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LUÍS PEREIRA COUTINHO O PROBLEMA DAS ATRIBUIÇÕES E DAS COMPETÊNCIAS DAS AUTARQUIAS LOCAIS (E DO SEU POSSÍVEL ESVAZIAMENTO...)

O PROBLEMA DAS ATRIBUIÇÕES E DAS COMPETÊNCIAS …icjp.pt/sites/default/files/media/365-228.pdf · neste caso particular, há que ter em conta que o significado normativo do princípio

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LUÍS PEREIRA COUTINHO

O PROBLEMA DAS ATRIBUIÇÕES E DAS COMPETÊNCIAS DAS AUTARQUIAS LOCAIS (E DO SEU POSSÍVEL ESVAZIAMENTO...)

O PROBLEMA DAS ATRIBUIÇÕES E DAS COMPETÊNCIAS

DAS AUTARQUIAS LOCAIS (E DO SEU POSSÍVEL ESVAZIAMENTO…)*

Luís Pedro Pereira Coutinho**

Sumário:1. Preliminares;

2. Princípio da descentralização em sentido material e atribuições autárquicas;

3. O possível esvaziamento das atribuições e competências autárquicas;

4. Em especial: a discricionariedade normativa autónoma.

1. Preliminares

Colocar um “problema das atribuições das autarquias locais” é colocar um

problema jurídico-constitucional. Ou seja, a questão fundamental é a de saber em que

medida o legislador se encontra vinculado em sede de determinação das atribuições

autárquicas ou, de outro modo, até que ponto a tarefa legislativa ao nível da enumeração

das ditas atribuições é uma tarefa de concretização de princípios constitucionais –

muito em particular, do princípio da descentralização – e, sendo-o, de que tipo de

concretização se trata.

Que a tarefa do legislador ao enumerar tais atribuições e competências é uma

tarefa concretizadora de princípios constitucionais constitui algo assumido pelo próprio

legislador. No artigo 1.º da Lei Quadro de Transferência de Atribuições e Competências

para as Autarquias Locais (Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro1) firma-se que “a

presente lei estabelece o quadro de transferência de atribuições e competências para as

autarquias locais, bem como de delimitação da intervenção da administração central e

da administração local, concretizando os princípios da descentralização administrativa

e da autonomia do poder local”.

Semelhante referência cumulativa aos princípios da descentralização

administrativa e da autonomia local não deve fazer esquecer que se trata de princípios 1* Estudo correspondente a exposição a proferir no V Curso de Pós-Graduação em Direito das Autarquias Locais, organizado pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas e coordenado pelos Senhores Professores Doutores Jorge Miranda e José de Melo Alexandrino, aos quais agradeço.** Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

*

Na versão correspondente à Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro.

que se encontram entre si numa relação de especialidade. Efectivamente, a autonomia

local – a par da autonomia universitária e da autonomia das associações públicas – é

uma concretização particular de um princípio geral de descentralização administrativa

em sentido próprio ou material, no sentido a ser precisado no ponto seguinte.

Acrescente-se que o legislador, assumindo-se certeiramente como concretizador

de princípios constitucionais, omite, no citado artigo 1.º da Lei n.º 159/99 (e

desconsiderando para já o artigo 2.º, n.º 2, da mesma Lei), o princípio da

subsidiariedade. Tal, apesar de o mesmo princípio, na sua dimensão interna, relevar

precisamente da repartição material de atribuições entre Estado e entes menores

autónomos e ser objecto de menção expressa na textualidade constitucional desde 1997

(artigo 6.º, n.º 1)2.

Trata-se, no entanto, de omissão sem relevância de monta e não apenas tido em

conta o disposto no referido artigo 2.º, n.º 2. Desde logo, e genericamente, na patente

medida em que cumpra sempre aceder imediatamente aos princípios constitucionais e

apurar as soluções legislativas como concretizadoras de tais princípios

independentemente daquilo que o legislador haja ou não haja assumido. Por outro lado,

neste caso particular, há que ter em conta que o significado normativo do princípio da

subsidiariedade – admitindo-se que seja um “significado descendente”3, isto é,

determinativo de um alargamento das atribuições municipais por forma a que as

mesmas sejam prosseguidas em termos “mais próximos dos cidadãos (municípios e

freguesias)”4 –, por muito que proclamado pelo legislador de revisão em 1997, não

acrescenta nada de verdadeiramente relevante ao que resultava já de um princípio geral

de descentralização em sentido material e de um seu concretizador princípio de

autonomia local.

Diga-se, de resto, que a omissão do princípio da subsidiariedade no citado artigo

1.º da Lei n.º 159/99 parece não ter sido inconsciente. Mais: parece ter relevado

precisamente do facto de se assumir que o mesmo princípio não tem verdadeiramente

um significado normativo próprio no confronto com o princípio da descentralização no

2 Em geral sobre princípio da subsidiariedade, cfr., por todos, MARGARIDA SALEMA DE OLIVEIRA MARTINS, O Princípio da Subsidiariedade em Perspectiva Jurídico-Política, Coimbra Editora, Coimbra, 2003.3 Para a distinção entre “significado ascendente” e “descendente” do princípio da subsidiariedade na sua dimensão interna, pronunciando-se em sentido contrário ao admitido no texto, cfr. CARLOS BLANCO DE MORAIS, A Dimensão Interna do Princípio da Subsidiariedade no Ordenamento Português, Revista da Ordem dos Advogados, 1998, p. 779-821, p. 792 segs.4 Na formulação de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., I, 2007, p. 233-234.

