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1 O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA CIDADE GREGA doi: 10.4025/XIIjeam2013.souza.pereiramelo52 SOUZA, Paulo Rogério de 1 PERERIA MELO, José Joaquim 2 Considerações Iniciais: Ao estudar a origem da polis grega, um problema frequente é a dificuldade de estabelecer de maneira precisa quando teve origem as cidades na Grécia antiga. Essa dificuldade é devido a cidade grega ter tido sua gênesis num período considerado obscuro para história da Grécia. Ou seja, durante esse período que, segundo Kitto (1990, p. 41), a região do Egeu passou por vários conflitos que provocaram o fim das dinastias aqueias. Neste contexto que pode ser datado entre os séculos XII-IX a.C., período nominado como “Idade das Trevas” 3 , ocorreu a decadência da chamada Idade Micénica e a desintegração das comunidades familiares, que originou o surgimento da polis, que segundo Ferreira (2004, p. 37) se deu em meados do século VIII a.C. O termo Idade das Trevas procura definir um período no qual não há muitas informações sobre a história grega. Mas, ao mesmo tempo, não pode ser caracterizado como um período sem importância para o desenvolvimento da sociedade ou “vazio de vida cultural”, como apresenta Mosse I. Finley: 1 Bolsista CAPES/GTSEAM/UEM. 2 DFE/DTP/UEM. 3 Considera-se como uma “Época Obscura” o período entre os séculos XI e VIII a.C. da história grega, devido a pouca informação que se tem deste ínterim (FERREIRA, 2004, p. 30). “Idade Obscura” é o termo utilizado por Maria Helena da Rocha Pereira (2012, p. 173). Já para Kitto (1990a, p. 41), durante os séculos XV e XIV a.C a região da Grécia passou por “vastas perturbações”, e com o fim das dinastias aqueias no século XII a.C., tem início a decadência da chamada Idade Micénica que principia o que ele nomina como “Idade das Trevas”. Pedro Paulo Funari também utiliza o termo “época das trevas”, para mostrar a imprecisão em descrever o que se passou nestes séculos: “Tradicionalmente, dizia-se que houve um retrocesso cultural, com o abandono da escrita, mas hoje em dias os estudiosos ressaltam que é justamente essa civilização camponesa e guerreira que irá fundar, depois, a Grécia clássica” (2011, p. 20). A importância da “Idade das Trevas” é destacada também por Finley (1963, p. 17) que chama a atenção para a questão de que se esse período não foi vazio culturalmente e que o termo é enganador: “[...] execepto pra sublinhar a nossa ignorância sobre o que aconteceu” (p. 25).

O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA ...2 A Idade das Trevas pode ter sido totalmente iletrada e retrógrada em outros aspectos, mas não foi vazia de vida cultural. Um

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O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO E ORGANIZAÇÃO DA CIDADE

GREGA doi: 10.4025/XIIjeam2013.souza.pereiramelo52

SOUZA, Paulo Rogério de1

PERERIA MELO, José Joaquim2

Considerações Iniciais:

Ao estudar a origem da polis grega, um problema frequente é a dificuldade de

estabelecer de maneira precisa quando teve origem as cidades na Grécia antiga. Essa

dificuldade é devido a cidade grega ter tido sua gênesis num período considerado obscuro

para história da Grécia. Ou seja, durante esse período que, segundo Kitto (1990, p. 41), a

região do Egeu passou por vários conflitos que provocaram o fim das dinastias aqueias.

Neste contexto que pode ser datado entre os séculos XII-IX a.C., período nominado como

“Idade das Trevas”3, ocorreu a decadência da chamada Idade Micénica e a desintegração

das comunidades familiares, que originou o surgimento da polis, que segundo Ferreira

(2004, p. 37) se deu em meados do século VIII a.C.

