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CAMILA CASTANHATO O PROCESSO HISTÓRICO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E AS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL MESTRADO EM DIREITO PUC/SÃO PAULO 2006

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CAMILA CASTANHATO

O PROCESSO HISTÓRICO DO CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE E AS

CONSTITUIÇÕES DO BRASIL

MESTRADO EM DIREITO

PUC/SÃO PAULO 2006

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CAMILA CASTANHATO

O PROCESSO HISTÓRICO DO CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE E AS

CONSTITUIÇÕES DO BRASIL

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito (Direito Constitucional), sob a orientação da Prof a Dra Maria Garcia.

PUC/SÃO PAULO 2006

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Banca Examinadora _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________

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.

Aos amigos e mestres,

de hoje e de sempre.

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Agradeço

À minha orientadora, Profa Dra Maria Garcia, pela paciência, pelo carinho, pelo

esmero, pelas lições – não só de direito, não só da arte de lecionar, mas da vida –

e, sobretudo, por ter me ensinado o valor da palavra “transformação”.

Ao Prof. Dr. Márcio Pugliesi, pela amizade, pela atenção e pelos preciosos

ensinamentos.

À CAPES, por te viabilizado a realização deste trabalho.

Ao Professor Roberto Bahia, pelas lições angariadas nesses mais de dois anos

em que o acompanho nas aulas de Direito Constitucional, da Faculdade de Direito

de São Bernardo do Campo.

À Doutora Edna M. Barian Perrotti, que mesmo com o pouco tempo disponível,

esmerou-se em revisar este trabalho, tornando-o mais claro e técnico.

A Ricardo Massei, pelo empréstimo de parte das obras utilizadas nesta

dissertação e, sobretudo, pela paciência nos anos que antecederam a

preparação.

Aos alunos dos cursos de férias da Faculdade de Direito de São Bernardo do

Campo (turmas de janeiro/2005, julho/2005, julho/2006), pelas dúvidas que

suscitaram durante as aulas e que muito ajudaram no desenvolvimento desta

dissertação.

Aos colegas de monitoria na PUC/SP – Aloysio e Marisa Vilarino dos Santos,

Neuza A. Donato dos Santos e Camila S. Andrade –, pela paciência durante os

meses em que estive escrevendo, e, principalmente, às amigas Anna Luisa W. de

Santana e Natalie B. Ponsoni, que com muito carinho se dedicaram a revisar

parte deste trabalho .

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Aos funcionários da PUC/SP: Rui e Terezinha da secretaria, pela amizade e

paciência; Ruberval Marcelo da Silva Oliveira (APG), pelo apoio e torcida

incondicionais; Andrei, da xérox, pela amizade e dedicação na confecção deste

exemplar; Dito e Bel, da portaria, pelo carinho, e Tony, pelos anos de atenção.

Aos amigos da pós-graduação da PUC/SP, que entenderam minhas ausências:

Professora Márcia Arnoud Antunes, pela amizade e pelo companheirismo;

Professora Rosa Benites Pelicani, pelo apoio inicial inefável; Márcia M. C. Munari,

pela amizade de todas as horas; Francisca Mattos, pela ajuda incondicional nos

momentos de pane no computador; Carine Valeriano Damascena (Batatinha);

Maurício da Silva Gomes, João Carlos Azuma; Taiane Lobato; João Ibaixe Júnior;

Eduardo Moreira; Gisella Martignago; Osório Barbosa; Tânia Wolkoff Giorgi; Rita

de Cássia; Luiz Clemente; Gabriel Lira; Rodrigo Bordalo e tantos outros que me

acompanharam e me agüentaram nesta jornada.

Aos meus pais, pela oportunidade dos desafios.

Ao meu irmão, a meu afilhado, meus primos e meus tios que entenderam minhas

faltas e deram todo o apoio para que este trabalho chegasse ao fim.

Às amigas do peito, que agüentaram minha ansiedade, minha fome e irritação

sempre com muito bom humor e sempre muito presentes, Cláudia F. F. Klement,

Daniele de Sá Boasquevisque e Neide Maria de Souza.

A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para que este sonho se

realizasse.

A todos, meu eterno obrigado.

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Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam. FERNANDO PESSOA

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Resumo

O controle de constitucionalidade talvez seja o tema mais importante para o Direito

Constitucional, pois é o mecanismo capaz de garantir a existência de um verdadeiro

Estado de Direito. Esta dissertação tem por objetivo o estudo do processo histórico que

levou à criação do mecanismo de controle das normas dentro de sistemas jurídicos

formalmente estruturados. Numa primeira parte , analisa-se a formação do sistema de

controle de normas desde a Antiguidade Clássica e, na segunda, estuda-se a evolução do

controle de constitucionalidade das normas nas constituições brasileiras. Aborda-se a

questão das normas na Grécia, em Roma e nos Estados Nacionais modernos, sobretudo

na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França e na Áustria, bem como a evolução no

controle das normas desde a nossa primeira Constituição Imperial, de 1824, passando por

todas as demais – Constituição Republicana de 1891, Constituição de 1934, Constituição

de 1937, Constituição de 1946, Constituição de 1967/69 –, até finalmente fazer-se a

análise de como se processa o controle de constitucionalidade das leis na atualidade

brasileira, ou seja, sob a égide da Constituição de 1988.

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ABSTRACT

Constitutionality control is maybe the most important subject for the Constitutional Law, as

it is the mechanism that guarantees the existence of a true State of Right. The objective of

this dissertation is to study the historical process that led to the creation of rule control

mechanisms inside the law systems formally structured. In the first part, the birth of the

control of rules system since Classic Antiquity is analised, and, in the second part, the

evolution of the constitutionality control of rules in Brazilian constitutions is studied. An

approach to the subject of rules in ancient Greece and Rome and in modern national

states specially in England, in the United States, in France and in Austria is made, as well

as the evolution in control of rules since our first Imperial Constitution of 1824 passing by

all the others, i.e. Republican Constitution of 1891, 1934, 1937, 1946 and of 1967/1969 –

until the analysis of how the constitutionality control of laws in Brazilian present time is

processed, supported by the Constitution of 1988.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................p. 01

CAPÍTULO I

A CONSTITUIÇÃO E O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE

1.1. Controle da constitucionalidade .........................................................p. 05

1.2. A Constituição ....................................................................................p. 07

CAPÍTULO II

PRECEDENTES HISTÓRICOS DO CONTROLE DECONSTITUCIONALIDADE

2.1. Antigüidade Clássica ..........................................................................p. 11

2.2. Idade Média ........................................................................................p. 15

2.3. Modernidade .......................................................................................p. 18

CAPÍTULO III

A EVOLUÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

3.1. O controle das normas na Inglaterra ...................................................p. 32

3.2. O controle judicial nos EUA – controle difuso......................................p. 41

3.3. O controle político na França;. ............................................................p. 61

3.4. O controle judicial na Constituição Austríaca de 1920 –

controle concentrado............................................................................p. 75

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CAPÍTULO IV

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E AS CONSTITUIÇÕES

DO BRASIL

4.1. Constitucionalismo no Brasil ...............................................................p. 85

4.2. Constituição Imperial de 1824 .............................................................p. 90

4.3. Constituição Republicana de 1891 ......................................................p. 94

4.4. Constituição de 1934 ...........................................................................p. 104

4.5. Constituição de 1937 ...........................................................................p. 112

4.6. Constituição de 1946 ...........................................................................p. 118

4.7. Constituição de 1967-69 ......................................................................p. 128

CAPÍTULO V

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA ATUALIDADE

BRASILEIRA

5.1. Noções introdutórias ............................................................................p. 136

5.2. Controle difuso .....................................................................................p. 145

5.3. Ação direta de inconstitucionalidade (Adin) .........................................p. 159

5.4. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão

(Adin por omissão) ...............................................................................p. 177

5.5. Ação declaratória de constitucionalidade (Adecon) .............................p. 182

5.6. Argüição de descumprimento de preceito fundamental (Adpf).............p. 186

5.7. Ponderações sobre o controle de constitucionalidade na

atualidade brasileira..............................................................................p. 193

CONCLUSÕES................................................................................................p. 195

BIBLIOGRAFIA................................................................................................p. 198

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ABREVIATURAS

Adecon – Ação declaratória de constitucionalidade

Adecon´s – Ações declaratórias de constitucionalidade

Adin – Ação direta de inconstitucionalidade

Adin´s – ações diretas de inconstitucionalidade

Adin por omissão – Ação direta de inconstitucionalidade por omissão

Adpf – Argüição de descumprimento de preceito fundamental

AGU – Advogado-Geral da União

CE – Constituição Estadual

CE´s – Constituições Estaduais

CESP – Constituição do Estado de São Paulo

CF – Constituição Federal

EC – Emenda Constitucional

OAB – Ordem dos advogados do Brasil

PGR – Procurador-Geral da República

RISTF – Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

TJ – Tribunal de Justiça

TJ´s – Tribunais de Justiça

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INTRODUÇÃO

Direitos fundamentais sem garantias

especiais não tem validade prática.

Celso Ribeiro Bastos

A Constituição é o documento que traz a estrutura e organização do

Estado, bem como seus limites, que são os direitos fundamentais. Mas os direitos

fundamentais não se garantem por si só. É necessária a existência de institutos e

mecanismos que garantam a observação destes direitos por parte do Poder

Estatal.

No Direito brasileiro temos conhecidos instrumentos que visam garantir os

direitos fundamentais, por exemplo, o habeas corpus, o mandado de segurança e

o habeas data. Todas as normas de um ordenamento jurídico devem estar de

acordo com os ditames da Constituição do Estado. Se a lei é compatível com o

Texto Magno, é considerada constitucional e, portanto, válida no sistema.

Entretanto, se a lei é de alguma forma conflitante com a Constituição, ela é

considerada inconstitucional. O controle de constitucionalidade é o mecanismo

jurídico capaz de expurgar do sistema as normas contrárias à Constituição. E,

além disso, o controle de constitucionalidade deve ser a tarefa mental de todo

intérprete ao analisar um texto legal.

Cabe observar que o controle de constitucionalidade das normas, maior

mecanismo jurídico destinado a garantir o respeito aos direitos fundamentais, não

é só uma garantia, é um direito fundamental. Afinal, os instrumentos garantidores

dos direitos fundamentais são também direitos. “Tanto os direitos como as

garantias fundamentais não deixam de ser direitos individuais” (Celso Ribeiro

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Bastos1, p. 274) e merecem um estudo mais detalhado. Por isso, o controle da

constitucionalidade é o objeto desta dissertação.

Este trabalho analisa o controle de constitucionalidade das normas do

ponto de vista histórico evolutivo. Aborda a questão do controle das normas na

Antiguidade Clássica, na Idade Média e na Modernidade, bem como a evolução

desse importante instituto na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França e na

Áustria.

Em nossa primeira Constituição, a Constituição Imperial de 1824, não

existia o controle de constitucionalidade das normas. O controle de

constitucionalidade surgiu em nosso ordenamento jurídico com a primeira

Constituição Republicana, de 1891, que introduziu no Brasil o controle difuso das

normas, de origem norte-americana. A Constituição de 1934 aperfeiçoou o

sistema instaurado em 1891, trazendo algumas novidades. Já a Constituição de

1937 foi um retrocesso, e o controle de constitucionalidade ficou bastante

prejudicado. Sob a égide da Constituição de 1946, o sistema brasileiro de controle

das normas atinge sua plenitude, com a edição da Emenda Constitucional no. 16

de 1965, a qual introduziu no Brasil o sistema concentrado de controle das

normas, a exemplo do Tribunal Constitucional austríaco. A Constituição de

1967/69, do período militar, não trouxe grandes avanços para o controle de

constitucionalidade, mesmo porque o contexto político não permitia. Ressalva se

faz quanto à Emenda Constitucional no. 7 de 1977, que criou uma ação direta

tendo por objeto a interpretação de leis federais ou estaduais. Foi com a

Constituição de 1988 que o sistema de controle das normas se ampliou

significativamente, sobretudo no que se refere ao controle concentrado.

O estudo se inicia conceituando controle de constitucionalidade e definindo,

portando, o objeto da análise histórica que se desenvolverá.

1 As citações foram feitas de acordo com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), com as adaptações propostas pela Editora da Universidade Federal do Paraná (2002). Para melhor identificação dos autores citados, optou-se por indicar seu nome por completo na primeira vez em que aparece no texto, citando-se apenas seu sobrenome nas ocorrências subseqüentes.

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Após a apresentação de objeto do estudo será analisada, no Capítulo I, a

Constituição e as normas constitucionais para compreender o porquê da

existência de um mecanismo de controle para a proteção e a garantia de suas

disposições.

No capítulo II serão vistos os precedentes históricos do controle de

constitucionalidade das normas na Antiguidade Clássica, na Idade Média e na

Modernidade.

O capítulo III se dedica à evolução do controle das normas na Inglaterra,

nos Estados Unidos, na França e na Áustria, países onde surgiram os sistemas

de controle de normas utilizados hoje pela maioria dos países ocidentais e,

principalmente, para o que interessa neste trabalho, o sistema de controle de

constitucionalidade do Brasil.

O capítulo IV trata do controle de constitucionalidade das leis em nosso

País, no decorrer de nossas constituições.

O capítulo V será todo destinado ao estudo do controle de

constitucionalidade das normas na sistemática da Constituição brasileira de 1988.

Será analisado tanto o controle difuso, ou seja, aquele que se realiza por qualquer

juiz ou tribunal diante de um caso concreto, quanto o controle concentrado, que é

realizado direta e exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal e que tem por

objeto as leis abstratamente consideradas, desvinculadas, portanto, de um caso

concreto específico.

No controle abstrato serão vistos os cinco tipos de ações diretas existentes

em nosso ordenamento jurídico, quais sejam: a ação direta para fins de

intervenção (criada com a Constituição de 1934, mas diferente na sistemática da

Constituição de 1988); a ação direta de inconstitucionalidade “genérica” (mais

conhecida por Adin); a ação direta de inconstituciona lidade por omissão (Adin por

omissão e as duas ações introduzidas ao sistema constitucional vigente com a

Emenda Constitucional no. 3 de 1993: a ação declaratória de constitucionalidade

(Adecon) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental – Adpf).

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Convém ressaltar que, no decorrer do estudo, verificar-se-ão, também, os efeitos

produzidos com a edição da Emenda Constitucional no. 45 de 1994 – mais

conhecida por emenda da “reforma do Judiciário” – no nosso sistema de controle

de constitucionalidade das normas.

Por fim, será possível constatar que o controle concentrado das normas

vem ganhando mais relevância que o controle difuso, na evolução do sistema de

controle de normas do Direito Constitucional brasileiro.

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CAPÍTULO I

A CONSTITUIÇÃO E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

1.1. Controle de constitucionalidade

Controle, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,

significa “ato ou poder de controlar; domínio, governo” e, também, “fiscalização

exercida sobre as atividades de pessoas, órgãos, departamentos ou sobre

produtos, etc., para que tais atividades, ou produtos, não se desviem das normas

preestabelecidas” (p. 469) 2.

Depreende-se do segundo conceito de controle apresentado acima que,

quando se fala em “controle”, é necessário haver regras que sirvam de paradigma

(modelo) para comparar os atos praticados com seus ditames. Assim, pode-se

dizer que o termo controle está intimamente ligado ao termo comparação. Em

outras palavras: controlar significa comparar com algo.

Pois bem, se controle, em linhas gerais, é o mesmo que comparação,

controle de constitucionalidade significa comparação de algo com a Constituição.

Neste estudo, mais à frente, ver-se-á o que é que pode ser esse algo que será

comparado à Constituição. Por ora, é importante deixar claro que toda vez que se

fala em controle de constitucionalidade, deve-se visualizar a comparação de algo

com o Texto Constitucional.

Para Jorge Miranda (1996, p. 310/311):

Constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa - a Constituição - e outra - um comportamento - que lhe está ou não conforme, que cabe ou não cabe no seu sentido, que tem nela ou não a sua base. Assim declaradas, são conceitos que parecem surgir por dedução imediata. De modo pré-sugerido, resultam do confronto de uma norma ou de um acto com a Constituição, correspondem a

2 O dicionário Aurélio apresenta outras definições que não foram transcritas, por não interessarem aos objetivos deste estudo.

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atributos que tal comportamento recebe em face de cada norma constitucional. Não se trata de relação de mero carácter lógico ou intelectivo. É essencialmente uma relação de carácter normativo e valorativo, embora implique sempre um momento de conhecimento. Não estão em causa simplesmente a adequação de uma realidade a outra realidade, de um QUID a outro QUID ou a desarmonia entre estes e aquele acto, mas o cumprimento ou não de certa norma jurídica.

Referindo-se ainda ao conceito de inconstitucionalidade, afirma Miranda

(1996, p. 331) que:

A inconstitucionalidade não é um vício, embora em concreto resulte de um vício que inquina o comportamento de qualquer órgão do poder. Não redunda, desde logo, em invalidade, embora a determine ou possa determinar. Nem é um valor jurídico negativo, embora a invalidade constitucional acarrete nulidades constitucionais.

Importante não confundir controle de constitucionalidade com jurisdição

constitucional. Este é gênero do qual aquele é espécie. Jurisdição constitucional

corresponde a todas as ações, interpretações e mecanismos que envolvam as

normas constitucionais, seja o sistema de controle de constitucionalidade, sejam

os demais instrumentos disponíveis no ordenamento jurídico, como, por exemplo,

os writs constitucionais no Brasil: habeas corpus, habeas data, mandado de

segurança, ação popular e outros.

Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (2006, p. 3) afirma:

(...) As locuções jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade não são sinônimas, embora sejam freqüentemente utilizadas de maneira intercambiável. Trata-se, na verdade, de uma relação entre gênero e espécie. Jurisdição constitucional designa a aplicação da Constituição por juízes e tribunais. Essa aplicação poderá ser direta, quando a norma constitucional discipline, ela própria, determinada situação da vida. Ou indireta, quando a Constituição sirva de referência para atribuição de sentido a uma norma infraconstitucional ou de parâmetro para sua validade. Neste último caso estar-se-á diante do controle de constitucionalidade, que é, portanto, uma das formas de exercício da jurisdição constitucional.

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Também para Mauro Cappelletti (1999, p. 23/24) os dois institutos não se

confundem:

(...) o tema do controle de constitucionalidade das leis não pode, certamente, identificar-se com a jurisdição ou justiça constitucional, a Verfassungsgerichtsbarkeit dos alemães. Ele, ao contrário, não representa senão um dos vários possíveis aspectos da assim chamada ‘justiça constitucional’, e, não obstante, um dos aspectos mais importantes.

E Oswaldo Luiz Palu (1999, p. 83) explica:

A jurisdição constitucional é a atividade que visa garantir a aplicação dos princípios e normas da Constituição às controvérsias e dúvidas surgidas, concreta ou abstratamente, atividade advinda de órgão que atua com a independência em relação aos órgãos ou poderes elaboradores do texto normativo objeto de fiscalização, ou do Executivo, de modo definitivo e imparcial. A jurisdição constitucional exerce, primordialmente e institucionalizadamente, a fiscalização da constitucionalidade. Assim, a principal FUNÇÃO da jurisdição cons titucional é o controle de constitucionalidade das leis.

Dado que controle significa comparação, que controle de

constitucionalidade significa comparar com a Constituição e ainda que controle de

constitucionalidade é apenas um dos mecanismos utilizados na chamada

jurisdição constitucional, torna-se necessário compreender por que as normas

constitucionais são privilegiadas num sistema jurídico.

1.2. A Constituição

Se existe um controle de constitucionalidade, ou seja, se existe todo um

sistema para proteger os dispositivos contidos na Carta Constitucional, cabe

perguntar: por que as normas constitucionais são tão importantes a ponto de

merecer um sistema de controle especial?

Trata-se, é certo, da supremacia da Constituição face às demais normas de

um ordenamento jurídico. Mas, afinal, por que a Constituição fica no ápice da

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estrutura escalonada do ordenamento jurídico, de acordo com Hans Kelsen

(1994) 3, dando fundamento de validade para todas as demais normas do

sistema?

A Constituição é o documento que confere validade às demais normas

dentro de um ordenamento jurídico exatamente porque o conteúdo de suas

normas é político. As normas contidas numa Constituição disciplinam o poder.

São essas normas que estabelecem a estrutura, a organização, a forma de

aquisição e exercício e, principalmente, os limites do poder. Elas tratam das

divisões de competências (organização do poder dentro do Estado) e dos direitos

e garantias fundamentais (limites ao poder estatal). Daí o porquê de as normas

constitucionais possuírem um sistema de controle que garanta a autoridade de

seus preceitos.

Para José Afonso da Silva (2005, p. 37/38):

Constituição é um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.

Enquanto Karl Loewenstein (1976, p. 149) salienta que:

3 Kelsen é considerado um divisor de águas para a teoria jurídica contemporânea. Para transformar o Direito numa ciência pura, Kelsen elaborou sua teoria abstraindo-se os valores e os fatos. Direito, para Kelsen, é norma (que encontra-se no plano deôntico do dever ser). Ele não ignora a importância dos fatos e dos valores, apenas os deixa de lado para que o Direito se torne uma ciência, baseada em um método de fato científico. Direito, para o filósofo, é um escalonamento hierárquico de normas em que uma encontra seu fundamento de validade na outra que lhe é imediatamente superior, até chegar-se ao ápice da pirâmide hierárquica, na qual se encontra a Constituição, fundamento último de validade para todas as demais normas postas do ordenamento jurídico. Mas, se a Constituição é o que fundamenta todo o restante do ordenamento jurídico, o que dá fundamento de validade à Constituição? Nesse ponto, Kelsen criou uma ficção, dizendo que o que dá validade à Constituição é a “Norma Hipotética Fundamental”, norma esta suposta (e não posta como a Constituição), desprovida de conteúdos axiológicos (portanto ela não traz valoração alguma), e que somente existe supostamente para dizer: Cumpra-se a Constituição. Os que seguem a teoria pura de Kelsen são chamados de positivistas, em contraposição àqueles que acreditam que o que confere validade à Constituição é o direito natural (necessariamente valorativo), e por essa razão são chamados de jusnaturalistas.

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Han pasado muchos siglos hasta que el hombre político ha aprendido que la sociedad justa, que le otorga y garantiza sus derechos individuales, depiendente de la existencia de limites impuestos a los detentadores del poder en el ejercicio de su poder, independientemente de si la legitimación de su dominio tiene fundamentos fácticos, religiosos o jurídicos. Com el tiempo se ha ido reconociendo que la mejor manera de alcanzar este objetivo será haciendo constar los frenos que la sociedad desea imponer a los detentadores del poder en forma de un sistema de reglas fijas – < la constitución > – destinadas a limitar el ejercicio del poder político. La constitución se convirtió así en el dispositivo fundamental para el control del proceso del poder.

Ademais, Loewenstein apresenta o mínimo irredutível exigido de uma

autêntica Constituição, qual seja: normas que estabeleçam a divisão de

competências, pois é preciso diferenciar as diversas tarefas estatais e atribuí-las a

diferentes órgãos (separação dos poderes); mecanismos que estabeleçam a

cooperação dos diversos detentores do poder (harmonia entre os poderes);

mecanismos que evitem bloqueios entre os diferentes detentores do poder (um

poder não deve se sobrepor aos outros); método para revisão e mutação4 das

normas constitucionais, a fim de que se adaptem às novas realidades sociais, e,

por fim, o reconhecimento expresso dos direitos fundamentais, ou seja, o

reconhecimento expresso de certas esferas de autodeterminação individual e sua

proteção frente à intervenção de um ou de todos os detentores do poder.

Imperativo transcrever suas lições na íntegra:

Los siguientes elementos fundamentales están considerados como el mínimo irreducible de una auténtica constitución: 1. La diferenciación de las diversas tareas estatales y su asignación a diferentes órganos estatales o detentadores del poder para evitar la concentración del poder en las manos de um único y autocrático detentador del poder. 2. Um mecanismo planeado que establezca la cooperación de los diversos detentadores del poder. Los dispositivos y las instituciones en forma de frenos y contrapesos – los checks and balances, familiares a la teoría constitucional americana y francesa –, significan simultáneamente distribución y, por tanto, una limitación del ejercicio del poder político. 3. Un mecanismo, planeado igualmente com anterioridad, para evitar los bloqueos respectivos entre los diferentes detentadores

4 Mutação é o termo técnico utilizado para as revisões informais do texto constitucional. Revisão informal porque se dá através da interpretação, alterando-se o sentido da norma sem, no entanto, mexer no seu texto.

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del poder autónomos, com la finalidad de evitar que uno de ellos, caso de no producirse la cooperación exigida por la constitución, resuelva el impasse por sus propios medios, esto es, sometiendo el processo del poder a una dirección autocrática. Cuando, finalmente, bajo el impacto de la ideologia democrática de la soberania popular del pueblo, el constitucionalismo alcanzó el punto en el cual el árbitro supremo en los conflictos entre los detentadores del poder estabelecidos quedó encarnado en el electorado soberano, la idea originaria del constitucionalismo liberal quedó completada en la idea del constitucionalismo democrático. 4. Un método, también establecido de antemano, para la adaptación pacífica del orden fundamental a las cambiantes condiciones sociales y políticas - el método racional de la reforma constitucional - para evitar el recurso a la ilegalidad, a la fuerza o a la revolución. 5. Finalmente, la ley fundamental debería contener un reconocimiento expreso de ciertas esferas de autodeterminación individual - los derechos individuales y liberdades fundamentales –, y su protección frente a la intervención de uno o todos los detentadores del poder. Que este punto fuese reconocido en una primera época del desarrollo del constitucionalismo es un signo de su específico telos liberal. Junto al principio de la distribución y, por lo tanto, limitación del poder, estas esferas absolutamente inaccesibles al poder político se han convertido en el núcleo de la constitución material (1976, p. 153/154).

Sendo, pois, uma Constituição autêntica, ou seja, contendo o mínimo

exigido para regular um Estado, ela será o paradigma de todos os demais atos do

ordenamento instituído. Ela figurará no ápice do sistema escalonado de normas

preconizado por Kelsen servindo de fundamento último de validade para todas as

normas infraconstitucionais. E um dos instrumentos que garante sua

superioridade no sistema jurídico é exatamente o mecanismo de controle de

constitucionalidade das normas.

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CAPÍTULO II

PRECEDENTES HISTÓRICOS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1. Antiguidade Clássica

Na Antiguidade clássica já se tinha o entendimento de que as normas que

regulam o poder são diferentes e superiores às demais normas de um sistema

jurídico. Nesse sentido, ensina Manuel Gonçalves Ferreira Filho (2002, p. 3):

Data da Antigüidade a percepção de que, entre as leis, algumas há que organizam o próprio poder. São leis que fixam os seus órgãos, estabelecem as suas atribuições, numa palavra, definem a sua Constituição. Na célebre obra de Aristóteles, A Política, está clara essa distinção entre leis constitucionais e leis outras, comuns ou ordinárias.

Cappelletti (1999, p. 11) pondera que, “na verdade, tem sido própria de

todos os tempos a ânsia dos homens de criar ou descobrir uma ‘hierarquia’ das

leis, e de garanti-la (...)”.

De acordo com Walber de Moura Agra (2002, p. 490), Aristóteles compilou,

na Grécia, 158 normas num documento denominado Politeia. Essas 158 normas

construíram as estruturas do poder e definiram o regime político das cidades-

estados gregas. A Politeia 5 correspondia ao que hoje conhecemos por

Constituição, documento que traz as diretrizes políticas nos Estados

contemporâneos (cf. NORBERTO BOBBIO, 2004, p. 133).

Em Atenas, além das normas compiladas na Politeia existiam ainda mais

dois tipos de normas: a nómos (equivalente a nossa lei) e o pséfisma (que

corresponde ao nosso decreto).

Nómoi eram leis que regulavam a cidade-estado ateniense, e que

requeriam um procedimento especial para sua alteração. Nesse sentido é

5 “POLITEIA : el término griego significa <sistema o régimen político> em general, y, em particular, <república>. También se aplica a la Constitución de uma ciudad y, por último, a la ciudadanía de quienes pertencen com pleno derecho a la comunidad politica” (ARISTÓTELES, 1998, p. 354).

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possível visualizar certa similitude entre os nómoi atenienses e as

contemporâneas normas constitucionais. 6

Já psefísmata eram o que hoje conhecemos por decretos.

Assim como hodiernamente as leis e decretos devem obediência à

Constituição, também na Grécia antiga os psefísmata e os nómoi precisavam

estar de acordo com as 158 normas que compunham a Politeia (AGRA, 2002, p.

491). E os psefísmata ainda deviam estar de acordo com os nómoi, sob pena de

serem declarados nulos.

Isso porque àquela época havia a consciência de que a lei devia ser

imutável, fixa e protegida das paixões humanas.

Para Platão, a lei devia “reproduzir a ordem divina, superior e imutável” e

não devia se curvar aos “interesses mutáveis dos homens ou das classes” (apud

CAPPELLETTI, 1999, p. 49/50). No mesmo sentido eram os ensinamentos de

Aristóteles, para quem a lei estava “acima das paixões humanas” (IDEM). Para

Aristóteles (1998, p. 160), “(...) las leyes son las que están separadas de los

elementos que caracterizan el régimen, y según ellas deben gobernar los

magistrados y guardarse de los que las violan”.

Já se formulava, portanto, desde a Antiguidade Clássica, a doutrina da

“supremacia da lei”.

Cappelletti (1999, p. 49) salienta:

Como escreveu um insigne estudioso do Direito ático, Ugo Enrico Paoli, foi um ‘conceito comum a todos os Estados gregos’ o de que a lei (nómos) devesse ser qualquer coisa de fixo ‘retirada das tumultuárias vicissitudes da vida política e das decisões

6 “Na realidade, os nómoi, ou seja, as leis, tinham um caráter que, sob certos aspectos, poderia se aproximar das modernas leis constitucionais, e isto não somente porque diziam respeito à organização do Estado, mas ainda porque modificações das leis (nómoi) vigentes não podiam ser feitas a não ser através de um procedimento especial, com características que, sem dúvida, podem trazer à mente do jurista contemporâneo o procedimento de revisão constitucional (...)” (CAPPELLETTI, 1999, p. 49).

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improvisadas das assembléias’. Portanto, tinha sido excogitado, em Atenas, um procedimento de revisão das leis extremamente complexo; a mudança da lei era considerada, em suma, uma providência de extraordinária gravidade, cercada das garantias mais prudentes e até mais estranhas, com responsabilidades gravíssimas para quem propunha uma alteração que não fosse, no final, aprovada ou que, ainda que aprovada, se mostrasse, depois, inoportuna. Deste modo, o poder de mudar as leis era retirado dos caprichos de maioria da Assembléia Popular (Ecclesía).

A Eclésia era a Assembléia Popular ateniense, criada por Clístenes e

composta por cidadãos maiores de dezoito anos no pleno exercício dos direitos

políticos 7. Essa Assembléia tinha poder legiferante 8. No entanto, a natureza

jurídica de seus atos normativos era de psefísmata (decretos), e não de nómoi

(leis).

Cappelletti (1999, p. 50) esclarece que “o pséfisma podia ter o mais vário

conteúdo: e assim ele podia, por exemplo, conter normas abstratas e gerais,

suscetíveis de impor-se de maneira vinculatória a todos os cidadãos e, nesse

caso, ele era assemelhado à lei”.

Há de se notar que, mesmo que um pséfisma (decreto) fosse geral e

abstrato, existia um princípio fundamental segundo o qual ele devia estar formal e

materialmente de acordo com os nómoi (leis).

7 De acordo com Luiz Carlos de Azevedo (2005, p. 48), a Eclésia era “(...) aberta a todos que detivessem tais prerrogativas [referentes ao pleno exercício dos direitos políticos], possibilitava o concurso de centenas de membros, alternando-se a freqüência de acordo com a importância da matéria ou disponibilidade dos cidadãos, muitas vezes empenhados em seus afazeres no comércio, na messe, ou, ainda, aproveitando a oportunidade da estação propícia à navegação, em que o movimento no porto era sempre maior. Não se contavam, por igual, aqueles que residiam em sítio mais afastado, tudo isso levando, por conseqüência, a uma defasagem no número de seis mil participantes possíveis de exercerem o direito de voto.” 8 “Ecclesia: asamblea del pueblo creada por Clístenes. Participan en ella todos los ciudadanos con servicio militar cumplido. Normalmente, sólo iban unos 2.000 o 3.000, pero em casos graves se convocaba asamblea plenaria, alcanzándose un quórum de 6.000. La presidencia corresponde al presidente de los prítanos y en las electorales a los nueve arcondes. Tiene poder legislativo, judicial, control del ejecutivo y entiende en política exterior. Las propuestas suelen discutirse antes en la Boulé. La asamblea plenaria decide también el ostracismo y la inmunidad para proponer algo contrario a las leyes existentes o para solicitar el perdón un condenado a atimía” (ARISTÓTELES, 1998, p. 350, grifo meu).

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De acordo com Cappelletti (1999, p. 50/51), se um pséfisma (decreto)

criado pela Eclésia (Assembléia Geral) fosse contrário aos nómoi (leis) e,

portanto, ilegal, duas conseqüências decorriam:

1ª. Declaração de nulidade do decreto viciado. Segundo Demóstenes, o

nómos (lei) prevalece sobre o pséfisma (decreto);

2ª. Responsabilidade penal imputada àquele que propôs o decreto viciado

– o pséfisma incompatível com os nómoi. Nesse caso, era preciso que, num prazo

de um ano, qualquer cidadão ajuizasse uma ação pública de ilegalidade,

denominada grafè paranómon. Essa ação pública de responsabilidade penal fora

criada por Pérecles e podia ser utilizada por qualquer cidadão (AGRA, 2002, p.

491).

Importante esclarecer, no entanto, que o conceito de cidadão na

Antiguidade não é o mesmo que temos hoje. Para Aristóteles (1998, p. 116/117),

“(...) la ciudad es un conjunto de ciudadanos” e “el ciudadano (...) se define mejor

(...) por su participación en la justicia y en el gobierno”.

Isso porque as sociedades antigas eram ORGANICISTAS, o que, segundo

Bobbio (2004, p. 76), equivale dizer que para elas o todo era mais importante que

as partes. A sociedade (o todo) sobrepunha-se ao indivíduo (a parte). Não se

tinha a noção de liberdade individual como hodiernamente temos. Para os

antigos, liberdade era a possibilidade de participar da polis, ou seja, liberdade

para participar da vida pública da cidade. A liberdade, antes de ser um direito, era

um dever do cidadão ateniense.

Aristóteles (1998, p. 48) refere que:

(...) por naturaleza, la ciudad es anterior a la casa y a cada uno de nosotros. Ya que el conjunto es necesariamente anterior a la parte. Pues si se destruye el conjunto ya no habrá ni pie ni mano, a no se com nombre equívoco, como se puede llamar mano a una piedra. Eso será como una mano sin vida. Todas las cosas se definen por su actividad y su capacidad funcional, de modo que cuando éstas dejan de existir no se puede decir que sean las

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mismas cosas, sino homónimas. Así que está claro que la ciudad es por naturaleza y es anterior a cada uno. Porque si cada individuo, por separado, no es autosuficiente, se encontrará como las demás partes, en función a su conjunto. Y el que no puede vivir en sociedad, o no necesita nada por su propria suficiencia, no es miembro de la ciudad, sino como una bestia a un dios.

Já Paulo Roberto Barbosa Ramos (2000, p. 18) explica:

Se a polis foi o primeiro ser que a natureza concebeu (anterioridade lógica) e o último que ela criou, é sinal de que tudo o que foi criado anteriormente foi criado para a perfeição da POLIS. Dessa forma, o homem não era nada mais além do que um ser, que, por natureza, existia para que a POLIS fosse o que era, um ser perfeito.