que respeita à repartição de atribuições entre Estado e entes menores autónomos. A

engenhosa formulação que se pode ler no artigo 2.º, n.º 2, do referido diploma sugere

isto mesmo: “a descentralização administrativa assegura a concretização do princípio

da subsidiariedade, devendo as atribuições e competências ser exercidas pelo nível de

administração melhor colocado para as prosseguir com racionalidade, eficácia e

proximidade dos cidadãos”. Com efeito, bem lido semelhante enunciado, o que se

indicia é que não há nada de relevante ao nível da concretização do princípio da

subsidiariedade que não seja já “assegurado” pela concretização do princípio da

descentralização…

2. Princípio da descentralização em sentido material e atribuições autárquicas

Na descentralização administrativa em sentido próprio ou material, está em

causa algo que não releva exclusivamente da prossecução de atribuições administrativas

por pessoas colectivas distintas da pessoa colectiva Estado. Efectivamente, para que

haja descentralização em sentido próprio ou material, é necessário que se reúnam

diferentes requisitos5.

São esses:

1) Um substracto pessoal colectivo, ou seja, uma comunidade de interessados

distinta da comunidade geral representada pelo Estado;

5 Tal como os enumerámos em As Faculdades Normativas Universitárias no Quadro do Direito Fundamental à Autonomia Universitária, Almedina, Coimbra, 2004, p. 61 segs. Ainda sobre o princípio da descentralização e, em particular, o princípio da autonomia local, cfr., em particular, JOÃO BAPTISTA MACHADO, Participação e Descentralização – Democratização e Neutralidade na Constituição de 1976, Revista de Direito e Estudos Sociais, 1975, p. 1-108; DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, I, 3.ª ed. (com a colaboração de Luís Fábrica, Carla Amado Gomes e J. Pereira da Silva), Almedina, Coimbra, 2006, p. 873 segs.; JORGE MIRANDA, As Associações Públicas no Direito Português, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XXVII, 1986, p. 57-90 e Manual de Direito Constitucional – III – Estrutura Constitucional do Estado, 5.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 210 segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA / ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, III, Lisboa, 2007, p. 143 segs.; PAULO OTERO, O Poder de Substituição em Direito Administrativo – Enquadramento Dogmático-Constitucional, Lex, Lisboa, 1995, p. 673 segs.; JOSÉ MANUEL SÉRVULO CORREIA, Noções de Direito Administrativo, I, Danúbio, Lisboa, 1982, p. 125 segs.; ANDRÉ FOLQUE, A Tutela Administrativa nas Relações entre o Estado e os Municípios (Condicionalismos Constitucionais), Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 34 segs. Muito particularmente, insistindo em que a descentralização deve ser compreendida em sentido material, cfr. VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, Almedina, Coimbra, 1997, p. 78 segs.

2) Atribuições próprias, ou seja, um conjunto de tarefas ou interesses de

natureza pública assumidos pela comunidade em causa;

3) Competências próprias, ou seja, um conjunto de poderes instrumentais à

prossecução de tais tarefas6;

4) Auto-governo, ou seja, o exercício destas competências por órgãos próprios

representativos da comunidade de interessados em causa;

5) Auto-responsabilidade ou autonomia em sentido estrito, ou seja, o exercício

das mesmas competências independentemente de poderes condicionantes de

intervenção intra-administrativa estadual. Fala-se de todos aqueles poderes

cujo exercício possa, directa ou indirectamente, determinar ou interferir com

as opções de mérito do ente auto-administrado. Por estas opções, os órgãos

do ente em causa respondem primordialmente perante a referida comunidade

de interessados.

No âmbito desta exposição, interessa particularmente o segundo termo referido:

atribuições próprias. E, reiterando o anteriormente exposto relativamente ao

enquadramento ou sede de resolução do problema, explicite-se novamente que o que

está em causa é determinar em que medida se encontra o legislador vinculado pelo

princípio da descentralização ao nível da conformação das atribuições das autarquias

locais.

A mesma questão pode ser colocada de outro modo, o qual incida sobre o tipo

de concretização que está em causa no que respeita à determinação das atribuições

autárquicas. Perguntar-se-á então: é a concretização do princípio da descentralização

pelo legislador, uma concretização politicamente conformadora ou, apenas, uma

concretização juridicamente conformadora7?

6 Utilizamos aqui a expressão competência em sentido estrito, um sentido distinto do sentido lato, recentemente explorado por DAVID DUARTE, A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa – A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, Almedina, Coimbra, 2006, p. 373 segs.7 Inspiramo-nos aqui na distinção, por VIEIRA DE ANDRADE, entre “concretização jurídico-interpretativa” e “concretização jurídico-política” da Constituição (cfr. Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria, in Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional – Colóquio no 10.º Aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 75-90, p. 80) e apenas não a acompanhamos na medida em que questionemos que a tarefa de precisão de soluções jurídicas se confunda com uma “tarefa interpretativa”, antes estando sempre em causa uma tarefa hermenêutica relevante da projecção de parâmetros em normas, cfr. o nosso A Autoridade Moral da Constituição – Da Fundamentação da Validade do Direito Constitucional, dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas, inédito.