O termo Idade das Trevas procura definir um período no qual não há muitas

informações sobre a história grega. Mas, ao mesmo tempo, não pode ser caracterizado

como um período sem importância para o desenvolvimento da sociedade ou “vazio de vida

cultural”, como apresenta Mosse I. Finley:

1 Bolsista CAPES/GTSEAM/UEM. 2 DFE/DTP/UEM. 3 Considera-se como uma “Época Obscura” o período entre os séculos XI e VIII a.C. da história grega, devido a pouca informação que se tem deste ínterim (FERREIRA, 2004, p. 30). “Idade Obscura” é o termo utilizado por Maria Helena da Rocha Pereira (2012, p. 173). Já para Kitto (1990a, p. 41), durante os séculos XV e XIV a.C a região da Grécia passou por “vastas perturbações”, e com o fim das dinastias aqueias no século XII a.C., tem início a decadência da chamada Idade Micénica que principia o que ele nomina como “Idade das Trevas”. Pedro Paulo Funari também utiliza o termo “época das trevas”, para mostrar a imprecisão em descrever o que se passou nestes séculos: “Tradicionalmente, dizia-se que houve um retrocesso cultural, com o abandono da escrita, mas hoje em dias os estudiosos ressaltam que é justamente essa civilização camponesa e guerreira que irá fundar, depois, a Grécia clássica” (2011, p. 20). A importância da “Idade das Trevas” é destacada também por Finley (1963, p. 17) que chama a atenção para a questão de que se esse período não foi vazio culturalmente e que o termo é enganador: “[...] execepto pra sublinhar a nossa ignorância sobre o que aconteceu” (p. 25).

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A Idade das Trevas pode ter sido totalmente iletrada e retrógrada em outros aspectos, mas não foi vazia de vida cultural. Um das provas é o desenvolvimento da cerâmica fina com desenhos geométricos e a outra são os poemas de Homero. O historiador sente-se em posição frustrante, ao tentar reconstruir cerca de quatrocentos anos de história, os séculos em que se formou a histórica civilização grega, a partir dos resquícios materiais, dois longos poemas e as posteriores e incertas tradições e mitos gregos (1963, p. 17).

Se os poemas homéricos são algumas das poucas fontes que podem ajudar a

caracterizar esse momento “obscuro” da civilização grega, as informações sobre os

períodos arcaico e clássico são mais abundantes, o que possibilita ter um pouco mais de

referências para se construir uma ideia de como a sociedade, e principalmente a polis se

estruturou a partir deste contexto. Assim, se a transição da chama Idade das Trevas para o

período arcaico suscita muitas dúvidas, estas são menos constantes nos estudos sobre a

transição do período arcaico para o clássico.

A transição social da comunidade familiar arcaica para a polis clássica: invenções e

criações gregas

A forma de organização grega que constituíra a comunidade gentílica no período

arcaico era disposta em um agrupamento familiar denominado génos (JARDÉ, 1977, p.

198), que dependia basicamente da agricultura para subsistência. Com o crescimento

destas famílias, a agricultura de subsistência deixou de atender as necessidades e as

exigências da comunidade, que precisou ampliar a busca por víveres, quer pela troca ou

pela pilhagem. As relações de troca de produtos de sobrevivência possibilitou o surgimento

do comércio. Desta maneira, o homem da comunidade gentílica gradativamente abandonou

o modo de vida baseado exclusivamente nas relações familiares e na agricultura como

condição de manutenção da comunidade, e foi se reunindo numa nova forma de

organização, a cidade, que passara a ser sustentada principalmente pelas relações

comerciais e ‘industriais’4.

A transição no sistema de agrupamento familiar para a citadina proporcionou às

comunidades gregas significativas mudanças e transformações no seu modo de vida. O que

se pode verificar nesse processo de transição de uma comunidade basicamente familiar e

4 O termo ‘indústria’ aqui utilizado equivale a força de produção de artigos como vasos, que ganhara real importância no processo de exportação que se intensificou no século VI a.C.

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agrária para uma citadina e comercial, foi que inicialmente a sua estrutura de comando

manteve-se, segundo Mossé (1997, p. 12), sob o domínio de uma aristocracia guerreira,

senhora de terras e do poder político.