Disso decorre o modelo paternalista de sociedade que vigorava na

Antiguidade, “segundo o qual o homem é um animal político que nasce num grupo

social, a família, e aperfeiçoa sua própria natureza naquele grupo social maior,

auto-suficiente por si mesmo, que é a pólis” (BOBBIO, 2004, p. 127). Nessas

sociedades os cidadãos eram considerados súditos menores e que, portanto,

precisavam ser tutelados e guiados, independentemente de suas vontades

individuais, para uma vida boa, próspera, sadia e feliz.

Bobbio lembra duas metáforas que expressam muito bem o pensamento

clássico: a do pastor, em que o governante é o pastor e o povo é o rebanho,

presente na polêmica entre Sócrates e Trasímaco sobre o tema; e a do timoneiro,

ou gubernator, em que “o povo é a chusma que deve obedecer, e que, quando

não obedece e se rebela, acreditando poder dispensar a experiente direção do

comandante (como se lê numa passagem de A república de Platão), faz com que

a nave vá necessariamente a pique” (BOBBIO, 2004, p. 113 e 126).

2.2. Idade Média

De acordo com Cappelletti (1999, p. 51/52), a concepção de direito e de

justiça que vigorou durante a Idade Média também pode ser considerada um

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precedente remoto do controle de constitucionalidade que conhecemos

atualmente:

A concepção do direito e da justiça, dominante na Idade Média, se se ligava, em sentido latíssimo, ao pensamento de Platão e de Aristóteles, (...) ligava-se, porém e sobretudo, através da doutrina tomista, aos filósofos estóicos e a Cícero. Naquela concepção, a idéia de jus naturale assumia um lugar preeminente: o direito natural era configurado como a norma superior, de derivação divina, na qual todas as outras normas deviam ser inspiradas.

Assim, pode-se afirmar que, durante a Idade Média, a idéia da existência

de certos direitos naturais fez surgir duas ordens normativas: uma natural e uma

civil.

Daí decorre a fórmula romana segundo a qual o soberano não está

obrigado à lei civil, porém o está à lei natural. A ordem natural (jus naturale) era

superior e inderrogável, enquanto a ordem civil (jus positum) não podia ser

incompatível com a lei natural, sob pena de ser declarada nula:

(...) o ato soberano que tivesse infringido os limites postos pelo direito natural era declarado formalmente nulo e não vinculatório, tanto que o juiz competente para aplicar o direito era obrigado a considerar nulo (e por isso não obrigatório) seja o ato administrativo contrário ao direito (natural), seja a própria lei que se encontrasse em semelhante condição, mesmo que ela tivesse sido proclamada pelo Papa ou pelo Imperador. Segundo, enfim, alguns teóricos, mesmo os súditos individualmente considerados estavam desobrigados do dever de obediência em face do comando não conforme ao direito (natural), tanto que a imposição coativa da norma antijurídica justificava a resistência, mesmo armada e, até, o tiranicídio (BATTAGLINI, 1957, apud CAPPELLETTI, 1999, p. 52).

Entretanto, assim como na Grécia antiga, também em Roma a sociedade

era ORGANICISTA. Dessa forma, não obstante o reconhecimento de uma órbita

pertencente aos direitos naturais à qual até mesmo o Soberano estava vinculado,

não existia nessas sociedades a idéia de liberdade individual. Liberdade, para

eles, era poder participar da vida política das cidades.

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O só aspecto de sociedade organicista explica o total desprezo pela parte, e pelo indivíduo, que nela não possuía direitos em relação ao todo, já que tudo o que possuía nesse tipo de sociedade era uma dádiva da natureza para o bem do todo, e não das partes. Essas sociedades eram completamente indiferentes, como bem anotou Loewenstein, à idéia de liberdade individual. Nem a POLIS grega nem a República romana reconheceram direitos dos indivíduos como invioláveis pelo poder estatal (RAMOS, 2000, p. 19).

Tendo prevalecido, em Roma, a doutrina dos direitos naturais de origem

divina, o controle de constitucionalidade que vigorava nessa sociedade pautava-

se em valores místicos, teológicos, ligados à vontade divina. Mas, como já visto, a

vontade divina estava voltada para o bem da sociedade como um todo, e não

para o indivíduo em particular. Assim, o poder era limitado em prol da sociedade,

mas não em prol do indivíduo.

Contudo, enquanto na Antiguidade Clássica o controle de

constitucionalidade cabia à Polis, órgão mais perfeito da natureza, na Idade Média

o controle de constitucionalidade foi delegado à figura divina:

Na Idade Média, floresceu a idéia de que a autoridade dos governantes se fundava num contrato com os súditos: o PACTUM SUBJECTIONIS. Por este pacto, o povo se sujeitava a obedecer ao príncipe enquanto este se comprometia a governar com justiça, ficando Deus como árbitro e fiel do cumprimento do contrato. Assim, violando o príncipe a obrigação de justiça, exoneravam-se os súditos da obediência devida, pela intervenção do Papa, representante da divindade sobre a Terra (FERREIRA FILHO, 2002, p. 6).

São Tomás de Aquino ensina que a possibilidade de modificação da lei

humana (lei civil) não significa o direito de perverter a lei divina, que era sua

referência (apud FERREIRA FILHO, 2002, p. 22/23).

Não obstante a imutabilidade da lei divina, as leis justas e de acordo com a

vontade de Deus nem sempre eram respeitadas. Isso porque não existiam

mecanismos capazes de garantir a eficácia das leis justas face ao poder instituído

e efetivamente exercitado.

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Ramos (2000, p. 23) pondera que “(...) Havia, na realidade, uma aspiração

moral de ver essas normas respeitadas, mas não instrumentos jurídicos do direito

positivado nessa sociedade capazes de fazer dessas normas as regras efetivas

de convivência social (...)”.

Como lembra Silva (1998, p. 155): “(...) em Atenas, já se lutava pelas

liberdades democráticas”, mas foi na Idade Média, sob a influência da doutrina

dos direitos naturais de origem divina, que nasceu o gérmen das futuras

declarações de direitos e dos futuros mecanismos para sua proteção.

Na Idade Média surgiram os primeiros documentos garantidores de direitos

individuais, ainda que privilegiassem apenas um grupo determinado. São

exemplos desses documentos os pactos, os forais e as cartas de franquias (cf.

SILVA, 1998, p. 155) 9. O mais célebre desses documentos é a Magna Carta, de

1215, que será estudada mais detalhadamente à frente, quando forem tratados os

precedentes históricos do controle de constitucionalidade das normas na

Inglaterra.

Mas antes e depois da Magna Carta inglesa, outros pactos surgiram. O

primeiro foi o espanhol, de Leon e Castela (1188), pelo qual o rei Afonso IX jurara

garantir os mais importantes direitos das pessoas, como a segurança, o domicílio,

a propriedade, a atuação em juízo , etc.; outro foi o de Aragão (1265), que

reconhecia a existência de direitos individuais, mas somente para os nobres.

(SILVA, 1998, p. 155).

2.3. Modernidade

Foi com a superação do período medieval e a construção dos Estados

nacionais que se desenvolveu, de fato, uma teoria de limitação do poder e, com

9 Para Ferreira Filho (2002, p. 4 e ss.): “Pactos, forais e cartas de franquia, freqüentes na Idade Média, firmaram a idéia de texto escrito destinado ao resguardo de direitos individuais, que a Constituição iria englobar a seu tempo. Esses direitos, contudo, sempre se afirmavam imemoriais, e portanto fundados no tempo passado, enquanto eram particulares a homens determinados e não apanágio do homem, ou seja, do ser humano enquanto tal”.

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ela, efetivou-se o controle de constitucionalidade das normas. Mas, antes de

surgir a teoria da limitação do poder, foi preciso que as sociedades passassem

pela teoria do poder ilimitado.

Depois do fim do Império Romano, formaram-se vários povoados bárbaros

e, durante a Idade Média, a sociedade era baseada no sistema feudal. Não existia

um poder central forte e capaz de garantir o desenvolvimento do comércio. O

poder político estava cindido nas mãos dos senhores feudais que, dentro de seus

territórios, eram soberanos.

Essa fragmentação do poder dificultava o desenvolvimento do comércio.

Daí porque a burguesia que surgia insipiente na época apoiou a construção de

um poder central absoluto e ilimitado:

(...) Para a destruição do mundo medieval, todo fragmentado, foi necessário que se concentrasse nas mãos de um único senhor uma extraordinária soma de poderes para que ele realizasse a missão de construir uma unidade governativa a fim de evitar a asfixia do comércio, então insurgente. Em outros termos, os senhores dos Estados nacionais tiveram legitimado seu poder ilimitado, porque o grande objetivo da mentalidade hegemônica naquele contexto histórico era construir um ambiente unificado para todo um povo, o que facilitaria o desenvolvimento das novas relações econômicas que se colocavam. Daí o surgimento dos reis absolutos (RAMOS, 2000, p. 24).

Com o surgimento das monarquias absolutistas para garantir a expansão

comercial, o direito passou a ser arbitrário, ao passo que deixou de ser fruto da

vontade divina (idéia defendida por São Tomás de Aquino, durante a Idade Média)

para tornar-se fruto da vontade do soberano (doutrina de Thomas Hobbes).

Para Thomas Hobbes, o papel do soberano é o de garantir a segurança e a

prosperidade dos seus súditos e é dessa função que advém sua legitimidade. O

soberano tem todos os direitos, e a justiça é inteiramente baseada na lei positiva,

já que a lei é imposta pelo soberano e é necessariamente justa . E mais: a Igreja

também se subordina ao Estado e suas leis. Como mostram Hilton Japiassú e

Danilo Marcondes (1996, p. 130): “(...) o papel do soberano, que Hobbes chama

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de Leviatã, indomável e terrível dragão bíblico, é puramente utilitário. Na guerra

de todos contra todos, há a necessidade de um pacto social entre os indivíd uos-

cidadãos, cada um renunciando à sua liberdade em favor do soberano absoluto”.

Ramos (2000, p. 24) entende que:

Com os reis absolutos, a lei, que para SÃO TOMÁS DE AQUINO não era qualquer ordem do governo, passou a ser uma decisão do soberano; o que este prescrevesse deveria ser obedecido e tido por justo. Com isso se eliminou da lei humana toda exigência de subordinação e adequação à lei divina. Mais ainda: os governantes, em suas decisões, não estavam mais obrigados a respeitar os costumes imperantes na sociedade. As suas decisões (leis) tornaram-se superiores aos costumes, podendo, inclusive, ab-rogá-los e modificá-los.

Mas Afonso Arinos de Melo Franco (1976, p. 135) não concorda com esta

afirmação. Para ele, “havia (...) mesmo nas monarquias absolutas, a limitação do

poder pelo direito costumeiro.”

Contudo, a lei pautada na vontade do soberano não era somente uma

conseqüência da formação dos Estados nacionais absolutistas: era também, e

sobretudo, fruto do Renascimento (séc. XV e XVI), movimento cultural que

questionou os valores medievais, retornando sua inspiração às antigas

civilizações greco-romanas.

Ramos (2000, p. 25) explica que o Renascimento, ao desprestigiar os

costumes, fortalecera a irreligiosidade e, uma vez que o Direito passou a ser

somente a vontade do soberano, “fez com que as leis divinas, naturais e

fundamentais do Estado não servissem mais como barreiras ao poder legislativo

do rei. Perdeu assim a lei humana o caráter de invenção social voltado para o

bem comum. Foi o momento, então, em que se fez presente a necessidade de um

controle de constitucionalidade das leis”.

A burguesia, ao mesmo tempo que apoiou a formação das monarquias

absolutistas a fim de eliminar as barreiras comerciais que imperavam com o

feudalismo, passou a sofrer com o poder arbitrário e ilimitado dos soberanos.

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Dessa forma, só restou a essa classe aliar-se aos demais segmentos da

sociedade, também prejudicados com o poder absoluto ilimitado, para derrubar

essa ordem política injusta e criar uma nova ordem jurídica, gerida não por um

soberano arbitrário, mas pela própria burguesia 10. É nesse momento que surge a

idéia de uma Constituição escrita como instrumento adequado para reger a

sociedade e que, de acordo com Ramos (2000, p. 25/26),

(...) revelou-se o único instrumento jurídico-político capaz de garantir a condução da sociedade a partir dos princípios e normas reivindicados, devido a sua capacidade de torná-los perenes na memória do povo, que os deveriam obedecer a fim de que se pudesse construir um mundo novo, fundado na liberdade e na igualdade.

Nos séculos XVII e XVIII, surgiu entre os pensadores europeus o

entendimento de que não só a autoridade do governante advinha de um pacto,

mas a própria sociedade era fruto de um acordo entre os homens, mesmo que

não expresso. Essa era a idéia de T. Hobbes, no Leviatã (1651), de J. Locke, no

Tratados sobre o governo civil (1690), e de J. J. Rousseau, no Contrato social

(1762). Como pondera Ferreira Filho (2002, p. 6):

(...) dessas lições resulta sempre que o poder decorre da vontade dos homens e tem um estatuto fixado por estes. Estatuto que se impõe aos governantes e visa a assegurar a paz (único objetivo para Hobbes) e os direitos naturais (objetivo principal para Locke e Rousseau).

A idéia de que a própria sociedade se origina de um pacto aliada à doutrina

jusnaturalista, que também surgia nesse momento histórico, faz mudar

radicalmente o enfoque até então vigente.

A escola jusnaturalista surgiu em oposição ao pensamento medieval.

Durante a Idade Média, por influência de São Tomás de Aquino , dos filósofos

10 Francisco Ayala salienta que: “O Estado liberal-burguês aparece na história assumindo o duplo papel de herdeiro e adversário da monarquia absoluta. É adversário, porquanto que comporta, frente a ela, eventualmente, o princípio político oposto: a democracia; porém, ao mesmo tempo, herdeiro, porque se propõe estabelecer a democracia dentro do âmbito do Estado nacional, que a monarquia absoluta havia formado. Neste sentido tem-se podido afirmar com plena razão que o Estado constitucional desenvolve as direções marcadas no período absolutista” (AYALA, 1983, apud RAMOS, 2000, p. 26, nota 29).

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estóicos e, sobretudo, de Cícero, reconheceu-se a existência de duas ordens

normativas, uma civil e uma natural. Daí o surgimento dos chamados direitos

naturais, os quais, durante toda a Idade Média, foram fundamentados em

argumentos místicos, ligados ao divino, a Deus.

Por outro lado, os jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII procuraram dar

uma justificativa RACIONAL para a existência dos direitos naturais. John Locke,

conhecido como o “pai dos jusnaturalistas” (Cf. BOBBIO, 2004, p. 48), ao

contrário de Thomas Hobbes, o grande filósofo do absolutismo, entendia que, no

estado de natureza, ou seja, no estado pré-sociedade, os homens não viviam

como lobos dos homens (hipótese hobbesiana), mas sim em plena liberdade e

igualdade. Em suas palavras:

Para compreender corretamente o poder político e traçar o curso de sua primeira instituição, é preciso que examinemos a condição natural dos homens, ou seja, um estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade (JOHN LOCKE, 2001, p. 83).

Para Locke, uma vez que os homens viviam com liberdade e igualdade no

Estado natural, quando eles se unem através de um contrato, mesmo que tácito,

para criar um Estado jurídico, esse Estado formado encontra seus limites nos

direitos naturais, que são inerentes ao homem no estado de natureza.

Mas se os homens eram livres e iguais para Locke no estado de natureza,

por que se unem num Estado jurídico? Locke explica que, não obstante todos

serem livres e iguais no estado de natureza, esse não é um estado ideal, posto

que todos detêm o poder de realizar a defesa de seus bens e dos seus pares, o

que gera, por conseqüência, um estado de instabilidade. Isso pode ser conferido

em suas lições:

Se o homem é tão livre no estado de natureza como se tem dito, se ele é o senhor absoluto de sua própria pessoa e de seus bens, igual aos maiores e súdito de ninguém, por que renunciaria a sua liberdade, a este império, para sujeitar-se à dominação e ao

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controle de qualquer outro poder? A resposta é evidente: ainda que no estado de natureza ele tenha tantos direitos, o gozo deles é muito precário e constantemente exposto às invasões de outros. Todos são tão reis quanto ele, todos são iguais, mas a maior parte não respeita estritamente, nem a igualdade nem a justiça, o que torna o gozo da propriedade que ele possui neste estado muito perigoso e muito inseguro. Isso faz com que ele deseje abandonar esta condição, que, embora livre, está repleta de medos e perigos contínuos; e não é sem razão que ele solicita e deseja se unir em sociedade com outros, que já estão reunidos ou que planejam se unir, visando a salvaguarda mútua de suas vidas, liberdades e bens, o que designo pelo nome geral de propriedade (LOCKE, 2001, p. 156).

Dessa forma, o que podemos observar é que, para Locke, os homens se

unem num Estado jurídico para que possam gozar dos direitos de liberdade e

igualdade que lhes são inerentes no estado de natureza e, sendo assim, ao se

unirem por um contrato, não renunciam a todos os direitos inerentes a sua própria

natureza, renunciam apenas ao direito de auto-aplicar a justiça.

Neste sentido, afirma J. W. Gough (apud LOCKE, 2001, p. 22):

No pacto original os homens não abrem mão de todos os seus direitos. Eles só renunciam a tanto de sua liberdade natural quanto seja necessário para a preservação da sociedade; abrem mão do direito que possuíam no estado de natureza de julgar e punir individualmente, mas retêm o remanescente de seus direitos sob a proteção do governo que concordam em estabelecer.

Para Silva (1998, p. 178):

A doutrina do direito natural dos séculos XVII e XVIII, de natureza racionalista, fundada assim na natureza racional do homem, faz descer a este o fundamento do poder político e também do Direito positivo em contraposição a ‘divinização’ que sustentava o regime absolutista vigente; doutrina puramente instrumental e lógica, como concepção do mundo, do Estado e da sociedade, destinada a substituir e se opor coerentemente à vigente, com força bastante para sustentar as transformações sociais que as condições materiais impunham; sustentando teses de direitos inatos (de caráter também instrumental: meio de opor-se à concepção vigorante), encontrou-se base para o reconhecimento de um conjunto de direitos tidos, então, como inerentes à pessoa humana.

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A doutrina jusnaturalista, através de uma explicação racional para a

existência dos direitos naturais – considerando-os inerentes ao homem no estado

de natureza, o que os caracteriza como inatos, inalienáveis e imprescritíveis –, faz

do HOMEM o fundamento do Poder Político – o poder pertence ao povo –, bem

como o fundamento do próprio Direito, ao passo que o indivíduo, o homem, passa

a possuir direitos dentro do Estado, e não somente obrigações perante este,

como na antiga concepção organicista da sociedade.

Bobbio (2004, p. 75) observa que o jusnaturalismo foi “a doutrina filosófica

que fez do indivíduo, e não mais da sociedade, o ponto de partida para a

construção de uma doutrina da moral e do direito (...)”.

E como afirma o próprio Bobbio, o jusnaturalismo foi a corrente filosófica

que cuidou de secularizar a ética cristã, ou seja, foi a escola que elevou os

valores morais do cristianismo à ordem civil (IDEM).

Ferreira Filho (2002, p.281/282) também afirma que o reconhecimento da

existência de certos direitos naturais está intimamente ligado a razões filosófico-

religiosas. Isso porque a teoria dos direitos naturais decorre dos dois grandes

dogmas cristãos: liberdade e igualdade. Segundo a Bíblia, os homens são iguais

e semelhantes à figura de Deus. E mais: são livres para escolher entre o bem e o

mal. É dessas lições que brotam os ensinamentos de São Tomás de Aquino na

Idade Média. Essa base religiosa, que deu origem aos chamados direitos naturais

de origem divina, foi substituída pela obra dos filósofos jusnaturalistas dos séculos

XVII e XVIII. Segundo essa corrente racionalista, os direitos naturais não são

divinos, são decorrentes da razão, a qual reconhece que o ser humano, por sua

própria natureza, possui direitos que lhes são inatos, inerentes, e, portanto,

imprescritíveis e inalienáveis. Para eles, a razão é a medida última para escolher

entre o certo e o errado, o bom e o mau, o verdadeiro e o falso. Essa corrente

filosófica deu causa ao iluminismo, movimento filosófico-político que inspirou a

formação das primeiras declarações de direitos.

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Com as teorias contratualistas e o jusnaturalismo, a visão organicista da

sociedade que vinha desde a Antiguidade Clássica mudou radicalmente seu foco:

passou a prestigiar o indivíduo.

Thomas Hobbes, para quem o homem é o lobo do homem (homo homini

lupus), afirma que, no estado de natureza (estado pré-sociedade), o mundo é

hostil. Hostil no sentido de que os indivíduos estão em constante guerra, seja pela

sobrevivência face aos empecilhos advindos da própria natureza, seja face a seus

próprios semelhantes. A solução de Hobbes para os problemas oriundos da

natureza é o desenvolvimento de técnicas de sobrevivência. Já no que se refere

ao convívio com seu semelhante, Hobbes apresenta técnicas de defesa para os

homens, que se concretizam através de um sistema de regras. As regras podem

visar reduzir os impulsos agressivos, mediante a imposição de penas, ou podem

objetivar o estímulo aos impulsos de colaboração e de solidariedade, utilizando-

se, para tanto, da concessão de prêmios. O que merece destaque é que as

regras, num primeiro momento, são essencialmente imperativas, sejam

negativamente (no sentido de proibir condutas indesejáveis), sejam positivamente

(no sentido de permitir e estimular os comportamentos desejáveis). Para serem

imperativas, as regras recorrem às sanções, que podem ser celestes ou terrenas.

Como observa Bobbio (2004, p. 114):

O ponto de vista tradicional tinha por efeito a atribuição aos indivíduos não de direitos, mas sobretudo de obrigações, a começar pela obrigação de obediência às leis, isto é, às ordens do soberano. Os códigos morais e jurídicos foram, ao longo dos séculos, desde os Dez Mandamentos até as Doze Tábuas, conjunto de regras imperativas que estabelecem obrigações para os indivíduos, não direitos.

Isso porque, aos códigos de conduta (regras morais) – desde “Os Nómois”

(“As leis”) de Platão, o “De legibus” (“Das leis”), de Cícero, bem como os Dez

Mandamentos, O Código de Hamurabi e as Leis da Doze Tábuas, chegando até

mesmo ao Esprit des lois (“O espírito das leis”), de Montesquieu –, sempre foi

atribuída a função de proteger mais o grupo em seu conjunto do que o indivíduo

singular. Daí Bobbio (2004, p. 78) destacar que esses Estados são absolutos, ao

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passo que os indivíduos possuem direitos privados, mas não direitos públicos

face ao Estado, ponderando que:

(...) para que pudesse ocorrer (expressando-me figurativamente, mas de um modo, que me parece suficientemente claro) a passagem do código dos deveres para o código dos direitos, era necessário inverter a moeda: o problema da moral devia ser considerado não mais do ponto de vista apenas da sociedade, mas também daquele do indivíduo. Era necessária uma verdadeira revolução copernicana, se não no modo, pelo menos nos efeitos. Não é verdade que uma revolução radical só possa ocorrer necessariamente de modo revolucionário. Pode ocorrer também gradativamente. Falo aqui de revolução copernicana precisamente no sentido kantiano, como inversão do ponto de observação (BOBBIO, 2004, p. 78).

Depreende-se das palavras do mestre italiano que, para que os indivíduos

começassem a ser considerados portadores de direitos, foi preciso mudar

radicalmente o foco de observação, do coletivo para o individual. Foi preciso

rechaçar a teoria clássica organicista, baseada na idéia de que primeiro vem a

sociedade e somente depois o indivíduo. Nesse tipo de sociedade, os indivíduos

não têm direitos, senão deveres. Para que o foco de observação fosse transferido

da sociedade para o indivíduo, foi preciso dar-se uma explicação racional aos

chamados direitos naturais. Quem logrou fazer essa inversão foi exatamente a

escola jusnaturalista.

Foi a partir de John Locke que a concepção individualista da sociedade

passou a ser cogitada, principalmente para compreender a doutrina dos direitos

naturais, inerentes ao homem, no estado de natureza. Para transformar esses

direitos naturais em limites ao poder do Estado, foi preciso inverter o foco de

observação da sociedade para o indivíduo, prestigiando este último.

Bobbio (2004, p. 76) ressalta que:

A concepção individualista custou a abrir caminho, já que foi geralmente considerada como fomentadora de desunião, de discórdia, de ruptura da ordem constituída. Em Hobbes, surpreende o contraste entre o ponto de partida individualista (no estado de natureza, há somente indivíduos sem ligações

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recíprocas, cada qual fechado em sua própria esfera de interesses e em contradição com os interesses de todos os outros) e a persistente figuração do Estado como corpo ampliado, um ‘homem artificial’, no qual o soberano é a alma, os magistrados são as articulações, as penas e os prêmios são os nervos, etc. A concepção orgânica é tão persistente que, ainda nas vésperas da Revolução Francesa, que proclama os direitos dos indivíduos diante do Estado, Edmund Burke escreve: ‘Os indivíduos passam como sombras, mas o Estado é fixo e estável.’ E, depois da Revolução, no período da Restauração, Lamennais acusa o individualismo de ‘destruir a verdadeira idéia da obediência e do dever, destruindo com isso o poder e o direito’. E, depois, pergunta: ‘E o que resta, então, senão uma terrível confusão de interesses, paixões e opiniões diversas?’ Concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado (...).

Com a mudança do foco para o indivíduo, mudou também a antiga relação

entre direito e dever. A partir da concepção individualista, primeiro os indivíduos

têm direitos e depois deveres. Já na concepção antiga, como visto, os indivíduos

só possuíam deveres.

Inverteu-se, também, a finalidade do Estado. Nas sociedades organicistas,

o Estado existia para garantir a paz, e justiça significava cada um realizar a

função que lhe era própria a fim de garantir a harmonia do todo. Já nas

sociedades individualistas, o Estado existe para garantir o crescimento do

indivíduo, e justiça significa possuir condições para suprir as próprias

necessidades e atingir os próprios fins, ou seja, significa ter felicidade individual.

Aliás, a concepção individualista é a base filosófica da democracia (cada

cabeça constitui um voto). Mas democracia, como explica Bobbio (2004, p. 77):

(...) entendida como aquela forma de governo na qual todos são livres para tomar as decisões sobre o que lhes diz respeito, e têm o poder de fazê-lo. Liberdade e poder que derivam do reconhecimento de alguns direitos fundamentais, inalienáveis e invioláveis, como é o caso dos direitos do homem.

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A concepção individualista trouxe, portanto, o conceito moderno de

democracia, no qual o poder pertence ao cidadão, considerado enquanto um

indivíduo em si mesmo, e não ao povo, enquanto corpo coletivo. Assim,

À medida que a democracia real se foi desenvo lvendo, a palavra ‘povo’ tornou-se cada vez mais vazia e retórica (...) Numa democracia moderna, quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente, são sempre e somente os cidadãos UTI SINGULI, no momento em que depositam o seu voto na urna (BOBBIO, 2004, p. 129).

Todo Estado que seja democrático de direito pressupõe uma concepção

individualista da sociedade. Daí porque Bobbio afirmar que, “se a concepção

individualista da sociedade for eliminada, não será mais possível justificar a

democracia como uma boa forma de governo” (p. 130).

A doutrina dos direitos do homem é fruto do jusnaturalismo. KANT,

conhecido filósofo do século XVIII, é considerado por Bobbio (2004, p. 88) como a

conclusão dessa primeira fase dos direitos do homem na história, que veio a

concretizar-se nas primeiras Declarações de Direitos, estas não mais obras de

filósofos, mas, sim, obras dos detentores do poder de governo. Para Kant, o

direito natural é o direito que todo mundo tem de obedecer apenas à lei de que

ele mesmo é legislador, daí seu famoso imperativo categórico: “age de tal forma

que a norma de tua ação possa ser tomada como lei universal” (apud HAMILTON

JAPIASSÚ e DANILO MARCONDES, 1996, p. 153). Assim, Kant dava uma

definição de liberdade como autonomia para se autotutelar, autonomia para criar

leis para si mesmo.

A hipótese do estado de natureza, no qual os indivíduos eram livres e

iguais para agir como bem entendessem, sem serem subjugados ao poder de

ninguém, mas tão somente à lei natural, foi aventada para fundamentar

racionalmente duas principais exigências: 1ª. a liberdade de crença, já que o

contexto histórico era o das perseguições religiosas; 2ª. as liberdades civis face a

qualquer forma de autoritarismo. Vale lembrar as Revoluções na Inglaterra, nos

Estados Unidos e na França, países que serão tratados individualmente no

próximo capítulo.

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Para Bobbio (2004, p. 88/89):

O estado de natureza era uma mera ficção doutrinária, que devia servir para justificar, como direitos inerentes à própria natureza do homem (e, como tais, invioláveis por parte dos detentores do poder público, inalienáveis pelos seus próprios titulares e imprescritíveis por mais longa que fosse a duração de sua violação ou alienação), exigências de liberdade provenientes dos que lutavam contra o dogmatismo das Igrejas e contra o autoritarismo dos Estados. (grifos da autora deste trabalho)

O estado de natureza era uma ficção doutrinária porque de fato os homens

não são iguais, tampouco nascem livres:

Na realidade, os homens não nascem nem livres nem iguais. Que os homens nasçam livres e iguais é uma exigência da razão, não uma constatação de fato ou um dado histórico. É uma hipótese que permite inverter radicalmente a concepção tradicional, segundo a qual o poder político - o poder sobre os homens chamado de imperium - procede de cima para baixo e não vice-versa. De acordo com o próprio Locke, essa hipótese devia servir para ‘entender bem o poder político e derivá-lo de sua origem’. E tratava-se, claramente, de uma origem não histórica e sim ideal (BOBBIO, 2004, p. 128). (grifos da autora deste trabalho)

Como observa Ramos (2000), os critérios racionais utilizados pelos

jusnaturalistas para justificar os direitos naturais se exteriorizam “através de uma

ordem jurídica administrada por um corpo explícito de funcionários: os burocratas”

(p. 21).

Max Weber, em O que é a burocracia?, explica pormenorizadamente como

se opera o sistema burocrático, afirmando que o Estado e os partidos políticos

são os terrenos férteis para a burocratização (1977, p. 35). Alerta, também, que a

burocracia só está de todo desenvolvida nas comunidades políticas e

eclesiásticas do Estado Moderno, sendo, portanto, uma exceção na história

(1977, p. 10).

Para Weber, do ponto de vista técnico, o Estado Moderno depende de uma

estrutura burocrática (1977, p. 28), já que a igualdade perante a lei exige uma

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formalidade e racionalidade por parte da Administração Pública. Em suas

palavras:

(...) la burocracia va unida necessariamente a la moderna democracia de masas. Esto resulta del principio definitorio de la burocracia: la regulación abstracta de la práctica de la autoridad, la cual precede del requerimiento de ‘igualdad ante a ley’, y, por consiguiente, del repudio de los ‘privilegios’ y del tratamiento de los asuntos ‘caso por caso’ (1977, p. 71).

De acordo com Ramos (2000, P. 21):

MAX WEBER registrou que o que caracteriza o direito das sociedades capitalistas e o distingue do direito das sociedades anteriores é o fato de ele se constituir num monopólio estatal administrado por funcionários especializados segundo critérios dotados de racionalidade formal, assente em normas gerais e abstratas aplicadas a casos concretos por via de processos lógicos controláveis, uma administração em tudo integrável no tipo ideal de burocracia por ele elaborada.

De certo Weber entende que a burocracia proporciona um modo de vida

racionalista.

La burocracia tiene um carácter ‘racional’: su actitud está determinada por normas, médios, fines y situaciones de hecho. Por esta razón, su origen y expansión han tenido, por doquiera, consecuencias ‘revolucionarias’, en un sentido peculiar que todavía no hemos discutido. Son las mismas consecuencias que, en general, ha provocado el avance del racionalismo. El progreso de la burocracia ha destruído estructuras desprovidas de todo carácter ‘racional’, en un sentido especial del término. Queda como tarea determinar cuáles han sido esas estructuras (WEBER, 1977, p. 113).

Assim, o que se vê é que a teoria da limitação do poder e, por

conseqüência, o surgimento de um procedimento racional de controle de

constitucionalidade das normas foram fruto de um longo processo histórico, que

envolveu principalmente a inversão do foco de observação, do coletivo para o

indivíduo.

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Para Ramos (2000, p. 20),

os antigos já possuíam a noção de constituição como lei fundamental do Estado. Muito embora possuíssem essa noção, não conseguiram desenvolver uma teoria jurídica acerca da lei fundamental. E não conseguiram desenvolver uma teoria jurídica, porque viviam num mundo onde o todo era mais importante que as partes, onde a sociedade ou o soberano ou o Estado era mais importante que os indivíduos. Em razão disso, uma teoria jurídica em torno da lei fundamental do Estado só se tornou possível a partir do momento em que ocorreu uma mudança radical no que concerne ao titular do poder político, o que só aconteceu de fato com a Revolução Francesa.

Não obstante a importância da Revolução Francesa, de 1789, que deu

notoriedade e destaque para essa nova concepção de sociedade, pautada na

valorização do indivíduo, não se pode esquecer que essa idéia foi fruto de uma

construção histórica que envolveu homens e pensadores de vários países,

sobretudo da Inglaterra e dos Estados Unidos da América (cf. SANTI ROMANO,

1977, p. 42-55).

Por isso é importante verificar como a teoria da limitação do poder e do

controle da constitucionalidade das normas foi se desenvolvendo na história

desses três países, o que será feito no próximo capítulo.

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CAPÍTULO III

A EVOLUÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

3.1. O controle das normas na Inglaterra

“O direito constitucional dos Estados Modernos resulta do direito

constitucional inglês e das demais ordenações, dele mais ou menos derivadas

diretamente” (ROMANO, 1977, p. 42-43).

O controle de constitucionalidade vigente hoje nos Estados Nacionais do

Ocidente, assim como o direito constitucional, também têm sua origem próxima

nas instituições inglesas.

As instituições constitucionais surgidas na Inglaterra concretizam valores

tão importantes que fizeram delas modelos para tantas outras ao redor do mundo.

Resumidamente, são essas as instituições:

1) a Monarquia constitucional;

2) o Parlamento bicameral;

3) a representação política (democracia indireta);

4) o governo de gabinete e sua responsabilidade perante o Parlamento; e,

finalmente,

5) os direitos e garantias fundamentais.

Todas essas instituições britânicas foram construídas num processo

histórico muito lento e progressivo. Daí Romano (1977, p. 43) dizer: “É evidente,

com efeito, a tendência dos ingleses bem como dos romanos ao ‘historicismo’,

que se contrapõe a tendência dos franceses e dos modernos povos latinos ao

‘racionalismo’”.

A Inglaterra nunca teve uma Constituição escrita, senão alguns poucos

textos esparsos 11. Mas os princípios basilares do direito constitucional ali

11 “São as seguintes as leis constitucionais da Inglaterra: escritas: Magna Carta, 1215; Declaração de Direitos, 1689; Lei de sucessão da coroa, 1701; Leis Eleitorais, as que regulam as relações

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originados foram transplantados para outros lugares, sobretudo para a França e

para os Estados Unidos:

O caráter consuetudinário do direito público inglês e a multiplicidade de seus documentos escritos beneficia a sua estabilidade, opondo aos inovadores e aos revolucionários uma resistência longa e continuada de trincheiras; o direito constitucional escrito, pelo contrário, apresenta-se como um fácil e próximo alvo aos seus adversários, quase que um convite e um concurso perpétuo a quem souber escrever uma melhor. Com efeito, diferentemente de uma constituição que tem dado lugar a uma longa história, que não se pode pensar em cancelar ou refazer de uma só vez, uma constituição escrita auxilia a difundir a idéia utópica e perigosa de que uma constituição possa compilar-se num dia, em uma hora, e que seja, por isso, fácil de ser substituída por uma outra que surgiu na mente de um feliz momento de capricho (ROMANO, 1977, p. 45).

