impôs aos homens, tomados isoladamente, um

estado de natureza em que a agressividade seria a tônica: homo homini lupus (o

homem é lobo do próprio homem), quando em liberdade absoluta, sendo natural,

portanto, a existência de um poder férreo que minimize esta tendência deletéria.

Segundo Hobbes, o abandono de tal estado de natureza, tão odioso pelos

perigos de um clima de guerra perene, só é possível mercê de um contrato, cujo

conteúdo seja a renúncia de cada homem à sua ilimitada liberdade (do estado de

natureza), de maneira absoluta, incondicional, voluntária, nas mãos de um

soberano que imponha a lei e decrete o justo e o injusto, o lícito e o ilícito (o

Estado).

O Estado, para Hobbes, é, pois, de criação artificial e de um poder ilimitado

sobre os indivíduos, sem o que seria impossível impedir a guerra e a paz ser

mantida. Nesse estado natural de “guerra” de todos contra todos, não existe a

noção de justiça ou de injustiça, mas apenas a noção de força. O Direito e o

poder se confundem.

Segundo Hobbes, o Direito deixa de ser “regra e medida das ações

humanas” (conceito tradicionalista) para representar o sinônimo de liberdade.

No dizer de Hobbes:

É a liberdade que tem cada um de usar como quiser seu poder próprio, para preservação de sua natureza (...) em conseqüência de fazer tudo o

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que ele considera, segundo seu julgamento e sua razão própria, como o melhor meio adequado para esse fim.114

O Direito, para Hobbes, deixa de ser o fruto da natureza racional do

homem para se constituir, ao contrário, na decorrência de sua natureza passional.

O direito natural – para Hobbes – é a paixão; o direito civil, a razão.

Segundo Hobbes, se os seres humanos não fossem realmente

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Por fim, mister ressaltar que na visão do filósofo o soberano é criado pelo

contrato, mas não faz parte dele. Todavia, o soberano não pode ser descartado

se houver ruptura do contrato. Se fosse, seu poder não seria soberano.

Contudo, seu poder é condicional. É continuamente condicionado por sua

vontade e sua eficácia em relação à defesa e proteção de seus súditos. Se o

soberano falhar e o súdito ver sua vida ameaçada pelo soberano, está autorizado

a escapar e resistir, se puder fazê-lo. Afinal, foi para terem suas vidas sob

proteção que os homens submeteram-se ao governo.

Hobbes defende em sua obra – Leviatan - que a lei é a justiça, e o monarca

é expressão do justo. Segundo o autor, o Direito e o justo surgem depois do

contrato, quando as forças se autolimitam e se disciplinam. 118

A idéia de que a segurança, interna e externa, constitui uma necessidade

vital para o indivíduo está presente em toda a obra do Leviatan. Para o filósofo, a

segurança social e a paz são valores supremos, razão pela qual o Estado é

instituído.119

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua, cada um com cada um, que a qualquer homem, ou

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2.5.2.2. John Locke e o Liberalismo

Já o escritor inglês John Locke (1632-1704) personificou, na Inglaterra do

final do século XVII, as tendências liberais opostas às idéias absolutistas de

Hobbes. Partidário dos defensores do Parlamento, seu "Ensaio sobre o Governo

Civil" foi publicado em 1690, menos de dois anos depois da Revolução Gloriosa

de 1688, que destronou o rei Jaime II.

O ponto de partida de Locke é o mesmo de Hobbes, isto é, o "estado de

natureza”, seguido de um "contrato" entre os homens, que criou a sociedade e o

governo civil. Mas Locke chega a conclusões opostas às de Hobbes, pois

sustenta que, mesmo no estado de natureza, o homem é dotado de razão.

Dessa forma, cada indivíduo pode conservar sua liberdade pessoal e gozar

do fruto de seu trabalho. Entretanto, nesse estado natural, faltam leis

estabelecidas e aprovadas por todos e um poder capaz de fazer cumprir essas

leis.

Locke, diferentemente de Hobbes, não possui a visão pessimista do estado

de natureza. Defende que o estado de natureza é um estado de paz. Essa paz

seria quebrada pela ausência de um tertius que julgasse os conflitos. “(...) o maior

inconveniente do estado de natureza é a falta de um juiz imparcial para julgar as

controvérsias que nascem – e não podem deixar de nascer – entre os indivíduos

que participam da sociedade.” 121

Os indivíduos, então, consentem em abrir mão de uma parte de seus

direitos individuais, concedendo ao Estado a faculdade de julgar, punir e fazer a

defesa externa.

Entretanto, se a autoridade pública, a quem foi confiada a tarefa de

proteger a todos, abusar de seu poder, o povo tem o direito de romper o contrato

e recuperar a sua soberania original. Nessa hipótese, a oposição dos cidadãos é

totalmente legítima:

Aquele que exceda com sua autoridade o poder que lhe foi dado pela lei e faça uso da força que possui sob seu comando para fazer, com respeito aos súditos, o que a lei não permite, deixa, por isso, de ser magistrado e, como delibera sem autoridade, justifica a oposição que se

121 BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural, 1997, p.145

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lhe faça, assim como nos opomos a qualquer pessoa que viole com força o direito alheio.122

Assim, Locke defendia o direito do povo em se sublevar contra o governo e

justificava a derrubada e a substituição de um soberano legítimo por outro.

Em suma, segundo John Locke, todos os homens possuem, por natureza,

os direitos inerentes à liberdade, à igualdade e à propriedade, competindo ao

Estado tão-somente tutelar tais prerrogativas naturais.

Ademais, no entendimento do filósofo, a propriedade é o mais importante

desses direitos naturais. Com efeito, Deus deu aos homens a terra e seus frutos,

mas como uma posse comum. O trabalho é a origem e a justificação da

propriedade privada, e também é ele que lhe confere valor. A propriedade

privada, portanto, surge quando os homens “associam seu trabalho” àquilo que

Deus lhes proporcionou. Defende, também, que o direito de aquisição de

propriedade não é irrestrito. Ninguém pode tomar para si mais do que pode usar,

e aos outros deve ser deixado o suficiente. Esse o limite natural da aquisição da

propriedade. Por conseguinte, tendo os homens basicamente necessidades

iguais, o tamanho da propriedade que cada um pode reivindicar para si, em

princípio, deveria ter uma igualdade aproximada. Adverte, contudo, que na

prática, com a invenção do dinheiro como meio de troca, essa igualdade não é

mais possível. O consumo do necessário à subsistência não depende mais

diretamente do fruto da terra. Assim, é inevitável um sistema convencional de

troca no que tange à quantidade de terra disponível para apropriação. 123

Defende Eduardo C.A. Bittar que: “A originalidade da obra de Locke está

em sua radical defesa dos direitos naturais, que são inatos, mas de fácil

apreensão pela razão e não podem ser desrespeitados pelo ‘estado civil’ que é

instituído, exatamente, com o intuito de assegurar sua proteção”. 124

122 Ibidem, p. 242.123 ADAMS, Ian. Cinqüenta pensadores políticos essenciais: da Grécia antiga aos dias atuais. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006, p. 58.124 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001, p. 227.

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2.5.2.3. Jean Jacques Rousseau

Jean Jacques Rousseau, natural de Genebra (1712-1778), escreveu três

notáveis obras, que revolucionaram a história de todo o pensamento humano:

“Emile”, na qual induziu o retorno da educação da infância ao Naturalismo ou

“Estado de Natureza”, com o abandono de tudo quanto fosse falso ou fictício;

“Discours sur l’orgine et les fundamets de l’ inelalité parmi les hommes” (1753) e

“Contrat Social” (1762), obras, aliás, entre si conexas.

No “Emile”, Rousseau disserta a história do gênero humano, de uma forma

toda original e consoante suas próprias conjecturas. Diz ele que os homens eram

originariamente livres e iguais, vivendo com extrema simplicidade e seguindo

apenas os ditames da natureza. Viviam naquele estado que denominou de

“estado de natureza” – o homem ignorava a corrupção e a degenerescência, a

que somente a civilização conduz.

O homem era, então, naturalmente bom, como tudo aquilo que sai da

Natureza, e era feliz.

Questiona-se: Mas como veio a perder esse estado natural de felicidade?

Rousseau, então, passa a trilhar o terreno das hipóteses, cuidando de

explicar, primeiro, a origem da civilização, que, para ele, se resume numa

corrupção do estado de natureza.

Rousseau, em O Contrato Social, sugere a hipótese da passagem de um

estado de natureza, de liberdade natural, para um estágio societário. Diz ele: "O

homem nasce livre, mas em toda parte está aprisionado!"

Convém notar que, como Locke, Rousseau acredita que o homem surge

num estado de liberdade absoluta, chamado estado de natureza, no qual,

também, a felicidade seria absoluta.

Ao surgir a vida em sociedade, o homem perde tal liberdade e se

corrompe. Tais idéias de Rousseau encontram-se bem expostas em seus livros

“O Contrato Social”, “Discurso sobre a Origem da Desigualdade Entre os

Homens” e “Nova Heloísa”.

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O homem, diz ele, é um bom selvagem, sua natureza é sadia, mas a

sociedade o corrompe. Ora, é a liberdade dos bons tempos que o faz bondoso;

portanto, a sociedade política conveniente é aquela que garante a mais ampla

autonomia individual.

Perdida a liberdade natural, a restauração do caráter do homem se faz com

a liberdade civil, ideal maior do Estado. Passa a liberdade, então, a ser um fim em

si mesma, e a própria sociedade nada mais é do que o objeto de um contrato,

fruto da vontade e não de uma inclinação natural. A própria família somente se

mantém unida em razão de laços contratuais. O individualismo rousseauniano

reduz, então, o casamento a um contrato que, como qualquer outro, pode ser

rescindido ou resilido pelas partes. Daí, o divórcio.

O Estado só é legítimo, conforme a doutrina de Rousseau, quando protege

os direitos naturais do homem, em especial a liberdade. Grande, destarte, a

influência de Rousseau na elaboração da "Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão".

Importante reproduzir a concepção que Rousseau125 tem da Justiça

(Contrato Social – Livro VI – Das Leis):

Pelo pacto social demos existência e vida ao corpo político. Trata-se agora de dar-lhe o movimento e a vontade pela legislação. Pois o ato primitivo, pelo qual esse corpo nunca se forma e se une, nada determina ainda daquilo que lhe cumpre fazer para conservar-se.

O que é bom e conforme à ordem o é pela natureza as coisas e independente das convenções humanas. Toda a justiça provém de Deus, só ele é a sua fonte; mas se soubéssemos recebê-la de tão alto, não necessitaríamos nem de governo nem de leis. Há, por certo, uma justiça universal que emana unicamente da razão, porém essa justiça, para ser admitida entre nós, precisa ser recíproca. Se considerarmos humanamente as coisas, desprovidas de sanção natural, as leis da justiça são vãs entre os homens. Produzem somente o bem do malvado e o mal do justo, quando este as observa para com todos sem que ninguém as observe para com ele. Por conseguinte, tornam-se necessárias convenções e leis para unir os direitos aos deveres e conduzir a justiça ao seu fim. No estado da natureza, em que tudo é comum, nada devo àqueles a quem nada prometi, e não reconheço como de outrem senão o que me é inútil. O mesmo não se passa no estado civil, no qual todos os direitos são estabelecidos pela lei. [grifos nossos]

125 ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. [tradução Antonio de Pádua Danesi] – 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996.45-46

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Cumpre examinar, por fim, a questão da vontade geral, segundo

fundamento da reconstrução do Estado (primeiro fundamento é o pacto social),

que nada mais é do que a expressão decisória da coletividade, manifestada pelo

chefe do Estado.

A vontade geral distingue-se das vontades particulares, não pela

quantidade de sufrágios, mas pela qualidade de suas decisões.

Via de regra, há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral, esta se refere somente ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse privado, nada mais sendo que uma soma das vontades particulares. Quando, porém, se retiram dessas mesmas vontades os mais e os menos que se destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral.126

Por conseguinte, se não houvesse interesses diferentes, mal se perceberia

o interesse comum, que nunca haveria de encontrar obstáculo. O que “generaliza”

a vontade, portanto, é menos o número de votos que o interesse comum a uni-

los.127 Em outras palavras, a vontade geral impõe a supremacia do interesse

público sobre o interesse privado.

Rousseau afirmava que: “há no Estado uma força comum, que o sustém,

uma vontade geral, que dirige essa força, e é a aplicação de uma à outra que

constitui a soberania”.

Posta assim a questão, conclui-se que é da combinação dessas duas

idéias fundamentais – contrato social e a vontade geral – que deriva todo o

pensamento do filósofo Jean-Jacques Rousseau sobre o contrato social.

A Escola do Direito Natural, também chamada Escola Clássica do Direito

Natural, exerceu notável influência nas grandes codificações do início do séc. XIX,

bastando lembrar que o Código Civil francês de 1804, também chamado Código

de Napoleão, por ter sido encomendado pelo próprio Napoleão Bonaparte, afirma

em sua introdução: "Existe um direito universal, imutável, fonte de todas as leis

positivas, e que não é mais do que a razão natural enquanto diretora de todos os

povos da terra".

126 Ibidem, p.37.127 ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. [tradução Antonio de Pádua Danesi] – 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.41.

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Modernamente, negando a existência do direito natural, surge a Escola de

Viena, tendo à frente o neopositivista Hans Kelsen, criador da célebre doutrina

pura do direito, para a qual o direito positivo deve estar a salvo de qualquer juízo

de valor.

Indubitável é a influência de Hans Kelsen no pensamento filosófico-jurídico;

todavia, desnecessário será o exame de seus ensinamentos, como já

mencionado anteriormente, pois o filósofo não reconhece a inter-relação entre a

justiça e o direito.

2.5.3 Escola Histórica do Direito

A Escola do Direito Natural foi combatida e abalada, em parte, pela Escola

Histórica do Direito128, para a qual este não é um produto da razão pura, nem uma

criação arbitrária do legislador; a lei deve ser ditada pela natureza das coisas,

hidrografia, inclinações dos indivíduos, comércio etc. Na medida em que as

condições da vida social vão se alterando, o Direito deve se adaptar às novas

situações.

A Escola Histórica teve como seus expoentes Montesquieu (1689-1755),

na França, e Friedrich Karl Von Savigny (1778-1861), na Alemanha.

2.5.3.1. Montesquieu

Charles-Louis de Secondat, baron de La Brède et de Montesquieu, nascido

próximo a Bordeaux, na França, em 1689 e falecido em Paris em 1755, filósofo

político, autor de "O Espírito das Leis".

Formado em Direito, iniciou sua carreira em Bordeaux. Mudou-se para

Paris, onde levou uma vida ativa freqüentando as festas dos salões da

aristocracia e nobreza parisienses e os ambientes literários.

128 Doutrina surgida no séc. XIX, como reação ao racionalismo da Escola do Direito Natural, por sua vez florescente nos sécs. XVII e XVIII.

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Em 1721, escreveu "Cartas persas", no qual satiriza a vida mundana da

sociedade parisiense. Em pouco tempo (1728), seus escritos e a influência social

levaram-no à Academia Francesa.

Viajou para a Inglaterra, onde permaneceu de 1729 a 1731, uma viagem

que reputou muito instrutiva, e após a qual, retornando à França, dedicou-se

seriamente aos estudos das ciências políticas.

Em 1734, publicou “Considérations sur les causes de la grandeuse des

Romains e de leur décadence” 129, um trabalho considerado uma amostra de

inteligência.

Após 14 anos de trabalho, de 1734 a 1748, publicou “L'Esprit des lois”. Este

livro, considerado um clássico da filosofia política, compreende uma análise das

inter-relações entre as estruturas sociais e políticas, a religião, a economia e

outros elementos da vida social. Trouxe-lhe fama mundial e é considerado

também o mais significativo precursor da análise sociológica. No entanto, muitas

críticas se levantaram contra seu trabalho, o que o levou a escrever, dois anos

depois, o Defense de l'Esprit des lois, considerado seu trabalho mais brilhante.

Segundo Montesquieu, as leis revelam a racionalidade de um governo,

devendo estar submetido a elas, inclusive à liberdade, que afirmava ser "o direito

de fazer tudo quanto as leis permitem".

Na visão de Montesquieu, o governo é criação da humanidade comum e de

suas necessidades. Mas são diversos os meios pelos quais o governo se

manifesta. Isso decorre do fato de as necessidades humanas, embora universais,

serem expressas de modo diferente, por pessoas diversas, em conformidade com

diferentes circunstâncias. 130

Assim sendo, a forma assumida pelo governo e pela lei dependerá do

“espírito geral de cada nação”. Montesquieu dá ênfase aos fatores físicos,

ambientais e culturais, que dão caráter a uma sociedade.

129 Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência130 Cf. ADAMS, Ian. Cinqüenta pensadores políticos essenciais: da Grécia antiga aos dias atuais. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006, p. 62 e ss.

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O filósofo reconhecia que há três tipos principais de governo: os

despotismos, as repúblicas e as monarquias.

Por isso, defendia que para se evitar o despotismo, o arbítrio, e manter a

liberdade política, é necessário separar as funções principais do governo: legislar,

executar e julgar. Montesquieu mostrava que, na Inglaterra, a divisão dos poderes

impedia que o rei se tornasse um déspota.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou a mesma corporação dos príncipes, dos nobres ou do povo exercesse três poderes: o de fazer as leis, e de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as desavenças particulares.

Elaborou a teoria da separação dos poderes, em que a autoridade política

é exercida pelos poderes executivo, legislativo e judiciário, cada um independente

e fiscal dos outros dois. Seria essa a melhor garantia da liberdade dos cidadãos e,

ao mesmo tempo, da eficiência das instituições políticas. Seu modelo é a

monarquia constitucional britânica.

Ele buscou, também, uma explicação para a existência de tantas leis

diferentes, nos diversos países, concluindo que três fatores condicionavam a

multiplicidade delas: os físicos, como o clima, os religiosos e os socioeconômicos.

Nisso foi um pioneiro pensador moderno, uma vez que a investigação de

elementos externos, v.g., geografia sobre as instituições políticas nunca havia

sido realizada.

O “Espírito das Leis” tem sido um clássico do pensamento político do

Iluminismo francês. Ademais, influenciou consideravelmente a redação da

Constituição dos Estados Unidos da América.

2.5.3.2. Savigny

Savigny observava que a lei, antes de ser uma criação arbitrária do

legislador, produto de sua razão, deve espelhar o desenvolvimento histórico de

cada povo, pois, na medida em que as condições da vida social vão se alterando,

deve a lei se adaptar às novas situações.

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Afinal de contas, ressalta Savigny que, se quiser saber qual é o sujeito, por

quem e para quem é elaborado o direito positivo, verificar-se-á que é o povo. Na

consciência comum do povo (Volksgeist), vive o direito positivo e, por isso, pode-

se chamá-lo direito do povo.

No entanto, prossegue Savigny, isso não deve ser entendido como se os

diversos indivíduos que formam o povo fossem os autênticos criadores do direito,

porque, então, haveria direitos conflitantes entre si.

Em suma, Savigny defende que é o espírito popular, o Volksgeist, vivo e

comum a todos os indivíduos, que gera o direito positivo, o qual, por isso, e não

por acaso, se revela único e idêntico na consciência popular.

Os críticos do jurista vêem no espírito popular uma carga de falácia, posto

que a totalidade de construção remeteria esse espírito a uma elite intelectual.

A teoria de Savigny tem suas bases na noção de uma comunidade

internacional formada por nações com estreitas relações entre si. Sob a influência

do patrimônio comum de idéias cristãs e do legado do direito romano, a

consciência de tal fenômeno comunitário imporia aos Estados a elaboração de um

sistema de normas próprio, para evitar que os estrangeiros fossem tratados de

modo pior que os seus cidadãos, fazendo com que as decisões dos tribunais

nacionais viessem a avaliar as relações jurídicas, sempre de uma mesma forma,

independente do Estado onde se encontrem.

Para tanto, a obra de Savigny trouxe também uma radical modificação na

metodologia do Direito Internacional Privado. Para determinar a lei aplicável a casos

com elementos de estraneidade (situação jurídica da pessoa estrangeira no país

onde é domiciliada), importa – esta é a nova idéia de Savigny – a sede da relação

jurídica. Trata-se de uma revolução sobre as teorias anteriores, secundarizando a

norma e voltando-se aos fatos da vida, do Estado e para a pessoa humana. Antes, o

ponto de partida era a objetividade da norma jurídica em si. Agora, a teoria de

Savigny a faz ceder à prioridade pelo enfoque da relação jurídica.

Com essa teoria, Savigny tornou-se o primeiro entre os grandes juristas a

direcionar o programa de Direito Internacional Privado à busca de um complexo

de normas munido de validade universal. Após Savigny, o objetivo de alcançar a

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harmonia das decisões entre os diversos países interessados em uma

determinada relação jurídica se tornou uma constante nas principais doutrinas.

Esses elementos revelam, também, as raízes humanistas do pensamento do

autor ao igualar, além dos sistemas jurídicos, as pessoas nacionais e estrangeiras,

sendo ele jurista de um direito centrado grandemente na pessoa, vista como

produtora das relações jurídicas e “objeto direto e imediato” das regras jurídicas.

2.5.4. Immanuel Kant

Immanuel Kant131 foi um dos mais importantes e influentes filósofos da

modernidade. Seus estudos e ensinamentos nos campos da Metafísica,

Epistemologia, Ética e Estética tiveram grande impacto sobre a maioria dos

movimentos filosóficos posteriores.

Três domínios balizam as “Críticas” kantianas: o conhecimento, a ação e o

sentimento estético.

A “Crítica da Razão Pura” (1781) foi escrita para determinar as

possibilidades do conhecimento e os fundamentos de sua validade. Separar a

razão pura da razão ordinária para obter um instrumento de análise do

conhecimento e suas motivações. 132

Sua investigação filosófica corresponde a um esforço para “se orientar no

pensamento”, sendo que ela deve satisfazer as exigências do “senso comum”. A

filosofia crítica não se satisfaz apenas em apontar as ingenuidades das

abordagens ordinárias, mas também em denunciar o excesso de uma razão

exageradamente segura de si.

131 Imannuel Kant nasceu em 1724, em Königberg (Prússia Oriental), e morreu em 1804 nessa mesma cidade. Estudou os clássicos e os matemáticos inicialmente no Colegium Fredericianum, depois na universidade de sua cidade. Em 1755, passa a ensinar como professor catedrático nessa universidade e publica ‘História geral da natureza e teoria sobre o céu’. Em seguida, redige diversos escritos de lógica, moral e física. Sua obra verdadeiramente pessoal se inicia com as três “críticas”: a ‘Crítica da razão pura’, em 1781, ‘a Crítica da razão prática’, em 1788, ‘a Crítica do juízo’, em 1790. O último período de sua vida é marcado por importantes publicações, a mais imponente, ‘Metafísica dos Costumes’ (1796-97). in DENIS, Thourard, Kant, trad. Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p.23.132 DENIS, Thourard, Kant, op.cit., p.35.

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Por isso, do “senso comum” Kant extrai três máximas, que constituem a

base para seu pensamento: a primeira é “pensar por si mesmo”, buscar em sua

própria razão o critério da verdade; a segunda, “pensar colocando-se no lugar do

outro” – a razão kantiana, cônscia dos limites da perspectiva de cada um, exige a

livre confrontação com o outro. Por fim, a terceira máxima exige que os

pensamentos sejam conseqüentes e coerentes, proibindo que um mesmo sujeito,

pensando por si e, ao mesmo tempo, virtualmente por outro, se contradiga.133

Na obra em comento – “Crítica da Razão Pura” -, Kant define os juízos 'a

priori' e 'a posteriori', os juízos analíticos e sintéticos, que servirão de estrutura

para o desenvolvimento de toda sua teoria.

O Juízo 'a priori' constitui o conhecimento universal e necessário, que não

funda sua validade na experiência, como é o caso da física. Já os juízos 'a

posteriori' têm na experiência o seu fundamento de validade. 134

Juízos analíticos são aqueles em que o atributo explicita o que já se

encontra no sujeito (ex., os corpos são extensos, a esfera é redonda). Nestes

casos, o predicado já se encontrava contido no sujeito. Os juízos sintéticos, por

sua vez, têm a particularidade de o atributo acrescentar ao sujeito algo que

anteriormente não lhe pertencia (ex., a mesa é de madeira, a cadeira é pesada).

Há, ainda, as categorias 'a priori' (espaço e tempo), com as quais o entendimento

apreende e conhece as coisas. 135

Nos juízos sintéticos 'a posteriori', a experiência ensina que os atributos

convêm ao sujeito. Contudo, tais atributos, em razão do seu próprio fundamento,

não podem ser considerados necessários e universais, mas particulares e

contingentes. 136 Já nos juízos sintéticos 'a priori', o atributo acrescenta algo ao

sujeito, mas de uma forma universal e necessária. 137

Ultrapassando a “Crítica da Razão Pura”, Kant vai se ater na ação moral, a

qual afirma que somente será possível se a razão pura for também prática, ou

133 Idem, ibidem, pp. 35-37.134 Cf. DENIS, Thourard, Kant, trad. Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 48 e ss.135 GARCÍA MORENTE, Manuel. Fundamentos da filosofia. Trad. Guilhermo de la Cruz Coronado. 8 ed. São Paulo: Mestre Jou, 1980, p. 221136 Idem, Ibidem, p. 223.137 Idem, Ibidem, p.226-227.

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seja, se ela não depender de nenhum fator externo, a não ser sua própria força

interna. Este é o objeto de análise da “Crítica da Razão Prática” (1788) - segunda

fase do desenvolvimento de sua filosofia.

Nela Kant se esforça para resgatar e separar o verdadeiro sujeito da

moralidade que é a pessoa, e é precisamente na razão prática que vai se situar o

nascedouro de toda concepção jurídica kantiana, desenvolvida na Metafísica dos

Costumes.

A razão prática, a consciência moral e seus princípios têm a primazia sobre

a razão pura. Em outras palavras, a consciência moral pode alcançar aquilo que a

razão teórica não logra, conduzindo às verdades da metafísica. 138

Em sua terceira grande obra – “A Crítica do Juízo” (1790) -, Kant elabora

uma teoria do juízo reflexionante: diferente do juízo determinante que subsume o

particular ao universal dado, o juízo reflexionante procede a partir do próprio

singular.

Nessa obra, Kant pensou nos caracteres transcendentais e individuais.

Mais que isso, esforça-se por mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre

o mundo natural e o da liberdade. A natureza talvez não seja apenas o domínio

do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na

organização harmoniosa dos seres vivos.

Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo da

experiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de

finalidade permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o

agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se

passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é certa: o

pássaro voa porque é constituído de tal maneira.

Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem

uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na

contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece inteiramente

penetrada por valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora

de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a

138 Idem, Ibidem, p. 226.

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oportunidade de uma satisfação inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo

kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de

todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, que, longe de

manifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem,

me "arrebata". 139

Em 1795, Kant escreve um estudo intitulado “À paz perpétua”, em que

defende que toda pessoa deve ser bem recebida, bem acolhida, em qualquer

parte do mundo. Esta obra é importante, seja para o Direito Internacional, seja

como contributo de uma fraternidade universal.

Em sua filosofia do Estado, Kant faz distinção entre Estado e Constituição,

descrevendo a última como o que “rege as relações mútuas dos homens e

permite que aos abusos da liberdade por indivíduos em recíproco antagonismo se

oponha uma força legal centrada num todo, chamado sociedade civil”, 140

identificando o Estado como parte de uma constituição mais ampla.

Aliás, isso permite a Kant distinguir na obra – “À paz perpétua” – entre uma

constituição republicana e uma democrática. Expondo, também, duas

classificações do Estado, uma, tendo como critério a forma de soberania:

autocrática, aristocrática e democrática; a outra, em termos de forma de governo:

republicana ou despótica. 141

A filosofia moral de Kant afirma que a base para toda razão moral é a

capacidade do homem de agir racionalmente. O fundamento para esta lei de Kant

é a crença de que uma pessoa deve comportar-se de forma igual à que ela

esperaria que outra pessoa se comportasse na mesma situação, tornando, assim,

seu próprio comportamento uma lei universal.

Em sua obra “Fundamentos da Metafísica dos Costumes” (1796-1797),

desenvolveu os conceitos de imperativo categórico e imperativo hipotético.142

139 THOUARD, Denis, op.cit., p. 152 e ss.140 KANT, Emmanuel, Crítica à faculdade do juízo, §83, 1790 in CAYGILL, Howard. Trad. Álvaro Cabral –Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 128.141 Kant, Imannuel. À paz perpétua. in CAYGILL, Howard. Dicionário de Filosofia – Kant. Trad. Álvaro Cabral – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p.128-129.142 GARCIA MORENTE, Manuel, op.cit., p. 256-257.

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É só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-

se em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência para

não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, ética, deve, ao

contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico.

Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos,

é estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo:

se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por afeição, minha

conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus sentimentos

espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o

prazer, a felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza.

Nesse ponto, Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas,

mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem a felicidade é o fim

legítimo de todas as nossas ações.

Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão moral do

mundo, que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é

um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se

nele satisfazes teu interesse, ou então se teus sentimentos espontâneos a ele te

conduzem), mas o imperativo categórico: Cumpre teu dever incondicionalmente.

Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a razão se impõe

não podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem

exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem consistir

na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação

possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão

estende-se ao sujeito racional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade

em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um

simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever, para ser

absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como se diria hoje,

em nenhuma "heteronomia", como diz Kant. Para se unirem numa justa

reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às

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exigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo

legislador e súdito na república das vontades" (terceira regra).143

O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética

racionalista é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria

lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como ser

racional que obedece à lei moral.

Assim, pelo fato de ser puramente formal, essa moral não propõe,

efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe

este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato

que não tenho o direito de mentir, mesmo que me digam: e se todos fizessem o

mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, proibida. A

moral formal, por conseguinte, apresenta-se como essencialmente negativa. O

imperativo categórico é um "proibitivo categórico".

A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança

com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é

empírico, passivo, passional ou, como diz Kant, patológico. Tal é o rigorismo

kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever, porque é preciso impor

silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço,

submeter a humana vontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral

não é o da natureza (submissão animal aos instintos) nem o da santidade (em

que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração instintiva e

irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo

esforço que fazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

Por sua vez, o Direito e a moral se distinguem no sistema kantiano como

duas partes de um todo unitário. “Kant distingue um dupla legislação: a legislação

interna, ética (ethisch), que faz do dever o próprio móbil da ação (‘age de acordo

com o dever por dever!; handle pfichtgemäss aus Pflicht!), e a legislação externa,

jurídica (juridich), que admite outros móbeis além do dever”.144

143 KANT, Fundamentos da metafísica dos costumes, trad. Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Ediouro, 1997, p. 79 e ss.144 SERRA, História da filosofia do direito e do estado, 1990, p. 364. Apud BITTAR, Eduardo C.B., op.cit., p. 269.

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Em outras palavras, o agir ético visa o cumprimento do dever pelo dever,

enquanto o agir jurídico pressupõe outros fins, outras metas, outras necessidades

interiores e exteriores para que se realize.

Não se realiza uma ação simplesmente conforme a lei positiva, mas

também se encontram ações jurídicas que tenham como móvel, v.g., o temor da

sanção, prevenção de desgastes inúteis, medo do escândalo, etc.

Convém notar, outrossim, que, para Kant, o estudo da justiça é dividido de

acordo com a justiça civil e criminal. A justiça civil apresenta três formas:

protetora, comutativa e distributiva; as primeiras se ocupam do direito privado, e a

terceira, do direito público. Mas não é só. As duas primeiras formas de justiça

estão presentes no estado da natureza, enquanto a última só é possível na

“condição civil”, com a existência de um Tribunal para administrar a justiça

distributiva. Portanto, ao Estado Judiciário é confiada a tarefa de realizar essa

justiça através de uma lei universal. 145

Por sua vez, a justiça criminal é definitivamente retributiva. Nela um tribunal

aplica uma pena ao delinqüente que é igual ao crime por ele cometido.146

Por tais razões, o conceito de justiça, igualmente o de direito, concerne

unicamente à relação exterior de uma pessoa com a outra; há a ação de uma

vontade sobre a outra, no sentido de que se trata de uma relação que reenvia ao

arbítrio de outrem.

O indiscutível brilho da filosofia kantiana, que coloca o filósofo dentre os

maiores da história da filosofia, não esconde dois problemas.

Primeiro: o cumprimento do imperativo categórico – exclusivamente dever

–, no limite, traz o prazer do dever cumprido, o que é um paradoxo, porque

contém algo mais do que só dever.

Por outro lado, a idéia de que todos os homens, pela razão, chegariam à

mesma verdade é desmentida pela divergência, muitas vezes multifacetada, entre

145 CAYGILL, Howard. Dicionário de Filosofia – Kant. Trad. Álvaro Cabral – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 213.146 Idem. Ibidem p. 212

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os seres. Kant entende que a boa vontade e a razão dão conta do problema,

tratando as divergências como erros de avaliação.

A filosofia posterior não se alinha a essas reflexões. Mas a contribuição

desse grande filósofo é extraordinária, especialmente na seara da teoria do

conhecimento.

2.5.5. George Wilhelm Friedrich Hegel

2.5.5.1. A dialética em Hegel

A filosofia de Hegel147 é a tentativa de considerar todo o universo como um

todo sistemático. O sistema é baseado na fé. Na religião cristã, Deus foi revelado

como verdade e como espírito. Como espírito, o homem pode receber esta

revelação. Na religião, a verdade está oculta na imagem; mas na filosofia o véu se

rasga, de modo que o homem pode conhecer o infinito e ver todas as coisas em

Deus.

Toda a filosofia de Hegel se apresenta nos moldes de uma tríade dialética:

o ser, a natureza e o espírito. O ser corresponde ao conjunto de elementos

lógicos de toda a realidade, a natureza é a manifestação do ser no mundo físico e

biológico. Por fim, o espírito é a consciência dessa realidade global e dinâmica. 148

O método de exposição é dialético. Acontece com freqüência que, em uma

discussão, duas pessoas que a princípio apresentam pontos de vista

diametralmente opostos depois concordem em rejeitar suas visões parciais

próprias e em aceitar uma visão nova e mais ampla que faz justiça à substância

de cada uma das precedentes. Hegel acreditava que o pensamento sempre

procede desse modo: começa por lançar uma tese positiva, que é negada

imediatamente pela sua antítese; então, um pensamento seguinte produz a

síntese. Mas esta síntese, por sua vez, gera outra antítese, e o mesmo processo

continua uma vez mais. O processo, no entanto, é circular: ao final, o pensamento

alcança uma síntese que é igual ao ponto de partida, exceto pelo fato de que tudo

147 Hegel viveu de 1770 a 1831. Data de 1807 sua Fenomenologia do espírito, e, de 1821, sua Filosofia do direito.148 COMPARATO, Ética, p. 307.

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o que estava implícito ali foi agora tornado explícito, tudo o que estava oculto no

ponto inicial foi revelado.

Assim, o pensamento propriamente, como processo, tem a negatividade

como um de seus momentos constituintes, e o finito é, como a auto-manifestação

de Deus, parte e parcela do infinito mesmo. O sistema de Hegel dá conta desse

processo dialético em três fases:

Lógica: O sistema começa dando conta do pensamento de Deus "antes da

criação da natureza e do espírito finito", isto é, com as categorias ou formas puras

de pensamento, que são a estrutura de toda vida física e intelectual. Todo o

tempo, Hegel está lidando com essencialidades puras, com o espírito pensando

sua própria essência, e estas são ligadas juntas em um processo dialético que

avança do abstrato para o concreto. Se um homem tenta pensar a noção de um

ser puro (a mais abstrata categoria de todas), ele encontra a resposta de que ela

é apenas o vazio, isto é, nada. No entanto, o nada "é". A noção de ser puro e a

noção de nada são opostas; e, no entanto, cada uma, quando alguém tenta pensá-

la, passa imediatamente para a outra. Mas o caminho para sair dessa contradição é

de imediato rejeitar ambas as noções separadamente e afirmá-las juntas, isto é,

afirmar a noção do vir a ser, uma vez que o que ambas vêm a ser é e não é ao

mesmo tempo. O processo dialético avança através de categoria de crescente

complexidade e culmina com a idéia absoluta, ou com o espírito como objetivo para

si mesmo.

Natureza: A natureza é o oposto do espírito. As categorias estudadas na

Lógica eram todas internamente relacionadas umas às outras; elas nascem umas

das outras. A natureza, no entanto, é uma esfera de relações externas. Partes do

espaço e momentos do tempo excluem-se uns aos outros; e tudo na natureza está

em espaço e tempo, e assim é finito. Mas a natureza é criada pelo espírito e traz a

marca de seu criador. As categorias aparecem nela como sua estrutura essencial, e

é tarefa da filosofia da natureza detectar essa estrutura e sua dialética; mas a

natureza, como o reino da "externalidade", não pode ser racional seqüencialmente,

de modo que a racionalidade prefigurada nela torna-se gradualmente explícita

quando o homem aparece. No homem, a natureza alcança a autoconsciência.