No entanto, foram surgindo também novos setores sociais que passaram a fazer

parte da polis e que se enriqueciam em suas atividades. Entre eles estavam os

comerciantes, os artesãos, os marinheiros, os pequenos camponeses, etc. Estes passaram

ocupar atividades ignoradas pela aristocracia, por considera-las atividades inferiores, já que

para a aristocracia a única fonte de riqueza digna era a exploração da terra (FERREIRA,

2004, p. 46).

Ao ocupar essas atividades, principalmente o comércio, esses setores emergiram

socialmente, ocupando uma fonte de riqueza negligenciada pela aristocracia. Ao ascender

economicamente, esta parte da população também passou exigir uma participação política

efetiva, até então restrita aos cidadãos originários de famílias aristocráticas.

A riqueza dos setores emergentes, a exigência de participação política e o

enfraquecimento da aristocracia geram conflitos entre a nobreza e os ‘novos detentores de

riqueza’, conflitos estes que precisavam ser amenizados. Como tentativa amenizar os

embates internos e descentralizar o poder concentrado nas mãos da aristocracia, fez-se

necessário tomar algumas medidas. Entre elas estavam a criação de um código de leis

escritas5, em substituição as antigas leis divinas, que conduzira a comunidade gentílica,

mas que, num primeiro momento, na organização da cidade perdera sua efetiva

funcionalidade pretendida, já que privilegiava apenas a aristocracia: “A codificação das leis

vem satisfazer essa aspiração: põe a lei ao alcance de todos, oferecendo-lhes a possibilidade de a

conhecerem, sem estarem sujeitos ao segredo e à arbitrariedade das interpretações. Retira desta

forma aos aristocratas o monopólio da justiça” (FERREIRA, 2004, p. 56).

Os códigos de eleis escritas serviam, segundo Jean-Pierre Vernant (2002), para

arbitrar, para mediar e para reconciliar as novas relações sociais, em substituição às “leis

divinas” do génos, que não mais tinham condições de dar sustentação ao homem grego na

condução da nova forma de organização da sociedade. Coube a estas leis auxiliar o homem

na tentativa de restaurar o equilíbrio social rompido com o conflito da transição do génos

5 Segundo Claude Mossé (1997, p. 14), Sólon, eleito arconte em 594 assumiu a missão de enfrentar as crises sociais e criou um código de leis escritas. Para isso tomou uma série de medidas jurídicas, políticas e econômicas. No plano jurídico, Sólon aparece como um legislador ateniense por excelência. Promulgou uma série de leis, tornadas públicas em códigos escritos, criando assim, um direito ateniense comum a todos os cidadãos.

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para a pólis: “Antes eram o “orgulho”, a “violência de ânimo” dos ricos que regulavam as

relações sociais. [...] Agora são leis escritas que substituem a prova de força em que

sempre os fortes triunfam e que impõem sua norma de equidade, sua exigência de

equilíbrio” (VERNANT, 2002, p. 98).

Os códigos de leis escritas dos quais os primeiros legisladores – como Drácon

(VIII a.C.), Sólon (638-558 a.C.), Clístenes (VI a.C.), Pisístrato (561-527 a.C.) – se

valeram para administrar a cidade tiveram importância significante para organização da

cidade-estado e deram os primeiros passos para forma uma cidade apoiada na democracia.

Com a fixação dos códigos, as leis deixaram de ter o caráter subjetivo e sagrado. A

crença na revelação dos oráculos e na influência de inspiração dos deuses na criação das

leis tidas como divinas e intermediada pelos chefes das famílias gentílicas6 deixou de fazer

sentido. Assim, essas novas leis feitas pelo homem tiravam o caráter divino de ‘ministrar’ a

justiça. O cidadão grego passou a perceber a sua importância na administração da cidade-

estado e a ter consciência da força das suas ações e da sua responsabilidade para

determinação do seu futuro, deixando de acreditar apenas num destino que lhe

predeterminava o porvir, como faziam crer os preceitos da religião doméstica.