Importante lembrar que o processo histórico da formação do direito

constitucional inglês permitiu a conciliação da monarquia com a aristocracia e o

povo, mesmo sem uma Constituição escrita, enquanto em outros Estados o que

prevalecia eram as monarquias absolutistas, repúblicas aristocráticas ou, ainda,

democracias.

Palu (1999, p. 94) ensina que, na Inglaterra, “houve sempre um governo

misto (mixed government) no sentido de que o Rei, a Câmara dos Lordes e a

Câmara dos Comuns governavam, ora o poder inclinando-se mais para um, ora

mais para outros”.

A monarquia inglesa foi muito sábia ao autorizar limites a seu poder. Os

limites à Coroa inglesa vieram não só com a Magna Carta, de 1215, mas também,

e principalmente, com o surgimento do Instituto do Parlamento bicameral,

composto pela Câmara dos Lordes, que representa os interesses do rei e da

aristocracia, e pela Câmara dos Comuns, que representa os interesses do povo.

entre a Câmara dos Lordes e dos Comuns; Regulamentos de certas funções da Coroa; Leis monetárias; Tratados: Declaração da Comunidade Britânica, 1949; União com a Escócia, 1707, e Irlanda, 1800; costumeiras: Reunião anual do Parlamento; demissão do gabinete; dissolução da Câmara dos Comuns; inexistência de veto ou designação do chefe do partido majoritário para as funções de 1º ministro”. (in: RAMOS, 2000, p. 34).

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Essa democracia representativa é o instituto conhecido como democracia indireta,

já que o povo governa através de seus representantes.

A aristocracia e o povo inglês também foram muito prudentes em apoiar a

monarquia e não permitir o enfraquecimento do poder central. Com essa tomada

de posição, os ingleses evitaram os inconvenientes que o feudalismo trazia para o

desenvolvimento do comércio.

O surgimento do Parlamento bicameral na Inglaterra proporcionou a

repartição das funções estatais de uma forma orgânica e racional. No que se

refere à divisão dos poderes, Romano (1977, p. 46-47) assevera que:

Basta mencionar que com ele a função legislativa foi confiada ao rei e às duas câmaras conjuntamente, a função executiva é exercida pelo soberano, mas controlada pelo parlamento e a função judiciária pertence a órgão adequado independente de todos os demais. Mediante tal princípio, de um lado garante-se a liberdade política, conseguindo-se um certo equilíbrio entre os poderes supremos, de outro lado assegura-se o acatamento das leis por parte do poder Executivo e a imparcial aplicação das mesmas por parte do poder Judiciário.

A criação do Parlamento bicameral, portanto, contribuiu para a separação

dos poderes que, por sua vez, veio a ser um do pilares para a garantia dos

direitos e das garantias fundamentais, principalmente através da atuação

independente do Poder Judiciário.

No que se refere aos direitos e às garantias fundamentais, cabe apenas

relembrar que foi na Inglaterra que, pela primeira vez, garantiram-se direitos

solenemente, mesmo que apenas para as classes privilegiadas, país que tem os

seguintes institutos assecuratórios dos direitos fundamentais:

- Magna Carta (1215);

- Petition of Rights (1628);

- Habeas Corpus Act (1679); e

- Bill of Rights (1688).

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Silva (1998, p. 155-156) salienta que esses documentos

não são, porém, declarações de direitos no sentido moderno, que só apareceram no século XVIII com as Revoluções americana e francesa. Tais textos, limitados e às vezes estamentais, no entanto, condicionaram a formação de regras consuetudinárias de mais ampla proteção dos direitos humanos fundamentais.

A Magna Carta, não obstante ter sido outorgada pelo Rei João Sem Terra,

em 1215, somente veio a tornar-se definitiva em 1225. 12 Ademais,

(...) longe de ser a Carta das liberdades nacionais, é, sobretudo, uma carta feudal, feita para proteger os privilégios dos barões e os direitos dos homens livres. Ora, os homens livres, nesse tempo, ainda eram tão poucos que podiam contar-se, e nada de novo se fazia a favor dos que não eram livres (NOBLET, 1963, apud SILVA, 1998, p. 156).

Silva (1998) pondera que esta afirmação de Albert Noblet não está errada,

mas que não devemos esquecer que a Magna Carta se tornou um símbolo das

liberdades públicas, permitindo a construção do direito constitucional inglês,

donde surgiram juristas da estirpe de Sir Edward Coke, que, com base nesse

primeiro documento , desenvolveu a teoria da ordem jurídica democrática do povo

inglês.

A Petição de Direitos (Petition of Rights), de 1628, foi um documento

dirigido ao monarca e que pedia a observância de direitos e liberdades já

reconhecidos na Magna Carta, em especial em seu artigo 39, mas que tampouco

eram respeitados pelo rei. Os limites impostos à monarquia vieram de um

processo histórico lento e que somente se efetivou com o crescimento e a

afirmação das instituições parlamentares e judiciais inglesas.

O Habes Corpus Act, de 1679, acabou com as prisões arbitrárias. E,

finalmente, o Bill of Rights, de 1688, foi fruto da Revolução Gloriosa, a qual

pronunciou a supremacia do Parlamento e a necessidade da observância dos

direitos individuais por parte da coroa.

12 Cf. Silva, 1998, p. 156.

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A formação desses institutos ingleses é relevante para o direito

constitucional moderno e, principalmente, para a teoria do controle de

constitucionalidade das normas.

De acordo com Antônio Sampaio Dória (1986, p. 9-ss.), tudo começou no

ano de 1066, com a invasão de Guilherme – “o Conquistador” –, que

institucionalizou a estrutura feudal na Inglaterra. 13

Guilherme, o soberano, era o proprietário do solo conquistado. Ele

concedia aos fiéis barões normandos o uso da propriedade conquistada. Os

barões, por sua vez, trespassavam suas terras para os seus vassalos e, assim,

formava-se a pirâmide feudal inglesa, estrutura econômica vigente na Idade

Média e que, segundo Dória (1986, p. 10), é “donde brota, ávida por defender

seus privilégios, a nobreza inglesa”.

O poder originalmente fragmentado do sistema feudal fez criar um clima de

rivalidade muito intenso entre o soberano e a nobreza. O alto clero, ao apoiar a

nobreza face aos poderes ilimitados do soberano, só fez acalentar o conflito

político.

A situação chegou ao seu ápice durante o reinado do famoso João Sem

Terra. Incapaz de resistir às pressões dos barões, ele outorga, em 1215, a Magna

Carta Libertatum, estatuto fundamental do direito inglês que trazia os princípios

básicos da estruturação política e jurídica.

13 Palu (1999, p. 94) explica: “Na evolução histórica do direito constitucional inglês divisam-se quatro fases: (a) aquela anterior à conquista normanda de 1066; (b) aquela iniciada em 1066, passando pela concessão da Magna Charta pela primeira vez (1215), que foi cancelada e revalidada inúmeras vezes nas lutas entre o poder real e o baronato nos séculos seguintes, indo até o advento da dinastia dos Tudors (1485); nesse período formou-se a commom law; (c) uma outra fase, entre 1485 a 1832, passando pela luta entre o Rei e o Parlamento, de onde se tem como conseqüência a Petição de Direitos de 1628, a Revolução de 1648, a intercorrência da República Britânica sob o protetorado de Cromwell, que em 1653 elaborou aquela que parece ter sido a primeira Constituição escrita do mundo, de vida efêmera, chamada de instrument of government, com 42 artigos, a Revolução de 1688 (Glorious Revolution) e a declaração de direitos de 1689 (nesse período surgiu um sistema complementar, às vezes rival, ‘das regras de eqüidade’); e (d) a fase contemporânea, de 1832 até hoje, com as reformas eleitorais tendentes ao alargamento do direito de sufrágio e à diminuição do poder da Câmara dos Lordes em favor da Câmara dos Comuns, com membros eleitos por tempo determinado, bem como pela importância cada vez maior das leis frente ao sistema da common law”.

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A Magna Carta impunha limites ao poder do soberano. Rezava seu capítulo

39, no original em latim:

“Nullus liber homo capiatur vel imprisonetur aut disseisietur de

libero tenemento suo vel libertatibus, vel liberis consuetudinibus

suis, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec

super eo ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium

parium suorum, vel per legem terrae” (apud DÓRIA, 1986, p.

11)14.

“Assegurava, pois, João Sem Terra ao baronato revoltoso a inviolabilidade

de seus direitos relativos à vida, liberdade e propriedade, cuja supressão só se

daria através da ‘lei da terra’ (per legem terrae ou Law of the land)” (IBIDEM, p.

11).

A Magna Carta garantia direitos relativos à vida, à liberdade e à

propriedade, mas somente para os barões e as classes privilegiadas. Não eram

direitos concedidos a todos. 15 Ademais, esse primeiro documento jurídico inglês

trazia limites ao poder do Soberano, mas não limites ao poder do Parlamento.

Aliás, na Inglaterra, duas situações levaram a monarquia a não ser

absoluta: 1º. sua localização geográfica não privilegiava invasões externas e,

portanto, diferentemente da França, onde os nobres largaram suas terras para

viver na corte com o rei, na Inglaterra os nobres permaneceram em seus feudos;

2º. a nobreza inglesa, ao invés de rivalizar com a burguesia que começava a

surgir, inseriu-se no modelo de produção capitalista, visando, desta sorte, o lucro:

14 Silva (1998, p. 157) traz esse artigo 39 traduzido: “Nenhum homem livre será detido nem processado, nem despojado de seus direitos nem de seus bens, nem declarado fora da lei, nem exilado, nem prejudicada a sua posição de qualquer outra forma; tampouco procederemos com força contra ele, nem mandaremos que outrem o faça, a não ser por um julgamento legal de seus pares e pela lei do país”. 15 “(...) a Magna Carta era uma concessão real para limitada classe de beneficiários, mais ou menos à custa do reino em geral. O rei prometia a seus barões que não tornaria a infringir seus costumeiros privilégios feudais, como fizera no passado imediato, muito embora tais privilégios não fossem consentâneos com o interesse de seus outros súditos” (CORWIN, 1928, p. 149-175. apud DÓRIA, 1986, p. 11).

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Com isso, a nobreza deixou de considerar a terra como base de obrigações, funções e privilégios políticos e sociais, para ver nela um investimento e uma fonte de receitas. A concepção feudal de serviços deu lugar à concepção capitalista do lucro. Nota-se que os nobres ingleses tendiam a aburguesar-se no momento em que os burgueses continentais procuravam enobrecer-se. A aliança da burguesia com a nobreza rural fez o poderio do Parlamento britânico, o que evitou grandes traumas na sua sociedade. Por conta disso, ambas se tornaram uma classe média poderosa, cujo poderio produtivo não deixou de se alargar até se tornar predominante. A ascensão do parlamento, expressão desta classe média, corresponde ao seu desenvolvimento (RAMOS, 2000, p. 35-36).

Estando, pois, os nobres ingleses inseridos no sistema capitalista, bem

como inseridos no Poder Judiciário – já que este era composto por membros da

nobreza –, puderam eles, através dos tribunais, garantir os direitos individuais

face às arbitrariedades do Rei.

No século XVII, durante o reinado de Carlos I, em virtude das crescentes

despesas com as guerras, o soberano fora forçado a lançar um empréstimo

compulsório, imposto esse considerado ilegal por grande parte da nobreza

(DÓRIA, 1986, p. 13).

Cinco nobres, revoltados com a imposição do imposto ilegal, rebelaram-se

e deixaram de pagá-lo. Em decorrência disso, foram presos por ordem de Carlos

I.

Muitos debates se travaram no Parlamento por obra dessas prisões

arbitrárias. Sir Edward Coke, famoso jurista da época, fez uma excelente defesa

dos nobres injustamente presos, defesa essa que serviu de inspiração para a

famosa Petition of Rights, de 1628, endereçada a Carlos I.

Na verdade, Lord Coke, pressentindo um conflito entre o trono e o

Parlamento – o que de fato veio a ocorrer e resultou na famosa Revolução

Gloriosa de 1688, revolução puritano-burguesa promovida, entre outros, por

Oliver Cromwell –, alertava para a necessidade de neutralizar a arrogância tanto

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do Rei quanto do Parlamento. Para isso, era imprescindível impor-lhes uma lei

fundamental, a lei da razão, que deveria ser revelada pela da boca dos juízes.

Coke expôs sua tese no célebre caso “Dr. Bonham´s case”. Em 1610, a

College of Physicians de Londres – entidade competente para licenciar o

exercício da profissão da medicina e punir os infratores – condenou Dr. Bonham

por faltar perante o regulamento da ordem. Em defesa do médico, Lord Coke

enunciou uma das mais importantes teorias do direito constitucional, que não

obstante ter tido aplicação por um período muito curto de tempo na Inglaterra,

veio a dar realmente frutos no outro lado do mundo, no continente americano.

Coke asseverava:

Registram nossos livros que em muitos casos o direito comum há de limitar as leis do Parlamento e, por vezes, declará-las completamente nulas; pois, quando um decreto parlamentar atentar contra o direito costumeiro e a razão, ou for repugnante ou impossível de se executar, o direito comum haverá de se sobrepor a uma tal lei e declará-la írrita (COKE apud DÓRIA, 1986, p. 21)16.

Assim, para Coke, uma lei criada pelo Parlamento devia estar de acordo

com os costumes e a razão, sob pena de ser declarada nula pelos juízes. Aos

juízes caberia a árdua tarefa de ponderar os interesses do Rei e do Parlamento,

para que estes não extrapolassem no uso do poder.

Mas a doutrina preconizada por Coke, da Supremacia do Judiciário, não foi

vitoriosa na Inglaterra. Logo foi substituída pela teoria da Supremacia do

Parlamento, doutrina esta ligada aos ensinamentos de John Locke, que veio a

prevalecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa de 1688: “Com efeito,

também John Locke, embora afirmando que o legislativo detém o supreme power,

admitia, porém, que este poder devesse encontrar limites no direito natural”

(CAPPELLETTI, 1999, p. 53).

Uma vez afirmada a supremacia do Parlamento na Inglaterra, os juízes

tiveram de se utilizar de instrumentos mais sutis para garantir os direitos 16 V. também Cappelletti (1984, p. 58 e ss.) e Barroso (2006, p. 5-6).

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individuais face aos possíveis arbítrios do Rei ou da Casa Legislativa, tendo sido

o instrumento escolhido para tanto a interpretação. Diz Rogério Bastos Arantes

(1994, p. 41) que, na Inglaterra, “inexiste qualquer mecanismo institucional

externo ao Parlamento, de controle de constitucionalidade das leis. Isto porque

praticamente não há diferença de status entre as leis constitucionais e as leis

ordinárias produzidas pelo legislativo”.

A magistratura inglesa, a pretexto de interpretar as leis, vem moldando-as

obliquamente, de sorte a preservar os valores fundamentais de que se fizera

guardiã. Portanto, é através da atividade interpretativa que o judiciário inglês

garante os direitos fundamentais, não obstante não existir naquele país uma

Constituição escrita nem um mecanismo de controle de constitucionalidade

formalmente constituído.

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1980, p. 61-62) traz importante

explanação de Ruy Barbosa sobre o assunto:

Em certo sentido, a Inglaterra não deixa de ter a sua Constituição, que determina plagas à soberania do parlamento. Ela está na tradição nacional, que naquele país tem uma realidade viva... O sentido público e o costume dos tribunais revestiram certos direitos de uma inviolabilidade, que os legisladores não ousariam arrostar. Esse costume não se estabeleceu, de certo, senão com o assento tácito da legislatura... Mas, uma vez assimilados à moralidade social, servem de diretório legislativo ao próprio parlamento... Não se creia, pois, que a ausência de uma Constituição formal signifique, na Inglaterra, carência de vínculos restritivos à ação dos representantes do povo.

Por todo o dito, pode-se concluir que, não obstante a Inglaterra não possuir

uma Constituição escrita, a praxe dos Tribunais ingleses na interpretação do

Direito Constitucional tem contribuído para a garantia dos direitos individuais, o

que é o objetivo final do controle de constitucionalidade. Assim, mesmo não

possuindo um sistema formal de controle dos atos do Parlamento, que é

soberano, os juízes ingleses garantem aquilo que é o mais importante num

Estado de Direito, os direitos individuais.

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3.2. O controle judicial nos Estados Unidos da América – controle difuso

Como exposto, as instituições constitucionais inglesas foram fonte de

inspiração para o direito constitucional dos demais países ocidentais, sobretudo

os Estados Unidos, que foram sua colônia.

O direito inglês foi transplantado para o continente americano com os

primeiros colonizadores que, em geral, eram puritanos fugindo das perseguições

religiosas na Inglaterra. No navio que os transportava até as novas terras, esses

corajosos ingleses se asseguravam dos mesmos direitos concedidos às classes

privilegiadas na Magna Carta, em documentos chamados Charters Reais (cf.

DÓRIA, 1986, p. 14).

Pois bem, os colonizadores ingleses tinham a idéia de contrato social não

meramente teórica, como seus grandes idealizadores – Hobbes, Locke e

Rousseau –, mas sim empírica. Eles haviam passado pela experiência real de

assinar acordos nos navios para se garantirem dos mesmos direitos assegurados

aos nobres na Magna Carta. 17

As colônias americanas possuíam ordenações copiadas da Inglaterra, tanto

na forma quanto na substância (ROMANO, 1977, p. 48), mas ocorre que os

colonizadores da América estavam imbuídos das idéias contratualistas,

jusnaturalistas e iluministas que brotavam nos séculos XVI, XVII e XVIII na

Europa, principalmente na Inglaterra (T. Hobbes e J. Locke) e na França

(Rousseau e Montesquieu).

Algumas declarações de direitos surgiram, então, entre as colônias

inglesas na América, como, por exemplo: a “Declaração de Liberdades” da

colônia situada na baía de Massachusetts (1641), que foi seguida pelas

17 Ver Celso Bastos (2002, p. 301); Dória (1986, p. 14) e Ferreira Filho (2002, p. 5), para quem: “Chegados à América, os peregrinos, mormente puritanos, imbuídos de igualitarismo, não encontrando na nova terra poder estabelecido, fixaram, por MÚTUO CONSENSO, as regras porque haveriam de governar-se. Firma-se, assim, pelos chefes de família a bordo do Mayflower o célebre ‘Compact’ (1620); desse modo se estabelecem as Fundamental Orders of Connecticut (1639), mais tarde confirmadas pelo rei Carlos II que as incorporou à Carta outorgada em 1662. Transparece aí a idéia de estabelecimento e organização do governo pelos próprios governados”.

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declarações de Nova York e Nova Jersey (DÓRIA, 1986, p. 14-15); a “Declaração

de direitos do bom povo de Virgínia” 18, de 1776; e mais, as declarações de

Vermont, Pennsylvania e Maryland (IDEM).

Essas primeiras declarações foram fortemente inspiradas nos ideais

preconizados por John Locke, Rousseau e Montesquieu e acabaram por trazer

em documentos escritos suas lições. A Declaração de Virgínia postulava que

todos os homens são iguais, livres e independentes, sendo assim, não existem

privilégios; o poder pertence ao povo (princípio democrático) e o governo existe

para garantir o bem comum, daí a necessidade da separação dos poderes que

viabilize a garantia dos direitos individuais, principalmente as liberdades religiosas

e civis. Essa declaração de direitos preocupou-se com a estrutura de um governo

democrático apoiado num sistema de limitação do poder que deriva da crença na

existência de direitos naturais inerentes e imprescritíveis do homem (SILVA, 1998,

p. 158).

As primeiras declarações de direitos das colônias inglesas na América

acabaram por provocar a Declaração de Independência dos Estados Unidos,

redigida por Thomas Jefferson, em 04 de julho de 1776. Embora tenha um

conteúdo menos jurídico que as demais Declarações de Direitos das colônias

americanas, foi a que teve maior repercussão.

Uma vez independentes, os Estados Unidos viveram como uma

Confederação, portanto, numa união de Estados soberanos. Mas essa situação

perdurou por apenas dez anos. Logo perceberam que, para poder manter sua

independência face à potência inglesa, era preciso que construíssem um poder

central forte. Visando discutir alguns pontos-chave para a Confederação dos

Treze Estados americanos, foi convocada a Convenção da Filadélfia (1786), mas

o resultado desse encontro foi muito além do que meras discussões sobre a

Confederação: dele surgiu a Federação norte-americana e a primeira Constituição 18 “A primeira declaração de direitos fundamentais, em sentido moderno, foi a declaração do Bom Povo de Virgínia, que era uma das treze colônias inglesas na América. Essa declaração é de 12.1.1776, anterior, portanto, à Declaração de Independência dos EUA. Ambas, contudo, inspiradas nas teorias de Locke, Rousseau e Montesquieu, versadas especialmente nos escritos de Jefferson e Adams, e postas em prática por James Madison, George Mason e tantos outros” (SILVA, 1998, p. 157).

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escrita, a Constituição dos Estados Unidos, aprovada em 17 de setembro de

1787. 19

De acordo com Dória (1986, p. 16):

É tão-somente com a Convenção de Filadélfia, da qual emerge em 1787, a Federação e a Constituição dos Estados Unidos da América, que se faz sentir, no plano federal, a necessidade de se circunscrever a esfera privativa dos direitos individuais, imunes à interferência da União recém-organizada.

A Constituição dos Estados Unidos somente passou a vigorar a partir do

momento em que foi ratificada por nove dos treze estados independentes, o que

ocorreu em 1788. É importante frisar que ela, a princípio, não trazia um rol de

direitos fundamentais do homem.

A Carta de Direitos norte-americana, mais conhecida como Bill of Rights,

adveio apenas três anos depois de ratificada a Constituição dos Estados Unidos,

na forma de emendas à Constituição. Essa foi uma manobra de Thomas Jefferson

e James Madison para que os Estados assinassem a Constituição sem mais

delongas (cf. SILVA, 1998, p. 158; DÓRIA, 1986, p. 16).

Nas Américas, o rompimento com a metrópole impunha uma Constituição

escrita. A Constituição escrita era uma exigência da própria independência, já que

independência implica romper com os costumes, com as instituições políticas

tradicionais (cf. FERREIRA FILHO, 2002, p.8).

Ao movimento de idéias e acontecimentos que deram causa ao surgimento

das primeiras Constituições escritas 20 dá-se o nome de “constitucionalismo”. Ou

19 “Como ressalva Keith S. Rosenn, o mandato dos convencionais na Filadélfia em 1787 era simplesmente para revisar os artigos da Confederação, encaminhando posteriormente para uma Assembléia Constituinte e para uma nova constituição”. (apud MARCELO FIGUEIREDO, 2003, p. 177). 20 Bandeira de Mello (1980, p. 35-36) ressalta: “As Constituições escritas, em um corpo único, nacionais e limitativas das competências, só apareceram, de forma duradoura, com o advento das idéias que, no século XVIII, influíram nas revoluções americana e francesa, espalhando-se, então, por imitação desses países, pelas Américas e Europa. Dissemos, de forma duradoura, em virtude de, atendendo-se ao fato histórico, ter sido a primeira Constituição escrita, promulgada em 16 de dezembro de 1653, por CROMWELL, composta de 42 artigos: Instrument of government . Mas,

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seja, constitucionalismo é o movimento político-jurídico que visa estabelecer

regimes constitucionais, baseados em governos moderados, submetidos à

Constituições escritas. De acordo com Ramos (2000, p. 26):

(...) o constitucionalismo foi justamente o movimento voltado para tornar de todos conhecido que doravante todos possuem os direitos inscritos no documento chamado constituição, que é o documento gênese de uma nova sociedade, pois nele está fixada a separação dos poderes e estão reconhecidos os direitos individuais.

Já J. J. Gomes Canotilho (1991, p. 66) observa que:

(...) o constitucionalismo exprime também uma ideologia: ‘o liberalismo é constitucionalismo; é governo das leis e não dos homens’ (Mc Ilwain). A idéia constitucional deixa de ser apenas a limitação do poder e a garantia dos direitos individuais para se converter numa ideologia, abarcando os vários domínios da vida política, económica e social (ideologia liberal ou burguesa).

Cabe salientar, entretanto, que , ao contrário do que muitos pensam, o

constitucionalismo é anterior às constituições escritas. Estas, aliás, são fruto do

constitucionalismo moderno, dos Estados modernos. Antes, o movimento já havia

começado, valorizando-se a juridicização do poder, com a finalidade de dividi-lo,

organizá-lo e discipliná-lo. Nesse sentido, diz Celso Bastos (2002, p. 152-153):

Cumpre dizer que uma das principais exigências do constitucionalismo consistia na divisão do poder, que implica inexoravelmente em sua limitação e controle. Esta orientação não encontra-se necessariamente prevista em um documento escrito podendo ser fruto dos costumes e tradições jurídico-políticas da comunidade, formando assim o que se poderia denominar de uma Constituição substancial. Daí se depreende que a edição da primeira Constituição escrita não coincide com o aparecimento do constitucionalismo, que lhe é anterior. O constitucionalismo moderno traz consigo a valorização das Constituições escritas, que foram desencadeadas pela criação da

esta foi de vida efêmera. De passagem, observamos, que na Grécia, verbi gratia, nas leis de Atenas, já havia esboço de tal tipo de Constituição. E se não fosse forçar muito a nota, poderíamos filiar essa concepção à organização política do povo Hebreu. As primeiras do século XVIII são as das colônias da Inglaterra na América, após a sua emancipação, no ano de 1776. Logo depois estabeleceu-se a Constituição da Confederação, só ratificada por todos os membros em 1781, e substituída, finalmente, em 1789, pela Constituição da República federativa, a qual, com o correr dos tempos, tem sofrido algumas emendas”.

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Constituição Americana de 1787 e pela Revolução Francesa, em 1789. (grifos da autora deste trabalho)

De fato, o constitucionalismo moderno teve início com a Constituição dos

Estados Unidos, que, por sua vez, tratou de difundir as instituições inglesas, das

quais eram herdeiros. Claro que as instituições inglesas não foram difundidas

exatamente da mesma forma, mas, pelo menos, eram fruto de um mesmo

substrato. 21 Por exemplo, os direitos individuais, com a Constituição dos Estados

Unidos, passaram a ser um direito de todos, e não mais apenas das classes

privilegiadas, como previsto na Magna Carta inglesa, de 1215. Com isso, afirmou-

se o princípio da igualdade. E mais: a teoria da separação dos poderes, que já

existia na Inglaterra, após significativa contribuição de Montesquieu, pensador

francês que por sua vez veio a influenciar os idealizadores da Constituição dos

Estados Unidos, também passou a ser mais rigorosa (ROMANO, 1977, p. 48-54).

Não se pode olvidar, entretanto, que a Magna Carta inglesa foi o primeiro

documento que trouxe uma concepção de poder público limitado para a teoria

política ocidental. E como afirma Dória (1986, p. 24):

(...) Fluindo livremente na obra de filósofos e pensadores políticos, onde adquiriu dimensões mais amplas e consentâneas às profundas transformações econômicas e sociais verificadas nos séculos XVI e XVII, a doutrina do poder político restringido em todas suas manifestações por um pacto fundamental já havia amadurecido à época da revolução de independência americana.

Pode-se afirmar então que a Constituição Americana de 1787 foi o

documento que sintetizou as teorias de limitação do poder público já existentes,

enaltecendo a federação, a república, a tripartição dos poderes e a garantia dos

direitos individuais (estes presentes no Bill of Rights apenso à Constituição norte-

americana).

21 “A diversidade entre o direito constitucional inglês e seu congênere norte-americano repousa antes numa variação de técnicas que de substância, e se explica por peculiaridades e contingências históricas, inevitáveis na vida de cada povo. Os valores e os princípios que permeiam as instituições políticas, sociais e econômicas de ambas as nações são, em sua essência, fruto de idêntica concepção do homem e do universo, conquanto realizados praticamente através de diferentes técnicas e instrumentos de atuação jurídica” (DÓRIA, 1986, p. 20).

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Cappelletti (1999, p. 46-47) diz que:

A Constituição norte-americana representou, em síntese, o arquétipo das assim chamadas Constituições ‘rígidas’, contrapostas às Constituições ‘flexíveis’, ou seja, o arquétipo daquelas Constituições que não podem ser mudadas ou derrogadas, através de leis ordinárias, mas, eventualmente, apenas através de procedimentos especiais de revisão constitucional.

A Constituição dos Estados Unidos da América inaugurou o conceito de

constituição rígida, segundo o qual uma norma constitucional somente pode ser

alterada mediante um procedimento especial, diferentemente do procedimento

legislativo comum. Antes da primeira Constituição escrita não se podia falar em

rigidez das normas constitucionais, posto que estas eram costumeiras (não

escritas) e, como tais, flexíveis por natureza. Na verdade,

a distinção entre Constituição rígida e Constituição flexível, entre Poder Constituinte originário e Poder Constituinte derivado, implica a existência de um CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. De fato, onde este não foi previsto pelo constituinte, não pode haver rigidez constitucional ou diferença entre o Poder Constituinte originário e o derivado (FERREIRA FILHO, 2002, p. 34).

Segundo Bandeira de Mello (1980, p. 48),

(...) no sistema das Constituições rígidas, a Constituição é a autoridade mais alta, e derivante de um poder superior à legislatura, o qual é o único poder competente para alterá-la. O poder legislativo, como os outros poderes, lhe são subalternos, tendo as suas fronteiras demarcadas por ele, e, por isso, não podem agir senão dentro destas normas. Além do governo, as Constituições rígidas limitam ainda o povo organizado politicamente, isto é, o corpo eleitoral, influenciado pelas agitações populares momentâneas. É a palavra soberba de RUY BARBOSA, que nos subministra esses conhecimentos: ‘não se contenta de premunir-se contra seus representantes: premune-se contra si mesma; abriga o povo contra as legislaturas infiéis; abriga a nação contra as maiorias populares’. Conclui: ‘é o transunto prático, a realização política desse ideal das democracias limitadas pela liberdade, do número limitado pela lei, do indivíduo escudado contra a multidão, das

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minorias protegidas contra as maiorias’. [RUY, Barbosa. Os atos inconstitucionais. Edição 1893, p. 34] Restringe a atividade dos representantes, não os autorizando a tocar nas disposições constitucionais e subordinando-os a elas. Restringe-se a si própria, exigindo, para as revisões das Constituições, formalidades especiais e maiorias tão amplas que impossibilitem exprimir situações efêmeras, sem assento nos princípios da moralidade nacional e nas conquistas sociais da humanidade.

Havendo, pois, uma Constituição escrita e rígida que limita a todos,

governantes e governados, e que afirma expressamente a Supremacia da

Constituição (Artigo VI, 2, da Constituição dos Estados Unidos da América) 22,

surge de imediato a questão: mas a quem cabe a competência para declarar uma

eventual incompatibilidade de ato ordinário face ao Texto Fundamental?

A resposta advém da interpretação dada ao referido artigo VI, cláusula 2ª,

e do artigo III da Constituição dos Estados Unidos da América, sobretudo por

mérito do Juiz John Marshall da Suprema Corte norte-americana.

Como já visto, na Antiguidade Clássica o controle das normas cabia à

Polis; na Idade Média, a Deus; na Inglaterra, ao Parlamento, mas, nos Estados

Unidos, primeiro país a adotar uma Constituição escrita que garante

expressamente os direitos individuais a todos e traz a estrutura e a organização

do Estado, entende-se que o controle de constitucionalidade cabe ao Poder

Judiciário, pois é ele o guardião do Texto Fundamental.

Consta da emblemática decisão do Juiz John Marshall, no célebre caso

Marbury x Madison, de 1803, que decorre da interpretação da própria

Constituição dos Estados Unidos da América a competência do Poder Judiciário

para apreciar e declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos

22 In verbis: ARTICLE VI, 2. This Constitution, and the laws of the United States which shall be made in pursuance thereof; and all treaties made, or which shall be made, under the authority of the United States, shall be the supreme law of the land; and the judges in every states shall be bound thereby, anything in the Constitution or laws of any state to the contrary notwithstanding. Artigo 6º., 2.: “Esta Constituição e as leis dos Estados Unidos feitas em sua conformidade, e todos os tratados celebrados ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos, constituirão a lei suprema da nação; e os juízes de todos os Estados a ela sujeitos, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição ou leis de quaisquer dos Estados” (apud ALVAREZ e NOVAES FILHO, 2001, p. 65).

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incompatíveis com o Estatuto Fundamental. Nas palavras de Marshall (apud

DÓRIA, 1986, p. 25):

A todas as luzes, é da competência do poder judiciário determinar qual é a lei. Aqueles que aplicam a norma a casos particulares devem necessariamente expô-la e interpretá-la. Se duas leis conflitarem, às cortes cabe decidir da aplicação de cada uma delas. Se, por conseqüência, os tribunais devem examinar a Constituição e se a Constituição se sobrepõe a qualquer lei ordinária, a Constituição, e não a lei ordinária, há de prevalecer com relação à hipótese que ambas disciplinam.

Antes de Marbury x Madison, caso que se tornou o marco inicial para o

controle JUDICIAL de constitucionalidade das normas, houve outros precedentes.

Como precedente remoto a que se pode fazer referência, foi visto no capítulo 2.1

deste trabalho, o instrumento chamado Grafè Paranómon, utilizado em Atenas

para denunciar decretos criados pela Assembléia Popular que fossem contrários

às leis fundamentais da cidade-estado; e mais, no capítulo 2.2, tratou-se da

concepção de direito e justiça na Idade Média que levou à crença na existência de

duas ordens normativas, uma civil e uma natural, esta última com força bastante

para subordinar até mesmo o soberano, por conta do controle realizado por Deus.

Como precedente próximo foi visto que, na Inglaterra, Sir Edward Coke já pregava

a doutrina da supremacia do Poder Judiciário, mas que essa corrente não

prevaleceu por muito tempo nesse país , ao passo que a Revolução Gloriosa, de

1688, postulou o princípio oposto, o da supremacia do Parlamento. Não obstante,

os ensinamentos de Lord Coke frutificaram no continente americano e, “(...)

paradoxalmente, a ‘supremacia do Parlamento’ na Inglaterra favoreceu (...) o

nascimento da denominada ‘supremacia dos juízes’ nos Estados Unidos da

América!” (CAPPELLETTI, 1999, p. 58).

É importante observar como foi possível à doutrina da supremacia do

Parlamento, afirmada com a Revolução Gloriosa, influir diretamente no

desenvolvimento da teoria da supremacia do Poder Judiciário, mais conhecida

como judicial review, nos Estados Unidos da América.

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Conforme a lei inglesa, toda corporação ou companhia comercial privada

somente pode fazer aquilo que está permitido pelas leis fundamentais do Reino.

Daí decorre que todo e qualquer regulamento privado que contrarie o direito

fundamental inglês é nulo e, sendo assim, não pode ser posto em vigor pelos

tribunais. 23

Muitas colônias inglesas na América foram constituídas, inicialmente, na

forma de companhias comerciais privadas (cf. CAPPELLETTI, 1999, p. 60) e,

como já visto, a maior parte das Colônias eram regidas pelas chamadas Chartes

reais, escritas ainda nos navios que vinham para o novo continente:

Estas ‘Cartas’ podem ser consideradas como as primeiras Constituições das Colônias, seja porque eram vinculatórias para a legislação colonial, seja porque regulavam as estruturas jurídicas fundamentais das próprias Colônias. Então, estas Constituições amiúde expressamente dispunham que as Colônias podiam, certamente, aprovar suas próprias leis, mas sob a condição de que estas leis fossem ‘razoáveis’ e, como quer que seja, ‘não contrárias às leis do Reino da Inglaterra’ e, por conseguinte, evidentemente, não contrárias à vontade suprema do Parlamento inglês. E foi, então, justamente por força desta supremacia da lei inglesa que, é evidente, soava em uníssono com a doutrina da ‘supremacy of the English parliament’ - que em numerosos casos, alguns dos quais tornados famosos, o Privy Council do Rei decidiu que as leis coloniais deviam ser aplicadas pelos juízes das Colônias só se elas não estivessem em contraste com as leis do Reino. Recordo, como exemplo, o caso Winthrop contra Lechmere, de 1727, e o caso Philips contra Savage, de 1737 (IBIDEM, p. 61).