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Espírito: Aqui Hegel segue o desenvolvimento do espírito humano através

do subconsciente, consciente e vontade racional. Depois, através das instituições

humanas e da história da humanidade como a incorporação e objetivação da

vontade; e finalmente para a arte, a religião e filosofia, nas quais o homem

conhece a si mesmo como espírito, como Um com Deus e possuído da verdade

absoluta. Assim, está então aberto para ele pensar sua própria essência, isto é,

os pensamentos expostos na Lógica. Ele finalmente voltou ao ponto de partida do

sistema, mas no roteiro fez explícito tudo que estava implícito nele e descobriu

que "nada senão o espírito é, e espírito é pura atividade".

2.5.5.2. Hegel e o Historicismo

Hegel compreendeu muito cedo que a história é um drama universal,

envolvendo todos os povos, e, por isso, nada pode ser apreciado ou estudado de

forma estática. Para o filósofo, o material histórico não é um puro ente da razão.149

Com efeito, Hegel ressaltou, desde os seus primeiros escritos sobre

religião e direito, a necessidade de se considerar a história, tal como a vida, de

modo não abstrato e sim concreto. Na visão do filósofo, o direito não se confunde

com a justiça, mas concretiza sempre, historicamente, seus valores éticos. 150

Hegel via a realidade de forma altamente dinâmica, razão pela qual é

necessário estar atento à história. A realidade é história (desenvolvimento,

racionalidade e necessidade), e todo o conhecimento é conhecimento histórico.

Esse é o sentido do historicismo hegeliano: a filosofia identificada com a

história, esta última considerada como um elevar-se progressivo da humanidade a

um conhecimento sempre mais claro da própria natureza espiritual.

Hegel desqualifica o direito natural. Não há valor eterno e universal. Há

valor na história: ela cria o valor e o muda.

Hegel é otimista. Acredita que, pela história, o homem está em constante

evolução na direção do absoluto.

149 BITTAR, op. cit., p. 321 e ss.150 COMPARATO, op. cit. p. 323.

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2.5.5.3. A teoria dos Espíritos e a filosofia do Direito para Hegel

O idealismo hegeliano se expressa pelo estudo do espírito, em todas as

suas dimensões: o espírito subjetivo, que é a alma, consciência, razão; espírito

objetivo, que é o direito, a moralidade, o costume, e, por fim, o espírito absoluto,

que é a arte, religião, filosofia. 151

Hegel defende a trilogia dos espíritos, pois se a razão (espírito subjetivo) é

importante ao homem, filosofia (espírito absoluto) também o é.

O espírito objetivo, que diz respeito ao direito, moralidade e costume,

determina a liberdade e suas aplicações sociais, políticas e subjetivas.

Defende Hegel que Direito é a liberdade em grau máximo, a moralidade é a

liberdade voltada para o sujeito que dela se vale, é a liberdade em si, já o

costume é a liberdade feita objeto social e coletivo de comportamento, síntese

entre direito e moral.

O Direito consiste na liberdade em grau máximo da capacidade volitiva

humana. Com efeito, no que consiste o ato do legislador se não num querer esta

ou aquela medida social?152 Assim, os direitos vêm pela ordem jurídica. Portanto,

a lei pode ser vista como concreção da vontade do Direito. 153

Por sua vez, a ordem jurídica se coloca a serviço dos membros de um

Estado, no sentido de instrumentalizá-los para o alcance de suas metas dentro da

protetiva estrutura racional da ordem jurídica. Primeiro, nasce a sociedade,

posteriormente, cria-se o Estado, visando a proteção das liberdades individuais

dos membros dessa sociedade.

Assim sendo, o racionalismo do sistema jurídico há de imperar não só

quando se pensa a lei, mas também quando se a aplica. Por isso, de um lado há

a lei e de outro, já a jurisdição, pois, quando há infringência à lei, ao direito, é

necessário um sistema de controle para restabelecer a ordem.

151 Cf. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2001, p. 276 e ss.152 BITTAR, op.cit. p. 280-281.153 “A essência do Direito (máxima liberdade) faz-se acontecimento de direito (liberdade concreta), manifestando-se neste ou naquele conjunto de leis, deste ou daquele Estado, desta ou daquela cultura. Assim surgem as leis, os códigos, o direito positivo, concretizações que são da noção abstrata de Direito.” inBITTAR, op.cit., p. 283.

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Daí a necessidade de o sistema jurídico funcionar na base de proibições e

negações jurídicas, que, em verdade, são restrições da liberdade abstratamente

concebida. O convívio importa em concessões recíprocas, para que o todo possa

existir, e é por isso que o Estado prevalece sobre os interesses do indivíduo.

2.6. A TEORIA DE JUSTIÇA SOCIAL

O direito da solidariedade não vai buscar inspiração nem no direito

clássico, tampouco no direito moderno. O direito da solidariedade se forma a

partir da percepção de justiça social. 154

A teoria de justiça social foi construída e solidificada no final do séc. XIX e

início do séc. XX.

Antes de analisar a abordagem feita por John Rawls, principal

representante dessa concepção de justiça, é necessário fazer algumas

considerações iniciais sobre essa nova teoria, surgida com os socialistas

utópicos.

2.6.1. O Conceito de Solidariedade após a Revolução Industrial

2.6.1.1. Revolução industrial (1780-1860)

Até o século XVIII, o meio rural inglês era repartido entre a Igreja e uma

grande quantidade de pequenos fazendeiros. Uma parte considerável das terras

da Igreja, os campos abertos (open fields), era utilizada livremente por estes

fazendeiros, que dessa forma conseguiam manter suas famílias.

154 “O discurso de justiça social procura construir uma concepção de justiça própria, inédita, irredutível às abordagens do direito moderno e do direito clássico. O discurso da justiça social não aceita nem a abordagem do individualismo do direito moderno, e também se diferencia da concepção de justiça do direito clássico. O fato é que a noção de justiça social se produz numa conjuntura epistemológica e histórica específica, na qual busca-se uma nova concepção de justiça capaz de conciliar a liberdade individual e o bem-estar social.” FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 58.

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A partir de 1714, a lei dos cercados (enclosure) privatizou os antigos campos

abertos. De modo abrupto e violento, milhares de camponeses foram proibidos de

utilizar essas terras, sua principal fonte de subsistência.

Anterior à revolução industrial, a lei dos cercados estimulou a migração de

milhares de camponeses para os centros urbanos em busca de trabalho. Formou-

se uma enorme massa de trabalhadores disposta a aceitar as condições

desumanas da produção industrial. Em poucas décadas, as populações de

Londres, de Manchester e de Liverpool dobraram.

Sem respeitar qualquer forma de planejamento, a urbanização dessas

cidades provocou inúmeros problemas sociais, como a falta de moradia, de

saneamento e de emprego. As cidades não estavam preparadas para crescerem

no mesmo ritmo em que crescia sua população. Em 1843, uma revista inglesa

descreve a situação do subúrbio londrino:

As ruas são em geral tão estreitas que se pode saltar da janela de uma casa para outra, os edifícios têm tantos andares que a luz mal pode penetrar no pátio ou na ruela que os separa. Nessa parte da cidade não há esgotos, banheiros públicos ou sanitários nas casas. Detritos de pelo menos 50.000 pessoas são lançados todos os dias nas valetas (...) As habitações da classe pobre são em geral muito sujas. A maior parte das casas possui uma única sala – apesar da pouca ventilação, são úmidas e frias, por causa do péssimo estado das janelas. Sempre mal mobiliadas, muitos improvisam suas camas com montes de palha, onde se deitam, numa confusão revoltante, mulheres, homens, velhos e crianças. Só se encontra água nas bombas públicas e a dificuldade para buscá-la favorece toda a sorte de imundície. 155

2.6.1.2. Trabalho nas indústrias

Como destaca Adam Smith na obra “Riqueza das Nações”, a divisão do

trabalho implementada pela indústria permitiu a contratação de trabalhadores sem

ofício ou experiência. A remuneração regular foi um atrativo para os trabalhadores

rurais acostumados a só receberem em períodos de colheita.

Em meados do século XVIII, a Inglaterra passou por uma crise econômica.

Apesar dos altos índices de inflação, a indústria não reajustou os salários. As

condições de trabalho foram piorando: os operários enfrentavam jornadas de

trabalho de quatorze horas diárias, sem feriados ou descanso nos finais de

155 ENGELS, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). p. 47.

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semana. Alguns operários passavam semanas sem ver a luz do dia, cuidando de

máquinas que não podiam parar. Além dos salários de miséria, o trabalhador não

tinha nenhuma forma de garantia no emprego, podendo ser demitido numa

semana e recontratado na outra, conforme a necessidade da empresa.

Muitas empresas contratavam mulheres e crianças pagando salários ainda

mais baixos do que os oferecidos aos homens adultos. Em certas indústrias,

milhares de crianças começavam a trabalhar antes das seis da manhã e

acabavam a jornada de trabalho tarde da noite, sem direito a qualquer forma de

lazer ou de educação.

2.6.1.3. Leis dos pobres e caridade institucional

Herança da monarquia religiosa, algumas leis de proteção aos indigentes

ainda vigoravam na Inglaterra capitalista. Sustentadas pelo imposto cobrado

sobre os aluguéis, essas leis dos pobres (poor laws) foram se modificando com o

tempo. Pelos fins do século XVIII, com os baixos salários pagos pelas indústrias,

essas leis se transformaram numa complementação da renda dos operários. Logo

se evidenciou o perigo de os camponeses migrarem à procura dos benefícios

proporcionados por essas leis. Filósofos e economistas liberais, como Mandeville, 156 Malthus e Ricardo, advogaram contra essa caridade institucional, que,

segundo eles, estimula a preguiça, a vagabundagem e o crescimento

populacional. Nessa conjuntura, foi promulgada a lei do domicílio, segundo a qual

os pobres considerados estrangeiros eram expulsos da cidade.

Em 1834, uma emenda nas leis dos pobres (new poor law) reduziu a verba

e unificou a administração das caridades. Uma mesma instituição, chamada de

workhouse, passou a acolher um hospital psiquiátrico, um asilo, um orfanato e um

abrigo para indigentes. Mesmo contra a sua vontade, aquele que fosse

encontrado mendigando pelas ruas era encaminhado para uma workhouse, que

nada mais era que uma prisão que submetia as pessoas, adultos e crianças ao

trabalho exaustivo. Assim que as famílias eram recolhidas às workhouses,

homens, mulheres e crianças passavam a viver em ambientes separados e sem

156 No livro A fábula das abelhas ou os vícios privados fazem a prosperidade pública, Mandeville dedica um longo ensaio contra a caridade institucional.

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comunicação. Até o século XIX, figuras ilustres do Reino Unido passaram suas

infâncias nestas instituições, como o escritor Charles Dickens e o ator, diretor e

compositor Charles Chaplin.

A miséria da classe trabalhadora inglesa cresceu a níveis assustadores.

Nos grandes centros urbanos, a pobreza e o desemprego estimularam a

mendicância, os furtos e a prostituição infantil. Nos bairros operários,

desempregados tornaram-se vendedores ambulantes de bolos, sucos, frutas,

cervejas e de pequenas bugigangas, como fitas, rendas e garrafas velhas. A

desesperança levou muita gente ao alcoolismo e ao suicídio.

2.6.1.4. Organização dos trabalhadores e solidarismo

Na França, os processos de industrialização e de urbanização só

ocorreriam na segunda metade do século XIX. Os efeitos seriam os mesmos que

na Inglaterra: a miséria, o desemprego e a exploração dos trabalhadores. Nem a

Revolução de 1789, nem o império e o código civil de Napoleão conseguiram

melhorar as condições de vida da população.

Em 1848, Paris vive um novo levante popular. O povo vai às ruas para

exigir o fim da corrupção administrativa, liberdade de imprensa e trabalho para

todos. Surgem inúmeros jornais favoráveis à causa dos trabalhadores. Muitos

destes jornais, como o Semeur e o Organizateur, sustentavam uma nova linha

política: o socialismo, inspirado nas idéias de Robert Owen (1771-1858), de

Charles Fourier (1772-1837) e de Saint-Simon (1760-1825). Estes jornais

parisienses inspiraram a organização dos trabalhadores na busca de seus

direitos. 157 A partir das experiências de Owen em suas fábricas na Inglaterra e

nos Estados Unidos e da Revolução francesa de 1848, os operários começaram a

organizar seus sindicatos. Este movimento de organização dos trabalhadores

instigou operários de outros países da Europa.

É nesse contexto que surge a palavra solidariedade como incentivo à união

dos trabalhadores para reivindicar mais empregos e melhores salários. Um dos

primeiros autores socialistas a usar o termo solidariedade foi Pierre Proudhon:

157 PETITFILS, Os socialistas utópicos, p. 112.

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dos indivíduos é contrabalançada pela ação dos grupos sociais. É por isso que no

equilíbrio entre o indivíduo e o grupo é que se encontra a condição de exercício

da liberdade e da justiça.

No dizer expressivo de Maurice Hauriou: “Não há duas justiças nem duas

morais, uma para a coletividade, outra para os indivíduos; só há uma justiça e

uma moral”. 160

A justiça social, ao regular as relações do indivíduo com a comunidade,

não faz mais do que regular as relações do indivíduo com outros indivíduos,

considerados na condição de membros da comunidade.

No tocante à justiça social, o sujeito (indivíduo) é considerado como pessoa

humana161 que é membro de uma comunidade específica. Em outras palavras, o

homem, na qualidade de pessoa humana, que é considerado como titular de

direitos e deveres na ótica da justiça social.

Para os fins dessa teoria, pessoa humana é um ser concreto, individual,

racional e social. A pessoa humana é um ser real, isto é, efetivamente existente.

De outro lado, a pessoa humana é um ser singular. Ela é um todo em si mesmo,

não podendo ser reduzido à mera parte de um todo maior. A pessoa humana é,

também, um ser racional, capaz de decidir sobre a própria vida e capaz de

conhecer a verdade, por si mesmo. Por fim, a pessoa humana é um ser social,

dês que só alcança o completo desenvolvimento vivendo em grupo ou sociedade.

Em suma: o sujeito na justiça social, isto é, aquele a quem é devido algo, é,

portanto, a pessoa humana. São-lhe devidos todos os bens necessários para a

sua realização nas dimensões concreta, individual, racional e social. Enquanto na

justiça comutativa abstrai-se a comunidade162 e, na justiça distributiva, considera-

se o indivíduo no locus específico que ocupa no interior da comunidade. Na

justiça social, ele (sujeito) é considerado simplesmente como uma pessoa

humana membro da comunidade.

160[44] HAURIOU. Maurice. “Le Droit et L’Allemagne”, in Aux Sources du Droit, le Pouvoir, l’Ordre e la Liberté. Paris: Librairie Bloud & Gay, 1933, pp. 13-14.161 A pessoa humana é um conceito que, dentro da tradição ocidental, foi articulado pelo agostinismo e pelo tomismo a partir das discussões sobre as pessoas divinas da Trindade.162 Em um primeiro momento: toda justiça particular está vinculada, em última instância, ao bem comum.

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2.6.1.5. A solidariedade incorporada pela sociologia

Ainda no século XIX, as sociologias de Comte e de Durkheim incorporam o

conceito de solidariedade. Para ambos, a nova divisão do trabalho criada pelas

indústrias fomenta uma forma de solidariedade capaz de manter as pessoas

unidas em torno de objetivos e de necessidades comuns. Para Durkheim, a

importância sociológica da solidariedade é estabelecer uma oposição ao

individualismo que percorre todas as épocas da história:

O individualismo e o livre-pensamento não datam nem de nossos dias, nem de 1789, nem da reforma, nem da escolástica, nem da queda do politeísmo greco-latino ou das teocracias orientais. É um fenômeno que não começa em lugar nenhum, mas que se desenvolve, sem parar, ao longo de toda a história. 163

Não há coesão social capaz de evitar conflitos e guerras sem

desenvolvimento de novas alternativas de solidariedade. Cada sociedade

sustenta uma forma de solidariedade. Nas sociedades arcaicas e primitivas, diz

Durkheim, era predominante a solidariedade mecânica. A religião e certo

socialismo primitivo estão na base desta forma de solidariedade. Tendo valores e

crenças comuns, as pessoas estavam ligadas a partir de hábitos e rituais que

sustentavam uma forma de solidariedade que dava pouca vazão ao

individualismo. Por outro lado, a hierarquia nos clãs e nas famílias antigas não

gerava grandes diferenças econômicas. As pessoas tinham um padrão de vida

muito semelhante, e os bens e alimentos eram divididos de maneira igualitária.

Esses elementos fazem da solidariedade mecânica o oposto direto do

individualismo. Para fazer parte do clã e da família, a pessoa precisava colocar os

interesses do grupo à frente dos seus próprios interesses e anseios.

Esse panorama social começa a mudar com o crescimento do comércio e

dos centros urbanos. Como analisado no primeiro capítulo, o crescimento da

pólis, o cosmopolitismo e o surgimento dos direitos individuais com as primeiras

legislações estimulam uma forma de individualismo que enfraquece os laços da

solidariedade mecânica:

Uma vez que a solidariedade mecânica vai se enfraquecendo, é preciso ou que a vida propriamente social diminua, ou que outra solidariedade

163 DURKHEIM, Divisão do trabalho, p. 154.

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Após as noções, analisar-se-á a teoria de justiça de John Rawls, um dos

mais importantes pensadores da atualidade.

2.6.2. A teoria de Justiça de John Rawls

A tese de Rawls é a de que a justiça é inalienável à liberdade inerente a

cada pessoa humana. Para tanto, Rawls apela para uma releitura e ampliação da

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Portanto, Rawls estuda como a justiça se faz nas estruturas básicas de

uma sociedade, se propõe a apresentar um modelo que explique e que mostre

como isso se realiza, ainda que de modo deontológico.

As questões de distribuição e participação na distribuição são importantes

neste contexto, o que o conduz ao universo da justiça social e seus meandros.

Rawls defende o pacto social como pura hipótese. Esse acordo vem

marcado por uma igualdade original de direitos e deveres. Essa igualdade original

é o pilar de sua teoria. “O que distingue a teoria da justiça como equidade é a

forma como caracteriza a situação inicial, o cenário em que surge a condição de

unanimidade.”

Assim, o pacto é estruturado em dois princípios basilares: princípio da

igualdade e princípio da desigualdade. O primeiro define as liberdades168,

enquanto o segundo regula a aplicação do primeiro, corrigindo as desigualdades.

O bom equilíbrio entre os dois princípios produz o bom equilíbrio das instituições

sociais.

Ademais, assevera Rawls:

sociedade é um sistema eqüitativo de cooperação entre pessoas livres e iguais”. 169 Por sua vez, “a cooperação social é guiada por regras publicamente reconhecidas e por procedimentos, que aqueles que cooperam aceitam e consideram como regendo suas condutas a justo título. 170

Rawls considera impossível erradicar a desigualdade, por isso o sistema

institucional deve prever mecanismos suficientes para o equilíbrio das deficiências

e desigualdades.

Somente com a ‘teoria da justiça como equidade’ é possível enxergar,

numa sociedade marcada por profundas divisões entre valores morais, uma

unidade de sociedade de uma maneira estável.

168 Liberdades básicas de todo pactuante devem ser iguais para todos: liberdade política, liberdade de expressão, reunião, pensamento, consciência.169 RAWLS, John. La Théorie de la Justice Come Équité: Une Théorie Politique et non pas Métaphysique, in RAWLS, John. Individu et Justice Social,Paris, Éditions Seuil, p. 288.170 Id. Ibidem, p. 289.

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Segundo Rawls, a justiça não é apenas um ideal, a justiça social assume

duplo papel. Primeiro, tende a tornar universais certos valores morais que, sem

sua intervenção, continuariam no domínio de cada indivíduo ou grupo. Segundo, a

justiça social tende a situar o direito como “justa medida”, o que pressupõe a

adoção de uma lógica de eqüidade na experiência jurídica.

Importante ressaltar que para a realização da justiça é necessária a

obediência civil, dever da sociedade perante as instituições.

Para Rawls, obedece-se a uma legislação, ou conjunto de instituições

operantes, quando estas são justas. Estão de acordo com os dois princípios

inicialmente elencados. Dizer que são justas é dizer que respeitam e devem ser

respeitadas conforme o dever natural de obediência.

Para sermos mais precisos, consideremos qualquer pessoa numa sociedade bem ordenada. Parto do princípio de que ela sabe que as instituições são justas e que os outros sujeitos têm (e continuarão a ter) um sentido da justiça semelhante ao seu, pelo que obedecem (e continuarão a obedecer) a essas disposições. Pretendemos demonstrar que, com base nestes pressupostos, é racional para alguém, definido nos termos da teoria estrita do bem, respeitar o seu sentido da justiça. O projeto de vida que traduz este respeito é a melhor resposta que pode dar aos projetos semelhantes de seus associados, e se tal é racional para um indivíduo se-lo-á para todos.171

Aqui, Rawls é puro Kant.

Rawls é um pensador instigante: a uma porque é um neo-kantiano que se

inspira também em Aristóteles, e a duas porque é um dos pouquíssimos filósofos

anglo-americanos do século XX que não ficaram restritos à filosofia da linguagem,

ao neo-positivismo, cujo maior representante é Wittgenstein.

Após essa breve passagem sobre a teoria da justiça social e seu principal

representante, pode-se concluir que o princípio da solidariedade traz no seu seio

um novo entendimento de justiça: a justiça social, apresentada como uma diretiva

para as práticas jurídicas.

171 RAWLS, op.cit. , p. 427-428.

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3. O SOLIDARISMO JURÍDICO

Com as mudanças econômicas e sociais ocorridas na sociedade européia

a partir da metade do século XIX, surge o paradigma da solidariedade.

Essas modificações colocaram em xeque as teorias tradicionais do direito,

o que levou alguns juristas a submeter a teoria do direito ao solidarismo jurídico.

Antes de ingressar no objeto deste capítulo, cumpre lembrar,

preliminarmente, que, para o discurso solidarista, o Estado da solidariedade não

pode ser abreviado ao imaginário político do Estado liberal.

Mas não é só. No discurso solidarista, o espaço social é formado pelas

relações existentes na teia da solidariedade social. O espaço social é o campo da

solidariedade social. Ademais, a solidariedade social não se atinge apenas pela

via do Estado. O discurso solidarista supõe a existência de uma pluralidade de

solidariedades realizadas em todo o espaço da sociedade civil.

Sob esse ponto de vista, o direito da solidariedade é uma prática

alimentada pela própria complexidade social. Uma sociedade baseada cada vez

mais na autonomização da sociedade civil, dos grupos sociais e também dos

indivíduos, pois estes não são jamais vistos de maneira isolada, mas no quadro

da trama de solidariedades existentes na sociedade. 172

Em verdade, a doutrina solidarista é uma só. Verifica-se claramente um

único pensamento fundamental:

Há entre cada um dos indivíduos e todos os outros um laço necessário de solidariedade; é somente o estudo exato das causas, das condições e dos limites dessa solidariedade que poderá dar a medida dos direitos e dos deveres de cada um, assegurando as condições científicas e morais do problema social. 173

No dizer de José Fernando de Castro:

Por um lado, considera-se que os homens, queiram ou não, são sempre devedores e credores uns em relação aos outros. Mas admite-se, por

172 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 186.173 BOURGEOIS, L. Solidarité. Colin, 1906, citado por FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.213.

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outro lado, que essa existência objetiva de relações de reciprocidade não é sem defeito, na medida em que a sociedade não produz sempre efeitos conformes à igualdade e à justiça. É justamente por isso que o discurso solidarista se apresenta também como um projeto ético e moral, querendo trabalhar por uma reforma direcionada para uma maior solidariedade dos indivíduos. 174

É de se verificar, por conseguinte, que a solidariedade, como um fato

objetivo, científico e moral, ganha espaço nas discussões acadêmicas. Mas não é

só. A solidariedade é apresentada como um direito e um dever, e por isso é

necessário traduzi-la no plano jurídico.

A noção jurídica de solidariedade foi construída basicamente por Leon

Duguit, Maurice Hauriou e Georges Gurvitch. Cada um deles percorre caminhos

diferentes. Duguit retoma a idéia de solidariedade como norma de direito objetivo,

enquanto Maurice Hauriou pretende dar sentido à solidariedade através da noção

de instituição enquanto organismo-representativo. Por sua vez, Georges Gurvitch

retoma a solidariedade como fato normativo, sistematizando a idéia do direito

social.

Abordar-se-ão neste trabalho apenas as idéias de Leon Duguit e Georges

Gurvitch, porque são as mais importantes para o desenvolvimento dessa

pesquisa científica.

3.1. A SOLIDARIEDADE PARA LEON DUGUIT

Pierre Marie Nicolas Léon Duguit 175, brilhante professor e uma autoridade

no direito constitucional, ganhou reputação internacional como filósofo do direito.

Descartou as teorias tradicionais do direito e do Estado; ele encontrou a base do

direito no fato de o homem ser um animal social, com um senso de solidariedade

social.

Fora desse senso, também reconhece que certas regras de conduta são

essenciais para a vida em sociedade. Sob este ponto de vista, o Estado não tem

174 FARIAS, José Fernando de Castro. op.cit., p. 214.175 Mais conhecido como Léon Duguit (1859-1928), jurista francês, um dos mais revolucionários filósofos do direito de sua geração, nasceu em Libourne, Gironde, em 4 de fevereiro de 1859. Estudou direito na Universidade de Bordeaux e depois assumiu o cargo de professor da faculdade de Bordeaux, onde chegou a diretor e permaneceu neste cargo até sua morte, em 18 de dezembro de 1928.

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personalidade nem poder; os governos, como os indivíduos, são regidos por leis

originadas da necessidade social. Assim, o centro de seu sistema jurídico é a

idéia de que o direito, pela sua natureza social e coletivista, não é lei do Estado

em virtude de seu poder soberano, mas da sociedade se impondo.

Segundo o jurista de Bordeaux, “a regra de direito é um produto social”, no

sentido de que a existência da solidariedade implica a existência de uma regra de

conduta. 176 Assim, o fundamento do direito só pode ser encontrado na própria

sociedade.

No pensamento de Duguit, o direito objetivo é uma regra de fato, pois se

impõe aos homens não em virtude de um princípio superior de bem, interesse ou

felicidade, mas em virtude e pela força dos fatos, porque o homem vive em

sociedade e só pode viver em sociedade. “Ele é nesse sentido uma lei da vida

social”. 177

Para o jurista, a regra de direito objetiva não é um fato bruto, mas um fato

valorativo baseado na solidariedade social, com seu duplo aspecto socialização e

individualização. Duguit considera o direito objetivo uma lei de fim no sentido de

realização da solidariedade social: “a lei social é uma lei de fim; todo o fim é

legítimo quando ele é conforme a lei, e todo ato feito para atender a esse fim tem

um valor social, isto é, jurídico.”178

No pensamento de Duguit, um ato só tem valor social e jurídico se for

assentado conforme a solidariedade social, e não porque tem como sustentação

unicamente a vontade do sujeito. “O homem só é homem pela solidariedade, que

o une aos seus semelhantes; um homem só pode viver por essa solidariedade; o

homem só pode diminuir o sofrimento que lhe oprime por essa solidariedade”. 179

É indubitável, portanto, que para o jurista a solidariedade social é um fato

imperativo, antes mesmo de se tornar norma jurídica, pois determina o

comportamento dos indivíduos na sociedade. Em outras palavras, a solidariedade

176 DUGUIT, Leon. L’État, le Droit Objectif et la Loi Positive, p.15 apud FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.177 Id. Ibidem, p. 16.178 Id.Ibidem, p. 18.179 Id. Ibidem, p. 84.

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social implica a compreensão de uma regra de conduta que motiva os direitos e

os deveres dos indivíduos na sociedade, sejam governantes ou governados. 180

No pensamento do fundador da Escola de Bordeaux, o direito é legitimado

não em função de sua origem, mas em razão de seu conteúdo, de sua

destinação, de sua finalidade de assegurar o funcionamento do sistema social

que, na sociedade moderna, só pode repousar sobre o sistema da solidariedade

social enquanto espaço de socialização e de individualização, de movimentação e

de ação.

Convém notar que Duguit nega a existência de um direito subjetivo anterior

à sociedade. Para ele, os direitos individuais só podem existir através de uma

sociedade organizada.

O homem não pode trazer à sociedade direitos que ele não tem, que não pode ter antes de entrar na sociedade, porque desde o momento em que vive em sociedade ele está em relação com outros homens. Robinson em sua ilha, enquanto está só, não tem direitos; ele só teve direitos depois de tornar-se um membro de uma sociedade (...).181

No pensamento de Duguit, o homem é um ser social enquadrado nos

grupos sociais. Homem isolado é pura ficção. Por isso considera frágil a

construção de um sistema jurídico centrado sobre a figura do direito subjetivo

natural, pois o direito, por definição, é uma relação social.

3.2. O PENSAMENTO DE GEORGES GURVITCH

Georges Gurvitch retoma o caminho iniciado por Duguit, sistematizando a

idéia de direito social.

180 DUGUIT, Leon. L’État, le Droit Objectif et la Loi Positive, p. 84 apud FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.181 DUGUIT, Traité de Droit Constitucionnel, Tomo I, 3ª edição, Paris: A. Fontemoing Éditeurs, 1927, p. 212apud FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

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Segundo Gurvitch, o direito social não pode ser reduzido unicamente a

uma política social do Estado. As práticas do direito social são mais profundas e

mais complexas que isso. 182

O direito social busca combater toda teoria monista do direito, bem como

toda teoria que atrele o direito ao Estado. Segundo Gurvitch, no direito social,

“cada grupo e cada conjunto possui, com efeito, a capacidade de engendrar sua

própria ordem jurídica autônoma regulando sua vida interior.” 183

O discurso solidarista objetiva atribuir aos interessados – grupos, classes

ou indivíduos – um direito social próprio, com autonomia jurídica capaz de

reivindicar e de controlar, e, por conseguinte, com garantias de liberdade positiva

capazes de atribuir aos grupos e aos indivíduos o papel de atores sociais ativos,

possuindo a faculdade de se autogovernarem e defenderem seus direitos.

Portanto, ele não se reduz somente a uma regulamentação de ajuda social do

Estado e à satisfação de necessidades materiais.

Para Gurvitch:

O direito social é um direito autônomo de comunhão, integrando de uma maneira objetiva cada totalidade ativa real, que encarna um valor positivo extratemporal. Esse direito se desprende diretamente do todo em questão para regular sua vida interior, independentemente do fato de que esse todo é organizado ou inorganizado. O direito de comunhão faz o todo participar, de uma maneira imediata, da relação jurídica decorrente, sem transformar esse todo em sujeito descolado de seus membros. 184

No sistema do direito social, cada grupo pode engendrar seu próprio direito

social – direito de integração –, mas também sua própria ordem de direito

individual – direito de coordenação –, de sorte que os grupos são criadores não

somente de direitos associativos, estatutário, disciplinar e judiciário próprios, mas

182 GURVITCH, Georges. La Déclaration des Droits Sociaux. New York, Éditions de la Maison Française, 1944, p. 80 apud FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.183 GURVITCH, Georges. La Déclaration des Droits Sociaux. New York, Éditions de la Maison Française, 1944, p. 80-81 apud FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.184 GURVITCH. Georges. L’Idée du Droit Social. Notion et Système du Droit Social. Histoire Doctrinale Depuis le XVIIème Siècle Jusqu’a la Fin du XIXème Siècle. Paris. Librarie du Recueil Sirey, 1931.pp. 15-16apud FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito da solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

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também de direito contratual e de direito de obrigação para regulamentar as

relações isoladas de seus membros.

Nas palavras de Gurvitch, “o direito social tira sua força obrigatória da

autoridade do todo, regulando-lhe a vida interior”.

3.3. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O SOLIDARISMO JURÍDICO

É de opinião unívoca entre os juristas do solidarismo que o direito, a

solidariedade e a democracia caminham juntos.

No discurso solidarista, os campos político e jurídico são chamados a

assumir um papel de mediação entre valores pessoais e coletivos.

Incontestavelmente, a construção do direito da solidariedade, em que se realiza a

síntese da moral e da lógica, do individual e do coletivo, do fato e do direito, não

pode ser feita sem uma mediação político-jurídica.

O discurso do solidarismo jurídico pretende ser o fundamento do Estado

Democrático do Direito. Não apenas a democracia e o direito da solidariedade

estão ligados, mas seus destinos associados, pois a democracia não pode

funcionar fora das garantias estabelecidas pelo direito da solidariedade.

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4. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE

4.1. PRINCÍPIOS, NORMAS, CLÁUSULA GERAL E CONCEITO LEGAL

INDETERMINADO.

Um sistema de direito compreende um sistema de princípios e normas

jurídicas, um corpo de teorias ou doutrinas e um conjunto de decisões judiciais. Em

verdade, a compreensão do Direito é muito mais complexa do que simples redução a

um sistema de princípios e normas jurídicas. Como ensina José Sebastião de

Oliveira185, com absoluta propriedade, “abrange diversas experiências (históricas,

antropológicas, sociológicas, axiológicas) que se completam”.

De qualquer maneira, é impossível conhecer e estudar o Direito sem

analisar o sistema normativo. Pois bem. No campo do Direito, grande número de

doutrinadores pátrios e estrangeiros já escreveu sobre a matéria, e todos fazem

distinção entre norma, princípio e princípio fundamental de um ordenamento

jurídico. O termo "norma" é daqueles que enfrentam o problema da polissemia,

por sua multiplicidade de significados.

A despeito dessas dificuldades, muitas são as propostas de classificação para

as normas jurídicas. Adotar-se-á, para efeito deste estudo, a posição de Norberto

Bobbio. O catedrático da Universidade de Turim186, buscando elucidar a estrutura do

ordenamento jurídico, partindo de uma definição de caráter geral, afirma que "o

ordenamento jurídico é um conjunto de normas" e se refere a modalidades

normativas ou deônticas de regras de conduta, traduzidas no "obrigatório", no

"proibido" e no "permitido". Assim, tem-se que, segundo a forma, as normas jurídicas

podem ser imperativas, proibitivas ou permissivas. A esta tríade Bobbio acrescenta o

caráter promocional do direito. Este caráter se consubstancia na edição de regras

jurídicas que induzem o legislado a se comportar de uma determinada maneira

reputada adequada e aconselhável pelo legislador. É o que se dá, no exemplo do

mestre italiano, com a legislação de incentivos fiscais.

185 Cf. OLIVEIRA, Sebastião. A família e seus fundamentos constitucionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.77, que também observa: “Sem dúvida nenhuma, é no Direito de Família que se sentem mais facilmente as mudanças sociais e a dificuldade do ordenamento jurídico, através de seus subsistema normativo, em acompanhá-las, integrando-se e adaptando-se à realidade social”.186 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. (Tradução: Maria Celeste C.J.Santos). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 31.

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Em outras palavras, o legislador estimula determinado comportamento,

preconizando práticas, por vezes concedendo benefícios, comunicando sua

preferência por determinada conduta mais conforme com os bens jurídicos tutelados.

Bobbio captou muito bem uma extraordinária modificação na tríade:

permitido, proibido, obrigatório. Teóricos do direito nela vêem hoje outras funções,

tais como comunicação (Tércio Sampaio Ferraz Jr.)187, planejamento (Herbert L.

A. Hart)188, resultados (Jonh Rawls)189, aprendizagem (Claus W. Canaris)190,

educação (Franco Montoro).191

187 “(...) há também a possibilidade de se considerar a norma como um fenômeno complexo que envolve não só a vontade de seu comando, mas também diferentes situações estabelecidas entre as partes que se comunicam (...) a norma é vista como comunicação (...) “Tomada como um complexo comunicativo, a norma torna-se o centro de uma série de problemas: a determinação da vontade normativa, a determinação dos sujeitos normativos, a determinação das mensagens normativas etc.” [FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo de direito... 3. ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 100.]188 “As funções do direito como meio de controle social não podem ser apreendidas nos litígios privados ou nos processos penais, que representam disposições vitais, mas mesmo assim subsidiárias, para as falhas do sistema. Devem ser vistas nos diversos modos como o direito é usado para controlar, orientar e planejar a vida fora dos tribunais.” HART, H.L.A. O Conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 2ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 48.189 “Ao projetar ou reformar as organizações sociais devemos, é claro, examinar os esquemas e táticas que ela permite, e as formas de comportamento que tende a encorajar. Idealmente, as regras devem ser fixadas de modo a fazer com que os homens sejam conduzidos por seus interesses predominantes a agir de modos que promovam fins sociais desejáveis. A conduta dos indivíduos, guiadas por seus planos racionais, deve ser coordenada tanto quanto possível para atingir resultados que, embora não pretendidos ou talvez nem mesmo previstos por eles, sejam mesmo assim os melhores do ponto de vista da justiça social. (...) Esse é o objetivo do legislador ideal ao elaborar as leis, e do moralista ao promover suas reformas.” RAWLS, Jonh. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita Maria Rimoli Esteves. 2ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 60.190 A. Menezes Cordeiro, ao introduzir a obra de Claus Wilhelm Canaris, leciona: “O Direito pressupõe, na verdade, uma repetição de fenômenos normativos, enquanto acontecimentos dotados de dimensão social, independentes, em certos estádios evolutivos, da própria consciência gnoseológica que, deles, exista”. “A objectivação assim permitida não pode, no entanto, fazer esquecer que o Direito é sempre um fenômeno cultural. A sua existência depende da criação humana e a sua estruturação advém da adopção pelos elementos que compõem uma sociedade, de certas bitolas de comportamento”. CANARIS, Claus Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Introdução e tradução A. Menezes Cordeiro, 3.ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. LXVII.191 “Toda norma jurídica é uma ordenação no duplo sentido de: 1. imperativo ou ordem, mandando ou ordenando que assim se faça; e, nesse sentido, até mesmo as chamadas leis permissivas ou supletivas contêm uma ‘ordem’, ao determinar implicitamente que essa permissão ou alternativa seja respeitada;2. instrumento de realização de uma ordem ou equilíbrio na vida social. Nesse sentido, a lei é o mais poderoso instrumento direto de configuração da vida social. Determina o regime do Estado, da família, da propriedade, do trabalho, etc. A função educativa das normas jurídicas é assim descrita por Miranda Rosa: a simples existência de uma regra de direito, geralmente, na convicção, por parte de quem a conhece, de que a conduta determinada é a mais conveniente. Não se trata apenas da ameaça de sanções, decorrentes da transgressão da norma, mas de sua influência sobre a opinião de pessoas ou grupos, quanto ao que é justo ou injusto, bom ou mau para sociedade. O direito é uma força que cria opiniões e, nesse sentido, exerce poderosa influência educativa.(...) O direito tem uma função transformadora do meio social que não pode ser esquecida. É tão grande sua capacidade de conservar as instituições como a de tornar-se o principal agente de mudança social. Não se pode esquecer que o legislador, ao elaborar a lei, o administrador ao executá-la e complementá-la, o juiz ao aplicá-la a casos de dúvida, o advogado e o assessor jurídico, ao orientarem empreendimentos, contratos, acordos e outros atos jurídicos, estão, todos, contribuindo para a modificação da realidade social.” [MONTORO, André Franco, Introdução à ciência do direito. 25 ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 595-596].