Outro aspecto a ser considerado é que, com a implantação dos códigos escritos,

num primeiro momento pelos novos governantes, os chamados tiranos, e num segundo

momento, pelos cidadãos das assembleias, estas leis passaram a ter características

adequadas à nova realidade. Foram elaboradas para serem aplicadas a todos os integrantes

da comunidade – com direitos e deveres a serem respeitados e cumpridos por todos –,

mesmo estando estes submissos à hierarquia de comando e às diferenças entres os setores

da sociedade:

[...] trata-se de uma liberdade hierárquica. [...] Não há, pois, nem direito igual a todas as magistraturas, pois que as mais altas estão reservadas aos melhores, nem direito igual à propriedade territorial [...] Onde se encontra então a igualdade? Ela reside no fato de que a lei, que agora foi fixada, é a

6 Cf. Glotz (1980, p. 6): “O chefe do génos obedece a uma designação precisa: é o descendente, por via masculina, mais direto do antepassado divino e, dessa maneira, traz nas veias o sangue mais puro. É o sacerdote do deus que, pessoalmente, ele encarna, preside a todas as cerimônias que reúnem os gennetai em torno do lar, oferece os sacrifícios e as libações que lhes asseguram a prosperidade. Não só dispões de poder absoluto sobre a mulher, a quem pode repudiar, vender ou matar, sem ter de justificar-se; dispõe ainda de ilimitada autoridade sobre todos os membros do seu grupo. Ao receber o cetro, o chefe do génos recebeu também o conhecimento das thémistes, sentenças infalíveis que uma sabedoria mais que humana lhe revela por meio de sonhos ou oráculos ou lhe sugere no funda da consciência)”.

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mesma para todos os cidadãos e que todos podem fazer parte dos tribunais como da assembleia (VERNANT, 2002, p. 98).

Segundo Jean-Pierre Vernant, a elaboração dos códigos de leis escritas foi uma

necessidade surgida paralelamente ao crescimento da cidade. As leis deixaram de ser

transmitidas apenas oralmente pelos chefes gentílicos, que acreditavam serem os únicos a

possuir o direito de transmiti-las e aplicá-las, e passaram a englobar toda a comunidade,

tendo um caráter cívico e comum a todos os cidadãos:

Compreende-se assim o alcance de uma reivindicação que surge desde o nascimento da cidade: a redação das leis. Ao escrevê-las, não se faz mais que lhes assegurar permanência e fixidez. Subtraem-se à autoridade privada do Basileis, cuja função era “dizer” o direito; tornam-se bem comum, regra geral, suscetível a ser aplicada a todos de mesma maneira (VERNANT, 2002, p. 57).

Essa necessidade de fixação das leis se intensifica no período clássico,

principalmente na polis democrática, já que a participação do cidadão na Assembleia, no

Conselho dos Quinhentos e nos Tribunais da Helieia passaram a exigir um sujeito mais

racional, menos dependente da religião e dos seus deuses e que dominasse a arte do bem

falar, para poder se expressar na ágora e nas discussões políticas. Um cidadão que tem a

responsabilidade da elaboração das leis que irá conduzir a sua vida e a vida da sua

comunidade.

Mas a implantação desta forma de condução da vida comunitária se tornou possível

somente com a invenção de uma nova forma de se expressar desse homem, pela escrita.

Foi a criação da escrita ainda no período arcaico que possibilitou ao homem grego ter de

forma mais objetiva a condução da sua vida, livrando-se das amarras da religião doméstica.

A fala expressada pela escrita acabou por materializar o que as gerações anteriores tinham

apenas expressado oralmente: “A língua pronunciada e recordada não tem existência

corpórea (a não ser em correntes de ar, de que a cultura não tinha consciência). A língua

escrita e lida torna-se um objeto, uma coisa, separada da consciência que a cria, e imobiliza

numa condição de relíquia física” (HAVELOCK, 1996, p. 296).