Responder à questão colocada passa por verificar se, no que diz respeito às

autarquias locais, há ou não há aquilo que se usa designar por “interesses próprios por

natureza”, que, enquanto tais, tenham necessariamente de ser prosseguidos pelas

autarquias locais e não por um qualquer outro ente, muito em particular, pelo Estado.

Diga-se, neste contexto, que há modalidades de administração autónoma em

cujo âmbito há, inequivocamente, um conjunto de atribuições apenas susceptíveis de

prossecução pelo ente menor. É o que se passa com a administração autónoma

universitária – uma administração necessariamente relevante da prossecução de tarefas

científicas e pedagógicas (ou não científica e pedagogicamente indiferentes) que não

podem ser prosseguidas pelo Estado (pelos menos, a título não supletivo), mas apenas

pelas corporações públicas universitárias. Tal, sob pena de serem postos em causa os

fundamentos dessa modalidade de descentralização (liberdades de criação científica, de

ensinar e de aprender)8.

Assim sendo, a concretização da autonomia universitária pelo legislador no que

diz respeito à definição das atribuições correspondentes será uma concretização

juridicamente conformadora e não uma concretização politicamente conformadora – o

legislador está positivamente vinculado ao princípio constitucional em causa no

momento da sua concretização, cabendo-lhe tão só exequibilizá-lo.

Mas já no que diz respeito à administração local autárquica, tende a reconhecer-

se que a tarefa de determinar os interesses próprios a serem prosseguidos é uma tarefa

que cabe ao legislador no exercício de uma larga “liberdade de conformação”. É de

dizer, inclusivamente, que tal entendimento é adoptado mesmo por aqueles Autores que

não negam uma “reserva de interesses próprios” a favor das autarquias locais,

relevando, então, tal reserva como uma reserva pós-legislativa – isto é, como uma

reserva politicamente conformada pelo legislador, mesmo que nos limites do princípio

da descentralização e, em especial, do princípio da autonomia local. E, efectivamente,

será difícil desmentir que, ao nível da enumeração das atribuições municipais, cabe ao

legislador uma tarefa politicamente conformadora (e não juridicamente conformadora),

isto é, uma tarefa não positivamente vinculada a um princípio constitucional e

meramente destinada a conferir-lhe exequibilidade (o que sucede no caso da autonomia

universitária), mas apenas negativamente vinculada a um princípio constitucional9. 8 Cfr. As Faculdades…, p. 56 segs. e 135 segs.9 A este respeito, cfr., em particular, AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Teoria dos Regulamentos, 1.ª parte, Revista de Direito e Estudos Sociais, 1980, p. 1-19, p. 15, nota 12; MARCELO REBELO DE SOUSA, Distribuição pelos Municípios de Energia Eléctrica de Baixa Tensão, Colectânea de Jurisprudência, V, 1988, p. 26-39, p. 30; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Autonomia

E será difícil desmenti-lo na medida em que muito dificilmente – senão mesmo

impossivelmente – se podem identificar “interesses próprios por natureza” no que à

autonomia local diz respeito. Pelo menos, se tida em conta a incisiva reflexão de

JOACHIM BURMEISTER, a qual, tendo sido proferida em 1977, se tem revelado

determinante para o modo como, desde então, a questão tem vindo a ser equacionada10.

Uma tendência paralela, ainda que não tão extremada, tem sido adoptada entre nós –

mesmo que não unanimemente, já que orientação contrária tem sido exemplarmente

representada por FREITAS DO AMARAL11, por SÉRVULO CORREIA12 ou por

CÂNDIDO DE OLIVEIRA13 –, o que particularmente se revela se auscultado o

pensamento de VIEIRA DE ANDRADE. Efectivamente, para este Autor, o legislador

goza, no que diz respeito à autonomia local autárquica, de uma “larga margem de

manobra, ampliada ainda pela (…) dificuldade de determinação de interesses ou

matérias específicas locais”. Está, pois, em causa uma ampla “liberdade conformadora”

apenas limitada pela “garantia de um [materialmente indeterminado] mínimo

significativo de tarefas próprias, sob pena de [se] esvaziar de sentido a autonomia

constitucionalmente garantida”14.

A tendência doutrinária que, no contexto europeu em geral15, e não apenas entre

nós, se tem vindo a desenhar é confirmada pela realidade. Com efeito, tendo em mente a

realidade actualmente correspondente ao Direito português, podemos bem repetir o

diagnóstico feito por RENÉ CHAPUS relativamente à realidade actualmente

correspondente ao Direito francês: “la realité est que le départ entre les affaires dont le

règlement est remis aux autorités locales et celles qui appartient à l’État resulte

essentiellement, non d’une certaine nature des choses ou de donnés préétablis, mais de

dispositions énumératives et contingentes adoptées par le legislateur”16.

