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UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE UNIVILLE CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA O PRINCÍPIO DA EQUIDADE E O PSICOPATA NO DIREITO PENAL RENAN MOTTA Orientadora: Profª. Msc. Hercília Aparecida Reberti. Joinville (SC), junho de 2015.

O princípio da equidade e o psicopata no direito penal

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Trabalho de conclusão de curso

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UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

O PRINCÍPIO DA EQUIDADE E O PSICOPATA NO DIREITO PENAL

RENAN MOTTA

Orientadora: Profª. Msc. Hercília Aparecida Reberti.

Joinville (SC), junho de 2015.

UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE JOINVILLE – UNIVILLE CURSO DE DIREITO – NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA

O PRINCÍPIO DA EQUIDADE E O PSICOPATA NO DIREITO PENAL

RENAN MOTTA

Monografia submetida à

Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE,

como requisito parcial à obtenção

do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Profª. Msc. Hercília Aparecida Reberti.

Joinville (SC), junho de 2015.

Meus agradecimentos:

A minha orientadora, Professora e Mestre,

Hercília Aparecida Reberti, pelo suporte e

incentivo -que me impulsionaram na

elaboração do presente trabalho -, e

principalmente pela confiança que me

depositou, juntamente com a tolerância e

paciência que despendeu durante o processo

de elaboração.

A Professora e Doutora Jaidette Farias Klug,

pelo auxílio na elaboração da presente.

Aos Professores desta instituição, por terem

me ajudado a desvendar os caminhos do

Direito.

Aos meus amigos e colegas de faculdade, em

especial a Trinca D’ouro.

A cantina, por me servir com o melhor pão de

queijo e suco de abacaxi que eu poderia

conseguir às 9hAM.

Aos amigos que fiz na Procuradoria Geral do

Município, por fazerem minhas tardes serem

demasiadamente agradáveis.

Dedico esta obra:

Aos meus pais Gilmar Motta e Jânia Mara

Motta, que sempre me apoiarem

incondicionalmente, por sempre me bancarem,

por não me deixarem desistir e por me fazerem

encontrar forças para continuar em frente;

Em especial aos meus irmãos Tiago e

Thainara Motta, por me incentivarem durante

os cinco anos, e por sempre manterem o

sorriso que me motivava no rosto.

“Há sempre alguma loucura no amor. Mas

há sempre um pouco de razão na loucura”.

(Friedrich Nietzsche)

PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão de Curso de Direito da Universidade da

Região de Joinville – UNIVILLE, elaborada pelo graduando RENAN MOTTA, sob o

título O PRINCÍPIO DA EQUIDADE E O DIREITO PENAL, foi submetida em

_____de __________de 2011 à Banca Examinadora, obtendo a média final _____

(______________________________________), tendo sido considerada aprovada.

Joinville, _____ de _________________ de 2015.

_________________ __________________ ___________________

Prof. Prof. Prof.

DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo

aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade da

Região de Joinville – UNIVILLE, a Coordenação do Curso de Direito, a Banca

Examinadora, o Orientador e o Co-Orientador (se houver) de toda e qualquer

responsabilidade acerca do mesmo.

Joinville (SC), _____ de _________________ de 2015.

RENAN MOTTA

ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil

MP Ministério Público

CP Código Penal

CPP Código de Processo Penal

Art. Artigo

STJ Superior Tribunal de Justiça

AUTORIZAÇÃO DE PUBLICAÇÃO PARA FINS CIENTÍFICOS

Autorizo a publicação do presente trabalho, para fins unicamente científicos,

na rede mundial de computadores, sítio da Universidade da Região de Joinville –

UNIVILLE, sem quaisquer ônus a esta.

Declaro, ainda, ter sido informado(a) de que a presente autorização não me

foi colocada de forma obrigatória e que a aprovação do presente conteúdo perante a

Banca Examinadora não depende daquela.

Joinville (SC), _____ de _____________ de 2015.

RENAN MOTTA

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1

Capítulo 1

O PRINCÍPIO DA EQUIDADE E O DIREITO PENAL

1.1. SURGIMENTO DO ESTADO .............................................................................. 3

1.1.1. Estado de natureza.......................................................................................... 3

1.1.2. Surgimento da figura do estado como regulador da sociedade ................. 5

1.2 O PRINCÍPIO DA EQUIDADE ............................................................................... 6

1.2 A EQUIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ............................ 9

1.3 O DIREITO PENAL E TEORIA DO CRIME .......................................................... 10

1.3.1 Criminologia.................................................................................................... 17

1.3.2 Medicina Legal ................................................................................................ 20

1.3.3 Psiquiatria Forense ........................................................................................ 21

1.3.4 Psicologia Jurídica ......................................................................................... 22

Capítulo 2

O PSICOPATA E O DIREITO PENAL

2.1. COMUNICAÇÃO ENTRE PSIQUIATRIA FORENSE E DIREITO PENAL .......... 23

2.3. DA PSICOPATIA ................................................................................................ 29

2.3.1. Psicopatia ou transtorno de personalidade antissocial ............................ 29

2.3.2. Conceito de psicopatia ................................................................................. 32

Capítulo 3

RESPONSABILIDADE PENAL DO PSICOPATA

3.1. CULPABILIDADE .............................................................................................. 39

3.1.1 Evolução histórica do conceito de culpabilidade........................................ 41

3.1.2. Imputabilidade ............................................................................................... 46

3.1.3. Inimputabilidade ............................................................................................ 48

3.1.4. Semi-imputabilidade ..................................................................................... 51

3.2 CLASSIFICAÇÃO PENAL DO PSICOPATA ...................................................... 52

3.3. FINALIDADE DA PENA ..................................................................................... 55

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 58

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 60

REFERÊNCIAS LEGISLATIVAS .............................................................................. 62

RESUMO

A presente pesquisa está direcionada a uma análise acerca do transtorno da

psicopatia à luz do direito penal e o princípio da equidade. O objetivo é demonstrar o

tratamento penal que o psicopata recebe, de que forma o princípio da equidade é

utilizado e de que forma poderia ser utilizado para que alcance a pretendida Justiça.

Para isso será analisada a condição clínica do psicopata, demonstrando suas

características; também serão analisadas as possíveis penas que se aplicam ao

psicopata, no afã de verificar se o tratamento que lhe é destinado é de fato

adequado e por obvio, se tal penalidade é suficiente para que se alcance a tão

almejada Justiça.

INTRODUÇÃO

O estudo da mente criminosa é matéria que demanda esforços e motiva

estudiosos e pensadores quase há tanto tempo quanto a própria lei. Em se tratando

de violações penais, no decorrer da história, diversos estudiosos vêm tentando

entender a mente criminosa no afã de identificar o motivo que levou o agente a

praticar a conduta delitiva para, assim, evitar que novas condutas sejam praticadas.

A criminologia cumpre importante papel nessa função.

O Direito é matéria que vive em constante transformação. Vem evoluindo de

acordo com a sociedade que o cria, estipulando as condutas que são reprováveis,

ou não mais. Com a descoberta relativamente recente da psicopatia, não poderia o

Direito deixar de apreciá-la.

O objeto do presente Trabalho de Conclusão de Curso é a investigação

acerca do tratamento que recebem os agentes, que possuem a patologia

denominada, vulgarmente, psicopatia, pelo Direito Penal Brasileiro. Para tanto, serão

trabalhados o princípio da equidade – princípio que concebe a adaptação da norma

ao caso concreto; a criminologia – ciência responsável pelo tracejar do perfil do

agente infrator; e o próprio direito penal – ramo do direito público responsável pela

proteção dos bens jurídicos mais valorizados pela sociedade.

O seu objetivo institucional é a produção de Monografia para a obtenção de

título de Bacharel em Direito pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE.

O objetivo geral do trabalho é mostrar aos leitores que o tratamento destinado

ao psicopata, pelo Direito Penal Brasileiro, é obsoleto e ineficaz. A forma como são

tratados os possuidores do transtorno da psicopatia, que carecem de tratamento

diferenciado, pelo atual Direito Penal, só empobrece o próprio Direito,

consequentemente afetando a sociedade em geral.

Desta forma, os objetivos específicos desta pesquisa estão diretamente

relacionados ao objetivo geral, pois, se busca-se explanar sobre tal patologia,

desmitificando alguns conceitos impregnados na sociedade, através do uso da

criminologia, psicologia e psiquiatria criminal, para, assim, tentar encontrar o devido

tratamento penal adequado a tais agentes.

2

Adotou-se o método, operacionalizado com as técnicas da pesquisa

bibliográfica.

O primeiro capítulo tratará de abordar o princípio da equidade, conceituando-o

e contextualizando-o. Será trabalhado o princípio da equidade desde o seu

surgimento, demonstrando sua ligação com a Justiça. Também será trabalhado o

Direito Penal Brasileiro, onde será abordado seu conceito, seus objetivos - enquanto

ramo do direito público –, e algumas escolas penais também serão mencionadas, no

anseio de proporcionar ao leitor melhor compreensão da temática do presente

Trabalho de Conclusão de Curso. Ainda, se falará da criminologia, ciência que serve

de grande auxílio ao Direito Penal, pois, tem como um dos objetos principais do seu

estudo o perfil do agente infrator, de modo a tentar descobrir o que o leva a comer o

delito, no afã de evitar novas condutas delitivas.

Na segunda parte será feito um link entre o psicopata, Direito Penal e a

execução penal. Neste capítulo será esclarecido o procedimento que é adotado

quando verificado, no processo penal, que a sanidade mental do acusado encontra-

se comprometida. Também será tratado da importância que existe na ligação entre a

psiquiatria forense e o direito penal, para a criação de laudos técnicos que concluam

pela sanidade ou insanidade mental do acusado. Depois, será trabalhado o histórico

e conceito da psicopatia, que como veremos, apesar de ser demasiada antiga, teve

seus estudos iniciados a pouco. Deste modo, ao final do capítulo será possível

efetuar um exame criminológico acerca do psicopata, que também será conceituado

no referido capítulo.

Já no Capítulo 3 discutir-se-á a responsabilidade penal do psicopata. Serão

trabalhados conceitos e teorias, acerca da culpabilidade, último dos elementos que

compõem o crime, segundo a teoria tripartida. Serão esclarecidos alguns tópicos

acerca da imputabilidade, semi-imputabilidade e inimputabilidade, para adiante

mostrar em qual destas categorias se encaixa o psicopata. Em seguida será

averiguado qual a pena aplicada aos portadores desta patologia, analisando,

subsequentemente, se os objetivos da pena são atingidos ou não. Ver-se-á como o

princípio da equidade é utilizado, no que tange às sanções aplicadas ao psicopata.

Findando o conteúdo investigatório, nas considerações finais será apurado o que se

concluiu da presente pesquisa.

Capítulo 1

O PRINCÍPIO DA EQUIDADE E O DIREITO PENAL

1.1. SURGIMENTO DO ESTADO

1.1.1. Estado de natureza

Antes do surgimento de uma figura governamental que estabelecesse normas

e condutas a serem seguidas pelos seres humanos, viviam os indivíduos em um

estado de organização individualista. Tal estado, chamado por Hobbes de estado

de natureza, colocava os homens em posição de igualdade de capacidade, e fazia

com que os indivíduos fossem obrigados a promover sua própria segurança. Sendo

assim, uma vez que não existia um governo para regularizar a sociedade, tampouco

existia a figura do Estado como detentora do direito de punir, tal direito era

resguardado aos próprios indivíduos.

Assim explica Hobbes:

Dessa igualdade de capacidade entre nós resulta a igualdade de

esperança quanto ao nosso fim. Essa é a causa pela qual os homens, quando desejam a mesma coisa e não podem desfrutá-las por igual, tornam-se inimigos e, no caminho que conduz ao fim (que

é, principalmente, sua sobrevivência e, algumas vezes, apenas seu prazer), tratam de eliminar ou subjugar uns aos outros. Um agressor teme somente o simples poder de outro homem; se alguém semeia,

constrói ou possui uma área conveniente, pode estar certo de que chegarão outros que, unindo suas forças, procurarão despojá-lo e privá-lo do fruto de seu trabalho e até de sua vida ou liberdade. O

invasor, por seu turno, assumirá o mesmo perigo enfrentado por aquele cuja propriedade invadiu e a quem subjugou1

Entende-se que a justiça, do ponto de vista filosófico, no estado de natureza

trazido por Hobbes, não gozava de lugar, visto que não existia Sociedade, nem lei.

Nessa lógica, não havia que se falar em algo que fosse justo ou injusto, pois não

existiam os padrões de comportamento, ética e moral

1HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. p. 90.

4

Hobbes completa:

Há uma consequência dessa guerra entre os homens: nada pode ser injusto. As noções de bem e mal, de justiça e injustiça, não encontram lugar nesse procedimento; não há lei onde não há poder

comum, e onde não há lei, não há injustiça. As duas principais virtudes na guerra são a força e a fraude. Justiça e injustiça não pertencem às faculdades do corpo e do espírito; se assim fosse,

existiriam num homem sozinho no mundo, da mesma forma que suas sensações e paixões. Justiça e injustiça só existem entre os homens em sociedade, nunca em isolamento. É natural, também, que não

exista propriedade ou domínio, nem distinção entre o que é seu e o que é meu. Apenas pertence a cada homem o que ele é capaz de

obter e conservar. O homem, por obra da Natureza, se encontra, pois, nessa miserável condição, embora tenha a possibilidade de superar esse estado contando com suas paixões e sua razão2

Para John Locke, todo homem, no estado de natureza, tem o direito de se

defender de agressões que se mostrem injustas, em razão da preservação de sua

integridade, propriedade e seus bens. Ainda, entendia que o estado de natureza é

apenas o estado em que se encontram as pessoas, livres para fazerem o que

quiserem. Desta forma, encontram-se todos os indivíduos em situação de igualdade:

E para que todos os homens sejam impedidos de invadir direitos

alheios e de prejudicar uns aos outros, e para que seja observada a lei da natureza, que quer a paz e a conservação de toda a humanidade, a responsabilidade pela execução da lei da natureza é,

nesse sentido, depositada nas mãos de cada homem, pelo que cada um tem direito de punir os transgressores da dita lei em tal grau que impela sua violação. Pois a lei da natureza seria vã, como todas as

demais leis que dizem respeito ao homem neste mundo, se não houvesse alguém que tivesse, no estado de natureza, um poder para

executar essa lei, e com isso, preservar os inocentes e conter os trangressores. E se qualquer um no estado de natureza pode punir a outrem, por qualquer mal que tenha cometido, todos podem fazer,

pois, nesse estado de perfeita igualdade, no qual naturalmente não existe superioridade ou jurisdição de um sobre outro, aquilo que qualquer um pode fazer em prossecução dessa lei todos devem

necessariamente ter o direito de fazer3

2 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. p. 97.

3LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Julio Fischer. p. 385-386.

5

1.1.2. Surgimento da figura do estado como regulador da sociedade

No momento em que se passou a vigorar a figura do estado civil, perdeu-se o

poder de autotutela em razão de uma maior segurança e proteção, que se

embasavam em condutas e regras gerais que viabilizavam o convívio em sociedade.