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Questiona-se, então, qual a diferença entre as normas e os princípios.

Norberto Bobbio192 defende que princípios são normas como todas as demais. Já

o jurista gaúcho Humberto Ávila defende que os princípios vinculam-se a uma

situação ideal a ser alcançada no futuro. Conveniente se faz recorrer à lição de

Ronald Dworkin, que, ao estudar o tema da diferenciação entre normas e

princípios, conclui:

As normas jurídicas (regras) são aplicadas segundo o critério ‘tudo ou nada’ (all or nothing), no sentido em que, no caso concreto, ou a norma é válida ou a norma é inválida; em caso de colisão de regras jurídicas, uma delas prevalece. Já os princípios possuem uma ponderação específica (dimension of weight), dentro de cada sistema jurídico; aquele que detiver maior peso relativo, em comparação com outro ou com os outros, prevalece. Aquele que tem peso relativo menor não perde a validade, apenas é suplantado pelo que tem peso maior. 194

Nesse contexto, mister trazer à luz, também, o ensinamento de Robert

Alexy195:

Der für die Unterscheidung von Regeln um Prinzipien entscheidente Punkt ist, dass Prinzipien Nornen sind, die gebieten dass etwas in einen relativ auf die rechtlichen und tatsiichlichn Moglichkeiten moglichst hohen Masse realisier wird. Prinzipien sind demanach Optimerungsgebote, die dadurch charakterisiert sind, dass sie unterschedlichen Graden erfiillt werden kónne und dass das gebotne Mass ihrer Erfiillun nicht nur von den tatstilichen, sondem auch von der rechtlinchen Móglichkeiten wird durch gengeltiufige Prinzipien und Regelen bestmunt. 196

Na lição de Rosa Maria de Andrade Nery197, os princípios não são regras

gerais que podem ser evocadas em circunstâncias genéricas para a solução de

algum caso particular. Afirma a autora que, em verdade, os princípios, para

desempenharem sua função, precisam ser, antes, concretizados em vários graus. 192 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. trad. Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição, 1999, p. 158.193 “Princípios são normas imediatamente finalistas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação. AVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2006, pp. 81-83.194 DWORKIN, Ronald. The model of rules. University of Chicago Law Review, nº 35, 1967, p. 14 e ss.195 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrecht. Franckfurt: Suhrkamp, 1996, p. 75-76.196 “Ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam, tanto quanto possível, observadas as possibilidades jurídicas e fáticas, sejam realizadas na maior medida. Princípios são, pois, comandos de otimização, os quais se caracterizam por poderem ser atendidos em distintos graus e que a medida de seu preenchimento depende não apenas das possibilidades fáticas como também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é definido pela combinação de princípios e regras.” (Tradução Nossa)197 NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções preliminares de direito civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 110.

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Ensina a renomada desembargadora e professora, citando Giorgio

Oppo198, que os aspectos metajurídicos e históricos da fenomenologia jurídica, no

âmbito das relações de Direito privado e na avaliação dos cientistas jurídicos,

predispõem os seus elementos clássicos – sujeitos, bens e atos – a uma nova

abordagem cercada de categorias, quais sejam: valores, princípios, cláusulas

gerais e padrões que interferem na ponderação jurídica do intérprete e que

também possuem uma ligação funcional entre si e, igualmente, uma hierárquica

instrumentalidade.

Os valores, indubitavelmente, funcionam como idealidades civis que

inspiram a ordem jurídica. Já os princípios são a assunção desses valores em

forma de preceitos. Por sua vez, as cláusulas gerais são a identificação de

critérios preliminares de conduta, enquanto os padrões valorativos são a medida

social da aplicação daqueles critérios.199

O princípio, ao mesmo tempo em que serve de fundamento a uma norma

estrita, igualmente opera como objetivo a ser atingido pela dita regra, e é

exatamente por essa condição de ser simultaneamente fundamento e finalidade

da norma que o torna tão importante no mundo jurídico.

É por isso que os princípios, na visão dos doutrinadores citados

anteriormente, apresentam duas funções precípuas, quais sejam: a) orientar o

legislador na elaboração de leis justas; b) possibilitar a correta interpretação da lei

pelo julgador na solução de conflitos de interesse.

Como visto, muitas são as abordagens sobre os princípios. Inicia-se, agora,

a abordagem jurídica dos conceitos existentes sobre princípios fundamentais do

direito.

A palavra “fundamento”, no dicionário de Plácido e Silva200, deriva do latim

fundamentum (firmeza, fortalecimento). É, portanto,

palavra que se aplica no mesmo sentido de base ou razão, em que se firmam as coisas ou em que se justificam as ações.

198 OPPO, Giorgio, Sui principi generali del diritto privato, Revista di Diritto Civile, Anno XXXVII, n. 1, 1991, p. 475 apud NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções preliminares de direito civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 110-111.199 Idem, ibidem, mesmas páginas.200 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1973, v. II, p. 724.

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O fundamento, pois, em relação às coisas, mostra-se a própria razão de ser delas. É em relação às ações o motivo que as legitima.

J.J. Gomes Canotilho201 considera princípios jurídicos fundamentais “os

princípios historicamente objetivados e progressivamente introduzidos na

consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no

texto constitucional”.

Convém assinalar o ensinamento da professora Rosa Maria de Andrade

Nery202, para quem os valores fundamentais e os princípios que os refletem têm

prioridade absoluta. Com efeito, eles obrigam o jurista a adequar sua avaliação a

eles.

Inadequado seria esquecer que os princípios gerais fundamentais, embora

presentes na experiência teórica, às vezes se encontram extraídos do

ordenamento jurídico. Todavia, isso não representa uma dificuldade

intransponível, porque os princípios gerais fundamentais não são provenientes

dessa estrutura, mas sim antecedentes a ela, impondo-se e sobrepondo-se a

ela.203

Posta assim a questão, é de se dizer que os princípios fundamentais no

âmbito do direito privado estabelecem critérios gerais de conduta, dos quais os

sujeitos não podem se afastar e a Ciência Jurídica não pode se esquecer.

Cumpre ratificar, contudo, que a compreensão dos princípios fundamentais

parte, em regra, dos conceitos que se encontram expressos na Carta Magna do

País.

Paralelamente aos princípios constitucionais fundamentais, encontram-se

os princípios gerais do direito constitucional, que não se confundem com os

primeiros. No dizer do constitucionalista José Afonso da Silva, os princípios

constitucionais fundamentais integram o Direito Constitucional positivo,

traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matriz, que

explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte,

201 CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 15.202 NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções preliminares de direito civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 111.203 Idem, ibidem, mesma página.

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enquanto os princípios gerais formam temas de uma teoria geral do Direito

Constitucional, por envolver conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter

seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional. 204

Os princípios constitucionais apresentam interesse para o Direito privado,

especialmente quando sua incidência reflete-se sobre a tríade elementar do

Direito privado, qual seja, sujeito, ato e bem. À guisa de exemplo, podem-se citar

os princípios destacados por Rosa Maria de Andrade Nery: inviolabilidade dos

direitos humanos (proteção da liberdade e dignidade do homem), princípio da

solidariedade (política, social, econômica e familiar), princípio da igualdade.205

Importante raciocínio traz a autora ao estudar o princípio da boa-fé objetiva.

Diz que o citado princípio tem dois sentidos: subjetivo, significando a situação

psicológica de ignorância em prejudicar o direito de outrem - nesse caso, tem

natureza de regra de interpretação da vontade -, e objetivo, possuindo atributo de

justiça superior; ou princípio de solidariedade contratual, que transcende o

regulamento negocial. Nesse aspecto, tem natureza jurídica de fonte de Direito e

obrigação, verdadeira cláusula geral.

Karl Engisch206 conceitua cláusula geral como sendo “uma formulação da

hipótese legal que, em termos de grande generalidade abrange e submete a

tratamento jurídico todo um domínio de casos”.

Essa exposição de pensamento é importante, pois, conforme se verá na

conclusão desta tese, o mesmo raciocínio deve ser utilizado quando da aplicação

do princípio da solidariedade no Direito de Família.

Existe, ainda, uma outra distinção importante a ser feita, qual seja, a

distinção entre cláusula geral e princípio de direito. Enquanto a cláusula geral é

uma norma jurídica, uma fonte de criação de direitos e obrigações, os princípios

de direito não são considerados exatamente direito, dada a sua amplitude diante

da norma que dele procede. O princípio geral do direito faria parte do sistema

204 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª ed., São Paulo: Malheiros Editores Ltda.,1998, p. 99.205 NERY, Rosa Maria de Andrade. op. cit., p. 112.206 ENGISCH, Einfuhrung in das juristsche Denkem, 8. ed., Stuttgart-Berlin-Köln-Mainz: W. Kohlhammer, 1983, p.120-121. Na tradução portuguesa, Introdução ao pensamento jurídico. Trad. João Batista Machado, 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

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jurídico, tendo por objetivo realizar a integração de uma lacuna, mas não estaria

previsto de forma expressa no ordenamento jurídico. Em apertadíssima síntese,

esse é o pensamento de Maria Helena Diniz, Arnoldo Wald e Carlos

Maximiliano.207

Convém ressaltar que a cláusula geral possui natureza jurídica de norma

de ordem pública. Nesse sentido é o ensinamento de Nelson Nery Júnior e Rosa

Maria Andrade Nery208:

Como as cláusulas gerais têm função instrumentalizadora, porque vivificam o que se encontra contido, abstrata e genericamente, nos princípios gerais de direito e nos conceitos legais indeterminados, são mais concretas e efetivas do que esses dois institutos. Cláusula geral não é princípio, tampouco regra de interpretação; é também norma jurídica, isto é, fonte criadora de direitos e obrigações (Judith Martins-Costa, ‘As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico’, RT, v. 680, p. 50). A cláusula geral é norma de ordem pública (v.g. CC 2035 par. ún.) e deve ser aplicada, ex officio, pelo juiz. Com essa aplicação de ofício, não se coloca o problema de decisão incongruente com o pedido (extra, ultra ou infra petita), pois o juiz, desde que haja processo em curso, não depende do pedido da parte para aplicá-la a uma determinada situação. Cabe ao juiz, no caso concreto, preencher o conteúdo da cláusula geral, dando-lhe a conseqüência que a situação concreta reclamar.

Há, também, um terceiro gênero chamado conceito jurídico indeterminado.

Em verdade, há alguma variação terminológica no tema. Podem-se constatar as

seguintes expressões: conceitos legais fluidos, conceitos indeterminados,

conceitos jurídicos indeterminados, conceitos legais indeterminados, conceitos

com termos indeterminados, dentre outras. A expressão mais consagrada parece

ter sido a de conceitos indeterminados.

Uma parte minoritária da doutrina, capitaneada por Eros Grau209, não

aceita a expressão conceito indeterminado. Para o autor, ou o conceito contém

um mínimo de conteúdo determinável, ou, se não o possui, não é conceito. Assim

é que, segundo esta corrente minoritária, conceito indeterminado não é conceito.

O que poderia existir seriam conceitos com termos indeterminados, v.g., urgência,

207 Cf. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 456/457; WALD, Arnoldo, Curso de direito civil brasileiro: introdução e parte geral. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49/51; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 295.208 NERY JUNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade: Código Civil Comentado: São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 162.209 GRAU, Eros Roberto. Direito, conceitos e normas jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.

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ordem pública, justo preço, calamidade pública, indenização adequada ou

proporcional, interesse público, boa-fé.

Celso Antônio Bandeira de Mello210 prefere denominá-los de conceitos

legais fluidos, pois que permitiriam mais de um entendimento razoável. Todavia,

como observa Aurélio Pitanga Seixas211, esta conclusão já tinha sido alcançada

por Vítor Nunes Leal em estudo sobre o tema. Nesse sentido, deve-se dizer que a

mudança para conceitos legais fluidos pouco ou nada ajuda a esclarecer sua

natureza, seus limites e seu controle.

Historicamente, a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados ou

conceitos indeterminados já vem sendo discutida há um século. Os primeiros

estudos teriam sido realizados pelos professores austríacos, Edmund Bernatzik e

Friedrich Tezner, respectivamente em 1886 e 1888, posicionando-se de forma

contrária sobre o tema. A matéria, então, passou a ser analisada mais

profundamente na Alemanha, onde há diversos trabalhos publicados com novos

aspectos. 212

Antônio Francisco de Souza213 faz um bom resumo da doutrina alemã

acerca do conceito indeterminado. Ele identifica duas doutrinas básicas sobre o

tema: doutrina da duplicidade da interpretação dos conceitos legais

indeterminados e a doutrina tradicional.

Para Bernatzik, defensor da teoria da duplicidade, a aplicação do direito é

puro silogismo. Esta opinião foi adotada pela jurisprudência do Supremo Tribunal

Administrativo (alemão). Para Lemayer, também defensor d e tal doutrina, "deve

ser sempre pesquisada a vontade do legislador para se poder saber se este

atribui ou não livre discricionariedade à autoridade administrativa que não seja

suscetível de controle jurisdicional." 214 Por fim, para Laun, "... só a vontade do

210 SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios fundamentais do Direito Administrativo tributário; a função fiscal. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p.25.211 Id. Ibidem, p. 26.212 COSTA, Regina Helena. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa. RDP nº 95, p. 131.213 SOUZA, Antônio Francisco de. Os "conceitos legais indeterminados" no Direito Administrativo alemão. Revista de Direito Administrativo: Rio de Janeiro, out./dez. 1986, p. 276/291. 214 SOUZA, Antônio Francisco de. Os "conceitos legais indeterminados" no Direito Administrativo alemão. Revista de Direito Administrativo: Rio de Janeiro, out./dez. 1986, p. 280-281.

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legislador é decisiva para responder à questão, se um conceito legal

indeterminado é um ‘conceito de direito’ ou um ‘conceito discricionário’". 215

Tezmer, defensor da doutrina tradicional, sustenta que a doutrina dos

conceitos discricionários viola o Estado de Direito. Diz que entre os conceitos

legais indeterminados e os conceitos legais determinados há apenas diferença de

grau, não de qualidade. Assim, há sempre o controle jurisdicional. É a teoria da

unicidade dos conceitos legais indeterminados. 216

Rogério Ferraz Donnini observa que:

(...) as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados têm em comum o fato de fazer parte do campo dos conceitos de equidade, o que significa dizer que não estão situados na seara do direito estrito. Contudo, pode-se afirmar que existe diferença entre estes. Os conceitos legais indeterminados são abstratos e formados por expressões ou palavras vagas, de conteúdo genérico, insertas na lei. Não há, nesse caso, a criação, a denominada função criadora do magistrado ao se valer de um conceito indeterminado, mas apenas aplicar a norma. Em outras palavras, cabe ao juiz, ao se deparar com um conceito legal indeterminado, completá-lo, realizar a subsunção do fato à norma. 217

Por fim, assinale-se que o princípio, uma vez expresso no ordenamento

jurídico, deixa de ser critério de hermenêutica e passa a ter característica de

cláusula geral. 218

O breve exame dessas distinções é necessário para o estudo do princípio

da solidariedade no Direito de Família, tema desta tese.

4.2. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E OS DIREITOS HUMANOS

Questiona-se se o princípio da solidariedade, o direito/dever de

solidariedade, está abrangido nas dimensões dos direitos humanos. A resposta é

sim.

215 Idem, Ibidem. p. 281.216 Ibidem, p. 278.217 DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade pós-contratual no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 107.218 DONNINI, Rogério Ferraz. op.cit., p. 111.

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Observe-se que os direitos humanos se inter-relacionam, se

complementam, independentemente do momento histórico-social em que são

reconhecidos e assegurados e, por isso, pode-se afirmar que o princípio

(direito/dever) da solidariedade é um supremo direito da humanidade.

Todavia, como tudo adquire significado em relação a determinado contexto,

importante indagar em que momento da história humana surgiu a preocupação

com o princípio da solidariedade.

Primeiramente, consigne-se que se utilizará, neste trabalho, a expressão

“dimensões” de direitos fundamentais, e não “gerações”, porque mais adequada

segundo alguns doutrinadores, como, por exemplo, Paulo Bonavides e Jorge

Miranda.

Neste sentido, a lição de Paulo Bonavides219:

Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo "dimensão" substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo "geração", caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio-ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturas, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia...

Igual crítica é feita por Jorge Miranda220:

Conquanto esta maneira de ver possa ajudar a apreender os diferentes momentos históricos de aparecimento dos direitos, o termo geração, geração de direitos, afigura-se enganador por sugerir uma sucessão de categorias de direitos, umas substituindo-se às outras – quando, pelo contrário, o que se verifica em Estado social de direito é o enriquecimento crescente em resposta às novas exigências das pessoas e das sociedades. Nem se trata de um mero somatório, mas sim de uma interpretação mútua, com a conseqüente necessidade de harmonia e concordância prática.

Realmente, assim que novas prerrogativas são reconhecidas aos

indivíduos, estas, longe de excluírem, complementam as demais prerrogativas já

conquistadas. Todas as dimensões coexistem. Mais que isso, mantêm entre si

219 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed., São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2002, p.525.220 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, tomo IV, p. 32.

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uma relação de recíproca interação, influenciando-se mutuamente e fazendo com

que o entendimento de cada um dos direitos fundamentais seja sempre

interpretado em conformidade com o contexto global da totalidade das dimensões

de direitos já reconhecidas.

Certo é que, como adverte Norberto Bobbio221 em sua obra “A Era dos

Direitos”, os direitos humanos não nascem todos de uma vez, eles são históricos

e se formularam quando e como as circunstâncias sócio-histórico-políticas eram

propícias.

A história dos direitos humanos fundamentais se inicia com as liberdades

públicas, que têm suas raízes na luta contra o absolutismo e a conseqüente

afirmação de direitos oponíveis ao Poder Estatal.

Com efeito, o Estado de Direito surge com os direitos de liberdade, ou seja,

garantia à vida privada e à liberdade individual, proibindo a arbitrária intervenção

do poder estatal. Engloba, do mesmo modo, a liberdade espiritual, ideológica,

religiosa, de expressão, abrangendo, também, o direito à segurança pessoal, à

escolha da profissão e à propriedade. Ademais, a limitação e harmonia entre os

Poderes, bem como a legitimidade do sistema representativo, são, igualmente,

valores básicos do Estado Liberal. 222

E essas características são decorrentes dos pensamentos iluministas 223 de

Locke224, Montesquieu225, Rousseau226 e outros.

Daisaku Ikeda diz:

221 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 48.222 "Toda a ‘primeira geração’ de direitos humanos, nos documentos normativos produzidos pelos Estados Unidos recém independentes, ou pela Revolução Francesa, foi composta de direitos que protegiam as liberdades civis e políticas dos cidadãos, contra a prepotência dos órgãos estatais.” COMPARATO, Fábio

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Essa corrente afastou-se da teologia da Idade Média e fundamentou-se no homem, não em Deus, e procurou evitar o excessivo centralismo no Criador ou no ser absoluto que transcendia a inteligência humana.

Na Idade Média, a devoção a Deus transformou-se gradativamente numa submissão cega à Igreja, que se autoqualificou como representante de Deus, o que veio a provocar a degeneração do poder da Igreja. Na Idade Moderna, os reis, com poderes maiores do que os da Igreja, projetaram-se como monarcas com poderes divinos. Tendo Deus como estudo, transformaram-se em senhores absolutos e violaram os direitos da pessoa a fim de ampliar e assegurar sua autoridade. A Revolução Americana pela independência e a Revolução Francesa conquistaram a liberdade física e espiritual livrando o homem do autoritarismo religioso e mundano, o que transformou no principal núcleo da luta pelos direitos humanos. Essa luta foi sustentada pelas ideologias pós-Iluminismo. 227

Todavia, na dinâmica da evolução social, evidencia-se a compreensão de

uma crescente desigualdade perante os fatos sociais. Por conseguinte, uma nova

ordem jurídica começa, lentamente, a evoluir. Surgem os direitos sociais,

pertencentes à segunda dimensão de direitos humanos. São os direitos

conferidos a todos os membros de uma sociedade, a fim de superar os problemas

sociais que surgiram do desenvolvimento da economia capitalista, tais como

desemprego e baixo padrão econômico, para garantir a efetiva igualdade e

liberdade. São os direitos à instrução, ao trabalho etc.228

Como se depreende, o centro de gravidade da ordem jurídica caminhou do

individual para o social. O Estado, agora chamado Estado de Direito Social, é

chamado a dirimir conflitos entre as forças do capital e do trabalho, a conter os

excessos do liberalismo e da propriedade privada, submetendo-os ao bem

comum e à justiça social.

Em consonância com o explicitado, incensuráveis são as palavras de Vieira

de Andrade229:

(...) as idéias de igualdade e de fraternidade, em parte significativa introduzidas na luta histórica pela crítica marxista e socialista do regime

227 ATHAYDE, Austregésilo de. Diálogo: direitos humanos no Século XXI – Austregésilo de Athayde e Daisaku Ikeda; tradução de Masato Ninomiya. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 105.228 Alexandre de Morais, citando Themístocles Brandão Cavalcanti, assevera que “o começo no nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de direitos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios garantidores da liberdade das nações e das normas da convivência internacional. Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com o trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice, etc.” MORAES, Alexandre de. Direitos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 1ª ed., São Paulo: Ed. , 1998 (Coleção Temas Jurídicos).229 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 54.

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econômico e social do capitalismo e pelo pensamento social cristão, desenvolveram-se, impuseram-se e, harmonizadas com a liberdade fundamental, deram origem a uma ‘concepção liberal moderna’ ou concepção social dos direitos fundamentais, que corresponde à realidade vigente na generalidade dos países da Europa Ocidental, a que se convencionou chamar ‘Estado-de-Direito Social’.

Toda uma nova gama de direitos humanos incorpora-se aos tradicionais:

direito ao trabalho (direito de sindicalização, greve e co-gestão da empresa),

direito à saúde e à habitação, proteção à família, assistência ao menor e ao

adolescente, direito à segurança social.

As novas Constituições introduzem, então, capítulos pertinentes aos

direitos econômicos e sociais, tão importantes quanto os direitos civis e políticos,

v.g. Constituição do México (1917) e Constituição de Weimar (1919).

Contudo, os direitos humanos não ficam adstritos aos direitos individuais

ou sociais. Uma nova tendência começou a se desenhar nas últimas décadas.

Esses novos direitos fundamentais, denominados de terceira dimensão, são os

responsáveis pela vida comunitária estável e sadia. Os valores sociais, a serem

juridicamente protegidos, são, ao mesmo tempo, peculiares a todo um grupo

social e a cada um de seus participantes. Consagrou-se o qualificativo direitos

difusos, que reclamam proteção da lei.

Indubitável é que os direitos humanos são universais e, cada vez mais, se

projetam no sentido do alargamento. São históricos, mas não definitivos, exigindo

a todo instante instrumentos de resguardo e efetivação. Os direitos humanos se

difundem, ou seja, da primeira dimensão com caráter individual passam, nas

últimas dimensões, a transcender o indivíduo como sujeito dos interesses

reconhecidos, sem, contudo, desconsiderá-lo.

Sobre a terceira dimensão de direitos humanos, observa Manuel

Gonçalves Ferreira Filho que o reconhecimento dos direitos sociais não pôs termo

à ampliação do campo dos direitos fundamentais. Ao contrário, a consciência de

novos desafios, não mais à vida e à liberdade, mas especialmente à qualidade de

vida e à solidariedade entre os seres humanos de todas as raças ou nações,

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redundou no surgimento de uma nova dimensão, a terceira dos direitos

fundamentais, denominados de direitos de solidariedade ou fraternidade. 230

Por sua vez, Jeanne da Silva Machado231 doutrina:

Fundada na evolução dos direitos humanos, que passou a reconhecer os direitos de liberdade, de igualdade e de solidariedade, conhecidos como direitos de terceira geração ou de terceira dimensão, a solidariedade assegura o direito ao desenvolvimento e ao patrimônio comum da humanidade. (grifos do próprio autor)

E, na importante lição de Canotilho232,

(...) a radicação (sic) da idéia da necessidade de garantir o homem noplano econômico, social e cultural, de forma a alcançar um fundamento existencial-material, humanamente digno, passou a fazer parte do patrimônio da humanidade.

Oportuno se torna dizer que a evolução dos direitos humanos não parou

nos assegurados na terceira dimensão. Com efeito, há quem pregue o surgimento

de uma quarta dimensão, que, conforme Paulo Bonavides 233, seria "o direito à

democracia, o direito à informação, e o direito ao pluralismo".

Mas não é só. A ética moral contemporânea, cultivando a paz,

impulsionada pelo sentimento humanista, elevou o direito à paz ao grau de direito

fundamental de quinta dimensão, na visão desse mesmo jurista. 234

Quais seriam os direitos da solidariedade? Estariam esses direitos

protegidos ou abrangidos pelo princípio da solidariedade? Seriam direitos

individuais, coletivos ou difusos? Pertenceriam a qual dimensão dos direitos

humanos?

Maria Cláudia Bucchiareri Pinheiro235, em estudo sobre a Constituição do

México de 1917, afirma que a solidariedade prevista no artigo 3º do referido

230 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.231 MACHADO, Jeanne da Silva. A solidariedade social na responsabilidade ambiental”. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006, p.113.232 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição, 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 384.233 HUMENHUK, HEWERSTTON. A teoria dos direitos fundamentais. Disponível em: http://www.jusvi.com. Acesso em 14 de out. 2005.234 BONAVIDES. PAULO. O direito à paz. in Folha de São Paulo – Caderno Opinião – A 3, São Paulo. 3 de dez. 2006.

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diploma é, sem dúvida, referência ao princípio inspirador dos direitos de terceira

dimensão. Igualmente, Guido Alpa236, jurista italiano, na sua obra “I principi nella

prospettiva constituzionale”, se refere à solidariedade prevista na Constituição

Italiana de 1947-1948 como um direito/dever humano fundamental.

Independentemente do momento em que a história dos direitos humanos

passou a reconhecer os direitos alicerçados no princípio da solidariedade, o fato é

que eles precisam ser protegidos.

Vale reiterar que querer classificar determinados direitos como se eles

fizessem parte de uma dada dimensão, sem atentar para o aspecto da

indivisibilidade dos direitos fundamentais, é um equívoco. Os direitos humanos

fundamentais fazem parte de uma mesma realidade dinâmica.

Em resumo, o ideal é sopesar que todos os direitos fundamentais podem

ser analisados e compreendidos em múltiplas dimensões, na dimensão individual-

liberal (primeira dimensão), na dimensão social (segunda dimensão), na

dimensão de solidariedade (terceira dimensão) e na dimensão democrática

(quarta dimensão).

A propósito, a lição de Flávia Piovesan:

[...] adota-se o entendimento de que uma geração de direitos não substitui a outra, mas com ela interage. Isto é, afasta-se a idéia da sucessão "geracional" de direitos, na medida em que acolhe a idéia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação. Logo, apresentando os direitos humanos uma unidade indivisível, revela-se esvaziado o direito à liberdade, quando não assegurado o direito à igualdade e, por sua vez, esvaziado revela-se o direito à igualdade, quando não assegurada a liberdade. 237

Hoje, nas constituições sociais, é extraído dos direitos de primeira

dimensão (tradicionalmente concebidos como direitos de índole negativa) um viés

positivo que impõe ao Poder Público não apenas o dever de abstenção, mas,

235 BUCCHIANERI PINHEIRO, Maria Cláudia. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social, à luz da Constituição mexicana de 1917. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/asp?id=9014 Acesso em: 27 de jan. 2000.236 ALPA, Guido. Il principi nella prospettiva constituzionale.2ª ed. Milão: Giuffrè, 2006, p. 393.237 PIOVESAN, Flavia. Temas de direitos humanos. 1ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1998.

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também, uma obrigação de fazer. À guisa de exemplo, pode-se dizer que do

direito à vida (direito de primeira dimensão) deriva, hoje, interpretando-se o direito

à vida, o direito a uma existência digna, o direito à saúde, à assistência social e

ao lazer (direitos de segunda dimensão) e, também, o direito a um meio ambiente

ecologicamente equilibrado (terceira dimensão), o direito de viver em uma

sociedade plural e democrática (quarta dimensão)..

Em última análise, repita-se, os direitos humanos fundamentais se inter-

relacionam, se complementam, independentemente do momento histórico-social

em que são reconhecidos e assegurados e, por isso, pode-se afirmar que o

princípio (direito/dever) da solidariedade é um supremo direito da humanidade.

Mas não é só. O princípio da solidariedade se dá tanto em nível interpessoal

como coletivo.

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5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO CONSTITUCIONAL

ESTRANGEIRO

Inicialmente, é preciso asseverar que não se pretende aqui elaborar um

estudo de direito constitucional comparado. Ao contrário, o que se objetiva é

simplesmente destacar as principais constituições históricas que reconheceram o

valor solidariedade e o introduziram na norma constitucional.

5.1. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917

Cumpre observar, preliminarmente, que a Constituição do México configura

o reconhecimento das reivindicações da Revolução Mexicana iniciada em 1910. 238 Essa correlação entre a Constituição e a Revolução Mexicana foi ressaltada

pelo constitucionalista e ex-presidente da Corte Constitucional Fixzamudio:

Nuestra Constitución actual entronca directamente a la Revolución mexicana. Cierto que en um principio este movimiento no llevó como objetivo hacer una nueva Constitución. Se encabezó inicialmente por Madera239 contra la dictadura Díaz240, y después por Carranza241 para restaurar el orden constitucional quebrantado por Huerta242, pero el

238 A revolução mexicana iniciou-se em 1910, tendo mobilizado, em seu processo, milhões de camponeses e índios (despojados dos “ejidos”), e se insurgia, basicamente, contra a ditadura do Presidente Porfírio Diaz. As principais reivindicações revolucionárias consistiam na proibição da reeleição do Presidente da República, no retorno dos “ejidos” e devolução das respectivas terras às comunidades indígenas, nacionalização das grandes empresas e bancos, na consolidação de direitos trabalhistas à classe média emergente, e na separação radical entre a Igreja e o Estado.239 Francisco Indalécio Madera. (1873-1913). Político mexicano. Defensor abnegado da democracia. Combateu o governo de Porfírio Diaz. Detido, fugiu para o Texas. De lá iniciou revolta contra a ditadura. De volta ao país, uniu-se às forças rebeldes. Foi eleito Presidente da República em 1911, sendo deposto em 1913 pelo General Victorino Huerta. Foi detido e assassinado. 240 Porfírio Diaz (1830-1915). Militar e político mexicano. Foi deputado e candidato à Presidência da República. Assumiu a Presidência da República em 1876. No ano seguinte, foi eleito para o cargo de magistrado da nação (1877-1880). Em 1884, voltou a ocupar a chefia da nação. Alterou a Constituição com o objetivo de se reeleger, por cinco períodos consecutivos. Com a vitória do general Francisco Indalécio Madero, demitiu-se do cargo, viajando para a Europa, vindo a morrer em Paris.241 Venustiano Carranza. (1859-1920) Político mexicano. Foi um dos revolucionários que derrubou o Presidente Porfírio Diaz. Colaborou, decisivamente, para o Partido Democrático. Com o assassinato do presidente Madero, lutou contra o usurpador Victorino Huerta, a quem derrotou e obrigou a expatriar-se. No ano de 1917, convocou o Congresso mexicano com o fim de elaborar uma nova Constituição. No final de sua vida, foi assassinado por soldados de forças revolucionárias.242 Victoriano Huerta (1854-1916). Nascido em Colotlán Jalisco. Foi um dos colaboradores do governo de Porfírio Diaz. Após aproximar-se do Presidente Francisco Indalécio Madera, traiu-o, permitindo que os revoltosos o matassem. Proclamado Presidente da República em 1913, fechou o Congresso Nacional, porém foi vencido pelo movimento constitucionalista. Em julho de 1914, renunciou ao cargo, exilando-se na Europa e depois nos Estados Unidos da América, onde veio a falecer.

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dessarollo mimo de los acontecimientos condujo finalmente a la expedición de ley fundamental. 243

Igual observação faz Daniel Moreno244, que assim se manifestou sobre a

Assembléia Constituinte Mexicana:

Poucas vezes o pensamento jurídico foi devedor de forma tão determinante da realidade social e das idéias postas em jogo, como no caso da mencionada Assembléia. Foram assinaladas como causas fundamentais algumas de tipo econômico, sobretudo a dura exploração que sofriam os camponeses e as paupérrimas condições em que viviam os operários.

Incontestavelmente, como advertiu Fixzamúdio, embora a elaboração de

um novo texto constitucional não tenha sido um dos objetivos da Revolução

Mexicana, é certo que o texto constitucional que sobreveio à revolução deu

expressão máxima às reivindicações desta.

A Constituição Mexicana de 1917 foi a primeira a assumir no rol das

garantias constitucionais um conjunto de regras voltadas para a proteção do ser

humano, no sentido de coletividade.

Diversos juristas pátrios245 e estrangeiros246 reconhecem a Constituição

mexicana de 1917 como a primeira do planeta a garantir os direitos sociais aos

trabalhadores, juntamente com as liberdades individuais e políticas.

Apesar dessa importância histórica, Floriano Correa Vaz da Silva247 pensa

ser equivocado e simplista afirmar que as constituições do século XIX foram

puramente liberais, enquanto as constituições do século XX marcadamente

sociais:

243 FIXZAMUDIO, Hector e CARMONA, Salvador Valencia. Derecho Constitucional Mexicano y Comparado, 2ªed., México: Porrúa, 2001, p. 89/90. “Nossa Constituição atual remete diretamente à Revolução Mexicana. É certo que o início deste movimento não tinha como objeto fazer uma nova Constituição. Iniciou-se com a liderança de Madera contra a ditadura Diaz e depois por Carranza para restaurar a ordem constitucional quebrada por Huerta, mas o desenrolar mesmo dos acontecimentos conduziu finalmente à expedição da lei fundamental.”244 MORENO, Daniel. Derecho Contitucional Mexicano. Cidade do México: Porrúa, 1973, p. 227.245 Fábio Konder Comparato (Constituição Mexicana de 1917), Moacyr Mota da Silva (A Justiça Social como destinação dos direitos sociais) e Maria Claudia Cucchianeri Pinheiro (A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social, à luz da Constituição Mexicana de 1917).246 Georges Bordeaux (Dijon), Pierre Duclos (Paris), Karl Lowestein (Alemanha), Juan Clemente Zamora (Cuba), Poblete Troncoso (Chile), Alberto Trueba Urbina (México).247 VAZ DA SILVA, Floriano Correa. Direito Constitucional do Trabalho. São Paulo: LTR, 1977, p. 35.

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Em quaisquer Constituições, nas mais diversas épocas podem ser encontrados e pesquisados dispositivos concernentes à ordem social e econômica, cláusulas que explícita ou implicitamente definem o regime econômico-social pretendido pelos constituintes. A própria ausência de cláusulas sociais numa Constituição traduz a opção por determinado sistema. E esta ausência, é claro, não impede uma lenta construção jurisprudencial, nem emendas constitucionais, nem legislação ordinária –que irão pouco a pouco, delinear, dentro do sistema constitucional, uma série de direitos sociais e trabalhistas, que passam a integrar o arcabouço econômico-social do país.

O argumento seduz, mas não convence. A Carta mexicana é um marco:

exprime sentimentos, consagra direitos, de forma seminal.

Todavia, destacam-se as seguintes constituições liberais que continham

dispositivos sociais: Constituição da Venezuela de 1812 (Constituição da

Província de Barcelona), que no seu art. 23 previa a proteção ao trabalho e

"seguro-desemprego"; a Constituição francesa de 1848, igualmente em seu art.

13 assegurou o direito ao trabalho e a garantia ao trabalho; a Constituição suíça

de 1874, no art. 34, previa o direito da Confederação, e não dos Cantões, de

editar normas uniformes sobre o trabalho das crianças nas fábricas, jornada de

trabalho dos adultos e proteção ao trabalhador nas hipóteses de exercício de

atividade perigosa ou insalubre.