Sendo que, pelo menos entre nós, a jurisprudência constitucional em muito

pouco tem contribuído para infirmar essa tendência. Pode mesmo dizer-se que a Regulamentar e Reserva de Lei in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, número especial, 1984, p. 1-35, p. 6 segs.; JOSÉ CASALTA NABAIS, A Autonomia Local (Alguns Aspectos Gerais), Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 1990, p. 107-221, p. 159 segs.10 Cfr. Verfassungstheoretische Neukonzeption der Kommunalen Selbstverwaltungsgarantie, Franz Vahlen, Munique, 1977, em especial, p. 6, 72-73, 75, 95, 112-113, 136, 145 segs.11 Ainda que o Autor tenha vindo, mais recentemente, a matizar a sua posição, conforme se verificará.12 Cfr. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987, p. 262 segs.13 Cfr. Direito das Autarquias Locais, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 223 segs.14 Cfr. Autonomia…, loc. cit., p. 24, nota 46. 15 Para uma apreciação de conjunto, tida em conta a experiência de diferentes Estados europeus, cfr. ANDRÉ FOLQUE, A Tutela Administrativa…, p. 71 segs. 16 Cfr. Droit Administratif Général, I, 15.ª ed., Montchrestien, Paris, 2001, p. 295.

jurisprudência constitucional portuguesa tem vindo a oferecer cobertura a um

progressivo esvaziamento de um espaço de atribuições autárquicas imune a intervenções

estaduais que não estritamente correspondentes ao disposto no artigo 242.º, n.º 1 do

texto constitucional. Na verdade, e quando muito, tem estado em causa um controlo

meramente negativo, verificando-se, em cada caso, se é ou não posto em causa um

“espaço irredutível” ou um “núcleo essencial” de autonomia local de contornos muito

pouco precisos17.

E acrescente-se, de resto, que são vários os arestos em que a jurisprudência

constitucional conclui que tal espaço não é posto em causa, considerando ser

ineliminável – no que diz respeito a domínios relativamente aos quais se poderia

considerar à primeira vista terem relevo municipal – uma “interacção” entre Estado e

autarquias ou uma “concorrência” entre interesses estaduais e interesses autárquicos.

Particularmente representativo é o Acórdão n.º 432/93, de 13 de Julho18, no qual estava

em causa “competência para proceder à emissão de licenças de utilização de habitações”

em prossecução de interesses relevantes do ordenamento do território, do urbanismo e

da habitação19.

Também representativos são:

- O Acórdão n.º 379/96, de 6 de Março, relativo ao poder de fiscalizar e

embargar obras nas zonas non aedificandi das estradas nacionais20;

- Os Acórdãos n.º 329/99, de 2 de Junho21 e 602/99, de 9 de Novembro22,

relativos à verificação de compatibilidade de licenças urbanísticas com plano

regional de ordenamento do território supervenientemente entrado em vigor;

- O Acórdão n.º 560/99, de 19 de Outubro23, relativo ao poder para aprovar

operações de loteamento a realizar no âmbito de determinado município e que

alterem em termos inovatórios plano de urbanização em vigor;

17 Assinalando que a jurisprudência do Tribunal Constitucional se tem repetidamente socorrido das fórmulas “conteúdo essencial” ou “núcleo essencial”, sem no entanto fornecer “um critério para a definição” do mesmo, cfr. ARTUR MAURÍCIO, A Garantia Constitucional da Autonomia Local à Luz da Jurisprudência do Tribunal Constitucional, in AA. VV., Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 625-657, p. 656.18 Cfr. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19930432.html19 As conclusões aí atingidas foram reiteradas em muitos outros Acórdãos, como sejam o Acórdão n.º 379/96, de 6 de Março e, por último, o Acórdão n.º 285/2006, de 3 de Maio.20 Cfr. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960379.html21 Cfr. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19990329.html22 Cfr. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19990602.html23 Cfr. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19990560.html

- O Acórdão n.º 288/2004, de 27 de Abril24, relativo ao poder de ocupar e utilizar

quaisquer vias de comunicação do domínio público, com isenção total de taxas e

de quaisquer outros encargos, sempre que tal se mostre necessário à implantação

de infra-estruturas de telecomunicações.

Em todos estes arestos, o Tribunal Constitucional concluiu no sentido da

existência de interesses aos quais o Estado ou a comunidade estadual não seria

indiferente – como o ordenamento do território, o urbanismo, o ambiente, a promoção

habitacional ou mesmo a “existência de um serviço público de telecomunicações” – que

concorreriam com as atribuições locais autárquicas e que justificariam uma intervenção

estadual. De resto, é elucidativo o facto de mais de duas décadas de jurisprudência do

Tribunal Constitucional nunca terem, salvo num caso – um caso inteiramente explícito

de tutela substitutiva sobre o qual incidiu o Acórdão n.º 260/98, de 5 de Março25 –,

culminado em decisões de provimento no sentido da violação do princípio da autonomia

local26.

A tendência assumida em jurisprudência constitucional constante certamente não

foi irrelevante ao nível de opções tomadas em sede de revisão constitucional. Com

efeito, em domínios que foram repetidamente objecto de atenção jurisprudencial – como

o ordenamento do território, do urbanismo e da promoção habitacional –, o texto

constitucional, na sequência da revisão constitucional de 1997, explicitou claramente a

orientação no sentido de que não estamos perante interesses autárquicos “próprios” ou

exclusivos, mas antes perante áreas de intersecção ou de concorrência entre interesses

estaduais e interesses municipais (artigo 65.º, nºs. 2 e 4).