Para Rousseau, tal migração tornou o homem, que vive em sociedade, um “ser

inteligente”. Assim o explica:

Mudança bem notável produziu no homem a passagem do estado

natural ao civil, substituindo em seu proceder a justiça ao instinto, e dando às suas ações a moralidade de que antes careciam; é só então que a voz do dever sucede ao impulso físico, e o direito ao

apetite; o homem que até ali só pusera em si mesmo os olhos vê-se impelido a obrar segundo os outros princípios, e a consultar a razão antes que os afetos. Embora se prive nesse estado de muitas

vantagens, que a natureza lhe dera, outros obtêm ainda maiores; suas faculdades se exercem e desenvolvem; suas idéias se ampliam, seus sentimentos se enobrecem, sua alma toda inteira a tal ponto se

eleva os abusos desta nova condição não o degradassem muitas vezes a uma inferior à primeira, muitas vezes inferiores a uma inferior

à primeira, que se, deveria abençoar de contínuo o instante feliz que para sempre o arrancou do estado de natureza, e fez de um animal estúpido e limitado um ser inteligente, um homem.4

Com o surgimento do Estado, como figura reguladora da vida em sociedade,

o direito de punir passou a se concentrar apenas no poder deste. Assim, um estado

de autodefesa foi substituído por um estado de maior segurança e proteção, que

possibilitava a convivência de indivíduos de forma organizada. Com o fim da

autotutela, os problemas passaram a ser resolvidos pelo Estado, logo, se apenas um

ente faria resolução do problema de todos, necessário que tal resolução fosse justa

e igualitária. Subsequentemente a tal transação passou-se a estudar o que seria

justo. Logo chegou-se a figura da Equidade.

4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. p. 34-35.

6

1.2 O PRINCÍPIO DA EQUIDADE

O Princípio da Equidade é um princípio do direito que estabelece a

adaptação da norma vigente ao caso concreto. Trata-se de uma aproximação da

norma, que – impreterivelmente – é abstrata, às peculiaridades imprevisíveis

contidas em cada caso em particular. Tal necessidade, de amoldar a norma em

razão das peculiaridades de cada situação, decorre da busca pela aplicação da

Justiça. Equidade, então, é forma de aproximação entre Direito e Justiça.

Explica Venosa que “na realidade, o conceito de equidade não se afasta do

conteúdo do próprio Direito, pois, enquanto o Direito regula a sociedade com normas

gerais do justo e equitativo, a equidade procura adaptar essas normas a um caso

concreto.” 5

Ainda, explica douto magistrado catarinense, Carlos Roberto da Silva que

“sendo compreendido, servirá a Equidade como importante ferramenta de alcance

da pretendida decisão justa, possibilitando ao Estado a resolução com maior eficácia

do problema jurídico evidenciado em uma demanda judicial.” 6

Ainda, pondera que:

Nas hipóteses em que a decisão tomada, com fundamento na letra fria da lei, não atenda aos anseios da “desejada” justiça, o formalismo exacerbado estará caracterizado e poderá representar

uma barreira ao alcance da função social do Estado Constitucional Democrático de Direito. 7

Dizia Aristóteles, ser a Equidade uma forma de se alcançar a Justiça, pois as

leis, por tratarem de situações hipotéticas e abstratas, necessitavam da adaptação

ao caso, que era recheado de peculiaridades:

5 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 4. ed. p. 51.

6 SILVA, Carlos Roberto da. Equidade nas decisões judiciais: hipótese de cumprimento pelo estado

de sua função social. Revista da Escola Superior de Magistratura Do Estado de Santa Catarina. p

333.

7SILVA, Carlos Roberto da. Equidade nas decisões judiciais: hipótese de cumprimento pelo estado

de sua função social. Revista da Escola Superior de Magistratura Do Estado de Santa Catarina. p

334.

7

O equitativo, apesar de ser diferente do justo seja ainda assim

louvável; com efeito, se os dois são diferentes ou o justo ou o equitativo não é bom, e se ambos são bons, eles são a mesma coisa. […] o equitativo, embora seja melhor que uma simples espécie de

justiça, é em si mesmo justo, e não é por ser especificamente diferente da justiça que ele é melhor do que o justo. A justiça e a equidade são portanto a mesma coisa, embora a equidade seja

melhor. O que cria o problema é o fato de o equitativo ser justo, mas não justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma

afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo completamente, a lei leva

em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a possibilidade de falha decorrente desta circunstância. Com efeito, quando uma situação é indefinida a regra também tem

de ser indefinida, como acontece com a régua de chumbo usada pelos construtores em Lesbos; a régua se adapta à forma da pedra e

não é rígida, e o decreto se adapta aos fatos de maneira idêntica8

Ferrajoli explica que “a equidade serviria, assim, para preencher a distância

entre a abstração do pressuposto típico legal e a concretização do caso em

julgamento. Tal é a natureza do equitativo: uma correção da lei na medida em que

sua universalidade a deixa incompleta”.9

Callado destaca que:

a severidade da lei, a precisão técnica das sentenças e o seu estrito cumprimento contemplam a justiça isoladamente, sem levar em

conta outras virtudes que com ela se harmonizam, tais como a caridade, solidariedade, benignidade e misericórdia.10

E ainda completa:

Quer isso dizer que a justiça, levada a sua exatidão extrema, torna-

se injusta. É preciso matizá-la por outras virtudes, para cumprir o seu desígnio de favorecimento do bem comum e de humanização das relações sociais. A isto se chama equidade, ou, no dizer de Javier

8ARISTÓTELES. Ética a nicômaco . p. 109-110.

9 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. p. 126.

10 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal. p. 65.

8

Hervada, justiça matizada. Fora da equidade não há justiça, mas

inclemência.11

Tal entendimento já era disseminado por Cícero, importante filósofo romano,

quando tornou conhecida sua sentença jurídico-moral, qual diz: summum jus,

summa injuria12.

Tal brocardo, para Callado, quer dizer “que a justiça, levada à sua exatidão

extrema, torna-se injusta”. Defende, ainda, que é necessário “matizá-la por outras

virtudes, para cumprir o seu desígnio do favorecimento do bem comum e da

humanização das relações sociais”.13

Pode-se dizer que a Equidade, na forma que conhecemos hoje, teve como

berço a Grécia Antiga, tendo como fonte o desenvolvimento do conhecimento

filosófico. Platão e Aristóteles foram os primeiros a trabalhar a ideia de Equidade.

O estudo da Equidade também permeou o Direito Romano, principalmente no

período após a invasão da Grécia, onde, em decorrência de uma sincretização entre

as duas culturas, houve uma quebra de rigidez do Direito Romano, em razão,

principalmente, da filosofia grega, deixando para trás o Direito Romano Arcaico, no

qual se aplicava uma igualdade “aritmética”. Tal forma de igualdade pode ser

benéfica para alguns e extremamente prejudicial para outros, em decorrência de não

serem levadas em consideração as peculiaridades de cada caso, por isso se

considera, esta migração de forma de aplicação da pena, uma evolução para o

Direito Romano.

Ainda, o estudo da Equidade cruzou a Idade Média, onde foi trabalhado por

São Tomás de Aquino, que se utilizava dos conhecimentos deixados por Aristóteles

para formular um conceito de Equidade dentro de um contexto cristão.

11

OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal. p. 67.

12 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo pena l. p. 66.

13 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal. p. 66.

9

1.2 A EQUIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A Equidade no ordenamento jurídico brasileiro se explica de forma a usar do

justo e da igualdade para apresentar uma resposta jurisdicional mais adequada a

cada caso concreto.

Assim explica Silva:

é possível extrair como significado geral, a partir do que

hodiernamente existe em nosso ordenamento jurídico – e não há como se negar sua existência, como se verá a seguir – que Equidade significa usar do justo e da igualdade para apresentar uma resposta

jurisdicional mais apropriada ao desiderato de justiça em um caso concreto.14

Segundo Ferrajoli:

Quando um juiz toma conhecimento de um delito, ainda que esteja denotado de forma taxativa na lei, não se limita a asseverar (ou a negar), conforme as provas (as não provas ou contraprovas), a tese

que enuncia seu cometimento por parte de um sujeito culpável. Valora também, para fins da decisão, sobre a medida e/ou sobre a

qualidade da pena, a gravidade específica do fato em relação ao contexto ambiental em que se verificou, com suas causas objetivas e seus motivos subjetivas, com a intensidade da culpabilidade, bem

como com as circunstâncias nas quais o culpado atuou. Ainda que as teses que descrevem essas circunstâncias específicas costumem ser afirmações dotadas de referências empíricas, quase sempre é

impossível predicar delas a verdade jurídica. A lei, com efeito, não prevê nem poderia prever todas as infinitas conotações particulares (que aumentam ou atenuam a gravidade) dos fatos por ela

denotados, senão que todos os demais pormenores podem indicar seus critérios de valoração. A individualização das características particulares do fato e as conseqüentes valorações configuram a chamada equidade do juízo, na qual se expressa um poder que chamarei de poder de conotação. 15

14

SILVA, Carlos Robertoda. Equidade nas decisões judiciais: hipótese de cumprimento pelo estado de sua função social. Revista da Escola Superior de Magistratura Do Estado de Santa Catarina. p

330.

15 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. p, 125

10

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o princípio da

Equidade não está expressamente consagrado, entretanto o “escopo da Equidade”16

pode ser encontrado, de forma implícita, nos princípios da dignidade da pessoa

humana, da solidariedade social e da igualdade, previstos respectivamente nos art.

1º, incisos III e IV; art. 3º, inciso I; art. 5º, caput, incisos XXXV, XXXVII e LV; art. 170

e art. 173, § 4º, assim assevera Marcelo Carlin.17

Entende-se que a presença da Equidade no ordenamento jurídico é de suma

importância para a manutenção do Direito, visto que, caso contrário, a aplicação da

lei seria demasiada rígida, consequentemente o Direito se tornaria obsoleto,

caminhando assim por um caminho antagônico ao da justiça.

1.3 O DIREITO PENAL E TEORIA DO CRIME

O Direito Penal é o ramo do direito público voltado à proteção da sociedade e

valores sociais, por meio da repressão, na forma de cominação de penas e medidas

de segurança, que necessariamente devem, juntamente do delito praticado, estar

previamente estipulados no ordenamento jurídico pátrio.

Batista, sucintamente, define direito penal como “conjunto de normas jurídicas

que prevêem os crimes e lhes cominam sanções, bem como disciplinam a incidência

e validade de tais normas, a estrutura geral do crime, e a aplicação e execução das

sanções cominadas”18

Capez conceitua direito penal como:

segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à

coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais,

16

SILVA, Carlos Robertoda. Equidade nas decisões judiciais: hipótese de cumprimento pelo estado de sua função social. Revista da Escola Superior de Magistratura Do Estado de Santa Catarina. p

330.

17 CARLIN, Marcelo. O julgamento por equidade nos juizados especiais cíveis: uma abordagem à luz

da convergência entre os sistemas jurídicos da civil law e da common law e do movimento

contemporâneo de acesso à justiça. p. 127.

18BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. p. 19.

11

cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de

estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.19

Zaffaroni explica que o direito penal se diferencia dos demais ramos do

direito, levando em consideração a consequência da infração penal:

[...] A legislação penal se distingue da restante legislação pela

especial consequência que associa à infração penal (delito): a coerção penal, que consiste quase exclusivamente na pena. A pena

se distingue das restantes sanções jurídicas (distinguindo-se assim a

legislação penal, das restantes legislações: civil, comercial, trabalhista, administrativa etc.) porque procura conseguir, de forma direta e imediata, que o autor não cometa novos delitos, enquanto as

restantes sanções jurídicas têm uma finalidade primordialmente ressarcitória ou reparadora.”20

Para Liszt, “Direito Penal é o conjunto de regras jurídicas estabelecidas pelo

Estado, que associam o crime, como fato, à pena, como legítima consequência”.

Importante lembrar-se da necessidade de incluir as medidas de segurança como

resposta estatal aos crimes cometidos pelos inimputáveis. 21

A teoria do crime é a responsável por explanar sobre as condutas que se

classificam como crime, e, por consequência, quais deverão ser punidas pelo direito

penal. A conduta, para ser considerada criminosa, deve, impreterivelmente,

preencher todos os requisitos que se fazem necessários para que se verifique se a

ação ou omissão é delituosa ou não. Necessário, portanto, delinear quais são tais

requisitos que devem estar presentes na conduta para que seja possível caracterizá-

la como crime.

Zaffaroni ainda completa teoria do crime

parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é delito em geral, isto é, quais são as suas características que devem

19

CAPEZ, Fernando. Curso de direto penal, parte geral. p. 21.

20ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral .p. 86.

21PUIG, Santiago apud Von Liszt. Direito penal – fundamentos e teoria do direito. p. 22.

12

ter qualquer delito. Esta explicação não é um mero discorrer sobre

delito com interesse de pura especulação, contrariamente atende ao cumprimento de um propósito essencialmente prático, consiste em tornar mais fácil a averiguação da presença, ou ausência, do delito

em casa caso concreto (grifo do autor).22

Entende-se delito como uma conduta - imputável a um agente - que seja

perigosa ou lesiva a interesse tutelado pelo direito penal. Nesta visão, seria o delito

um fato socialmente nocivo e injusto, não apenas uma ação ou omissão que viola a

lei. Seria ato que viola o dever jurídico e confronta as condições fundamentais da

vida em sociedade.

Para Jesus existem demasiadas maneiras de se conceituar crime, existe o

conceito material, onde crime seria aquilo que viola um bem penalmente protegido.

Sendo que tal definição se embasa na visão ontológica do delito, nos motivos que

levaram o legislador a escolher determinados valores e fundamentos e criminalizar

determinadas condutas que violem estes bens.23

O conceito formal, por sua vez, interpreta o crime como a conduta descrita na

norma, sob ameaça de pena. Tal conceito tem a lei como viga mestra.

Há também o conceito formal-material, no qual se unem as características

formais e materiais. Para Jesus, em tal classificação ocorre “a infração da lei do

Estado, promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato

externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente

danoso”. Ou seja, a violação vai de encontro à lei, preenchendo os c ritérios formais,

e de encontro ao bem jurídico escolhido para ser tutelado pelo direito penal.

Existe ainda um quarto conceito, chamado de formal, material e sintomático,

que atribui inúmeras definições formais e materiais a personalidade do agente.

Assim descrito por Jesus:

fato humano tipicamente previsto por norma jurídica sancionada mediante pena em sentido estrito (pena criminal), lesivo ou perigoso

para bens ou interesses considerados merecedores da mais enérgica tutela, constituindo expressão reprovável da personalidade do

22

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p.383.