Após essa breve observação, passa-se ao exame da Constituição Mexicana.

Em síntese, essa constituição, promulgada em 31/01/1917, em vigor desde

01/05/1917, compunha-se de 136 artigos e algumas disposições transitórias.

Verifica-se que tal Constituição não se restringiu a consagrar as aspirações e

reivindicações veiculadas pela Revolução e aprovou, também, em seu Capítulo I –

“Das Garantias Individuales” -, inúmeros direitos clássicos à liberdade.

Entre o extenso rol de direitos de primeira dimensão constantes do

Capítulo I, do Título I, da Constituição Mexicana, destacam-se os seguintes:

proibição da escravidão (art. 2º); igualdade entre os sexos (art. 4º); liberdade de

expressão e de informação (art. 6º); vedação à censura prévia (art. 7º); direito de

petição (art. 8º); liberdade de reunião e de associação (art. 9º); direito à livre

circulação (art. 11); princípio do juiz natural e proibição de juízo de exceção (art.

13); irretroatividade das leis (art. 14); devido processo legal (art. 14, § 1º);

legalidade em matéria penal (art. 14, § 2º); vedação à extradição por crimes

políticos (art. 15); inviolabilidade de domicílio (art. 16); sigilo de correspondências

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(art. 16, § 2º); vedação ao exercício arbitrário das próprias razões (art. 17); acesso

gratuito ao Poder Judiciário (art. 17, § 1º); vedação de prisão por dívida (art. 17, §

3º); garantias do acusado (art. 20); vedação de penas cruéis (art. 22); princípio do

non bis in idem (art.23); liberdade religiosa (art. 24); mandato de seis anos

conferido ao Presidente da República (art. 83 – direito à alternância política) e

separação Estado/Igreja (art. 130).

Ao lado dos direitos de liberdade acima referidos, a Constituição Mexicana

previu, igualmente, direitos e garantias de segunda dimensão, merecendo

destaque os que se encontram nos artigos 27 e 123.

O artigo 27 previu, em linhas gerais, além da questão pertinente à questão

agrária no México, a propriedade da nação relativamente às terras e águas, a

possibilidade de desapropriação de terras por utilidade pública, mediante indenização,

a proteção da pequena propriedade (art. 27, XV) e a função social desta, primeira

constituição, no plano mundial, a inserir a concepção social da propriedade.

Por sua vez, o artigo 123 consagra, dentre outros, o direito ao emprego e

correlata obrigação do Estado de promover a criação de postos de trabalho (art.

123, "caput"); jornada de trabalho máxima de 8 (oito) horas (I); jornada noturna de

6 (seis) horas (II); proibição do trabalho aos menores de 14 e jornada máxima de

6 (seis) horas aos maiores de 14 e menores de 16 (III); um dia de descanso para

cada 6 dias trabalhados (IV); direitos das gestantes (V); salário mínimo digno (VI),

participação dos trabalhadores nos lucros das empresas (IX); horas extras

limitadas a três diárias, realizadas no máximo três dias consecutivos, e acrescidas

de 100% (XI); responsabilidade do empregador por acidente de trabalho (XIV);

direito à formação de sindicatos (XVI); direito de greve, reconhecido inclusive em

favor dos patrões e em favor dos funcionários públicos (art. XVII); direito à

indenização em caso de demissão sem justa causa (XXII) e reconhecimento da

utilidade pública da Lei de Seguro Social, que compreenderá "seguros por

invalidez, por velhice, seguros de vida, de interrupção involuntária do trabalho, de

enfermidades e acidentes de trabalho e qualquer outro seguro destinado à

proteção e ao bem-estar dos trabalhadores, dos camponeses, dos não-

assalariados e de outros setores sociais e respectivos familiares" (XXIX).

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Contudo, a análise atenta do texto constitucional permite a conclusão de

que os direitos e garantias de segunda dimensão não se concentram em um

único Capítulo da Constituição mexicana, apresentando-se, ao contrário,

dispersos ao longo de todo o texto da Carta Política. Sob tal aspecto, destacam-

se as seguintes previsões: proteção à família (art. 4º), direito à saúde, de

incumbência da Federação e das entidades federativas (art. 4º, § 2º), direito à

moradia digna, a ser concretizado por meio de apoio Estatal (art. 4º, § 3º),

proteção pública dos menores (art. 4º, § 4º), direito ao trabalho e ao produto que

dele resulta (art. 5º), proibição de contratos que importem na perda de liberdade

do indivíduo (art. 5º, § 4º) e a vedação à constituição de monopólios (art. 28 –

direito este de natureza eminentemente econômica).

Registre-se, por fim, o aspecto mais importante da Constituição Mexicana

de 1917, para fim desta tese, qual seja, a previsão, ao lado dos direitos de

primeira e de segunda dimensão, de direitos fundamentais de terceira dimensão.

A previsão de direitos de terceira geração encontra-se mencionada nos

artigos 3º, art. 25, § 4º, e no artigo 27.

ARTICULO 3 – La educacion que imparte el Estado – Federación, Estados Municípios – tenderá a desarrolar armónicamente todas las faculdades del ser humano y fomentará en él, a la vez el amor a la pátria y la conciencia de la solidaridad internacional, en la independência y en la justicia:

I – Garantizada por el articulo 24 la libertad de creencias, el critério que orientará a dicha educación se mantedrá por completo ajeno a cualquier doctrina religiosa y, basado en los resultado del progreso científico, luchará contra la ignorância y sus efectos, las servidumbres, los fanatismos y los prejuicios. Además:

a) Será democrática, considerando a la democracia no solamente como uma estructura jurídica y un régimen político, sino como un sistema de vida fundado en el constante mejorameiento econômico, social y cultural del pueblo;

b) Será nacional en cuento – sin hostilidades ni exclusivismos – atenderá a la comprensión de nuestros problemas, al aprovechamiento de nuestros recursos, a la defensa de nuestra independência política, al aseguramiento de nuestra independência econômica y a la continuidad y acrecentamiento de nustra cultura; y

c) Contribuirá a la mejor convivência humana, tanto por los elementos que aporte a fin de robustecer em el educando, junto com el aprecio por la dignida de la persona y la integridad de la família, la convicción del interés general de la sociedad, cuanto por el cuidado que ponga en sus sustentar los ideales de fraternidad e igualdad de los derechos de todos

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los hombres, evitando los privilégios de razas, sectas, de grupos, de sexos o de indivíduos;”248

Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro 249 assevera que o artigo 3º da

Constituição Mexicana (sistema público de educação) afirma que este deverá

promover a consciência da solidariedade internacional. Portanto, em claro

beneplácito ao princípio inspirador dos direitos de terceira dimensão. Mas não é

só. Asseverou que determinados valores devem ser protegidos não apenas em

relação ao indivíduo (primeira dimensão) ou a uma coletividade nacional (segunda

dimensão), mas, sobretudo, em face de toda a comunidade (terceira dimensão).

Por sua vez, o artigo 25, que trata sobre a intervenção do Estado no

domínio econômico, dispõe que os setores sociais e privados da economia

sujeitam-se aos interesses públicos e ao uso, em benefício geral, dos recursos

produtivos, devendo-se cuidar, portanto, de "su conservación y el médio

ambiente". Outro direito/dever protegido na terceira dimensão.

ARTICULO 25 - Corresponde al Estado la rectoría del desarrollo nacional para garantizar que éste sea integral, que fortalezca la soberanía de la Nación y su régimen democrático y que, mediante el fomento del crecimiento económico y el empleo y una más justa distribución del ingreso y la riqueza, permita el pleno ejercicio de la libertad y la dignidad de los individuos, grupos y clases sociales, cuya seguridad protege esta Constitución.

[...]

Bajo criterios de equidad social y productividad se apoyará e impulsará a las empresas de los sectores social y privado de la economía, sujetándolos a las modalidades que dicte el interés público y al uso, en

248

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beneficio general, de los recursos productivos, cuidando su conservación y el medio ambiente.250

No artigo 27, em que está disciplinada a reforma agrária, o modo de

organização dos assentamentos, reconhece-se a necessidade de se editar

medidas para "preservar y restaurar el equilibrio ecológico" e, também, para

"evitar la destrucción de los elementos naturales".

Assim, o texto constitucional mexicano não apenas reconheceu e positivou

direitos de terceira dimensão, mas, também, colocou-os em relação de recíproca

interação e mútua influência com outros direitos fundamentais.

A promulgação da Constituição do México de 1917 repercutiu

favoravelmente no solo europeu. Com efeito, conforme se verá a seguir, a

Constituição de Weimar, em 1919, trilhou a mesma via.

5.2. A SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ DE 1919

A Constituição de Weimar251 nasceu, assim como a mexicana, em um período

de intensas perturbações sociais. Surgiu no período em que a história política alemã,

entre 1914 e 1919, vivia uma acentuada curva descendente na economia, decorrente

dos efeitos da Primeira Grande Guerra Mundial. De fato, antes da Declaração de

Rendição da Alemanha, o povo experimentava uma das mais cruéis expectativas de

vida. Os estoques de alimentos haviam se exaurido. A destruição dos meios de

comunicação e a manutenção das cidades chegaram ao limite máximo. A fome

estava presente não só nas trincheiras, como também nas cidades.

250 ARTIGO 25 – Corresponde ao Estado a regência do desenvolvimento nacional para garantir que este será integral, que fortaleça a soberania da nação e de seu regime democrático e que, por meio da promoção do crescimento econômico e do uso de uma distribuição mais direita da entrada e da riqueza, permita o pleno exercício da liberdade e da dignidade dos indivíduos, grupos e classes sociais, cuja seguridade protege esta Constituição.Sob critérios de equidade social e produtividade se apoiará e impulsionará as companhias dos setores sociais e privado da economia, sujeitando-os às modalidades que ditam o interesse público e ao uso, no benefício geral, dos recursos produtivos, tomando cuidado com a conservação do meio ambiente.251 O local escolhido para sediar a Assembléia Constituinte foi Weimar, eis que, além de trazer a inspiração de Goethe, que ali vivera, ficava afastada das lutas travadas em Berlim em função do levante spartakista, liderados por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, que buscavam uma maior fidelidade ao marxismo.

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Em 1918, foi proclamada a República da Baviera252, e, logo em seguida,

uma revolução interna se iniciou por toda a Alemanha. Anunciou-se em Berlim a

abdicação do Kaiser253. Um Conselho Provisório presidido por Friederich Elbert254,

representante do movimento socialista no Reichstag255, assumiu o governo

alemão. Iniciaram-se as providências para o Armistício. O governo provisório foi

chamado para assinar o Tratado de Versalhes.256

Todos os Estados envolvidos na guerra encontravam-se com suas

economias abaladas. O sistema capitalista mostrava-se impotente para reerguer o

desastre econômico, político e social da Alemanha. Após o Tratado de Versalhes,

o governo da Alemanha encontrava-se nas mãos de socialistas, integrantes do

Partido Social Democrático, por isso a nova constituição representava uma nova

coalizão de socialistas centristas católicos e liberais democratas. 257

Convocadas as eleições para a Assembléia Constituinte, verificou-se uma

das causas da ruptura de Weimar: a absoluta fragmentação política e a ausência

de maioria positiva no Parlamento258. Sob tal aspecto, irretocáveis as palavras de

Bourthoumieux259:

252 Baviera – pertence à República Federal da Alemanha. Localiza-se no sul do país. Baviera constitui um dos 16 estados federados autônomos, denominados Lander. Munich é a capital do estado da Baviera.253 Kaiser no idioma alemão designa imperador. Kaiserin representa o nome feminino. in Langescheidts Taschenwoterbuch – Deutsc-Portugiech de BEAU, Albin Eduard. Berlim-Munique-Zurique 1969, p. 1238. – O Kaiser Guilherme II renuncia, seguindo-se a nomeação de seu filho, Max von Baden. Segundo Comparato, foram tentativas de "abrir mão tão-só da coroa imperial, permanecendo como rei da Prússia". COMPARATO, Fábio Konder. opus cit., p. 196.254 Fiederich Elbert (1871-1925). Nasceu em Heidelberg. Foi sindicalista e político. Ingressou na Social Democracia, pois as idéias do marxismo não o atraíam. Foi o primeiro presidente alemão democraticamente eleito, como líder de movimento social-democrático. Foi um dos fundadores da Constituição de Weimar de 1919.255 Reichstag designa Parlamento Alemão.256 Tratado de Versalhes designa o documento político-jurídico celebrado pelas nações diretamente interessadas no Primeiro Conflito Mundial. Foi assinado em Versalhes, em Paris, no dia 28 de junho de 1919. Presentes à sessão solene encontravam-se representantes de trinta e nove países. Representando o bloco vencedor: Presidente Woodrow Wilson (EUA), David Lloyd Georges (Primeiro Ministro da Inglaterra) e Georges Clemenceau (Primeiro Ministro da França). O Tratado punha fim à Primeira Grande Guerra Mundial. Pretendia devolver a paz à Europa e, ao mesmo tempo, eliminar o poderio bélico da Alemanha. Esta foi obrigada a entregar todo o seu equipamento bélico, 1700 aeroplanos e 5 mil locomotivas, navios, bem como retirar suas tropas que se encontravam além de suas fronteiras.257 Cf. MOTTA DA SILVA, Moacyr. A justiça social como destinação dos direitos sociais. [S.L.: s.n., 200?], p. 56.258 Para participação na Assembléia Constituinte, elegeram-se 421 representantes de 6 partidos: 44 membros da direita conservadora, 19 membros da direita populista, 91 membros do partido católico, 75 membros do partido centrista, 165 membros da social-democracia e 22 membros da social-democracia independente. Constata-se, pois, a absoluta fragmentação política da Assembléia, bem assim a derrota dos partidos de esquerda. Nesse sentido: VAZ DA SILVA, Floriano Corrêa. opus cit., p. 43; THALMANN, Rita. República de Weimar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 15; BRUNET, René. La Constitution Allemande du 11 aout 1919, Paris: Payot & Cie, 1921 p. 47. Carlos Roberto Jamil Cury prefere a menção a percentuais, afirmando que as esquerdas moderadas (o partido comunista não participou das eleições) obtiveram 45% das cadeiras, a centro-direita, 33,3% e a direita, 14,7%. Trinta e sete

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Cette dissociation du pouvoir réel et du pouvouir legal caractérise dés le début la période nouvelle et marque ce qui en será la loi constante: necessite de réaliser et de maintenir um compromis entre des forces naturellement divergentes. Ce compromis, uniquement imposé par la crainte commune de la Révolution n’est qu’une tréve momentanée pour les adversaires de la République. Il ne suppose aucun accord sur les questions politiques et sociales. Cet accord n’exist même pas dans la coalition républicaine des socialistes, des democrats et du centre. Dés les premières séances de l’Assemblée nationale, il fut visible que seuls les discourses qui exaltaient l’heroisme des armées et repoussaient toute responsabilité du Reich dans la guerre étaient capable de faire l’unnanimité. 260

O projeto da Constituição de Weimar, 1919, foi elaborado por Hugo

Preuss261, discípulo de Gierke262, e influenciado por Weber, que era considerado

um dos poucos juristas de tendências de esquerda. 263

A Constituição Alemã de 1919 era composta por 165 artigos, divididos em

dois livros. O primeiro livro, relativo à "Estrutura e Fins da República", já o

segundo, relacionado aos "Direitos e Deveres Fundamentais do Cidadão

Alemão".

O livro II (artigos 109 a 165) merece atenção neste estudo. Não faltaram

críticas aos direitos e garantias nele constantes. Técnicas de hermenêutica foram

aprimoradas para permitir que os direitos fundamentais conferidos por estes

dispositivos ao povo alemão pudessem alcançar nível mais elevado de

concretização.

mulheres foram eleitas para a Constituinte. JAMIL CURY, Carlos Roberto. A Constituição de Weimar: Um capítulo para a educação, in Revista Quadrimestral de Ciência da Educação, nº 63/1998, p. 86.259 BOURTHOUMIEUX, Ch. Fédéralisme et Démocratie dans la Constitution de Weimar et la Loi Fondamentale de Bonn. in Revue Internationale de Droit Comparé, janeiro/março de 1950, p. 28260 “Esta dissociação do poder real e do poder legal caracteriza desde o começo o período novo e marca o que na lei será constante: necessidade de realizar e manter um compromisso entre forças naturalmente divergentes. Este compromisso, unicamente imposto pelo temor comum da Revolução é apenas um tréve momentâneo para os adversários da República. Não supõe nenhum acordo sobre questões políticas e sociais. Este acordo não existe mesmo na coalizão republicana dos socialistas, democratas e do centro. Nas primeiras sessões da Assembléia Nacional, ficou visível que só os discursos que exaltavam o heroísmo do exército e afastavam qualquer responsabilidade do Governo na guerra eram capazes de fazer unanimidade.” (tradução nossa).261 Hugo Preuss (1860-1925). Jurista e político alemão. Professor de origem judaica adepto do comunitarismo. Representa um dos principais teóricos da Constituição de Weimar de 1919. Foi discípulo do jurista Otto Friedrich von Gierke.262 Otto Friedrich von Gierke. Nasceu em Heidelberg, Alemanha (1841-1913-1921?). Jurista e político. Professor de Direito em Breslau, Heidelberg e Berlim.263 A questão de a escolha de Preuss ter se fundado em sua suposta proximidade com a esquerda da época foi enfatizada por Walter Jellinek. apud BERCOVICI, Gilberto. Entre o Estado Total e o Estado Social. Atualidade do debate sobre direito, Estado e economia na República de Weimar. Tese de Livre-Docência apresentada ao Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, 2003, p. 14.

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Nesse sentido, deve-se dizer que se sustentou até que a Constituição

alemã possuía uma contradição absoluta entre seus dois livros, que estabeleciam

uma organização liberal de Estado, de um lado, e conferiam direitos de natureza

socialista, de outro. 264

Importante observação é feita por Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro265:

O rol sistematizado de direitos constante do Livro II da Constituição de Weimar, ao garantir tanto liberdades públicas como prerrogativas de índole social, notabilizou e celebrizou a Constituição Alemã de 1919, que, não obstante suas imperfeições – inerentes à toda obra humana –, inspirou textos constitucionais por todo o mundo, inclusive no Brasil (Constituição de 1934).

Analisando-se a famosa Constituição, a primeira observação recai sobre o

extenso rol de direitos fundamentais de primeira dimensão nela constantes: direito

à igualdade (art. 109); igualdade cívica entre homens e mulheres (art. 109, § 1º);

direito à nacionalidade (art. 110); liberdade de circulação no território e para fora

dele (arts. 111 e 112); inviolabilidade de domicílio (art. 115); irretroatividade da lei

penal (art. 116); sigilo de correspondência e de dados telegráficos ou telefônicos

(art. 117); liberdade de manifestação do pensamento (art. 118); vedação à

censura (art. 118, § 1º); proteção ao matrimônio e à família (art. 119); igualdade

jurídica entre os cônjuges (art. 119); igualdade entre filhos havidos na constância

ou fora do matrimônio (art. 121); liberdade de reunião (art. 123); liberdade de

associação (art. 124); direito ao voto secreto (art. 125); direito de petição ao Poder

Público (art. 126); liberdade de consciência e crença religiosa (art. 135);

separação Estado/Igreja (art. 137); liberdade de associação religiosa (art. 137, §

1º) e liberdade de sindicalização (art. 159).

Entre os direitos de segunda dimensão, que conferem não só caráter social

à Constituição de Weimar, mas também evidente atenção ao princípio da

solidariedade, que se encontra implícito no conjunto dos dispositivos266, mister

destacar: proteção e assistência à maternidade (arts. 119, § 2º e 161); direito à

educação da prole (art. 120); proteção moral, espiritual e corporal à juventude (art.

122); direito à pensão para família em caso de falecimento e direito à

264 Schimitt apud Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro. op.cit., p. 16265 Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, mesma página.266 Conforme se verá adiante, a solidariedade se dá entre indivíduos, entre grupos e indivíduos e entre grupos.

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aposentadoria, em tema de servidor público (art. 129); direito ao ensino de arte e

ciência (art. 142); ensino obrigatório, público e gratuito (art. 145); gratuidade do

material escolar (art. 145); direito à "bolsa estudos", ou seja, à "adequada

subvenção aos pais dos alunos considerados aptos para seguir os estudos

secundários e superiores, a fim de que possam cobrir a despesa, especialmente

de educação, até o término de seus estudos" (art. 146, § 2º).

Não se pode esquecer, igualmente, das seguintes garantias: função social

da propriedade (art. 153, §2º); desapropriação de terras, mediante indenização,

para satisfação do bem comum (art. 153, § 1º); direito a uma habitação sadia (art.

155); direito ao trabalho (art. 157 e art.162); proteção ao direito autoral do inventor

e do artista (art. 158); proteção à maternidade, à velhice, às debilidades e aos

acasos da vida, mediante sistema de seguros, com a direta colaboração dos

segurados (Art. 161 - previdência social); direito da classe operária a "um mínimo

geral de direitos sociais" (art. 162); seguro desemprego (art. 163, § 1º).

Registre-se, ainda, que há no corpo do texto constitucional de Weimar

dispositivo destinado, unicamente, a contemplar direitos fundamentais de terceira

dimensão, qual seja, o artigo 150, que, ao dispor que "Os monumentos de arte,

históricos e naturais, bem como a paisagem, gozam da proteção e incentivo

estatais", positivou, em sede constitucional, típicos direitos de terceira dimensão.

O tema da solidariedade na Constituição de Weimar (1919) é mais

evidente, menos tímido do que na Constituição Mexicana (1917), pois nela está

previsto, ao lado dos direitos dos trabalhadores e do estabelecimento da função

social da propriedade, um rol sistematizado de outros direitos com nítido caráter

de observação ao princípio da solidariedade.

Destaca-se, entre eles, o avançado sistema de educação pública,

obrigatória e gratuita, que previa, inclusive, a gratuidade do material escolar e a

subvenção de famílias carentes para que seus filhos pudessem ir à escola (arts.

145 e 146). O sistema de previdência social, por sua vez, foi estabelecido de

maneira mais organizada e explícita, com previsão de participação do segurado

(art. 161), sendo, ainda, dividido em regime de previdência do setor público – para

funcionários públicos (art. 129) – e regime geral de previdência (art. 161).

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Estabeleceu-se, também, como meio de incentivo à pesquisa, o direito à proteção

autoral do inventor e do artista (art. 158).

Como se observa, há uma evolução na proteção dos direitos humanos na

Constituição de Weimar. Muitos direitos, tidos como sociais (segunda dimensão),

passam a exigir para sua efetivação a solidariedade entre grupos humanos e

entre os indivíduos; em outras palavras, passam a ter um caráter de direitos de

fraternidade (terceira dimensão).

Com efeito, os direitos/deveres que implicam em atenção ao princípio da

solidariedade são universais ou, no mínimo, transindividuais, dizem respeito tanto

ao Estado, quanto à sociedade, quanto aos indivíduos.

5.3. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES

FRANCESAS

Como é de conhecimento geral, os três princípios axiológicos fundamentais

em matéria de direitos humanos são a liberdade, a igualdade e a fraternidade,

que têm sua formação histórica devida à Revolução Francesa. Todavia, os

primeiros textos constitucionais só mencionavam os valores liberdade e

igualdade. A consagração oficial da fraternidade (solidariedade) em textos

jurídicos só se fez tardiamente.

Em verdade, a fraternidade ou solidariedade veio a ser mencionada, pela

primeira vez, e, ainda assim, não como princípio jurídico, mas como virtude cívica,

na Constituição Francesa de 1791."Serão estabelecidas festas nacionais para

manter a lembrança da Revolução Francesa, promover a fraternidade entre os

cidadãos e vinculá-los à Constituição, à Pátria e às Leis."

Lembra Guido Alpa 267 que nesse texto constitucional francês a expressão

evidentemente significa “confraternizar”, permitir ao indivíduo fazer amizade, alegrar-

se junto, e, ao mesmo tempo, um instrumento político para reforçar o espírito

patriótico surgido na Revolução, necessário para combater os inimigos desta.

267 Alpa, Guido. op.cit., p. 398.

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Per verità la espressione occhieggi in quelque disposizone marginale, como nel penúltimo comme del titolo i, già nella Costituzione del 1791 a propósito della introduzione di feste nazionali in ricordo della Rivoluzione; vi si enuncia il motivo della disposizione, che consiste nel ‘mantenere la fraternitá tra i cittadini e legarli allá Costituzione, alla Pátria, alle Leggi’. È evidente che qui fraternità significa ‘fraternizzare’, consentire ai singoli di fare amicizia, giore insieme; nel contempo significa dalle certezze rivoluzionarie, e necessário per combattere i nemici della Rivoluzione, interni ed esterni al Paese.268

Na Constituição Francesa de 1793, a solidariedade não é mencionada,

mas é implícita, defende Guido Alpa. 269 Contudo, na Constituição de 1795, pela

primeira vez, aparecem, além dos direitos do homem, os deveres de “não fazer ao

outro o que não gostaria que fosse feito a você” e “fazer ao outro o que gostaria

de receber” (artigo 2º). Aqui está a solidariedade, afirma o renomado autor; aqui a

fraternidade apresenta um conteúdo de obrigação e dever. É o dever de fazer o

bem que aparece pela primeira vez em um texto normativo.

Nella Costituzione del 1795 per la prima volta compaiono in um texto fondamentale i doveri, oltre che i diritti dell’uomo. Tra i doveri si richiamano i precetti ‘non fare agli altri ciò che no vorresti fosse fatto a te’ e ‘fate constantemente agli altri ciò chi vorreste ricevere’ [...]

Ecco che la fraternità, e la solidarietà, pur sfumate nella loro fisionomia, presentano um contenuto di doverosità: è il dovore di attivarsi, di farei l bene, che per la prima volta compare in um texto normativo. 270

Em 1848, quando da redação da nova Constituição Francesa, o lema

"LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE" foi definido como um princípio da

República.

A Constituição Francesa de 1946 reafirma solenemente os direitos e

liberdades do homem e do cidadão consagrados pela Declaração de Direitos de

1789 e, indiretamente, faz menção ao direito de fraternidade, quando menciona

reconhecer os princípios fundamentais da república.

268 Na verdade, a expressão se encontra em qualquer disposição marginal, como no penúltimo comando do título, já na Constituição de 1791 o propósito da introdução da festa nacional em memória da Revolução; se verifica o motivo da disposição, que consiste no manter a fraternidade entre os cidadãos e para ligá-los à Constituição, à Pátria, às leis. É óbvio que fraternizar significa aqui confraternizar, consentir aos indivíduos fazer amizade, mantê-los unidos; ao mesmo tempo significa reforçar as certezas revolucionárias, necessárias, a fim de lutar contra os inimigos da Revolução, interno e externo ao país.269 ALPA, Guido. op. cit., p. 399.270 Na Constituição de 1795, primeiramente aparece em um texto fundamental um dever, além dos direitos do homem. Entre os deveres se recorda “não fazer aos outros aquilo que você não gostaria que lhe fizessem” e “constantemente fazer ao outro aquilo que você gostaria de receber” [...] eis que a fraternidade e a solidariedade, transformados em sua aparência, introduzem um conteúdo de dever: é o dever de agir, de fazer o bem, que pela primeira vez aparece em um texto normativo.

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“1. Au lendemain de la victoire remportée par les peuples libres sur les régimes qui ont tenté d’asservir et de dégrader la personne humaine, le peuple frençais proclame à nouveau que tout être humain, sans distinction de race, de religion ni de croyance, possède des droits inaliénables et sacrés. Il réaffirme solennellement les droits et libertés de l’homme et du citoyen consacrés par la Déclaration des droits de 1789 et les principes fondamentaux reconnus par les lois de la République.” 271

Não se pode esquecer, todavia, que a expressão na Constituição Francesa

de 1946 possui conotação de direito e não propriamente de dever. Nesse sentido,

a prestigiosa lição de Guido Alpa272:

Nel premabolo della Constituzione francese del 1946, ad esempio, la solidarietà è affiancata all’egualianza di tutti Francesi di fronte agli oneri derivante della calamità nazionali; ma nulla si dice in ordine ai doveri o allo sviluppo della personalità o ad altre esigenze di cooperazione o collaborazione di pare dei singole e dei gruppi. 273

Por fim, a Constituição Francesa de 1958 é mais enfática ao reconhecer o

princípio da solidariedade, e a ele dá uma conotação diversa dos demais textos

constitucionais franceses. Confira-se:

Préambule

Le peuple français proclame solennellement son attachement aux Droits de l’homme et aux principes de la souveraineté nationale tels qu’ils ont éte définis par la Déclaration de 1789, confirmée et complétée par le préambule de la Constitution de 1946.

En vertu de ces principes et de celui de la libre détermination des peuples, la République offre aux territoires d’outre-mer qui manifestent la volonté d’y adhérer des institutions nouvelles fondées sur l’idéal commun de liberté, d’égalité et de fraternité et conçues en vue de leur évolutions démocratique.

Article ler

La Republique et les peuples des territoires d’outre-mer qui, par um acte de libre d’termination, adoptent la presente constitution instituent une Communauté.

271 Ao dia seguinte da vitória ganha pelos povos livres sobre os regimes que tentaram dominar e degradar a pessoa humana, o povo francês proclama de novo que qualquer ser humano, sem distinção de raça, de religião nem crença, possui direitos inalienáveis e consagrados. Reafirma solenemente os direitos e liberdades do homem e do cidadão consagrados pela Declaração dos direitos de 1789 e os princípios fundamentais reconhecidos pelas leis da República. (tradução nossa)272 ALPA, Guido. Il principi nella prospetitiva constituzionale. p. 394.273 No preâmbulo da Constituição francesa de 1946, por exemplo, a solidariedade é colocada lado a lado à igualdade de todo o francês frente à calamidade nacional; mas nada se diz no ordenamento aos deveres ou ao desenvolvimento da personalidade ou a outras exigências da cooperação ou da colaboração entre os pares, entre os indivíduos e os grupos. (tradução nossa)

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La Communauté est fondée sur l’égalité et la solidarité des peuples qui la composent. 274

Enfim, pode-se afirmar que, uma vez constituídos, os princípios da

liberdade, igualdade e solidariedade transformaram-se, ao longo do tempo, em

valores supremos do sistema universal dos direitos humanos, cuja força atinge

nossos dias.

5.4. CONSTITUIÇÃO ITALIANA DE 1948

Outro texto constitucional importante para o estudo do princípio

solidariedade é, sem dúvida, a Constituição italiana de 1948. Com efeito, não se

pode fazer qualquer análise científica do mencionado princípio sem estudá-lo à

luz de tal Constituição. O que torna simbólica a Constituição italiana relativamente

ao princípio da solidariedade? A primeira impressão, ao se comparar os textos

constitucionais do século XIX, é de que ela teria, mais do que outras, exaltado

esse princípio.

O ponto de partida para a investigação científica é o artigo 2º da

Consttuzione Della Repubblica Italiana, segundo o qual:

La Repubblica riconosce e garantisce i diritti involabili dell’uomo, sai come singolo sai nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personalitá, e rechiede l’adempimento dei doveri iderogabili di solidarietà politica, econômica e sociale. 275

Nesse contexto, a solidariedade é um dever público constitucional, que

deve permanecer sempre como garantia de unidade, mesmo diante de

274 "O povo francês proclama solenemente a sua adesão aos Direitos do Homem e aos princípios da soberania nacional tal como foram definidos pela Declaração de 1789, confirmada e completada pelo preâmbulo da Constituição de 1946. Em virtude destes princípios e do princípio da livre determinação dos povos, a República oferece aos territórios do ultramar, que manifestem a vontade de a elas aderir, instituições novas, fundadas no ideal comum de liberdade, igualdade e fraternidade e concebidas em vista de sua evolução democrática. – Artigo Primeiro: A República e os povos dos territórios de outro mar, por um ato de determinação que adotam a presente Constituição instituem uma Comunidade. A Comunidade é fundada na igualdade e na solidariedade dos povos que a compõem.275 “A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, seja como indivíduo, seja nas formas pelas quais se desenvolve a sua personalidade e exige o cumprimento de deveres inderrogáveis de solidariedade política, econômica e social.”

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contingentes contraposições políticas. Outrossim, o princípio da solidariedade é

um parâmetro de avaliação das leis ordinárias. 276

Cláudio Sachetto observa, ao estudar o artigo 2º da Constituição italiana,

que “a solidariedade se coloca como critério de avaliação primária para o

legislador ao decidir se os interesses que irá regular devem ser entregues à

autonomia privada ou a disciplina de natureza pública.” 277

Diz Guido Alpa278:

‘Solidarietà’ è espressione che si riscontra in via di eccezione nella terminologia normativa. Tendenzialmente è piu frequente nei testi constituzionali che non nelle leggi di rango inferiore: le constituzioni codificano le tavole di valori sulle quali poggia l’ordinamento e delineano gli indirizzi a cui si deve attendere il legislatore ordinario, provvedono atresì a individuare le liberta degli individui e i diritti fundamentali deicittadini; la solidarietà, come valore generale, trova quindi il suo alveo naturale nelle norme di basi di um ordinamento. 279

Aqui se situa um dos pontos nucleares, a saber: a necessidade da

extensão, da aplicação do princípio às relações familiares, naquilo que não

respeite a direito meramente patrimonial, obrigacional puramente, mas naquilo

que protege a pessoa enquanto direito humano.

Na Constituição italiana, a solidariedade é um princípio de valor

constitucional. Neste aspecto diverge a experiência constitucional italiana das

americana e inglesa, em que a proteção dos direitos sociais é confiada à lei

ordinária e, por isso mesmo, exposta às condicionantes políticas momentâneas.

O professor italiano Sérgio Galeotti, autor, pouco antes de sua morte, de

um estudo publicado na Rivista di Diritto Sociale de 1996 – “Il Valore della

Solidarietà” –, observava que a solidariedade, antes de ser um dever/direito, é um

276 SACCHETTO, Cláudio. O Dever da Solidariedade no Direito Tributário: o Ordenamento Italiano. in GRECO, Marco Aurélio e GODOI, Marciano Seabra de (coord.). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 13.277 Ibidem, p. 14. 278 ALPA, Guido. Il principi nella prospectiva constituzionale. p. 392.279 “A solidariedade é expressão que se encontra em via de exceção na terminologia normativa. Normalmente é mais freqüente nos textos constitucionais que nas leis de alcance inferior. As constituições codificam os critérios de valores sobre os quais se apóia o ordenamento e aponta a direção a qual se deve ater o legislador ordinário. Providenciam, além de tudo, individualizar a liberdade dos indivíduos e os direitos fundamentais do cidadão; a solidariedade, como valor geral, encontra, no entanto, seu alvo natural nas normas de base de um ordenamento.” (tradução nossa)

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valor. 280 O tema da solidariedade na Constituição italiana está mergulhado em

juízos de valor, pois os patres conscripti que a redigiram propunham precisamente

isso: criar um modelo de Estado republicano fundado em valores, direitos

fundamentais do indivíduo e os valores da socialidade e da solidariedade.