A língua objetivada pela escrita, a fala expressada pela grafia, ajudou na

racionalização do pensamento grego, pois a forma de se manifestar do homem deixou de

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ter apenas um caráter de oralidade subjetiva7. As palavras já não estavam soltas no ar, mas

passaram a ser concretizadas pela escrita, atingindo uma forma fixa que podiam ser

analisadas, estudadas e julgadas na sua materialidade, o que possibilitava uma reflexão

mais apurada e um entendimento mais sistematizado da realidade vivida pelo homem

grego diante das transformações ocorridas no período clássico.

Foi pela escrita que o conhecimento, privilégio de poucos antes dela, passou a ser

difundido na sociedade grega de maneira mais ampla, propiciando ao homem expandir sua

capacidade intelectual, até então restrita ao saber transmitido pelos “sacerdotes” da religião

doméstica: “Era a palavra, no quadro da cidade, o instrumento da vida política, e é a escrita

que vai fornecer, no plano propriamente intelectual, o meio de uma cultura comum e

permitir uma completa divulgação de conhecimento previamente reservados e interditos”

(VERNANT, 2002, p. 56).

É justamente pela escrita que não só se fixaram as leis, mas também se

documentara a história, difundira-se a arte da poesia, do teatro, da prosa. Mesmo os textos

que tiveram sua origem na oralidade, como os poemas homéricos, passaram a ser

expressos e fixados pela escrita. Ela possibilitou deixar às gerações seguintes as reflexões

filosóficas e os discursos dos oradores.

A escrita ajudou também na estruturação da Paidéia grega8. A educação deixou de

ser baseada num processo em que a criança apenas decorava e recitava os textos

homéricos. Enfim, a escrita contribuiu para que o homem grego pudesse espalhar e

perpetuar seu conhecimento e influenciar as gerações que se seguiram.

Além da fixação dos códigos de leis viabilizada pela escrita, a moeda foi outra

invenção do homem grego desse período de transição, que teve significativa importância

para a manutenção das relações sociais e para o desenvolvimento do comércio na cidade.

Um exemplo da sua importância foi que, com a urbanização e o crescente aumento

da população nas cidades gregas, o comércio se expandiu e se fez necessária a utilização de 7 Um exemplo foram os poemas homéricos que se conservaram inicialmente pela tradição oral e que eram decorados por seus recitadores, e da mesma forma podiam ser alterados de acordo com o interesse do rapsódo que o recitava. Assim, pode-se dizer que os poemas da Ilíada e da Odisseia que chegaram aos dias de hoje sofreram muitas transformações até serem ficados pela escrita por volta do século VII a.C. 8 Inicialmente, o termo Paidéia foi empregado para designar a “criação de meninos”, ou a educação e formação dos mesmos, mas no período clássico a palavra Paidéia passa a englobar toda a manifestação artística, cultural e/ou educativa desse povo. Sobre a estruturação da Paidéia, segundo Werner Jaeger: “Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação: nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam como Paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez” (JAEGER, 1979, p. 1).

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uma nova forma de manter as relações de trocas, que não o da permuta simples de uma

mercadoria por outra. Com isso, a cunhagem de moedas levou a economia para além das

relações domésticas, até então baseadas na simples troca de um produto por outro.

Aristóteles na Ética em Nicômaco procurou dar uma resposta a necessidade do surgimento

da moeda e a sua essencialidade para o desenvolvimento do comércio:

[...] todos os bens que são objetos de troca devem ser comparáveis, de uma ou de outra maneira. Foi por isso que se pôs em circulação a moeda, a qual se tornou de qualquer forma um meio termo (méson) [...] foi como substituto da necessidade e por convenção que se fez a moeda. Se ela tem o nome de moeda (nómisma), é justamente porque não existe de forma inata, mas por costume convencional (nómos), tendo nós o direito de mudar o seu valor ou de o suprimir [...] Eis porque se chama moeda. A moeda torna todas as coisas comensuráveis, dado que medimos tudo em função da moeda. A moeda pode igualizar, como uma medida que troca; não há associação sem troca; não há trocas sem igualdade; não há igualdade sem comensurabilidade (Arist. EN. 1133a)9.