23

JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte Geral. p. 193

13

agente, ta como se revela no momento de sua realização. 24

Para Greco, nenhum desses conceitos se mostra eficaz em conceituar

exatamente o que é crime, pois, não o definem precisamente. São omissos, por

exemplo, quanto à ilicitude ou excludente de culpabilidade – conceito formal – ou

simplesmente ignoram o princípio da legalidade – conceito material. 25

O conceito que melhor classificou os elementos do crime, para Greco, foi o

conceito analítico (ou dogmático) que recebe esse nome, pois, analisa as

características ou elementos que compõem a infração penal.26

No andar das teorias jurídicas sobre o delito, construíram-se, a partir da

dogmática alemã, três elementos estruturais interdependentes de toda a conduta

punível: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.27

Para Callado:

essa estrutura conceitual corresponde a uma dupla perspectiva, conforme recaia a análise sobre o crime ou sobre o seu autor. E em nada altera os fundamentos da reprovação penal, uma vez que

aqueles três elementos são características comuns a todo o delito e estão considerados em sua forma unitária.28

Neste molde, para que seja possível a determinação concisa de que certa

conduta é delituosa ou não, precisa, necessariamente, que estejam presentes,

sucessivamente, todas as etapas da caracterização de crime.

Segundo Zaffaroni,

para averiguar se há delito em um caso concreto, teremos que formular-nos uma série de perguntas, ou seja, que não basta perguntar-nos “houve delito?” mas que o “houve delito?” deve ser

decomposto em um certo número de perguntas. Estas perguntas e

24

JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral .p. 192- 193

25 GRECO, Rogerio. Curso de direito penal: parte geral. p. 143.

26 GRECO, Rogerio. Curso de direito penal: parte geral. p. 178.

27 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal. p. 33.

28 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal. p. 34

14

suas respectivas respostas devem ocorrer numa certa ordem, porque

não tem sentido que perguntemos algumas coisas quando ainda não respondemos outras” e completa “as perguntas e sua ordem são precisamente o que nos proporciona a teoria do delito.29

Tais perguntas, basicamente, consistem na verificação da conduta ser típica,

ou seja, estar previamente estipulada no nosso ordenamento jurídico; no caso de

resposta positiva, passa-se a analisar a antijuridicidade da conduta; não verificada

nenhuma excludente de ilicitude, averigua-se a culpabilidade do agente praticante

da ação ou omissão. Assim, presentes todos os requisitos, temos a conduta

delituosa.30

Estabelece Callado

O ponto de partida é sempre o quadro da tipicidade, onde se desenham as modalidades da conduta no tipo legal de crime. A tipicidade decorre do princípio de legalidade, em sua formul ação latina nullum criemen sine lege, dada por Paul Johan Anselm Von

Feuerbach. É necessário, sobretudo, que antes do cometimento do crime, exista um antecedente legal que obrigue o indivíduo a um fazer e a um omitir, uma exigência incondicional de ele agir ou não

agir com determinação livre e pessoal, sob a promessa de um castigo.31

Dissolvendo melhor, em achatada síntese, tipicidade seria “quando uma

conduta se ajusta a algum dos tipos legais”. Tipos, vale lembrar, são os elementos

da lei penal que servem para individualizar a conduta que se proíbe com relevância

penal. Por exemplo, “matar alguém” (tipo de homicídio – art. 121)32

Posteriormente, ultrapassada a fase da tipicidade, há que se questionar

acerca da antijuridicidade da conduta.

29

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 384-385.

30

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 390.

31 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal . p. 36.

32ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 388.

15

Há, depois, a necessidade lógica de indagação analítica da

antijuridicidade. Diferentemente da tipicidade, que se encerra uma ideia de identificação, subsunção da conduta à forma delitiva prevista na lei, a antijuridicidade indica uma ideia de contradição, de oposição

da conduta à ordem jurídica. Mas não é suficiente a mera contradição formal do direito, para receber a censura penal. O ato típico tem caráter de antijuridicidade de direito público (direito penal),

porque ofende gravemente e vigência de importantes bens jurídicos, quer pela via da lesão, quer pela via do perigo de lesão. Quando se indaga da antijuridicidade, há sempre o trânsito de um conceito

puramente forma da ilicitude para uma concepção material orientada pela finalidade de salvaguardar pessoas e bens jurídicos.33

Conforme estabelece o conceito analítico, o fato de a conduta ser típica, não

necessariamente faz com que estejamos diante de um delito, pois, ao verificarmos

atentamente o Código Penal, podemos perceber que nem toda conduta típica é um

delito.

Assim leciona Zaffaroni:.

Com efeito, se repararmos nas hipóteses enumeradas no art. 23

(artigo que é necessário memorizar) vemos que operam permissões para a realização de ações típicas. São os casos de estado de necessidade (art. 23, inc. I), de legítima defesa (art. 23, inc. II) e de

estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito (art. 23, inc. III). Tecnicamente, dizemos que em todos estes casos opera uma causa de justificação que exclui o caráter delitivo da conduta

típica.

Disto resulta que às vezes há permissão para realizar condutas típicas. Quando a conduta típica não está permitida, diremos que,

além de típica, será também contrária à ordem jurídica considerada como unidade harmônica, porque de nenhum de seus preceitos surge uma permissão para realizá-la. Esta característica de contrariedade à ordem jurídica funcionando como conjunto harmônico – que se comprova pela ausência de permissões –

chamaremos de antijuridicidade e dizemos que a conduta é, além de típica, antijurídica34

33

OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal. p. 36

34ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p.385.

16

Conclui-se, assim, que, para que exista delito, não basta que esteja presente

na conduta a característica da tipicidade, também é necessária a presença da

antijuridicidade.

Há ainda que se falar, para caracterização do crime, da característica da

culpabilidade – um dos objetos principais deste trabalho, que será mais trabalhado

posteriormente.

Explica Zaffaroni que:

na doutrina, chamamos a conduta típica e antijurídica um “injusto

penal”, reconhecendo que o injusto penal não é ainda delito, e sim

que, para sê-lo, é necessário que seja também reprovável, isto é, que o autor tenha tido a possibilidade exigível de atuar de outra

maneira, requisito que não se dá, por exemplo, na hipótese do “louco” (de quem, em razão de sua incapacidade psíquica, não se pode exigir outra conduta). Esta característica de reprovabilidade do

injusto ao autos é o que denominamos culpabilidade e constitui a terceira característica específica do delito.35

Importante frisar que tal sistema – tripartido – é entendimento majoritário da

doutrina e jurisprudência brasileira. Entretanto há quem se posicione de maneira a

incluir a este sistema a punibilidade, nessa lógica, crime seria conduta típica, ilícita,

culpável e punível.36 Entretanto, tal método de repartição do delito recebe criticas por

se entender que a punibilidade não constitui parte do delito, tão somente a sua

consequência.

Há, ainda, os que excluem do sistema tripartido a culpabilidade. Estes – Rene

Ariel Dotti, Delmanto, Damásio de Jesus e Mirabete – entendem que crime seria

apenas a conduta típica e antijurídica, sendo a culpabilidade natureza de

pressuposto da aplicação da pena, é a chamada teoria bipartida de crime.

Conclui-se, então, que a corrente majoritária da doutrina entende que crime é

conduta típica, antijurídica e culpável.

35

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 390.

36PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. p. 246-247.

17

Passado o momento de compreensão do delito passa-se a estudar a conduta

do agente, como pessoa humana. Para isso, socorremo-nos às ciências penais. 37

1.3.1 Criminologia

Merolli adota a teoria tripartida das ciências penais, originaria da doutrina

alemã, especialmente Franz Von Liszt, das quais são partes a Dogmática Jurídico-

Penal (Ciência do Direito Penal), Política Criminal e Criminologia. Contextualiza

Merolli:

Os manuais e tratados de nossa disciplina habitualmente se referem a uma “enciclopédia das ciências penais”, enquanto termo abrangente daquelas ciências que, direta ou indiretamente, ocupam-

se de estudar o delito, o delinquente e a pena, seguindo-se – invariavelmente – a esta definição, uma classificação esquemática de todas estas ciências. Modernamente, no entanto, em atenção ao

desenvolvimento da melhor doutrina alemã e espanhola, operacionaliza-se uma “tripartição das ciências penais”, em Dogmática Jurídico-Penal (Ciência do Direito Penal), Política Criminal

e Criminologia.38

Importante salientar que no presente trabalho, focaremos, em suma, a

Criminologia.

Zaffaroni, em breve introdução ao contexto da criminologia, explica:

São chamadas “ciências da conduta” as que estudam a conduta humana desde o ponto de vista do ser desta conduta. O direito penal

determina que condutas são desvaloradas e como se traduz este desvalor em consequências jurídicas, mas não se pergunta acerca do ser desta conduta, do que ela representa na biografia do sujeito,

da problemática geral das condutas criminosas na vida social etc. Essas questões correspondem a outras ciências, que são a biologia, a psicologia e a sociologia, ou seja, as ciências que estudam a

conduta humana. Não se trata de ciências que estudam objetos distintos, e sim de disciplinas que estudam um mesmo objeto

(conduta humana) a três níveis diferentes de complexidade (Bleger). Dado o objeto dessas ciências, necessariamente têm de padecer uma incessante luta de escolas e tendências, profundas crises quase

permanentes e, como é natural, a tremenda carga emocional que

38

MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. Petrópolis: Lumen Juris, 2010. p. 157.

18

sempre perturba a objetivação científica de tudo o que é inerente ao

humano. [...] dessa relação (entre as ciências que pretendem explicar a conduta e a que pretende dizer quais condutas se desvalorizam)

surgiu uma área de conhecimento que tem fundamental importância para o direito penal, e que se distingue nitidamente do mesmo: a criminologia39

Guilherme Merolli, explica, ainda, que “a Criminologia nasce enquanto

discurso científico autônomo no apogeu do positivismo naturalista. É precisamente,

pois, no último quartel do século XIX que surge a Criminologia como uma “ciência”,

com “objeto” e “método” próprios.40

Para Noronha:

É ela ciência causal-explicativa. Estuda as leis e fatores da criminalidade e abrange as áreas da antropologia e da sociologia

criminal. Com o objetivo de estudar o delito e o delinqüente, encara os fatores genéticos e etiológicos da criminalidade, ao mesmo tempo que considera o crime em função da personalidade do criminoso.41

Podemos dizer que criminologia é a ciência que estuda a questão criminal do

ponto de vista biopsicossocial, ou seja, integrando tanto a ciência que estuda a

conduta humana, quanto a ciência disciplina a desvaloração de certas condutas

humanas.42

Assim assevera Falconi:

A criminologia é uma ciência interdisciplinar que estuda de forma

integral o fenômeno criminal, antes, durante e depois da sua realização. Analisa as condições e circunstâncias globais da conduta criminosa, dedicando, ao mesmo tempo, espaço afetivo para

pesquisar o autor do crime, partindo de uma perspectiva tridimensional; bio-psico-social, procurando, desde logo, as fórmulas

39

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 357.

40MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. p. 158.

41NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal Vol I. p. 47.

42MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. p. 158-159.

19

que melhor se adaptem à readaptação do homem ao núcleo social, tomando por base seu verdadeiro “estado de periculosidade”.43

Para Lola Aniyar de Castro, em trecho retirado da obra de Nilo Batista,

criminologia é:

a atividade intelectual que estuda os processos de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com o comportamento desviante; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infrações ou desvios tenham provocado: o seu processo de criação, a sua forma e conteúdo e os seus efeitos 44

Há corrente que defende que criminologia não se trata de ciência, fazendo

com que tal termo receba críticas frequentemente. Afirmam “que se trata de uma

“hipótese de trabalho”, entretanto, ressalva Zaffaroni, que:

O mais importante não é a resposta que dermos a essa questão, porque terá uma importância quase especulativa e carente de relevância prática: ciência ou hipótese de trabalho, a criminologia nos

oferece conhecimentos que representam dados de grande utilidade para o direito penal e para a política penal de qualquer país que queira atuar racionalmente nesse aspecto de controle social45

O termo criminologia, etimologicamente falando, deriva do latim crimino

(crime) e do grego logos (estudo), assim, criminologia seria o “estudo do crime”.

Ideologicamente, no seu surgimento a criminologia almejava explicar a origem

da delinquência, procurando a causa do delito. Imaginava-se que descobrindo a

causa do delito se eliminaria o seu efeito.

Ainda que interdisciplinar, entende-se que criminologia seja ciência autônoma,

não se confundindo com nenhuma das outras áreas que lhe integram, ainda, possui

43

FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal, p 100

44BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. p. 28.

45ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 158.

20

seus próprios objetos e métodos. Os objetos da criminologia, enquanto ciência,

consistem, superficialmente, no crime, no criminoso, nos mecanismos de controle

social que atuam sobre o crime e a vítima.

O fato de não existir sociedade sem crime, torna a criminologia ferramenta de

demasiada relevância para o estudo da conduta delitiva, seu resultado e seu

praticante. Contribuindo, de tal forma, a expandir o conhecimento científico

adequado ao fenômeno crime.

É oportuno esclarecer que tal estudo, acerca da conduta, efeito e agente

criminoso, serve para que se possa alcançar a forma mais justa de punição, se for o

caso, determinar quais são as causas determinantes da criminalidade, atuando

assim de forma a prevenir tal fenômeno, e paralelamente, possibilitar a

ressocialização do desviado.

Falconi entende que:

Em síntese, de um lado observa cientificamente as causas e os fatores criminógenos da sociedade enquanto meio da criminalidade;

e, de uma outra perspectiva, enfoca as motivações e circunstâncias pessoais do delinquente. Vai-se, então, do ato ao passo, para poder,

por essa via, traçar uma relação de força entre delito x pena e a readaptação do apenado, observado dentro e fora do presídio.46

Como já abordado, o direito penal se mostra uma ciência que se integra

relaciona com diversas áreas do conhecimento, tratando-se de matéria

interdisciplinar. Auxiliam o direito penal, tanto, ciências físicas ou naturais, quanto

ciências sociais. Dentre elas, interessante destacar a Medicina Legal, Psicologia

Judiciária e a Psiquiatria Jurídica, pois, tais ramos serão de enorme contribuição

para o presente trabalho, devido ao fato de determinarem e explicarem a patologia e

personalidade do sujeito portador da psicopatia.

1.3.2 Medicina Legal

Entende-se Medicina Legal como a aplicação do conhecimento médico e

biológico em razão das finalidades do Direito. Compreende concomitantemente o

estudo das questões jurídicas, que podem ser resolvidas exclusivamente com os

46

FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p 100

21

conhecimentos biológicos e principalmente médicos, e o estudo de fenômenos

biológicos e clínicos que servem à solução de problemas judiciários.47

A Medicina Legal é de grande valia para o processo penal, uma vez que em

casos de não aplicação, estará o processo sujeito à anulação, entretanto, importante

salientar que a Medicina Legal não é de uso exclusivo pelo direito penal.

Neste sentido, assevera Falconi:

Embora desfrutando elevada credibilidade perante o processo criminal, a ponto de anulá-lo em caso de sua ausência, não é correto

dizer-se a M.L. uma ciência afeita exclusivamente ao Direito Penal. Não é, porque tem vida própria e se presta para inúmeros fins.48

Sem a Medicina Legal não se poderia averiguar de forma correta, por

exemplo, o grau de uma lesão corporal, ou a causa da morte de uma vítima de

homicídio, por isso a elevada importância dada a esta matéria, que é a responsável

por criar a “ponte” de ligação entre Direito e Medicina.

1.3.3 Psiquiatria Forense

A rigor, a Psiquiatria Forense deveria incorporar-se à Medicina Legal,

entretanto, em razão de sua alta especialização, tal incorporação não ocorre.