Guido Alpa assevera que a solidariedade, na Constituição Italiana de 1947-

1948, é um valor muito forte. É por isso que, como primeiro direito/dever, orienta

todos os demais dispositivos constitucionais. Confira-se:

Nella Constituzione italiana del 1947-1948 la solidarietà è considerata um valore forte: essa compare già ina apertura, all’ art. 2, la dove si riconoscono e garantiscono i diritti inviolabili dell’uomo tutelati a si in capo alla persona singola, sia in riferimento alle aggregazioni sociali; ai diritti corripondono doveri, e il dovere enunciato per primo è proprio il dovere di solidarietà; ricorre poi – in modo implícito – là dove si prescrive il diritto-dovere del lavoro, e si prescrive il concorso del cittadini al progresso materiale o espirituale della società (art. 4); sollidarietà si esprime alle categoria deboli, nell’ impegno assunto dalla Repubblica di rimuovere gli ostacoli di ordine economico e sociale che limitano la liberta e l’egualianza dei cittadini, lo sviluppo dela persona e la partecipazione dei lavoratori all’ organizzacione política, economica e sociale del paese (art. 3, comma 2º); solidarietà si offre allo straniero che eserciti il diritto di asilo (art. l); e là dove si ripudia la guerra come strumento di offesa alla libertà degli altri popoli; ciò in funzione della pace e della giustizia tra le nazioni (art. 11); oppure ove si tutela la libertà religiosa, esercitata in forma individuale e associata; si manifesta alle famiglie bisognose (e nuemrose: art. 31), e alle famiglie che debbono provvedere all’educazione scolastica dei minori (art. 34, comma 3º); solidarietà si esprime agli emigrati e tutelando il lavoro degli italiani all’estero, alla donna lavoratrice (art. 37), agli inabili al lavoro e ai singoli lavoratori perché abbiano un ‘esistenza dignitosa (art. 38, commi 1º e 2º), e cose via.281

280 Vide a respeito as considerações importantes desenvolvidas a este propósito por S. Prisco, ‘Solidarietà e Sussidiarietá nel Pensiero dell’ Ultimo Galeotti”, em Poteri e Garanzi nel Diritto Constituzionale. L’Insegnamento di Serio Galeotti, organização B. Pezzini, Milão, 2003, p. 115 e ss.281 “Na Constituição Italiana 1947-1948, a solidariedade é considerada um valor muito forte; como se observa já na abertura ao artigo 2º, lá onde se reconhecem e garantem os direitos invioláveis do homem, considerado em si mesmo ou singularmente, e ao mesmo tempo às agregações sociais; aos direitos correspondem deveres, e o primeiro dever enunciado é a própria solidariedade; presente também – de forma implícita – onde se refere ao direito-dever do trabalho, e se pressupõe onde se prescreve ao direito dos cidadãos ao progresso material e espiritual na sociedade (art. 4º); a solidariedade se refere às categorias mais frágeis no empenho da República de proteger a liberdade e igualdade do cidadão, desenvolvimento da pessoa e da participação dos trabalhadores na organização política e social do país (art. 3º, §2º); a solidariedade se oferece ao estrangeiro que exercita direito de asilo (art. I), e lá onde se repudia a guerra como instrumento de ofensa à liberdade dos outros povos; tudo isso em função da paz e justiça da nação (art. 11), oferece onde se garante a liberdade religiosa, exercitada individualmente ou em associações; se manifesta às famílias necessitadas (e numerosas: art. 31); famílias pobres que devem providenciar a educação escolar dos filhos (art. 34, §3º); a solidariedade se expressa aos imigrantes dando-lhes trabalho italiano; à mulher trabalhadora; aos incapazes para o trabalho e aos trabalhadores individuais para que tenham uma vida digna (art. 38, §§ 1º e 2º); assim como aos incapazes e aos menores(art 3º,§3º) e assim em diante.” (tradução nossa)

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Convém notar que, na Constituição Italiana (1948), a expressão é utilizada

como dever, não apenas direito, e nisto diverge da Francesa (1946). 282

O mesmo Guido Alpa, analisando o princípio da solidariedade na

perspectiva constitucional italiana, observa que o mesmo ora se refere aos

relacionamentos econômicos, ora aos sociais, ora aos familiares. “Tratando-se de

expressão genérica, alusiva, evocativa a solidariedade é especificada com

objetivação: ora é referida às relações econômicas, ora àquelas sociais, ou

familiares.” (tradução nossa)

Adverte que, embora a expressão tenha contorno volátil e impreciso, a

solidariedade implica, antes de mais nada, num relacionamento entre pessoas ou

grupos, sejam iguais ou desiguais. Confira-se:

Il suo significato conserva però pur sempre contorni imprecisi e sfumati. E tuttavia, logicamente, prima ancora che giuridicamente, solidarietà implica:

un rapporto interindividuale, non potendosi dare solidarietà, com o per se stessi (l’amore di sé è, per contro, espressione di individualismo, di separatezza, di autodifesa);

um rapporto tra uguali, per condizioni economiche e sociali, per affinità elletive, per appartenenza a certe classi, categorie, religioni, etnie, culture, lingue; il che implica reciprocità, cooperazione, difesa contro lê aggregazioni esterne;

ovvero um rapporto disiguale, se istituito com l’altro che sofre, che è piusvataggiato, che è piú inconlto.”283

Importante ressaltar que, na Carta Constitucional italiana, os deveres

públicos colocam-se em estreita correlação aos direitos, dos quais representam a

exata contraposição. Em outras palavras, toma por referência o indivíduo,

referência final irredutível com seus direitos fundamentais, mas dentro da

sociedade na qual vive, seja o Estado ou a comunidade local.

282 Vide página 79.283“O seu significado conserva, contudo, um contorno impreciso e esfumaçado. E todavia, logicamente, antes que juridicamente, a solidariedade implica: I) uma relação interindividual, não podendo dar-se solidariedade por si mesmo (o amor próprio é, por exemplo, expressão do individualismo, de separação, de auto-defesa); II) uma relação entre iguais, por condições econômicas e sociais, por afinidades eletivas, por pertencer a certas classes, categorias, religiões, etnias, culturas, línguas; o que implica em reciprocidade, cooperação, defesa contra as agressões externas; na verdade uma relação desigual se instituída com o outro que sofre, que está em desvantagem ou é inculto.” (tradução nossa)

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5.5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NAS DEMAIS CONSTITUIÇÕES

EUROPÉIAS.

Em algumas Constituições Sociais Européias, é corriqueiro encontrar o

princípio da solidariedade. Mas não em todas. Na Constituição de Bonn

(Alemanha), de 23 de maio de 1949, que substituiu a de Weimar, num verdadeiro

retrocesso, foram garantindo diversos direitos fundamentais, sem acenar,

contudo, ao dever de solidariedade. Todavia, o jurista italiano Guido Alpa traz

notícia de que um grupo de parlamentares fez proposta ao texto do artigo 2º para

inserir fórmula segundo a qual cada pessoa é chamada a demonstrar amor ao

próximo e um senso de solidariedade (§2a).284

A Constituição irlandesa de 1937 dedica atenção ao princípio da

solidariedade entre os indivíduos, o qual a República entende necessário

promover e reforçar. No texto da referida carta, é comum a menção da caridade.

Há uma evidente preocupação com a justiça social, ainda que na tutela dos

direitos individuais (art. 43, §1, inciso II).

Na Constituição portuguesa de 1976, está previsto o princípio da

solidariedade logo no artigo 1º do Título que dispõe sobre os “Princípios

Fundamentais”, verbis: “Portugal é uma República soberana, baseada na

dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção

de uma sociedade livre, justa e solidária.”

A preocupação do constituinte português em construir essa sociedade

solidária é implicitamente reforçada no Capítulo II - direitos e deveres sociais –, ao

se tratar de temas como a seguridade social (art. 63), saúde (art. 64), habitação e

urbanismo (art. 65), ambiente e qualidade de vida (art. 66), a proteção à família

(art. 67), da paternidade e maternidade (art. 68), infância (art. 69) e juventude (art.

70), dos cidadãos portadores de deficiência (art. 71) e da terceira idade (art. 73).

284 ALPA, Guido. op. cit., p. 394.

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6. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

6.1. PRECEDENTES HISTÓRICOS

A primeira constituição brasileira, Constituição Imperial de 25 de março de

1824, apenas e tão-somente consagrou os direitos humanos, como então eram

reconhecidos, ou seja, assegurou as liberdades fundamentais285. Não há qualquer

menção a direitos sociais, tampouco menção à solidariedade. Referida

Constituição vigorou até 15 de novembro de 1889.

A Constituição de 24 de fevereiro de 1891 buscou corporificar juridicamente

o regime republicano instituído após a Revolução que derrubou a Coroa. A

primeira Constituição Republicana ampliou os direitos humanos, além de manter

as garantias já reconhecidas no Império.

Nessa constituição brasileira, separou-se a Igreja do Estado e estabeleceu-

se a plena liberdade religiosa, consagrou-se a liberdade de associação e de

reunião sem armas, assegurou-se aos acusados a mais ampla defesa, aboliram-

se as penas de galés, banimento judicial e morte, criou-se o habeas corpus com a

amplitude de remediar qualquer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de

poder, e, por fim, instituíram-se as garantias da magistratura (vitaliciedade,

inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos), mas, expressamente, em favor

dos juízes federais.

Todavia, nada se falou sobre direitos sociais, nem sobre solidariedade.

Com a Revolução de 1930, adveio o discricionarismo. Houve um completo

retrocesso no país. O Decreto nº. 19.398, de 11 de novembro de 1930, passou a

exercer o papel de autêntica Constituição do país. Obscureceram-se

completamente os Direitos Humanos.

285 Entre as principais garantias da Constituição de 1824, podem-se citar: liberdade de expressão, liberdade de convicção religiosa, inviolabilidade da casa, proibição de prisão sem culpa formada, exigência de ordem escrita de autoridade legítima para a prisão, independência do poder judicial, igualdade de todos perante a lei, abolição de açoites, tortura, marca de ferro e demais penas cruéis, direito de propriedade, liberdade de trabalho, inviolabilidade do segredo das cartas, direito de petição e de queixa, instrução primária gratuita.

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A Revolução Constitucionalista de 1932 e a voz dos que se levantaram contra

a prepotência precipitaram a convocação da Assembléia Constituinte, em 1933. A

participação popular na constituinte foi bastante reduzida. A Constituição de

1934 restabeleceu as franquias liberais, suprimidas pelo período autoritário

que se seguiu à Revolução de 1930. Em verdade, as garantias constitucionais

foram ampliadas.

De fato, a Constituição de 1934 determinou que a lei não prejudicaria o

direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, explicitou o princípio

da igualdade perante a lei, sem distinções por motivo de nascimento, sexo,

raça, profissão própria ou dos pais, riqueza, classe social, crença religiosa ou

idéias políticas. Mas não é só. Permitiu a aquisição de personalidade jurídica,

pelas associações religiosas, e introduziu a assistência religiosa facultativa nos

estabelecimentos oficiais; instituiu a obrigatoriedade de comunicação imediata

de qualquer prisão ou detenção ao juiz competente para que a relaxasse. E, se

ilegal, estabeleceu a responsabilidade da autoridade co-autora. Manteve o

habeas corpus, para proteção da liberdade pessoal, e instituiu o mandado de

segurança, para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado

por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade.

Vedou a pena de caráter perpétuo, proibiu a prisão por dívidas, multas ou

custas, impediu a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião e,

em qualquer caso, a de brasileiros.

Criou a assistência judiciária para os necessitados, determinou às

autoridades a expedição de certidões requeridas, para defesa de direitos

individuais ou para esclarecimento dos cidadãos a respeito dos negócios

públicos.

Ao lado das garantias individuais, a Constituição de 1934, inovando no

direito constitucional brasileiro, estatuiu normas de proteção social do trabalhador,

entre elas: proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo

de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; salário mínimo capaz de satisfazer

as necessidades normais do trabalhador; limitação do trabalho a oito horas

diárias, só prorrogáveis nos casos previstos pela lei; proibição de trabalho a

menores de 14 anos, de trabalho noturno a menores de 16 anos e em indústrias

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insalubres a menores de 18 anos e a mulheres; repouso semanal, de preferência

aos domingos; férias anuais remuneradas; indenização ao trabalhador

dispensado sem justa causa; assistência médica sanitária ao trabalhador e

assistência médica à gestante, assegurada a ela descanso antes e depois do

parto, sem prejuízo do salário e do emprego.

Além disso, houve a instituição de previdência, mediante contribuição

igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da

invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte;

reconhecimento das convenções coletivas de trabalho; obrigatoriedade de

ministrarem as empresas, localizadas fora dos centros escolares, ensino

primário gratuito, desde que nelas trabalhassem mais de 50 pessoas, havendo,

pelo menos, 10 analfabetos; criação da Justiça do Trabalho, vinculada ao

Poder Executivo.

Também cuidou a Constituição de 1934 dos direitos culturais,

sufragando os seguintes direitos: direito de todos à educação, com a

determinação de que esta desenvolvesse, num espírito brasileiro, a

consciência da solidariedade humana; obrigatoriedade e gratuidade do ensino

primário, inclusive para os adultos, e tendência à gratuidade do ensino ulterior

ao primário; ensino religioso facultativo, respeitada a confissão do aluno;

liberdade de ensino e garantia da cátedra.

A Constituição de 1934, que vigorou até a introdução do Estado Novo,

em 10 de novembro de 1937, definitivamente respeitou os Direitos Humanos,

introduzindo no pensamento jurídico o valor da solidariedade humana.

Segundo os estudiosos Paulo Bonavides e Paes de Andrade, essa

Constituição guiava o pensamento da sociedade e a ação do Governo para

um programa de leis cujo valor maior recaísse no bem comum. 286

O Estado Novo institucionalizou o autoritarismo. O Parlamento e as

Assembléias foram fechados. Deteve o presidente da República, Getúlio Vargas,

até a queda do Estado Novo, o poder de expedir decretos-leis, previsto no artigo

180 da Carta de 1937. A Constituição declarou o país em estado de emergência 286 HERKENHOFF, João Batista. História dos Direitos Humanos no Brasil. Volume 1 Gênese dos Direitos Humanos. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/herkenhoff/livro1/dhbrasil/br5.html. (acesso em junho/2006)

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(art. 186), com suspensão da liberdade de ir e vir, censura de correspondência e

de todas as comunicações orais e escritas, suspensão da liberdade de reunião,

permissão de busca e apreensão em domicílio (art. 168, letras a, b, c e d). Nas

palavras de Herkennhoff, “em tal ambiente jurídico e político, mesmo as garantias

mantidas perderam sua efetividade, foram contagiadas pelo gérmen autoritário

até as garantias que não apresentavam qualquer risco para o regime

vigente”.287

Em 1946, o país foi redemocratizado. A Constituição de 18 de setembro de

1946 restaurou os direitos e garantias individuais, que foram, mais uma vez,

ampliados, em comparação aos textos anteriores. Criou-se o princípio da

ubiqüidade da Justiça (art. 141, inciso IV): “A lei não poderá excluir da apreciação

do poder judiciário qualquer lesão de direito individual.” No que tange aos direitos

sociais, foram introduzidos os seguintes: participação obrigatória e direta do

trabalhador nos lucros da empresa, obrigatoriedade da instituição, pelo

empregador, do seguro contra acidentes de trabalho, direito de greve, liberdade

de associação patronal ou sindical.

No que tange aos direitos culturais, foram acrescidas a gratuidade do

ensino oficial primário ao superior para os que provassem falta ou insuficiência de

recursos e a obrigatoriedade das empresas com mais de 100 funcionários de

manterem ensino primário para os servidores e respectivos filhos.

A Constituição de 1946 vigorou, formalmente, até que sobreviesse a

Constituição de 1967. Todavia, no interregno de 1964 até 1967, em que os Atos

Institucionais estavam em vigor, os direitos humanos definitivamente estiveram

desprotegidos.

A Constituição de 1967 representou um retrocesso no que se refere às

liberdades consagradas288. No que diz respeito aos direitos sociais, ela traz as

287 HERKENNHOFF, op.cit., mesma página.288 Suprimiu a liberdade de publicação de livros e periódicos ao afirmar que não seriam tolerados os que fossem considerados (a juízo do governo) como de propaganda de subversão da ordem (A Constituição de 1967 afirmava, em princípio, que a publicação de livros e periódicos independia de licença do poder público. Enquanto a Constituição de 1946 estabelecera que não seria tolerada a propaganda de processos violentos para subverter a ordem política e social - art. 141, 5º -, a Constituição de 1967 passou a proibir a propaganda de subversão da ordem, sem exigir a qualificação de processos violentos” para a incidência da proibição - art. 150, 8º); restringiu o direito de reunião facultando à polícia o poder de designar o local para ela. Usando desse poder como artifício, a polícia poderia facilmente impossibilitar a reunião. (A Constituição de 1946, ao determinar que a polícia poderia designar o local para a

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seguintes inovações contrárias ao trabalhador: a redução para 12 anos da idade

mínima de permissão do trabalho; a supressão da estabilidade, como garantia

constitucional, e o estabelecimento do regime de fundo de garantia, como

alternativa; as restrições ao direito de greve; a supressão da proibição de

diferença de salários, por motivo de idade e nacionalidade, a que se referia a

Constituição anterior. Todavia, traz as seguintes inovações favoráveis ao

trabalhador: inclusão, como garantia constitucional, do direito ao salário-família,

em favor dos dependentes do trabalhador; proibição de diferença de salários

também por motivo de cor, circunstância a que não se referia a Constituição de

1946; participação do trabalhador, eventualmente, na gestão da empresa;

aposentadoria da mulher, aos trinta anos de trabalho, com salário integral.

Seguramente, a Constituição de 1967 não se harmonizou com a doutrina

dos Direitos Humanos, pois restringiu a liberdade de opinião e expressão, deixou

o direito de reunião a descoberto de garantias plenas, estendeu o foro militar aos

civis, nas hipóteses de crimes contra a segurança interna (ou seja, segurança do

próprio regime imperante), fez recuos no campo dos direitos sociais e, por fim,

manteve as punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a

égide dos Atos Institucionais.

Após a Constituição de 1967, seguiu-se o Ato Institucional n.º 5, que

definitivamente não se coaduna com os Direitos Humanos, como definidos pela

Declaração Universal. Com efeito, com a supressão do habeas-corpus, com a

suspensão das garantias da magistratura e com a cassação da liberdade de

imprensa, infelizmente a tortura e os assassinatos políticos foram largamente

praticados no Brasil. À medida que crescia o arbítrio, crescia igualmente a

realização de uma reunião, ressalvava que, assim procedendo, não a poderia frustrar ou impossibilitar. A Constituição de 1967 não reproduziu a ressalva); estabeleceu o foro militar para os civis. (O foro militar, na mesma linha da emenda constitucional ditada pelo Ato institucional n.º 2, estendeu-se aos civis, nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares art. 122. 1º. Pela Constituição de 1946 o civil só estaria sujeito à jurisdição militar no caso de crimes contra a segurança externa do país ou as instituições militares - art. 108, 1º); criou a pena de suspensão dos direitos políticos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, para aquele que abusasse dos direitos políticos ou dos direitos de manifestação do pensamento, exercício de trabalho ou profissão, reunião e associação, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção - art. 151 (Essa competência punitiva do Supremo era desconhecida pelo Direito Constitucional brasileiro); manteve todas as punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a égide dos Atos Institucionais; em contraste com as determinações restritivas mencionadas nas letras anteriores, a Constituição de 1967 determinou que se impunha a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário, preceito que não existia, explicitamente, nas Constituições anteriores. (Esse artigo foi repetido na Constituição de 1988. A eficácia do artigo, na Constituição de 1967, ficou, entretanto, restrita, tendo em vista o clima geral de redução de liberdade e a conseqüente impossibilidade de denúncia dos abusos que ocorressem).

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resistência ao arbítrio. A vitória contra o período de terror iniciou-se com a Anistia

conquistada em 1979 (Lei nº. 6.683, de 28 de agosto de 1979) e terminou com a

convocação da Constituinte em 1987.

A Constituição de 1988 é a que mais acolhe a gramática dos Direitos

Humanos em todas as suas dimensões. À guisa de exemplo, pode-se citar o

próprio preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, que, em si,

é uma declaração de princípios que mostra o profundo respeito da sociedade

brasileira aos direitos humanos consagrados. Os constituintes declaram que se

reuniram, como representantes do povo brasileiro, para instituir um Estado

democrático. Proclamam que esse Estado democrático é destinado a assegurar o

exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar,

o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça. Afirmam a intenção de organizar uma

sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Essa sociedade, fundada na

harmonia social, estará comprometida com a solução pacífica das controvérsias,

seja na ordem interna, seja na internacional. Finalmente, os constituintes

declaram promulgar a Constituição sob a proteção de Deus.

A Constituição brasileira de 1988 é, com justa razão, grandemente elogiada

pelos setores progressistas da sociedade (não se discutem aqui questões de

natureza econômico/financeira que extrapolam o objetivo e a competência do

autor). A Constituição cidadã é motivo de orgulho para a nação brasileira.

Não se pode, contudo, deixar de registrar que os extraordinários

progressos em sede de Direito de Família limitaram-se a repetir o que já estava

nas constituições continentais européias, especialmente as estudadas neste

capítulo.

Sendo assim, as inovações, em grande parte, repetiram dispositivos

existentes na legislação estrangeira desde o primeiro quartel do século XX.

6.2. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO VIGENTE

Entre os objetivos fundamentais preconizados pela Constituição da

República Federativa do Brasil, previstos no seu artigo 3º, está o de “construir

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uma sociedade livre, justa e solidária”. Como se pode notar, o valor solidariedade

deixa o campo da ética para ostentar a qualidade de norma constitucional, ou

melhor, princípio fundamental do direito pátrio.

É irrefutável que o dispositivo acima expressa um comando para toda a

nação brasileira, qual seja, pautar todas as ações atentando para a construção de

uma sociedade livre, justa e solidária. Observa José Afonso da Silva que:

(...) é a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e, entre eles, uns que valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da pessoa humana.289 [grifos nossos]

O ilustre constitucionalista, ao analisar os princípios fundamentais da

Constituição da República Federativa do Brasil (1988), afirma que o princípio da

solidariedade está entre os princípios relativos à organização da sociedade. 290

No dizer de Cleber Demétrio Oliveira da Silva291,

(...) exsurge de forma cristalina, pela simples interpretação literal, que a solidariedade compõe um dos objetivos fundamentais de nossa República. [...] todas as ações a serem desenvolvidas pelo Estado, e pelos particulares numa certa medida, se admitirmos a constitucionalização do direito privado como uma realidade entre nós, deverão atender diretamente ou estar relacionadas, de alguma maneira, aos ditos objetivos fundamentais, destacando-se que a fundamentalidade de algo, no caso da norma, outra coisa não é do que a designação de seu caráter essencial.

O autor gaúcho observa que o dispositivo constitucional possui “elevado

grau de abstração”, ou seja, atinge indistintamente todos que se encontram

submetidos à ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal de 1988. Em

suas palavras, a norma em comento estabelece um ideal de sociedade a ser

alcançado pelo povo brasileiro.

Por sua vez, Jeanne da Silva Machado292 assevera que:

289 AFONSO DA SILVA, José. op.cit., p. 109-110.290 Id. Ibidem, p. 98 e 99.291 OLIVEIRA DA SILVA, Cleber Demetrio. O princípio da solidariedade. [s.n.] [200-], p.27.292 SILVA MACHADO, Jeanne da Silva. A solidariedade na responsabilidade ambiental. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006, p. 113.

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(...) tal enunciação, longe de ser taxativa, representa um balizamento condutor da sociedade e dos seus representantes para o presente e para o futuro, pois construir significa dar estrutura, formar, conceber, enfim, aperfeiçoar um eterno fazer com que a liberdade, a justiça e a solidariedade prevaleçam.

Segundo Miguel Reale, a República Federativa do Brasil, a qual visa

construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), constitui-se em Estado

Democrático de Direito. Para o ilustre jurista, “o adjetivo ‘Democrático’ pode

também indicar o propósito de passar-se de um Estado de Direito, meramente

formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social... esse é a meu ver o espírito

da Constituição de 1988”. 293

Douglas Yamashita294 defende que o princípio de Estado de Direito da

Constituição de 1988 não seja interpretado como Estado de Direito meramente

formal, e sim como princípio de Estado de Direito Material, a explicitar em si o

“princípio do Estado Social, verdadeira norma de Direito Constitucional em prol da

solidariedade.”

Embora alguns doutrinadores defendam que o princípio da solidariedade se

concretiza precipuamente nos direitos sociais constantes dos artigos 6º e 7º,

nestes não se esgota, iluminando a Constituição Federal de 1988 como um todo.

Exemplo disso é a própria função social da propriedade (art. 5º, XXIII, CF/88).

Igualmente, encontramos a influência do princípio da solidariedade no capítulo

que trata da família, criança, adolescente e idoso.

Todavia, não basta dizer que o princípio está positivamente estabelecido

na Constituição Federal. É preciso que, como todas as prescrições jurídicas,

tenha vida como direito material, que tal princípio esteja verdadeiramente

presente em nível infraconstitucional e que seja observado não só na atuação do

poder público como na ação do homem comum.295

293 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito de Ideologias. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 2.294 YAMASHITA, Douglas. Princípio da Solidariedade em Direito Tributário. In GRECO, Marco Aurélio, SEABRA DE GODOI, Marciano . Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 55.295 “A efetividade do princípio da solidariedade social prevista no artigo 3º da Constituição Federal Brasileira, ou seja, a sua aplicação no caso concreto, dependerá não só da sua observância na atuação do poder público como da ação do homem comum no cumprimento e na vigilância refletida na participação efetiva do controle de tal princípio.” (BARROSO, Luiz Roberto. “A proteção do meio ambiente na Constituição Brasileira. in Cadernos de direito constitucional e ciência política. Ano 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 120)

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Como lembra Jeanne da Silva Machado296,

(...) o princípio fundamental da solidariedade impõe uma política de solidariedade social, a ser exercida por meio de políticas públicas, orientadoras, segundo esse princípio básico e estruturante da solidariedade social, não só de toda a atividade legislativa, administrativa e judiciária, como também das atividades sociais privadas que a essas políticas devem se submeter, permitindo a imposição desse princípio constitucional, em qualquer caso em que se verifique a sua negação evidenciadas em atos comissivos ou omissivos.

Igualmente se manifesta Maria Celina Bodin Moraes297 sobre a efetividade

do princípio da solidariedade social: “A solidariedade social, na juridicizada

sociedade contemporânea, já não pode ser considerada como resultante de

ações eventuais, éticas ou caridosas, pois se tornou um princípio geral do

ordenamento jurídico, dotado de força normativa capaz de tutelar o respeito

devido a cada um”.

Oportuno se torna dizer que o princípio da solidariedade, uma vez expresso

na Constituição Federal, é considerado cláusula geral, ou seja, perde a

concepção de simples recurso de hermenêutica. 298

Na lição do professor Rogério Ferraz Donnini, os princípios da

solidariedade e da igualdade decorrem do princípio da dignidade da pessoa

humana, pois são verdadeiros instrumentos de efetiva proteção desse princípio.

Segundo o autor:

A solidariedade, por sua vez, prevista na Constituição Federal no art. 3º, I (art. 2º da Constituição da República italiana), um dos objetivos fundamentais estampados no texto constitucional, está vinculada às cláusulas gerais, uma vez que estas buscam o comportamento solidário entre as partes, isto é, uma atitude compatível com a concepção social.299

296 MACHADO, Jeanne da Silva. A solidariedade social na responsabilidade ambiental. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006, p.116.297 MORAES, Maria Celina Bodin. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 116.298 Vide Capítulo 4.299 DONNINI, Rogério Ferraz, op.cit., p. 117.

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7. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA

O princípio da solidariedade encontra diversas aplicações em nossa ordem

jurídica, sendo percebido com facilidade no direito previdenciário, tributário e

administrativo. Contudo, a hipótese deste estudo é a sua aplicação no Direito de

Família.

Com efeito, a toda evidência, a atual circunstância social brasileira,

especialmente da família, confirma a imperiosa necessidade de se

exponencializar a aplicabilidade do princípio da solidariedade pelo legislador e

operador jurídico brasileiro na criação, interpretação e aplicação das normas

integrantes da ordem jurídica, e para os fins deste trabalho de Direito de Família

Como visto, trata-se de princípio fundamental não só ao crescimento do

país e do ser humano, como também à manutenção da paz social. Diminuir ou

negar-lhe aplicação redundará inexoravelmente no agravamento das injustiças

sociais que de há muito atingem o país, seria travar o aperfeiçoamento do direito

de Família. Inadequado, contudo, seria iniciar o estudo do tema sem antes fazer

uma breve passagem de cunho sociológico sobre a transformação da família,

para o que hoje se conhece como família nuclear.

7.1. FAMÍLIA: CONCEITO E TRANSFORMAÇÕES. REDESCOBERTA DA

SOLIDARIEDADE FAMILIAR

A palavra família possui diversos sentidos, talvez reflexo das

transformações pelas quais esta instituição passou e vem passando ao longo da

história.

Outra não é a observação de Zonabend300:

Família é um termo largamente empregado nos escritos acadêmicos e populares e não é fácil enumerar todos os seus significados. [...] A palavra família vem do latim, um derivado de ‘famulus’ (servente) e,

300 ZONABEND, F. Antropological Perpective on Kinship and the Family. in BURGUIÉRE, A. (Org.). A history of the Family: distant worlds, aciente worlds, v. 1. Oxford: Polity Press, 1996, p. 8.

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portanto não descreve exatamente o que nós entendemos por família. Hoje o termo família cobre os vários grupos de parentes, todas as pessoas vivendo na mesma casa, todos os descendentes de um mesmo ancestral. Contudo, a extensão destes vários tipos de relacionamentos tem variado de lugar para lugar e de tempo para tempo.

Marlene Aparecida Wischral Siminionato e Raquel Gusmão Oliveira301

afirmam que o conceito de família é subjetivo, pois depende de quem a define, do

contexto social, político e familiar em que está inserido.

Gough302, apesar de toda a dificuldade, assim define o termo família:

Um par casado ou outro grupo de parentes adultos que cooperam na vida econômica e na criação dos filhos, a maior parte dos quais, ou todos, residem em comum. Tal definição inclui toda a forma de vida em família baseada no parentesco.

Emile Durkheim303, famoso sociólogo do final do século XIX e início do

século XX, afirma que a família é uma instituição social e não apenas um grupo

natural. Esse sociólogo a entende como resultante dos fatos sociais,

considerados objetivamente (como coisas). Por conseguinte, a família atual é o

resultado de uma progressiva evolução, em que a grande família vem sendo

comprimida, restringindo-se ao que hoje se chama família nuclear.

Lembra Rui Geraldo Camargo Viana304 que o ordenamento jurídico pátrio

consagra a família com pluralidade de tipos (art. 226 CF/88): a nuclear, que

abrange o casal e seus filhos, a monoparental, podendo ser incluída aí também a

de origem celibatária, e a patriarcal, voltada à sucessão hereditária e a interesses

comuns. Afirma o renomado jurista que a família não se fecha nas amarras da lei,

pois engloba, ainda, a natural consangüínea, a resultante do casamento

(afinidade) e os agregados pelo interesse e afeição, vivendo no lar comum.

301 WISCHRAL SIMIONATO, Marlene Aparecida e OLIVEIRA, Raquel Gusmão. Funções e Transformações da família ao longo da história. I Encontro Paranaense de Pisicopedagogia – ABPppr –Nov./2003.302 GOUGH, Kathleen; LÉVI-STRAUSS, Claude; SPIRO, Melford. A família - origem e evolução, Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980. apud NAZARETH, Eliana R. Guarda compartilhada e mediação familiar - a importância da convivência, in Guarda compartilhada, aspectos psicológicos e jurídicos, APASE - Associação de Pais e Mães Separados (org.), Porto Alegre: Equilíbrio, 2005.303 DURKHEIM. Emíle. apud FRIEDRICH ENGELS. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 3 ed. Civilização Brasileira, p. 28 e ss.304 CAMARGO VIANA, Rui Geraldo. A família e a filiação. 1996, p. 43-43. Tese para titular de Direito Civil na Fadusp.

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Diante desse leque de configurações familiares, é muito difícil ao

doutrinador captar-lhe a essência e elaborar um único conceito. Por isso, afirma

Rui Geraldo que

(...) o conceito de família é polissêmico, tornando-se impossível uma definição que abranja o seu conteúdo genético, intuito social, aspecto moral e elastério, daí a necessária equivocidade ou fracionalidade dos conceitos definidores. 305

Por sua vez, Marcel Mauss assevera que “a família é um fenômeno

histórico e deve ser considerada como um fenômeno social total”, por conseguinte

não deve haver uma família em geral, mas tipos diversos desta, dentro da

sociedade global.

Segundo Burgens e Rogers306,

(...) a família também pode ser conceituada como uma unidade de pessoas em interação, um sistema semi-aberto, com uma história natural composta por vários estágios, sendo que cada um deles correspondem tarefas específicas por parte da família.

Por fim, analisando as diversas concepções de família e suas próprias

vivências familiares, Marlene Aparecida Wischral Simionato e Raquel Gusmão

Oliveira307 percebem

(...) a família como um sistema inserido numa diversidade de contextos e constituído por pessoas que compartilham sentimentos e valores formando laços de interesse, solidariedade e reciprocidade, com especificidade e funcionamento próprios.

Bem antes, Friedrich Engels, em sua clássica obra “A origem da família, da

propriedade privada e do Estado”, ao estudar as fases clássicas da evolução da

cultura, Estado Selvagem308, Barbárie309 e Civilização310, afirma que a “evolução

da família consiste numa redução constante do círculo em cujo interior predomina

305 CAMARGO VIANA, Rui Geraldo. A família e a filiação. 1996, p. 194.306 BURGENS; ROGERS apud ENSEN, I. Cuidado familial: uma proposta inicial de sistematização conceitual. in ENSEN, I; MARCON, S.; SANTOS, M.R. dos (Orgs.). O viver em família e a sua interface com a saúde e a doença. Maringá: Eduem, 2002, p. 11-24.307 WISCHRAL SIMIONATO, Marlene Aparecida e OLIVEIRA, Raquel Gusmão. op.cit., p. 57.308 Estado Selvagem: predomina a apropriação dos produtos naturais prontos para a utilização.309 Barbárie: quando aparecem a agricultura e a domesticação dos animais e, conforme avançam as formas do trabalho humano, incrementa-se a produção dos recursos da natureza.310 Civilização: corresponde ao período da indústria, à elaboração cada vez mais complexa dos produtos naturais e ao surgimento das artes.

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a comunidade conjugal entre os sexos, círculo este que originariamente abarcava

a tribo inteira”. 311

Para o autor, no Estado Selvagem – infância do gênero humano –, a

família corresponderia à estruturação por grupos, na qual cada homem pertencia

a todas as mulheres e cada mulher pertencia a todos os homens. À Barbárie,

corresponderia a família sindiásmica, caracterizada pela redução do grupo a sua

unidade última que é o par, ou seja, o casal. Por fim, à Civilização, o modelo

correspondente é o da monogamia, que se baseia no predomínio do homem e

cujo objetivo expresso é o de procriação dos filhos e a preservação da riqueza

através da herança. A família monogâmica não se baseava em razões naturais,

mas econômicas, e representava o triunfo da propriedade privada sobre a

propriedade comum primitiva.

Os sociólogos dividem a família em basicamente dois tipos: a extensa e a

nuclear. A extensa diz respeito ao grupo de pessoas unidas por laços

consangüíneos ou não, que vivem juntas ou próximas. Já a nuclear é entendida

como formada pelo pai, mãe e os filhos do casal. Todavia, essa concepção de

família é algo recente.

Assim, ensina Eliana Nazareth312

As formas familiares são organizações universais, porém a família que conhecemos hoje é aquisição recente do ser humano.

As formulações familiares têm mudado gradativamente através dos tempos, com valores, conceitos, idéias e ideais muito diversos dos que hoje apreciamos e enaltecemos como “naturais” na família nuclear. Na verdade, qualidades como amor, escolha do parceiro, autonomia, independência e outros, vêm sendo construídos pela e na cultura.

Porém, as principais funções da família permanecem. Destas, os antropólogos destacam a sexual, a econômica, a reprodutiva e a educativa que, mesmo podendo ser exercidas por outros grupos sociais, só o podem ser isoladamente, isto é, apenas a organização família as concentra. O homem ainda não encontrou organização substituta que possa atender a suas necessidades e anseios.

311 ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.312 NAZARETH, Eliana R. Guarda compartilhada e mediação familiar - a importância da convivência, in Guarda compartilhada, aspectos psicológicos e jurídicos, APASE - Associação de Pais e Mães Separados (org.), Porto Alegre: Equilíbrio, 2005, p. 90 em diante.

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[...]

Até o século XVIII, o modelo mais comum era a família extensa. A função dessa família tradicional era assegurar a transmissão da vida, dos bens e dos nomes. Os casamentos eram arranjados entre pessoas muito jovens. Não importava a vida afetiva dos futuros esposos, sua satisfação e realização pessoal. Para as camadas mais pobres, o casamento organizava o trabalho agrário. [...] Família, [...] não existia como sentimento ou como valor.

[...]

Somente com o avançar do século XVIII é que vemos o surgimento do sentimento de família com a difusão do amor romântico”.

A revolução industrial, iniciada em 1750, propiciou a ruptura do modelo

tradicional de família, facilitou a mudança da família extensa para a nuclear. O

progresso científico, a criação da máquina à vapor, dando origem à locomotiva,

que facilitou o transporte de pessoas e cargas, as chamadas máquinas de

indústria, facilitando a exploração fabril, levando a mulher ao mercado de trabalho

na indústria, alteraram a vida social, tornando necessária não só a adaptação nos

costumes, como também na família.

Convém notar, outrossim, que, com o avanço industrial, o desenvolvimento

do capitalismo, a família nuclear passa a ser o modelo tido como ideal. Isto

porque a diferenciação econômica, característica das sociedades industriais, é

incompatível com a manutenção de famílias extensas. Ademais, um pequeno

grupo chefiado por um único líder, inibe potenciais conflitos e, sendo a família

nuclear uma pequena unidade geográfica e economicamente móvel, é mais

conveniente à economia industrial.313

Como conseqüência das alterações na vida das pessoas, um outro fato

importante se deu: a libertação da mulher, antes completamente inferiorizada.

Entretanto, a conscientização de que homens e mulheres são iguais, alterando os

papéis sociais dos parceiros na família, foi bastante lenta.

Entre o final do século XIX e o princípio do século XX, a situação da família

pode assim ser resumida: as crianças que não fossem legítimas não eram

completamente integradas na família; o divórcio era impedido ou limitado;

313 TALCOTT PARSONS apud BILTON, T. et al. Introductory Sociology. London: Mac Millan Press. Ltda., 1997.

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coabitação sem casamento era ignorada pelo direito; casamento era uma união

em que o homem era o pai e o chefe e, mesmo que a mulher tivesse bens ou

profissão própria, o marido tinha o poder dominante. Nesse modelo familiar, a

promoção do amor era tarefa das mulheres. A sexualidade ainda estava

associada à reprodução. Os desejos carnais eram sancionados pelo

casamento.

A partir de 1950, com o advento do divórcio, a história da família começa a

mudar rapidamente, especialmente no que diz respeito ao ‘status’ das crianças.

Igualaram-se os filhos oriundos ou não do casamento, embora em muitos casos

não tenham o mesmo direito à herança. Igualmente, a situação dos filhos adotivos

mudou. Tudo isso porque o casamento perdeu a função de legitimar os filhos.