Desta maneira, pode se verificar que, com o surgimento da moeda as transações

comerciais foram facilitadas. A cunhagem promoveu a expansão do comércio e fez com

que as relações comerciais se tornassem mais frequentes por toda a Grécia, propiciando e

incentivando assim, segundo Anderson, a “colonização ultramarina”:

O aparecimento da cunhagem e a difusão de uma economia monetária foram acompanhados por um rápido aumento no conjunto da população e no comércio da Grécia. A onda de colonização ultramarina dos séculos VIII e VI foi a expressão mais evidente deste desenvolvimento (apud PINSKY, 1982, p. 170).

Com o crescimento do comércio as oportunidades econômicas também

aumentaram, fazendo surgir um novo “setor” enriquecido, oriundo de fora das famílias

tradicionais. A velha aristocracia composta pelos grandes proprietários de terras detentora

do poder na comunidade gentílica foi perdendo seu espaço quando a tradição não exercia

mais influência sobre os pequenos proprietários, comerciantes, artesãos.

A nova forma de comércio com a utilização da moeda fez com que fosse

abandonada a antiga economia arcaica baseada na troca e na subsistência (ANDERSON

9 Para a abreviação deste autor clássico e desta obra clássicas foi utiliza a referência sugerida no A Greek-English Lexicon compilado por Henry George Liddell e Robert Scott, editado pela Clarendon Press-Oxford, 1996, p. XVI - XLV.

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apud PINSKY, 1982). Então esses pequenos proprietários, artesãos e comerciantes

valeram-se da liberdade proporcionada por essa nova forma econômica, e muitos acabaram

por se enriquecer, enquanto muitos membros da aristocracia iam perdendo seus bens e

terras, por não se adaptarem a esta nova forma de economia.

A mudança do controle econômico de um setor para outro levou ainda a agudos

conflitos sociais entre os novos enriquecidos que começavam a tomar o comando da

sociedade e a velha aristocracia perseguida pelo novo setor e sujeita às pressões e

incertezas, as quais ameaçavam a ordem dentro das cidades.

As crescentes tensões entre estes dois setores sociais – a aristocracia familiar e os

novos comerciantes enriquecidos –, fizeram surgir um estado de crise na sociedade, que já

não tinha condições de conservar e manter os costumes e as tradições do antigo sistema

social em contra ponto com a nova realidade da polis. Essas tensões provocaram na

sociedade uma reação política que levou ao surgimento da tirania10,. a qual viria a influir na

criação da polis clássica: “Por outro lado, a crise desembocou num fenômeno que parece

ter desempenhado um papel importante na evolução das cidades gregas, embora tenha sido

relativamente circunscrito no tempo e no espaço – a tirania” (MOSSÉ, 1993, p. 91).

Neste contexto de conflito foi que surgiu na Grécia a tirania e o governo dos

tiranos que tomaram o poder nas cidades-estado nos séculos VII e VI a.C. aproveitando-se

desse processo antagônico. Para isso fez uso de um discurso que tinha como proposta

solucionar os problemas provocados pelas crescentes desigualdades sociais proporcionadas

pelo crescimento desordenado das cidades e pelo empobrecimento da aristocracia

proprietária de terra, que tinha suas colheitas destruídas pelas guerras e suas propriedades

tomadas por invasões, ou ameaçadas pelos tiranos de serem divididas e distribuídas aos

camponeses mais pobres e sem terras.

O regime tirânico tentou regular o conflito vivido pelo homem grego em sua

sociedade nesse período de transição. Para esse fim esses governantes procuraram

alternativas para resolver o conflito social e elaboraram medidas destinadas a solucionar os

problemas enfrentados por este homem. Essas medidas provocaram algumas mudanças no

10 Cf. Jardé (1977, p. 167): “A tirania era uma forma de governo que reunia características monárquicas e democráticas: monárquicas, porque o tirano possuía autoridade ilimitada, sustentada por uma guarnição de soldados mercenários; democráticas, porque para conquistar o poder, o tirano procurava o apoio das classes inferiores, diminuindo os privilégios da aristocracia e trabalhando pelo bem-estar e prosperidade do povo”.