A Psiquiatria Forense é a responsável pelo estudo das patologias que afetam

ou podem afetar os sujeitos que praticam condutas delitivas, analisando-se a este

ponto a sanidade mental do agente.

Segundo Falconi:

Duas são as funções desempenhadas pela ciência em homenagem à

boa aplicação do Direito Penal. A saber: a) ela deve servir ao legislador para o aprimoramento das normas sobre as anomalias da mente, facilitando ao juiz um mais amplo

entendimento sobre o que ocorre com o criminoso

47

MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. p. 49

48 FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 97

22

b) proporcionar meios seguros de aplicação da pena, ou das

medidas de segurança, com rigorosa justiça, em casos de dúvidas quanto à saúde mental da pessoa em julgamento49

Sem tais áreas da ciência auxiliando o direito penal, identificar patologias e

desvios de personalidade de agentes delitivos seria praticamente impossível, o que

faria com que o direito penal fizesse o caminho inverso do que pretende, caminharia

para a promoção da injustiça.

1.3.4 Psicologia Jurídica

A Psicologia Judiciária é a ciência que analisa racional e empiricamente o

comportamento do agente praticante do ato delitivo. Em tal análise pode-se fazer uso

de estudos psicológicos de personalidade, estrutura mental e outras características

psicopatológicas, relacionando-os, se for o caso, ao direito penal. Estuda o desviante

do ponto de vista psicodinâmico, social e sistêmico.

Para Falconi “o objetivo da Psicologia Judiciária é auxiliar a Justiça na

obtenção da verdade fática do evento sub judice. Para tanto, funciona como ramo da

Psicologia Aplicada”.50

Entretanto, em razão da precariedade das metodologias adotadas e do

sistema, de forma generalizada, a credibilidade de tal matéria é colocada em pauta.

Assim entende Falconi, quando afirma:

Questiona-se, entretanto, o seu valor probatório, tendo em vista uma série de resultados imperfeitos, o que resulta em descrédito do método para alcançar os fins pretendidos. Não raro, profissionais não competentemente habilitados ofereçam “pareceres” que,

posteriormente, caem em descrédito pela alta de rigorosidade nas assertivas contidas.51

49

FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 100

50 FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 101

51 FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 101

23

Entende-se, portanto, que, no Brasil, os métodos empregados não oferecem

resultados práticos, em razão de haver um total desaparelhamento, por assim dizer,

dos órgãos responsáveis.

A análise de tais ciências complementares é de extrema importância para o

Direito, uma vez que, como veremos à diante, o portador da psicopatia tem juízo de

valores diferentes dos sujeitos que não portam tal patologia. As matérias

supracitadas fornecem, ou ao menos deveriam, conteúdo suficiente para que se

aplique a penalização mais adequada ao sujeito portador não só da psicopatia, mas

também de outras patologias.

Capítulo 2

O PSICOPATA E O DIREITO PENAL

2.1. COMUNICAÇÃO ENTRE PSIQUIATRIA FORENSE E DIREITO PENAL

Passada a explicação, preliminar, acerca da psiquiatria forense, necessário

explorar a relação da mesma junto ao Direito, especialmente, para o presente

trabalho, o Direito Penal.

Verifica-se, de início, uma limitação presente na relação entre Direito Penal e

Psiquiatria forense. A comunicação entre as duas matérias nunca foi alvo de

demasiados estudos. Entende-se que esta relação é, relativamente, pouco

estudada, em relação a outras áreas do direito. Como consequência à falta, relativa,

de estudos acerca do assunto, sofre-se por uma limitada gama de trabalhos

científicos publicados.

Ainda, de forma a agravar a situação, existe considerável dificuldade de

comunicações entre estudos de países diferentes, decorrente da legislação penal

diversa da que se aplicada em solo brasileiro. Tal dificuldade, consequentemente,

prejudica a comparação de resultados práticos das pesquisas.

Entretanto, há quem veja tais divergências de modo benéfico, uma vez

contribuem para o aperfeiçoamento legislação, de modo geral, uma vez que

apontam exemplos de soluções de considerável sucesso.52

Não bastasse a dificuldade, originária da ausência de publicações científicas

acerca do tema, ainda se tem o problema de comunicação entre os ramos de

pesquisa. Por disporem de metodologias de pesquisa dissemelhantes, os ramos da

Psiquiatria e do Direito, especialmente o Penal, têm dificuldade no cruzamento de

informações de suas respectivas competências, portanto, para que tal ocorra,

necessário que haja empenho por parte dos pesquisadores.

52

COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

24

O direito estabelece, no Brasil, no que tange ao processo penal, que duvidosa

a sanidade mental do réu, deve-se estabelecer o instituto do incidente de insanidade

mental, pelo julgador, no afã de possibilitar a averiguação do estado mental do

indivíduo.53

Isto feito, procede-se uma perícia psiquiatra, tendo como escopo a

objetivação de se definir se o agente praticante da conduta delituosa era, no

momento da ação, ou omissão, plenamente capaz. Possibilitando, desta forma,

estabelecer o grau da responsabilidade penal que será aferida. Medindo-se,

portanto, a capacidade de imputação do agente.

Assim assevera Costa, quando diz que:

Busca-se averiguar se o sujeito, no momento da prática da conduta

definida como ilícita, tinha o discernimento necessário para entender o caráter ilícito e se portar de forma diversa do que se portou, devendo, desta feita, ser responsabilizado. Ou concluindo-se, com a

perícia, pela não culpabilidade, buscar os mecanismos que o direito penal disponibiliza para tais situações. 54

Cumpre-se dizer que a perícia psiquiátrica penal, conforme estabelecem

demasiados autores, é matéria de exorbitante complexidade, pois, como salientado

anteriormente, demanda imensurável conhecimento nas matérias relativas à

psiquiatria, tanto quanto em direito penal. Ainda, em razão do trabalho a ser

efetuado, demanda-se considerada habilidade na confecção de laudos periciais, pois

os mesmos servirão como prova, sendo utilizados, inclusive, para o convencimento

do magistrado no que tange a prolação da sentença.

53

COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

54COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

25

Entretanto, importante salientar que o magistrado não está subordinado ao

laudo psiquiátrico, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte, assim

estabelece o Código de Processo Penal em seu artigo 182.55

Compreendido tais pontos, verifica-se, numa linha lógica de raciocínio, que a

psiquiatria, na figura do psiquiatra, tem importante papel no que tange o processo

penal. Somente através das perícias psiquiátricas será possível atestar, ou não, a

sanidade do agente praticante do delito. Assim assevera Costa, quando explica uma

das funções da psiquiatria:

Pode-se afirmar que a psiquiatria tem por escopo informar o direito penal acerca da sanidade mental do indivíduo, bem como sobre seu

desenvolvimento mental retardado ou incompleto, seu grau de periculosidade, estado de embriaguez (se preordenada, acidental,

completa ou incompleta), simulação de loucura, necessidade de imposição de medidas de segurança ou de tratamentos ambulatoriais a serem aplicados. Auxiliando, também, na assistência aos doentes

mentais criminosos e aos criminosos que são acometidos de transtornos ou doenças mentais durante o cumprimento da sua pena. Portanto, a psiquiatria é responsável por informar os limites e os

modificadores da responsabilidade penal, de forma implícita e ou explícita.56

Extrai-se, logo, que o laudo pericial tem como uma de suas principais metas o

diagnóstico psiquiátrico preciso do réu. Para a realização de tal ato são usadas

técnicas metodológicas basicamente idênticas às utilizadas na psiquiatria clínica

geral, assim, realiza-se uma avaliação psicológica no intuito de desvendar o estado

mental atual do indivíduo. Através desse procedimento se possibilita a real avaliação

acerca da existência, ou não, de alguma doença mental ou alteração psíquica,

passando aí, o direito penal, a incidir sobre o caso concreto.57

55

Art. 182. O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte.

(CPP).

56COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

57COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

26

Estabelecida a importância da relação entre psiquiatria e direito penal,

verifica-se a demasiada importância de se adequar a linguagem técnica, própria da

medicina e psiquiatria, e a linguagem técnica do direito. Por isso, compreendendo tal

dificuldade, a devida adequação é tratada como “verdadeira arte”.58

Costa, no que tange a dificuldade referente a tal adequação no Brasil, atribui

à causa ao fato de que:

A legislação que aborda os diferentes aspectos psiquiátrico-forenses de alguém que viole a lei encontra-se inserida em diversos

documentos legais, sem constituir um documento inteiramente dirigido para a avaliação e seguimento do indivíduo com transtorno mental, como ocorre em outros países, onde existe uma enorme

proximidade entre as abordagens médica, psiquiátrica e jurídica .59

Ainda, ressalta:

Estudos internacionais efetivados no sentido de valorar a taxa de concordância entre o laudo psiquiátrico e a sentença judicial, mostram altos valores de concordância. Já no Brasil, até o momento,

são pouco conhecidos estudos semelhantes, entretanto, a prática tem revelado que a recusa de um laudo psiquiátrico por uma autoridade judicial representa um número ínfimo. […] Em uma

dessas poucas pesquisas, realizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, percebe-se que há um elevado percentual de concordância entre os laudos psiquiátricos conclusivos de

capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais, ou seja, o judiciário tem acompanhado a conclusão técnica do psiquiatra, muito embora tenham a opção de não acompanhá-la, sob o respaldo legal

do artigo 182 do vigente Código de Processo Penal. 60

Existem ainda autores que defendem que a psiquiatria tem importante papel

na tarefa de viabilizar a atuação jurídica do direito penal, pois, é a responsável por

58

COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

59COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

60COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

27

estipular a inimputabilidade, a irresponsabilidade e a periculosidade do indivíduo.

Por isso, apesar de o livre convencimento do juiz não ser dependente do laudo

psiquiátrico, o mesmo tem importantíssimo peso no momento da decisão.

No que tange à pesquisa supramencionada, efetuada pelo Ministério Público

de São Paulo, Gomes, explanando a comunicação entre psiquiatria forense e direito

penal, explica:

O objeto de estudo foram os laudos psiquiátricos conclusivos de capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais, acessados

inicialmente no instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo (IMESC), autarquia ligada à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, onde foram buscados os laudos e,

em seguida, em alguns fóruns do Estado de São Paulo, locais onde foram buscadas as sentenças judiciais correspondentes. (...) Dentre

elas, somente em duas não houve concordância com o laudo, estas foram da lavra de um mesmo Juiz de Direito e se referiam a crimes enquadrados na antiga Lei de Antitóxicos (Lei 6.368, de 1976) onde

julgou os réus plenamente imputáveis, não concordando com o laudo psiquiátrico conclusivo de semi-imputabilidade. Assim, houve uma concordância de mais de 90% dos casos.

Ainda, em relação à pesquisa, o tratamento ambulatorial foi a medida de segurança mais recomendada para os casos de retardo mental (75%), entretanto, foi observada também uma baixa concordância no

que tange às medidas de segurança propostas pelos psiquiatras e aquelas determinadas pelos juízes para os indivíduos semi-imputáveis. Este é um dado devidamente intrigante e merecedor de

estudos adicionais, pois a medida de segurança, ao definir se haverá tratamento ambulatorial ou em regime de internação, bem como a duração do tratamento, requer fundamentação técnica, muito embora

a lei penal vigente no Brasil permita que os juízes decidam nessa matéria. A relação entre o poder judiciário e a prática psiquiátrica nos

Hospitais de Custódia e Tratamento (HCT) é mostrada em dois momentos distintos: inicialmente, e no que se refere ao procedimento

jurídico propriamente dito, através de uma interferência que mostra-se limitante para a atuação médica em seus momentos de decisão (internação, determinação do tempo de tratamento e alta). No

entanto, cabe ressaltarmos a articulação dos dois campos de atuação, no sentido de que a psiquiatria é viabilizadora da atuação jurídica, uma vez que estabelece a doença na qual se determina a

inimputabilidade, a irresponsabilidade e a periculosidade. A perícia, neste momento, mostra-se fundamental, em que tange à faculdade de livre convencimento do juiz.

Em um segundo momento, ou seja, na cotidianidade, configura-se a prática psiquiátrica no HCT segundo a lógica que rege o procedimento jurídico que a envolve, ou seja, voltada para o futuro,

parece eleger como objeto a periculosidade que é apresentada pelo crime inicial.

28

Neste sentido, relativo aos pacientes em regime de internação, a

psiquiatria mostra-se, no HCT, como preventiva: a medicação e os procedimentos disciplinares medicalizados voltam-se contra um risco de um comportamento agressivo, costituindo-se uma interferência

judicial no sentido de uma transplantação da lógica do procedimento jurídico. O HCT, então, é uma instituição predominantemente custodial, na

qual o tratamento é questionado pelos profissionais e pelos pacientes. A esta constatação, soma-se um tratamento que para alguns médicos é puramente farmacológico, insuficiente e falho,

caracterizado pelo baixo número de atendimentos feitos pelos médicos assistentes a seus pacientes, o que foi evidenciado também a partir da análise de prontuários.

O psiquiatra forense Guido Palomba afirma que o tratamento do psicopata é a administração do comportamento dele. O que mais assusta os promotores é que a medida de segurança inicial máxima

é de três anos, só que isso não significa que o condenado irá ficar apenas esse período. Terminada a pena, ele terá de passar por uma

perícia psiquiátrica, que dificilmente ira atestar que o condenado tem condições de voltar à sociedade. E completa relatando a verdadeira realidade penitenciária do Brasil, que não apresenta profissionais

suficientemente qualificados a realizar uma perícia psiquiátrica: “É diferente um psiquiatra clínico atuar como perito em um caso criminal, por exemplo. Tecnicamente, isso seria o ideal, mas a

realidade do país é outra e posso dizer que não há profissionais suficientes no país para atender a demanda de análises e nem de unidades de casas de custódia e tratamento”. Consequentemente,

isto acarretaria um grande ônus a um réu na sentença final de um juiz, que se baseando por um laudo médico, julga uma provável medida de segurança ou internação a quem não necessita. 61

No intuito de explanar acerca da manifestação do Poder Judiciário em face

ao posicionamento da psiquiatria forense, Ramos elaborou pesquisa posicionando-

se acerca da comunicação entre essas duas matérias:

Foram incluídos no presente estudo 70 processos em que o laudo

psiquiátrico concluiu que os sujeitos submetidos à perícia eram semi-imputáveis, ou seja, tinham capacidade parcial da imputação. [..] Esses laudos correspondem a processos instaurados contra 61

pessoas, já que um sujeito respondia a seis outros processos e outros quatro respondiam a dois processos cada.

Os processos estudados foram instaurados entre 1991 e 2000. Quarenta e sete (67,1%) processos foram instaurados a partir de

61

GURGEL, Rafael Gomes Silva. Medicina legal: a precariedade da psiquiatria forense no âmbito penal.Disponível em <http://www.unipac.br/site/bb/tcc/tcc-fe3be754dc83ec95db35385b33511a1a.pdf>.

29

1998. Dois instaurados em varas federais e os demais em 26

comarcas do Estado de São Paulo. Na comarca da capital (São Paulo) tramitaram 24 (34,3%) processos e na maior parte das comarcas do interior apenas um processo foi incluído.