Com a facilitação do divórcio, reconheceu-se a coabitação sem casamento, como

um alternativo estilo de vida.

A estrutura da autoridade entre marido e mulher também mudou,

igualaram-se os direitos. O pátrio poder passou a ser poder parental (de ambos

os pais). Nessa família, os membros se unem por laços emocionais, de costume e

estilo de vida. Há divisão de trabalho entre os cônjuges. Os filhos adquiriram a

condição de “sujeitos”.

Em suma, como observa Tai Castilho314:

A família tradicional, hierarquizada, organizada em torno do poder do patriarca torna-se cada vez mais horizontal, cedendo lugar a uma família onde o poder é distribuído de forma mais igualitária: entre o homem e a mulher, entre pais e filhos. O ingresso das mulheres no mercado de trabalho, a emancipação feminina, as mudanças sócio-econômicas, o divórcio, mudaram o jeito de estar em família. A família se nucleariza e o tempo de convivência entre seus membros diminui.

Antes, o relacionamento intergeracional se dava na rede de convívio: famílias grandes, todos juntos, gerações que coabitavam. Os saberes de avós e pais para filhos e netos eram transmitidos no cotidiano: receitas de bolos, canções infantis, um jeito de estar à mesa, de estender os lençóis, de se comportar com os moços ou com as moças. Ao mesmo tempo, conversas interrompidas deixavam no ar perguntas não formuladas. Os diálogos se davam no contar histórias, nos ensinamentos da religião, das distâncias a serem mantidas entre os sexos, entre primos e irmãos. Os avós, sempre presentes, muitas vezes mediavam os conflitos entre pais e filhos. As filhas ficavam perto das mães, os filhos dos pais. Tudo arrumado, embora a rede de identificação de afetos e

314 CASTILHO. Tai. Painel: Família e Relacionamento de Gerações. Congresso Internacional Co-Educação de Gerações. SESC São Paulo/Outubro 2003.

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preferências estivesse sempre presente. As mães eram auxiliadas na educação dos filhos, mas eram fortes figuras identificatórias.

A estrutura da família tradicional veio se modificando, a pílula anticoncepcional diminuiu o número de filhos e liberou a sexualidade. A mulher estabelece uma relação mais simétrica com seu parceiro, o pátrio poder ficou abalado. O número de separações e divórcios vem aumentando e as famílias vão se organizando mais de acordo com os desejos antes reprimidos. Aumenta o número de mulheres sozinhas com os filhos, e a gravidez não programada dos adolescentes faz avós mulheres jovens que cuidam de filhas e netos. As distâncias intergeracionais diminuem.

Afirma a autora que essa pluralidade na configuração da família incomoda

a sociedade, pois é difícil valores ainda enraizados conviverem com os novos. De

fato, o século XX é marcado por alterações profundas na estrutura da família. A

família pós-moderna (a partir de 1960) é caracterizada pela busca de realização

pessoal e sexual de seus membros.

“Vige atualmente, a fase do capitalismo avançado, caracterizando-se a

família pela busca intensa da satisfação das necessidades dos seus membros

(alimentares, sanitárias, educacionais, de lazer, etc.), tendo nítida função de

consumo”, constata, com clareza, José Sebastião de Oliveira. 315

O homem de hoje, na luta pela conquista de satisfação individual, não dá

mais tanta importância às convenções que sempre lhe tolheram. A família atual é,

portanto, marcada pela dessacralização de antigos valores. 316 As uniões têm

duração cada vez mais relativa, aumenta o número de divórcios. Igualmente, o

número de mães solteiras cresce significativamente. Aumenta também o número

de famílias monoparentais (aqueles em que só o pai ou a mãe vive com os filhos),

de casais sem filhos e de famílias conviventes.

Aumentam, também, as famílias recompostas317 e as híbridas318. Embora o

modelo mais expressivo seja o nuclear, é impossível desprezar outros tipos de

arranjos.

315 OLIVEIRA, José Sebastião, A família e seus fundamentos constitucionais, cit., p. 79.316 QUINTEIRO. M. da C. União conjugal: a grande busca. 1993. Tese de Doutorado em Sociologia –Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo.317Modalidade de configuração familiar decorrente da união de pessoas que têm filhos de uniões anteriores, recompondo, ou melhor, formando um novo núcleo familiar.318 Propõe-se neste trabalho o uso do termo “família híbrida” para designar a modalidade de configuração familiar decorrente da união de pessoas que, além dos filhos das uniões anteriores, têm filhos oriundos da nova união. Conhecida vulgarmente como “os meus, os teus, os nossos”. Assim híbrida seria espécie do gênero recomposta.

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Como visto, a transformação na estrutura familiar é muito grande a partir do

século XVIII, especialmente a partir da revolução industrial, o que vem a repercutir

fortemente nas relações paterno-filiais, que será objeto de melhor estudo ao se

falar da igualdade dos filhos.

A conscientização das profundas transformações que a família vem

sofrendo desperta a seguinte questão: “está-se assistindo ao desaparecimento

total da família, do matrimônio e do parentesco?” - pergunta J. Goody. 319

A resposta é não. Na segunda metade do século XX, há uma significativa

conformação de família nuclear. Historicamente, porém, a diferença nem é tão

grande, considerando o que era a família até o século XVIII.

Mas, para quem está acostumado à família do século XIX e parte do século

XX, a transformação é percebida como grande. Há transformação, não

desaparecimento. Sempre haverá família, enquanto o ser humano procurar amor,

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objetivos comuns, cada qual respeitada e tomada em consideração como

indivíduo autônomo, sujeito próprio de direitos. 321

Como proteger juridicamente os membros dessa nova família?

Afonso e Figueiras observam que é necessário olhar a família no seu

movimento:

Este movimento de organização-reorganização torna visível a conversão de arranjos familiares entre si, bem como reforça a necessidade de se acabar com qualquer estigma sobre as formas familiares diferenciadas. Evitando a naturalização da família, precisamos compreendê-la como um grupo social cujos movimentos de organização-desorganização-reorganização mantém estreita relação de contexto sociocultural. [...] É preciso enxergar na diversidade não apenas os pontos de fragilidade, mas também a riqueza das respostas possíveis encontradas pelos grupos familiares, dentro de sua cultura, para suas necessidades e projetos. 322

Maria do Carmo Brant de Carvalho323 assevera que a família pareceu ser

descartável durante os anos gloriosos, caracterizados pelo pleno emprego e

oferta de políticas sociais universalistas. Era o modelo Welfare State.324

Segundo a autora, a proteção e reprodução social transformaram-se em

missão ‘quase total’ do Estado Social. O cidadão podia trilhar sua vida apenas

dependente do Estado e do trabalho, e não mais das chamadas sociabilidades

comunitárias e familiares. Todavia, nos anos 90, o Estado e o trabalho deixaram

de ser protagonistas do desenvolvimento e da promoção dos indivíduos em

sujeitos de direito, sujeitos com liberdade e autonomia.

Com efeito, na visão da mesma autora, a reforma do Estado em curso, as

compressões políticas e econômicas globais, as novas demandas de uma

sociedade complexa, os déficits públicos crônicos, a revolução tecnológica, a

transformação produtiva, o desemprego, a expansão da pobreza, os aumentos

321 CASABONA, Marcial Barreto. A família na Constituição in Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo - Paulo Hamilton Siqueira Jr. (Coordenador) – v. 8 – São Paulo: Editora RT, 2001.322 AFONSO, M.L. M.; FIGUEIRAS, C.C. (1995). A centralidade da figura materna nas políticas sociais dirigidas a famílias: um argumento pela equidade. Texto apresentado no XIX Encontro Anual da ANPOCS, UFMG.323 BRANT DE CARVALHO, Maria do Carmo. O lugar da família na política social. in BRANT DE CARVALHO. Maria do Carmo (org.). A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 2003, p.16-17.324 Estado do bem-estar social.

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das desigualdades sociais fizeram com que a família, através de sua rede de

solidariedade e sociabilidade, ganhasse novamente importância na política social.

O Welfare State deu lugar ao Welfare Mix, em que o bem-estar social é

missão compartilhada entre Estado, iniciativa privada e sociedade civil,

especialmente da família.

[...] a questão da partilha de responsabilidade entre as solidariedades públicas e privadas está claramente na ordem do dia da agenda política de todos os países de Estado-Providência. A necessidade de encontrar uma solução para a crise financeira do regime de proteção social é tamanha que, em muitos países europeus, se encara a hipótese de remeter para a família, ou para as redes de integração primária, um certo número de serviços e encargos que anteriormente eram em parte cobertos por despesas públicas. [...] a pressão que se faz sentir está simultaneamente ligada a condicionalismos demográficos (envelhecimento da população, como peso que ele tem nas despesas do sistema de assistência na velhice e nas despesas com a saúde) e a condicionalismos econômicos (de que a crise do emprego é a mais clara manifestação.325

A família, apesar de todas as suas transformações, é, no início deste

século, revalorizada na sua função socializadora. Esse reconhecimento está

expresso nas constituições contemporâneas, como se verá adiante. Hoje, a

família é responsável pela socialização de seus membros, particularmente

crianças e adolescentes. Mas não é só. É ela que garante os vínculos relacionais

que previnem os riscos do isolamento social, seja ele decorrente da ausência de

trabalho, seja decorrente da sociedade urbanizada e tecnológica.

Para se analisar o potencial protetor e relacional dado pela família,

especialmente nas situações de pobreza e exclusão, será necessário averiguar

como ela é objeto de intervenção pública.

Ensina Eric Millard que:

Graças ao esforço conjunto da ciência e da administração, a família é constituída pelo Estado como objeto da administração, dando lugar, enquanto objeto construído, a intervenções múltiplas e diversas. [...] A familialização da política pública revela outra face da normalidade na relação entre Estado e família, que não persegue a proteção da normalidade vivida, mas tende a fazer viver a normalidade protegida e visa assim normatizar as famílias. Fazendo aparecer, então, “o direito público da família, conjunto de normas e instituições públicas

325 MARTIN, Claude. Os limites da proteção da família. Revista de Ciências Sociais. Coimbra, n. 42, maio/1995, p. 55.

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constituindo a família como objeto, no seio dos processos de controle social. 326

Conforme se verá adiante, as mudanças sociais demandaram adaptação

normativa por parte do Estado, o que só ratifica a constatação de que “nenhum

tratamento legislativo de família se impõe e perdura se é orientado em oposição

radical aos mores (sic) da época, se o repele, em outras palavras, a consciência

social”. 327

No mesmo sentido é a observação de Sérgio Gischkow Pereira328:

A nova visão sobre as normas jurídicas reguladoras da família é harmônica com o avanço das concepções filosóficas em torno daessência do fenômeno jurídico. Não mais se admite o unilateralismo positivista, sendo que o Direito é visto como uma realidade histórico-cultural incindível do componente axiológico e da dimensão social, dialeticamente conectados na produção do momento normativo, este, por sua vez, incompreensível sem a incessante volta aos condicionamentos valorativos-sociais.

De fato, a ausência de correspondência entre normas, fatos e valores

conduz à nefasta conseqüência: ineficácia social da norma jurídica, o que é

extremamente prejudicial, mais ainda em se tratando do Direito de Família. Por

isso, as alterações legislativas não podem demandar tanto tempo. Os operadores

do Direito e a sociedade civil devem ficar atentos à eventual necessidade de

mudança na legislação.

Antes de abordar a solidariedade no Direito de Família, é necessário

investigar as normas referentes à família nas Constituições de alguns países,

especialmente do Brasil, para, somente então, identificar se a legislação infra-

constitucional atende a exigência decorrente do princípio da solidariedade.

7.2. A FAMÍLIA E O DIREITO CONSTITUCIONAL

A constitucionalização do direito privado329 é, indubitavelmente, caminho

inevitável que leva forçosamente à releitura de todo o ordenamento

infraconstitucional à luz dos preceitos da Constituição.

326 MILLARD, Eric.Famille et Droit Public. LGDJ, N. 508, 1995, p. 363.327 ORLANDO, Gomes. O novo direito de família, Porto Alegre: Fabris, 1984, p. 21.328 PEREIRA, Sérgio Gischkow. Tendências modernas do direito de família. São Paulo, RT 628/19, fev./88.

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Hoje, as Constituições contemporâneas regulam temas antes deixados

para o direito civil, como a função social da propriedade, os limites da atividade

econômica, o Direito de Família, entre outros. Deste modo, “matérias típicas do

direito privado passam a integrar uma nova ordem pública constitucional”. 330

O fenômeno da constitucionalização do direito civil é decorrente da

indispensável interpretação sistemática do direito a ser realizada por todo o

intérprete empenhado em hierarquizar as normas, princípios e valores que

compõem uma ordem axiológica dentro do sistema. 331

É sobremodo importante assinalar a advertência de Adriane Donadel332, no

sentido de que: “A constitucionalização do direito civil é mais do que um critério

hermenêutico da legislação infraconstitucional. Decorre de lenta evolução

histórica e de mudanças de paradigmas, desde o Estado liberal até o Estado

democrático”. Antes de prosseguir nesta tese, um reparo. Fala-se em

constitucionalização do direito privado ou privatização do direito constitucional.

Evidentemente, os constitucionalistas preferem a primeira, com fundamento no

conceito de Lei Maior. Já os civilistas preferem a segunda, argumentando que as

instituições do direito romano são a base de toda a ciência jurídica.

Com respeito aos debates, e malgrado a formação civilista do autor, a

distinção lhe parece cosmética. O importante é que hoje as duas cadeiras se

interpenetram, resultando conseqüências práticas de enorme relevância: isto é o

que vale.

Releva para este trabalho a disciplina da organização da família nas

Constituições modernas.

329 O movimento de constitucionalização do direito privado surgiu após a primeira metade do século XX, quando doutrinas reivindicacionistas, movimentos sociais instigados pelas dificuldades econômicas instigaram o legislador a introduzir, nas grandes Constituições do pós-guerra, princípios e normas que estabelecem deveres sociais no desenvolvimento da atividade econômica privada. Assim, “assumem as Constituições compromissos a serem levados a cabo pelo legislador ordinário, demarcando os limites da autonomia privada, da propriedade e do controle de bens”. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 7.330 Id.Ibidem, mesma página.331 FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 51.332 DONADEL, Adriane. Efeitos da constitucionalização do Direito Civil no Direito de Família. in PORTO, Sergio Gilberto e USTÁRROZ, Daniel (organizadores). Tendências constitucionais no Direito de Família. Estudos em homenagem ao Prof. José Carlos Teixeira Giorgis. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2003, p. 19.

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7.2.1. A Família nas Constituições Estrangeiras

As constituições estrangeiras, assim como a constituição brasileira, têm

normas, em geral programáticas, referentes à família, v.g., Argentina (art. 14),

Chile (arts. 1º e 19), Cuba (arts. 34 a 37 e 39), Espanha (art. 39), Itália (arts. 29 a

31 e 34), Portugal (arts. 36, 67 e 68), Suíça (arts. 34 e 54), Uruguai (arts. 40 a 42,

48 e 49), Venezuela (arts. 73 a 75), Dinamarca (art. 76), Noruega (arts. 12 e 107),

Áustria (arts. 10, 65 e 102), Cabo Verde (arts. 24 e 59), Moçambique (art. 29),

Costa Rica (arts. 51 a 55), Nicarágua (arts. 24, 70 a 79, 82 e 186), antiga

Alemanha oriental (art. 38), Alemanha ocidental (art. 6º), Suíça (arts. 11 a 14, 41 e

116).333

Analisar-se-ão apenas algumas dessas, as mais importantes para este

trabalho.

7.2.1.1. A família na Constituição Italiana (1948)

A Constituição Italiana disciplina a questão familiar no Titolo II: Rapporti

etico-sociali, nos artigos 29 a 31, verbis:

Art. 29

La Repubblica riconosce i diritti della famiglia come società naturale fondata sul matrimonio. Il matrimonio è ordinato sull'eguaglianza morale e giuridica dei coniugi, con i limiti stabiliti dalla legge a garanzia dell'unità familiare.

Art. 30

È dovere e diritto dei genitori mantenere, istruire ed educare i figli, anche se nati fuori del matrimonio.

Nei casi di incapacità dei genitori, la legge provvede a che siano assolti i loro compiti.

La legge assicura ai figli nati fuori del matrimonio ogni tutela giuridica e sociale, compatibile con i diritti dei membri della famiglia legittima.

La legge detta le norme e i limiti per la ricerca della paternità.

Art. 31

333 Em 1987, quando se discutia a nova Constituição do Brasil, promulgada em 1988, o Senado publicou tradução de várias Constituições.

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La Repubblica agevola con misure economiche e altre provvidenze la formazione della famiglia e l'adempimento dei compiti relativi, con particolare riguardo alle famiglie numerose.

Protegge la maternità, l'infanzia e la gioventù, favorendo gli istituti necessari a tale scopo. 334

Da leitura integral do texto da Constituição italiana, elaborada há quase

sessenta anos por homens de diversas posições ideológicas, observa-se o

escopo do Estado italiano de construir uma ordem justa na sociedade. Os artigos

nela expressos baseiam-se nos valores e princípios antropológicos e éticos

radicados na natureza do ser humano. Nela, o legislador convoca a sociedade

italiana a se comprometer com ações, a enfrentar os grandes desafios atuais,

representados pelas guerras e pelo terrorismo, pela fome e pela sede, pela

extrema pobreza de tantos seres humanos, por algumas terríveis epidemias,

assim como pela tutela da vida humana em todas as suas fases, desde a

concepção até à morte natural, e pela promoção da família, fundada no

matrimônio e primeira responsável da educação (art. 29).

A Constituição italiana estabelece e defende regras da convivência

democrática, para o bem de toda a sociedade e em nome de valores que cada

pessoa com sentimentos retos pode partilhar.

No que tange à família, observa-se que o legislador constitucional italiano

preocupou-se em garantir a igualdade moral e jurídica entre os cônjuges

(igualdade do homem e da mulher no casamento). Preocupou-se em estabelecer

o direito/dever dos pais de educar os filhos, proteção esta estendida, igualmente,

aos filhos havidos fora do casamento e/ou não oriundos do casamento. Mas não é

só. Atentou-se o constituinte italiano em proteger as famílias numerosas, que

enfrentam dificuldades financeiras. Por fim, consagrou a proteção da

maternidade, da infância e da juventude.

334 “Art. 29. A República reconhece o direito da família como sociedade natural fundada no matrimônio. O matrimônio é legislado sob a igualdade moral e jurídica dos cônjuges, nos limites da lei para garantia da unidade familiar. - Art. 30. É dever e direito dos pais, instruir e educar os filhos, mesmo os nascidos fora do matrimônio. No caso de incapacidade dos pais, a lei providenciará a quem o encargo será atribuído. - A lei assegurará ao filho nascido fora do casamento toda tutela jurídica e social compatível com o direito da família legítima. - Art. 31. A República facilitará com medidas econômicas ou outra providência a formação da família e a execução das obrigações desta, especialmente nos casos de família numerosa. Protegerá a maternidade, a infância e a adolescência favorecendo aos institutos o necessário para tal objetivo.”(tradução nossa)

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O doutrinador Pietro Perlingieri335, sobre a família na Constituição Italiana,

afirma que:

Esta não é mais uma pessoa jurídica nem poderia ser concebida como um sujeito com direitos autônomos: ela é formação social, lugar-comunidade tendente à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes; de maneira que exprime uma função instrumental para melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes. As ‘razões de família’ não têm autonomia em relação às razões individuais.

Realmente, como já visto anteriormente, o quadro de intensas

modificações ocorridas nas últimas décadas no âmbito do Direito de Família

revela inegável transformação da estrutura familiar, identificada amplamente pela

doutrina e, especialmente, pelos cientistas sociais.336

O mesmo Pietro Perlingieri337, na perspectiva da Constituição solidarista

italiana, asseverou:

La persona è all’apice dela gerachia dei valori constituzionali e ad essa sono funzionalizzate sie le comunità intermedie sie le soggettive patrimoniali: proprietà ed imprese... La libertà nella famiglia trova nell’ unità e nei relativi doveri non soltanto il limite ma la funzione, il fondamento della sua stessa titolarità.338

7.2.1.2. A família na Lei Fundamental Alemã - Bonn am Rhein (1949)

A Constituição da Alemanha, de 1949, se abriu com a proclamação de que

"a dignidade do homem é intangível, sendo obrigação de todo poder público

respeitá-la e protegê-la", reconhecendo os direitos invioláveis e inalienáveis do

ser humano como fundamentos de qualquer comunidade, da paz e da justiça no

mundo, tendo todos direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, à vida,

à integridade física, à liberdade e à igualdade perante a lei (artigos 1º, 2º e 3º).

335 SEREJO, Lourival. Direito Constitucional de Família. Editora Del Rey, 1999, p. 16.336 Sobre o tema, v., José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco Muniz, Direito de Família (Direito Matrimonial), Porto Alegre, Sergio Fabris, 1990, p. 10: “Os sociólogos, historiadores, antropólogos e juristas têm revelado o processo de passagem da família patriarcal à familiar nuclear. Este processo de desintegração da família é o resultado de profundas modificações das estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais (Revolução Industrial, grandes concentrações urbanas, inserção da mulher no processo de produção e emancipação feminina).”337 PERLINGIERI, Pietro, Il diritto civile nella legalità constituzionale, Camerino-Napoli, Esi, 1984, p. 558.338 “A pessoa é o ápice da hierarquia dos valores constitucionais e a esta são funcionalizadas sejam as comunidades intermediárias sejam os subjetivos patrimoniais: propriedade e empreendimentos... A liberdade na família encontra na unidade e nos relativos deveres não apenas os limites mas a função, o fundamento de sua própria titularidade.”

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Por sua vez, a disciplina da organização da família no texto constitucional

alemão está no artigo 6º que é integrante do Título I - Dos direitos fundamentais,

verbis:

Artigo 6

[Casamento e família; filhos naturais]

O casamento e a família receberão proteção especial do Estado.

A manutenção e a educação dos filhos constituirão um direito natural e um dever inalienável dos pais. O Estado velará pelo cumprimento dessas obrigações.

Os filhos só poderão ser separados da família, contra a vontade dos seus responsáveis, em virtude de lei, quando estes falharem no cumprimento do seu dever ou quando aqueles estiverem ameaçados de abandono por outras circunstâncias.

Toda mãe terá direito à proteção e à assistência da comunidade.

A lei assegurará aos filhos não havidos da relação do casamento as mesmas oportunidades dos filhos nascidos do matrimônio no que se refere ao seu desenvolvimento físico e moral e à sua posição social.

Da leitura do texto constitucional, verifica-se a preocupação especial do

constituinte alemão com os filhos, especialmente sua manutenção, educação,

convivência familiar, garantindo, também, o tratamento isonômico dos filhos

havidos ou não da relação do casamento.

7.2.1.3. A família na Constituição Portuguesa (1976)

Como já visto anteriormente, a República de Portugal está empenhada na

construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 1º da Constituição), e foi

com base neste princípio que o constituinte elaborou os dispositivos que tratam

da organização familiar. Confira-se:

Artigo 36.º

(Família, casamento e filiação)

1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade.

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2. A lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração.

3. Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.

4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem, por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à filiação.

5. Os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos.

6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.

7. A adopção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer formas céleres para a respectiva tramitação.

Artigo 67.º

(Família)

1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.

2. Incumbe, designadamente, ao Estado para protecção da família:

a) Promover a independência social e econômica dos agregados familiares;

b) Promover a criação e garantir o acesso a uma rede nacional de creches e de outros equipamentos sociais de apoio à família, bem como uma política de terceira idade;

c) Cooperar com os pais na educação dos filhos;

d) Garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e aos meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes;

e) Regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana;

f) Regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares;

g) Definir, ouvidas as associações representativas das famílias, e executar uma política de família com carácter global e integrado;

h) Promover, através da concertação das várias políticas sectoriais, a conciliação da actividade profissional com a vida familiar.

Artigo 68.º

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(Paternidade e maternidade)

1. Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país.

2. A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes.

3. As mulheres têm direito a especial protecção durante a gravidez e após o parto, tendo as mulheres trabalhadoras ainda direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias.

4. A lei regula a atribuição às mães e aos pais de direitos de dispensa de trabalho por período adequado, de acordo com os interesses da criança e as necessidades do agregado familiar.

Artigo 69.º

(Infância)

1. As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.

2. O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal.

3. É proibido, nos termos da lei, o trabalho de menores em idade escolar.

Artigo 70.º

(Juventude)

1. Os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, nomeadamente:

a) No ensino, na formação profissional e na cultura;

b) No acesso ao primeiro emprego, no trabalho e na segurança social;

c) No acesso à habitação;

d) Na educação física e no desporto;

e) No aproveitamento dos tempos livres.

2. A política de juventude deverá ter como objectivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade.

3. O Estado, em colaboração com as famílias, as escolas, as empresas, as organizações de moradores, as associações e fundações de fins culturais e as colectividades de cultura e recreio, fomenta e apoia as organizações juvenis na prossecução daqueles objectivos, bem como o intercâmbio internacional da juventude.

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Num primeiro momento, resulta do primeiro preceito constitucional (art. 36

Constituição da República Portuguesa) a garantia de que todos têm o direito de

constituir família. A família é, aliás, considerada pelo constituinte português como

elemento fundamental da sociedade e, por isso, goza a proteção da sociedade e

do Estado, nos termos dos artigos 67 e 68 da Constituição portuguesa. Num

segundo momento, verifica-se no texto constitucional que todos têm o direito de

constituir família e, também, de contrair casamento, assegurando o legislador

constituinte que este se dá em condições de igualdade.

Como advertem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito de

constituir família não se reduz nem sequer implica o direito de contrair casamento,

verbis:

Conjugando, naturalmente, o direito de constituir família com o de contrair casamento [...], a Constituição não admite todavia a redução do conceito de família à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família ‘matrimonializada’. Para isso apontam não apenas a clara distinção das duas noções no texto (‘constituir família’ e ‘contrair casamento’) mas também o preceito do nº 4 sobre a igualdade dos filhos, nascidos dentro ou ‘fora do casamento’ (e não: fora da família). O conceito constitucional de família não abrange, portanto, apenas a ‘família jurídica’, havendo assim uma abertura constitucional – se não mesmo uma obrigação – para conferir o devido relevo jurídico às uniões familiares de facto.339

Por conseguinte, pode-se afirmar que o Estado português reconhece e

protege a família oriunda do casamento, a família oriunda da união de fato. Não

se pode esquecer que o artigo 36, nº. 2, da Constituição da República Portuguesa

deixa a tarefa de regulação dos requisitos do casamento para o legislador

ordinário, definindo, ele próprio, de acordo com as representações sociais de

cada momento, o modelo concreto do instituto. 340

Comentando o dispositivo, Jorge Miranda e Rui Medeiros asseveram:

(...) sem dúvida a Constituição, aberta ao futuro, não impõe qualquer espécie de petrificação do conceito legal de casamento, não impedindo o legislador ordinário de adaptar a instituição em causa a um contexto

339 CANOTILHO, J.J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista. Coimbra Editora, 1993, p. 220.340 Essa abertura do texto constitucional tem ocasionado a discussão sobre a inconstitucionalidade do artigo 1577 do Código Civil Português, que permite a celebração do casamento apenas entre pessoas de sexos diferentes, dês que o teor do artigo 13 da CRP estabelece o princípio da igualdade e a revisão constitucional operada pela aprovação da Lei Constitucional nº 1/2004, de 24 de Julho, incluiu, no referido preceito, a orientação sexual como mais uma razão em função da qual não pode haver discriminação.

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político-social mutável” acrescentando que “num Estado Democrático, o sentido da Constituição não se pode fechar à sociedade e não deve ignorar as concepções que, numa sociedade aberta e democrática, vão logrando impor-se ao longo dos tempos. 341

A Constituição portuguesa, na sua gênese, coloca como inseparáveis as

vertentes política, econômica, social e cultural da democracia. Ela reconhece às

mulheres o direito à igualdade no trabalho, na família (art. 36, nº. 3 e nº. 5 e art.

68) e na sociedade. Consagra, ainda, importantes direitos das crianças e jovens,

v.g., plena igualdade de tratamento aos filhos (art. 36, nº. 4), direito à educação

(art. 67, letras b e c), direito ao desenvolvimento integral e proteção quanto a

qualquer forma de abandono, discriminação, opressão e exercício abusivo da

autoridade na família (art. 69, nº. 1), direito dos jovens à formação profissional, à

cultura, à habitação, à educação física e desporto, ao aproveitamento do tempo

livre (art. 70, letras ‘a’ a ‘d’), enfim, direito ao pleno desenvolvimento da

personalidade (art. 70, nº. 2).

Por fim, nos diferentes âmbitos da sua atuação e por imperativo

constitucional, o Estado português, ao reconhecer a insubstituível função da

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(art. 14). Já o artigo 41 diz que o Estado deve perseguir fins sociais, incluindo

proteção e promoção da família, que define como “uma comunidade de adultos e

crianças”. O artigo 116 dispõe que o Estado deve considerar todas as

necessidades da família, e seu parágrafo 3º diz que: “o Estado Federal

estabelecerá um sistema de licença maternidade.” Cumpre observar que, quanto

a essa licença, há grande resistência na Suíça. Todavia, com o ingresso desta na

União Européia, o direito ficou garantido, eis que a Diretiva 92/85 proíbe o

trabalho da mulher durante oito semanas (ou pelo menos seis) após o parto.

Quanto à coabitação sem casamento, inexiste legislação a respeito na

Suíça, mas as Cortes vêm decidindo caso a caso, dando os mesmos direitos

perante a seguridade social.

7.2.2. A família nas demais Constituições Estrangeiras.

Importante ressaltar que, embora não reproduzidas aqui, nas mais diversas

constituições do mundo a família vem disciplinada na lei fundamental, sempre tida

como instituição base da sociedade e gozando de proteção especial do Estado,

v.g., na Constituição da Espanha: “Os poderes públicos asseguram a proteção

social, econômica e jurídica da família” (Art.39); Irlanda: “O Estado reconhece a

família como o grupo natural primário e fundamental da sociedade e como

instituição moral dotada de direitos inalienáveis e imprescritíveis, anteriores e

superiores a todo direito positivo. Por isto o Estado se compromete a proteger a

constituição e a autoridade da família como o fundamento necessário da ordem

social e como indispensável para o bem estar da Nação e do Estado” (Art. 41);

Polônia: “O matrimônio, isto é, a união de um homem e uma mulher, assim como

a família, paternidade e maternidade, devem encontrar proteção e cuidado na

República da Polônia” (Art. 18); Argentina “... a lei estabelecerá... a proteção

integral da família” (Art. 14); Chile: “... A família é o núcleo fundamental da

sociedade... É dever do Estado... dar proteção à população e à família...” (Art.1),

República Popular da China: “O Estado protege o matrimônio, a família, a

maternidade e a infância” (Art. 49); Colômbia: “O Estado reconhece, sem

discriminação nenhuma, a primazia dos direitos inalienáveis da pessoa e ampara

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a família como instituição básica da sociedade” (Art. 5): Coréia do Sul: “O

matrimônio e a vida familiar se estabelecem tendo por base a dignidade individual

e igualdade entre os sexos; o Estado colocará todos os meios a seu alcance para

que se logre este fim” (Art.36); Filipinas: “O Estado reconhece a família filipina

como fundamento da nação. De acordo com isto deve promover-se intensamente

a solidariedade, a sua ativa promoção e o seu total desenvolvimento. O

matrimônio é uma instituição social inviolável, é fundamento da família e deve ser

protegido pelo Estado” (Art. 15); Peru: “A comunidade e o Estado... também

protegem a família e promovem o matrimônio. Reconhecem estes últimos como

institutos naturais e fundamentais da sociedade” (Art. 4); Ruanda: “A família, que

é a base do povo ruandês, será protegida pelo Estado” (Art. 24).

Incontestavelmente, após a Segunda Guerra Mundial, os países

começaram a mudar suas Constituições e suas leis ordinárias referentes à

família. Para Willekens, as mudanças no Direito de Família na Europa ocidental

podem assim ser resumidas: fim da distinção entre filhos legítimos e ilegítimos;

facilitação do divórcio, mas combinando-se com a continuação parcial do

casamento dissolvido pelas conseqüências econômicas (alimentos);

convergência, ainda modesta, de família com e sem casamento (esta em parte já

reconhecida); alteração do casamento como conjunto de regras de administrar

propriedades oriundas de duas famílias, para organizar seguridade social e

solidariedade material dentro do grupo nuclear; mudança dos padrões de

autoridade legal na família, igualando marido e mulher (como companheiros e

pais) e limitando os direitos dos pais; recente emergência de exceções aos

princípios da diferença de sexos entre companheiros e da monogamia. 343

7.3. A FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de

outubro de 1988, é precedida de um preâmbulo que, apesar de não fazer parte do

343 WILLEKENS, Harry, Long Term Developments in Family Law in Western Europe: na Explanation, inThe Changing Family, 1999, org. Eekellar and Nhlappo, Hart Publishing, UK, p. 58, apud GLANZ, Semy. op.cit., p. 187/189.

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texto constitucional propriamente dito, possui relevância jurídica, na medida em

que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos

diversos artigos que lhe seguem.

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

A Constituição Federal destaca como objetivo principal, entre outros, a

construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º).

Nessa linha de raciocínio, o legislador constituinte deu atenção especial

aos direitos e garantias fundamentais e disciplinou, tendo por base esses mesmos

direitos, sobre a família, a criança, o adolescente e o idoso, em seus artigos 226 a

230.

A Lei Maior de 1988 reconhece que a família é a base da sociedade344 e

enumera três tipos de famílias que merecem proteção jurídica e do Estado. São

as famílias advindas do casamento, da união estável e das relações de um dos

pais com seu filho, ou seja, a família monoparental.

Nesse aspecto, segundo Genofre, a Constituição Federal de 1988

representou um marco na evolução do conceito de família, ao corporificar o

conceito de Lêvy-Brut, de que o traço dominante na evolução da família é a sua

tendência a se tornar um grupo cada vez menos organizado e hierarquizado e

que cada vez mais se funda na afeição mútua. 345

Como visto anteriormente, na lição de Pietro Perlingieri, a família, como

formação social, é garantida pela Constituição por ser o local ou instituição onde

se forma a pessoa humana.

344 Segundo Silvana Maria Carbonera, o seio familiar apresenta-se como “o local próprio para o desenvolvimento pessoal em todos os sentidos”. (CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. in FACHIN, Luiz Edson (coordenador). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 277).345 GENOFRE, R.M. Família: uma leitura jurídica. A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/Cortez, 1997.

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A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana; ainda que diversas possam ser as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela pertencem.

O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às relações de sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas, que se traduzem em comunhão espiritual e de vida. 346

Na lição de Luiz Edson Fachin347:

O ente familiar não é mais uma única definição. A família se torna plural. Da superação do antigo modelo da grande família, na qual avultava o caráter patriarcal e hierarquizado da família, uma unidade centrada no casamento, nasce a família constitucional, com a progressiva eliminação da hierarquia, emergindo uma restrita liberdade de escolha; o casamento fica dissociado da legitimidade dos filhos.

Sob as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação, proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.

Segundo Silvia Maria Carbonera, essa nova concepção da família é

resultado do fenômeno da constitucionalização do ordenamento jurídico. “Tais

modificações foram sentidas plenamente na esfera jurídica com a

constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com

maior espaço para o afeto e a realização individual.” 348

A nova conformação sociológica da família estudada neste item será objeto

de novas considerações quando se pleitear um regramento jurídico satisfatório

para ela.

Nesse momento, basta dizer que a família moderna perdeu seu caráter

econômico, religioso, autárquico. A família hoje respeita o importante conceito da

346 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito civil. Tradução de Maria Cristina De Cico. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 243.347 FACHIN, Luiz Edson. Direito Além do Novo Código Civil: Novas Situações Sociais, Filiação e Família. in Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDEFAM, v. 1, n.1, abr./jun., 1999.348 CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. in FACHIN, Luiz Edson (coordenador). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.309.

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repersonalização do direito: é uma família menos hierarquizada, mais

democrática, instrumental, funcional e eudaimonista. 349

Indubitavelmente, o ponto de partida para o estudo do Direito de Família é

a Constituição Federal de 1988 e os princípios nela inseridos. Segundo alguns

juristas, é o Direito de Família o mais humano dos Direitos Humanos. 350

O primeiro princípio a ser lembrado quando se estuda o direito

constitucional de família é o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana.