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cenário helênico, tanto na estrutura social, que terminou dividida em “classes”11, como na

estrutura política, que passou a ser organizada pelos governos dos tiranos.

Os principais tiranos desse período foram Pisístrato e seus filhos Hípias e Hiparco.

Entre as medidas reformadoras por eles adotadas, como mostra Michel Rostovtzeff (1983,

p. 105), estavam as reformas sociais e econômicas. Criaram um sistema uniforme de pesos

e medidas12 em toda a Grécia, onde a padronização deste sistema facilitou a

comercialização das mercadorias. Outra medida adotada foi a abolição da servidão e da

escravatura motivadas por dívidas, considerando-se ilegal o adiantamento de dinheiro a um

proprietário mediante a garantia deste de se tornar escravo do seu credor, caso não pagasse

sua pendência. Foi também mudado o sistema de separação dos cidadãos, de modo que as

antigas divisões – aristocracia gentílica, servos e escravos – perderam seu espaço e a

importância política, abrindo caminho para os novos setores da cidade – constituídos pelos

comerciantes e artífices, pelos pequenos proprietários rurais e pelos servos e escravos – e

para as novas instituições democráticas:

O poder das famílias aristocráticas foi enfraquecendo em parte porque a maioria delas foi banida e a sua terra distribuída entre os cidadãos pobres e, em parte, porque perderam totalmente a sua influência e começaram a fenecer, preparando assim, o solo para novas instituições democráticas no futuro. Quando a Tirania caiu e foi preciso reconstruir a vida pública, esta não foi baseada numa aristocracia enfraquecida e desacreditada, mas numa democracia forte e ciente da sua força (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 107).

A criação dos tribunais para aplicação das leis elaboradas também foi uma grande

inovação, pois todos os cidadãos podiam ter acesso aos tribunais, apesar da aristocracia

ainda ter o monopólio do exercício da magistratura, uma vez que somente, segundo Mossé

(1997, p. 15) ela tinha competência para administrar justiça. No entanto, a criação das leis

pelos tiranos, tornadas públicas e fixadas pela escrita, possibilitou a instituição de um

‘direito’ comum a todos (MOSSÉ, 1997, p. 15).

11 Segundo Mossé (1997, p. 15), Sólon teria dividido o conjunto dos cidadãos de Atenas em quatro “classes” censitárias . Às duas primeiras classes, as dos pentacossiomedimnos e dos hippeis, estavam reservadas as principais magistraturas. Os zeugitas compreendiam o conjunto de camponeses de condições média, capazes de se equiparem e de se transformarem em hoplitas. A última classe, a dos tetes, englobava todos os outros atenienses, a massa dos camponeses pobres e a dos artesões que não eram estrangeiros. 12 O “sistema de pesos e medidas” foi criado por Sólon no século VI a.C. para padronizar os pesos e as medidas utilizadas no comércio por todos na Grécia (ROSTOVTZEFF, 1983, p. 106).

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Essas medidas reformadoras que os tiranos procuraram executar dentro dos seus

governos alteraram de vez o cenário socioeconômico da Grécia. A tirania pretendia com

isso anular o poder do setor aristocrático, já que seu poder era apoiado pelos setores mais

pobres, que recebiam benefícios dos tiranos13.

A partir destas reformas e medidas a estrutura da cidade mudou e começou a tomar

a forma o que viria ser a polis do período clássico (cidade-estado). Foi nesta esteira que o

ideal democrático se fortaleceu, até que seus adeptos tomaram o poder e o comando da

cidade e destituíram do poder os próprios tiranos.

E foi nesta nova forma de organização em constante conflito que o homem mudou a

sua maneira de entender-se enquanto ser social. Com as mudanças que ocorreram na

maneira de viver em sociedade e com essa nova forma de pensar do homem e de pensar o

homem surgiu a filosofia, tentando responder às questões deste ser em conflito diante dos

novos questionamentos que levantava, ante as transformações que ocorriam na sociedade.