[...] Foi possível obter informações sobre o andamento de 39 dos 70, o que corresponde a 55,7% da amostra estudada. A amplitude da área territorial das comarcas de origem dos processos, a dificuldade

para se obter informações, em geral muito espalhadas, nos órgãos da justiça e a longa greve dos servidores do Poder Judiciário no segundo semestre de 2001 foram razões para esse elevado número

de perdas de seguimento. [...] O trabalho mostrou ser extremamente difícil estudar em termos científicos a relação entre psiquiatria forense e o direito penal.

A concordância entre laudos psiquiátricos conclusivos de capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais foi alta (91,7%, IC = 73 a 95%)

A concordância entre as medidas de segurança propostas pelos peritos psiquiatras e as medidas de segurança determinadas pelo

juiz foi baixa.62

Entende-se, portanto, que a comunicação entre os dois ramos do saber

(psiquiatria forense e direito penal) é de suma importância para a manutenção do

estado democrático de direito, haja vista que só quando as mesmas se relacionam é

que se consegue averiguar, por exemplo, o devido estado mental do agente

praticante da conduta delitiva, no momento de sua ação ou omissão.

2.3. DA PSICOPATIA

2.3.1. Psicopatia ou transtorno de personalidade antissocial

Esclarecida a necessidade da aproximação e comunicação entre psiquiatria

forense e o Direito, mais precisamente, Direito Penal, após breve resumo da

importância do aprofundamento do estudo da psicopatia, cabível a realização do

esclarecimento por completo de tal distúrbio psicológico.

No decorrer da história o termo “psicopata” vem sendo utilizado de modo a

classificar indivíduos que praticam condutas com maior nível de reprovação social.

62

RAMOS, Maria Regina Rocha. Estudo da concordância entre laudos psiquiátricos conclusivos de capacidade parcial de imputação e sentenças judiciais. Disponível em < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5142/tde-10032004-170641/pt-br.php>.

30

Possível e aceitável conceber que o estereótipo do psicopata está impregnado às

entranhas da sociedade. Ocorre que, o termo, demasiadas vezes associado a

crimes perversos, desumanos ou cruéis, ou a personagens fictícios famosos

justamente pela qualidade perversa - como Hannibal Lecter de “O silêncio dos

inocentes” ou muitas vezes associados a personagens icônicos da vida real

conhecidas pelo mesmo motivo, como Adolf Hitler - é muito mais abrangente do que

se especula. Tal abrangência, por consequência, gera divergência, até mesmo entre

os estudiosos acerca do tema.

O termo, levianamente corrompido pela mídia, principal responsável pela

associação errônea do sentido da psicopatia pela sociedade, é demasiadamente

mais complexo e incorporador do que o vulgarmente compreendido. Como adiante

será demonstrado.

Importante frisar que o estudo da psicopatia é relativamente recente, e com

poucos reflexos sociais, assim, deveras difícil encontrar certezas entre os

estudiosos. A própria nomenclatura do transtorno, como pode-se observar, gera

discordâncias, desde o início do seu estudo aprofundado.

Porém, entende-se que o transtorno vulgarmente conhecido como Psicopatia,

atualmente, tem sua denominação cientifica definida como Transtorno de

Personalidade Antissocial ou Transtorno de Personalidade Dissocial. Tal definição,

como supramencionado, é estabelecida pela Classificação Internacional de Doenças

(CID), revista periódica publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS),

utilizada em âmbito global, principalmente, para criação de estatísticas de

morbilidade e mortalidade. Assim explica Silva

Como já foi exposto [...] eles recebem outros nomes, tais como: sociopata, personalidades antissociais, personalidades psicopáticas, personalidades dissociais, entre outros. [...] Devido à falta de um consenso definitivo, a denominação dessa disfunção comportamental tem despertado acalorados debates entre muitos autores, clínicos e pesquisadores ao longo do tempo. Alguns utilizam a palavra sociopata por pensarem que fatores sociais desfavoráveis sejam capazes de causar o problema. Outras correntes que acreditam que os fatores genéticos, biológicos e psicológicos estejam envolvidos na origem do transtorno adotam o termo psicopata. Por outro lado, também não encontramos consenso entre instituições como a Associação de Psiquiatria Americana (DSM-IV-TR)¹ e a Organização Mundial de Saúde (CID-10)². A primeira utiliza o termo Transtorno de

31

Personalidade Antissocial, já a segunda prefere Transtorno de

Personalidade Dissocial. 63

Entretanto, no afã de proporcionar o melhor entendimento ao leitor, sem, no

entanto, confundi-lo, na presente monografia o termo psicopata será largamente

explorado.

Além do mais, atos como os acima descritos podem muito bem ser praticados

por pessoas que não possuem o distúrbio da psicopatia, explica HARE:

Obviamente, os psicopatas não são as únicas pessoas que exibem comportamento anti-social. Muitos atos agressivos e anti-sociais, por exemplo, são cometidos por indivíduos que sofrem grave distúrbio emocional ou que estão vivendo frustrações intoleráveis e conflitos internos. Uma vez que seu comportamento anti-social é sintomático de um problema emocional mais básico, esses indivíduos são às vezes referidos como psicopatas

64

Ainda, descartada a hipótese de algum transtorno psicológico, mesmo que

mais brando, importante salientar que demasiadas condutas consideradas como

antissociais ou agressivas também podem não ser fruto da psicopatia. Membros de

comunidades, por exemplo, cercados pela delinquência, levados ao envolvimento

com a criminalidade devido as circunstancias cotidianas, podem praticar tais

condutas, no entanto, não se pode culpar a psicopatia. Além do mais, tais agentes

possuem a capacidade de afeto, devoção e lealdade, pelo menos perante seu grupo

social. Explica Hare:

Muitos indivíduos exibem comportamento anti-social, e agressivo não por

que sejam psicopatas ou apresentem distúrbios emocionais, mas porque

cresceram numa subcultura delinqüente ou num ambiente que estimula e

reforça tais atitudes. Seu comportamento, embora desviado dos padrões

sociais, é, no entanto, consoante com o do seu grupo, “gang” ou família. Os

termos usados para designar esses indivíduos são: “psicopata” dissocial,

delinqüente subcultural [...] Diversamente do verdadeiro psicopata, estes

indivíduos são capazes de lealdade extrema e genuína relação com

63

SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. p.36-37.

64HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 6.

32

membros de seu próprio grupo (por exemplo, organizações de crime,

“gangs” de delinqüentes etc...)65

Perceptível, então, a dificuldade que existe na constatação do quadro clínico

da psicopatia. Ainda mais clara fica a necessidade da capacitação dos agentes

responsáveis por tal qualificação.

2.3.2. Conceito de psicopatia

O aprofundamento do estudo da psicopatia data do final do século XVIII,

quando médicos psiquiatras e filósofos começaram a discutir acerca da relação

entre a violação de valores morais e o chamado “livre arbítrio” no afã de averiguar se

os infratores tinham a capacidade de, efetivamente, entender as consequências que

seus atos resultariam. Foi então que, no ano de 1801, Philippe Pinel, renomado

médico francês, considerado por muitos o “pai da psiquiatria”, através de

aprofundados estudos, reparou que muito de seus pacientes envolvidos em ações

autodestrutivas e impulsivas tinham a habilidade de raciocínio intacta e completa

consciência da irracionalidade que estavam fazendo. Na época, tal distúrbio foi

batizado de “maniesans delire”, ou, em português “insanidade sem delírio”. É a

partir deste momento que a sociedade médica passa a conceber a ideia da

existência de um indivíduo classificado como “insano”, que, entretanto, não

apresenta nenhum tipo de confusão mental.

Assim concorda Silva, quando expõe que:

É importante ressaltar que o termo psicopata pode dar a falsa impressão de que se trata de indivíduos loucos ou doentes mentais. A palavra psicopata literalmente significa doença da mente (do grego, psyche = mente; epathos = doença). No entanto, em termos médico-psiquiátricos, a psicopatia não se encaixa na visão tradicional das doenças mentais. Esses indivíduos não são considerados loucos, nem sofrem delírios ou alucinações (como a esquizofrenia) tampouco apresentam intenso sofrimento mental (como a depressão ou o pânico, por exemplo)

66

65

HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 8. 66

SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. p. 37.

33

No ano de 1835, em sua obra “A treatise on insanity and other disorders

affecting the mind”, J. C. Prichard discorda, em partes, da teoria de Pinel (manie

sans delire). A questão sobre a moralidade neutra dos portadores do distúrbio

(defendida por Pinel) era a principal discordância entre o entendimento dos

estudiosos. Entendia Prichard que o comportamento dos que apresentavam a

psicopatia significava reprovável defeito de caráter, passível, portanto, de punição. 67

Prichard, logo passou a denominar tal transtorno como “insanidade moral”,

incluindo ainda mais condições à “síndrome”. Explicava que todos os que portavam

tal transtorno eram acometidos por um “defeito” na capacidade de transcorrer pelos

chamados “sentimentos naturais”, ou seja, aqueles que estão naturalmente

intrínsecos na psique humana. Ainda, aludia que os possuidores do distúrbio eram

levados, por força de um “sentimento superpoderoso”, ao cometimento de atos

considerados como socialmente reprováveis, tais como condutas criminosas, apesar

de terem consciência da imoralidade dos atos que cometiam.68

Maudsley, contrapondo a teoria de Prichard, argumentou no sentido da

existência de uma região específica do cérebro humano que continha os

“sentimentos morais naturais”. Assim, defeitos ou malformações congênitas nessa

região do cérebro resultariam na justificativa para a moral comprometida do

psicopata.69

Passou-se, logo, a ocorrer a realização de abordagens antropológicas acerca

do tema. Lombroso, considerado antropólogo italiano, proclamava a figura do

“criminoso nato”, aquele que já nascia com características que indicavam a

potencialidade daquele a vir cometer alguma conduta criminosa. Tais características

eram, vale lembrar, físicas, como, por exemplo, ser canhoto, ter uma testa

proeminente, ser sexualmente desenvolvido precocemente, etc.70

67

HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 9.

68 HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 5.

69COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

34

Como é possível observar, o conceito da psicopatia sofreu diversas mutações

desde o seu descobrimento. Entretanto, foi no ano de 1941 que Harvey Cleckley,

psiquiatra estadunidense, desenvolveu um dos mais precisos e adotados (até hoje)

conceitos de psicopata, através de sua obra “The Mask of Sanity”. Na introdução do

livro, Cleckley revela que sua obra aborda um tema conhecido, entretanto, ignorado

pela sociedade.71

Assim assevera Hare, quando afirma que:

Cleckley forneceu os mais minuciosos relatos clínicos sobre a psicopatia e suas várias manifestações. Com base em sua ampla experiência, resumiu o que considera como os principais aspectos de distúrbio: encanto superficial e boa inteligência; ausência de delírio e outros sinais de pensamento irracional; ausência de “nervosismo” ou manifestações neuróticas; irresponsabilidade; mentira e insinceridade; falta de remorso ou vergonha; comportamento anti-social sem constrangimento aparente;; senso crítico falho e deficiência na capacidade de aprender pela experiência; egocentrismo patológico e incapacidade de amar; pobreza geral de reações afetivas; perda da capacidade de discernimento, indiferença em relações interpessoais gerais; comportamento extravagante e desagradável com bebidas alcoólicas e às vezes sem bebida; ameaças de suicídio raramente levadas a efeito; vida sexual impessoal, trivial e pobremente integrada; dificuldade em seguir qualquer plano de vida.

72

Através da observação das três primeiras características, que são de

natureza positiva, é possível verificar que o comportamento do indivíduo com o

distúrbio da psicopatia não é meramente a manifestação de um funcionamento

mental perturbado.

O psicopata “não tem a capacidade de sentir os componentes emocionais do

comportamento pessoal e interpessoal – ele copia características da personalidade

humana, mas é incapaz de sentir realmente.” Assim, embora seus atos e palavras

pareçam carregadas de verdade (sentimento), não o são, parecem ser. Ou seja, as

palavras e expressões disseminadas pelos portadores do transtorno são vazias de

significado. Assim assevera Hare, quando afirma que “embora suas verbalizações

70

COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

71 SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. p.218.

72 HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 7.

35

(por exemplo, “sinto tê-lo metido em confusão”) pareçam normais, elas são vazias de

significado emocional”. Este distúrbio foi denominado por Cleckley como “demência

semântica”. 73

Entende-se, portanto, ser o psicopata, sujeito com limitações na sua psique.

Ou seja, não possui a mesma capacidade que possui o sujeito sem o distúrbio de

sentir empatia por outras pessoas, a não ser que isso o beneficie. Hare, assim, trata

o psicopata:

Como pessoa insensível, emocionalmente imatura, com apenas duas dimensões e sem nenhuma profundidade real. Suas reações emocionais são simples e primitivas, ocorrendo apenas em resposta à frustração e desconforto imediato. No entanto, é capaz de simular reações emocionais e ligações afetivas quando isso o ajuda a obter o que deseja dos outros. Ele não experimenta nem os aspectos psicológicos nem os fisiológicos da ansiedade ou do medo, embora possa reagir com algo semelhante ao medo quando seu bem-estar imediato é ameaçado. Suas relações sociais e sexuais são superficiais, porém absorventes e manipulatórias. Recompensas e punições futuras só existem de uma maneira abstrata, resultando daí que não têm efeito, sobre seu comportamento imediato Seu senso crítico é falho e seu comportamento é frequentemente guiado pelos impulsos e necessidades do momento; portanto está sempre em apuros. Suas tentativas de se inocentar, não raro, produzem uma rede intrincada e contraditória de mentiras gritantes, juntamente com explicações, promessas teatrais e muitas vezes convincentes

74

Segundo entendimento de Garcia, os psicopatas se classificavam em

Psicopatas Amorais, Psicopatas Astênicos, Psicopatas Explosivos, Psicopatas

Fanáticos, Psicopatas Hipertímicos, Psicopatas Ostentativos e Psicopatas Sexuais.

Assim discrimina:

Psicopatas Amorais: são indivíduos insensíveis, anti-sociais ou perversos, destituídos de compaixão, de vergonha, de sentimentos

de honra e conceitos éticos; não sentem simpatia pelas pessoas de seu grupo social e tem conduta lesiva ao bem-estar e a ordem estabelecida. Os seus crimes ocupam todos os registros, roubo,

furto, estelionato, fraude, homicídio – tudo revestido de insensibilidade diante do fato, ou até de vaidade. Esses psicopatas são absolutamente infensos ao pudor e a opinião pública, e seu

delito resulta da excessiva intensidade dos seus instintos e de nenhuma inibição, pois carecem de consciência moral. É inútil

qualquer tentativa de reeducação ou regeneração, pois não existe na sua personalidade o móvel ético sobre que se possa influir.

73

HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 4.

74 HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 7.

36

Psicopatas Astênicos: são indivíduos sensitivos e assustadiços,

que fogem ao menor incidente, que desmaiam ao ver sangue, de extrema labilidade emocional e incapazes de inibição, como também são dominados pelo sentimento de incapacidade e inferioridade,

seres insatisfeitos. Não traz perigo algum a sociedade. Psicopatas Explosivos: são indivíduos irritáveis e coléricos, reagem com reações primitivas e por atos impulsivos. Ante os estímulos

afetivos explodem com total brutalidade e injustiça, e em regra não guardam lembrança do fato, dada a turvação da consciência no momento da ação.