Tércio Sampaio Ferraz Junior351 sustenta:

A Constituição de 1988 tem uma exponencial preocupação em traçar o espaço da cidadania em termos de supremacia do valor síntese da dignidade humana. A forte insistência, não só na fraternidade, mas na proibição de discriminações de qualquer natureza, mostra que a dignidade humana é conjugação de liberdade com um princípio de

349 Observe-se que a literatura tem empregado a palavra de forma discretamente inadequada, como sinônimo de felicidade. Aristóteles pretendeu significar a palavra eudaimonia como virtude e bem-estar, o que para ele era próximo, mas não exatamente igual, à felicidade.350 “O Direito de Família é o mais humano de todos os ramos do Direito. Em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico de exclusões, como preleciona Rodrigo da Cunha, ‘é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cuja base e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania.’ A evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo, acrescenta o mencionado autor, que ainda enfatiza: ‘Todas essas mudanças trouxeram novos ideais, provocaram um declínio do patriarcalismo e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção da dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as instituições democráticas’.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. VI – Direito de Família. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 9) “Por isso é que os direitos humanos devem ser definidos teoricamente pelo que tendem a ser praticamente: poderes-deveres de todos os sujeitos em relação a todos os sujeitos sobre todos os objetos, mas na proporção razoável para edificar e preservar a humanidade. É a expansão maior a que propendem os direitos humanos: a difusão. Dessa maneira se vem inovando – passando do absolutamente individual para sempre mais relativamente social – a função em que os direitos subjetivos são considerados no direito objetivo. Justamente para não serem negados, mas afirmados concretamente, não só a propriedade, mas todos os objetos do direito – até mesmo a liberdade – vêm sendo cada vez mais postos em função social, moderadora de sua função individual. Essa inovação social dos direitos começou na relação de trabalho. Mas se veio como se vai difundindo por outras e outras relações sociais. Hoje, com uma força redobrada pela atual Constituição e pelo novo Código Civil, alcança as relações de família. Também no Direito de Família se verifica o desdobrar contínuo e conseqüente dos direitos em principais e operacionais em processo de difusão. Cada qual, a seu modo, como princípios ou como meios, os direitos familiais são fundamentais para a eficácia dos direitos humanos. Mas isso leva a perguntar: qual é no Direito de Família o direito humano fundamental de todos os outros direitos familiais? A resposta é: o próprio direito de família. Ao se falar de direitos humanos, logo vem à mente o direito à vida. Mas não se pode pensar na vida humana sem pensar na família.” (RESENDE DE BARROS, Sérgio. Direitos humanos da família: principais e operacionais. Texto básico da palestra proferida em 3 de dezembro de 2003, no II Encontro de Direito de Família do IBDFAM/AM, realizado em Manaus, sob patrocínio da seccional do Amazonas do IBDFAM –Instituto Brasileiro de Direito de Família. Igualmente, da palestra ministrada no Curso de Direito de Família promovido pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, em 25 de novembro de 2003).351 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, Legitimidade na Constituição de 1988. Constituição de 1988: legitimidade, vigência, eficácia e supremacia. São Paulo: Atlas, 1989.

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sociabilidade. Afirma-se a capacidade humana de reger o próprio destino, expressando sua singularidade individual. Ao mesmo tempo nega-se o isolamento, pois afirma-se também o enraizamento social do homem, posto que sua dignidade repousa na pluralidade e no seu agir conjunto (Arendt, 1981:191): o homem como um ser distinto e singular entre iguais, base de cidadania.

Conclui-se que esse princípio previsto no artigo 1º, inciso III, da

Constituição Federal, demonstra, pois, uma nova ótica também do Direito de

Família. Com efeito, as Constituições anteriores, bem como o Código Civil de

1916, só reconheciam como família tão-somente aquela decorrente do

casamento. Já a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002 colocam a família

sob o enfoque da tutela individualizada de seus membros, ou seja, a visão

constitucional antropocêntrica coloca o homem como centro da tutela estatal,

valorizando o indivíduo e não apenas a instituição familiar.

Na lição de Maria Helena Diniz,352 o referido princípio constitui base da

comunidade familiar, garantindo o pleno desenvolvimento e a realização de todos

os seus membros, principalmente da criança e do adolescente.

No ensinamento de Gustavo Tepedino353:

Verifica-se do exame dos arts. 226 a 230 da Constituição Federal, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele (mas não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos.

O segundo princípio a ser analisado no que tange ao Direito Constitucional

de Família é o da igualdade dos cônjuges e companheiros, previsto no parágrafo

5º do artigo 226 da Lei Maior, verbis: “Os direitos e deveres referentes à

sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”.

Primeiramente, antes de comentar o princípio acima, cumpre observar que

a Constituição Federal vigente prevê a igualdade jurídica entre homens e

mulheres em seu artigo 5º, caput, e inciso I, verbis:

352 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. V – Direito de Família, 20 ed., São Paulo: Saraiva, 2005.353 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil: A disciplina civil constitucional das relações familiares. Editora Renovar, 1999, p. 349.

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Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição.

Por sua vez, o § 1º do artigo 5º da CF/88 prescreve: “As normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.354

Todavia, a norma inovadora que mais aqui interessa é o art. 226, § 5º355, já

que as Constituições anteriores já haviam repetido a primeira formulação356 e,

mesmo assim, não haviam alcançado êxito no sentido de promover a referida

igualdade.

354 Também o artigo 226, §5º, tem aplicação imediata. Nesse sentido: “O art. 226, §5º, confirmando a orientação geral do texto constitucional ao declarar os direitos e garantias fundamentais, equipara os participantes da sociedade conjugal quando estabelece que são exercidos igualmente pelo homem e pela

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Conforme se depreende da leitura do mencionado artigo, desaparece o

poder marital, e a autocracia do chefe de família357 é substituída por um sistema

em que as decisões devem ser tomadas de comum acordo entre marido e mulher

ou entre conviventes.

Como observa Adriane Donadel:

(...) o reconhecimento dos mesmos direitos e deveres para homens e mulheres no que se refere à sociedade conjugal (art. 226, §5º, da Constituição Federal) demonstra a modificação da figura do homem como chefe de família e a falência da família hierarquizada de modelo patriarcal. 358

Em verdade, é uníssono entre os doutrinadores, aqui nas palavras de Caio

Mário da Silva359, que: “a condição jurídica da mulher é um dos mais ricos

capítulos da história evolutiva do direito. Foi onde se processou a maior

transformação do Direito de Família”.

José Sebastião de Oliveira360 defende que o artigo 226, §5º, da CF/88, ao

estabelecer que homens e mulheres exercem os mesmos direitos e obrigações na

sociedade conjugal, além de prever um direito, constituiu uma garantia individual

e, como tal, insuscetível de emenda (art. 60, §4º, IV, CF).

Importante consignar que existem certas desigualdades que merecem

tratamento especial do legislador, ou seja, são permitidas, pois, caso contrário,

estaria ele permitindo injustiças e arbitrariedades nas quais existem situações

justificadoras de um tratamento desigual.

Ressalta, a respeito, Carlos David S. Aarão Reis361:

(...) o ponto de referência eleito pela norma para o tratamento desigual deve ser relevante, necessário se faz tenha a discriminação um fundamento. Deve ele ser razoável, justificado objetiva e materialmente,

357 Até então o modelo de família era centralizado na figura do pai/marido que comandava todos os contornos da comunidade familiar. A mulher e os filhos ocupavam posição de inferioridade. Todos os aspectos da vida familiar eram regrados focalizando a proteção patrimonial.358 DONADEL, Adriane. Efeitos da constitucionalização do Direito Civil no Direito de Família. in PORTO, Sergio Gilberto e USTÁRROZ, Daniel (organizadores). Tendências constitucionais no Direito de Família. Estudos em homenagem ao Prof. José Carlos Teixeira Giorgis. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora Ltda., 2003, p.17.359 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 5.360 OLIVEIRA, José Sebastião. op.cit., p. 109.361 REIS, Carlos David S. Aarão. Família e igualdade: a chefia da sociedade conjugal em face da nova Constituição, Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 45 e ss.

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decorrendo da natureza das coisas. Não pode ser arbitrário ou caprichoso. Precisa ter relação com o objeto da regra, servindo às suas finalidades.

Normas jurídicas contendo distinções não estão necessariamente eivadas de inconstitucionalidade, podendo, pois, a legislação estabelecer tratamentos desiguais.

(...) a igualdade entre os cônjuges, como a isonomia em geral, não era, como não é, mecânica, exterior, absoluta, antes proporcional e relativa.

Anota Celso Antonio Bandeira de Mello362 que, para o desate do problema,

é insuficiente a idéia aristotélica de tratamento desigual aos desiguais e igual aos

iguais, pois, entre um e outro extremo, existe um fosso de incertezas “cavado

sobre a intuitiva pergunta que afora o princípio: Quem são os iguais e quem são

os desiguais”.

Ensina o ilustre jurista que:

(...) as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição. 363

No ensinamento de Alexandre de Morais:

(...) o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento igual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito. 364

Afirma o autor que é constitucional, por exemplo, a prerrogativa do foro em

favor da mulher, já que a mulher foi, até muito pouco tempo, muito discriminada.

Aqui, uma reflexão final sobre a igualdade entre homem e mulher.

362 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 11.363 BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. op.cit., p. 17.364 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 17 ed., São Paulo: Atlas, 2005, p. 31

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Para tanto, é necessário relembrar a clássica distinção entre igualdade formal

e igualdade material. A primeira, típica do Estado liberal, está consagrada na fórmula

– todos são iguais perante a lei (art. 5º, caput, CF/88). A igualdade material vem

prevista no inciso I, e a igualdade material entre cônjuges, no art. 226, §5º, CF/88.

A discriminação antes existente não se justifica. Em verdade, nunca se

justificou, só tendo existido por questões histórico-sociológicas que aqui não se

devem enfrentar. Verdade é que homens e mulheres pertencem à mesma espécie,

nada havendo que justifique uma diferenciação. O sexo não tem relevância para este

fim.

Qualquer “discrímen” (não discriminação) submete-se, para que válida, a

juízo de racionalidade, razoabilidade e proporcionalidade. Não é o caso.

Forçoso é reconhecer, todavia, que tantos e tantos anos de discriminação e

tão poucos anos de mudança ainda não permitam a plena igualdade.

Sabe-se, por exemplo, que existem mais homens na direção de empresas,

na vida política, embora as mulheres já sejam discreta maioria nas universidades.

Fato é que as estatísticas comprovam que as mulheres ainda ganham menos do

que os homens: cerca de 70%. Admissíveis são, então, ações afirmativas que

busquem igualar o igual.

Não se pode esquecer neste trabalho de outro princípio importante

consagrado no texto constitucional, qual seja, o princípio da igualdade jurídica de

todos os filhos.

Previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, § 6º, e

repetido no Código Civil de 2002, nos artigos 1.596 a 1.629, e, ainda, decorrente

do princípio da dignidade da pessoa humana, iguala a condição dos filhos havidos

ou não da relação do casamento, ou por adoção, não mais se admitindo qualquer

diferenciação entre os mesmos.

O referido princípio não admite distinção entre os filhos legítimos, naturais

e adotivos, quanto ao nome, poder familiar, alimentos e sucessão; permite o

reconhecimento a qualquer tempo de filhos havidos fora do casamento; proíbe

que conste no assento do nascimento qualquer referência à filiação ilegítima e

veda designações discriminatórias relativas à filiação.

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Posteriormente à vigência da nova Constituição, foi editada a Lei 8.069/90

– Estatuto da Criança e do Adolescente -, que revogou o Código de Menores e

regulou os direitos fundamentais das crianças (faixa etária até 12 anos de idade)

e dos adolescentes (faixa etária após 12 anos até antes dos 18 anos de idade).

A isonomia de tratamento dos filhos teve como conseqüência uma maior

responsabilidade social. Nesse sentido, a observação de José Sebastião de Oliveira:

Cônjuges eram acostumados a ter aventuras extraconjugais e se utilizavam das disposições normativas discriminatórias do Código Civil e legislações esparsas para relegar ao abandono seus filhos (numa amostra de irresponsabilidade sem limites) refletirão melhor antes de tomarem qualquer atitude nesse sentido, porque a Constituição Federal repugna esta espécie de procedimento ao reputar igual natureza aos filhos havidos ou não das relações matrimoniais. 365

Todavia, não se pode esquecer que a nova regra constitucional não cria

afetividade entre pais e filhos. O respeito, carinho, amor dos pais para com os

filhos é algo que não pode ser compulsoriamente imposto. O legislador tão-

somente pode garantir que a criança tenha o seu reconhecimento pelo pai

biológico, impondo a este a responsabilidade pelo seu sustento material.

Luiz Edson Fachin366, que estudou profundamente o assunto, estabeleceu

as seguintes categorias de paternidade: a jurídica (reconhecida pelos Códigos), a

biológica (a real) e a socioafetiva (ligada à demonstração de sinais indicativos de

paternidade, com o emprego de carinho, cuidados, afetividade, etc.).

Cabe aqui a inclusão de uma nova categoria de paternidade, qual seja, a

paternidade sócio-solidária, porque, embora não seja imperativo (ainda que

ideal)367 o chamamento de filho e a afetividade, o sustento material, ou seja, os

cuidados na alimentação, vestuário e educação são impostos ao pai biológico

pela lei, e decorrem, naturalmente, do princípio da solidariedade previsto

constitucionalmente.

365 OLIVEIRA, José Sebastião. op. cit., p. 254.366 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade…, cit., p. 43.367 Observa José Sebastião Oliveira que: “De nada vale um pai reconhecido jurídica e biologicamente como tal, se lhe é estranho demonstração de sentimentos para com seus filhos. Que pai é este? Um pai dividido entre o biológico e o socioafetivo? Um pouco de carinho, demonstração de respeito e afetividade, temos certeza, não ‘custará’ muito para nenhum pai, mas significa muitíssimo para crianças que esperam – no mais das vezes – uma vida inteira – para receberem amostras de um sentimento que nunca vem”.(OLIVEIRA, José Sebastião. op. cit., p. 257). Contudo, embora a mudança constitucional e legislativa no que tange à igualdade dos filhos seja importante, ela não pode garantir aos filhos o afeto dos pais. Assim, eventualmente, a desigualdade de tratamento dos filhos no que tange à afetividade permanecerá.

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Doutrina e em menor escala a jurisprudência têm se preocupado e buscado

emprestar efeitos jurídicos à chamada família socioafetiva, aquela composta de

elementos não ligados por vínculos biológicos ou civis. Até a metade do caminho,

nada a opor. Se um homem se une a uma mulher e recebe o filho desta como

seu, elogiável o sentimento, e é natural que repercuta na esfera jurídica de

ambos.

A expressão torna-se inadequada na etapa seguinte, caso ocorra.

Suponha-se que, anos após, a relação conjugal definhe e com ela a do “padrasto”

com o enteado. Certo que não se pode exigir que um siga sentindo amor, afeto,

pelo outro. Todavia, ressonância jurídica já se estabeleceu e não pode ser

eliminada. Não em razão do amor, mas da solidariedade.

Se “João” tomou com seu filho afetivo “Pedro”, aquele não tem direito de

rejeitá-lo anos depois porque deixou de amar a mãe do segundo, digamos

“Maria”. Pode a lei, a Justiça obrigar “João” a seguir “amando” “Pedro”? Podem

elas exigir efeitos jurídicos formados num afeto que não mais existe, se é que um

dia existiu?

É de se considerar que o entusiasmo por “Maria” tenha levado “João” a

“achar” que amava “Pedro”, ou a se esforçar por fazê-lo. Pode o direito exigir que

sentimentos se mantenham? Pode o direito exigir obrigações com fundamento

nesse sentimento? A resposta segura é não. Mas, por outro lado, “João” tomou

“Pedro” como filho: pode desampará-lo, rejeitá-lo, abandonando-o porque sua

relação com “Maria” se extinguiu? O comportamento de tantos anos é

inconseqüente do ponto de vista jurídico? “Pedro”, que sempre viu “João” como

pai, não tem amparo na Justiça? Novamente aqui não, seguramente.

O problema está no fundamento. Antes havia o espontâneo e inexigível

afeto. Perturbada a relação pelos fatos da vida, sobram obrigações que se

fundam não mais na relação socioafetiva, mas na solidariedade.

“João” não tem direito de “esquecer” que por anos comprometeu-se com

“Pedro” como quem o ama ou como quem o amasse. Quando decidiu assim se

comportar, assumiu um dever, uma obrigação, criou-se um vínculo cujo

embasamento está na solidariedade. “João” pode demandar “Pedro” não pelo

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afeto, que não se exige, mas pela solidariedade que lhe é imposta. A recíproca é

verdadeira. “Pedro” pode demandar “João” pela violação do dever de

solidariedade.

Reflita-se que não há no ordenamento nada que obrigue alguém a amar e

ter afeto por outro, como já dito. A legislação pode e deve exigir que este alguém

atenda deveres de solidariedade, consagrada como princípio magno do direito

positivo brasileiro. A questão é muito mais que etimológica, é uma questão de não

existência ou existência de fundamento jurídico para a exigência.

Nos Tribunais, será imposto a “João” seu dever para com “Pedro”, cujo

fundamento não é o afeto, mas a solidariedade a que “João” se obrigou.

Outro princípio importante a ser lembrado é o princípio da paternidade

responsável e planejamento familiar.

O artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, dispõe que o planejamento

familiar é livre decisão do casal, fundado nos princípios da dignidade da pessoa

humana e da paternidade responsável.

Em um país de enormes dimensões como o nosso, não se poderia admitir

qualquer restrição impositiva à procriação. A Lei nº 9.253/96 regulamentou a

questão, principalmente no tocante à responsabilidade do Poder Público. O

Código Civil de 2002, no artigo 1.565, também traçou diretrizes asseverando que

o planejamento familiar é de livre decisão do casal e que é vedado qualquer tipo

de coerção por parte de instituições públicas e privadas.

Há também outro princípio importante a ser analisado, qual seja, o princípio

do pluralismo familiar ou da liberdade de constituição de uma comunhão de vida

familiar.

Carlos Roberto Gonçalves368 destaca que a Constituição Federal permite

constituição de uma comunhão de vida familiar seja pelo casamento ou pela união

estável, sem qualquer imposição ou restrição de pessoa jurídica de direito público

ou privado.

368 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. VI – Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 9.

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Maria Helena Diniz369 denomina esse princípio de pluralismo familiar, uma

vez que a norma constitucional abrange a família matrimonial e as entidades

familiares (união estável e família monoparental), ressaltando que o novo Código

Civil nada fala sobre a família monoparental, formada por um dos genitores e a

prole, esquecendo-se que 26% de brasileiros, aproximadamente, vivem nessa

modalidade de entidade familiar.

Todavia, o legislador pátrio, ao proteger os indivíduos dentro da família, em

atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, protege as famílias

monoparentais. Ademais, qualquer lacuna na legislação nesse aspecto deve ser

suprida pela jurisprudência, até que alteração legislativa se dê.

Silvio de Salvo Venosa370 ministra que a Constituição Federal de 1988

consagra a proteção à família no artigo 226, compreendendo tanto a família

fundada no casamento, como a união de fato, a família natural e a família adotiva.

De há muito, diz ele, o país sentia necessidade de reconhecimento da célula

familiar, independentemente da existência de matrimônio.

A família à margem do casamento é uma formação social merecedora de tutela constitucional porque apresenta as condições de sentimento da personalidade de seus membros e a execução da tarefa de educação dos filhos. As formas de vida familiar à margem dos quadros legais revelam não ser essencial o nexo família-matrimônio: a família não sefunda necessariamente no casamento, o que significa que casamento e família são para a Constituição realidades distintas. A Constituição apreende a família por seu aspecto social (família sociológica). E do ponto de vista sociológico inexiste um conceito unitário de família. 371

Os operadores do direito e o Judiciário não podem fechar os olhos a uma

realidade fática, qual seja, o relacionamento homossexual, principalmente quando

ele se impõe no cotidiano dos tribunais, através de demandas questionando a

ruptura desse tipo de união afetiva, pleiteando direitos de família.

O homossexualismo/homossexualidade para alguns é uma patologia,

enquanto para outros é uma opção, uma preferência sexual. Este trabalho não

pretende opinar a respeito, o que é assunto para outras áreas. Entretanto, é um

369 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. V – Direito de Família. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 21.370 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família, v. VI – 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005.371 Francisco José Ferreira Muniz. In: Teixeira, 1993: 77.

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fato que existe, se impõe e não pode ser negado, estando a merecer tutela

jurídica, segundo afirmam os defensores deste tipo de união.

Os doutrinadores que defendem o reconhecimento da união afetiva entre

pessoas do mesmo sexo e a necessidade de proteção normativa o fazem com

base nos princípios da liberdade e da igualdade de todos, sem distinção de sexo,

consagrados na Constituição Federal de 1988.

Já os que afastam a proteção jurídica da união homossexual o fazem em

razão da ausência de filiação, da impossibilidade de reprodução. Replicam e o

fazem com base no texto do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal.

Os defensores da homoafetividade dizem que há tempos as matizes da

organização da família não se atrelam exclusivamente à reprodução humana.372

Confira-se a opinião de Paulo Luiz Netto Lobo373 a respeito:

O argumento da impossibilidade de filiação não se sustenta, pelas seguintes razões: a) a família sem filhos é família tutelada constitucionalmente; b) a procriação não é finalidade indeclinável da família constitucionalizada; c) a adoção permitida a qualquer pessoa, independentemente do estado civil (art. 42 do ECA), não impede que a criança se integre à família, ainda que o parentesco civil seja apenas com um dos parceiros.

Portanto, na família monoparental, além do pai ou mãe que reside com os

filhos, dos irmãos que vivem no mesmo teto e outras constituições análogas, é

necessário considerar o casal homossexual.

Em remate, como dito, a união homossexual não deve ser estudada como

um fato médico, antropológico ou psicológico. As particulares visões do jurista,

seus conceitos morais e de outras naturezas sobre o tema são irrelevantes. Esta

não é a tarefa do operador jurídico.

372 Não há mais qualquer conotação visando a procriação como fenômeno obrigatoriamente decorrente do casamento, nem sequer pretensões religiosas, já que o Brasil, como já dissemos, é um Estado laico. O mundo moderno separou quase que completamente a idéia de casamento dos conceitos de sexo e reprodução, graças especialmente aos inevitáveis reflexos trazidos pelos métodos contraceptivos e pela engenharia genética.Além disso, existem casamentos em que a proliferação da espécie é impossível (como para pessoas estéreis), o que não impede a formalização aqui debatida. Portanto, não há como negar que, do ponto de vista jurídico, casamento, em termos gerais, nada mais é do que um contrato em que ambos se comprometema promover a mútua sustentação. 373 FUGIE, Érica Harumi, op. cit., p. 138; LOBO, Paulo Luiz Netto, Entidades familiares constitucionalizadas: para além do ‘numerus clausus’. in Revista Brasileira de Direito de Família – Porto Alegre: Síntese, IBDEFAM, v. 3. n. 12, jan./mar., 2002, p. 54.

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O jurista deve se relacionar com outros ramos do conhecimento: o trabalho,

as informações multidisciplinares são necessárias a uma abordagem para além

do legal. Sua desconsideração leva ao legalismo vazio. Porém, o jurista não deve

se posicionar para mais desta interação. Não tem qualquer qualificação

profissional para dizer se o fenômeno estudado é escolha ou doença, se é

censurável ou elogiável do ponto de vista moral. Certo que tem suas “simpatias”,

mas elas, no caso, são irrisórias. O que importa é verificar-se que o fato social

existe, que não tem regramento jurídico e se há condições/necessidade de regrá-

lo.

A escolha ou impulso homossexual são consentâneos com os princípios da

liberdade, da isonomia, da intimidade e da proibição do preconceito.

O texto do art. 226 da CF/88, que aparenta limitar a união estável à

heterossexualidade, não guarda compatibilidade com os princípios antes

mencionados. O primeiro é norma, os demais são princípios. Certo, portanto, que

aquele deve se conformar a estes. Inevitável, enfim, a conclusão de que o tema

exige processo legislativo, pena de ignorar fato social cuja existência é

inquestionável, pena de violação do princípio tema desta tese, deixando sem

regime jurídico seres humanos nas condições cogitadas, tenha-se ou não apreço

por elas (as condições).

O Direito é norma da conduta social; a família, base da sociedade; a

evolução desta não pode escapar à evolução do Direito, sob pena de ter-se

normas jurídicas legítimas, mas ineficazes. Por conseguinte, há uma mudança

seminal no cabeça do artigo 226 da Constituição de 1988. Todas as constituições

anteriores faziam referência à família “constituída pelo casamento” como objeto

de proteção do Estado. A partir da nova carta, é a família, qualquer família, que

tem a proteção estatal. Como visto, o grosso da doutrina tem entendido que por

família se entende a do casamento, a da união estável e a monoparental [um

genitor com filho(s)]. Por certo assim não é. O século XXI desfila perante o

observador diversas composições familiares. Por exemplo, avós com netos, tios

com sobrinhos, cunhados com cunhados, padrastos com enteados, famílias

recompostas, famílias híbridas, unipessoais e até homossexuais. Outras

formulações poderiam ser imaginadas, e, mais que isto, outras poderão surgir

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num futuro muito próximo. Pois bem, se a Constituição oferece proteção à família,

sem qualquer restrição, não se pode conceber que os acima referidos não se

encontrem nesta proteção. Seria um contra-senso, e até não isonômico.

Concorda-se com Paulo Luiz Neto Lobo374 quando este considera que o rol

de famílias cogitado na Constituição é meramente exemplificativo. Defende-se

que toda e qualquer família, como quer que seja constituída, tem a proteção

constitucional, sendo recomendada a edição de normas ordinárias a respeito, tal

como se deu com a união estável, evitando-se, assim, a discussão a respeito da

auto-aplicabilidade ou não da norma constitucional.

Ultrapassada essa questão, verifica-se que na constituição da família o ser

humano mais vulnerável é a criança e o adolescente, por isso a Constituição

Federal de 1988, em seu artigo 227, prescreveu mais um princípio a ser

observado pelos Poderes Públicos e pela sociedade em geral, qual seja, o

princípio da proteção integral da criança e do adolescente.

Prescreve o aludido dispositivo que:

(...) é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Ao comentar o dispositivo, Roberto Maurício Genofre375 assevera:

(...) à família a responsabilidade pela criação, educação, desenvolvimento e a formação da criança, este núcleo de adultosresponsáveis representa a esperança no exercício de ações preventivas necessárias, e a base do compromisso do país com seu futuro. Pena que políticas sociais públicas, efetivamente em todas as áreas, para suprir as deficiências da família, principalmente na área da saúde, alimentação e educação, por motivo de inversão de prioridades ou por falta de vontade política de nossos governantes, que olvidam a oportuna lembrança de François Remy, presidente do Comitê Francês para a Unicef, ‘deve se assegurar às crianças e aos adolescentes não somente a vida, mas também, a qualidade de vida.

Pelo princípio da proteção integral, toda criança e todo adolescente têm

garantido, além dos seus direitos fundamentais que têm como pessoas, outros, 374 Paulo Luiz Netto, Entidades familiares constitucionalizadas: para além do ‘numerus clausus’. in Revista Brasileira de Direito de Família – Porto Alegre: Síntese, IBDEFAM, v. 3. n. 12, jan./mar., 2002.375 GENOFRE, Roberto Maurício. Família: uma leitura jurídica. cit., p. 103.

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próprios e especiais, e que, em razão de sua condição específica de pessoa em

desenvolvimento, visam à sua proteção especializada, diferenciada e integral. O

princípio da proteção integral engloba o do melhor interesse da criança.

Não basta apenas reconhecer a existência desses princípios. É necessário,

para que se alcance a proteção integral do menor, passar da teoria à prática, do

direito somente pensado para o direito realizado. 376

É imprescindível que não só os poderes públicos, não só a família, mas

todos os indivíduos da sociedade participem desse processo de construção de

uma sociedade solidária, especialmente no que diz respeito à criança e ao

adolescente, pois, nas palavras de Herbert de Souza, o Betinho:

Enquanto houver uma criança ou adolescente sem as condições mínimas básicas de existência, não teremos condições de nos encarar uns aos outros com a tranqüilidade dos que estão em paz com sua consciência. Vivemos hoje a situação do escândalo de negar condições de humanidade àqueles que só podem existir com o nosso amor.377

A criança e o adolescente indiscutivelmente devem ser protegidos. Se

auxiliados e bem conduzidos, têm perspectiva de serem felizes e de assegurar a

si mesmos relações saudáveis, satisfatórias e construtivas no futuro.

376 “Como signatário da ‘Declaração do Milênio’ e do documento ‘Um mundo para as crianças’, o Brasil se comprometeu a melhorar significativamente seus indicadores em relação à infância. Embora a situação tenha avançado na maioria das áreas, os números ainda são preocupantes. A taxa de mortalidade infantil é um dos indicadores que, ao ser considerado de maneira histórica, mostra os importantes avanços ocorridos. No período de 1994 a 2004, houve uma queda de 32,6%, chegando a 26,6 por mil nascidos vivos. No entanto, o Brasil tem a terceira maior taxa da América do Sul. Para 2015 o objetivo estabelecido pelo governo é chegar a um índice de 16 por mil vivos. A proporção de crianças com baixo peso para a idade, principal indicador utilizado no Brasil para analisar a desnutrição infantil, era de 7% em 1989 e chegou a 5,7% em 1996. Nesse item especificamente estamos à frente das médias estimadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a Ásia (32,8%), África (27,9%) e América Latina (8,3%). Mas trata-se ainda de um índice alto, bem acima do desejável (4%). Como signatário de ‘ Um mundo para as crianças’, o país também se comprometeu a reduzir em um mínimo um terço a desnutrição de crianças menores de 5 anos. Além disso,o Brasil tem outros desafios, como a universalização do direito ao registro civil de nascimento e a oferta de pré-natal e parto de qualidade para as gestantes. O registro de nascimento, medida fundamental para a cidadania e os direitos do recém-nascido, está longe da universalização. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cada ano quase 750 mil crianças – mais de um quinto do total de recém-nascidos – completam o primeiro ano de vida sem ser registradas. Sem o registro civil, a criança não existe perante o Estado e não pode usufruir de uma série de serviços e benefícios garantidos por lei. O ‘Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente’, lançado em 2003, estabelece o compromisso de trabalhar pela universalização do registro, por meio da Mobilização Nacional para o Registro Civil de Nascimento, iniciada naquele ano. Garantir, proteger e respeitar os direitos da crianças nos primeiros seis anos não é tarefa apenas dos governos e das organizações sociais. Ao lado dos demais segmentos da sociedade, os empresários são responsáveis por oferecer condições de vida mais digna e saudável para as crianças e suas famílias. Outros segmentos como integrantes de entidades de classe ou de comunidades religiosas também devem contribuir. Além disso, o papel central da família deve ser valorizado”. – Marie-Pierre Poirier – Representante da UNICEF no Brasil – Relatório da Situação da Família Brasileira em 2006. 377 SOUZA, Hebert de. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Comentários ao artigo 7º, Ibase. São Paulo: Malheiros Editores, 1992, p. 41.

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Foi dito acima que o princípio da proteção integral é uma ampliação

daquele do melhor interesse do menor.

Este último teve origem na Inglaterra, em conseqüência de um fenômeno

até curioso.

Desde Roma, passando pela “munt” germânica, pelo direito medieval até a

revolução industrial, o homem tinha predominância sobre a mulher nas relações com

os filhos. A revolução industrial inverteu esta situação porque, ainda que as mulheres

também tivessem se transformado em força de trabalho, neste sentido foi

preponderante o papel do homem. Assim tendo ocorrido, deu-se a situação da

inversão, e assim o predomínio passou a ser das mulheres sobre os homens.

Insurgindo-se contra esta situação de desequilíbrio é que surge a doutrina

do melhor interesse da criança, em que, fundamentalmente, afirmou-se a

prioridade da criança e do adolescente, inclusive no sentido de se regular contato

com ambos os pais. É esta doutrina que foi incorporada como direito humano pela

Convenção Internacional da Criança, da qual o Brasil é signatário.

Mas há um aspecto que vem sendo maltratado: se é verdade, verdade

absoluta, que a criança e o adolescente têm prioridade, nem por isto pode-se

esquecer que os pais também são humanos, também sujeitos de direitos. Por

certo, no conflito, prevalecem os interesses da criança, mas os dos pais não

podem ser inteiramente relegados, como se tem visto em algumas oportunidades.

O autor defende com vigor a guarda compartilhada, assunto que será

abordado mais adiante, quando se enfrentará a legislação ordinária do Direito de

Família à luz do princípio da solidariedade social, tema desta tese.

Pode-se afirmar que, indubitavelmente, o disposto no artigo 227 da

Constituição da República Federativa do Brasil prescreve um direito/dever de

solidariedade imposto a cada um dos membros da família, à sociedade e ao

Estado.

Trabalhar por um presente e futuro melhores para a criança e o

adolescente significa lutar por uma sociedade mais democrática, solidária,

igualitária e não-discriminatória, por um modelo de desenvolvimento social e

ambientalmente sustentável e por um mundo de paz e justiça social.

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Ao lado das crianças e dos adolescentes, os idosos, dentro do contexto da

família, também representam pessoas marginalizadas dentro e fora dela. Aliás,

sequer foram mencionados nas Constituições brasileiras antes do advento da

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.378

É de verificar-se que somente a Lei Maior de 1988 abordou a questão do

idoso379. O artigo 229 de tal Constituição prescreve que “os filhos maiores têm o

dever de ajudar a amparar os pais na velhice, carência e enfermidade”, fórmula

que já constava do Código Civil de 1916. 380

Inova o texto constitucional ao consignar mais um direito/dever de

solidariedade com relação aos idosos ao estabelecer em seu artigo 230: “A

família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas,

assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem

estar e garantindo-lhes o direito à vida”.

Nesse contexto, consigne-se que o legislador constituinte colocou a família

em primeiro lugar na obrigação de amparo ao idoso.

Segundo Rolla:381

(...) a família é uma criação do ser humano que dá uma resposta ao desejo de ter um grupo de pessoas que atuem sobre interesses comuns e com um desenvolvimento afetivo, em que os afetos sejam recíprocos, para obter soluções para os problemas do ciclo vital. A família então, é a chave da sociedade, o elemento básico. Não como lugar, mas sim como relação. Não basta viver juntos mas manter a relação profunda de família de plena reciprocidade entre os sexos e entre as gerações. Os pequenos ou grandes conflitos são importantes para o desenvolvimento do ser humano porque o ensinam a conviver ou a intercambiar com os outros.

378 A Constituição de 1934 proclamou seu amparo somente à maternidade e à infância, negligenciando os demais segmentos. A de 1946 acrescentou proteção à adolescência, lembrando-se da faixa de 14 a 18 anos; e a de 1967 adicionou a estes três o amparo à educação dos excepcionais, esquecendo-se dos idosos.379 “O aumento da longevidade e a redução de mortalidade, nas últimas décadas do século passado, mudaram o perfil demográfico do Brasil. Rapidamente, deixamos de ser um “país de jovens” e o envelhecimento tornou-se questão fundamental para as políticas públicas. Os brasileiros com mais de 60 anos representam 8,6% da população. Esta proporção chegará a 14% em 2025 (32 milhões de idosos). (...) Somente em 1994, o Brasil passou a ter uma Política Nacional do Idoso (Lei 8.842) e apenas cinco anos depois foi editada a Política Nacional de Saúde do Idoso (Portaria MS 1.395/99).” in Estatuto do Idoso –Ministério da Saúde – 1. ed. – Brasília: Ministério da Saúde, 2003, p.5.380 “Art. 399 (...) Parágrafo único. No caso de pais que, na velhice, carência ou enfermidade, ficarem sem condições de prover o próprio sustento, principalmente quando se despojarem de bens em favor da prole, cabe, sem perda de tempo e até em caráter provisional, aos filhos maiores e capazes, o dever de ajudá-los, com a obrigação irrenunciável de assisti-los e alimentá-los até o final de suas vidas.”381 ROLLA (1980) apud COSTA, Patrícia Luíza e SANTOS CHAVES, Paulo Guilherme, Violência afetiva e violência doméstica contra o idoso. Belo Horizonte, 2003. Disponível em: http://www.mj.gov.br /senasp/biblioteca/artigos/violen_idoso.html

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Mas o idoso na sua vida social familiar nem sempre consegue desempenhar um papel de relevância. Fatores diversos contribuem para que tal fato ocorra numa freqüência cada vez maior. Só quando investido na condição de mantenedor do grupo familiar o idoso ainda consegue obter prerrogativas importantes como indivíduo, como cidadão.

A despeito de trazer consigo grande experiência de vida, sensibilidade e

vivência social, elementos importantes para que os idosos se tornassem agentes

participantes na vida da comunidade e, quem sabe, fator de equilíbrio da família

brasileira, infelizmente a velhice ainda é muito discriminada. Não obstante, a legislação

constitucional e infraconstitucional de proteção ao idoso evoluiu consideravelmente382.