Diga-se ainda que o que está em causa transcende inevitavelmente o estrito

domínio das considerações jurídicas nacionais27 ou mesmo o estrito domínio das

24 Cfr. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040288.html25 Cfr. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980260.html26 Afirmando, neste contexto, que o resultado da jurisprudência constitucional em sede de autonomia local “é dúplice: por um lado, parece admitir-se um conceito forte, incluindo a remissão para as fórmulas alemãs, nomeadamente a auto-responsabilidade (veja-se como leading case o acórdão 432/93), mas também a radicação axiológica elevada ou o reconhecimento de que se está perante estruturas do poder político; por outro, o Tribunal Constitucional, parece contentar-se com a invocação da garantia institucional e com a aferição da eventual lesão do seu núcleo ou conteúdo essencial, sem todavia expressar, “claramente, um critério para a definição daquele núcleo ou conteúdo essencial”, cfr. JOSÉ DE MELO ALEXANDRINO, O Défice de Protecção do Poder Local: Defesa da Autonomia Local perante o Tribunal Constitucional?, estudo inédito correspondente a exposição proferida em 6 de Fevereiro de 2009, no âmbito do V Curso de Pós-Graduação em Direito das Autarquias Locais, organizado pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas e gentilmente cedido pelo Autor, p. 5-6.27 Sobre uma redistribuição interna de atribuições administrativas resultante da conversão da Administração Pública nacional em Administração Pública comunitária, cfr. PAULO OTERO, A

considerações jurídicas tout court28. Em qualquer caso, a inexorável tendência

verificada no sentido de uma diluição de um espaço de atribuições municipais no

confronto com quaisquer intervenções estaduais encontra, hoje, correspondência

doutrinária mesmo em Autores que sempre tenderam a sublinhar um reduto irredutível

de “interesses próprios” autárquicos a ser objecto de respeito (também pelo legislador).

Atente-se, por exemplo, no modo como, recentemente, FREITAS DO AMARAL

matizou a sua posição anteriormente defendida: a “verdade [é] que, nos nossos dias, a

separação nítida entre a zona dos interesses nacionais e a zona dos interesses locais,

como se dois compartimentos estanques se tratasse, já só subsiste em alguns casos. É

errado dizer-se que desapareceu por completo, mas deixou de corresponder à grande

maioria dos casos”29.

Diga-se que o que aqui se discute releva do grau de “liberdade” legislativa ao

nível da conformação das atribuições municipais. Não está em causa, de nenhum modo,

reduzir a autonomia local a uma “autonomia-participação”, já que se mantém como

inquestionável que, aos órgãos autárquicos, sempre deverá caber um espaço decisório –

um espaço de competências propriamente ditas e não meramente um espaço de

auscultação/intervenção em procedimentos culminantes em decisões estaduais – que

não se confunde com o espaço decisório estadual. E não está em causa negar que o

legislador se encontre sempre vinculado a reconhecer um “mínimo significativo de

tarefas próprias”. O que está em causa dizer é, tão simplesmente, que o âmbito material

de atribuições autárquicas será, em larguíssima medida, materialmente indeterminado a Administração Pública Nacional como Administração Comunitária: os efeitos internos da execução administrativa pelos Estados-membros do Direito Comunitário, Separata de Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel Magalhães Collaço, I, Almedina, Coimbra, 2002, p. 821. Sobre o mesmo assunto, assinalando que “a obrigação que recai sobre os Estados-membros de executar e cumprir o Direito Comunitário tem profundos reflexos no plano da sua organização político-administrativa interna, e em especial na distribuição de tarefas públicas”, cfr. RUI GUERRA DA FONSECA, Sobre uma Hipotética Harmonização Europeia ao Nível dos Campos de Aplicação da Descentralização Territorial, estudo inédito, destinado a publicação nos Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha e gentilmente cedido pelo Autor, p. 16 segs.28 Atente-se, por exemplo, na tendência para a extensão ou alargamento da dimensão do serviço público e para as consequências inerentes. A este respeito, são esclarecedoras as palavras de RUI GUERRA DA FONSECA, segundo as quais “a essência democrática – no seu verdadeiro sentido – dos serviços públicos locais de dimensão municipal é progressivamente ultrapassada ou posta em causa por necessidades colectivas materiais que reclamam estruturas plurimunicipais (…). Se se tiver em consideração que os serviços públicos desta dimensão exigem grandes investimentos, e que, em geral, é débil a descentralização económica de que os municípios beneficiam”, verificar-se-á, que também por aqui o “espaço” autárquico entra em erosão. “Com efeito, a exigência desses investimentos conduz a que o Estado participe cada vez mais no financiamento dos serviços públicos locais, seja por via da sua participação no capital de empresas públicas juntamente com os municípios, seja por via de contratos públicos, o que introduz limitações na autonomia municipal, no momento de decidir as formas de gestão, e mesmo decisões concretas de gestão do serviço. Por outras palavras, os serviços permanecem municipais mas com uma forte ingerência estatal”, cfr. Sobre uma Hipotética…, p. 11-12.29 Cfr. Curso…, I, p. 491.

nível constitucional, cabendo a sua precisa definição ao legislador no âmbito de lei que

“por outras deva ser respeitada” (artigo 112.º, n.º 3, in fine, do texto constitucional).

Efectivamente, se, nos termos expostos, a lei que enumera atribuições

autárquicas (cuja matéria se insere no âmbito constitucionalmente nomeado como

“estatuto das autarquias locais”30 e que actualmente correspondente à citada Lei Quadro

de Transferência de Atribuições e Competências para as Autarquias Locais), é uma lei

que envolve uma concretização politicamente conformadora de princípios

constitucionais, não deixa de envolver precisamente… uma concretização de princípios

constitucionais. Ora, pode entender-se que a menção, no citado artigo 112.º, n.º 3, in

fine, a leis “que por outras devam ser respeitadas” demarca precisamente a prevalência,

sobre outras leis, de leis por intermédio das quais são concretizados princípios

constitucionais, sendo a operatividade destes últimos prejudicada no caso de tal

prevalência não se verificar31.