Muitos desses explosivos revelam-se como tais somente durante a embriaguez. Esses psicopatas chegam freqüentemente aos delitos de sangue imotivados ou insuficientemente motivados, cometem

agressões pessoais, resistência às autoridades, praticam estragos materiais, maltratam animais. Psicopatas Fanáticos: são as pessoas que se caracterizam pela

extremada importância que concedem a certas ideologias, sejam ligadas a determinados sistemas religiosos, filosóficos ou políticos.

Jamais tem uma atitude neutra ante um tema, uma vez participem de uma discussão exaltam-se e extremam-se nas contendas, às vezes de maneira dramática, em torno de assuntos estranhos ou

insignificantes. Psicopatas Hipertínicos: caracterizam-se pelo humor alegre e vivo, e certa atividade; há os mais ou menos equilibrados, mas inquietos, os

irritáveis, rabujentos, egocêntricos, discutidores. Por vezes vivem amigavelmente, aparentam placidez e felicidade, e subitamente explodem em fúria desproporcionada com o estimulo, e entram em

discussões e agressões. Alguns se mostram permanentemente irritáveis, outros manifestam pronta inclinação e disposição para ciúmes para com a pessoa do sexo oposto.

Psicopatas Ostentativos: correspondem, na descrição de SCHNEIDER aos mentirosos mórbidos e defraudadores. São indivíduos vaidosos, que procuram aparentar mais do que aquilo que

na realidade são. É a mitomania . Esses psicopatas ostentadores aliam a mentira e a farsa à fraude. São pessoas de humor alegre, de

maneiras afáveis e otimistas, sorridentes e solicitas, mostram certo brilho intelectual, fazem relações e amizades facilmente, adquirem conhecimentos superficiais sobre arte, literatura e tecnologia, e de

tudo usam para convencer suas vitimas. Do ponto de vista psicológico, tem ambição de adulto e imaginação de criança, e em certa medida incapazes de exercício da responsabilidade civil e

penal. Psicopatas Sexuais: são perversões ou aberrações sexuais primitivas, caracterizadas pela intensidade do instinto como pelo

desvio deste em sua natureza e finalidade.75

Silva, ainda classifica o grau da psicopatia:

75

GARCIA, J. Alves. Psicopatologia Forense. p. 396.

37

É importante ressaltar que os psicopatas possuem níveis variados de

gravidade: leve, moderado e grave. Os primeiros se dedicam a trapacear, aplicar golpes e pequenos roubos, mas provavelmente não “sujarão as mãos de sangue” ou matarão suas vítimas. Já os

últimos, botam verdadeiramente a “mão na massa”, com métodos cruéis sofisticados, e sentem um enorme prazer com seus atos brutais.76

Ao longo do tempo diversas classificações e características surgiram,

entretanto, deste período, as avaliações clínicas puderam evidenciar uma

característica do psicopata, quase que unanimemente. Grande parte dos pacientes

com o distúrbio apresentava um quadro de elevado egocentrismo e falta de empatia

e inabilidade para estabelecer laços emocionais com os demais:

A maior parte das descrições clínicas do psicopata faz alguma

referência ao egocentrismo, falta de empatia e inabilidade para estabelecer laços emocionais com os outros – características que o levam a tratar os outros como objetos, ao invés de pessoas, e o

impedem de experimentar culpa ou remorsos Porter agido de determinada maneira. Após uma revisão extensiva da literatura sobre o assunto, McCord e McCord (1964) concluíram que os dois

aspectos essenciais da psicopatia são a incapacidade de amar e de sentir culpa. De forma semelhante, Craft (1965) considerou os dois aspectos primários da psicopatia como sendo falta de sentimento,

amor ou afeição pelos outros, e uma tendência de agir impulsivamente sem reflexão anterior. Aspectos secundários, derivados destes dois, são agressividade, ausência de clpa ou

vergonha, incapacidade de aprender com a experiência e falta de motivação apropriada. Tanto Foulds (1965) como Buss (1966)

consideram o egocentrismo e a falta de empatia como os grandes responsáveis pelas conflituosas relações interpessoais do psicopata. Sendo incapaz de se colocar na posição de outrem, o psicopata pode

manipular as pessoas como o faz com objetos. Pode assim, obter satisfação de suas próprias necessidades, sem se preocupar com as consequências de suas atitudes. E, sendo incapaz de se colocar no

lugar dos outros, o psicopata não consegue prever quais serão as reações das pessoas diante de seu comportamento extravagante.77

Apesar do aprofundamento do estudo acerca de tal distúrbio ter ocorrido

relativamente tarde (1801), as características do psicopata, como entende-se hoje,

76

SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado, p 17

77 HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 9.

38

remetem à época de Teofrasto, discípulo do importantíssimo filósofo grego

Aristóteles, que já apresentava tais características cerca de 370 a.C, fazendo-se crer

que tal distúrbio possa, talvez, ser tão antigo quanto a própria humanidade.78

Em razão de o sujeito portador da psicopatia ter sua capacidade volitiva

comprometida, de certa forma, em razão de sua patologia, necessário averiguar qual

o grau de sua responsabilidade penal.

Para tanto, analisar-se-á a figura da culpabilidade, ultimo dos elementos que

compõem o crime (segundo a teoria tripartida). Somente desta forma será possível

averiguar qual o grau da culpabilidade do agente, para que assim se possa imputar

a pena que lhe é mais adequada.

78

MILLON, Theodore, SIMONSEN, Erik, BIRKET-SMITH, Morten in: Historical conceptions of psychopathy in the United States and Europe – Psychopathy: antisocial, criminal and violent behavior. p.3.

Capítulo 3

RESPONSABILIDADE PENAL DO PSICOPATA

3.1. CULPABILIDADE

O último dos elementos caracterizadores do crime, e, talvez, o mais polêmico

entre eles trata-se da culpabilidade. Conforme estabelecido anteriormente, “nem

todos os fatos próprios dolosos ou culposos são penalmente punidos, exigindo-se,

para a efetiva imposição de responsabilização penal, que o agente tenha atuado

com “culpabilidade”.79 Entende-se, portanto, que não há que se falar em conduta

criminosa, nem em legítima imposição de sanção penal, se a conduta do autor não

for culpável. O conceito geral da culpabilidade, conforme Zaffaroni, “é a

reprovabilidade do injusto ao autor”80

Explica ainda que:

O injusto, isto é, uma conduta típica e antijurídica, é culpável, quando é reprovável ao autor a realização desta conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que

agiu, que nela se motivasse. Ao não se ter motivado na norma, quando podia e lhe era exigível que o fizesse, o autor mostra uma

disposição interna contrária ao direito. 81

Em outras palavras, explica Merolli:

Nesse sentido, por “culpabilidade” devemos entender o juízo de reprovação pessoal que recai sobre o autor de um injusto penal, por

ter ele atuado contra o Direito, quando, nas circunstâncias, lhe era exigível um comportamento em conformidade ao ordenamento jurídico. Culpabilidade é, desse modo, o juízo de censura endereçado

ao autor de uma conduta típica e antijurídica, em razão do mesmo ter optado pela prática do ilícito penal, quando, diante das peculiaridades do caso concreto, poderia ter ele se decidido pelo acatamento à

norma jurídica. Em síntese, de acordo com o que reza o princípio da culpabilidade, ninguém poderá responder penalmente por um fato

79

MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. Petrópolis: Lumen Juris, 2010. 80

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 1999. p. 624. 81

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 1999. p. 624.

40

próprio doloso ou culposo se, nas circunstâncias concretas, não lhe

tiver sido possível conhecer a ilicitude de sua conduta e adequá-la ao direito.82

No intuito de exemplificar a tal elemento, Zaffaroni cita caso de sujeito que

furta um anel de uma joalheria, sem que ninguém o obrigasse, ou ameaçasse, e

sem estar mentalmente enfermo, diz-se que esse sujeito podia motivar-se na norma

que o proíbe de furtar, e que lhe era exigível que nela se motivasse, uma vez que

nada o impedia. Por esta reprovação do injusto, concluí-se que sua conduta é

culpável.83

Merolli ainda completa:

Assim sendo, nas hipóteses em que, por circunstâncias excepcionais, não for exigível do autor do fato um comportamento

em conformidade ao ordenamento jurídico, não há que se falar em conduta criminosa – eis aqui, aliás, o cerne da difundida tese

exculpante da “inexigibilidade de conduta diversa”.84

Zaffaroni explica que “este conceito de culpabilidade é um conceito de caráter

normativo, que se funda em que o sujeito podia fazer algo distinto do que fez, e que,

nas circunstâncias, lhe era exigível que o fizesse.” 85

Merolli explana:

Percebamos, portanto, que, originalmente, o conceito de culpabilidade tem por base a ideia de que o homem é um ente

plenamente capaz de se autodeterminar, ou seja, a culpabilidade entendida como um juízo de reprovabilidade parte, num primeiro momento, da inarredável premissa de que o homem deve ser visto

como um ser apto a livremente orientar a sua conduta, e, em razão dessa mesma possibilidade, fazer-se totalmente responsável pelas consequências do seu agir (tem-se, assim, um conceito de

culpabilidade que se fundamenta na ideia do “poder-agir-de-outro-

82

MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. p. 256.

83 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 606.

84 MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. p. 260.

85ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 608.

41

modo”). No entanto, esta espécie de argumentação não esteve

imune a críticas, sofrendo um profundo abalo a partir do momento em que se detectou que o “poder-agir-de-outro-modo” era um postulado cientificamente insustentável, posto que empiricamente

indemonstrável (isto é, passou-se a entender que o “poder-agir-de-outro-modo”, como toda e qualquer categoria metafísica, em nenhum momento comportaria um exercício de verificabilidade concreta).86

Vale lembrar que o conceito normativo de culpabilidade é o resultado de uma

evolução doutrinária. Inicialmente, valia-se o direito penal, da culpabilidade como

relação psíquica.

3.1.1 Evolução histórica do conceito de culpabilidade

A culpabilidade, desse ponto de vista histórico, aparecia como liame subjetivo

responsável por ligar a conduta delitiva praticada ao agente autor da conduta. Seria,

assim, um traço de subjetividade introduzido nos outros elementos do crime

(tipicidade e antijuridicidade), que são puramente objetivos.

Conforme temos observado ao longo de nossa exposição, na época

em que dominava o critério primário de estruturação do delito, consistente em colocar de um lado todos os componentes que se

acreditava eminentemente objetivos e de outro os que eram considerados puramente subjetivos, a culpabilidade era a denominação deste último conjunto de elementos. A culpabilidade

era a relação psicológica que havia entre a conduta e o resultado, assim como a relação física – causação do resultado - , enquanto à culpabilidade cabia a tarefa de tratar a relação psíquica. O conjunto

de ambas as relações dava por resultado o delito.87

Subsequentemente, a evolução dos conceitos doutrinários levou a

culpabilidade, antes entendida apenas como relação psíquica, à “teoria psicológica

da culpabilidade”, assim leciona Zaffaroni:

86

MEROLLI, Guilherme. Fundamentos críticos de direito penal. p. 261.

87ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 603

42

Dentro deste conceito, a culpabilidade não é mais do que uma

descrição de algo, concretamente, de uma relação psicológica, mas não contém qualquer elemento normativo, nada de valorativo, e sim a pura descrição de uma relação. Daí ter este conceito sido

arduamente defendido pelo pensamento positivista sociológico,

especialmente por Von Liszt. 88

Em razão da ineficiência da teoria psicológica da culpabilidade (apesar de a

mesma ter sido de importante valor à época), novamente a teoria responsável pela

descrição da culpabilidade passou por transformações, surgindo nova teoria,

posteriormente chamada por alguns de teoria complexa da culpabilidade, nesse

sentido discorre Baudel:

Críticas à parte, a teoria psicológica da culpabilidade representou um

avanço na medida em que rompeu de vez com qualquer resquício de responsabilidade objetiva no Direito Penal, ao exigir o liame subjetivo

entre o autor e o fato. Em 1907 houve uma revolução no pensamento até então dominante sobre a culpabilidade, quando Reinhardt Frank acrescentou novo

elemento a esta, intitulado por ele de normalidade das circunstâncias, transformando-a em um juízo de valor apoiado em uma situação psíquica.89

Completa, ainda, Zaffaroni:

Diante das deficiências apresentadas pela teoria psicológica da culpabilidade e da falta de explicação da culpa, da imputabilidade e

também de outros aspectos, como a necessidade exculpante, concebeu-se a culpabilidade como um estrato normativo da teoria do delito, isto é, como a reprovabilidade do injusto. Assim procedeu

Reinhard Frank, em 1907, mas sem retirar o dolo e a culpa da culpabilidade. Desta forma, resultava que a culpabilidade era ao mesmo tempo uma relação psicológica e um juízo de reprovação ao

autor da relação psicológica. É a chamada teoria complexa da culpabilidade.90

88

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 604.

89 CASTRO, Marcela Baudel de. O que é culpabilidade?. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n.

3521, 20 fev. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/23766>.

90 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 605

43

Posteriormente, salienta-se, após diversas discordâncias doutrinárias,

chegou-se ao ápice da teoria da culpabilidade. Neste passo, a culpabilidade adquiriu

caráter essencialmente mais normativo, que se deu, principalmente, através da

retirada da culpa e dolo e sua transferência para a tipicidade, passando, assim, a ter

o seu conceito uma modificação que o aproxima de um sentido de reprovabilidade.

Frank havia retomado o conceito aristotélico de culpabilidade, embora mantivesse dentro dela o dolo e a culpa. Quando, após os trabalhos de Hellmuth Von Weber, Alexander Graf zu Dohna e da

construção acabada de Hans Welzel (tudo no decorrer da década de trinta), o dolo e a culpa passaram a localizar-se no tipo, a culpabilidade ficou livre destes componentes que ninguém sabia bem

como tratar. Foi só então que se pôde falar de uma verdadeira teoria “normativa” da culpabilidade, posto que apenas neste momento a culpabilidade ficou limitada à pura reprovabilidade. Para autores acostumados a ver na culpabilidade uma carga imensa de elementos inexplicavelmente amalgamados, e, portanto, de explicitação bastante complexa e cansativa, a culpabilidade, liberada

do dolo e da culpa, tornava-se “vazia”. Esta é a razão pela qual imputou-se à teoria normativa da culpabilidade um “esvaziamento” da mesma. Na verdade, isto não ocorre: se observarmos atentamente a

teoria ou concepção normativa da culpabilidade veremos que ela está longe de ser vazia de conteúdo. Vemos na culpabilidade, como

critérios legais de aprovação do injusto ao seu autor, dois núcleos temáticos que constituem árduos problemas jurídicos: a possibilidade de compreensão da antijuridicidade e um certo âmbito de

autodeterminação do agente. Dito de outro modo: para reprovar uma conduta ao seu autor (isto é, para que haja culpabilidade), requer-se que este tenha tido a possibilidade exigível de compreender a

antijuridicidade de sua conduta e que tenha atuado dentro de um certo âmbito de autodeterminação mais ou menos amplo, ou seja, que não tenha estado em uma pura escolha.91

Entende-se, portanto, que tal teoria elimina os elementos psíquicos subjetivos

e resguarda o elemento normativo da reprovabilidade. Ainda, importante salientar,

que no decorrer de tal processo tais elementos não se perderam, apenas passaram

a ocupar lugar mais adequado, em razão disso, compreende-se a contestação ao

esvaziamento da teoria da culpabilidade.