382 Na Constituição Federal, encontramos os seguintes dispositivos que amparam a “terceira idade”: art. 1º, incisos II e III (cidadania e dignidade), art. 3º, inciso IV (preconceito etário); art. 5º, inciso XLVIII (individualização da pena), art. 14, inciso II, letra "b"(voto facultativo), art. 153, parág. 2º, inciso I (isenção de IR); art. 201 (aposentadoria); art. 203, inciso V (assistência social e prestação continuada), art.204 (assistência social e sociedade), art. 226, parág. 8º (família e coibição de violência no seio familiar); art.230, caput (amparo dos idosos pelo Estado, sociedade e família, com garantia do direito à vida), parág.2º (gratuidade no transporte coletivo urbano ao maior de 65 anos) e Art.231, parág.1º: (amparo ao idoso preferencialmente em seus lares).Na legislação infraconstitucional, à guisa de exemplo, pode-se mencionar: (alimentos - Lei nº8.648/93); Cód. Penal, art. 61 (agravante), art.65,I (atenuante) art. 77 (sursis), art. 115 (prescrição); Lei de Execução Penal, art. 32(trabalho adequado), art.117 (prisão domiciliar); Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990 (Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências e em seu art. 76 coloca como agravante quando o crime é feito em detrimento de maior de sessenta anos);Lei nº8.213, de 24 de julho de 1991 [dispõe sobre Planos de Benefícios da previdência Social e dá outras providências: art.1º ao art.8º (Finalidade e Princípios Básicos da Previdência Social); art. 9º ( Regimentos de Previdência Social); art.10 ao art.17 ( Beneficiários); art.18 ao art. 23 ( Espécies de Prestações); art.24 ao art.27 (Período de Carência); art.28 ao art.40 (Cálculo do Valor dos Benefícios); art.41 (Reajustamento do Valor dos Benefícios); art.42 ao art.47 (Aposentadoria por Invalidez); art.48 ao art.51 (Aposentadoria por Idade); art.52 ao art.56 (Aposentadoria por Tempo de Serviço); art.57 ao art.58 (Aposentadoria Especial); art.59 ao art.64 ( Auxílio Doença); art.65 ao art.70 (Salário Família); art.81 a art.85 (Pecúlios);art.88 ao art.93 (Serviços); art.94 ao art.99 (Contagem Recíproca de Tempo); art.100 ao art.124 (Disposições diversas relativas às Prestações); art. 125 ao art. 156 (Disposições Finais e Transitórias)]; Lei nº 8.648 de 20 de abril de 1993 (acrescenta o parágrafo único ao art. 399 do Código Civil de 1916 - amparo dos pais pelos filhos, na velhice); Lei Complementar nº75, de 20 de maio de 1993, no art.6º, VII,"c", atribui ao Ministério Público a defesa do idoso; Lei nº8.742, de 07 de dezembro de 1993 [Dispõe sobre a organização da Assistência Social - LOAS: art. 1º ao art. 3º (Definições e objetivos); art. 4º ao art. 5º (Princípios e Diretrizes); art. 6º ao art.19 (Organização e Gestão); art. 20 ao art. 26 (Benefícios, Serviços, programas e Projetos de Assistência Social); art. 27 ao art. 30 (Financiamento da Assistência Social); art. 31 ao art. 42 (Disposições Finais e Transitórias). Obs.: Alterado em alguns dos seus dispositivos pelas leis 9.711 de 20/11/98 e 9.720 de 30/11/98; Lei nº8.842, de 04 de janeiro de 1994 (Política Nacional do Idoso - regulamentada pelo Decreto federal nº1.948, de 03 de julho de 1996): Art.1º ao art.2º (Finalidade); art3º ( Princípios); art.4º (Diretrizes); art.5º ao art.9º ( Organização e Gestão); art.10 (Ações Governamentais); art.19 ao art.22 ( Disposições gerais); Lei nº 8.926, de 09 de agosto de 1994 (Torna obrigatória a inclusão, nas bulas de medicamentos, de advertências e recomendações sobre seu uso para pessoas de mais de 65 anos); Decreto nº1.948, de 03 de julho de 1996 (Regulamenta a Lei nº8.842 de 04/01/94, que dispõe sobre a política nacional do idoso e dá outras providências); Decreto Federal nº2.170, de 04 de março de 1997, que alterou o Decreto federal nº89.250, de 27/12/83, estabeleceu campo próprio no formulário da carteira de identidade para a expressão "idoso ou maior de sessenta e cinco anos"); Lei nº 9.711, de 20 de novembro de 1998: (altera o art.40 da lei nº8.742 de 07/12/93, assegurando ao maior de 70 anos e ao inválido o direito de requerer a renda mensal vitalícia junto ao INSS até 31 de dezembro de 1995, desde que atenda aos requisitos estabelecidos nos incisos I, II ou III do parág.1º do art.139 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991); Lei nº9.720, de 30 de novembro de 1998 (Dá nova redação a dispositivos da Lei nº8.742, de 07 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências); Lei nº 10.048, de 08 de novembro de 2000 (Dá prioridade de atendimento aos portadores de deficiência aos idosos com mais de 65 anos, às gestantes, às lactantes e às pessoas acompanhadas de crianças de colo); Lei nº 10.173, de 09 de janeiro de 2001 (Altera a lei nº5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código Processo Civil, para dar prioridade de tramitação aos

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Após sete anos tramitando no Congresso, o Estatuto do Idoso (Lei n.

10.741/2003) foi aprovado e sancionado pelo presidente da República, ampliando

os direitos dos cidadãos com idade acima de 60 anos. Mais abrangente que a

Política Nacional do Idoso (lei de 1994), que dava garantias à terceira idade, o

estatuto institui penas severas para quem desrespeitar ou abandonar cidadãos da

terceira idade, sendo um instrumento mais adequado ao princípio da

solidariedade social, consagrado na Constituição Federal de 1988.

Entre os principais direitos previstos no Estatuto do Idoso destacam-se:

Na saúde: idoso tem atendimento preferencial no Sistema Único de

Saúde – SUS - (art. 15, caput); a distribuição de remédios aos idosos,

principalmente os de uso continuado (hipertensão, diabetes etc.), deve

ser gratuita, assim como a de próteses e órteses (art. 15. §2º); os

planos de saúde não podem reajustar as mensalidades de acordo com

o critério da idade (art. 15, §3º); o idoso internado ou em observação

em qualquer unidade de saúde tem direito a acompanhante, pelo tempo

determinado pelo profissional de saúde que o atende (art. 16).

No que tange aos transportes coletivos: os maiores de 65 anos têm

direito ao transporte coletivo público gratuito. Antes do estatuto, apenas

algumas cidades garantiam esse benefício aos idosos. A carteira de

identidade é o comprovante exigido (art. 39 e §1º); nos veículos de

transporte coletivo é obrigatória a reserva de 10% dos assentos para os

idosos, com aviso legível (art. 39, §2º); nos transportes coletivos

interestaduais, o estatuto garante a reserva de duas vagas gratuitas em

cada veículo para idosos com renda igual ou inferior a dois salários

mínimos (art. 40, inc. I). Se o número de idosos exceder o previsto, eles

devem ter 50% de desconto no valor da passagem, considerando-se

sua renda (art. 40, inciso II).

procedimentos judiciais em que figure como parte pessoa com idade igual ou superior a 65 anos), por fim, a Lei n.º 10.741, de 01 de outubro de 2003 – Estatuto do Idoso.

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Violência e Abandono: nenhum idoso poderá ser objeto de negligência,

discriminação, violência, crueldade ou opressão; quem discriminar o

idoso, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias,

aos meios de transporte ou a qualquer outro meio de exercer sua

cidadania pode ser condenado, e a pena varia de seis meses a um ano

de reclusão, além de multa (art. 96); famílias que abandonem o idoso

em hospitais e casas de saúde, sem dar respaldo para suas

necessidades básicas, podem ser condenadas a penas de seis meses

a três anos de detenção e multa (art. 98); para os casos de idosos

submetidos a condições desumanas, privados da alimentação e de

cuidados indispensáveis, a pena para os responsáveis é de dois meses

a um ano de prisão, além de multa (art. 99). Se houver a morte do

idoso, a punição será de 4 a 12 anos de reclusão (artigo 96, §2º);

qualquer pessoa que se aproprie ou desvie bens, cartão magnético (de

conta bancária ou de crédito), pensão ou qualquer rendimento do idoso

é passível de condenação, com pena que varia de um a quatro anos de

prisão, além de multa (artigo 102).

Entidades de Atendimento ao Idoso: o dirigente de instituição de

atendimento ao idoso responde civil e criminalmente pelos atos

praticados contra o idoso; a fiscalização dessas instituições fica a cargo

do Conselho Municipal do Idoso de cada cidade, da Vigilância Sanitária

e do Ministério Público; a punição em caso de mau atendimento aos

idosos vai de advertência e multa até a interdição da unidade e a

proibição do atendimento aos idosos. (artigos 52 e seguintes)

Lazer, Cultura e Esporte: todo idoso tem direito a 50% de desconto em

atividades de cultura, esporte e lazer (art. 23).

Trabalho: é proibida a discriminação por idade e a fixação de limite

máximo de idade na contratação de empregados, sendo passível de

punição quem o fizer (art. 27); o primeiro critério de desempate em

concurso público é o da idade, com preferência para os concorrentes

com idade mais avançada (art. 27, parágrafo único).

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Habitação: é obrigatória a reserva de 3% das unidades residenciais

para os idosos nos programas habitacionais públicos ou subsidiados

por recursos públicos (art. 38, inc. I).

Todavia, é necessário não só reconhecer esses direitos. É indispensável

torná-los realidade. É preciso começar a criar essa cultura de valorização do

idoso no Brasil. A verdade é que deve haver uma valorização das leis brasileiras

como um todo, de seu regular cumprimento, fiscalização e respeito.

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8. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE NA FAMÍLIA CONSAGRADA NO

NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

As profundas transformações ocorridas nas relações de família no século

passado receberam a devida atenção no plano constitucional, tendo em vista a

almejada e merecida proteção aos membros de uma família, como se constata,

v.g., na consagração dos princípios da absoluta igualdade entre pessoas

conjugalizadas, da total isonomia entre filhos, independentemente de sua origem,

da proteção à união estável e à família monoparental, da proteção integral da

criança e do adolescente (arts. 226 e 227 CF/88).

A Constituição da República deu as linhas mestras de alguns dos principais

institutos de Direito Privado, principalmente no Direito de Família, mas não chega

ao ponto de dispensar uma regulamentação mais ampla desses e de outros

institutos do Direito Civil por um novo Código, que urgia ser promulgado.

Nesse aspecto, Maria Celina Bodin de Moraes383 observa que houve “o

abandono da perspectiva individualista, nos termos em que era garantida pelo

Código Civil e sua substituição pelo princípio da solidariedade social, previsto

constitucionalmente, acarretou profunda transformação no âmago da própria

lógica do direito civil”.

O Código Civil vigente disciplina o Direito de Família no Livro IV, que

possui 273 artigos384 (artigos 1.511 a 1.783), e se divide em 4 títulos. O primeiro -

título I – Do Direito Pessoal tem dois subtítulos: DO CASAMENTO e DAS RELAÇÕES

DE PARENTESCO. O título II cuida do Direito Patrimonial e possui quatro subtítulos:

DO REGIME DE BENS ENTRE OS CÔNJUGES, DO USUFRUTO e da ADMINISTRAÇÃO DOS

BENS DE FILHOS MENORES, DOS ALIMENTOS E DO BEM DE FAMÍLIA. Por sua vez, o

título III trata, em cinco artigos, da União Estável (arts. 1723 a 1727) e, por fim, o

título IV regula a Tutela e a Curatela.

383 MORAES, Maria Celina Bodin de, O princípio da solidariedade. in MESSIAS, Manoel; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios da Constituição de 1999. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2001, p. 185.384 O Código Civil de 1916 tinha 305 artigos e disciplinava o Direito de Família no Livro I da Parte Especial, que tinha seis títulos referentes ao casamento, efeitos jurídicos do casamento, regime de bens entre os cônjuges, dissolução da sociedade conjugal e proteção da pessoa dos filhos, relações de parentesco, tutela, curatela e ausência.

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Sérgio Resende de Barros390 menciona uma série de direitos humanos

familiais, alguns previstos na Constituição Federal, outros na legislação

infraconstitucional pátria. Mas todos postos em função da solidariedade humana,

que, segundo o autor, começa na solidariedade interna à família.

Entre os direitos destaca: os direitos que garantem a infra-estrutura física

da família, como o direito à moradia e ao bem de família; os direitos que lhe

promovem a estrutura social, como o direito ao parentesco, o direito de contrair

casamento ou de permanecer em união estável, o direito à igualdade entre os

cônjuges, o direito ao planejamento familiar, o direito ao poder familiar, o direito à

obediência filial, o direito à paternidade, à maternidade e à adoção; os direitos

cujos objetos se voltam para a estrutura econômica da família, como o

condomínio patrimonial, a herança, a sucessão, os alimentos, as pensões; os

direitos pertinentes à superestrutura cultural, como o direito à vivência doméstica

e à convivência familiar, o direito ao apoio da família; por fim, os direitos que

zelam pela infra-estrutura psíquica da família: o direito a conhecer o pai ou a mãe,

o direito ao respeito entre os familiares e outros mais.

Todavia, mesmo tendo sido reconhecidos todos esses direitos, o legislador

infraconstitucional nem sempre foi feliz ao regulamentar o que lhe competia no

Código Civil vigente. Por isso, é necessário investigar a fidelidade do legislador

ordinário aos princípios constitucionais, especialmente do princípio da

solidariedade, para os fins desta tese, quando da elaboração legislativa ordinária.

8.1. O DIREITO/DEVER DE SOLIDARIEDADE E A RELAÇÃO DE

CONJUGALIDADE

8.1.1. Casamento

O artigo 1.512 do Código Civil vigente institui um dever de solidariedade do

Estado em relação àquele que se casa, estendendo-o, no seu parágrafo único, à

gratuidade constitucionalmente assegurada (art. 226, §1º, última parte, CF/88),

390 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: principiais e operacionais. Disponível em: http://www.srbarros.com.br/artigos.php?TextID=86 – Acesso em 16/01/2007.

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também à habilitação, ao registro e à primeira certidão, desde que se trate de

pessoas cuja pobreza for declarada.

Relativamente à conjugalidade, pode-se dizer que o legislador

infraconstitucional deu ênfase ao princípio da solidariedade, seja quando declarou

que o casamento é a comunhão plena de vida391, seja quando regulou a eficácia

do casamento, estabelecendo deveres materiais e imateriais para os cônjuges.

Nesse sentido, Euclides Benedito de Oliveira e Giselda Maria Fernandes Novaes

Hironaka afirmam que a ausência de comunhão pela de vida enseja o

desfazimento da relação conjugal392.

Reparo, porém, pode vir a merecer o parágrafo 2º do artigo 1.572393, que

cuida do que a doutrina chama de separação remédio, ou seja, hipótese de

separação judicial quando um dos cônjuges seja acometido de grave doença

mental, de cura improvável, manifestada após o casamento, e que torne

impossível a continuação da vida em comum.

O citado parágrafo que prevê a chamada separação como remédio. Diante

de uma peculiar condição, em que esta separação venha a representar um dano

ao cônjuge doente de tal monta a tornar menos relevante o direito ofertado ao

outro, pode o juiz recusar a cogitada separação, aplicando o princípio da

solidariedade, pois esse comando legal fere, flagrantemente, o princípio em tela.

É, portanto, inconstitucional a norma em questão.

8.1.2. União estável

Relativamente à união estável, como mais que sabido, o regramento

patrimonial é diverso do casamento, inclusive no que tange ao direito das

391 A comunhão plena de vida se concretiza na afinidade sexual; no respeito pelas manifestações eróticas de cada um dos parceiros; no compartilhamento da vida intelectual; no lazer conjunto; no respeito ao lazer individual de cada qual, na partilha do cotidiano material e imaterial; na participação na relação do cônjuge com sua família estendida. Em resumo, a parceria, o recíproco desenvolvimento, o cuidado físico, afetivo e psicológico de um para com o outro.392 OLIVEIRA, Euclides Benedito de, HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Do casamento in Direito de família e o novo Código Civil coord. Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira – 3 ed. rev. atual. e ampl., Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 12.393 “Art. 1572 (...) § 2º O cônjuge pode ainda pedir a separação judicial quando o outro estiver acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de 2 (dois) anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável.”

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sucessões. Embora polêmica a questão, a verdade é que o legislador sonegou ao

companheiro a aplicação de igualdade ao cônjuge, o que em muitas

circunstâncias resultará em negação ao princípio da isonomia e da

solidariedade.394

8.2. AS RELAÇÕES DE PARENTESCO E O PRINCÍPIO DA

SOLIDARIEDADE

Nas relações de parentesco, hoje limitado até 4º grau, encontra-se o

princípio da solidariedade no dever de mútua ajuda e na relação de pessoas

indicadas como preferenciais para exercerem a tutela e a curatela. Ainda, sob

determinadas circunstâncias, os parentes podem exercitar o papel de guardião de

uma criança ou adolescente, bem como no direito de visitas.

É de todo conveniente que se adote uma outra conceituação de

responsabilidade familiar: a responsabilidade da família sócio-solidária.

Como se sabe, a doutrina vem mencionando a existência de uma família

sócio afetiva, buscando daí tirar efeitos jurídicos. Pode existir uma família

socioafetiva dentro daquilo que se acabou por chamar não direito, a saber, das

relações familiares que se passam dentro de casa e que são ignoradas e mesmo

inatingíveis, em parte, pelo direito.

Quando um cônjuge “adota” o filho de outro, reconhecendo-o como seu, na

assim chamada adoção à brasileira395, está-se diante da família socioafetiva.

Porém, desfeito o vínculo de conjugalidade, é comum que o pai queira negar essa

394 Cf. BARROS, Sergio Resende de, op.cit., p 6; PEREIRA, Rodrigo da Cunha, Da união estável, op.cit., pp. 257-276; VELOSO, Do direito sucessório dos companheiros, op. cit., pp. 277-294NERY, Rosa Maria Barreto Boriello de Andrade, op.cit., pp. 275-291.395

Para a adoção, pessoas se dispõem a enfrentar todos os rigores da lei, submetendo-se a critérios subjetivos e objetivos para satisfazer todos os requisitos para ter um ser humano sob seus cuidados em termos de família substituta. Juntam documentos, comparecem a entrevistas técnicas e audiências, fazem uma verdadeira peregrinação pelos fóruns. Todavia, há alguns indivíduos que, por motivos de índole subjetiva, realizam o que a doutrina convencionou como ‘adoção à brasileira’, forma de receber um jovemno seio familiar sem a observância das formalidades legais.” LAMENZA, Francismar. Um raio-x da adoção à brasileira. Disponível em: www.mp.rn.gov.br/caops/caopij/doutrina/doutrina_adocao_brasileira.pdf Acesso em 15/03/07.

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paternidade. Aí, certo dos certos, não se tem afeto. A defesa do vínculo se faz

com fundamento no dever de solidariedade, ou seja, se a um tempo esse pai

assumiu esse dever, não pode mais tarde se “retratar” com base no fato biológico.

Assumiu dever de solidariedade e dele não deve fugir. Este o embasamento

jurídico correto e não o afeto, o amor, que não têm relevância factual, nem

amparo jurídico ou legal.

8.3. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E A PROTEÇÃO DOS FILHOS

NA DISSOLUÇÃO DA RELAÇÃO DE CONJUGALIDADE.

No capítulo da proteção da pessoa dos filhos, o legislador deixou de

contemplar a possibilidade de instituir guarda compartilhada. Esta modalidade de

guarda implica em dois vetores: uma maior e efetiva participação do não guardião

na vida da criança e um sistema mais freqüente e de melhor qualidade nos

contatos entre pai e filho.396

A vantagem da guarda compartilhada é que se quebra o modelo da guarda

convencional, no que diz respeito à educação, à saúde, às atividades culturais,

religiosas, lazer, enfim, a respeito da rotina da criança, pois no modelo da guarda

compartilhada ambos os pais decidem estes assuntos.397

396 “Apesar de uma disputa ser simbolizada pela palavra ‘versus’ que significa duas partes adversas em pólos opostos de uma linha, existe de fato uma terceira parte da qual seus interesses e direitos faz da linha um triângulo. Aquela pessoa, a criança que não é uma parte oficial para legislação, mas que o bem-estar está nos olhos da controvérsia, tem o direito de compartilhar os cuidados com seus pais quando ambos estão em condições de oferecê-lo. Inerente a política pública expressa, está o reconhecimento do direito da criança de acesso e oportunidade igual com ambos os pais, o direito de ser guiada e cuidada por ambos os pais, o direito de ter suas grandes decisões feitas pela sabedoria, julgamento e experiência de ambos os pais. A criança não perde esse direito quando os pais se divorciam”. Parecer proferido pela juíza Dorothy T. Beasley – Disponível em: <http://www.apasepr.com.br/pareceres.asp> Acesso em: 07.08.2003.397 “Sob a óptica dos filhos, a vantagem está expressa no direito de convivência acima referido, direito este que, segundo alguns estudos, ‘parece ser um aspecto determinante de ajustamento das crianças ao divórcio’ de seus pais. (...) Ou seja, a guarda compartilhada reduziria as dificuldades que as crianças normalmente enfrentam em se adequarem às novas rotinas e aos novos relacionamentos após a separação dos seus genitores. Sob a óptica dos genitores, as vantagens são de três tipos, segundo estudo canadense publicado por BASTIEN e PAGANI (1996). São elas: I – redução do stress e do acúmulo de papéis do genitor que é guardião único; II – favorecer a que ambos os genitores compartilhem a educação dos filhos, e III – ambos os genitores ficam mais satisfeitos, especialmente se decidirem entre si por tal tipo de guarda e não for uma decisão judicial.” [BRUNO, Denise Duarte. Guarda compartilhada. in Revista Brasileira de Família – Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 3, n. 12, janeiro e março de 2002, p. 31].

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A escolha da escola, do médico, das atividades extracurriculares e do lazer

é feita pelos genitores consensualmente. O não-guardião deixa de ser um

espectador dos acontecimentos para ser participante e responsável. Com efeito, é

dele também o dever/direito de cuidar dos interesses e necessidades da criança.

Além disso, o não guardião se insere no cotidiano da criança, levando ou

pegando o filho em suas diversas atividades, participando e opinando nas

relações com a escola, igreja, escolha de médicos etc.

É certo que o filho mora efetivamente com um dos pais. Mas está com o

outro genitor mais vezes e em melhores condições. Quebra-se a visita quinzenal.

Estabelece-se uma rotina em que a criança está com o pai, na casa deste, por

exemplo, pelo menos duas vezes por semana, parte delas com pernoite.

A casa do pai ou da mãe, se possível, está disposta de modo que o filho

possa senti-la como também sua. Nela tem seu quarto, sua cama, seus

brinquedos, objetos de seu interesse e necessidade. A criança não vai visitar o

pai em um local que basicamente lhe é estranho, ou pouco familiar, nem por

pouco tempo, vai conviver na plenitude da relação paterno-filial com aquele

genitor. Mantendo suas coisas, tendo seu quarto, podendo receber seus amigos,

desenvolver suas atividades rotineiras, a casa do pai não guardião é também

vista e sentida como sua casa.

É ponto importante: acréscimo da quantidade dos contatos, na casa do pai

ou mãe não guardião, disponibilizada ao filho como também sua. Ademais, com o

filho próximo fisicamente, porque os contatos são muito freqüentes e com

qualidade, mantendo sua participação e responsabilidade em todas as atividades

do filho, o pai ou mãe não deixam de sê-los, não se tornam pai ou mãe formal, ou

pai ou mãe visita. Os vínculos de afeto se preservam.

Pode-se concluir afirmando que na guarda compartilhada há a tendência

de diminuição de novos conflitos judiciais, porque o pai ou mãe que não se sente

excluído não tem necessidade do revide, nem se sente incomodado com o

cumprimento de suas obrigações, principalmente financeiras. Ele mantém-se

interessado e dedicado ao filho como se casado estivesse.

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Errou o legislador. Omitiu-se sobre o assunto, desrespeitando os princípios

consagrados na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do

Adolescente, na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Não foi solidário. Uma vez que o ordenamento jurídico não prevê a instituição da

guarda compartilhada, considerando o julgador que, em determinado caso, é este

o melhor regime, deve estabelecê-lo pouco relevando a inexistência de texto

expresso a respeito. Aplica-se o princípio da solidariedade, cria-se a regra e

institui-se o regime cogitado.

Assim também se dá no caso do direito de visitas. A lei civil o institui com

relação ao genitor não guardião (art. 1.589 CC). Todavia, havendo relevante

inconveniente, independentemente da suspensão ou cassação do poder familiar,

pode o juiz impedir a visitação como decorrência do dever de solidariedade a que

têm direito a criança e o adolescente.

Considere-se, ainda, no caso do art. 1.611 do Código Civil, que o juiz deve

deixar de aplicá-lo porque contraria o princípio objeto desta tese, consagrado no

artigo 3º, inciso I, da Lei Maior, bem como por violar o artigo 227 da Constituição

Federal.

Oportuno se torna dizer que a Convenção Internacional dos Direitos da

Criança, de 1989, estabelece que todas as ações relativas às crianças devem

considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança, em face dos

interesses dos pais. Como defendido ao longo deste trabalho, os interesses

sociais, no caso, solidariedade familiar e proteção integral, vêm em primeiro lugar

se em conflito com os direitos individuais, no caso, liberdade de cônjuge ou

companheiro de decidir se quer conviver ou não com o filho do outro havido fora

da relação.

O texto de lei infraconstitucional contraria tais preceitos e, diante da

hipótese, o magistrado deve recusar sua aplicação.

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8.4. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E O BEM DE FAMÍLIA

Com relação ao bem de família, é preciso lembrar que o artigo 6º da

Constituição Federal elevou a moradia a status de direito constitucional. Isso

ocorreu a partir da Emenda Constitucional nº 26/2002 e provocou profunda

repercussão no ordenamento jurídico e, principalmente, nos tribunais, que

passaram a rejeitar diversos tipos de penhora em bens de família. Aliás, ampliou

o conceito de família, com fulcro na proteção da moradia enquanto direito social

constitucionalmente protegido, como adiante se verá.

Nas palavras do Desembargador Lecir Manoel da Luz,

(...) sem a moradia, o indivíduo perde a identidade indispensável ao desenvolvimento de suas atividades, enquanto ente social e produtivo, se empobrece e se marginaliza, empobrecendo, invariavelmente a Nação.398

Em consonância com o acatado, convém transcrever trecho do voto

proferido pela então juíza Rosa Maria de Andrade Nery, que se reporta à lição do

ilustre Professor Rui Geraldo Camargo Viana, mencionado em outra obra deste

autor:

Da mesma forma, como lembra Rui Geraldo de Camargo Viana, quando o Constituinte fez acrescentar o termo moradia dentro dos direitos sociais, não quis lhe dar a natureza meramente programática, como a primeira vista possa ter parecido. Se foi com esse pensamento que se promulgou a Emenda, se foi com propósitos meramente retóricos, de proposta de intenções programáticas e ideológicas, o Congresso enredou-se num cipoal intransponível, direito humano rotulado de direito social, como se quis qualificar o instituto, inserindo-se no art. 6º da Constituição, como se de menor extensão fosse do que os elencados no artigo 5º, sua relevância, entretanto, o qualifica como imprescritível, irrenunciável, inviolável, universal e, sobretudo, dotado de efetividade (...) Incontroverso que as normas definidoras dos direitos e garantias individuais têm aplicação imediata, a teor da regra do §1º do art. 5º da Magna Carta, não se pode olvidar que ‘direito à moradia’, por antes já inscrito em Tratados internacionais subscritos pelo Brasil e, agora, alçado à dignidade de direito social constitucional, beneficia-se dessa regra de aplicação imediata. (Revista de Direito Privado, 2/10-11)399

398 Agravo de Instrumento 20000020030532 – AGI DF – Relator Lecir Manoel da Luz – 4ª Turma Cível –TJ/DF – 13.11.2000.399 Apelação com Revisão n. 593812-0/1 – Foro Regional do Tatuapé – 2º Tribunal de Alçada Civil – SP.

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A impenhorabilidade do bem de família retira sua força do dispositivo

constitucional acima, bem como do artigo 226 da Constituição Federal, sendo que

o bem de família convencional está disciplinado nos artigos 1.711 a 1.722 do

Código Civil vigente e o bem de família legal, previsto na Lei nº 8.009/90.

Como já visto anteriormente, atualmente a família não é mais a que resulta

do matrimônio. Consagrou-se o pluralismo familiar, ou seja, a proteção de todas

as formas familiares. Mas não é só. A proteção estatal não é mais dada apenas à

instituição da família, mas à pessoa de cada um dos que a integram (art. 226, §8º

CF/88).

Conseqüentemente, a leitura conjugada e sistêmica dos dispositivos

constitucionais (art. 1º, inciso III, art. 3º inciso I, art. 6º, art. 226), bem como da Lei

nº 8.009/90, e, ainda, dos artigos do Código Civil que disciplinam a questão,

permite a conclusão de que o bem de família passe a ser o bem de qualquer

morador, solitário ou vivendo em família, porque o que se protege é o direito à

moradia, à cidadania e à dignidade humana.

É preciso insistir, ainda, no fato de que não só a família resultante do

casamento, da união estável ou família monoparental (pai ou mãe com filhos)

merece a proteção da lei com relação ao bem de família, mas também outros

grupos familiares, v.g., irmãos com irmãos, netos com avós, tios com sobrinhos.

Os julgados abaixo colacionados demonstram que o Poder Judiciário

acatou a mudança constitucional e legislativa fortalecendo e estendendo, por

conseguinte, o instituto do bem de família, visando a efetiva proteção da moradia.

A interpretação teleológica do art. 1º (da 8.009/90) revela que a norma não se limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: direito à moradia. Se assim, ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão.

Incluída a moradia como direito social, tem-se como impenhorável o imóvel residencial da pessoa solteira, tal como assegurado na Lei 8.009/90.400

A Lei nº 8009/90, o art. 1º precisa ser interpretado consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantindo-lhes o lugar para

400 RESP 403314 – STJ – Rel. Min. Barros Monteiro – 4ª Turma.

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morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda família substitutiva. Nessa linha, conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno desta proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias e, como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. Data vênia, a Lei 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário, à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, data vênia põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal.”401

Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento onde moram goza da proteção da impenhorabilidade, prevista na Lei 8009/90, não podendo ser penhorado na execução de dívida assumida por um deles”. 402

Devedora viúva que reside sozinha em seu único imóvel deve estar amparada pelo contido no art. 1º da Lei 8009/90. A interpretação da referida lei deve buscar a vontade do legislador que objetivou amparar essa pessoa realmente necessitada do imóvel para morar, assegurando a impenhorabilidade do bem de família.403

Em resumo, convivem hoje, harmoniosamente, o direito constitucional à

moradia, o bem de família legal (Lei 8.009/90) e o previsto no novo Código Civil.

8.5. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E O DEVER DE PRESTAR

ALIMENTOS

O instituto dos alimentos é rico em inovações no novo diploma. Entre elas,

merece atenção o disposto no artigo 1.704, que mitiga a questão da culpa, não

deixando o cônjuge culpado pela separação inteiramente desprovido de

alimentos. O legislador estabeleceu regra em seu benefício, que estende a

assistência material e, portanto, o dever de solidariedade para depois da

dissolução da sociedade conjugal, independentemente da culpa em que incidiu.

Não se pode esquecer que o §1º do art. 1.694 do atual Código Civil impõe

a obrigação a quem pode pagar e assegura o direito de receber àquele que 401 STJ – RESP 182.223–SP – Corte Especial – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – DJ 7.4.2003.402 STJ – RESP 159.851-SP – 4ª Turma – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – j. 19.3.1998.403 TAPR – Apelação 142.805-7 – 8ª Câmara – Rel. Desembargador Manasses de Albuquerque – j. 25.10.1999.

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necessita dos alimentos. A lei não estabelece nenhuma restrição, assevera Maria

Berenice Dias404.

Todavia, lembra a autora que na vigência do Código Civil de 1916 o

mesmo não ocorria, pois, em se tratando de vínculo obrigacional decorrente do

casamento, ainda que houvesse necessidade de um e a possibilidade do outro, a

responsabilidade pela separação obstava a percepção de alimentos.

Assim, mesmo flagrante a necessidade, quer por exclusão do mercado de trabalho, quer por doença que impedisse o desempenho de atividade laborativa, o culpado não tinha direito a receber alimentos. Era condenado a morrer de fome405.

Neste aspecto, o Código Civil vigente foi mais solidário, nas palavras da

ilustre desembargadora, “mais generoso” quando possibilitou, no §2º do artigo

1.694, ao ex-cônjuge culpado pela separação receber os alimentos

indispensáveis à subsistência, desde que esse não tenha aptidão para o trabalho

e não existam outros parentes em condições de prestá-los.

Por último, é preciso lembrar que a obrigação alimentar em discussão

deixa de existir quando o casamento é dissolvido pelo divórcio, permanecendo

somente a obrigação alimentar com relação aos filhos. 406

8.6. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E OUTROS INSTITUTOS

Por fim, os institutos da tutela e da curatela compõem o chamado direito

protetivo. Vê-se nessa proteção o estabelecimento pelo legislador de dever de

solidariedade entre tutores e pupilos, curadores e curatelados. No limite, é o

404 DIAS, Maria Berenice. Da separação e do divórcio. in DIAS, Maria Berenice, PEREIRA, Rodrigo da Cunha [coord.], Direito de família e o novo Código Civil, 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 91.405 DIAS, Maria Berenice. Da separação e do divórcio. in DIAS, Maria Berenice, PEREIRA, Rodrigo da Cunha [coord.], Direito de família e o novo Código Civil, 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 91.406 “O princípio da solidariedade familiar, que norteia a obrigação de prestar alimentos entre os cônjuges, rigorosamente cai por terra quando não existe mais a família formada pelo casal, quando o casamento é dissolvido pelo divórcio”. MENEZES DA COSTA, Maria Aracy. Pensão alimentícia entre os cônjuges e o conceito de necessidade. in PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família – Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002, p.202.

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próprio Estado legislador cumprindo sua função de fixar regras de solidariedade

nos casos pertinentes.

Em direção análoga, os institutos do poder familiar e da adoção. É notória a

existência de solidariedade nos mesmos, criados e regulamentados exatamente

para tal fim. O poder familiar é entendido como um dever dos pais, instituto em

favor dos filhos, e a adoção traz para o seio de uma família alguém que não a

tem, ou faz parte de uma família desestruturada.

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9. CONCLUSÃO

Princípios fundamentais de direito representam as decisões básicas do

constituinte, através das quais os principais valores éticos e políticos de uma

comunidade alcançam expressão jurídica. Esses princípios, que começam sendo

base das normas jurídicas, uma vez positivamente incorporados no sistema

jurídico constitucional ou infraconstitucional, caracterizam-se como cláusulas

gerais.

Cláusulas gerais são normas orientadoras, verdadeiras diretrizes, de

caráter genérico e abstrato, e, por isso mesmo, devem, necessariamente, ser

preenchidas e aplicadas pelo juiz, pois o vinculam ao mesmo tempo em que lhe

dão liberdade para decidir.

O princípio da solidariedade previsto no artigo 3º, inciso I, da Constituição

Federal, estabelece uma relação de responsabilidade entre pessoas (físicas ou

jurídicas) unidas por interesses comuns, de maneira que cada elemento do grupo

tenha obrigação de apoiar o(s) outro(s), moral ou materialmente.

O Direito de Família é o locus preferencial para aplicação do princípio da

solidariedade, porque é nele que se encontram as mais significativas e relevantes

relações éticas e morais.

Se a eticidade inspira ou deve inspirar todas as relações jurídicas, com

maior razão as de Direito de Família, porque nele as relações humanas têm maior

significância que nas demais. Esta não é uma opinião, mas decorre do sistema

jurídico.

O direito civil anterior ao século XX concentrava-se na propriedade, nas

obrigações materiais. No século XX, deu-se um entrelaçamento entre as normas

civilistas e as constitucionais, retomando-se a importância maior da pessoa

humana. Foi nesse momento que se repersonalizou a estrutura do Direito como

um todo. Portanto, é no Direito de Família, efetivamente, que tem maior

relevância a aplicação do princípio da solidariedade.

E, uma vez que ele tem característica de cláusula geral, o juiz tem o

poder/dever de criar, modificar e extinguir relações jurídicas entre as pessoas da

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família, havendo ou não texto legal sobre a questão a ser decidida. Na hipótese

de contrariedade ao princípio estudado, o julgador está obrigado a ignorar a

norma e aplicar o princípio.

Com fundamento nesse pensamento, pode-se aplicar a tese a diversas

situações já cogitadas no corpo deste trabalho.

O direito de visitas pode ser suspenso/suprimido, sem maiores

formalidades (suspensão/extinção do poder familiar), quando caracterizada a sua

inconveniência para o menor, ao abrigo do princípio da solidariedade.

A guarda compartilhada, mesmo frente à ausência de lei, pode ser

instituída pelo juiz em prol da criança/adolescente, com esse mesmo fundamento.

O fundamento jurídico que decorre do desfazimento da família socioafetiva

é o parentesco/vínculo que decorre do dever de solidariedade, não o socioafetivo,

como tem sido acenado, e que não tem forma nem figura jurídica. É o princípio

constitucional da solidariedade que deve ser aplicado a situações desse jaez.

Deve o juiz recusar a aplicação do artigo 1.611 do Código Civil, que impõe

a separação do genitor de seu filho, violando claramente o princípio da

solidariedade, do que decorre sua inconstitucionalidade.

O juiz pode recusar a aplicação do § 2º do artigo 1.571 do Código Civil

(separação como remédio) quando, sopesados os valores, o do cônjuge doente

tiver maior relevância.

Pode o juiz, aplicando o princípio da solidariedade, estender o formato de

famílias monoparentais para além do conceito filhos com pai/mãe, reconhecendo

assim como integrantes do modelo outras possibilidades, tais como irmãos com

irmãs, avós com netos, padrastos com enteados, etc.

São estas algumas possibilidades de aplicação do princípio da

solidariedade no Direito de Família. Outras existem, outras as realidades sempre

cambiáveis apresentarão, ensejando a aplicação do princípio a todas as relações

familiares, em quaisquer condições e situações, com o que se assegurará a

índole solidarista do direito brasileiro e, no topo, a aplicação do princípio

fundamental da dignidade humana.

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