Observa-se, então, que as leis das Colônias estavam obrigadas a respeitar

não só a razão, mas também, e principalmente , as leis do Reino da Inglaterra,

portanto, as leis do Parlamento inglês. Contudo, cabia aos tribunais das Colônias

garantir a supremacia do Parlamento britânico, declarando nula toda e qualquer

lei ou ato normativo contrário às leis fundamentais inglesas.

23 GRANT, James A. C. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes. Una contribución de las Américas a la ciencia política. Publicación de la Revista de la Facultad de Derecho de México, 1963, p. 29 apud CAPPELLETTI, 1999, p. 60, nota 51.

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Com a Independência das Treze Colônias norte -americanas, em 1776, as

velhas Charters reais foram substituídas por Constituições, que eram as leis

fundamentais dos novos Estados independentes.

E como, no passado, nulas e não aplicáveis tinham sido consideradas pelos juízes as leis contrárias às ‘Cartas’ coloniais e às ‘leis do reino’, assim não é correto admirar-se de que a mesma nulidade e não aplicabilidade devesse, depois, ser afirmada, e com bem maior razão, para as leis contrárias às novas e vitoriosas Cartas constitucionais dos estados independentes. Grant oportunamente recorda alguns dentre os primeiríssimos precedentes em tal sentido: o caso Holmes contra Walton, decidido em 1780 pela Corte Suprema de New Jersey, e o caso Commonwealth contra Caton, decidido em 1782 pela Corte da Virgínia (CAPPELLETTI, 1999, p. 62-63).

Notamos, portanto, que, antes de Marbury x Madison, existiu na história

moderna a doutrina de Sir Edward Coke, na Inglaterra, e mais, decisões isoladas

em Cortes Supremas de Estados independentes da América do Norte, anteriores

à criação da Federação e da Constituição dos Estados Unidos.

Assim, como expõe Cappelletti (1999, p. 63):

Mais de um século de história americana e de imediatos, unívocos precedentes estavam, por conseguinte - e é bom sublinhá-lo - por detrás do Chief Justice John Marshall quando ele, em 1803, também sob a égide do bastante confuso art. VI, cláusula 2ª, da Constituição Federal de 1787, proclamou, em clara voz, no caso Marbury versus Madison, o ‘principle, supposed to be essential to all written constitutions, that a law repugnant to the Constitution is void; and that courts, as well as other departments, are bound by that instrument’. Se esta corajosa, decidida afirmação de John Marshall efetivamente iniciou, na América e no mundo, algo de novo e de importante, ela foi, porém, ao mesmo tempo, como já me parece exaustivamente demonstrado, não um gesto de improvisação, mas, antes, um ato amadurecido através de séculos de história: história não apenas americana, mas universal.

Para Dircêo Torrecillas Ramos (1994, p. 52-53):

Embora haja antecedentes históricos sobre a supremacia da Constituição em relação às leis ordinárias, coube aos Estados

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Unidos elaborar um sistema de controle de validade das leis, confiado aos tribunais e com caráter judicial. A verdade é que a definição do princípio, com repercussão internacional, ocorreu em 1803, no caso ‘Marbury v. Madison’, quando o presidente da Suprema Corte, o juiz Marshall, demonstrou corresponder à judicatura decidir sobre a constitucionalidade das leis e atos do legislativo ou do executivo.

Palu (1999, p. 103) ensina no mesmo sentido:

Os precedentes do controle de constitucionalidade das leis existiam, difusos, mesmo na História da Inglaterra ou antes; entretanto, a afirmação dessa doutrina deveu-se, sem dúvida, ao direito norte-americano. A técnica de atribuir à Constituição um valor normativo superior, imune às leis ordinárias, foi a mais importante criação, juntamente com o sistema federal, do constitucionalismo norte-americano e sua grande inovação (the higher law) frente à tradição inglesa da soberania do Parlamento. Além dos sempre citados precedentes do Bonham´s case de 1610 e de outros de mesmo teor, o fundamento de tal doutrina parece ter sido buscado, inclusive, em John Locke, que havia imaginado mudança importante no direito natural, abstrato, em direitos do homem que precedem o estado de natureza e que não se transmitem em pactos sociais, que existem, justamente, para sua salvaguarda. A Magistratura desse país já vinha se defrontando com esse problema desde os tempos coloniais, com as ‘Cartas’, que eram vinculatórias para a legislação das Colônias e que poderiam aprovar leis ‘razoáveis’, ou seja, que não fossem contrárias às leis da Inglaterra, e de seu Parlamento. Muitas das leis coloniais foram anuladas ou deixaram de ser aplicadas por serem contrárias às ‘Cartas’ que funcionavam como verdadeiras leis fundamentais e ‘leis do Reino’. Após a Independência em 1776, em decisão do ano de 1780 do Supremo Tribunal de New Jersey, cujo Chief-Justice era Brearley, ficou assentado que a corte tinha o direito de sentenciar sobre a constitucionalidade das leis; no mesmo sentido decisão da magistratura da Virgínia em 1782. Também em Nova York foi refutada, por inconstitucional, lei que reduziu a seis o número de jurados. Podem-se lembrar os casos de pronúncia de inconstitucionalidade de tribunais de Rhode Island em 1786 e da Carolina do Norte em 1787, entre outras. Coube, todavia, o mérito pela teoria de Marshall, no conhecido Marbury vs. Madison.

Além desses casos jurisprudenciais ocorridos na Inglaterra e nos Estados

Independentes da América, doutrinariamente Alexandre Hamilton já havia

desenvolvido a tese do controle judicial no Federalista n. 78, escrito em 1788,

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portanto, antes da célebre decisão do Juiz John Marshall em 1803 (cf.

CAPPELLETTI, 1999, p. 75). Hamilton pregava que:

Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. (...) A presunção natural, à falta de norma expressa, não pode ser a de que o próprio órgão legislativo seja o juiz de seus poderes e que sua interpretação sobre eles vincula os outros Poderes. (...) É muito mais racional supor que os tribunais é que têm a missão de figurar como corpo intermediário entre o povo e o Legislativo, dentre outras razões, para assegurar que este último se contenha dentro dos poderes que lhe foram deferidos. A interpretação das leis é o campo próprio e peculiar dos tribunais. Aos juízes cabe determinar o sentido da Constituição e das leis emanadas do órgão legislativo. (...) Onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edita, situar-se em oposição à vontade do povo, declarada na Constituição, os juízes devem curvar-se à última, e não à primeira (apud BARROSO, 2006, p. 6).

Para Hamilton, qualquer ato legislativo contrário à Constituição não podia

ser válido, pois negar isso é afirmar que o mandatário vale mais que o mandante,

ou seja, que os representantes do povo são superiores ao próprio povo. Para ele,

a dedução de que cabe ao Poder Judiciário realizar o controle dos atos

legislativos de forma alguma pressupunha qualquer superioridade do Poder

Judiciário sobre o Poder Legislativo. Pressupunha, tão-somente, que o povo é

superior aos dois. Segundo Ramos (2000, p. 44-45), a decisão de Marshall “só foi

possível porque se fundamentou no pensamento de Hamilton (...) Aliás, a tese do

juiz MARSHALL nada mais é do que a consagração judicial do pensamento de

HAMILTON”.

Embora várias vezes referido, o célebre caso Marbury x Madison merece

uma análise mais aprofundada.

O caso ocorreu no final de 1800, nos Estados Unidos. O contexto eram as

eleições para Presidente e para as Casas Legislativas do País. O então

Presidente dos Estados Unidos John Adams, do partido federalista (defensor da

existência de um poder federal forte), havia acabado de perder as eleições para o

candidato republicano Thomas Jefferson. Mas os democratas republicanos não

venceram apenas as eleições para o Poder Executivo: a maior parte dos cargos

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no Poder Legislativo também havia sido preenchido por partidários republicanos

(BARROSO, 2006, p. 3).

O partido federalista, consciente de que, com o fim do mandato de John

Adams, perderia significativamente seu poder, articulou um plano para manter sua

influência ao menos no Poder Judiciário, já que o Poder Executivo e o Legislativo

seriam dominados pelos republicanos. Foi aí então que fizeram aprovar duas leis

em 1801: a The Circuit Court Act, de 13 de fevereiro, e a The Organic Act of the

District of Columbia, de 27 de fevereiro (IBIDEM, p.3-4).

A primeira dessas leis, a Lei de Reorganização do Judiciário Federal,

reduziu o número de Ministro da Suprema Corte norte-americana, a fim de

impedir uma nova nomeação por Thomas Jefferson. E mais: criou dezesseis

cargos de juiz federal, todos eles preenchidos com aliados federalistas (IBIDEM,

p. 4).

Já a segunda lei criada em 1801, a Lei de Organização do Distrito de

Columbia, nomeou 42 juízes de paz. O Senado aprovou os nomes indicados para

os 42 novos cargos na véspera da posse de Thomas Jefferson, em 3 de março de

1801. O então ainda Presidente John Adams assinou os atos de investidura para

os cargos no último dia de seu mandato e pediu para que seu Secretário de

Estado John Marshall entregasse os atos de investidura para os partidários

nomeados. Contudo, não houve tempo hábil para a entrega de todos os 42 atos

de investidura (IDEM).

Toma posse Thomas Jefferson. Ele e seu novo Secretário de Estado

James Madison recusam-se a entregar os atos de investidura faltantes (IDEM).

William Marbury foi um dos federalistas que deixou de receber o ato de

investidura para o cargo de juiz de paz durante o mandato de John Adams. Daí

porque ter se utilizado do instrumento judicial do writ of mandamus, em dezembro

de 1801, a fim de ver reconhecido seu direito ao cargo. Seu pedido

fundamentava-se numa lei de 1789, a The Judicial Act. Esta lei atribuía à

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Suprema Corte norte-americana competência originária para processar e julgar

writ of mandamus face ao Poder Executivo (IDEM).

Pois bem, a Corte marcou o julgamento do writ of mandamus impetrado por

Marbury para 1802. Ocorre que, nesse ano, a maioria do Congresso era formada

por representantes do partido republicano e eles haviam revogado a Lei de

Reorganização do Judiciário Federal (The Circuit Court Act, de 1801),

extinguindo, portanto, os cargos por ela criados e destituindo, por derradeiro, seus

ocupantes (IBIDEM, p. 5).

Para impedir questionamentos sobre a revogação da lei criada pelos

federalistas em 1801, o Congresso republicano suspendeu os trabalhos da

Suprema Corte durante todo o ano de 1802 (de dezembro de 1801 até fevereiro

de 1803). E mais: Thomas Jefferson não considerava legítima qualquer decisão

da Suprema Corte que fosse no sentido de obrigá-lo a entregar os atos de

investidura, e já dava indícios claros de que não cumpriria uma decisão com esse

conteúdo. No início de 1802, o Congresso deflagrou um processo de

impeachment contra um juiz federalista, em uma ação política que ameaçava

espirar até nos Ministros da Suprema Corte. E foi “nesse ambiente politicamente

hostil e de paixões exacerbadas que a Suprema Corte se reuniu em 1803 para

julgar Marbury x Madison, sem antever que faria história e que este se tornaria o

mais célebre caso constitucional de todos os tempos” (IBIDEM, p. 5).

Marshall, no processo Marbury x Madison, afirmava que Willian Marbury

tinha, sim, direito à investidura no cargo, uma vez que tinha sido nomeado juiz de

paz nas condições determinadas pela lei e de forma definitiva. Receber a

comunicação lhe era um direito e, como tal, não dependia do livre arbítrio do

Presidente e do Secretário de Estado. O instrumento do writ of mandamus podia

ser utilizado para compelir o Secretário de Estado a comunicar Marbury e nomeá-

lo para o cargo. Não obstante, declarou Marshall que a Suprema Corte não era

competente para deliberar sobre esse mandado. Foi nesse momento que sua

decisão ficou célebre. Marshall observou que a Lei de 1789, em seu §13, ao

permitir consulta diretamente à Suprema Corte para exigir-lhe que formule ordens

à administração, criou uma competência originária à Suprema Corte não prevista

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na Constituição dos Estados Unidos da América, que, por sua vez, prevê, de fato,

que o Supremo é somente uma instância de recurso, exceto em certos casos

particulares (cf. RAMOS, 2000, p. 45). Sendo assim, a referida lei, por ir além do

permitido no texto fundamental, com ele estava incompatível, sendo, contudo,

inconstitucional, não podendo ser considerado válido. Marshall fundamentou sua

decisão em três idéias básicas: Primeira: supremacia da Constituição; Segunda:

nulidade de lei contrária à Constituição; e Terceira: competência do Poder

Judiciário para realizar o controle de constitucionalidade das leis.

Como afirma Eduardo Garcia de Enterria (1988, p. 126):

Por primera vez en esa famosa sentencia se anula una ley federal, partiendo de la observación elemental que hace el juez Marshall de que cuando una ley se encuentra en contradicción con la Constitución la alternativa es muy simples: o se aplica la ley, en cuyo caso se inaplica la Constitución, o se aplica la Constitución, lo que obliga a inaplicar la ley; él opta por esta segunda solución, naturalmente, que juzga the very essence of judicial DUTY, sobre la base de lo que ya antes Hamilton, en The Federalist, había llámado, y va a quedar en adelante establecido como un principio capital del Derecho público norteamericano, la obligación más fuerte, la vinculación más fuerte del juez a la Constitución (higher, superior obligation).

Segundo Cappelletti (1999, p. 75-76), a decisão de Marshall pautava-se

num raciocínio extremamente simplista, qual seja:

- a função de todos os juízes é a de interpretar as leis, a fim de aplicá-las aos casos concretos de vez submetidos a seu julgamento; - uma das regras mais óbvias de interpretação das leis é aquela segundo a qual, quando duas disposições legislativas estejam em contraste entre si, o juiz deve aplicar a prevalente; - tratando-se de disposições de igual força normativa, a prevalente será indicada pelos usuais, tradicionais critérios ‘lex posterior derogat legi priori’, ‘lex specialis derogat legi generali’, etc.; - mas, evidentemente, estes critérios não valem mais - e vale, ao contrário, em seu lugar, o óbvio critério ‘lex superior derogat legi inferiori’ - quando o contraste seja entre disposições de diversa força normativa: a norma constitucional, quando a Constituição seja ‘rígida’ e não ‘flexível’, prevalece sempre sobre a norma ordinária contrastante (...).

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Logo, conclui-se que qualquer juiz, encontrando-se no dever de decidir um caso em que seja ‘relevante’ uma norma legislativa ordinária contrastante com a norma constitucional, deve não aplicar a primeira e aplicar, ao invés, a segunda.

A decisão proferida pelo Juiz John Marshall no caso Marbury x Madison

afirmou pela primeira vez a competência do Poder Judiciário para realizar o

controle de constitucionalidade das leis, competência essa não expressa na

Constituição, mas decorrente de uma interpretação lógica do sistema. 24

Importante notar que o Juiz John Marshall estava diretamente envolvido no

caso, afinal, era ele o Secretário de Estado de John Adams, que não teve tempo

suficiente para entregar todos os atos de investidura aos federalistas. Aliás, John

Marshall já havia sido nomeado Presidente da Suprema Corte (Chief Justice)

desde 4 de fevereiro de 1801, mas optou por continuar no cargo de Secretário de

Estado de John Adams até o final de seu mandato (cf. BARROSO, 2006, p. 4).

Dessa forma, mais correto seria o juiz ter se declarado impedido de participar do

julgamento, já que havia praticado diretamente os atos que deram causa ao

processo.

24 Vale a observação de RAMOS (2000, p. 43-44): “Diferentemente de Rousseau, cujo ideal de associação política era o de uma vontade geral centralizada, o ideal dos federalistas concebia uma divisão e separação dos poderes de forma tal que nenhum grupo ou facção pudesse impor sua vontade ao resto, isso porque, na concepção dos federalistas, a existência de distintos órgãos expressivos da soberania popular determinariam a não existência de uma única fonte de direito. Assim, as legislaturas não monopolizariam a criação do direito. Foi por isso que HANNAH ARENDT fez registrar que a democracia americana, ao inverso da francesa, distinguiu o exercício do poder político da criação do direito que seguiu evoluindo independentemente através do sistema da common law. Isso implicou que outros órgãos, especialmente os juízes, exercessem um papel muito mais significativo na criação do direito. Assim, imbuídos de idéias descentralizadoras e de separação de poderes, os americanos construíram uma sociedade, cujo perfil constitucional é ímpar e de extrema praticidade e eficácia, porque lograram determinar as atribuições de cada poder dentro de regras abertas e abrangentes, capazes, em razão disso, de se adaptarem às transformações inevitáveis verificadas ao longo de sua história. E para preservar o projeto de respeito aos ideais burgueses, permitiram que o Judiciário desempenhasse a tarefa de interpretar as leis, pois suas decisões seriam sempre favoráveis a esse ideário, na medida em que o Judiciário jamais entraria seriamente em conflito com as forças dominantes. Tem-se afirmado, por isso, que quando MARSHALL, ao interpor a barreira do judiciário entre o Congresso e a lei, fazia-o como defensor da ordem conservadora instalada pelos presidentes GEORGE WASHINGTON e JOHN ADAMS, mas o fazia utilizando um instrumento que tinha sido aceito pela consciência jurídica dos grupos governantes. Como prova disso, destaca-se o fato de que, mesmo não tendo ficado claro na Constituição americana que o Poder Judiciário tinha a competência de efetuar o controle de constitucionalidade das leis, o assunto era do maduro conhecimento dos mais influentes representantes, e encontrava larga maioria de opiniões favoráveis”.

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Ademais, não obstante Marshall ter declarado que a Suprema Corte não

tinha competência para analisar e deferir o writ of mandamus – já que este estava

fundamentado no §13, da Lei Judiciária de 1789, dispositivo este incompatível

com a Constituição –, ele se autodeclarou uma competência muito maior: realizar

o controle de constitucionalidade das leis. Assim, mesmo afirmando que Marbury

tinha direito à investidura no cargo, negou-lhe o direito de postulá -lo via o

mandado impetrado, o que, na prática, foi uma vitória dos republicanos, pois

Marbury não pôde tomar posse. Com essa manobra, Marshall impediu um

possível recurso dos republicanos, já que a decisão lhes era favorável e,

sabiamente, estabeleceu uma competência muito maior à Suprema Corte, qual

seja, declarar a inconstitucionalidade de atos normativos contrários ao Texto

Fundamental. Esse poder concedido à Suprema Corte, na prática, foi concedido

ao próprio juiz John Marshall, que presidiu aquela Corte pelos 34 anos

seguintes.25

Palu (1999, p. 104) sintetiza o caso:

O episódio passou-se do seguinte modo. Vencidos nas eleições presidenciais, procuravam os federalistas, no seu pouco tempo restante de administração, entrincheirar-se nos tribunais. Nova Lei Judiciária foi sancionada em 27 de fevereiro visando à extensão do Judiciário nacional e criando numerosos lugares de juízes. Na véspera da posse de Jefferson, o presidente eleito, até as 21h00, Adams ainda lavrava nomeações, cujos beneficiários foram apelidados de juízes da meia-noite. Marbury, que era cidadão norte-americano, fora legalmente nomeado, em 1801, nos últimos dias do governo Adams, juiz de paz no Distrito de Colúmbia. Madison, Secretário de Governo, seguindo instruções de Jefferson, o novo Presidente, negou-lhe a posse. Requerida ordem de mandamus contra Madison, este não se defendeu e a causa correu à revelia. Em 1802, nos jornais e no Congresso, foi a Corte violentamente atacada, sugerindo James Monroe o impeachment contra os juízes, se ousassem ‘aplicar os princípios

25 Ver Barroso (2006, p. 9). O autor traz, ainda, críticas da doutrina americana a essa decisão do juiz Marshall: “A decisão foi estruturada em uma seqüência ilógica e equivocada do ponto de vista do direito processual, pois deveria ter se iniciado e encerrado no reconhecimento da incompetência da Corte. Havia inúmeros argumentos de natureza infraconstitucional que poderiam ter sido utilizados para indeferir o pedido, como o de que o direito ao cargo somente se adquire com a entrega efetiva do ato de investidura. A interpretação que levou Marshall a considerar a lei inconstitucional não era a única cabível, podendo-se reconhecer a incompetência da Corte ou o descabimento do writ por outras razões. E a falta de legitimidade democrática no desempenho desse papel pelo Judiciário”.

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da common law à Constituição’. A mesma providência foi pleiteada, dias antes da decisão, por um jornal oficioso do governo; se concedida, a medida certamente não seria cumprida. Enfrentava-se assim uma situação dificílima. Indeferir simplesmente o pedido seria, conforme observou Crosskey, capitulação demasiado visível; afirmar apenas que a lei judiciária somente autorizava o mandamus pela Corte Suprema em grau de apelação era resultado satisfatório. A Corte, de modo hábil, procurou dissimular o recuo inevitável, com um ato de afirmação contra o partido no poder. Invertendo a ordem do exame das questões preliminares, decidiu que Madison, na realidade, agira ilegalmente ao negar a posse de Marbury, e de acordo com os princípios aplicáveis da COMMON LAW, havia remédio para tal caso, o MANDAMUS , pelo qual Madison poderia ser compelido a dar posse a Marbury. Não cabia, porém, o WRIT, porque pedido diretamente à Corte Suprema, cuja competência originária era estritamente definida na Constituição e não poderia ter sido dilatada pela Lei Judiciária de 1789. Era, assim, institucional e nulo o art. 13 dessa lei, que atribuía competência originária à Suprema Corte para expedir ordens de mandamus (Leda Boechat Rodrigues, A corte suprema e o direito constitucional americano, p. 21). Evitou a Suprema Corte o confronto com o Executivo, e ao mesmo tempo afirmou a possibilidade de o Poder Judiciário anular leis votadas pelo Congresso.

Com a decisão de Marbury x Madison, surgiu, pois, o chamado

CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS 26. Difuso, ou

aberto, porque pode ser realizado por qualquer órgão do poder judiciário, seja um

juiz singular ou um tribunal. Esse controle também é chamado de repressivo ou

posterior, pois somente ocorre diante de um caso concreto levado a juízo, por via

de defesa, pois o indivíduo estará se defendendo de uma norma

inconstitucional27, ou, por via de exceção, porque excepciona o indivíduo da

aplicação da lei ou ato normativo incompatível com a Constituição.

Qualquer parte num processo - seja o autor, o réu, o juiz, o promotor ou

terceiros interessados - pode argüir a inconstitucionalidade de uma lei ou ato

normativo que seja contrário à Constituição, desde que relevante para a solução 26 É conhecido também como “sistema americano”, e vigora no Canadá, na Austrália, na Índia, no Japão, na Suíça, na Noruega e na Dinamarca, bem como vigorou na Alemanha (durante a Constituição de Weimar) e na Itália (de 1948 a 1956). (CAPPELLETTI, 1999, p. 65 e ss.). 27 “(...) tem razão Celso Ribeiro Bastos quando pretende vinculá-la à defesa (então: via de defesa) que o interessado faz de seu direito, pouco importando se o faz (i) residindo em atitude passiva, para o fim de, uma vez cobrado judicialmente, invocar uma questão prejudicial de constitucionalidade, ou (ii) assumindo posição ativa, atacando desde logo o ato ofensivo a direito seu praticado com fundamento em lei inconstitucional.” (CLÈVE, 2000, p. 96).

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do caso concreto. Não existe um procedimento especial para argüir a

inconstitucionalidade de uma norma viciada, a argüição se dá no próprio

procedimento judicial comum (CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, 2000, p. 98).

Importante notar que, como o controle difuso depende da existência de um

caso concreto para se realizar – afinal, o Poder Judiciário, guardião que é da

Constituição, somente age quando provocado –, a declaração de

inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, nesse tipo de controle, é

sempre incidental.

Incidental no sentido de que não é o pedido principal de ação. Trata-se

apenas de um incidente processual que interfere no mérito da questão posta em

juízo. Daí a doutrina afirmar que a declaração de inconstitucionalidade, no

controle difuso, é incidenter tantum.

Clève (2000, p. 91-92) sintetiza:

A república norte-americana de longa data experimenta o modelo de fiscalização concreta da constitucionalidade. Com efeito, nos termos da tradição americana, pode o Judiciário, no curso de qualquer demanda, apreciar questão de inconstitucionalidade, argüida incidenter tantum, como questão prejudicial de mérito. Na hipótese, caberá ao órgão judicial, decidindo a prejudicial, declarar a inconstitucionalidade da lei, para o efeito de subtrair o case de sua esfera de incidência ou reconhecer a sua legitimidade aplicando-a para a solução da lide. A fiscalização concreta atuada pelo Judiciário americano é provocada por via de exceção ou, como prefere certa doutrina, por via de defesa. Deveras, a argüição manifestar-se-á, sempre, no curso de um processo. Não há ataque direto à lei inquinada de vício. Ataca-se, antes, o ato, o fato ou a conduta que se pretende praticar com base na lei.

Mais à frente, na mesma obra, acrescenta o autor: “Almeja-se, apenas, a

solução da questão constitucional na medida em que ela resolve, também, uma

dada situação litigiosa submetida à apreciação judicial” (p. 97).

Como é sabido, o direito norte-americano segue a tradição do common law.

Assim, não obstante o controle de constitucionalidade poder ser realizado por

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qualquer juiz ou tribunal, cabe à Suprema Corte dar a palavra final sobre o

assunto. Lá existe um instrumento de uniformização da jurisprudência

denominado “stare decisis”, instrumento que permite à Suprema Corte estender

os efeitos de sua decisão num caso concreto a outros semelhantes, com força

vinculante. Quanto a esse vínculo ao precedente, bem explica Cappelletti (1999,

p. 80-82):

O resultado final do princípio do vínculo aos precedentes é que, embora também nas Cortes (estaduais e federais) norte -americanas possam surgir divergências quanto à constitucionalidade de uma determinada lei, através do sistema de impugnações a questão de constitucionalidade poderá acabar, porém, por ser decidida pelos órgãos judiciários superiores e, em particular, pela Supreme Court cuja decisão será, daquele momento em diante, vinculatória para todos os órgãos judiciários. Em outras palavras, O princípio do stare decisis opera de modo tal que o julgamento de inconstitucionalidade da lei acaba, indiretamente, por assumir uma verdadeira eficácia erga omnes e não se limita então a trazer consigo o puro e simples efeito da NÃO aplicação da lei a um caso concreto com possibilidade, no entanto, de que em outros casos a lei seja, ao invés, de novo aplicada. Uma vez não aplicada pela Supreme Court por inconstitucionalidade, uma lei americana, embora permanecendo ‘on the books’, é tornada ‘a dead law’, uma lei morta, conquanto pareça que não tenham faltado alguns casos, de resto excepcionalíssimos, de revivescimento de uma tal lei por causa de uma ‘mudança de rota’ daquela Corte.

Cabe destacar que existe toda uma mitologia que envolve a história da

Suprema Corte norte-americana, o que fornece a base de sustentação para a

teoria do “stare decisis”, ou seja, o que justifica o vínculo aos precedentes da

Suprema Corte. Enterria (1988, p. 127) ensina que:

La mitologia de la Corte suprema americana es inacabable y sería muy fácil acumular referencias. Como explicar la sorprendente aceptación general de una institución cuya posición central está basada enteramente en una competência, la de judicial review, que no há sido atribuida expresamente por la Constitución, sino propriamente <usurpada>, o al menos autoatribuida? Más que la explicación (...) nos interesa ahora el resultado: el Tribunal Supremo es reverenciado y acatado como la representación más alta de la ideología americana, de la propia identidad nacional. Hay incluso toda una mitología religiosa: La Constitución como texto inspirado por Dios, los fundadores como los santos, los

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jueces del Tribunal Supremo como los sumos sacerdotes que cuidan del culto al texto sagrado en el <Marbel PalAce>, en el palacio de Mármol donde tiene su sede y que extraen de ese texto poco menos que la infalibilidad.

Para a doutrina norte-americana (doutrina clássica), um ato inconstitucional

é um ato nulo, pois é como se ele nunca tivesse existido no sistema. Assim

sendo, os efeitos da decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei ou um

ato normativo são ex tunc, ou seja, retroagem à data em que foi publicada a lei ou

ato viciado: a norma é tida por inconstitucional desde a sua origem.

Torrecillas Ramos (1994, p. 77) explica que, sendo considerado nulo o ato

inconstitucional, “conseqüentemente ele não obriga, não se aplica ou, se aplicado,

nula é essa aplicação. O efeito da declaração de nulidade retroage ‘ex tunc’, não

sendo válidoS os atos praticados sob seu império.”

Manter a supremacia da Constituição por meio de um mecanismo de

controle que garanta a autoridade de seus dispositivos é o eixo em torno do qual

gravita todo o equilíbrio do sistema jurídico. Daí a importância do controle de

constitucionalidade das normas.

3.3. O controle político na França

A França foi o berço de grandes teóricos do liberalismo, bem como o palco

da mais famosa revolução burguesa, a Revolução Francesa em 1789. “Na

verdade, as idéias desses teóricos traduziram apenas as aspirações de liberdade

de um povo asfixiado pelo poder absoluto do soberano” (RAMOS, 2000, p. 37).

Na Inglaterra, os nobres fixaram-se nas terras dadas pelo Rei e, dentro de

seus limites, impunham o seu poderio. Ademais, juntaram-se às classes mais

baixas, sobretudo à burguesia, e aderiram ao capitalismo, visando o lucro. 28 Na

França, ao contrário, os nobres deixaram suas terras para gozarem dos privilégios 28 Alexis de Tocqueville (1989, p. 117) observa que: “É curioso ver como a nobreza inglesa, levada pela ambição, conseguiu, quando achou necessário, misturar-se de maneira familiar com seus inferiores e fingir que os considerava seus iguais”.

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de viver na Corte, sob a batuta direta do Rei. Isso acabou por facilitar o

surgimento de um poder central forte, já que eram nomeadas diretamente pelo

Rei as autoridades que passaram a governar as terras abandonadas pelos

nobres. Contudo, a nobreza francesa perdeu sua função de autoridade local

tradicional, ao mesmo tempo em que proporcionou a concentração de poderes

nas mãos do soberano (RAMOS, 2000, p. 38).

O Poder Judiciário na França, assim como na Inglaterra, também era

composto por membros da nobreza. Entretanto, diferentemente dos nobres

ingleses – que garantiam os direitos individuais face aos abusos da Coroa,

utilizando-se para tanto do mecanismo da interpretação –, os nobres franceses

estavam interessados somente em preservar suas regalias e privilégios e, por

isso, não garantiam direito algum. 29 Segundo Ramos (2000, p. 39), os tribunais

franceses eram, “na verdade, tribunais de injustiça. Ao invés de serem uma

barreira contra o abuso do poder, garantindo direitos individuais, representavam o

abuso de um sistema já desgastado e injusto ”.

O poder absoluto, ilimitado ao extremo, forneceu com os tribunais que

professavam injustiças 30 os ingredientes históricos da famosa Revolução

burguesa de 1789:

29 “Vejam até onde princípios diferentes podem levar povos tão próximos! No século dezoito é o pobre que goza na Inglaterra do privilégio de isenções de imposto; na França é o rico. Lá, a aristocracia tomou a si os encargos mais pesados para que lhe permitissem governar; aqui [na França] reteve até o fim a isenção de impostos para consolar-se de ter perdido o governo!” (TOCQUEVILLE, 1989, p. 117). 30 Tocqueville (1989) explica que: “Na verdade, os nobres franceses só exerciam a administração pública num setor: a justiça” (p. 73). E mais: “Se repararmos que a nobreza, após ter perdido seus antigos direitos políticos e, mais do que em nenhum outro país da Europa feudal, deixado de administrar e guiar seus habitantes conservou entretanto e até muito estendeu suas imunidades pecuniárias e as vantagens das quais seus membros gozavam individualmente e que, ao tornar-se uma classe subordinada permaneceu uma classe privilegiada e fechada, sendo menos e menos uma aristocracia e mais e mais uma casta, não ficaremos mais espantados pelo fato de seus privilégios terem-se afigurado tão inexplicáveis e tão detestáveis aos franceses, e que ao observá-los o desejo democrático tenha acendido em seus corações uma chama tão grande que arde até hoje. Se repararmos finalmente que esta nobreza, separada da classe média que repelira de seu seio e do povo cujo coração deixara escapar, estava inteiramente isolada no meio da nação, na aparência a cabeça de um exército, na realidade um corpo de oficiais sem soldados, compreenderemos como, após mil anos em pé, pôde ser derrubada no espaço de uma noite” (p. 185).

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Asfixiadas, então, pelo abuso de poder, advindo de todas as instituições sociais vigentes, impossibilitada de exercer direitos que à época vinham sendo divulgados como o mínimo para garantir a dignidade humana, as classes espoliadas deram vazão a sua indignação através do processo revolucionário (RAMOS, 2000, p. 39).

Ironicamente, a Revolução francesa teve como mola propulsora a

Constituição dos Estados Unidos da América 31, levada por Benjamim Constant a

Paris. Ironicamente porque a Constituição dos Estados Unidos da América foi o

resultado de um árduo trabalho dos juristas e dos políticos norte-americanos, com

base nos ideais liberais de pensadores ingleses, mas também de pensadores

franceses, sobretudo Montesquieu.

Trata-se do fenômeno chamado por Romano (1977, p. 52) de

“reimportação”, porque as idéias originadas em uma nação (França) são

importadas por outra (Estados Unidos) e, depois, passam a ser novamente

incorporadas ao país de origem via reimportação das idéias anteriormente

importadas.

Cabe lembrar que Montesquieu recebeu forte influência do direito

constitucional inglês. Tanto o é que sua obra mais famosa Do espírito das leis, de

1748, dedica um capítulo inteiro ao sistema constitucional britânico - Livro XI,

capítulo VI (cf. BASTOS, 2002, p. 153; MONTESQUIEU, 2004, p. 165 e ss.).

Assim sendo, é possível afirmar que a doutrina da separação dos poderes

e dos direitos individuais é fruto das idéias e ações, sobretudo, desses três

países: Inglaterra, Estados Unidos e França. A Inglaterra foi a pioneira na criação

das instituições constitucionais, mas estas influenciaram o mundo principalmente

depois de positivadas na Constituição dos Estados Unidos da América e

destacadas e proclamadas a todos com a Revolução Francesa de 1789 -

“Liberdade, Igualdade e Fraternidade!”.

31 Thomas Paine, um dos maiores defensores da Revolução Francesa, segundo Bobbio (2004): “Não tinha dúvidas de que uma fosse o desenvolvimento da outra e de que, em geral, a revolução Americana abrira a porta para as revoluções da Europa (...)” (p. 102). Bobbio (2004) ainda acrescenta a posição de Georg Jellinek e Emile Boutmy, ambos no sentido de que a Revolução Francesa deriva da Americana (p. 124).