91

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal brasileiro: parte geral. p. 605

44

Segundo a teoria normativa - ápice da teoria da culpabilidade - são requisitos

da culpabilidade que o sujeito que praticou a conduta típica e antijurídica tenha

consciência da antijuridicidade de sua conduta e que se pudesse exigir, no momento

da ação ou omissão, que o sujeito agisse de acordo com a norma. Assim explica

Zaffaroni:

São requisitos gerais da culpabilidade, entendida como reprovabilidade, que tenha sido exigível do sujeito a possibilidade de

compreender a antijuridicidade de sua conduta, e que as circunstâncias em que agiu não lhe tenham reduzido o âmbito de autodeterminação além de um limite mínimo. Tanto neste último

caso, como no anterior, exige-se que a possibilidade de motivar-se na norma encontre-se acima do limite mínimo.92

Portanto, quando se não é possível exigir do sujeito a compreensão da

antijuricidade da conduta em razão de capacidade psíquica reduzida não há que se

falar em culpabilidade, completa Zaffaroni:

Esse limite mínimo de exigibilidade não é alcançado, e, portanto, a culpabilidade é excluída, quando não se pode exigir do sujeito a

compreensão da antijuridicidade, o que pode ocorrer por falta de capacidade psíquica suficiente para tal (inimputabilidade), ou porque

se encontra num estado de erro acerca da antijuridicidade (erro de proibição). Igualmente, o umbral mínimo da exigibilidade não se alcança, ou não

é atingido, quando o autor encontra-se numa situação de necessidade exculpante (a outra hipótese contida no art. 24), ou quando o sujeito, conquanto capaz de entender o caráter ilícito do

fato, não o é capaz de determinar-se de acordo com essa compreensão, que é a segunda hipótese de inimputabilidade. 93

Há de salientar-se que, embora o conceito culpabilidade não esteja

discriminado na norma, o Código Penal Brasileiro, em seus artigos 21 e 26,

92

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 612/613

93 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 613

45

compreende a exigência da possibilidade do entendimento da antijuridicidade da

conduta.

O código penal exige a possibilidade do entendimento da ilicitude do fato, especialmente nos arts. 21 e 26. A lei não exige o efetivo entendimento da ilicitude, mas somente a possibilidade desse

entendimento. No sentido do direito penal, “entendimento” é sinônimo de compreensão, não bastando o conhecimento da ilicitude, porque a

ilicitude não constitui uma valoração, e os valores não são adquiridos pelo conhecimento, mas pela compreensão. A doutrina chama a esta compreensão de “consciência da ilicitude” (ou da antijuridicidade),

muito embora tal denominação não seja exata, porque a lei exige, unicamente, a possibilidade exigível do entendimento da ilicitude.94

Quanto ao objeto de tal conhecimento, explana Zaffaroni:

A possibilidade de compreensão pressupõe uma possibilidade de

conhecimento, que eventualmente pode chegar a ser um conhecimento efetivo no caso concreto. Ainda não dissemos em que consiste esta possibilidade de conhecimento, isto é, qual deve ser o

objeto do conhecimento. A doutrina é unânime na afirmação de que não se requer um conhecimento ou possibilidade de conhecimento da lei em si, o que

não ocorre de forma efetiva nem mesmo entre os juristas. O que se requer é a possibilidade do conhecimento, denominada “valoração

paralela na esfera do profano” que é a possibilidade de conhecimento análogo ao efetivamente requerido a respeito dos elementos normativos dos tipos legais. Não obstante, tampouco com

isto conseguimos esclarecer sobre o que deve versar este conhecimento paralelo, que é o conhecimento aproximado que tem o profano.

Costuma-se dizer que basta o conhecimento ou possibilidade de conhecimento da antijuridicidade, sem que seja necessário o conhecimento da penalização da conduta. Conforme a este critério, a

jurisprudência alemã decidiu que um estudante, que se apoderou de um livro de uma livraria, crendo erroneamente que o furto de uso não era delito, pois agira com a intenção de usá-lo e restituí-lo,

igualmente havia cometido um injusto culpável, já que não ignorava que era contrário à lei civil. Na lei brasileira, a solução seria semelhante àquela que a lei alemã

estabelece. Todavia, é mister admitir que a ilicitude possui graus ou intensidades, e quem só teve a possibilidade de entender uma

94

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 614.

46

ilicitude de menor intensidade, só poderá ser culpado na medida do

injusto que teve a possibilidade de entender.95

Percebe-se, portanto, que o objeto de tal conhecimento não se trata de um

conhecimento específico acerca da norma, ou sua penalização, pois isso não seria

efetivo nem mesmo entre juristas.

3.1.2. Imputabilidade

Analisadas as características do crime, importante analisar o agente que o

pratica, averiguando a capacidade do mesmo, em relação à compreensão da

ilicitude do ato que praticara, só assim se é possível imputar ao agente a

reprovabilidade de sua conduta, consequentemente a pena. Leciona Zaffaroni:

Agora nos resta averiguar qual é a capacidade psíquica que

necessita um autor para que haja culpabilidade, isto é, a capacidade psíquica de culpabilidade. Dito em outras palavras: para que se possa reprovar uma conduta a seu autor, é necessário que ele tenha

agido com um certo grau de capacidade, que lhe haja permitido dispor de um âmbito de autodeterminação.

A capacidade psíquica requerida para se imputar a um sujeito a

reprovação do injusto é a necessária para que lhe tenha sido possível entender a natureza de injusto de sua ação e que lhe tenha podido permitir adequar sua conduta de acordo com esta

compreensão da antijuridicidade. 96

No sentido etimológico, conforme pode-se observar no dicionário, a palavra

“imputar” tem o sentido de “atribuir (à alguém) a responsabilidade”, conquanto,

imputável é quem é “suscetível de se imputar”. Logo, no âmbito penal,

95

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 616.

96 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 615.

47

imputabilidade, em sentido genérico, refere-se a capacidade que tem o sujeito de ser

responsabilizado pela conduta que realizou.97

A imputabilidade penal é tema que vem sendo deveras discutido ao longo dos

tempos por diversos estudiosos, que almejam, entre outras coisas, conceituá-la, ao

mesmo tempo em que tentam estabelecer em qual período se encaixa. Estabelece

Zaffaroni:

A imputabilidade penal é um conceito que tem sido definido com amplitudes muito diversas, e, em consequência delas, a ele tem sido

atribuídas localizações também bastante diferentes. Para alguns foi considerada a total incapacidade psíquica para o delito e devia situar-se com anterioridade à própria conduta [...] enquanto, no outro

extremo, estão aqueles que crêem que não faz parte do delito e sim da teoria da sanção, com o que sua ausência daria lugar à aplicação

de uma medida de segurança ao invés de uma pena.98

Para Callado, “à imputabilidade segue-se lógica e necessariamente a

responsabilidade, voltada àquele que deve responder por sua culpa, a fim de lhe

sofrer as consequências”. E ainda completa que “livre, o homem é artífice do seu

destino”. 99

Imputabilidade, em sentido demasiado amplo, é a imputação física e psíquica,

mas, como explica Zaffaroni nem a lei nem a doutrina a utiliza com tamanha

amplitude. Em geral, com ela se pretende designar a capacidade psíquica de

culpabilidade. 100

Compreende-se, portanto, que a imputabilidade é uma característica da

conduta que depende de um estado do sujeito.

Para Zaffaroni, nenhuma explicação satisfaz tão bem os requisitos de “uma sã

teoria do delito” quanto o conceito no qual a imputabilidade é “capacidade psíquica

97

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. p.414.

98 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 623.

99 OLIVEIRA, Gilberto Callado de. Garantismo e barbárie: a face oculta do garantismo penal. p. 40.

100 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 623

48

de ser sujeito de reprovação, composta da capacidade de compreender a

antijuridicidade da conduta e da de adequá-la de acordo com esta compreensão”.101

3.1.3. Inimputabilidade

Ao sujeito que não tem capacidade psíquica para a compreensão da ilicitude

do injusto que praticou atribui-se o título de inimputável.

A incapacidade plena do sujeito de compreender a antijuridicidade da conduta

que praticou deriva, invariavelmente, de uma perturbação da consciência. Entende-

se que, ao passo em que tal perturbação da consciência não resulta na atipicidade

da conduta, passa-se a surgir, então, a figura da ausência da culpabilidade.

Neste posicionamento manifesta-se Zaffaroni:

A incapacidade psíquica para compreender a antijuridicidade ou seja,

o que faz a pessoa “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato”, não pode ser coisa adversa de uma perturbação da

consciência. [...] Entretanto, se a perturbação da consciência não motivou uma ausência de tipicidade, nos depararemos com a possibilidade de uma ausência de culpabilidade. O advérbio

“inteiramente” possui o sentido de salientar a gravidade da perturbação, mas não é sinônimo de “inconsciência”, e sim de uma grave perturbação da consciência que torna a pessoa inteiramente

incapaz de entendimento.102

Em razão da dificuldade de conceituação das enfermidades mentais,

existente até mesmo no âmbito da psiquiatria, para o direito penal, pouco importa a

patologia do agente, no sentido técnico. O que realmente se leva em consideração

para a verificação da culpabilidade é o esforço demandado pelo agente para o

mesmo pudesse compreender a ilicitude o injusto praticado.

Já mencionamos que a consciência é uma função sintetizadora, ou melhor, um conceito clínico, com o qual se sintetizada o funcionamento de toda a atividade psíquica. A consciência não deixa

de ser um conceito prático, no sentido psiquiátrico da expressão,

101

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 626

102 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 627.

49

talvez indefinível em uma fórmula geral, mas para o trabalho de

diagnóstico mostra-se eficaz: afirma que não se encontra perturbada quando o sujeito parece revelar ao interrogatório um quadro de comportamento em que os aspectos intelectuais e afetivos de seu

psiquismo se acham harmonicamente dispostos, permitindo-lhe manter um adequado contato e adaptação com o mundo objetivo. Denomina-se sensorium a todo o complexo funcional que

desemboca na consciência, mas, por mais que pesquisemos os tratados de psiquiatria, veremos que neles mão há uma definição satisfatória, expressando um conhecido especialista que, “embora

seja um conceito claro, não podemos defini-lo bem” (Bleuler). Cremos que não é um conceito facilmente definível, porque se trata mais de uma impressão clínica do que de um conceito abstrato

disponível. Fundamentalmente, os elementos que se tomam em conta são a situação no tempo e no espaço psíquicos. Quando o psiquiatra toma

seu lugar diante do paciente, inicia um diálogo em que progressivamente vai fazendo o seu diagnóstico, sendo as primeiras

perguntas feitas de forma a descartar as perturbações grosseiras de consciência. À medida que o diálogo avança, a indagação se vai tornando mais fina, até chegar a abarcar, dentro do possível, todas

as relações de vida do paciente. O limite entre o normal e o patológico não é precisamente o que nos interessa aqui, e sim poder formar uma ideia, do esforço que o sujeito devia realizar para

compreender a antijuridicidade de sua conduta.

A diferença entre o normal e o patológico é muito discutível, é algo reservado aos psiquiatras, sem contar que o conceito de

“normalidade” encontra-se profundamente desprestigiado, a ponto de alguns deles preferirem falar de uma norma “corresponsiva”: o “normal” o é para cada um, sem que se possa estabelecer uma

norma geral (Kurt Kolle). Para os efeitos da imputabilidade, não é o conceito de “normalidade” o que nos serve, e o que o psiquiatra nos deve esclarecer são as

características psíquicas que dificultaram ou facilitaram a compreensão da antijuridicidade no momento da realização do

injusto. Quanto maior for a perturbação da consciência observada pelo psiquiatra e pelo juiz, maior será o esforço que o sujeito deve ter feito para compreender a antijuridicidade e, consequentemente,

menor há de ser a reprovabilidade. O objetivo da perícia psiquiátrica é precisamente dar ao tribunal uma ideia da magnitude deste esforço, que é o que cabe ao juiz valorar para determinar se

excedida o marco do juridicamente exigível e, portanto, reprovável. 103

O diagnostico que realiza o profissional psiquiatra, no afã de identificar a

patologia do paciente e classificá-lo, é útil à culpabilidade no sentido de se definir o

grau da capacidade psíquica do sujeito, possibilitando que desta forma se identifique

103

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal brasileiro: parte geral. p. 627/628.

50

o esforço que o mesmo depreendeu para compreender a antijuridicidade de sua

conduta e a possibilidade de adequar-se de acordo com a norma. Quando realizado

de forma isolada pouco contribuí à verificação da culpabilidade.

Não se trata de o psiquiatra fazer um diagnóstico localizando uma doença e classificando-a de acordo com a nosotaxia psiquiátrica, que é em geral complicada e discutida entre os próprios psiquiatras. Este diagnóstico pode ajudar a compreender e quantificar a magnitude do esforço e a possibilidade de sua realização, mas por si mesmo diz muito pouco. Isto porque as doenças mentais mais graves, como a demência, por exemplo (que implica uma deterioração progressiva e irreversível do psiquismo, anatomopatologicamente reconhecível), em seus primeiros sintomas pode ser que ainda não implique uma incapacidade psíquica de culpabilidade, ao menos para certos delitos que não exigem maior memória ou atenção. 104

Extrai-se que, como a imputabilidade é uma característica da conduta

diretamente relacionada ao estado do agente, a capacidade psíquica para

verificação da presença da culpabilidade, portanto, deve ser medida relacionada a

cada delito em si.105

Importante salientar que, embora a lei não conceitue as condições

psicológicas que originam a perturbação da consciência, que gera a incapacidade

psíquica de culpabilidade, ela as menciona, no artigo 26 do Código Penal, como

enfermidade mental e desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

Tanto no âmbito da enfermidade como no do desenvolvimento mental insuficiente abundam casos problemáticos. Temos observado que a incapacidade psíquica para compreender a antijuridicidade de

uma conduta não pode ser determinada mediante o simples etiquetamento do sujeito dentro de uma entidade nosotáxica, mas que se requer a valoração do esforço que o sujeito devia realizar

para compreender a antijuridicidade, tarefa que incumbe ao juiz e a respeito da qual o perito só deve ilustrar, sendo o diagnóstico um

104

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 628.

105ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 628.

51

simples dado informativo. Uma inadequada prática judiciária permite

aos peritos concluírem seus laudos afirmando ou negando tivesse o sujeito compreendido a criminalidade do ato. Semelhante afirmação usurpa a função judicial, que é a única a que incumbe determiná-lo,

por tratar-se de um grau de exigibilidade e não de uma simples comprovação técnico-médica.106

Diversos são os posicionamentos quanto à classificação da culpabilidade,

uma vez que até mesmo a psiquiatria sofre com tais divergências, de escola para

escola. Para diminuir tal dificuldade, Zaffaroni considera que “não é função do direito

penal tomar partido por escolar psiquiátricas nem pelas psicológicas”107

3.1.4. Semi-imputabilidade

O parágrafo único do artigo 26, do CP, diz que “a pena pode ser reduzida de

um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por

desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de

entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse

entendimento”. Por isso, tem-se que assunto tão desafiador (ou até mais) quanto à

inimputabilidade penal é a semi-imputabilidade.