Diga-se que, em momento anterior à revisão constitucional de 1997 – e, assim, à

específica menção a que acaba de se aludir –, SÉRVULO CORREIA havia considerado,

por razões próximas às explanadas, a “lei estatutária” das autarquias locais como lei

reforçada32, no que é hoje seguido por MELO ALEXANDRINO33.

30 Artigo 165.º, alínea q).31 GOMES CANOTILHO precisa a referência a “leis que devem ser respeitadas por outras leis” como relevante de um “conceito residual”, o qual salienta “a exigência de conformidade ou de compatibilidade apontada por outras leis (e insinuada pela constituição)” (sublinhado nosso), cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 785. O Autor não deixa, no entanto, inteiramente explícito o que seja uma exigência “insinuada pela constituição”, apenas fazendo uma enumeração exemplificativa em cujo âmbito se refere a um “conjunto indeterminado de (...) actos legislativos como a lei das grandes opções dos planos de desenvolvimento económico e social (art. 106.º/2), a lei-quadro das privatizações (art. 296.º), os estatutos das regiões autónomas (art. 226.º), a lei das finanças regionais (arts. 229.º/3 e 164.º/t)”. Ora, neste contexto, poderá considerar-se “insinuada pela constituição” a prevalência de uma lei, como a lei quadro de atribuições das autarquias locais, imprescindível à concretização de princípios constitucionais? Ainda sobre a precisão (ou imprecisão) da menção final do artigo 112.º, n.º 3, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, V, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 356 segs.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas – As Leis Reforçadas pelo Procedimento no Âmbito dos Critérios Estruturantes das Relações entre Actos Legislativos, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 647; ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO, Artigo 112.º (Actos Normativos), in PAULO OTERO (coord.), Comentário à Constituição Portuguesa – III – Princípios Gerais da Organização do Poder Político, Almedina, Coimbra, 2008, p. 69-296, p. 151 segs.32 Nas palavras do Autor, fixadas pelo respectivo estatuto, “segundo o espírito do princípio da descentralização administrativa, as atribuições das autarquias locais (…) tem o legislador, sempre que o não queira deliberadamente alterar, de respeitar o [mesmo] estatuto (…). Quer isto dizer que tais leis prevalecem sobre as outras que se não possam considerar estatutárias das autarquias”, cfr. Legalidade…, p. 276-277.33 O mesmo Autor refere-se à atribuição ao estatuto das autarquias locais da “função de lei de valor reforçado” por “razões sistemáticas e lógicas”, cfr. O Défice de Protecção…, p. 11.

3. O possível esvaziamento das atribuições e competências autárquicas

Verificou-se que – no quadro do entendimento hoje dominante e objecto de

reiterado acolhimento jurisprudencial – o legislador goza de ampla “liberdade de

conformação” em sede de determinação das atribuições autárquicas, desde que

respeitado um “núcleo essencial”, “mínimo significativo” ou “âmbito incomprimível”

de autonomia local de contornos largamente indeterminados. Em qualquer caso, tida em

conta a garantia deste “núcleo”, “mínimo” ou “âmbito” – e por mais indefinidos que

sejam os seus precisos contornos –, o legislador encontra-se prevenido de esvaziar

inteiramente a autonomia local no que diz respeito à enumeração das correspondentes

atribuições e à reflexa delimitação das atribuições do Estado e das competências dos

seus órgãos.

Mas há uma outra forma de esvaziamento das atribuições autárquicas que não

passa propriamente pela não enumeração das mesmas ao nível da normatividade

legislativa (ou pela correspondente previsão de atribuições do Estado e de competências

dos seus órgãos). Essa outra forma de esvaziamento das atribuições autárquicas – e, do

mesmo modo, do princípio da autonomia local – antes passa pela eliminação completa

de um qualquer grau de primariedade no que respeita às competências dos órgãos das

autarquias locais na prossecução de atribuições destas já legislativamente enumeradas.

Por primariedade, refiro-me a uma natureza não meramente executiva das

competências dos órgãos autárquicos, sendo tal noção relevante em particular no que

respeita às competências regulamentares. Ou seja, as competências dos órgãos

autárquicos são primárias quando se lhes encontre associado um poder de conformação

material próprio no âmbito de determinadas atribuições.

Ao falar-se de primariedade neste sentido parecerá, à primeira vista, que se está

a abandonar o específico problema das atribuições das autarquias locais para se entrar

num problema distinto. O que não é caso. É que o reconhecimento legislativo de um

conjunto de atribuições aos órgãos autárquicos, mesmo que muito amplo, pode ser

inteiramente esvaziado na prática, no caso de não ficar aberto um poder de

conformação material correspondente, ou seja, se o Estado interferir normativamente

em termos muito densos nos domínios em causa, esgotando a “regulação”

correspondente.

Neste último caso, a autonomia local converte-se numa “farsa”, pois é

justamente a primariedade das competências dos órgãos autárquicos que nos permite

configurá-las como verdadeiras competências de administração autónoma. Como é bom

de ver, a ausência de primariedade compromete irremediavelmente uma qualquer

possibilidade de prossecução auto-responsável de atribuições. Na ausência de

primariedade, deixa de estar em causa uma verdadeira auto-determinação de uma

comunidade de interessados, para passar a estar em causa algo de inteiramente distinto:

uma hetero-determinação, ou seja, uma mera execução, aplicação ou pormenorização de

uma auto-determinação alheia.