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Nesse sentido também são as lições de Tocqueville (1989, p. 67-68):

A Revolução não foi de maneira alguma um acontecimento fortuito. Realmente pegou o mundo de improviso embora nada mais fosse que o complemento do trabalho mais longo e do término repentino e violento de uma obra à qual dez gerações tinham trabalhado. Mesmo que não tivesse surgido a Revolução Francesa, o velho edifício social teria ruído por todo parte, aqui mais cedo, acolá mais tarde, mas teria caído, peça por peça, em vez de desmoronar-se de uma vez. A Revolução resolveu repentinamente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precauções, sem deferências, o que ter-se-ia realizado sozinho, pouco a pouco, com o tempo. Esta foi, portanto, a obra da Revolução.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1789) foi o resultado da

Revolução Francesa. Em 1791, a Europa conheceu sua primeira constituição

formal, a Constituição Francesa, que trazia a referida Declaração Universal de

Direitos como seu preâmbulo (cf. BASTOS, 2002, p. 153).32

32 Silva (1998, p. 161) observa o seguinte: “Os autores costumam ressaltar a influência que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte francesa em 27.8.1789, sofreu da Revolução Americana, especialmente da Declaração de Virgínia, já que ela precedeu a Carta dos Direitos, contida nas dez primeiras emendas à Constituição norte-americana, que foi apresentada em setembro de 1789. Na verdade, não foi assim, pois os revolucionários franceses já vinham preparando o advento do Estado Liberal ao longo de todo o século XVIII. As fontes filosóficas e ideológicas das declarações de direitos americanas como da francesa são européias, como bem assinalou Mirkine-Guetzévitch, admitindo que os franceses de 1789 somente tomaram de empréstimo a técnica das declarações americanas, ‘mas estas não eram, por seu turno, senão o reflexo do pensamento político europeu e internacional do século XVIII - dessa corrente da filosofia humanitária cujo objetivo era a liberação do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal. E porque essa corrente era geral, comum a todas as Nações, aos pensadores de todos os países, a discussão sobre as origens intelectuais das Declarações de Direitos americanas e francesas não tem, a bem da verdade, objeto. Não se trata de demonstrar que as primeiras Declarações ‘provêm’ de Locke ou de Rousseau. Elas provêm de Rousseau, e de Locke, e de Montesquieu, de todos os teóricos e de todos os filósofos. As Declarações são obra do pensamento político, moral e social de todo o século XVIII’”. Para Bobbio (2004, P. 124-125): “Quanto ao conteúdo, pode-se discutir; quanto à idéia, a influência determinante da declaração americana é algo indiscutível. O primeiro a apresentar um projeto de declaração foi La Fayette, herói da independência americana, com um texto elaborado ‘sob o olhar e com os conselhos’ de Jefferson, então embaixador dos Estados Unidos em Paris. (...) Com relação ao conteúdo dos dois textos, apesar das diferenças muitas vezes assinaladas – a mais evidente das quais é a referência da declaração francesa à ‘vontade geral’ como titular do poder legislativo (art. 6º.), de nítida derivação rousseauísta –, não se pode deixar de reconhecer que ambos têm sua origem comum na tradição do direito natural, a qual, em minha opinião, é bem mais determinante, mesmo na declaração francesa, do que a tradição do autor do Contrato social. O ponto de partida comum é a afirmação de que o homem tem direitos naturais que, enquanto naturais, são anteriores à instituição do poder civil e, por conseguinte, devem ser reconhecidos, respeitados e protegidos por esse poder” (grifos da autora deste trabalho).

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Diz Bobbio (2004, p. 103-104):

Declaração francesa (...) é ainda mais intransigentemente individualista do que a americana. (...) Os constituintes americanos relacionaram os direitos do indivíduo ao bem comum da sociedade. Os constituintes franceses pretendiam afirmar primária e exclusivamente os direitos dos indivíduos.

E acrescenta:

Apesar da influência até mesmo imediata que a revolução das treze colônias teve na Europa, bem como da rápida formação no Velho Continente do mito americano, o fato é que foi a Revolução Francesa que constituiu, por cerca de dois séculos, o modelo ideal para todos os que combateram pela própria emancipação e pela libertação do próprio povo. Foram os princípios de 1789 que constituíram, no bem como no mal, um ponto de referência obrigatório para os amigos e para os inimigos da liberdade, princípios invocados pelos primeiros e execrados pelos segundos (p. 105).

Para Kant (1724-1804), o direito do povo de decidir seu próprio destino

revelara-se pela primeira vez na Revolução Francesa. E esse direito era o

aspecto principal da liberdade, que implica autodeterminação, autonomia e

capacidade para legislar para si mesmo: “A liberdade jurídica é a faculdade de só

obedecer a leis externas às quais pude dar o meu assentimento” (apud BOBBIO,

2004, p. 100) 33. A influência rousseauliana nessa definição de liberdade para

Kant é bastante clara, já que em sua obra Do contrato social J. J. Rousseau

(1712-1778) já afirmava que liberdade é “a obediência à lei que nós mesmos nos

prescrevemos”.

Kant entende que é um direito natural o de um povo dar-se a Constituição

civil que creia ser boa. Para ele :

33 Bobbio (2004, p. 147-148) observa que: “No escrito sobre a paz perpétua, Kant não fez nenhuma referência à Revolução Francesa. Somente no seu último escrito (...) onde retoma mais uma vez o tema da Constituição civil fundada no direito de um povo a legislar (única Constituição que poderia dar vida a um sistema de Estados que eliminaria para sempre a guerra), foi que Kant reconheceu, no grande movimento da França, o evento que podia ser interpretado, numa visão profética da história, como o sinal premonitório de uma nova ordem mundial”.

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(...) essa Constituição só pode ser republicana, ou seja, uma Constituição cuja bondade consiste em ser ela a única capaz de evitar por princípio a guerra. Para Kant, a força e a moralidade da Revolução residem na afirmação desse direito do povo a se dar livremente uma Constituição em harmonia com os direitos naturais dos indivíduos singulares, de modo tal que aqueles que obedecem às leis devem também se reunir para legislar. (apud BOBBIO, 2004, p. 144). 34

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), assim com Kant, admirador da

Revolução Francesa, tinha a convicção de que, com esse movimento, iniciara-se

uma nova época da história, em que se firmam os direitos naturais do homem,

dos quais o principal é a liberdade, seguido da igualdade perante a lei (cf.

BOBBIO, 2004, p. 101).

Mas a Revolução Francesa não teve apenas admiradores. Ela foi também

bastante criticada pela filosofia reacionária, como, por exemplo, por Friedrich

Nietzsche (1844-1900) e Karl Marx (1818-1883).

A oposição à Revolução Francesa aparece em toda obra de Nietzsche,

seja quando critica o igualitarismo de Rousseau, seja pelo seu desprezo pela

democracia e pelo socialismo:

A nossa hostilidade à Rèvolution não se refere à farsa cruenta, à imoralidade com que ela se desenvolveu, mas à sua moralidade de rebanho, às ‘verdades’ com que sempre e ainda continua a operar, à sua imagem contagiosa de ‘justiça e liberdade’, a qual se enredam todas as almas medíocres, à subversão da autoridade das classes superiores (apud BOBBIO, 2004, p. 106).

Marx, em sua obra A questão judaica, entende que a declaração de direitos

que resultou da Revolução Francesa não corresponde a direitos universais, de

todos os homens, mas tão-somente a direitos relativos a uma determinada classe

de homens, os burgueses. Ora, para Marx, elevar certas liberdades à categoria de

direitos naturais, e não outras – como por exemplo exaltar a propriedade como

sagrada e inviolável –, não corresponde a direitos abstratos, e sim concretos. Não 34 É importante frisar que Kant sabia que a mola propulsora do progresso das nações não era a calmaria, mas, sim, o conflito. Entretanto, ele previa que era preciso haver um limite para o conflito, sob pena deste ser absolutamente destrutivo. Daí a necessidade em autodisciplinar o conflito, ao ponto que para ele chegasse até a criação de um Ordenamento Civil universal.

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são, pois, direitos universais, mas sim direitos determinantes de uma classe social

específica, a burguesia, a qual se prepara para substituir a classe feudal no

domínio da sociedade e do Estado. Os direitos oriundos da Revolução, portanto,

eram direitos burgueses e, para Marx, direitos do homem egoísta, do homem

separado dos outros homens e da comunidade (cf. BOBBIO, 2004, p. 112 e 134).

Não obstante elogios e críticas, a Declaração de 1789 foi só o começo,

pois muitas outras a seguiram: a Declaração Universal dos Direitos Humanos

(ONU, 1948); a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948);

a Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950); a Convenção e o

Protocolo relativos ao Estatuto dos Refugiados (1951 e 1966, respectivamente); a

Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa

Rica (1985); a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985);

a Declaração de Viena (Conferência Mundial dos Direitos Humanos, 1993); a

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a

Mulher (1994) e a Declaração de Pequim (1995).

Antes de 1789, o poder soberano pertencia ao Rei na França. Com a

Revolução, passou-se a postular que soberano é o povo, já que este é incapaz de

fazer mal a si próprio. E, a fim de evitar a concentração de poderes numa única

pessoa, professou-se a idéia da separação dos poderes. Importante lembrar que

essa mudança no titular do poder político somente foi possível porque a

Revolução Francesa ressaltou a concepção individualista da sociedade, na qual o

indivíduo não tem somente deveres – como acreditava Aristóteles, numa

concepção organicista da sociedade –, mas é portador, sobretudo, de direitos,

que lhes são inerentes no estado de natureza.

O Poder Legislativo é o órgão composto pelos representantes do povo na

França. Sendo a soberania do povo, entende-se que a Assembléia Legislativa é

soberana e somente ela pode dizer o direito. 35

35 “Saiu-se, assim, de um absolutismo de um monarca para o absolutismo de uma assembléia, na medida em que esta não admitia qualquer tipo de controle, pois tinha origem popular, a fonte da soberania” (RAMOS, 2000, p. 39).

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A idéia de soberania popular está fortemente ligada ao pensamento de

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). O grande problema para Rousseau é

encontrar uma forma de sociedade que possa garantir a liberdade natural, mas,

ao mesmo tempo, garantir a segurança. Para solucionar a questão, ele propõe um

contrato social. O soberano é o conjunto de membros da sociedade (povo) e,

sendo assim, cada homem é ao mesmo tempo sujeito e legislador. O homem

obedece às leis por ele mesmo criadas. Mas uma coisa é a vontade individual de

cada homem, e outra é a vontade geral, distinta da soma das vontades

individuais. A vontade geral é voltada para o bem comum, de toda a coletividade.

Cabe à educação formal criar essa consciência de vontade geral, sendo o regime

social ideal para tanto a democracia. Para Rousseau, “Um homem livre obedece,

mas não serve; tem chefes, e não mestres; obedece às leis mas somente às leis;

e é pela força das leis que não obedece aos homens” (apud JAPIASSÚ e

MARCONDES, 1996, p. 238).

Ramos (2000, p. 40), pautado nos ensinamentos de K. Loewenstein,

assevera que:

(...) ROUSSEAU não conseguiu, através de suas idéias, construir a sociedade que almejava, em razão de não ter observado que todo governo é poder e que a simples racionalização do processo do poder governamental não basta para neutralizar o poder e extirpar o seu caráter demoníaco.

Os revolucionários franceses tinham uma crença cega na sabedoria da

vontade geral. Acreditavam que, com a separação dos poderes, os direitos

individuais estariam garantidos. Entretanto, eles conseguiram garantir o indivíduo

face às arbitrariedades do Poder Executivo, mas deixaram o cidadão sem defesa

diante das possíveis arbitrariedades do legislador: “A partir desse momento, só o

controle de constitucionalidade das leis seria uma garantia suplementar das

liberdades individuais” (RAMOS, 2000, p. 41).

Ocorre que, na França, a idéia de separação dos poderes é interpretada de

uma forma bastante radical - em razão do histórico de opressão perpetrado pela

monarquia absolutista e centralizadora. Daí o motivo de a França, não obstante

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possuir uma Constituição escrita, não admitir que o Poder Judiciário realize o

controle de constitucionalidade das leis. Lá, se o Judiciário anular uma lei criada

pelo Parlamento (órgão de maior representatividade popular), estará violando o

princípio da rígida separação dos poderes.

Para Palu (1999, p. 98):

(...) pode-se dizer que, ao contrário dos revolucionários dos Estados Unidos, onde as guerras de independência sempre foram em última análise, contra o Parlamento (inglês), que lhes parecia intolerante e opressivo, razão lógica da outorga do controle da constitucionalidade das leis - como forma de limitar o poder congressual - ao Poder Judiciário (ainda que de início implicitamente), na França a Revolução fez-se contra a tirania do executivo (rei) e os privilégios do judiciário, sendo mera conseqüência a crença de que a soberania da Nação é representada pelo Parlamento eleito e que nada lhe pode ser superior, afastando assim o poder absoluto do rei e dos juízes.

Na França não existe , pois, o controle judicial de constitucionalidade em

razão da rígida separação dos poderes e da histórica ojeriza ao Poder Judiciário.

Existe na Constituição francesa vigente, de 1958, somente um CONTROLE

POLÍTICO de constitucionalidade das leis. Político porque o controle é realizado

por um órgão distinto dos três poderes – Executivo, Judiciário e Legislativo –,

criado especialmente para realizar a tarefa de analisar a compatibilidade dos atos

normativos para com a Constituição. A criação de um órgão político com a

finalidade de realizar o controle de constitucionalidade das leis foi idealizado pelo

Abade Emmanuel Joseph Sieyès. 36

Em função da desconfiança que os franceses acalentavam sobre os juízes,

Sieyès propôs ao constituinte francês de 1795 a criação de um Jurie

Constitutionnaire, o qual seria composto por 180 membros indicados pela

Assembléia e teria por função julgar violação à Constituição. Não obstante essa

idéia ter sido rejeitada, a Constituição do Ano VIII criou o Sénat Conservateur,

36 Sieyès pertencia ao baixo clero francês. Ficou famoso por escrever um panfleto intitulado O que é o terceiro Estado? (“Qu’est-ce que letiers État?”). Nesse manifesto, Sieyès postulava que o poder pertence à nação, e que a nação é formada por aqueles que trabalham e geram riquezas para o Estado, portanto, o poder pertencia ao terceiro estado, classe composta pelo povo e pelo baixo clero (Cf. PEDRO LENZA, 2003, p. 51).

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composto por 80 membros nomeados por Napoleão Bonaparte. Na prática foi um

corpo sem vida. Após a Segunda Guerra Mundial, a Constituição de 1946 criou o

Comité Constitutionnel, com a função de dizer se uma lei votada pela Assembléia

Nacional exige uma revisão constitucional (BARROSO, 2006, p. 42).

Palu (1999, p. 96-98), pautado nos ensinamentos de Burdeau, explica que:

(...) em princípio, a idéia de confiar a um órgão político a salvaguarda da Constituição parece lógica, enfatizando ser claro que ‘se o controle da lei é jurídico no seu objeto, é político nos seus efeitos’. Sem o placet do órgão que tem incumbência de controlar a constitucionalidade das leis, nada será feito. Esse fato foi percebido primeiramente por Sieyès, à época da Revolução, para sugerir na elaboração da Constituição do ano III (1795) a criação de um órgão político, la jurie constitutionnaire, que seria um corpo representativo da Nação incumbido de anular atos que violassem a Constituição. A idéia foi recebida, então, com indignação (‘lle Parlement voulait-il se donner un maître?’). Entretanto, somente na Constituição do ano VII (1799) Sieyès pôde realizar, parcialmente, seu objetivo, com a instituição do Senado para ‘conservar’ a Constituição. E, apesar das garantias formais que dispunham ao exercício das suas funções, o fracasso do sistema foi completo, deixando tal Senado de anular atos inconstitucionais de Napoleão, posto que o Imperador ‘... dispunha de meios de pressão singularmente persuasivos: títulos, condecorações, doações’. A Constituição francesa de 1852, quase cópia daquela do ano VII (1799), repetiu a criação do Senado Conservador, com membros vitalícios nomeados pelo Imperador, que teve, também, obscura existência, repetindo o fracasso anterior. Em realidade, na França, e esse é o aspecto cometimento de quase todos os seus textos constitucionais, parece que se não confia nos juízes para atribuir-lhes a jurisdição constitucional. E assim já anteriormente à Revolução de 1789, posto estar na lembrança dos revolucionários os abusos que os juízes do ancien régime praticavam, especialmente as Cortes Superiores (Parlements), que consideravam seu ofício como um direito patrimonial, que se comprava, vendia, transmitia por herança e - especialmente - porque sobrevivia-se às custas dos litigantes. A referência às cortes eram apenas aos seus abusos, privilégios e espírito de casta (espirit de caste); ademais, como lembra Philippe Ardant, existia na França o ‘mythe de la loi’, parecendo intolerável a decisão do Parlamento, que exprime a vontade geral da Nação, ser controlada ou anulada por um órgão a ele exterior.

Melo Franco (1976, p . 140) acrescenta que:

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Quando Bonaparte fez-se Primeiro Cônsul, introduziu na Constituição do ano VIII o Senado Conservador, o qual imitava o Senado Romano na incumbência de ‘manter ou anular todos os atos que lhe são submetidos como inconstitucionais’. Outras tentativas de controle político se fizeram em (sic) França, sem alcançarem resultado, até que a Constituição de 1946 criou o Comité Constitucional, de composição nitidamente política, pois compunha-se do Presidente da República, dos Presidentes das duas casas do Parlamento e de membros eleitos por essas mesmas casas. Não se admitiu nenhuma participação do Judiciário. Sua função era restrita a certos capítulos da Constituição e suas decisões não anulavam as leis consideradas inconstitucionais, mas declaravam apenas que elas implicavam em uma revisão da Constituição. O Conselho Constitucional foi mantido pela Constituição gaullista de 1958, mas, segundo opinam os melhores analistas dela, com o propósito de reforçar a autoridade do Presidente e diminuir a do Legislativo. O Conselho tem por missão conter o Parlamento, quanto às leis, mas não o governo, quanto aos atos.

O controle político das normas é, em regra, PREVENTIVO, posto que é

realizado antes de a lei se incorporar ao sistema jurídico:

(...) vale dizer, ocorre antes que a lei entre em vigor, e, às vezes, se trata ainda de um controle com função meramente consultiva, isto é, a função de um mero parecer, não dotado de força definitivamente vinculatória para os órgãos legislativos e governamentais (CAPPELLETTI, 1999, p. 26).

Como já visto, a ausência de um controle jurídico na França se deu por

motivos históricos - desconfiança no Poder Judiciário que durante anos realizou

injustiças - e filosóficos - Rousseau pregava que o poder pertence ao povo,

portanto afirmava a supremacia do Parlamento , e Montesquieu falava da

independência e da harmonia entre os poderes, de tal forma que o Poder

Judiciário não poderia se imiscuir numa lei criada pelo Parlamento, que é

soberano.

A proibição ao Poder Judiciário de realizar o controle de constitucionalidade

das normas existe até hoje na França. A Constituição Francesa vigente, de 1958,

institui um órgão político para realizar essa tarefa: o “Conseil Constitutionnel”.

Esse Conselho Constitucional francês é composto pelos ex-Presidentes da

República e mais nove membros, três nomeados pelo Presidente da República,

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três nomeados pelo Presidente da “Assemblée Nationale” e três nomeados pelo

Presidente do “Sènat” (CAPPELLETTI, 1999, p. 27-28).

Torrecillas Ramos (1994, p. 43) explica que:

A composição deste organismo compreende os membros natos, que são os ex-presidentes da República e os membros designados, em número de nove. Três são indicados pelo presidente da República, três pelo presidente da Assembléia Nacional e três pelo do (sic) Senado. Na primeira indicação, cada órgão designou um para três anos, outro para seis anos e outro para nove, possibilitando a renovação trienal, uma vez que, para o futuro, cada membro exercerá a função por nove anos. O Presidente da República tem a faculdade de designar o Presidente do Conselho. É um cargo de importância, na medida em que a Constituição lhe assegura a preponderância, no caso de divisão de opiniões. Não é admitida a renovação de mandato e também não é exigida qualidade universitária ou profissional dos membros.

De acordo com Palu (1999, p. 98-99),

a Constituição de 1958 rompeu com o dogma da soberania da lei (que seria incompatível com o controle da constitucionalidade). Vários motivos podem ser arrolados, entre eles o inconveniente da ausência de um controle efetivo em um país que pretende o Estado de Direito, refreando abusos do legislador, bem como a desmistificação da lei como expressão da vontade geral para a concepção de ser ela a ‘opinião de uma maioria passageira’ (l´opinion d´une majorité passagère). O controle, quase sempre preventivo, é feito por um Conselho Constitucional composto de nove membros nomeados (três pelo Presidente da República, três pelo Presidente da Assembléia Nacional e três pelo Presidente do Senado), mais os membros vitalícios que são os ex-Presidentes da República (que não têm participado).

Cappelletti (1999, p. 28) resume bem como se processa o controle de

constitucionalidade das leis atualmente na França:

Esse controle desenvolve-se do seguinte modo: quando um texto legislativo ou um tratado internacional já está definitivamente elaborado, mas ainda não promulgado, o Presidente da República, o Primeiro Ministro ou o Presidente de uma ou de outra Câmara do Parlamento (isto é, da Assemblée Nationale ou

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do Sènat) pode remeter o próprio texto legislativo ou o tratado ao Conseil Constitutionnel, a fim de que este se pronuncie sobre sua conformidade à Constituição. Para algumas leis, ditas ‘orgânicas’ (‘lois organiques’ de que se pode dizer, grosso modo, que concernem especialmente à organização dos poderes públicos), o pronunciamento do Conseil Constitutionnel deve decidir dentro de um mês ou, em certos casos, dentro de oito dias; neste ínterim, a promulgação da lei fica suspensa. O pronunciamento do Conseil Constitutionnel é emitido por maioria de votos, depois de um procedimento que se desenvolve em segredo, sem audiências orais, sem contraditório, um procedimento em que não existem verdadeiras partes, embora sendo admitida, na prática, a apresentação de memoriais escritos por parte dos órgãos interessados. Se o pronunciamento do Conseil Constitutionnel for no sentido da inconstitucionalidade, a lei não poderá ser promulgada nem poderá, por conseguinte, entrar em vigor, senão depois da revisão da Constituição.

Nota-se que o Conselho Constitucional francês é um órgão político não só

pela forma de composição de seus membros – nomeação política –, mas,

mormente, pelo seu funcionamento: necessário e preventivo.

Na França, uma lei que seja orgânica, ou seja, uma lei que trata de matéria

tal como estrutura e organização do Estado, ou divisão de competências,

necessariamente deverá ser encaminhada ao Conselho Constitucional para que,

somente após seu aval, venha a integrar o ordenamento jurídico francês. Se o

Conselho entender que uma lei é incompatível com a Constituição Francesa, ela

somente poderá vir a vigorar após uma revisão constitucional, o que implica a

alteração da norma constitucional com a qual conflita.

Torrecillas Ramos (1994, p. 44) ensina que:

No que concerne à atividade normativa do Parlamento, o artigo 61 da Constituição prevê que as leis orgânicas devem ser submetidas ao Conselho Constitucional antes de sua promulgação, enquanto as leis ordinárias podem ser submetidas. É um controle concentrado, prévio, direito e não pode ser exercido pelos indivíduos. É um controle no interesse dos Poderes Públicos e não no interesse dos cidadãos. O Conselho Constitucional é revelador da separação dos poderes. É a instituição de um julgamento da constitucionalidade das leis que permitiu revelar a verdadeira fisionomia da separação dos poderes no direito constitucional francês.

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Palu (1999, p. 99) atenta para o fato de que “(...) o controle constitucional é

vedado quando o povo adota lei por via de referendo, assim como o controle

prévio é obrigatório quando se tratar de leis orgânicas ou de regimentos da

Assembléia Nacional ou do Senado”.

Cappelletti (1999, p. 29) acrescenta que o parecer proferido pelo Conselho

Constitucional é vinculatório e “vem a se inserir no próprio processo de formação

da lei - e desse processo assume, portanto, a mesma natureza”, qual seja,

política.

De acordo com Marcelo Figueiredo (2003, p. 163):

A França forjou um sistema de controle de constitucionalidade peculiar por força de sua história (...). Além das funções de zelar pela regularidade das eleições presidenciais e legislativas, o Conselho Constituciona l ocupa papel decisivo como órgão de consulta obrigatória antes da promulgação das leis orgânicas, regulamentos das assembléias parlamentares, e leis em geral. O Presidente da República, o Primeiro-Ministro, o Presidente da Assembléia Nacional, o Presidente do Senado, sessenta deputados ou sessenta senadores têm legitimidade para remeter àquele órgão tais atos, o qual deverá decidir no prazo de um mês, podendo, se houver urgência (a pedido), reduzir o prazo a oito dias. Declarada inconstitucional, não poderá a disposição ser promulgada ou posta em vigor. Suas decisões têm eficácia geral, erga omnes, e são irrecorríveis. 37

O controle das normas na França, portanto, é realizado por um órgão de

composição e funcionamento essencialmente políticos, e a decisão, além de

preventiva, tem os efeitos erga omnes (para todos), sem direito a recurso.

37 No mesmo sentido lições de Torrecillas Ramos (1994, p. 45): “Os prazos para decisão do Conselho são de um mês e nos casos de urgência há uma redução para oito dias. Sempre o recurso suspende a promulgação da lei e, declarada a inconstitucionalidade, esta não poderá ser promulgada e nem aplicada (artigo 62). As decisões do Conselho Constitucional não são suscetíveis de recurso. Impõem-se a todas as autoridades administrativas e jurisdicionais. No caso de divergência entre os Conselhos Constitucional e do Estado, este deve submeter-se à proposição adotada por aquele”. Palu (1999, p. 100) ensina que: “As decisões do Conselho Constitucional francês não estão sujeitas a recurso e se impõem aos poderes públicos (Parlamento, Presidente, Governo), como às administrações e aos juízes (art. 62 da Constituição da França). O Conselho não anula a lei (ainda não promulgada), mas a declara não conforme à Constituição (n´est pas conforme à la Constitution) e, na prática, suas decisões são obedecidas, mas não se prevê mecanismo algum para que o Conselho Constitucional faça prevalecer sua decisão a um poder eventualmente recalcitrante” .

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No entender de Cappelletti (1999, p. 95):

A exclusão de um controle propriamente judicial de constitucionalidade das leis é, na realidade, como se sabe, uma idéia que sempre foi tenazmente imposta nas Constituições francesas, embora concebidas como Constituições ‘rígidas’ e não ‘flexíveis’. Todas as vezes em que, nas Constituições francesas, se quis inserir um controle de conformidade substancial das leis ordinárias em relação à norma constitucional, este controle foi confiado, de fato, a um órgão de natureza, decididamente, não judiciária. Assim aconteceu nas Constituições dos dois Napoleões, isto é, a de 22 frimário do ano VIII (13 de dezembro de 1799), a qual, nos artigos 25-28, confiava o controle ao Sènat Conservateur, e a de 14 de janeiro de 1852, a qual, nos artigos 25-28, confiava o controle ao Sènat; e, igualmente aconteceu na Constituição da IV República, de 27 de outubro de 1946, que confiava ao Comité Constitutionnel um muito limitado poder de controle preventivo - isto é, exercitável apenas antes da promulgação - da legitimidade constitucional das leis. Nem muitíssimo diversa pode, enfim, ser considerada a solução adotada na Constituição da V República, de 4 de outubro de 1958, e até agora em vigor, que confia o controle de constitucionalidade, sempre apenas em via preventiva, ao Conseil Constitutionnel (...).

Por fim, Palu (1999, p. 93) observa que:

Entre os países que optaram pelo controle político, entregando o controle da constitucionalidade ao Parlamento, pode-se lembrar os casos da Inglaterra, à vista de sua Constituição flexível, e aqueles que criaram órgão específico para tanto (de caráter político), caso da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os países de direito marxista.

3.4. O controle judicial na Constituição Austríaca de 1920 -

controle concentrado

Como se sabe, no início do século XX, Hans Kelsen, a pedido do governo

austríaco, elaborou um projeto de Constituição que deu origem à Constituição

Austríaca de 1º de outubro de 1920 (Oktoberverfassung). Essa Constituição

idealizada por Kelsen legou ao mundo o chamado CONTROLE CONCENTRADO

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de constitucionalidade das leis, que, em virtude de sua origem, também é

chamado de “sistema austríaco” ou “sistema europeu” de controle das normas.

Tratou-se no item 3.2 do chamado controle difuso, originado nos Estados

Unidos da América, no célebre caso Marbury x Madison. Foi visto que nesse

emblemático caso norte-americano, o Juiz John Marshall afirmou o controle

judicial de constitucionalidade das leis pautado numa seqüência lógica bastante

simplista: 1 - supremacia da Constituição; 2 - nulidade da lei contrária à

Constituição; e 3 - competência do Poder Judiciário para declarar a nulidade de

norma incompatível com o Texto Magno, portanto, para realizar o controle de

constitucionalidade das leis.

Como já foi discutido, para Marshall:

- a função de todos os juízes é interpretar a lei a fim de aplicá-la ao caso

concreto;

- a regra hermenêutica prega que, havendo contradição entre normas,

aplica-se a prevalente. Para tanto, existem as técnicas de interpretação: lei

posterior prevalece sobre lei anterior; lei especial prevalece sobre lei geral e,

sobretudo, lei superior prevalece sobre lei inferior;

- assim, a Constituição prevalece sobre as demais leis de um ordenamento

jurídico, e mais: como cabe ao Poder Judiciário interpretar as leis, é o Poder

Judiciário quem deve garantir a Supremacia da Constituição e, por isso, realizar o

controle de constitucionalidade.

Cappelletti (1999, p. 76) pondera:

A linealidade, a coerência e a simplicidade deste raciocínio são tais que, a quem não tenha aprofundado o fascinante assunto, pode ocorrer perguntar-se por qual estranha razão a Constituição austríaca de 1920-1929 tenha preferido pôr em prática, ao contrário, um sistema de controle ‘concentrado’ de constitucionalidade das leis; e por qual, então, ainda mais estranha razão este mesmo sistema tenha sido imitado por

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Constituições, também recentíssimas, dos numerosos Países (todos da ‘civil law’) (...), Tchecoslováquia e Espanha e, depois, Itália, Alemanha, Chipre, Turquia e Iugoslávia.

Na verdade, a solução adotada pela Constituição austríaca de 1920, com a

emenda que lhe foi acrescentada posteriormente em 1929, tinha razões de ser.

Neste sentido, observa Figueiredo (2003, p. 182):

A grande virtude do controle difuso de constitucionalidade está exatamente na sua coerência e simplicidade. A possibilidade de qualquer juiz negar aplicação à lei ordinária que confronte a constituição é admirável. Possibilita que todo o Judiciário analise e confronte a constitucionalidade da lei e dos demais atos normativos. A vantagem inegável desse sistema traz consigo também idêntica possibilidade de conflito e incerteza, evitados nos Estados Unidos da América e em outros países com a raiz da commom law diante do princípio do stare decisis, por força do qual ‘a decision by the highest court in any jurisdiction is binding on all lower courts in the same jurisdiction’.

No método americano de controle das normas, todo juiz ou tribunal podem

realizar o controle de constitucionalidade diante de um caso concreto que lhes

seja apresentado. Ou seja, lá é um dever de todo juiz deixar de aplicar ao caso

concreto lei incompatível com o Texto Fundamental. 38

Esse método foi aplicado por um período de tempo em países europeus de

tradição romanística, portanto, pautados no sistema da “civil law”. São exemplos

desses países Noruega, Dinamarca, Suécia, Suíça, Alemanha e Itália, nos quais o

controle difuso “resultou em um manifesto insucesso” (CAPPELLETTI, 1999, p.

80).

Nesses países, diferentemente dos países derivados do sistema da

“common law”, não existe o princípio do vínculo ao precedente, o “stare decisis”,

38 “Entretanto, enseja por muito tempo a dúvida sobre a constitucionalidade, visto como diversos juízes são chamados a apreciar a mesma questão constitucional e podem ter opinião divergente, o que acarretará decisões que se contradizem entre si. De qualquer forma, apenas após a manifestação do mais alto Tribunal ficará definida a questão de constitucionalidade” (FERREIRA FILHO, 2002, p. 38).

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bastante importante no mecanismo de controle de constitucionalidade nos

Estados Unidos:

(...) a introdução, nos sistemas de civil law, do método ‘americano’ de controle, levaria à conseqüência de que uma mesma lei ou disposição de lei poderia não ser aplicada, porque julgada inconstitucional, por alguns juízes, enquanto poderia, ao invés, ser aplicada, porque não julgada em contraste com a Constituição, por outros (CAPPELLETTI, 1999, p. 77).

Os países de tradição romanística, por não admitirem as decisões judiciais

como fonte primária do direito, mas tão-somente a lei, não prevêem um

mecanismo de uniformização da jurisprudência nos moldes do “stare decisis”

norte-americano. Contudo, gera situações graves de insegurança jurídica a

aplicação do controle difuso de constitucionalidade das leis.

Tão graves inconvenientes práticos, com sérias conseqüências de conflito e de incerteza, poderiam ser evitados ou, como foi feito na Suíça, atribuindo-se ao órgão supremo da justiça ordinária um poder de decisão que é susceptível de se estender, também, além do caso concreto e de anular, com eficácia erga omnes, a lei considerada inconstitucional - mas se cria, então, um sistema que está, no mínimo, a meio caminho entre o ‘difuso’ e o ‘concentrado’ de controle (CAPPELLETTI, 1999, p. 79).

Ou seja, para poder solucionar o inconveniente da insegurança jurídica, os

países da “civil law” precisavam criar um instrumento capaz de estender os efeitos

da decisão num caso concreto para todos, “erga omnes”.

Colocados diante desta exigência, os ‘pais’ da Constituição austríaca julgaram dever criar um órgão judiciário adequado, um Verfassungsgerichtshof, isto é, uma especial Corte Constitucional; e a mesma solução foi escolhida, contemporaneamente, na Tchecoslováquia e, posteriormente, na Espanha, na Itália, na Alemanha... (IBIDEM, p. 83).

Observa-se que o intuito foi eliminar a situação nefasta de insegurança

jurídica. Trata-se de “uma forma de controle que traz a vantagem de dar a

unidade e a última palavra sobre a validade do ato, o que não ocorre quando sua

invalidade depende de órgão sujeito ao controle do Tribunal mais alto, por via de

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recurso.” (TORRECILLAS RAMOS, 1994, p. 19). Daí porque criar um órgão

judiciário adequado para realizar o controle das normas, a Corte Constitucional

(Verfassungsgerichtshof), com competência para declarar a nulidade de uma lei

contrária à Constituição “erga omnes”, ou seja, para todos. Essa idéia

surgiu para rejeitar a possibilidade de todo e qualquer juiz poder efetuar dito controle, pois se buscava preservação tanto das idéias de separação dos poderes quanto a de segurança jurídica, tão caras aos europeus, os quais sentiram em muitos momentos a força do poder ilimitado e o terror da insegurança jurídica (RAMOS, 2000, p. 108).

A essa solução idealizada por Kelsen e materializada na Constituição

austríaca de 1920-29 dá-se o nome de CONTROLE CONCENTRADO de

constitucionalidade das normas.