A religião que até então, segundo a crença gentílica, detinha o conhecimento que

deveria guiar a sociedade, perdera sua função com o surgimento do pensamento filosófico.

Mesmo na sua gênese, ainda estando dividida entre o sagrado e o profano, a filosofia

desempenhou um papel significativo para comunidade, pois a reflexão filosófica

proporcionou ao homem uma nova forma de entender as relações sociais, pela razão, o que

auxiliou na organização da sociedade da polis.

Sobre esta dualidade antagônica da filosofia no seu surgimento, Jean-Pierre

Vernant explica:

A filosofia vai encontrar-se, pois, ao nascer numa posição ambígua: em seus métodos, em sua inspiração, aparentar-se-á ao mesmo tempo às iniciações domésticas e às controvérsias da ágora; flutuará entre o espírito de segredo próprio das seitas e a publicidade do debate contraditório que caracteriza a atividade pública (VERNANT, 2002, p. 64).

Tais transformações mudaram a vida do homem grego, que já não conseguia

encontrar explicação para sua existência, que até então era explicada pela religião, mas que

13 Segundo Mossé (1997, p. 17), esses tiranos ficaram conhecidos como “tiranos demagogos”, pois ao tomarem o poder, estes buscavam junto aos setores mais pobres o apoio contra a aristocracia, enquanto estes esperavam em contrapartida pelo apoio algumas vantagens por parte dos tiranos.

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a partir daí necessitava de respostas mais objetivas para explicar sua existência. Foi nesse

ambiente conflituoso que surgiram os primeiros filósofos.

A filosofia procurava, pela reflexão sistematizada do pensamento, meios pelos

quais pudesse ajudar esse homem a se entender como um ser pensante, um ser que tinha

direito de expressar a sua vontade e decidir sobre a própria vida, assumindo a

responsabilidade pelos seus atos. O que até o surgimento das cidades era suprido pela

religião doméstica e sustentado por uma crença na tradição, com base na dependência para

com o destino predeterminado e na submissão aos deuses, com a filosofia passou a ser

entendido e explicado pelo pensamento racional.

Desta maneira, a filosofia surgiu como uma tentativa de intermediar os conflitos de

um homem diante de uma sociedade. A mudança de consciência de um homem que sentia

a sua vida determinada por crenças para um homem obrigado a refletir e tomar decisões

consistiu numa adaptação às novas formas de viver em oposição às antigas relações socais.

Foi neste contexto que a filosofia, bem como as outras criações gregas

supracitadas, como: os códigos de leis e a escrita; o surgimento do comércio e da moeda; a

instituição e queda da tirania; tiveram papeis essencial para auxiliar o homem do período

clássico a superar os conflitos internos e externos, já que esse período de transição do

génos para polis exigiu deste homem uma série de adaptações, que lhe permitiram situar-se

e conviver num ambiente de contradições.

Considerações finais:

As transformações pelas quais passava a sociedade grega neste período de

transição e que levaram o homem a formar e organizar a polis possibilitou esse mesmo

homem enxergar a sua importância individual dentro de uma nova estrutura social da qual

ele fazia parte. Esse homem começou a se desprender de uma forma de organização

estritamente de dependência e submissão familiar, para se deparar com uma outra maneira

de organização social participativa pautada na igualdade e na liberdade.

Com essas transformações, o homem grego deixou de ser apenas integrante de uma

família para tornar-se cidadão da polis. Teve de assumir a responsabilidade de criar as

condições propícias para regular sua existência e de manter as relações sociais com seus

concidadãos nesta nova comunidade.

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Deste modo, ao deparar-se com essas mudanças sociais, econômicas, políticas e

intelectuais pelas quais passava a sua comunidade, esse homem-cidadão mudou a maneira

de enxergar o seu papel nessa nova sociedade. Todas essas transformações e mudanças

foram essenciais para a consolidação e organização da cidade-estado clássica,

principalmente, no século V a.C., com o apogeu da polis democrática.

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