4. Em especial: a discricionariedade normativa autónoma

A titularidade de competências primárias no sentido exposto no ponto anterior

implica, em grande medida, a titularidade de competências normativas. Pode mesmo

dizer-se que só quando há competências normativas há competências primárias. Neste

contexto, serão esclarecedoras as palavras conexas de LUCIANO PAREJO

ALFONSO34: “a normação [primária] é um instrumento de orientação sem o qual não é

pensável uma actividade local de governo e de administração que, além de legal e

eficaz, tenha verdadeira visão de conjunto. Porque a norma permite uma programação

acabada, no sentido substantivo, da acção administrativa, tendo em conta as

peculiaridades da colectividade local”.

No mesmo sentido, entre nós, destaca-se SÉRVULO CORREIA35, para o qual,

“como a formulação de orientações de base reveste a forma normativa de regulamento,

pode afirmar-se que o poder regulamentar é uma expressão da autonomia local. E pode

mesmo, porventura, ir-se mais longe, concluindo que é na titularidade de um poder

regulamentar independente que reside o cerne dessa autonomia”.

Diga-se agora, e em termos dogmáticos, que o exercício de competências

regulamentares que sejam competências primárias – ou seja, que envolvam o exercício

de um verdadeiro poder de conformação social próprio relativamente a um

determinado âmbito de atribuições – implica o exercício daquilo que se usa chamar de

34 Cfr. La Potestad Normativa Local, Marcial Pons, Madrid, 1998, p. 42. De destacar também, muito particularmente, sobre um poder normativo próprio como “instrumento esencial de prossecução de tarefas próprias, sob responsabilidade própria”, cfr. EBERHARD SCHMIDT-ASSMANN, Die Rechtsetzungsbefugnis der kommunalen Körpershaften – Zu einigen neueren Entwicklungen im Recht der normativen Handlungsformen, in AA. VV, Selbstverwaltung im Staat der Industriegesellshaft – Festgabe zum 70. Geburstag von Georg Christoph von Unruh. R. – v. Decker’s Verlag, Heidelberga, 1983, p. 607-622.35 Cfr. Legalidade…, p. 264.

discricionariedade normativa autónoma (Satzungsermessen) ou liberdade de

conformação normativa autónoma (Satzungsgebersgestaltungsfreiheit). Uma

“discricionariedade” ou “liberdade” que tende a ser considerada em paralelo com a

“liberdade de conformação do legislador” e que se afasta da genérica

“discricionariedade administrativa”36.

Efectivamente, e de acordo com o entendimento dominante, a discricionariedade

administrativa significa, apenas, liberdade no quadro da abertura jurídica da norma, ou

seja, está em causa oferecer à Administração possibilidades autónomas de decisão ou

de escolha entre diferentes meios legalmente radicáveis em vinculação aos fins

previstos na lei37.

Ou então, quando não se trate de uma “discricionariedade” (Ermessen) em

sentido próprio, mas de uma “margem de livre apreciação” (Beurteilungsspielraum)38,

está em causa conferir à Administração possibilidades autónomas quanto ao

reconhecimento em concreto de pressupostos de conduta indeterminadamente fixados

por lei.

Ou ainda, caso se adopte a concepção de “margem de livre decisão”

(Entscheidungsspielraum) entre nós sobretudo desenvolvida por SÉRVULO

CORREIA39, está em causa conferir à Administração possibilidades autónomas quanto

ao aditamento de novos pressupostos no quadro das situações de facto previstas por lei.

Já no que diz respeito à discricionariedade normativa autónoma, corresponde-

lhe uma tarefa administrativa de conformação (administrativen Gestaltungsauftrag).

36 Sobre “discricionariedade normativa autónoma” ou “liberdade de conformação normativa autónoma”, cfr. FRITZ OSSENBÜHL, Satzung, in J. ISENSEE / P. KIRCHOF, Handbuch des Staatsrechts des Bundesrepublik Deutschland, III, C. F. Müller, Heidelberga, 1988, p. 463-497, em especial, p. 487; PETER BADURA, Das Normative Ermessen beim Erlass von Rechtsverordnungen und Satzungen in Gedächnisstschrift für Wolfgang Martens, Walter de Gruyter, Berlim / Nova Iorque, 1987, p. 25-37, p. 29 segs.; HARTMUT MAURER, Rechtsfragen kommunaler Satzungsgebung, Die Öffentliche Verwaltung, 1993, p. 184-194, p. 192 segs.; EDZARDT SCHMIDT-JORTZIG, Soll das kommunale Satzungsrecht gegenüber staatlicher und gerichtlicher Kontrolle gestärkt werden?, Deutsches Verwaltungsblatt, 1990, p. 920-926, p. 924 segs.; JÖRN IPSEN, Soll das kommunale Satzungsrecht gegenüber staatlicher und gerichtlicher Kontrolle gestärkt werden?, Juristenzeitung, 1990, p. 789-796; FRIEDRICH SCHOCH, Soll das kommunale Satzungsrecht gegenüber staatlicher und gerichtlicher Kontrolle gestärkt werden?, Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht, 1990, p. 801-810, em especial, p. 803-804; MATHIAS HERDEGEN, Gestaltungsspielräume bei administrativer Normgebung – Ein Beitrag zu rechtsformabhängigen Standards für die gerichtlicher Kontrolle von Verwaltungshandeln, Archiv des Öffentlichen Rechts, 1989, p. 607-643, p. 609 segs; MICHAEL OERDER, Grenzen der kommunalen Satzungsautonomie, Neue Juristische Wochenschrift, 1990, p. 2104-2108, p. 2105 segs.37 Sobre discricionariedade (Ermessen) neste sentido, cfr. o excelente tratamento de síntese de HARTMUT MAURER, Allgemeines Verwaltungsrecht, 11.ª ed., Beck, Munique, 1997, p. 121 segs.38 Para uma síntese da origem e diferentes formulações da teoria do Beurteilungsspielraum, cfr. SÉRVULO CORREIA, Legalidade…, p. 121 segs.39 Cfr. Legalidade…, p. 133 segs. e 313 segs., em especial, p. 322 segs.