Sobre tal dificuldade assevera Zaffaroni:

É obvio que o limite entre a imputabilidade e a inimputabilidade, nem sempre se apresenta claro e de fácil compreensão e, por tal razão, também o limite entre a culpabilidade plena e a culpabilidade

diminuída estabelecida pelo parágrafo único do art. 26 não pode deixar de constituir algo bastante problemática108

Nesta hipótese há o delito, com todos os elementos da teoria do crime

presentes, inclusive o elemento da culpabilidade, entretanto, neste caso, em razão

106

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 629.

107 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 629

108 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p. 628

52

de uma perturbação de consciência que não chega a configurar uma

inimputabilidade, a culpabilidade é reduzida.

Tem-se, no que tange aos agentes classificados como semi-imputáveis, que

aos mesmos imputa-se a pena, no entanto, a mesma é reduzida, podendo ainda ser

substituída pela medida de segurança, conforme entendimento do juiz. Tal

procedimento está estabelecido no artigo 98 do CP, quando diz que “na hipótese do

parágrafo único do artigo 26 desde Código e necessitando o condenado de especial

tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela

internação, ou tratamento ambulatorial”.

Para Falconi, tal discricionariedade não é razoável, pois, entende que se há

dúvida quanto a sanidade mental do sujeito, o mesmo deve ser submetido aos

tratamentos contidos no art. 96 do CP:

Havendo dúvidas quanto à sanidade mental do agente, melhor será qualquer dos tratamentos prescritos em ambos os incisos do artigo 96 do Código Penal, considerado caso a caso. Se o agente é

perturbado mental ou sofre qualquer anomalia psíquica, não será a diminuição da pena que irá resolver seu problema criminógeno.

Sanção penal não pode constituir panacéia para qualquer mal, muito menos em relação aos lesados mentalmente, ainda que em pequena escala 109

Conforme se verá adiante, a diminuição da pena para o psicopata pouco surte

efeito.

3.2 CLASSIFICAÇÃO PENAL DO PSICOPATA

Assunto que muito se discute é a punibilidade do psicopata, uma vez que sua

adequação em uma dessas possibilidades é de difícil certeza. Nem mesmo a

psiquiatria consegue fornecer com precisão um conceito que seja esclarecedor,

principalmente, para o direito penal, no que tange a sua capacidade volitiva. Em

razão das incertezas emanadas pelas ciências responsáveis pela classificação de tal

transtorno, pondera Zaffaroni:

109

FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 226.

53

Outro dos problemas que continuam preocupando a ciência penal é o das chamadas psicopatias ou personalidades psicopáticas. A

psiquiatria não define claramente o que é um psicopata, pois há grandes dúvidas a seu respeito. Dada esta falha proveniente do

campo psiquiátrico, não podemos dizer como trataremos o psicopata no direito penal. Se por psicopata considerarmos a pessoa que tem uma atrofia absoluta e irreversível de seu sentido ético, isto é, um

sujeito incapaz de internalizar ou introjetar regras ou normas de conduta, então ele não terá capacidade para compreender a antijuridicidade de sua conduta, e, portanto, será um inimputável.

Quem possui uma incapacidade total para entender valores, embora os conheça, não pode entender a ilicitude.110

Embora tenhamos visto que o psicopata não possui desenvolvimento psíquico

pleno, uma vez que sua patologia afeta diretamente a capacidade de domínio de

seus suas emoções e impulsos, e, consequentemente, suas decisões, tal sujeito tem

capacidade psíquica para entender, ou ao menos conhecer, a antijuridicidade de sua

conduta. O posicionamento mais aceito atualmente entre os psiquiatras, no que

tange a capacidade mental do psicopata, nos diz que os mesmos são conscientes

dos atos que praticam, entretanto sua capacidade volitiva é comprometida. Em

razão de tal perturbação mental, a maior parte da doutrina e jurisprudência classifica

o psicopata como semi-imputável. 111

Assim, configurada a semi-imputabilidade, o condenado teria a sua pena

reduzida, ou seja, o quantum seria inferior a do indivíduo imputável.

Entretanto, uma das observações que se faz em desfavor desta medida é

que, apesar da pena ser reduzida, o psicopata será encarcerado juntamente com os

presos “comuns”, sendo esta mais uma problemática, levando-se em consideração a

habilidade de manipulação do psicopata. Não raro os casos onde presos portadores

da psicopatia viram líderes dentro dos presídios.112

110

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Manual de direito penal

brasileiro: parte geral. p.632.

111 COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

112COSTA, Anderson Pinheiro da. A ineficácia do direito penal brasileiro em face do psicopata

delinquente.. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 23 set. 2014. Disponível em:

<http://www.conteudojuridiuco.com.br/?colunas&colunista=55692_&ver=1952>.

54

Utiliza-se da equidade in casu na tentativa de suprir a deficiência legislativa,

no que tange ao tratamento dado ao psicopata. Neste caso, enquadra-se o

psicopata no rol dos semi-imputáveis e aplicam-se as sanções a estes destinadas.

Entretanto, tais medidas de pouco servem, são meros contratempos, o que acaba

por gerar o não cumprimento dos objetivos da pena.

Inclusive, uma das características que mais se destacam no psicopata é a

incapacidade de aprender com sanções.

Entende-se que, a partir desta afirmativa, o Psicopata se preso, após

cumprir sua pena reincidirá, cometerá os mesmos crimes de antes, pois é incapaz de aprender com punições ou experiências, não entende a punição como correção. A tríade funcional, prevenir, punir

e ressocializar, não se efetiva, então, a reincidência de crimes cometidos é exorbitante, justamente por acharem que não estão

fazendo nada de errado.113

Mesmo entendimento apresenta Hare, quando diz que os psicopatas “estão

sempre em complicações, não aprendendo nem com a experiência nem com a

punição”.114

Uma das preocupações acerca do psicopata, diz respeito ao fato de que,

além do mesmo não aprender com experiência e com sanções, não existe ainda

tratamento terapêutico ou medicamentoso.

Recentemente a Ministra do STJ Nancy Andrighi, se manifestou neste

sentido:

Tanto na hipótese do apenamento quanto na medida socioeducativa

– ontologicamente distintas, mas intrinsecamente iguais – a repressão do Estado traduzida no encarceramento ou na internação,

apenas postergam a questão quanto à exposição da sociedade e do próprio sociopata à violência produzida por ele mesmo, que provavelmente, em algum outro momento, será replicada. 26. Frise-

se, aqui, esse aspecto, pois na atual evolução das ciências médicas não há controle medicamentoso ou terapêutico para essas pessoas e, como dito anteriormente, a reincidência comportamental é quase

uma certeza.115

113

TRINDADE, Jorge; BEHEREGARAY, Andréa; CUNEA, Mônica. Psicopatia – a máscara da

justiça. p. 97/98.

114 HARE, Robert D. Psicopatia: Teoria e pesquisa. p. 9

115BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.306.687, Relator: Ministra Nancy

Andrighi. 18 março de 2014

55

Uma vez que as sanções aplicadas aos psicopatas não surtem efeito, cabe o

questionamento quanto ao cumprimento ou não dos objetivos da pena.

3.3. FINALIDADE DA PENA

As Escolas Penais divergem quanto as posições adotadas acerca da

finalidade da pena, cada uma com suas máximas filosóficas, almejando a

hegemonia sobre a excelência da sanção para os fins do direito penal.

Explica, sucintamente, Falconi:

Para os clássicos, a pena tem finalidade de “RETRIBUIÇÃO”. É uma

forma de corrigir o mal causado mediante a aplicação de outro mal ao criminoso. São as chamadas teorias “absolutas”. Partindo-se da premissa de que o homem é detentor do “livre-arbítrio”, sendo por

isso moralmente responsável (responsabilidade moral), se ele descumpre ou infringe, terá contra si a pena, que funciona como retribuição ao mal causado. Essa Escola tem sua atenção voltada para dois aspectos do Direito Penal: “crime” e “castigo”. Essa

dicotomia é por demais simplistas para corrigir todos os problemas que cercam o universo do delito ou crime. Pretender que a pena

solucione todos os problemas do Direito Penal, é pretender uma viagem à lua a guisa de turismo116

Quanto à Escola Positivista destaca que:

Os positivitas raciocinam diferentemente em relação à pena e suas consequências práticas. Essa Escola pratica as teorias “relativas”, e

entende que a pena deve ter a finalidade “ULTILITÁRIA”. Assim,

deve ela não-somente ter por escopo a punição, mas também recuperar o delinquente para o convívio social. Entendem seus

seguidores que não é possível tratar toda a problemática cuidando apenas do crime e do castigo. Para eles, há que se visualizar o “homem delinquente” e, a partir daí, tratar do crime e sua

consequência. A pena deverá servir, ademais, como “prevenção”. Essa “prevenção” poderá ser “geral” que é aquela que reflete sobre os demais elementos da sociedade, servindo de “intimidação” para

aqueles que, porventura pretendam praticar qualquer conduta criminosa. A prevenção “especial”, de sua parte, reflete diretamente

sobre a pessoa do criminoso. Trata-se aqui de demonstrar ao

116

FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 249.

56

criminoso que, se errou, o Estado o punirá, visando, assim, à sua “ressocialização”. Em síntese, é a readaptação do homem que

interessa a essa Escola como objetivo final.117

Conforme explicado no capítulo anterior, para o psicopata a condição da pena

é apenas um contratempo para que continue a exercer sua atividade. Pouco se

amedronta com a possibilidade de ser punido, logo a função de intimidação pouco

lhe tem efeito, todavia, a questão da ressocialização também não lhe atinge. A única

função da pena que de fato se é cumprida é a objetivada pela Escola Penal

Clássica, ou seja, a função retributiva da pena. Entretanto, se é sabido que tal

objetivo da pena, já ultrapassado, não surte efeito positivo nem mesmo entre os

sujeitos que não têm a patologia da psicopatia. Ainda, além de não surtir efeito

positivo, como se verificou anteriormente, surte efeito negativo em desfavor do

agente e da sociedade, de modo geral.

Levando-se em consideração as características de manipulação do psicopata,

por exemplo, quando este tem sua liberdade constrangida, os indivíduos que o

cercam são facilmente corrompidos em prol da realização de seus objetivos

pessoais.

Comenta Nancy Andrighi:

Diante do quadro de zona fronteiriça entre a sanidade mental e a loucura, referenciado por Antônio José Eça, onde os instrumentos legais disponíveis mostram-se ineficientes, tanto para a proteção social como a própria garantia de vida digna aos sociopatas, é que agora se buscam alternativas, dentro do arcabouço legal para, de um lado, não vulnerar as liberdades e direitos constitucionalmente assegurados a todos e, de outro turno, não deixar a sociedade refém de pessoas, hoje, incontroláveis nas suas ações, que tendem à recorrência criminosa.118

117

FALCONI, Romeu. Lineamentos de direito penal. p. 249.

118 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.306.687, Relator: Ministra Nancy

Andrighi. 18 março de 2014.

57

Fica evidente, diante de tal desserviço da pena, que já está na hora de se

adotar novas políticas criminais para tratar de assunto tão delicado. Nenhuns dos

objetivos da pena se cumprem (a não ser o objetivo retributivo), a reincidência dos

agentes com psicopatia é altíssima, praticamente tida como certa, conquanto, o

número de psicopatas no sistema prisional vem aumentando demasiadamente.

Notório que o sistema encontra-se em posição delicadíssima, uma política criminal

que atenda as necessidades do agente com a patologia é, conforme verifica-se, de

extrema necessidade.

O princípio da individualização da pena vem sendo deixado de lado, o direito

penal, que deveria olhar de forma individual para cada individuo, a fim de lhe imputar

a devida sanção, olha de forma genérica e pune de forma genérica, promovendo

assim a injustiça.

O princípio da equidade, se for a única solução no momento, deve ao menos

ser utilizado no sentido de adequação deste indivíduo, de modo que o aproxime de

uma pena mais humanizada. Reduzir a pena do psicopata, através do

enquadramento do mesmo na categoria do dos semi-imputáveis, facultando ao

julgador a escolha entre redução da pena, ou a imputação da medida de segurança,

é negar que a natureza deste é diferente dos demais, é negar-lhe, o devido

tratamento, é negar-lhe a justiça.

CONCLUSÃO

Pôde-se verificar que o princípio da equidade é de grande importância para

que se alcance a decisão mais próxima da Justiça, uma vez que tal princípio é

utilizado de forma a preencher as lacunas legislativas decorrentes da universalidade

da norma.

Em resumo, pôde-se verificar que o princípio da equidade, responsável por

suprir o abstracionismo legislativo, no caso dos psicopatas, vem sendo utilizado de

modo a enquadrá-los no rol dos semi-imputáveis, imputando-lhes, em regra, a

diminuição da pena e, quando a critério do juiz entender-se necessário, a medida de

segurança.

Existem inúmeras divergências acerca da psicopatia, inclusive no meio da

própria psiquiatria. A corrente majoritária acredita que o psicopata é portador de

patologia que afeta sua consciência volitiva, entretanto, não afeta sua lucidez, assim,

entende-se que o psicopata consegue compreender a ilicitude de sua conduta,

porém, apresenta dificuldades no que tange ao controle de seus impulsos. A

capacidade volitiva é de suma importância para a configuração da culpabilidade do

agente.

Ao considerado semi-imputável, conforme estabelece o artigo 26, parágrafo

único, do Código Penal, será atribuída a redução da pena, ou, até mesmo, a

imputação da medida de segurança.

Ocorre que a imputação da pena comum ao psicopata de nada lhe surte

efeito, em razão do mesmo não possuir emoções, não sentir medo da punição, nem

poder ser ressocializado, uma vez que não possui juízo interno que condene seus

atos. Também foi possível verificar que não há tratamento para o portador de tal

patologia, nem mesmo a existência de remédios.

Sendo assim, verifica-se que a pena, no que tange á sua aplicação nos

sujeitos portadores da psicopatia, não cumpre com seus objetivos, a não ser o

objetivo da pena defendido pela Escola Clássica Penal: a função retributiva da pena,

que consiste, grosso modo, na retribuição do mal injusto causado pelo criminoso,

entretanto, tal objetivo em pouco ajuda, uma vez que não surte efeito nem mesmo

59

nos indivíduos que não possuem a patologia da psicopatia, indivíduos, esses, para

qual tal objetivo foi traçado.

Concluí-se, portanto, que uma nova política criminal deva ser criada, no afã

de proporcionar ao psicopata o devido tratamento, para que ao menos o fim da pena

seja cumprido. Não pode o Estado negligenciar a condição deste indivíduo, uma vez

que dessa forma o mesmo estaria caminhando em sentido inverso ao caminho que

se propôs a seguir: o caminho da Justiça.

REFERÊNCIAS

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