Cappelletti (1999, p. 84-85) explica que:

(...) no sistema ‘concentrado’ não vale mais o clássico raciocínio de Hamilton e de Marshall, que resolvia - ao menos aparentemente (...) - o problema da lei inconstitucional e do seu controle judicial, em plano de mera interpretação e de conseqüente aplicação ou não aplicação da lei. Em lugar daquele raciocínio, vale aqui, antes, a doutrina da supremacia da lei e/ou da nítida separação dos poderes, com a exclusão de um poder de controle da lei por parte dos juízes comuns. Na verdade, no sistema de controle ‘concentrado’, a inconstitucionalidade e conseqüente invalidade e, portanto, inaplicabilidade da lei não poder ser acertada e declarada por qualquer juiz, como mera manifestação de seu poder e dever de interpretação e aplicação do direito ‘válido’ nos casos concretos submetidos a sua competência jurisdicional. Ao contrário, os juízes comuns - civis, penais, administrativos - são incompetentes para conhecer, mesmo incidenter tantum e, portanto, com eficácia limitada ao caso concreto, da validade das leis. Eles devem sempre, se assim posso me exprimir, ter como boas as leis existentes, salvo, eventualmente - como acontece na Itália e na Alemanha, mas não na Áustria - o seu poder de suspender o processo diante deles pendente, a fim de argüir, perante o tribunal especial Constitucional, a questão de constitucionalidade surgida por ocasião de tal processo. De modo que, não de todo injustificadamente - embora, a nosso ver, não corretamente - alguns estudiosos acreditam poder falar, a este respeito, de uma verdadeira presunção de validade das leis que tem efeito para

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todos os juízes com a única exceção da Corte Constitucional: uma presunção que, obviamente, não pode absolutamente ser configurada, ao invés, nos sistemas que adotaram o método de controle ‘difuso’ de constitucionalidade.

Enterria (1988, p. 131) ensina que

(...) el sistema kelsiano introduce un cambio básico, que es concretar la jurisdicción del control de constitucionalidad de las leyes en un solo Tribunal y no, como es el sistema americano genuino, en todos los Tribunales, si bien esta pluralidad de fuentes de decisión sobre la constitucionalidad de las leyes se ordene sobre el principio stare decisis, que vincula todos los Tribunales a la jurisprudencia de la Corte Suprema. La fórmula kelsiana consagra asi lo que se ha llamado un sistema de <jurisdicción concentrada> frente al sistema de <jurisdicción difusa>, proprio del constitucionalismo americano.

No controle concentrado, a verificação da compatibilidade das leis com a

Constituição não pode ser realizado por qualquer juiz ou tribunal como

decorrência do dever de interpretação. Nos países que adotam o controle

concentrado predomina a teoria da “Supremacia da Constituição”, mas, também,

da “Separação dos Poderes”, de forma muito mais rígida que nos Estados Unidos.

Sendo assim, apenas a Corte Constitucional, órgão de natureza jurídica, mas

criado especialmente para a guarda da Constituição, pode declarar a

inconstitucionalidade de lei incompatível com a Constituição.

Para Figueiredo (2003, p. 183):

(...) o sistema concentrado de controle de constitucionalidade, se por um lado, pode, abstratamente considerado não ser tão criativo e original quanto o americano - na medida em que não dispõe da variedade de juízes analisando a matéria constitucional - o que supõe, no mínimo um maior número de decisões e interpretações sobre a mesma norma impugnada - ganha com uma especialização presumida. É dizer, supõe-se que, em havendo em único Tribunal moldado e estruturado para analisar a matéria constitucional, estaríamos todos nós, os seus jurisdicionados, mais seguros de que a tarefa de dizer o direito constitucional em definitivo estaria em melhores mãos.

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Já que a Corte Constitucional idealizada por Kelsen também tem natureza

jurídica, por que, então, criar um órgão especial e não delegar a função de guarda

da Constituição ao órgão de cúpula do Poder Judiciário?

Como lembra Cappelletti (1999, p. 87), “o exemplo suíço do Tribunal

Federal (...) teria podido representar, pelo menos em parte, um útil precedente” no

sentido do controle ser delegado ao órgão de cúpula do Poder Judiciário.

A opção por um órgão especial para realizar o controle de

constitucionalidade é, em parte, influência do controle político da França, já

tratado no item anterior. Isso porque as modernas Constituições são bastante

programáticas, ou seja, elas não se limitam a dizer o que é o direito: elas impõem

diretrizes a serem buscadas em ações futuras.

Elas contêm a indicação daqueles que são os supremos valores, as raciones, os gründe da atividade futura do Estado e da sociedade: consistem, em síntese, em muitos casos, como incisivamente, costumava dizer Piero Calamandrei, sobretudo em uma polêmica contra o passado e um programa de reformas em direção ao futuro (CAPPELLETTI, 1999, p. 89).

Assim, a

atividade de interpretação e de atuação da norma constitucional, pela natureza mesma desta norma, é, não raro, uma atividade necessária e acentuadamente discricionária e, lato sensu, eqüitativa. Ela é, em suma, uma atividade mais próxima, às vezes - pela vastidão de suas repercussões e pela coragem e a responsabilidade das escolhas que ele necessariamente implica - da atividade do legislador e do homem de governo que da dos juízes comuns: de maneira que pode-se bem compreender como Kelsen na Áustria, Calamandrei na Itália e outros não poucos estudiosos tenham considerado, ainda que, erradamente, em minha opinião, dever falar aqui de uma atividade de natureza legislativa (“Gesetzgebung” ou, pelo menos, “negative Gesetzgebung”) antes que de uma atividade de natureza propriamente jurisdicional (CAPPELLETTI, 1999, p. 89-90).

A tarefa de realizar o controle de constitucionalidade vai muito além da

atividade meramente interpretativa nas Cartas Constitucionais modernas. Isso

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decorre do caráter projetista dos Textos Fundamentais modernos. As

Constituições estabelecem programas, metas a serem buscadas e, contudo, sua

interpretação implica um poder altamente discricionário (conveniência e

oportunidade), assemelhado ao poder do legislador. Daí a necessidade de se

criar um órgão especial para cumprir tamanha competência: garantir não só a

supremacia da Constituição, mas também a separação dos poderes. 39

Para Figueiredo (2003, p .184):

Os julgamentos da matéria constitucional forçosamente trazem maior necessidade de especialização não só porque afetam diretamente o equilíbrio das forças sociais e dos poderes em um determinado Estado, invalidando leis e normas jurídicas democraticamente postas, como também e em conseqüência, a função de guardião de uma Constituição exige enormes responsabilidades. Ela deve ser atribuída a profissionais jurídicos que se destacam por seu saber e experiência de vida.

O controle concentrado nas Cortes Constitucionais européias foi, na

verdade, “uma solução intermediária entre a francesa e a norte-americana”

(CAPPELLETTI, 1999, p. 99), pois, não obstante o controle ser de natureza

judicial, como no sistema americano,

também nestas modernas Constituições européias, de fato, vale o tradicional princípio francês que aos juízes vedou o controle sobre a legitimidade constitucional das leis e toda ‘interferência’, portanto, em relação ao poder legislativo; pelo que, sob este aspecto, também na Áustria, na Itália e na Alemanha, está a salvo o princípio montesquieuiano da nítida separação dos poderes do Estado (IDEM).

O controle concentrado é um controle por via de ação, pois, diferentemente

do modelo americano, o controle concentrado não se opera num caso concreto,

ele analisa a lei em tese. Por esse motivo , costuma ser chamado de “controle

39 “Em virtude da necessidade de se impedir uma sociedade de poder concentrado e suscetível a insegurança jurídica, entenderam que tão relevante tarefa não poderia ser acometida aos juízes, classe de burocratas investida de maneira não democrática nas suas funções, assim como apenas preparados dentro de uma cultura extremamente legalista” (RAMOS, 2000, 108).

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abstrato” ou “controle por via de ação” e, por se processar diretamente na Corte

Constitucional, é também chamado de “controle direto”. 40

Por analisar as leis em tese, e não para aplicá-las a um caso concreto,

Enterria (1988, p. 131) observa que o Tribunal Constitucional, para Kelsen,

(...) no es propriamente un Tribunal, porque un Tribunal es un órgano que aplica una norma previa a hechos concretos y el Tribunal Constitucional no enjuicia hechos concretos, sino que se limita a controlar la compatibilidad entre dos normas igualmente abstratas las dos: la Constitución y la Ley. No es, pues, um Tribunal porque no enjuicia situaciones concretas, hechos específicos, sino que limita su función a resolver este problema de la Vereinbarkeit, de la compatibilidad entre dos normas abstractas, eliminando la norma incompatible con la norma suprema, pero haciéndolo ex nunc, no ex tunc.

No controle concentrado, o objeto da ação é a própria inconstitucionalidade

e, sendo assim, sua função é muito mais nobre que a função do controle difuso

norte-americano. No controle difuso, o objeto da ação é um caso concreto. A

questão da inconstitucionalidade é meramente incidental no processo. Sua

finalidade, contudo, é resguardar o indivíduo, no caso concreto, de uma

inconstitucionalidade. No controle concentrado, a questão da

inconstitucionalidade é o objeto principal da ação e visa manter a harmonia do

sistema, expulsando a norma incompatível com o Texto Fundamental.

Kelsen não só idealizou um sistema de controle de normas diferente do

sistema implantado por John Marshall nos Estados Unidos como também

desenvolveu uma teoria quanto aos efeitos decorrentes da declaração de

inconstitucionalidade diferente.

Já se apontou que, para a doutrina clássica (doutrina de John Marshall),

um ato inconstitucional é um ato nulo e, sendo assim, a declaração da Suprema

Corte norte-americana tem natureza declaratória, ao passo que, se um ato é nulo, 40 “O controle por um único órgão e sendo este o mais alto Tribunal ordinário foi adotado pelas Constituições do Chile de 1925, da Venezuela de 1936, da Suíça, de Cuba em 1934, da Colômbia em 1886. A corte especializada foi preferida pela Constituição austríaca de 1920, pela tcheca em 1920 e pela italiana em 1947; parcialmente pela alemã em 1949” (TORRECILLAS RAMOS, 1994, p. 23).

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ele o é desde a sua origem, portanto, os efeitos da decisão operam “ex tunc”,

retroagindo à data da edição do ato maculado.

Para Kelsen, por outro lado, o ato inconstitucional não tem natureza jurídica

de ato nulo, mas sim de ato anulável. Sendo anulável um ato incompatível com a

Constituição, a decisão da Corte Constitucional austríaca que declara a

inconstitucionalidade desse ato é de natureza constitutiva-negativa. Assim sendo,

os efeitos da decisão da Corte são em regra “ex nunc” 41, podendo ainda ser “ex

tunc”, ou outro qualquer “pro futuro”.

Como ensina Torrecillas Ramos (1994, p. 77-78):

Ao contrário da doutrina tradicional temos a sustentação de que o ato inconstitucional não é nulo ou írrito. Kelsen afirma que não pode existir a nulidade, dentro da ordem jurídica. As normas jurídicas podem ser anuláveis e esta anulabilidade apresenta-se em vários graus: com efeito para o futuro ou com efeito retroativo. No primeiro caso permanecem intocados os efeitos já produzidos e no segundo, os efeitos anteriores são destruídos.

41 “A decisão seria constitutiva e não declaratória como no sistema norte-americano; vale dizer os efeitos seriam ex nunc e não ex tunc, algo como a revogação da lei” (PALU, 1999, p. 80).

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CAPÍTULO IV

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E AS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL

MAR PORTUGUÊS Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu.

FERNANDO PESSOA.

4.1. Constitucionalismo no Brasil

Até 1530, a Coroa portuguesa não se interessou em colonizar o vasto

território brasileiro. Ela apenas enviou expedições para reconhecimento e defesa

das novas terras, principalmente dos ataques franceses, holandeses, ingleses e

espanhóis (Cf. ELIA, 2003, p. 25-26; RAMOS, 2000, p. 47 e FAUSTO, 2001,

passim). A colonização iniciou-se, de fato, apenas na metade do século XVI,

quando Portugal instituiu o sistema das capitanias hereditárias. 42 Foi uma forma

de “terceirização” da colonização do território brasileiro, pois o Rei entregou

grandes extensões de terras para portugueses com posses e coragem bastante

para investir nas novas terras.

42 “Capitanias hereditárias assim se chamavam porque eram doadas a pessoa de prol e de posse o ‘donatário’, que deveria administrá-las com plenos poderes; hereditárias, porque, por morte do donatário, passavam, por sucessão, ao filho mais velho. O regime já tinha sido aplicado com êxito nas ilhas atlânticas desabitadas, Madeira, Porto Santo, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Para usar de uma expressão hoje em voga, seria uma espécie de ‘terceirização’. Portugal, país pequeno, de reduzida população e limitados recursos, não podia assumir oficialmente o Governo e administração dos mundos por ele descobertos. Teve, pois, necessidade de ceder a terceiros, julgados à altura, as responsabilidades dos encargos” (ELIA, 2003, p. 27).

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A sociedade da Colônia foi pautada, assim, nos grandes proprietários de

terras e na mão-de-obra escrava, donde brotam no Brasil suas bases: o poder

ilimitado (dos proprietários rurais) e a injustiça e a opressão (em relação aos

negros e índios). 43

O século XVIII, considerado didaticamente de 1700 a 1810, marca o

período colonial. Os principais acontecimentos históricos do momento foram: a

invasão dos franceses no Rio de Janeiro; a corrida do ouro; o bandeirismo; a

fixação das fronteiras; as lutas com os espanhóis no sul do País e a influência do

iluminismo europeu na segunda metade do século XVIII. O iluminismo, no Brasil,

contribuiu para a expulsão dos jesuítas do País, bem como para a

Conjuração Mineira, revolta popular que, imbuída dos ideais liberais, sobretudo de

Rousseau, Voltaire e Montesquieu, pregava pela república. A grande figura da

Inconfidência Mineira foi Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como

Tiradentes. Sua execução em 21 de abril de 1792 marca o fim da revolta

republicana (cf. ELIA, 2003, p. 91 e ss. e FAUSTO, 2001, p. 120 e ss.).

No século XIX, a vinda da família real para o Rio de Janeiro marca a fase

independente do Brasil. Em 1808 a Corte portuguesa, fugindo das tropas

napoleônicas na Europa, vem se estabelecer na cidade do Rio de Janeiro, que

passa a ser a sede do Governo Imperial (cf. ELIA, 2003, p. 125 e ss. e FAUSTO,

2001, p. 120 e ss.). “Com a vinda da família real para o Brasil, a Independência foi

praticamente realizada, isto porque todas as restrições econômicas impostas pela

metrópole à colônia foram paulatinamente eliminadas, até mesmo porque a sede

do Reino português instalou-se no Brasil” (RAMOS, 2000, p. 49).

O fim das restrições econômicas, antes impostas pela Coroa à Colônia,

provocou um choque nos interesses dos comerciantes de Portugal e do Brasil.

Isso porque, com a nova conjuntura, ou seja, com a sede do poder transferida

43 “Não se interessando inicialmente pelo Brasil, já que este não oferecia as riquezas fáceis que tanto procurava, a Coroa lusitana entregou-o ao arbítrio dos portugueses que dispunham de recursos e que se aventuraram na sua colonização, permitindo, assim, com essa atitude, ao mesmo tempo de desleixo e esperteza – já que estava colonizando o Brasil sem qualquer custo –, o desenvolvimento e a consolidação de uma sociedade desregrada, ou seja, fundada apenas nos caprichos dos proprietários e na submissão do gentio e da mão-de-obra africana” (RAMOS, 2000, p. 47-48).

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para a cidade do Rio de Janeiro, os comerciantes perderam o monopólio do

comércio dos produtos que entravam e saíam da Colônia.

Com o intuito de manter a nova conjuntura, que pôs fim às restrições

econômicas e ao monopólio comercial português, brotaram alguns movimentos

nacionalistas. De acordo com Ramos (2000, p. 49):

Os grandes defensores dessa nova realidade econômica foram os proprietários rurais, a elite da sociedade brasileira. Essa mesma elite, em razão de defender a manutenção da nova realidade econômica que contrariava os interesses dos portugueses daqui e de Portugal, foi a principal responsável pela Independência do Brasil. Daí ser natural, portanto, que quisesse para si todos os privilégios daí resultantes. Mas, para garantir a independência, e a conseqüente política econômica favorável aos seus interesses, o segmento rural teve de passar a defender os postulados liberais, que objetivavam, na área econômica, garantir a liberdade de mercado.

Nota-se que o liberalismo no Brasil adquiriu uma feição muito particular.

Enquanto na Europa foi um movimento da burguesia comercial contra o

absolutismo, no Brasil constituiu um movimento dos burgueses do campo

(proprietários de terras) contra os burgueses do comércio português.

A independência do Brasil começou a ser costurada com a Conjuração

Mineira (1792), ganhou força com a vinda da família real para o Brasil (1808) e se

efetivou no famoso “Grito do Ipiranga” (1822), imortalizado na tela de Pedro

Américo. 44

Uma vez independente, instala-se no Brasil uma elite burocrática, formada

pela antiga elite rural. Essa classe proprietária de terras leva consigo seus valores

patriarcais e o costume das relações baseadas no afeto , não na impessoalidade.

Daí Sérgio Buarque de Holanda afirmar que daremos ao mundo o “homem

44 Segundo Roberto Pompeu de Toledo, em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I regressava da cidade de Santos montado numa mula, quando parou às margens do Rio Ipiranga para livrar-se de um inoportuno desconforto intestinal. Foi nessa situação que tomou ciência de que fora destituído do cargo de Regente. Instigado por José Bonifácio, D. Pedro I rompeu com a Coroa portuguesa e declarou ‘Independência ou morte!’, sob uma ‘bela besta baia’, e não um garboso cavalo, como estampado no quadro de Pedro Américo. (TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão. São Paulo: Objetiva, 2003 apud BOTTALLO, 2005, p. 46-47).

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cordial” construído a partir dos “padrões de convívio humano informados no meio

rural e patriarcal”. Para o autor:

No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo da nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar - a esfera, por excelência dos chamados ‘contratos primários’, dos laços de sangue e de coração - está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas (HOLANDA, 1995, p. 146).

Observa-se, contudo, que o Estado imperial brasileiro se formou para

atender aos interesses da elite rural, e não ao bem comum.

Boris Fausto (2001, p. 76) observa:

A família ou as famílias em aliança - e aqui estamos falando de famílias da classe dominante - surgem como redes formadas não apenas por parentes de sangue mas por padrinhos e afilhados, protegidos e amigos. Para a Coroa, o Estado é um patrimônio régio e os governantes devem ser escolhidos entre os homens leais ao rei. Por sua vez, os setores dominantes da sociedade tratam de abrir caminho na máquina estatal ou receber as graças dos governantes em benefício da rede familiar. Por caminhos diversos, resulta disso um governo que se exerce não de acordo com padrões de impessoalidade e respeito à lei, mas segundo critérios de lealdade. A expressão ‘para os amigos tudo, para os inimigos a lei’ resume a concepção e a prática que descrevemos (...).

Com a independência, o Brasil precisou se organizar politicamente num

documento escrito. D. Pedro I convocou, via Decreto de 3 de junho de 1822 45,

45 “Decreto de 3 de junho de 1822 convocava uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, nossa primeira Constituinte. A Decisão no. 57, de 19 de junho de 1822, trazia as instruções para a

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nossa primeira Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que foi por ele

dissolvida em novembro de 1823, porque os deputados constituintes queriam

extrapolar os limites impostos pelas forças políticas dominantes na época,

impondo, inclusive, um papel secundário ao Imperador. 46

Dissolvida a Assembléia Constituinte, D. Pedro I delegou a tarefa de

escrever uma Constituição a um Conselho de Notáveis. Pronta, o Imperador

outorgou a Constituição em 25 de março de 1824, sem que ela tivesse, contudo, a

menor participação popular.

A Carta Política do Império instituiu o Brasil como um Estado unitário,

governado por uma monarquia constitucional, mas que, na prática, não conhecia

muitos limites. Segundo Fausto (2001, p. 152):

Pelos princípios constitucionais, a pessoa do imperador foi considerada inviolável e sagrada, não estando sujeita a responsabilidade alguma. Cabia a ele, entre outros pontos, a nomeação dos senadores, a faculdade de dissolver a Câmara e convocar eleições para renová-la e o direito de sancionar, isto é aprovar ou vetar, as decisões da Câmara e do Senado.

eleição que se processaria, por forma indireta, em dois graus: o povo, em cada uma das freguesias, designaria eleitores de paróquia, que nomeariam os deputados” (JOBIM; PORTO, 1996, p. 1, v. 1). 46 “(...) os constituintes de 1823 quiseram inscrever na Constituição normas de teor nitidamente xenofobista, num momento em que as feridas provocadas pela liberdade econômica, que havia impulsionado a Independência, ainda não tinham cicatrizado, bem como impor ao imperador um papel secundário dentro do contexto político, quando a personalidade da figura imperial era de extrema vaidade e prepotência. Isso fez a fraqueza da Assembléia Constituinte de 1823 (...). Portanto, erraram os constituintes de 1823 quando quiseram impor àquele momento da história do Brasil uma realidade política com ele incompatível. Não tendo a independência do Brasil brotado de uma efetiva revolução liberal, mas de estratégias políticas e discursivas montadas pela elite rural, não se poderia querer impor a autoridade suprema do Parlamento à figura de um imperador vaidoso e arrogante como D. Pedro I, que possuía o apoio daqueles contrários à independência, ainda um grupo muito forte. E foi em razão de cometer esses erros, de não ter sabido estabelecer o limite entre o possível e o desejado, que a Assembléia acabou dissolvida” (RAMOS, 2000, p. 51-52).

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4.2. Constituição Imperial de 1824

Dois pressupostos são essenciais para caracterizar a existência do controle

de constitucionalidade nos Estados Modernos: uma Constituição rígida e um

órgão de controle.

Constituições rígidas são aquelas que prevêem um mecanismo de

alteração, adição ou supressão das suas normas mais complexo que o

procedimento de criação de uma norma qualquer infraconstitucional. A rigidez

garante a supremacia da Constituição, o que é fundamental para que se possa

falar em algum tipo de controle das normas. Em Constituições do tipo flexível,

como, por exemplo, a inglesa, não há que se falar em controle de

constitucionalidade das leis, já que lá qualquer lei infraconstitucional tem força

para alterar uma norma constitucional. Sendo assim, não existe paradigma para

um controle formalmente estruturado. 47 Na Inglaterra, como já visto, os juízes

garantem os direitos individuais através da interpretação, posto que, ao Judiciário,

é defeso realizar qualquer tipo de controle face às leis expedidas pelo

Parlamento, que lá é soberano desde a Revolução Gloriosa de 1688. 48

Mas somente a garantia da supremacia da Constituição não basta para

possibilitar um controle formal das normas. Faz-se imperiosa a existência de um

órgão que realize o controle , ou seja, que verifique a compatibilidade dos atos

com o Texto Fundamental. Importante que esse órgão seja distinto do Poder

Legislativo, pois o Poder que cria as leis não pode ser o mesmo a controlá-las,

sob pena de inexistência de controle.

47 Bandeira de Mello (1980, p. 51-52) ensina que: “A Inglaterra não se deixou influenciar por essas revoluções, politicamente célebres, e continuou no velho sistema costumeiro, só com algumas leis escritas, se bem que de altíssima importância, como a Magna Carta (1215), a mais perfeita das criações humanas, segundo Jorge III, e historicamente o germe do regime constitucional, como pondera PONTES DE MIRANDA (...). Assim, nenhuma distinção faz entre lei constitucional e lei ordinária, quer quanto à formação, quer quanto à validade das mesmas. Os órgãos para a legislação ordinária estabelecem, por idênticos processos, aquela que tem caráter constitucional. O Parlamento pode tudo fazer, exceto transformar o homem em mulher, como diz o adágio popular, consagrando-se a frase jocosa de um jurista. A extensão dos poderes que lhes são confiados, de natureza tão transcendentes e tão absolutos, seja em relação às pessoas, seja em relação aos negócios, não admite conceber-se nenhum marco, erigindo barreiras à vontade da maioria de seus membros”. 48 Ver item 3.1 desta dissertação (p. 32).

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Foi visto que nos Estados Unidos o órgão de controle é de natureza

jurídica. Decorre da doutrina de Alexandre Hamilton e da decisão do juiz John

Marshall no caso Marbury x Madison que cabe ao Poder Judiciário ser o guardião

da Constituição 49, enquanto na França o órgão de controle é de natureza política,

por influência das idéias do Abade Emmanuel Joseph Sieyès e da Revolução

Francesa. 50

Também foi visto que, para Kelsen, o órgão de controle é de natureza

jurídica, mas que não deve ser conferida a qualquer juiz ou tribunal a competência

para averiguar a compatibilidade das leis com a Constituição, como nos Estados

Unidos. Ao contrário: o controle deve ser realizado por um órgão de natureza

jurídica criado para a função específica de guarda da Constituição, ou seja, é

preciso criar uma Corte Constitucional especial para realizar o controle. 51

Pois bem, a Carta Política do Império, de 25 de março de 1824, era do tipo

semiflexível. E mais: delegava a competência para realizar controle de

constitucionalidade ao Poder Legislativo.

De acordo com o art. 178, da Carta Imperial de 1824, in verbis:

Art. 178. É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é constitucional pode ser alterado sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias (apud BECKER, 2004, p. 21).

Segundo esse dispositivo, os artigos da Constituição que tratassem de

matéria tipicamente constitucional, ou seja, que disciplinassem sobre os limites e

as atribuições dos poderes ou sobre direitos individuais, somente poderiam ser

alterados por procedimento legislativo especial, enquanto os demais artigos da

Constituição, que não disciplinassem matéria tipicamente constitucional, podiam

ser alterados pelo procedimento legislativo comum. Sendo assim, o fato de a

Carta Política de 1824 ser semiflexível por si só não impediria a existência de um

49 Ver item 3.2 desta dissertação (p. 41). 50 Ver item 3.3 desta dissertação (p. 61). 51 Ver item 3.4 desta dissertação (p. 76).

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controle de constitucionalidade das leis, já que as normas estruturais do Estado

postuladas na Constituição estavam resguardadas sob o manto da supremacia.

Entretanto, a Magna Carta brasileira de 1824 delegava ao Poder

Legislativo a função de guarda da Constituição, como dispunha seu artigo 15, IX,

in verbis:

Art. 15. É da atribuição da Assembléia Geral: (...) VIII - Fazer leis, interpretá-las, suspendê-las, e revogá-las. IX - Velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação (apud BECKER, 2004, p. 11).

A competência do Poder Legislativo para fazer leis, interpretá-las e revogá-

las, bem como velar pela guarda da Constituição, era uma influência da doutrina

francesa, e também inglesa (cf. MENDES, 1999, p. 233; RAMOS, 2000, p. 53-54;

AGRA, 2002, p. 493). O que vale dizer:

Em função da influência francesa, o Judiciário não poderia atuar no controle constitucional uma vez que, na França, historicamente, ele foi um apêndice do poder imperial. A Revolução Francesa pôs fim a esse estado de coisas, mas enfraqueceu o Poder Judiciário. Com o novo regime, o princípio da legalidade se tornou dogma imperativo para o ordenamento jurídico, consolidando o prestígio do Poder Legislativo, órgão que tem a incumbência de realizar a produção normativa. Pela influência inglesa, o Parlamento é considerado o órgão supremo do poder estatal, e, portanto, não poderia o Judiciário declarar a inconstitucionalidade de uma norma feita por um órgão que representava a mais alta esfera de governo. Assim, na Constituição de 1824 não havia controle de constitucionalidade pelo Judiciário por causa da supremacia do Parlamento (influência inglesa) e da relevância do princípio da legalidade, que expressava a vontade geral (influência francesa), devendo a fiscalização constitucional ser efetuada por quem realiza as normas, o Poder Legislativo (AGRA, 2002, p. 493).

No contexto imperial, os juristas entendiam ser correto o Poder Legislativo

realizar o controle de constitucionalidade.

Só o poder que faz a lei é o único competente para declarar por via de autoridade ou por disposição geral obrigatória o

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pensamento, o preceito dela. Só ele e exclusivamente ele é quem tem o direito de interpretar o seu próprio ato, suas próprias vistas, sua vontade e seus fins. Nenhum outro poder tem o direito de interpretar por igual modo, já porque nenhuma lei lhe deu essa faculdade, já porque seria absurda a que lhe desse. Primeiramente é visível que nenhum outro poder é o depositário real da vontade e inteligência do legislador. Pela necessidade de aplicar a lei deve o executor ou juiz, e por estudo pode o jurisconsulto formar sua opinião a respeito da inteligência dele, mas querer que essa opinião seja infalível e obrigatória, que seja regra geral, seria dizer que possuía a faculdade de adivinhar qual a vontade e o pensamento do legislador, que não podia errar, que era o possuidor dessa mesma inteligência e vontade; e isso seria certamente irrisório. Depois disso é também óbvio que o poder a quem fosse dada ou usurpasse uma tal faculdade predominaria desde logo sobre o legislador, inutilizaria ou alteraria como quisesse as atribuições deste ou disposições da lei, e seria o verdadeiro legislador. Basta refletir por um pouco para reconhecer esta verdade, e ver que interpretar a lei por disposição obrigatória, ou por via de autoridade, é não só fazer a lei, mas é ainda mais que isso, porque é predominar sobre ela (BUENO, apud MENDES, 1999, p. 233-234) 52.

Entretanto, quem cria a lei jamais a cria pensando em declará-la

inconstitucional posteriormente, seria ilógico. “É evidente que o Poder Legislativo

apenas aprovará as leis que reputa constitucionais. Manifesto contra-senso seria

a declaração de inconstitucionalidade, feita pelo Legislativo, em seguida à sua

aprovação” (BASTOS, 2002, p. 636).

Ademais, existia o Poder Moderador idealizado por Benjamin Constant 53,

previsto no artigo 98, da Carta Imperial 54, o que corroborava ainda mais para a

situação de inexistência do controle de constitucionalidade das leis.

O Poder Moderador era exercido pelo Monarca e tinha a característica de

ser um superpoder, ou seja, atuava acima dos demais poderes:

52 BUENO, José Antonio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império. Brasília: Senado Federal, 1978. 53 Cf. Silva, 1998, p. 77. 54 In verbis: “Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao Im perador, como Chefe Supremo da Nação e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes Políticos” (BECKER, 2004, p. 16).

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Pela dicção do art. 101 podia-se perceber que, através do ‘Poder Moderador’, o Imperador poderia intervir em todos os demais Poderes, com muito mais intensidade no Poder Legislativo, ficando quimérica a possibilidade de que o verdadeiro constituinte de 1824 fosse atribuir a órgão ou Poder outro a competência para controlar a constitucionalidade das leis (PALU, 1999, p. 110).

Assim, está explicado o porquê da inexistência de controle de

constitucionalidade das leis durante a vigência da Constituição Imperial –

Primeiro: eram delegadas ao Poder Legislativo a interpretação e a guarda da

Constituição; Segundo: existia o Poder Moderador, exercido pelo Imperador, o

que impedia até mesmo a autonomia do Poder Legislativo para realizar o suposto

controle de seus atos legislativos.

4.3. Constituição Republicana de 1891

De acordo com Silva (1998, p. 78) e Bastos (2002, p. 170), os liberais

lutaram 70 anos contra o Poder Moderador, que sufocava as autonomias

regionais. Os ideais de república e federação já de muito existiam no Brasil, mas

de uma forma insipiente, sem contornos definidos, pois o que se queria mesmo

era a emancipação política. Muitas rebeliões brotaram no Brasil Imperial: a

Balaiada, a Cabanada, a Sabinada, a República de Piratinim, etc. Todas

tentaram, em vão, implantar uma monarquia federalista . A Revolução

Pernambucana de 1824, por exemplo, foi contra a dissolução da Assembléia

Constituinte por D. Pedro I e acabou por proclamar, unida às várias Províncias do

Norte do País, a Confederação do Equador (02.07.1824), enquanto a revolta dos

farrapos proclamou a República de Piratinim, em 1835, no Rio Grande do Sul. No

entanto, foi logo sufocada.

Os ideais republicanos acabaram adormecidos até 1870, quando se fundou

na cidade do Rio de Janeiro um clube republicano, patrocinado pelo jornal “A

República”, sob a responsabilidade de advogados e fazendeiros que, em abril de

1873, realizaram a Convenção de Itu, em São Paulo, da qual surge o Congresso

Republicano Provincial.

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Mas essas aspirações federalistas que vinham desde 1823 não eram as

únicas que objetivavam a queda do Imperador. A elas muitas outras se

agregaram, como, por exemplo, as transformações da economia agrária; o

surgimento do exército como força política após a Guerra do Paraguai,

substituindo, contudo, os partidos políticos; as influências culturais, principalmente

do positivismo; o isolamento do Brasil monárquico, enquanto o que predominava

no contexto mundial era o presidencialismo de influência norte -americana; o

envelhecimento do Imperador D. Pedro II, bem como seu afastamento no novo

cenário político; a falta de um herdeiro masculino para o trono, aliado à falta de

popularidade do marido estrangeiro da Princesa Isabel (cf. ARINOS, apud

BASTOS, 2002, p. 171)55.

O império só caiu por um Golpe de Estado aplicado em 15 de novembro de

1889. Não se tratou de nenhum movimento popular: “na verdade tudo se cifrou a

um movimento de tropas situadas no Rio de Janeiro, a que a nação limitou-se a

assistir.” (BASTOS, 2002, p. 169) 56.

Mais uma vez o que aconteceu no Brasil foi uma revolução de cúpula, e

não uma revolução popular.

Com o fim do Império, assumem o poder os Republicanos, os Civis e os

Militares, que, contudo, transformam o regime. Instala-se um Governo Provisório,

presidido pelo Marechal Deodoro da Fonseca, instituído no poder via Decreto no.

1, de 15 de novembro de 1889, redigido por Rui Barbosa, através do qual se

adota, também, o federalismo no Brasil. Formam-se, assim, os Estados brasileiros

(BASTOS, 2002, p. 171).

55 ARINOS, Afonso. Direito constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, s/d, p. 115-117. 56

Bottallo (2005, p. 47) observa que “a proclamação da República deu-se de modo absolutamente anti-heróico, conforme relata Machado de Assis por meio de um personagem de seu romance ESAÚ e JACÓ: ‘Como diabo é que eles fizeram isto, sem que ninguém desse pela coisa?, refletia Paulo. Podia ter sido mais truculento. Conspiração houve, de certo, mas uma barricada não faria mal.’ Na verdade, em 15 de novembro de 1889, a monarquia já estava definitivamente condenada. O mesmo personagem relata: ‘Deodoro é uma bela figura. Dizem que a entrada do Marechal no quartel, e a saída, puxando batalhões, foram esplêndidas. Talvez fáceis demais; é que o regime estava podre e caiu por si.’ O 7 de setembro de 1822 e o 15 de novembro de 1889, marcos importantes da vida do País, foram palcos de fatos, em si mesmos, triviais e até um pouco ridículos. Como acontece com freqüência, a mitificação ficou por conta da História” .

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Em 3 de dezembro de 1890, o Marechal Deodoro da Fonseca nomeia uma

comissão de cinco notáveis republicanos para elaborar um projeto de

Constituição. O projeto apresentado pela “Comissão dos cinco” ao Governo

Provisório, em 30 de maio de 1890, foi publicado pelo Decreto no. 150 de 22 de

junho de 1890, como Constituição aprovada pelo poder Executivo (cf. SILVA,

1998, p. 80; BASTOS, 2002, p. 171-172).

Em 15 de setembro de 1890 elegeu-se uma Assembléia-Geral Constituinte,

sob a Presidência de Prudente de Moraes - que mais tarde veio a ser Presidente

da República. A Assembléia-Geral Constituinte aprovou a Constituição

apresentada pelo Executivo com poucas alterações, em pouco mais de três

meses de trabalhos.

Promulgada em 24 de fevereiro de 1891, a primeira Constituição

Republicana do Brasil adotou, em linhas gerais, como forma de governo, a

república federativa, formada pela união perpétua e indissolúvel das suas antigas

Províncias em Estados Unidos do Brasil, e o regime presidencialista. Por fim,

acabou com o Poder Moderador defendido por Benjamin Constant, passando a

adotar a clássica tripartição dos poderes preconizada por Montesquieu.