Ou seja, a Administração, quando titular de “discricionariedade normativa autónoma”, é

detentora de:

1) Um poder de previsão genérica de meios e não apenas de um poder de

especificação (de decisão ou de escolha) de meios legalmente radicáveis. Já

não se estará, pois, perante uma mera “discricionariedade administrativa” em

sentido próprio, mas perante algo que se aproxima da “liberdade de

conformação do legislador”. A este respeito, será esclarecedora a

demarcação, por GOMES CANOTILHO, da “liberdade de conformação do

legislador” face à discricionariedade administrativa em sentido próprio. No

âmbito dessa demarcação, GOMES CANOTILHO40 sustenta que “a

discricionariedade administrativa é, mesmo como complementação do

Tatbestand legal, uma actividade individualizante, ao passo que o legislador

se defronta (…) com a criação de medidas”41. Ora, é precisamente com a

criação de medidas que se defrontará também o titular de

“discricionariedade normativa autónoma” – o titular de competências

regulamentares como competências primárias.

2) Um poder de criação “ex novo” de pressupostos de conduta administrativa,

sob impulso próprio e de acordo com critérios e objectivos próprios, ou seja,

de acordo com determinantes autónomas42. Também por aqui se verificará

que não estamos perante uma mera discricionariedade administrativa em

sentido próprio, mas perante algo que se aproxima da “liberdade de

conformação do legislador”, entendida esta nos termos precisados por

GOMES CANOTILHO. Para este Autor, recorde-se, no âmbito da

“liberdade de conformação do legislador”, “a lei cria e não completa apenas,

os pressupostos”43.

40 Cfr. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, reimp., Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 234.41 Sublinhado nosso.42 Sobre a relevância das determinantes autónomas no que diz respeito à liberdade de conformação do legislador em termos que se podem transpor para o domínio da discricionariedade normativa autónoma ou liberdade de conformação normativa autónoma, cfr. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente…, em especial, p. 246 segs.43 Cfr. Constituição Dirigente…, p. 235.

Diga-se ainda que compreender a ideia de “discricionariedade normativa

autónoma” ou “liberdade de conformação normativa autónoma” possibilita-se, em

grande medida, por via da distinção entre um verdadeiro poder regulamentar primário

ou autónomo (que envolva o exercício dessa “liberdade de conformação”) e um mero

poder regulamentar executivo.

O que está em causa num mero poder regulamentar executivo é operacionalizar

e eventualmente especificar medidas legalmente radicáveis em obediência aos fins

legais. Não é criar inovadoramente medidas de acordo com determinantes autónomas.

Quando muito, o que poderá estar em causa no poder regulamentar executivo é

padronizar os termos da complementação e/ou complementação de pressupostos

normativos por lei.

O poder regulamentar executivo não se distancia, assim, estruturalmente das

clássicas formas de discricionariedade administrativa ou da discricionariedade

administrativa em sentido próprio. Diferencia-se apenas pelo facto de a especificação de

medidas e a concretização e/ou complementação de pressupostos legais ser feita em

termos gerais e abstractos e não num caso concreto.

Antes de se terminar, diga-se que, ao dedicar-se particular atenção ao problema

da “liberdade de conformação normativa autónoma”, esteve em causa sobretudo frisar

que, à luz do princípio da descentralização, não pode a normação estadual (tanto

legislativa como regulamentar) esgotar a regulação das matérias em termos que

reduzam os órgãos autárquicos a um mero papel executivo. É que, caso tal se verifique,

o facto de se encontrar previsto um grande número de atribuições autárquicas poderá

nada significar, nada ficando de relevante aos órgãos autárquicos em sede de “auto-

orientação”.

Neste contexto, tomemos de empréstimo a concretização da expressão “auto-

orientação” por SÉRVULO CORREIA, Autor para o qual, no âmbito das atribuições

autárquicas, as leis não podem ser tão densas que ignorem “aquele mínimo

incomprimível sem o qual não passará de mito o poder de auto-orientação das

comunidades locais”. Ou seja, as leis não podem “impedir a autonomia de orientação,

isto é, (…) vincular o conteúdo das decisões dos órgãos autárquicos a não ser naqueles

casos em que a prevalência do interesse nacional claramente deva implicar a

predeterminação pelo legislador dos efeitos de direito a prever em termos genéricos e

abstractos no plano regulamentar ou a produzir nos casos concretos pelos órgãos

autárquicos. Uma ampla e pormenorizada normação legislativa sobre o modo de

prossecução das suas atribuições esvaziaria a autonomia das autarquias”44.

44 Cfr. Legalidade…, p. 273.