Para Clève (2000, p. 82):

Com a Constituição de 1891, as instituições políticas brasileiras sofreram profunda reformulação. A doutrina jurídica norte -americana passou a influir fortemente sobre a nova ordem constitucional. O Brasil adotou a República, o presidencialismo, o legislativo bicameral com um senado composto por representantes dos Estados, a federação, a judicial review e a estruturação judicial da Suprema Corte e a justiça federal, seguindo os passos já experimentados pelos Estados Unidos.

A Constituição de 1891 era, como afirma Amaro Cavalcânti 57 (apud SILVA,

1998, p. 81), “o texto da Constituição norte-americana completado com algumas

disposições das Constituições suíça e argentina”. Isso porque essa Constituição

foi redigida por Ruy Barbosa, que teve forte influência não só do direito norte-

57 CAVALCÂNTI, Amaro. In: Anais da Constituinte, v. I/160.

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americano, de que era admirador, mas também do direito argentino, no que se

refere às eleições, e do direito suíço, no tocante ao processo judicial

constitucional (BASTOS, 2002, p. 172-173) 58.

Entretanto, de acordo com Silva (1998), esta Constituição de 1891 não se

vinculava à realidade de nosso país, mesmo porque ela era um instrumento

criado pelas elites revolucionárias do Brasil. O sistema constitucional implantado

enfraqueceu o poder central, reacendendo por outro lado os poderes regionais e

locais, que inexistiam durante o Império. O presidencialismo implantado

desprezou os partidos e construiu a chamada “política dos governadores”, “que

dominou a Primeira República e foi causa de sua queda” (p. 82).

A política do café-com-leite, como também era conhecida a política dos

governadores, estava pautada no coronelismo, prática comum durante a Colônia

e contida no Império pelo Poder Moderador. Segundo Edgar Carone 59 (apud

SILVA, 1998, p. 82):

O fenômeno do coronelismo tem suas leis próprias e funciona na base da coerção da força e da lei oral, bem como de favores e obrigações. Esta interdependência é fundamental: o coronel é aquele que protege, socorre, homizia e sustenta materialmente os seus agregados; por sua vez, exige deles a vida, a obediência e a fidelidade. É por isso que o coronelismo significa força política e força militar.

A política dos governadores, pautada no coronelismo, instalou um regime

oligárquico no Brasil. Daí Silva (1998, p. 82) afirmar que a Constituição não

correspondia ao poder que de fato regia nossa sociedade na Primeira República.

Afinal:

O coronelismo fora o poder real e efetivo, a despeito das normas constitucionais traçarem esquemas formais da organização nacional com teoria de divisão de poderes e tudo. A relação de forças dos coronéis elegia os governadores, os deputados e os senadores. Os governadores impunham o Presidente da

58 Arantes (1994, p. 51) afirma: “A influência norte americana com tripartição de poderes, presidencialismo e federalismo se fez sentir fortemente nesse período graças principalmente à ação de Rui Barbosa”. 59 CARONE, Edgar. A Primeira República. São Paulo: Difel, 1969, p. 103.

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República. Nesse jogo, os deputados e senadores dependiam da liderança dos governadores. Tudo isso forma uma constituição material em desconsonância com o esquema normativo da Constituição então vigente e tão bem estruturada formalmente.

Visto, portanto, o contexto em que se promulgou a Constituição da

República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891, cabe

verificar como se processou o controle de normas durante sua vigência.

Já se disse que dois pressupostos são essenciais para a existência do

controle de constitucionalidade das leis nos Estados Modernos: que a

Constituição seja do tipo rígida e que o controle seja realizado por órgão distinto

do Poder Legislativo.

Pois bem. A primeira Constituição Republicana do Brasil, de acordo com

seu art. 90, §§ 1º a 4º, era do tipo rígida, ao passo que exigia um procedimento

específico e mais complexo para a alteração das normas constitucionais do que o

procedimento legislativo para a criação de uma lei comum infraconstitucional.

Ademais, não obstante ainda prever que o controle de constitucionalidade

das normas cabia ao Poder Legislativo, a Constituição de 1891 não delegou essa

competência de forma exclusiva para ele. 60 Ao lado do Poder Legislativo, sob a

égide de nova Carta Política, cabia também ao Poder Judiciário verificar a

compatibilidade das leis para com o Texto Fundamental.

Por fim, a sistemática da Constituição de 1891 acabou com o Poder

Moderador. Com a queda de D. Pedro II findaram também os poderes que lhe

eram inerentes. A nova Constituição abarcou o princípio da separação dos

poderes idealizada por Montesquieu e, dentro desse esquema, não havia espaço

para um superpoder que pairasse sobre os demais. Privilegiaram a independência

e a harmonia entre os poderes.

60 Art. 35, 1º, da Constituição de 1891, in verbis: “Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente: -velar na guarda da Constituição e das leis e providenciar sobre as necessidades de caráter federal” (BECKER, 2004, p. 31, grifo inexistente no original).

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Assim, pode-se afirmar que foi com a primeira Constituição Republicana

que se introduziu o controle de constitucionalidade das leis no Brasil, e as

condições favoráveis para tanto foram: a rigidez constitucional; a competência

também do Poder Judiciário para a guarda da Constituição e o fim do Poder

Moderador.

Na verdade, antes mesmo da promulgação da Constituição Republicana, o

Governo Provisório que substituiu o Imperador já havia instituído no Brasil o

chamado controle difuso de constitucionalidade das leis, de influência norte-

americana.

O decreto 848, de 11 de outubro de 1890, organizou a Justiça Federal (art.

3º) e criou o Supremo Tribunal Federal disciplinando as matérias de sua

competência, dentre elas a guarda da Constituição (art. 9º) . Merece destaque a

exposição de motivos desse decreto, redigida pelo então Ministro da Justiça,

Campos Salles:

A magistratura que agora se instala no país, graças ao regime republicano, não é um instrumento cego ou mero intérprete dos atos do poder legislativo. Antes de aplicar a lei, cabe-lhe o direito de exame, podendo dar-lhe ou recusar-lhe sanção se ela parecer conforme ou contrária à lei orgânica (...). Aí está a profunda diversidade de índole, que existe entre o poder judiciário no regime decaído e aquele que agora se inaugura calcado sobre os moldes democráticos do sistema federal. De poder subordinado, qual era, transforma-se em poder soberano, apto na elevada esfera de sua atividade para interpor a benéfica influência de seu critério decisivo, a fim de manter o equilíbrio, a regularidade e a própria independência dos outros poderes, assegurando, ao mesmo tempo, o livre exercício dos direitos do cidadão. Ao influxo da sua real soberania se desfazem os erros legislativos, e são entregues à severidade da lei os crimes dos depositários do poder executivo (apud ARANTES, 1994, p. 52-53).

Observa-se que Campos Salles, no preâmbulo supratranscrito, enaltece o

princípio básico do sistema difuso de controle , qual seja: a verificação de

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compatibilidade da norma com o sistema constitucional vigente, antes de sua

aplicação pelo Poder Judiciário a um caso concreto. 61

Nota-se, ainda, com a nova ordem política e jurídica instituída, que o Poder

Judiciário passou de poder dependente e secundário para poder político

autônomo e independente , com a função especial de guarda da Constituição

contra os abusos do Poder Legislativo ou Executivo e de garantir os direitos

individuais.

Não obstante todas essas inovações referentes ao Poder Judiciário, é fato

que o controle de constitucionalidade das normas, do tipo difuso, inspirado no

direito norte-americano, e instituído no Brasil com o decreto n. 848, de 1890,

posteriormente incorporado à Carta Política de 1891, demorou para ser aplicado

em nosso país. Isso em função de dois motivos básicos. Primeiro: a República,

como visto, não rompeu efetivamente com as práticas e pessoas do regime

monárquico; segundo: foram mantidos no Supremo Tribunal Federal Republicano

os mesmos membros do antigo Supremo Tribunal de Justiça do Império e, como

não estavam acostumados a exercer o controle de constitucionalidade durante o

Império, não contribuíram inicialmente para o desenvolvimento da prática da

guarda da Constituição (cf. RAMOS, 2000, p. 58-59).

Cabe salientar que o controle de constitucionalidade difuso vinha

disciplinado de forma implícita na Constituição de 1891. Ele decorria da

interpretação principalmente do art. 59, §1º, a) e b), daquele Texto Magno.

61 Sobre a influência da doutrina norte-americana no sistema difuso de controle de constitucionalidade instituído no Brasil, assevera Júlio Aurélio Vianna Lopes (2002, p. 49-50): “A contribuição americana redundou na tradição da ‘judicial review’. Parte-se do suposto de que o Poder Judiciário seria o conjunto de órgãos do Estado mais adequado para defender a Constituição, visto que se trata de uma Lei (pois as normas que a compõem, além de fundamentais ao ordenamento, são jurídicas). Os juízes ordinários, de modo singular ou colegiado (nos tribunais), seriam agentes públicos que, em virtude da função jurisdicional que exercem, se deparariam freqüentemente com conflitos envolvendo o texto constitucional e, conseqüentemente, deveriam estar incumbidos de defendê-lo. Como a atividade jurisdicional consiste na subsunção de fatos às leis, caberia também aos juízes aplicar a Constituição, como Lei Fundamental, o que lhes permitiria, inclusive, não aplicar as leis inconstitucionais a fim de garantir a própria Constituição. Além disso, os juízes integram um Poder distinto do Legislativo, cuja neutralidade e imparcialidade os tornariam mais aptos a realizar a revisão das leis infraconstitucionais tomando o texto da Constituição como seu critério de julgamento”.

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Ruy Barbosa 62, num trabalho elaborado em 1893, assim ensina sobre o

controle de constitucionalidade que então surgia no Brasil:

O único lance da Constituição americana, onde se estriba ilativamente o juízo, que lhe atribui essa intenção, é o do art. II, séc. 2a, cujo teor reza assim: ‘O poder judiciário estender-se-á a todas as causas, de direito e equidade, que nasceram desta Constituição, ou das leis dos Estados Unidos’. Não se diz aí que os tribunais sentenciarão sobre a validade, ou invalidade, das leis. Apenas se estatui que conhecerão das causas regidas pela Constituição, como conforme ou contrárias a ela. Muito mais concludente é a Constituição brasileira. Nela não só se prescreve que: ‘Compete aos juízes ou tribunais federais processar e julgar as causas, em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal’ (art. 60, a) como, ainda, que: ‘Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribuna l Federal, quando se questionar sobre a validade de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contrária (art. 59, § 1o., a). A redação é claríssima. Nela se reconhece, não só a competência das justiças da União, como a das justiças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição. Somente se estabelece, a favor das leis federais, a garantia de que, sendo contrária à subsistência delas a decisão do tribunal do Estado, o feito pode passar, por via de recurso, para o Supremo Tribunal Federal. Este ou revogará a sentença, por não procederem as razões de nulidade, ou a confirmará pelo motivo oposto. Mas, numa ou noutra hipótese, o princípio fundamental é a autoridade reconhecida expressamente no texto constitucional, a todos os tribunais, federais, ou locais, de discutir a constitucionalidade das leis da União, e aplicá-las, ou desaplicá-las, segundo esse critério. É o que se dá, por efeito do espírito do sistema, nos Estados Unidos, onde a letra constitucional, diversamente do que ocorre entre nós, é muda a este propósito (apud MENDES, 1999, 235-236).

Ao passo que Palu (1999, p. 111) mostra que,

(...) enquanto nos Estados Unidos o controle da constitucionalidade das leis foi criado pela própria Suprema Corte, no Brasil foi outorgado ao Supremo Tribunal Federal pela Constituição de 1891. A propósito, a princípio, não obstante os

62 BARBOSA, Ruy. Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo . In: Trabalhos jurídicos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1962.

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claros preceitos referidos, houve por parte do Judiciário dúvida quanto ao exercício dessa relevante atribuição e timidez em sua utilização. Isso só se tornou pacífico após os trabalhos de Rui Barbosa, a mostrar, à concludência, o alcance de seus dispositivos, em reconhecendo essa prerrogativa do Judiciário.

Se ainda pairava dúvida quanto à implantação do sistema difuso de

controle de constitucionalidade das leis no Brasil, a lei n. 221, de 20.11.1894, veio

definitivamente eliminá-la. De acordo com seu art. 13, § 10, in verbis:

Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição.

Gilmar Ferreira Mendes (1999, p. 237) assevera:

Consolidava-se, assim, o amplo sistema de controle difuso de constitucionalidade do Direito brasileiro. Convém observar que era inequívoca a consciência de que o controle de constitucionalidade não se havia de fazer ‘in abstrato’. ‘Os tribunais - dizia Rui - não intervêm na elaboração da lei, nem na sua aplicação geral. Não são órgãos consultivos nem para o legislador, nem para a administração (...)’. E, sintetizava, ressaltando que a ‘judicia review’ é um poder de hermenêutica, e não poder de legislação’.

Ruy Barbosa trouxe para a Constituição de 1891 o sistema difuso de

controle de normas norte-americano, porém o fez de forma incompleta. Isso

porque, não obstante a palavra final sobre os conflitos constitucionais ser do STF,

os efeitos de sua decisão eram os mesmos efeitos da decisão de qualquer juiz ou

tribunal, ou seja, valia apenas para as partes envo lvidas no caso concreto levado

a juízo, em que a inconstitucionalidade era apenas um incidente processual:

Entre as competências originárias e privativas do STF não figurava nenhum mecanismo de controle direito e abstrato das leis e, no todo, nenhuma disposição que desse maior efeito às suas decisões do que aquele determinado pelo modo incidental de julgamento (ARANTES, 1994, p. 62-63).

Agra (2002, p. 494) diz que a Constituição de 1891 cometeu um grande

erro ao não prever para o sistema difuso brasileiro mecanismo de uniformização

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das decisões nos moldes da “stare decisis” do sistema norte-americano, o que

somente veio a se positivar com a promulgação da Constituição de 1934, que

outorgou ao Senado Federal competência para suspender os efeitos da lei

declarada inconstitucional, em definitivo , pelo Supremo Tribunal Federal, “erga

omnes” (para todos). Em suas palavras:

(...) na vigência do Texto Magno de 1891, o sistema difuso de constitucionalidade brasileiro funcionou como um controle que valia exclusivamente para os casos particulares, ante a ausência de instrumentos que produzissem efeitos erga omnes, o que acarretou uma perda na eficácia do sistema. O controle difuso implantado nos Estados Unidos tem funcionamento eficaz porque lá existe o stare decisis, que vincula as decisões das várias instâncias judiciais ao que fora firmado pela Suprema Corte norte-americana, sistema esse que não foi adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro. A força do stare decisis advém do fato de que o sistema da common law tem a origem de suas normas radicada no precedente judicial e não no direito legislativo, vinculando a decisão dos juízes na direção do que fora decidido anteriormente. Djanira Maria de Sá explica melhor o tema: ‘Assim, nos países de common law, a sentença, além de decidir a controvérsia e impedir às partes a renovação do debate sobre as questões in concreto já decididas, funciona também como precedente in abstrato para casos semelhantes no futuro’.

Vê-se, portanto, que a introdução do controle difuso no sistema brasileiro,

com a Constituição Republicana de 1891, não foi totalmente eficaz na prática.

Mesmo porque importamos uma doutrina aplicada a um país de base anglo-

saxônica, no qual se admite a jurisprudência como fonte primária do direito,

enquanto o Brasil está arraigado na tradição germânica, pautada na civil law, ou

seja, apenas a lei é fonte primária do direito; a jurisprudência é fonte apenas

secundária e, sendo assim, não se admite o vínculo ao precedente, a “stare

decisis” do sistema norte-americano.

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4.4. Constituição de 1934

Muitos fatores colaboraram para a instituição de uma nova Carta

Constitucional em 1934.

A República brasileira, como visto, já nasceu viciada, posto que não foi

uma brusca ruptura com a monarquia para estender direitos ao maior número

possível de pessoas. Ao contrário, nossa República foi fruto de um movimento

das elites rurais, movidas pelo intuito de manter seus próprios direitos e

privilégios.

Holanda (1995, cap. 7) já escreveu que no Brasil nunca houve uma

preocupação de maior felicidade para o maior número de pessoas, já que nossa

sociedade desde o início foi regida pelos valores do “homem cordial”. 63

Como na sociedade brasileira os valores liberais foram incorporados de

forma a acomodar os interesses da elite rural, o princípio da igualdade professado

pelos revolucionários franceses foi incorporado apenas formalmente às nossas

Cartas Constitucionais. Na prática, o que vigora são os valores cordiais,

privilegiando aquele indivíduo conhecido e não necessariamente o melhor e o

merecedor das oportunidades. No Brasil, os interesses privados sempre

suplantaram os interesses comuns. Daí a política do café-com-leite durante toda a

Primeira República, pautada, sobretudo, no coronelismo. Os vícios da República,

com o passar do tempo, começaram a mostrar-se insustentáveis, com cada vez

mais abusos, favorecimentos ilegais ou imorais e fraudes. Ademais, a

industrialização no país fez surgir uma classe média que exigia novas práticas

políticas para viabilizar o desenvolvimento urbano. Era preciso fortalecer o poder

central e, conseqüentemente, enfraquecer o poder dos Coronéis.

63 Ramos (2000, p. 61) assevera que: “De acordo com os valores cordiais, o relacionamento entre os homens funda-se não no respeito, na responsabilidade e no profissionalismo, mas no afeto, nas preferências. Dessa forma, as oportunidades somente são dadas àqueles que estão próximos de quem manda. E, em sendo assim, somente os próximos conseguem galgar os melhores postos da sociedade, fato que impede a concretização do princípio constitucional da igualdade de oportunidades, sempre registrado, mas jamais cumprido”.

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Em 1930 explode a revolução. O Decreto n. 19.398, de 11 de novembro de

1930, institui juridicamente o Governo Provisório oriundo dessa Revolução

vitoriosa. 64

A Revolução de 1930 levou ao poder um líder civil, Getúlio Vargas, que se

inclinava bastante para o social. Ao assumir a presidência, ele interveio nos

Estados e liquidou com a política dos governadores, desarmou os coronéis e,

principalmente, preparou um novo sistema eleitoral. Em 3 de fevereiro de 1932,

Getúlio decretou o Código Eleitoral Brasileiro, o qual instituiu a Justiça Eleitoral

como responsável pela regularidade das eleições daquele momento em diante, já

que, anteriormente, esse processo era completamente fraudado, pois era

realizado pelos próprios detentores do poder político. Aliás, só por isso se explica

o longo tempo em que predominou a política dos governadores durante a Primeira

República.

Via Decreto de 03 de maio de 1932, Getúlio marca eleições para a

Assembléia Constituinte a realizar-se no dia 03 de maio do ano seguinte.

Dois meses depois desse decreto de 1932, estoura a Revolução

Constitucionalista em São Paulo, tendo sido os revoltosos derrotados por Getúlio

Vargas. Mas nada disso impediu o regular trabalho da Assembléia Constituinte. 65

A nova Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil foi

promulgada em 16 de julho de 1934, fortemente influenciada pela Constituição de

Weimar (1919), primeira Constituição Alemã depois da Primeira Guerra Mundial, a

64 “Retomando o poder em 1930, os militares tiveram, como base social de sustentação, uma classe média urbana, reflexo do processo de industrialização do País. Seu retorno ao poder não se dá através de um processo efetivamente revolucionário, pois não tinham por objetivo construir uma nova sociedade, baseada em princípios éticos, voltados para a realização do bem comum. Pelo contrário, o movimento de trinta tinha pretensões bem mais modestas e pouco nobres, já que almejava apenas implantar uma nova ordem política favorável ao desenvolvimento do capitalismo industrial, selecionando para ocupar os postos importantes da vida política brasileira as pessoas comprometidas com esse processo. Por isso, mais uma vez, a República foi implantada através de decreto, no caso o de n. 19.398, de 11 de novembro de 1930. Esse documento instituiu juridicamente o governo provisório oriundo da ‘revolução’ vitoriosa e teve como seu relator o jurista LEVI CARNEIRO” (RAMOS, 2000, p. 62). 65 “O movimento irrompido em São Paulo, em 09.07.1932, chamado ‘Constitucionalista’, embora não tenha alterado a data fixada para a convocação da Assembléia, traduziu-se, sem dúvida, num elemento de pressão para que ela se cumprisse” (BASTOS, 2002, p. 181).

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qual, em virtude do contexto mundial, veio privilegiar os chamados direitos

sociais.

Silva (1998, p. 83) explica que a nova Carta Constitucional não era tão bem

estruturada como a Primeira Carta Republicana, mas manteve suas bases:

república, federação, separação dos poderes, presidencialismo e regime

representativo. E no que se refere ao controle de constitucionalidade, pode-se

dizer que na Constituição brasileira de 1934 o controle difuso criado na

Constituição anterior foi mantido (art. 76, III, “b” e “c”, da CF/34) e aperfeiçoado.

Surgiu pela primeira vez o dispositivo que exige a MAIORIA ABSOLUTA

dos membros dos Tribunais para poder ser declarada a inconstitucionalidade de

lei ou ato normativo (art. 179, CF/34): “Só por maioria absoluta de votos da

totalidade dos seus Juízes, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade

de lei ou ato do Poder Público” (apud BECKER, 2004, p. 76).

O anteprojeto da Constituição de 1934, no art. 57, trazia a seguinte regra:

Não se poderá argüir de inconstitucional uma lei federal aplicada sem reclamação por mais de cinco anos. O Supremo Tribunal não poderá declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal, senão quando nesse sentido votarem pelo menos dois terços de seus ministros. Só o Supremo Tribunal poderá declarar definitivamente a inconstitucionalidade de uma lei federal ou ato do Presidente da República. Sempre que qualquer Tribunal não aplicar uma lei federal ou anular um ato do Presidente da República, por inconstitucionais, recorrerá EX OFFICIO, e com efeito suspensivo, para o Supremo Tribunal. Julgado inconstitucional qualquer lei ou ato do Poder Executivo, caberá a todas as pessoas, que se acharem nas mesmas condições do litigante vitorioso, o remédio judiciário instituído para a garantia de todo direito certo incontestável (MENDES, 1999, P. 237-238).

De acordo com Mendes (1999, p. 238):

Tal disposição acabaria por consolidar, entre nós, um modelo concentrado de controle de constitucionalidade. Não prevaleceu, todavia, essa orientação, predominando o entendimento que assegura o poder de inaplicar a lei tanto ao juiz singular quanto aos tribunais. Anote-se, ademais, que a cláusula inicial importava

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na constitucionalização dos preceitos aplicados há mais de cinco anos.

Nota-se que, por pouco, nossa Constituição Republicana de 1934 não

instituiu o sistema de controle concentrado das normas, típico dos países

europeus de tradição na “civil law”, principalmente o modelo adotado na Suíça.

Foi também na Carta Política de 1934 que se introduziu pela primeira vez a

possibilidade de suspensão, pelo Senado Federal (art. 91, IV), das leis declaradas

inconstitucionais em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal, no exercício do

controle difuso de constitucionalidade, ou seja, naquele controle que necessita do

caso concreto para realizar-se.

Segundo Arantes (1994, p. 64):

O art. 91, IV da Constituição de 34 pode ser tomado como a primeira de uma série de modificações que serão introduzidas no controle constitucional brasileiro, visando suprimir as deficiências do modelo difuso-incidental num quadro de crescente centralização do poder político.

Como já apresentado, na Constituição de 1891, quando Ruy Barbosa

trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro o sistema difuso de controle de

constitucionalidade das leis, de origem norte-americana, ele não criou um instituto

pátrio para substituir a “stare decisis” do controle norte-americano. Contudo,

nosso sistema gerava uma forte insegurança jurídica, posto que inexistia qualquer

instrumento capaz de uniformizar a jurisprudência. Sendo conferida competência

ao Senado Federal para estender os efeitos de decisão definitiva do STF erga

omnes, dá-se o primeiro passo no sentido de solucionar os problemas de

insegurança jurídica decorrentes da aplicação do controle de constitucionalidade

por qualquer juiz ou tribunal, que podem ter diferentes interpretações sobre uma

lei face à Constituição.

Para Ronaldo Poletti 66 (apud BASTOS, 2002, p. 184), essa foi a mais

importante inovação trazida com a Constituição de 1934.

66 POLETTI, Ronaldo. A Constituição de 1934. Centro de Ensino a Distância. s/c: s/e, s/d.

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Era a maneira de solucionar um dos mais graves problemas do controle da constitucionalidade. A ausência da regra do stare decisis implica que os juízes não estão obrigados a deixar de aplicar a lei, declarada inconstitucional pelo Supremo. A solução da Constituição permitia dar efeitos erga omnes a uma decisão num caso concreto. Além disso, atenuava-se o problema da quebra de harmonia e equilíbrio entre os poderes, pois remetia a um órgão do Poder Legislativo a atribuição de suspender a execução da lei declarada inconstitucional.

Importante salientar que as referidas novidades - maioria absoluta e

suspensão pelo Senado Federal - são disposições que permanecem até hoje em

nosso ordenamento jurídico - artigos 97 e 52, X, da CF/1988, respectivamente.

No que se refere à necessidade de maioria absoluta para poder um

Tribunal declarar a inconstitucionalidade de uma lei, Mendes (1999, p. 237)

esclarece que, com esse mecanismo, “evitava-se a insegurança jurídica

decorrente das contínuas flutuações de entendimento nos tribunais”.

Já a suspensão realizada pelo Senado Federal é importante, à medida que

se trata de ato político 67 capaz de ampliar o alcance de uma decisão tomada em

via de exceção. Empresta-se efeito erga omnes à decisão judicial do STF que

possui originalmente somente efeito entre as partes.

Ainda na Constituição de 1934 foi introduzida mais uma inovação: a

representação interventiva. O artigo 7º, da CF/34, definia as competências

privativas dos Estados e, dentre elas, a de decretar suas respectivas

Constituições e leis. Entretanto, os Estados, ao criarem suas próprias leis,

deveriam respeitar os seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana

representativa; b) independência e coordenação de poderes; c) temporariedade

das funções eletivas, limitada aos prazos dos cargos federais correspondentes, e

proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos para o período imediato; d)

autonomia dos Municípios; e) garantias do poder Judiciário e do Ministério Público

67 Importante salientar que, para a maioria dos autores - Themístocles Cavalcanti, Oswaldo A. Bandeira de Mello, Alexandre de Morais, Vidal Serrano Nunes, José Afonso da Silva, Nagib Slaibi Filho, etc. –, trata-se de mera revogação essa suspensão do Senado, tendo, portanto, efeito meramente ex nunc. Já os professores Clèmerson Merlin Clève e Gilmar Ferreira Mendes são da posição de que se trata de ato político, e, assim sendo, de efeito ex tunc.

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locais; f) prestação de contas da Administração; g) possibilidade de reforma

constitucional e competência do poder Legislativo para decretá-la e h)

representação das profissões.

O art. 12, da CF/34, encarregou-se de enumerar as hipóteses que

justificariam a intervenção federal nos Estados. Dentre elas, no inciso V, figurava

a hipótese de intervenção para assegurar a observância dos princípios

constitucionais sensíveis estampados no art. 7º, I, “a” a “g”, da CF/34,

supratranscritos.

Para se efetivar a intervenção federal baseada na violação dos chamados

princípios constitucionais sensíveis, era preciso, antes, que a lei interventiva fosse

submetida pelo Procurador Geral da República à Corte Suprema, para que esta

declarasse a constitucionalidade da intervenção (§2º, art.12, CF/34).

Arantes (1994, p. 66-67) explica que:

A experiência política pré-1930 tinha demonstrado quão difícil era manter o equilíbrio federativo e os conflitos entre estados e União fizeram a rotina da República Velha. A intervenção federal era sempre uma arma engatilhada e o habeas corpus era o único remédio do ponto de vista individual contra ela. Daí a Constituição de 34 regular amplamente a matéria, dispondo sobre as possibilidades, a forma e os limites da intervenção federal. Como se não bastasse explicitar os princípios constitucionais a serem observados pelos estados e determinar que somente lei do Congresso poderia permitir a intervenção, inclui também a Corte Suprema como detentora necessária da palavra final sobre o assunto. De se notar, em suma, que além de inovar o controle constitucional (a apreciação do tribunal dar-se-ia sobre a lei em si, confirmando ou negando sua validade constitucional, diferentemente do modo incidental até então conhecido), a Carta de 34 reconheceu que, no caso de conflito entre a União e os estados, ambos eram partes (inclusive o Congresso Nacional), vontades parciais e contraditórias, o que tornava necessária a presença de um árbitro superior a elas, a Corte Suprema.

Assim, o art.12, da CF/34, criou a possibilidade de o Supremo Tribunal

Federal (STF) declarar a constitucionalidade da lei interventiva criada pelo

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Congresso Nacional, nos casos em que leis estaduais violassem os chamados

princípios sensíveis e uma vez que fosse provocado pelo Procurador-Geral da

República. Era quase uma ação direta, mas não pode ser considerado um

controle propriamente dito por ação, pois estava restrito a certas condições, além

do fato de somente englobar o controle de leis estaduais que violassem a

Constituição e, por conseqüência, era um controle limitado.

Para Mendes (1999, p. 238), esta quase ação direta foi uma das maiores

novidades trazidas com a Constituição de 1934. Em suas palavras:

Talvez a mais fecunda e inovadora alteração introduzida pelo Texto Magno de 1934 se refira à ‘declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal’, tal como denominou Bandeira de Mello, isto é, a representação interventiva, confiada ao Procurador-Geral da República, nas hipóteses de ofensa aos princípios consagrados no art. 7o., I, A a H, da Constituição. Cuidava-se de fórmula peculiar de composição judicial dos conflitos federativos, que condicionava a eficácia da lei interventiva, de iniciativa do Senado (art. 41, § 3o.), à declaração de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal (art. 12, § 2o.). Assinale-se, por oportuno, que, na Assembléia Constituinte, o Deputado Pereira Lyra apresentou emenda destinada a substituir, no art. 12, § 2o., a expressão ‘tomar conhecimento da lei que a decretar e lhe declarar a constitucionalidade’ por ‘tomar conhecimento da lei local argüida de infringente desta Constituição e lhe declarar a inconstitucionalidade’.

Assim, não obstante a breve vigência do Texto Magno de 1934, vez que

bastante conturbado o contexto político em que se inseriu, não se pode desprezar

o significado que esse sistema constitucional teve como precedente no

desenvolvimento do controle de constitucionalidade mediante ação direta no

direito brasileiro. 68

68 “Deve-se destacar, neste ponto, seguindo o raciocínio de BARBI, que a intervenção federal não caracteriza o controle de constitucionalidade por via de ação, isto porque lhe faltam algumas características desta. Ademais, a declaração do Supremo Tribunal Federal não anula a lei, porquanto este não é o seu objeto. Difere também da por via de exceção, porque não surge no curso de uma demanda qualquer, nem é simples fundamento do pedido, vez que o pedido é a própria declaração de inconstitucionalidade, e não a intervenção. Apesar dessas observações de BARBI, para MOREIRA ALVES, a Constituição de 1934 introduziu no sistema jurídico brasileiro uma ação direita de inconstitucionalidade” (RAMOS, 2000, p. 64).

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Aliás, cabe ressaltar que, durante a Constituinte de 1934, foi apresentado

projeto de criação de uma Corte Constitucional, nos moldes da Corte

Constitucional austríaca idealizada por Hans Kelsen. O projeto apresentado em

20.12.1933 era do Deputado Nilo Alvarenga. Entretanto, a proposta não foi levada

adiante (cf. MENDES, 1999, p. 240).

Pode-se afirmar, então, que foram três grandes inovações trazidas com a

Carta Constitucional de 1934: 1ª. a exigência do voto de pelo menos a maioria

absoluta dos membros dos tribunais para declarar a inconstitucionalidade de uma

lei ou ato normativo; 2ª. a competência do Senado Federal para suspender os

efeitos da lei declarada definitivamente inconstitucional pelo STF erga omnes; e

3ª. a competência do STF para analisar a constitucionalidade da lei do Congresso

Nacional que decreta a intervenção federal em Estado que tenha violado qualquer

dos princípios sensíveis da Constituição.

Palu (1999, p. 117) ensina que,

(...) na concepção da Constituição de 1934, ao invés do controle exclusivamente judicial da constitucionalidade das leis (judicial review), de concepção norte-americana e previsto na Constituição de 1891, o controle da constitucionalidade, tendo em vista o Poder que emite a decisão final sobre a questão, passou a ter natureza jurisdicional-política, ou judicial-política, complexa (dependeria da atuação sucessiva de dois órgão, competentes horizontalmente a tanto) porque: a) se a intervenção federal nos Estados dependia de lei de iniciativa exclusiva do Senado Federal (art. 41, §3º.), o Poder Judiciário decidia se a lei que determinou a intervenção era constitucional ou não, por provocação do Ministério Público, cabendo-lhe a decisão final: b) inversamente, o controle difuso da constitucionalidade efetuado pelo Poder Judiciário apenas tinha efeito entre as partes e cabia ao Senado Federal dar eficácia erga omnes a tal decisão.

Cabe ainda colocar a observação de Barbi 69 (apud RAMOS, 2000, p. 65),

para quem a Constituição de 1934, ao criar o mandado de segurança (art. 113,

no. 33), instituto destinado a salvaguardar o cidadão de atos ilegais ou

69 BARBI, Celso Agrícola. Evolução do controle de constitucionalidade das leis no Brasil. In: Trabalhos Jurídicos. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 38.

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inconstitucionais do poder público, concorreu bastante para o desenvolvimento e

aplicação de um controle de constitucionalidade no Brasil.

4.5. Constituição de 1937

A Constituição de 1934 vigorou por muito pouco tempo, porque tanto a

extrema esquerda quanto a extrema direita no Brasil tornaram inviável a sua

plena aplicação, gerando condições para que fosse possível o Golpe de 1937.

No mundo pós-Primeira Guerra Mundial, as idéias que surgiam na Europa

influenciavam fortemente nosso país. Daí porque no Brasil terem surgido dois

partidos extremistas contra o governo de Getúlio Vargas, que havia sido eleito

para o quadriênio pela Assembléia Constituinte . Havia de um lado o partido de

direita, a ação integralista brasileira, partido de idéias fascistas, bastante

barulhento e virulento, que tinha como chefe Plínio Salgado, que, “como Mussolini

e Hitler, se preparava para empolgar o poder” (SILVA, 1998, p. 84). No lado

extremo, reorganizou-se o partido comunista, aguerrido e disciplinado, que tinha

como chefe o famoso Luís Carlos Prestes, o qual, por sua vez, “também queria o

poder” (SILVA, 1998, p. 84). Esse grupo esquerdista praticou inclusive um

atentado contra um estabelecimento militar (BASTOS, 2002, p. 189).

No poder estava Getúlio Vargas, que, como dito, fora eleito para um

período de quatro anos pela Assembléia Nacional Constituinte. Justificando seus

atos com base no perigo representado pelos partidos extremistas que atuavam no

País, “à maneira de Deodoro” (SILVA, 1998, p. 84), Vargas dissolveu a Câmara e

o Senado, revogou a Constituição de 1934 e, por fim, outorgou em 10 de

novembro de 1937 uma nova Carta Constitucional para o Brasil. 70

70 Para Bastos (2002, p. 189): “a crise espontânea, ou de certa forma insuflada pelo próprio Presidente, serviu de justificativa para que fosse dado o golpe e em seguida adotada a Carta que consagrava o seu ideário (...)”; Porto (apud BASTOS, 2002, p. 196) lembra que: “Tantas vezes se disse que a Constituição brasileira de 10 de novembro de 1937 teve como parâmetro a Constituição polonesa, promulgada em 23 de abril de 1935, que, à nossa Carta, se juntou o apodo de ‘Polaca’”. PORTO, Walter Costa. A Constituição de 1937. Centro de Ensino a Distância, s/l: s/e, s/d, p. 09.

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Getúlio Vargas justificou seu golpe numa proclamação ao povo brasileiro,

na qual argumentou, entre outras coisas, que “as novas formações partidárias,

surgidas em todo o mundo, por sua própria natureza refratária aos processos

democráticos, oferecem perigo imediato para as instituições, exigindo, de maneira

urgente e proporcional à virulência dos antagonismos, o reforço do poder central”

(apud SILVA, 1998, p. 84).

Com o golpe desferido por Vargas em 1937, instalou-se no Brasil uma nova

ordem política: o “Estado Novo”.

A Carta Política outorgada por Vargas em 1937 previa a realização de um

plebiscito popular para aprová-la (art. 187, CF/37). Entretanto, essa referida

consulta popular jamais foi convocada. Getúlio Vargas instituiu pura e

simplesmente uma ditadura no País. 71

Para Wilson Accioli 72 (apud BASTOS, 2002, p. 194):

Interessante observar que a Carta de 1937 aparentava conservar os fundamentos basilares da democracia, mantendo inclusive as garantias dos cidadãos no elenco da Declaração dos Direitos dos Indivíduos e afirmando no seu artigo 1º a origem popular do poder, mas havia na realidade um patente hiato entre o que preconizava a Lei Maior e sua concreta aplicabilidade, tanto assim é que nem se realizou o plebiscito preceituado no art. 187 nem se convocaram eleições imprescindíveis para a composição e funcionamento efetivo do Congresso Nacional.

A Constituição do Estado Novo era baseada num modelo fascista e,

portanto, de cunho eminentemente autoritário. Exemplo disso era o art. 74, da

CF/37, que arrolava as competências do chefe máximo da nação.

Na sistemática da Constituição de 1937 não existia de fato a separação

dos poderes. 73 O Poder Legislativo podia ser posto em recesso ou dissolvido a

71 “A Carta de 1937 não teve (...) aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do Executivo.” (SILVA, 1999, p. 85). 72 ACCIOLI, Wilson. Instituições de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, s/d.

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qualquer momento pelo chefe do Poder Executivo (art. 75, “b” c/c art. 167,

parágrafo único, da CF/37). Já o Poder Judiciário sofreu uma perda bastante

significativa no que tange à sua competência para realizar o controle de

constitucionalidade das leis, pois havia a previsão de que o Poder Executivo,

aliado ao Poder Legislativo, podia rever as decisões do Supremo Tribunal Federal

nesse tocante (art. 96, parágrafo único, da CF/37). Ademais, por força do art. 170,

da CF/37, durante o estado de emergência o Poder Judiciário não podia conhecer

os atos governamentais.

Nas palavras de Bastos (2002, p. 190-191):

Trata-se, portanto, de documento destinado exclusivamente a institucionalizar um regime autoritário. Não havia a divisão de poderes, embora existissem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, visto que estes últimos sofriam nítidos amesquinhamentos. 74

Pontes de Miranda 75 (apud BASTOS, 2002, p. 192) pondera que:

Por mais arraigada que estivesse, entre nós, a convicção de ser o princípio da separação dos poderes essencial às Constituições modernas, convicção que, em 1932, denunciáramos como superstição, vemos que o legislador Constituinte de 1937 não só riscou o princípio, que nas Constituições anteriores se achava, como também adotou a feitura de leis, em parte, pelo Poder Executivo, com nome de ‘decretos-leis’, e permitiu ao Parlamento, por iniciativa do Presidente da República, o exame da decisão judicial que declarou inconstitucional essa lei, golpe profundo na separação dos poderes, pois que, confirmada a lei por dois terços de votos em cada uma das Câmaras fica sem efeito a decisão do Tribunal. Tecnicamente, para quem se acostumou a observar e classificar os fatos relativos à estrutura constitucional dos Estados, temos aí a guarda da Constituição entregue aos tais Poderes: ao Poder Judiciário, na apreciação do caso concreto; ao

73 “A Carta outorgada de 1937 nem sequer mencionou em seus primeiros capítulos, como é de costume, a existência dos três poderes quanto mais a sua separação e independência. Nem mesmo o regime militar pós-64 aboliu ainda que formalmente esta disposição.” (ARANTES, 1994, p. 67). 74 Para o mesmo autor: “Segue-se que, em termos jurídicos, a Constituição jamais ganhou vigência, pois na verdade o que prevaleceu nesta época foi o chamado Estado Novo, estado arbitrário despojado de quaisquer controles jurídicos, onde primava a vontade inconteste do ditador Getúlio Vargas.” (p. 193). 75 MIRANDA, Pontes de. Visão sociológica da Constituição de 1937. Artigo publicado na Folha de Minas, 05.12.1937.

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Presidente da República, a cujo juízo se deixa submeter ou não o julgamento da lei ao reexame parlamentar; finalmente o Poder Legislativo, que, por dois terços de votos, se pode manifestar contra a declaração de inconstitucionalidade.

Nota-se que a Constituição brasileira de 1937, no que se refere ao controle

de constitucionalidade, foi um retrocesso. Se a própria Constituição de 1937 não

chegou a vigorar de fato na sociedade brasileira, pois o que vigorou foi

simplesmente a ditadura, não há que se falar em controle da supremacia das

suas normas. As normas vigentes eram as que assim queria o Presidente da

República, e não a Constituição. Não havia limites ao Poder do Presidente, daí

porque não poder se falar em controle. 76

O retrocesso no que se refere ao controle judicial das normas se deve,

dentre outras coisas, pelo fato de a Carta de 37 trazer, em seu bojo, a previsão

que permitia ao Presidente da República apresentar ao Parlamento uma lei já

declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Ou seja: o STF

declarava a inconstitucionalidade de uma lei no exame de um caso concreto ; se o

Presidente da República mais dois terços do Parlamento entendessem por bem

manter a lei declarada inconstitucional em definitivo pelo STF, esta sobreviveria à

declaração de inconstitucionalidade. Contudo, alterava-se a própria Constituição

para tornar a lei declarada inconstitucional pelo Tribunal compatível com o

sistema jurídico.

No entender de Barbi 77 (apud BASTOS, 2002, p. 646), porém:

(...) o artigo contém, no fundo, a possibilidade de coexistência de uma norma constitucional com uma lei com ela conflitante, pois aquela não seria revogada pela manifestação do Congresso: apenas persistiria a existência e validade da lei, apesar de infringente do texto constitucional, o qual prevalecia em relação a outras leis, como norma limitadora.

76 Francisco de Assis Alves (apud BASTOS, 2002, p. 194) bem coloca que: “Toda a obra legislativa desse período coube ao Presidente da República, que a empreendeu tanto a nível infraconstitucional como constitucional. As limitações impostas pela Lei maior foram superadas ao sabor do exercício totalitário do poder, que o Presidente Vargas cultuou à revelia do próprio Texto Constitucional”. ALVES, Francisco de Assis. As Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Ciência Política , s/d. 77 BARBI, Celso Agrícola. Evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil. RDP, 4:35.

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No ponto de vista de Bastos (2002): “não se (...) afigura possível a

coexistência, num mesmo sistema jurídico, de normas conflitantes” (p. 646).

Compara o autor essa previsão do art. 96, parágrafo único, da CF/1937 com o

poder de emendar a Carta Magna. “A porta aberta ao Parlamento para que, por

uma maioria de 2/3, mantivesse a norma anteriormente fulminada equivalia a uma

emenda à Constituição” (p. 647).

Mesmo pensamento tem Agra (2002, p. 495):

A Constituição de 1937, a mais autoritária até então, manteve os mesmos parâmetros contidos na Carta anterior, mas fez uma apologia ao desequilíbrio entre os poderes, através do seu art. 96, parágrafo único: ‘No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal’. Na verdade, o art. 96 instituiu um processo de emendas àquelas disposições consideradas inconstitucionais e ‘convalidadas’ pelo Congresso. (grifo da autora deste trabalho)

Pode parecer estranho, mas o jurista Cândido Motta Filho 78 (apud

MENDES, 1999, p. 240-241) saudava a inovação e ressaltava:

A subordinação do julgado sobre a inconstitucionalidade da lei à deliberação do Parlamento coloca o problema da elaboração democrática da vida legislativa em seus verdadeiros termos, impedindo, em nosso meio, a continuação de um preceito artificioso, sem realidade histórica para nós e que, hoje, os próprios americanos, por muitos de seus representantes doutíssimos, reconhecem despido de caráter de universalidade e só explicável em países que não possuem o sentido orgânico do direito administrativo. Leone, em sua Teoria de la política, mostra com surpreendente clareza, como a tendência para controlar a constitucionalidade das leis é um campo aberto para a política, porque a Constituição, em si mesma, é uma lei ‘sui generis’, de feição nitidamente política, que distribui poderes e competências fundamentais. 79

78 A evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil. RF, 86:277. 79 Mendes (1999, p. 241) observa que: “No mesmo sentido, pronunciaram-se Francisco Campos, Alfredo Buzaid e Genésio de Almeida Moura”; Bandeira de Mello (1980, p. 178) diz que vários juristas defenderam a modificação além de Cândido da Mota Filho – por exemplo, Lúcio

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É claro que a tarefa de interpretar o Texto Constitucional é

necessariamente política. Afinal, como não o ser se a Constituição traz a estrutura

e a organização política do Estado. O argumento de que o papel de interpretar a

Constituição, portanto, deveria ser concedido a um órgão de natureza política, e

não jurídica, é sensível, e prevalece, por exemplo, na França, onde, como se viu,

o controle é político. O problema aponta de fato para a questão da “politização do

judiciário” ou da “jurisdicização da política”. Mas, como observa Arantes (1994, p.

72):

Pena que não se aplique ao caso da Carta de 37, sendo esdrúxulo falar que aquele dispositivo colocava ‘o problema da elaboração democrática da vida legislativa em seus verdadeiros termos’. O Estado Novo, como vimos, não pode ser tomado propriamente como uma democracia. Pelo contrário, a sua constituição é apenas um conjunto de prerrogativas do executivo federal que tem, inclusive, a faculdade de mudá-la quando bem entender (...). Mas Cândido Motta Filho não tinha mesmo que se preocupar com o controle judicial nessa época. O penúltimo artigo das ‘disposições transitórias e finais’ declarava o estado de emergência (art. 186), figura criada pela própria Constituição que dava poderes ilimitados ao Presidente. Ao mesmo tempo, dispunha o art. 170 que durante o estado de emergência, ‘dos atos praticados em virtude dele não poderão conhecer os juízes e tribunais’. Somente em 30/11/45 a Lei Constitucional n. 16 revogou o artigo 186 da Constituição que duraria, portanto, todo o período do Estado Novo de Vargas.

Do ponto de vista doutrinário, tal disposição não tinha muito significado,

haja vista que existia a previsão de emendas constitucionais, o que, na prática,

atingia o mesmo resultado.

Entretanto, quando, em 1939, Getúlio Vargas editou o Decreto-lei no.

1.564, confirmando textos de lei declarados inconstitucionais pelo STF, a reação

nos meios judiciários foi grande (cf. MENDES, 1999, p. 241).

Bittencourt, Alfredo Buzaid, Genésio de Almeida Moura e Francisco Campos; Para Palu (1999, p. 118): “(...) a maioria dos autores posicionou-se contrariamente a tal novidade”.

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No que se refere ao controle de constitucionalidade das leis, pode-se então

afirmar que, durante a Constituição de 1937, ele na prática não existiu: 1º –

porque não existia de fato uma Constituição que limitasse os poderes do chefe do

Poder Executivo; 2º – o mandado de segurança, instituto importante para a

garantia dos preceitos constitucionais, criado na Constituição anterior, foi retirado

do sistema com a nova Carta Política; 3º – o art. 94, da CF/37, vedou ao Poder

Judiciário conhecer das questões exclusivamente políticas; 4º – o art. 170, da

CF/37, vedava ao Poder Judiciário questionar os atos do governo durante estado

de emergência, que por acaso perdurou por todo o Estado Novo de Vargas; 5º – o

art. 96, parágrafo único, da CF/37, abriu possibilidade ao Presidente da República

de reapresentar lei declarada inconstitucional pelo STF ao Congresso Nacional, e

se este a aprovasse por pelo menos dois terços de seus membros, a lei deixaria

de ser considerada inconstitucional, e, por fim, 6º – cabe ressaltar que o art. 96,

da CF/37, manteve a exigência do voto de pelo menos a maioria absoluta dos

membros dos tribunais para poder ser declarada a inconstitucionalidade de uma

lei, novidade esta trazida pela Constituição anterior, de 1934.

4.6. Constituição de 1946

A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946,

surgiu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. O Brasil havia lutado ao lado

dos Aliados. Com a vitória destes sobre as ditaduras nazifascistas, logo

começaram a surgir movimentos em prol da redemocratização no Brasil. Não

havia mais espaço para uma ditadura como o Estado Novo, implantado por

Getúlio Vargas, dentro de um contexto mundial democrático.

Getúlio teve de começar a abrir o regime e tomar as providências

necessárias para recompor o quadro constitucional brasileiro 80. Em 28 de

fevereiro de 1945, ele expede a Lei Constitucional no. 9, a qual altera dispositivos

80 “A Carta de 1937 nunca chegou a viger. Ela dependia de um plebiscito que nunca se realizou. Destarte, quando a Segunda Guerra já dava mostras de estar se aproximando do seu fim, com a vitória dos países democráticos, Getúlio Vargas, aqui no Brasil, procurou atualizar e compaginar o nosso direito constitucional às novas realidades políticas que o término da Guerra já deixava entrever” (BASTOS, 2002, p. 199).

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da CF/37 a fim de propiciar eleições diretas para Presidente da República e para

a composição do Parlamento. De acordo com essa lei constitucional, o

Parlamento seria eleito para as funções ordinárias, e não para exercer a função

de uma nova constituinte. Somente depois a questão evoluiu para a eleição de

uma Assembléia Constituinte. 81

Fixaram a data de 2 de dezembro de 1945 para a realização de eleições

gerais para Presidente da República, Governadores de Estado, para membros do

Parlamento, bem como para membros das Assembléias Legislativas dos Estados.

Ocorre, entretanto, que em 29 de outubro de 1945 (antes, portanto, das

eleições) os Ministros Militares, desconfiados de que Getúlio Vargas estivesse

manipulando sua permanência no poder, derrubam-no da presidência. Em seu

lugar assume a cadeira de chefe de estado e de governo o então Presidente do

Supremo Tribunal Federal José Linhares. De acordo Bastos (2002, p. 199-200):

Só depois da ascensão de tal poder é que ocorreu efetivamente a transformação do Projeto inicial de reforma da Carta de 1937 em um Projeto mais grandioso de elaboração de uma nova Constituição. Isto se formaliza por meio da Lei Constitucional n. 13, de 12.11.1945, que conferia poderes de natureza constituinte ao Parlamento.

Na disputa eleitoral de 2 de dezembro de 1945 havia dois grandes partidos

concorrendo: o da situação (apoiado em Vargas) e o da oposição. As forças

opostas à ditadura apresentaram como candidato à Presidência da República um

militar, o Brigadeiro Eduardo Gomes, com a intenção de angariar o apoio da

Força Aérea Brasileira. Mas o partido de Vargas não ficou para trás,

apresentando como candidato também um militar, o General Eurico Gaspar Dutra,

ex-Ministro da Guerra de Getúlio Vargas que tinha inegável prestígio na forças

armadas.

81 “(...) essa legislação [EC n.9/45] não tinha em mira a elaboração de uma nova Constituição, mas tão-somente introduzir modificações na sua existência de modo a perpetuar o Texto vigente com o mínimo de modificações possíveis. Ocorre, entretanto, que os passos vão precipitar-se, demonstrando que essa saída era por demais tímida e já não correspondia à celeridade com que se vinham dando os desdobramentos no cenário internacional” (BASTOS, 2002, p. 199).

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O candidato da situação, General Eurico Gaspar Dutra, venceu as eleições

e, em 2 de fevereiro de 1946, instalou-se a Assembléia Nacional Constituinte,

composta por diferentes correntes de opinião.

Os Constituintes de 1946 usaram como base para a elaboração da nova

Carta Constitucional os textos das antigas Magnas Cartas brasileiras de 1891 e

de 1934. Para Silva (1998, p. 87):

Voltou-se, assim, às fontes formais do passado, que nem sempre estiveram conformes com a história real, o que constituiu o maior erro daquela Carta Magna, que nasceu de costas para o futuro, fitando saudosamente os regimes anteriores, que proveram mal. Talvez isso explique o fato de não ter conseguido realizar-se plenamente. Mas, assim mesmo, não deixou de cumprir sua tarefa de redemocratização, propiciando condições para o desenvolvimento do país durante os vinte anos em que o regeu. 82

Sob a égide da Constituição de 1946, restaurou-se no país a República, e a

Federação enalteceu os municípios; Getúlio Vargas foi reeleito Presidente da

República e também suicidou-se; resgatou-se a independência do Poder

Judiciário, reinstituindo o mandado de segurança e os demais institutos do

controle de constitucionalidade das normas; asseguraram-se direitos individuais; e

mais: tivemos duas mudanças no regime político do País. Primeiro a Emenda

Constitucional no. 4, de 02.09.61, que institui o Parlamentarismo, e, dois anos

após, em virtude de escolha popular via plebiscito, outra Emenda Constitucional,

a de no. 6, de 23.01.63, que restaura o Presidencialismo no País.

82 Bastos (2002, p. 200-201) tem uma visão um pouco diferente da CF/46, senão vejamos: “A Constituição de 1946 se insere entre as melhores, senão a melhor, de todas que tivemos. Tecnicamente é muito correta e do ponto de vista ideológico traçava nitidamente uma linha de pensamento libertária no campo político sem descurar da abertura para o campo social que foi recuperada da Constituição de 1934. Com isso o Brasil procurava definir o seu futuro em termos condizentes com os regimes democráticos vigentes no Ocidente, da mesma forma que dava continuidade à linha de evolução democrática iniciada durante a Primeira República. Era, portanto, um reencontro do País com suas origens pretéritas, saltando-se o obscuro período do Estado Novo. Alguns autores criticam a Constituição de 1946 basicamente com fundamento em que ela não teria feito tudo o que seria possível à luz dos acontecimentos técnico-constitucionais da época. Não cremos que procedam tais alegações. Ainda era muito cedo para que se pudessem antever os problemas que o segundo após guerra iria colocar. Era curial que a Constituição de 1946 não mantivesse ainda medidas adaptadas ao futuro com que o Mundo iria se defrontar. De qualquer sorte ela, no seu conjunto, configurava um Texto equilibrado e harmônico. É um Texto que procura dar aos três Poderes o seu devido papel na atuação do Estado”.

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Foi durante a vigência da Constituição Federal de 1946 que o sistema de

controle de constitucionalidade das leis atingiu sua plenitude.

Originalmente, preservou-se o sistema difuso-incidental instituído com a

CF/1891, aperfeiçoado na CF/1934. Dessa forma:

• previa-se o controle difuso realizado por qualquer juiz ou tribunal

num caso concreto , podendo ser analisado em última instância, via

recurso extraordinário, pelo Supremo Tribunal Federal (art. 101, III,

“a” e “d”, CF/46). Cabe ressaltar que a CF/46 removeu o dispositivo

da Carta anterior que previa a possibilidade de revisão, pelo chefe

do Executivo e do Congresso, da decisão do Supremo em controle

de constitucionalidade;

• continuava mantida a exigência do voto da maioria absoluta dos

membros do tribunal para se poder declarar a inconstitucionalidade

de uma lei (art. 200, CF/46);

• manteve-se a atribuição do Senado Federal para suspender a

execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal

Federal erga omnes (art. 64, CF/46) 83;

83 Agra (2002, p. 495) destaca: “Fato importante foi a extinção do dispositivo que atribuía ao Procurador-Geral da República a função de comunicar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal ao Senado, para que este pudesse suspender a execução da lei. A comunicação passou a ser feita pelo próprio Supremo, diminuindo o procedimento burocrático”. No mesmo sentido confira Palu (1999, p. 119), que salienta que: “No anteprojeto da Constituição não era prevista a atuação do Senado Federal para suspender leis ou atos normativos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, parece por entender ser a inovação do Constituinte de 1934 desaconselhável; entretanto, emenda de autoria de Atílio Vivácqua propôs o retorno ao sistema do art. 94, IV, de 1934. Houve profundo interesse pela questão com acirrados debates entre os Constituintes. O Senado voltou a ser um órgão do Poder Legislativo, despido da característica de proceder a ‘coordenação dos poderes’ e ser QUASE um QUARTO PODER, STATUS que lhe tinha atribuído o Constituinte de 1934. A Constituição de 1946 assim dispôs: ‘Art. 64. Incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de LEI ou DECRETO declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal’. Restringiu a amplitude, pois, o Constituinte de 1946 da atuação do Senado para suspender ‘leis e decretos’ declarados inconstitucionais, e não mais ‘lei ou ato, deliberação ou regulamento’”. Torrecillas Ramos (1994, p. 83) também comenta as atribuições do Senado: “A Constituição de 1946 manteve, com algumas modificações, todos os princípios da Constituição de 1934. As dúvidas foram quanto à suspensão pelo Senado de leis estaduais e municipais, ou se haveria limites às leis federais. A orientação foi no sentido de que o Senado poderia suspender tanto as leis federais como as estaduais e municipais, declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (...)”.

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• restituiu-se o mandado de segurança para garantir direito líquido e

certo não amparado por habeas corpus, seja qual for a autoridade

responsável pela ilegalidade ou abuso de poder (art. 141, §24, da

CF/46). A Carta de 46 suprimiu, inclusive, a antiga exigência de ser

o ato atacado manifestamente inconstitucional e ilegal, o que acabou

por ampliar significativamente a área de atuação desse remédio

constitucional (cf. RAMOS, 2000, p. 68 e TORRECILLAS RAMOS,

1994, p. 83).

Ademais, a CF/46 trouxe também a representação de intervenção criada

com a CF/34, para os casos em que haja violação de determinados princípios

sensíveis da Constituição Federal. Mas, no que se refere a essa ação

interventiva, a CF/46 inovou, alterando sensivelmente seu procedimento.

Sob a égide da CF/34, o Supremo Tribunal Federal, provocado pelo

Procurador-Geral da República, era chamado a dar a palavra final nos casos de

intervenção federal em Estado-membro violador de qualquer dos princípios

constitucionais sensíveis. Ao Supremo cabia analisar a constitucionalidade da lei

interventiva criada pelo Congresso Nacional, para daí, então, proceder-se à

intervenção no Estado faltante.

Com a CF/46, o objeto da decisão do Supremo mudou. Deixou de analisar

a constitucionalidade da lei criada pelo Congresso para a intervenção e passou a

analisar a constitucionalidade da própria lei estadual (art. 8º, parágrafo único, c/c

art. 7º, VII, “a” a “g”, da CF/46).

Cabia, pois, ao Supremo Tribunal Federal verificar se a lei estadual violava

ou não os princípios constitucionais sensíveis, quais sejam: a) forma republicana

representativa; b) independência e harmonia entre os poderes; c) temporariedade

das funções legislativas, limitada a duração destas à das funções federais

correspondentes; d) proibição de reeleição de governadores e prefeitos para o

período imediato; e) autonomia municipal; f) prestação de contas da

administração e g) garantias do Poder Judiciário.

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Se o STF entendesse que a lei estadual era contrastante com os princípios

estampados na Constituição, dava procedência à ação interventiva proposta pelo

Procurador-Geral da República e, por conseqüência, procedia-se à intervenção.

Ao Congresso Nacional competia proceder com a intervenção ou, ao

menos, suspender os efeitos da lei declarada inconstitucional, se esta medida

fosse suficiente para restabelecer a normalidade (art. 13, CF/46).

Importante notar que a intervenção federal era uma decorrência direta da

decisão do Supremo, o que colocava o Poder Judiciário como árbitro nos conflitos

entre os entes federativos. O então Ministro do Supremo Tribunal Federal Castro

Nunes assim apresentou essa questão no julgamento da Representação 94:

Consiste a intervenção, nas hipóteses do n. VII, na suspensão, importa dizer, na decretação pelo Congresso da não-vigência do ato legislativo. São duas atribuições distintas, de índole diversa, mas articuladas: a decisão do Supremo Tribunal situa-se no terreno jurídico; a do Congresso, no plano político, mas a título de sanção daquela. Vem aqui, a propósito, esclarecer que, nos termos do assento constitucional e dos motivos de sua inspiração, o Supremo Tribunal não é provocado como órgão meramente consultivo, o que contraviria à índole do Judiciário; não se limita a opinar, DECIDE, sua decisão é um aresto, um acórdão; põe fim à controvérsia como árbitro final do contencioso da inconstitucionalidade. É nessa função de árbitro supremo que ele intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deliberante do poder estadual. Daí resulta que, declarada a inconstitucionalidade, a intervenção sancionadora é uma decorrência do julgado (apud MENDES, 1999, p. 246-247).

Ainda ficavam fora desse controle de constitucionalidade realizado

diretamente pelo Supremo Tribunal Federal os atos normativos praticados pela

própria União.

Quanto a esse assunto, cabe ressaltar, por fim, o caráter excepcional da

referida ação direta, sob pena de intromissão demasiada na autonomia dos

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Estados. Socorre-nos mais uma vez o voto do então Ministro do Supremo

Tribunal Federal, Castro Nunes, mas na Representação n. 95:

Devo dizer ao Tribunal que considero a atribuição hoje conferida ao Supremo Tribunal excepcionalíssima, só quando for possível entroncar o caso trazido ao nosso conhecimento a algum dos princípios enumerados no art. 7o., n. 7, será possível conhecer da argüição. Não basta ser levantada uma dúvida constitucional. Se não for possível entroncá-la com um dos princípios enumerados, penso que o Tribunal deverá abster-se de qualquer deliberação. Nesse sentido, aliás, foi o voto do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, que salientou também esse aspecto, igualmente ressaltado pelo eminente Sr. Ministro Relator, em seu voto. No caso de dúvida, ou quando duvidosa ou remota aquela articulação, o Tribunal não deverá conhecer da representação que poderia transformar em expediente de rotina ou meio de consulta do Governo em todos os casos em que lhe conviesse provocar uma manifestação do Supremo Tribunal. Aliás, o caráter excepcional da atribuição decorre da sanção mesma, que é a intervenção 84 (apud MENDES, 1999, p. 248-249).

Até aqui se nota que a CF/46 apenas restaurou o controle por via de

exceção já conhecido de nosso sistema constitucional, bem como aprimorou a

hipótese do controle por via de ação, nos casos específicos de intervenção

federal. 85 Tendo sido com a CF/46 que o sistema de controle de normas no Brasil

atingiu sua plenitude, cabe então ver como o sistema de controle das normas

caminhou para atingir essa plenitude.

Primeiramente, cabe lembrar o contexto histórico. Com a morte de Getúlio

Vargas, o País caiu numa fase de total instabilidade política. Assume a

presidência seu vice Café Filho, que, apesar de depois ganhar as eleições para

os próximos 5 anos, adoece, assumindo o poder o Presidente da Câmara dos

Deputados, Carlos Luz, que foi deposto em 11.11.55 por um movimento militar

liderado pelo General Teixeira Lott. Ascende ao poder, então, o Presidente do

Senado, Nereu Ramos, que mais tarde entrega o cargo a Juscelino Kubitschek de

Oliveira, que finalmente completa o mandato. Novas eleições. Ganha para

84 Rel. Min. Orozimbo Nonato, AJ, 85:70-1. 85 Essas especificidades – controle difuso via recurso extraordinário, exigência de maioria absoluta, suspensão da lei inconstitucional pelo Senado Federal, bem como a ação interventiva – estão presentes até hoje no texto constitucional vigente (1988).

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Presidente da República Jânio Quadros. Com apenas sete meses de governo,

renuncia. Assume seu vice João Goulart. Uma reação militar tenta impedir sua

posse na Presidência. É nesse momento que se vota às pressas a EC no. 4, de

02.09.61, a qual institui no Brasil o parlamentarismo. No cargo de Primeiro

Ministro no novo regime imposto ao Brasil, Jango viu seus poderes serem

consideravelmente minguados. Não conformado, convoca plebiscito popular, por

meio do qual a população brasileira opta por retornar ao sistema presidencialista,

forçando, contudo, o Congresso Nacional a aprovar a EC no. 6, de 23.01.63, a

qual revoga a EC no. 4 e restitui o presidencialismo no Brasil. Mesmo assim,

Jango não consegue se sustentar no poder. Em 1º de abril de 1964, é derrubado

por um movimento militar. Assume então a Presidência o Comando Militar

Revolucionário, que efetua prisões de qualquer opositor ao autoritarismo

implantado. Em 09.04.64, baixa-se um Ato Institucional, que mantém a ordem

constitucional vigente, ou seja, mantém em vigor a CF/46, mas impõe várias

cassações de mandatos e suspensão de direitos políticos (cf. SILVA, 1998, p. 87-

88).

Pois a plenitude do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil

começou com a entrada em vigor da Emenda Constitucional no. 16, de 26 de

novembro de 1965, que surgiu em plena ditadura militar no País, não obstante

ainda estar vigente a CF/46.

Essa emenda constitucional trouxe ao sistema brasileiro a competência

para o Supremo Tribunal Federal apreciar, em AÇÃO DIRETA proposta pelo

Procurador-Geral da República 86, a constitucionalidade de leis ou atos

86 “Poucos sabem que a possibilidade de se outorgar a órgão do Ministério Público a iniciativa do controle de constitucionalidade in abstrato, positivado no direito constitucional brasileiro em 1965 (Emenda Constitucional n. 16, de 1965; Constituição 1967/69, art. 119, I, l), já havia sido contemplada por Kelsen nas suas meditações sobre o chamado ‘processo constitucional’. Aqueles que se derem ao trabalho de compulsar o texto da conferência proferida por Kelsen perante a Associação dos Professores Alemães do Direito Público (Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer), de 1928, hão de se deparar com a seguinte passagem: ‘Um instituto completamente novo, mas digno de ser experimentado seria a criação de um Advogado da Constituição (Verfassungsanwalt) perante a Corte Constitucional, que – em analogia com o promotor público no processo penal – instaurasse de ofício o controle de normas em relação aos atos que reputasse inconstitucionais. Evidentemente, esse advogado da Constituição deveria ser dotado de todas as garantias de independência tanto em face do Governo, como em face do Parlamento (...)’. É interessante notar que, sem se inspirar diretamente em Kelsen, o legislador constituinte brasileiro acabou, um tanto casualmente, por positivar idéia de um advogado da

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normativos estaduais ou federais face à Constituição (art. 101, I, “K”, da CF/46,

com a nova redação que lhe fora dada pela EC no. 16/65).

A Emenda no. 16/65 criou, então, no Brasil, o chamado CONTROLE

CONCENTRADO das normas. Como visto no capítulo 3.4, o controle concentrado

surgiu na Constituição austríaca de 1920-29, por obra de Hans Kelsen, tipo de

controle também chamado de abstrato, pois, nele, diferentemente do controle

difuso, que se realiza dentro da discussão de um caso concreto, o objeto principal

da ação é a lei em tese. 87

Para Bastos (2002, p. 648-649):

A introdução pela Emenda n. 16, no seu art. 2o, dentre as competências do Supremo Tribunal Federal, daquela de processar e julgar originalmente representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, desvinculou o exercício da via de ação de certos pressupostos que o restringiam anteriormente. Já agora, qualquer ato normativo, federal ou estadual, é suscetível de contraste constitucional. O julgamento da norma em tese, isto é, desprendida de um caso concreto, e, o que é muito importante, sem outra finalidade senão a de preservar o ordenamento jurídico da intromissão de leis com ele inconviventes, torna-se então possível.

Constituição (Verfassungsanwalt)” (MENDES, 1999, p. 265-266). Ademais: “O Procurador-Geral da República, único legitimado para intentar a ação, era considerado substituto processual de toda a coletividade, diferentemente da representação interventiva, na qual era titular a União, figurando no pólo passivo o Estado-membro” (TAVARES, 2001, p.245). 87 Quanto à origem histórica e infl uências do controle concentrado brasileiro, importante ressaltar as lições de Lopes (2002, p. 50): “A contribuição européia redundou na tradição do Tribunal Político. Parte-se do suposto de que a Constituição não é uma Lei como as demais pois sua função é diretamente política, dela dependendo a própria subsistência da coletividade nacional. Conseqüentemente, o seu descumprimento afetaria imediatamente as bases da comunidade e a essência do interesse público, o que não poderia esperar iniciativas isoladas de cidadãos que só a defenderiam quando contrariados em seus interesses particulares. A defesa da Constituição seria uma necessidade objetiva da própria ordem constitucional e exercida por uma atividade jurisdicional de cunho político. Nesse sentido, a jurisdição especificamente constitucional seria imparcial e não orientada por critérios partidários, mas não seria neutra, e sim comprometida com os valores constitutivos da ordem política, celebrados no texto da Constituição. Essa jurisdição política e objetiva seria a incumbência de um órgão especializado que a exerceria em relação ao conjunto de Poderes do Estado. Uma atividade de competência privativa daquele órgão que seria o guardião da Constituição, independentemente da adoção do formato especificamente adotado - judicial (como o Tribunal Constitucional alemão) ou não (como o Conselho Constitucional francês)”.

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Vê-se, portanto, que, com a introdução da EC no. 16/65, o sistema de

controle de constitucionalidade no Brasil, que até então era somente difuso,

passou a ser misto, combinando tanto o sistema difuso de origem norte-

americana quanto o sistema concentrado, de origem européia.

Não há que se falar que o controle concentrado já havia sido introduzido no

sistema com a CF/34, na previsão da ação direta com vistas à intervenção

federal, pois esta espécie de ação direta se dava num caso concreto, e não na

análise abstrata de uma lei. 88

Cabe observar que o controle concentrado é um grande reforço aos

poderes do Executivo Federal. O controle realizado exclusivamente pelo Supremo

Tribunal Federal auxilia o Poder Executivo a evitar as decisões dos juízes de

primeira instância, que, na maioria das vezes, não lhes são favoráveis. Ademais,

logo que fora introduzido o controle concentrado no Brasil, apenas o Procurador-

Geral da República era legitimado para propor a representação de

inconstitucionalidade, que mais tarde passou a ser conhecida em nosso sistema

por ação direta de inconstitucionalidade (Adin). Cumpre lembrar que, até 1988, o

Procurador-Geral da República, chefe do Ministério Público Federal, tinha a

função de advogado não só da sociedade, mas também da União, e mais: era

demissível ad nutum, ou seja, por ser um cargo de confiança do Presidente da

República, seu ocupante podia ser exonerado a qualquer momento, sem qualquer

justificativa. 89

Importante salientar que essa mesma Emenda Constitucional no. 16 de

1965 acrescentou à CF/46 o inciso XIII ao seu art. 124, por meio do qual se

estabeleceu regra que outorgava ao legislador a faculdade para estabelecer

88 “(...) o simples fato de, no caso de intervenção federal, o Supremo Tribunal Federal, provocado pelo Procurador-Geral da República, poder declarar constitucional a lei de intervenção, como acontecia na Constituição de 1934, não é suficiente para dizer-se tratar de controle abstrato de constitucionalidade das leis. E não é suficiente, porque neste caso a lei de intervenção tinha uma finalidade específica, um (sic) circunstância determinada, um período de existência e um local de atuação, portanto votava-se para um caso concreto, o que a retira as características propriamente de lei, que é a generalidade” (RAMOS, 2000, p. 70). 89 “Com a ação direta de inconstitucionalidade das leis, o regime militar encontrou o mecanismo legal que faltava para impor sua vontade dentro da legalidade, porque quem provocava o Supremo Tribunal Federal (...) era o Procurador-Geral da República, cargo de confiança do Presidente da República e demissível ad nutum” (IDEM).

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processo de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de

inconstitucionalidade de lei ou ato do Município em conflito com a Constituição do

Estado. Abriu-se, com isso, a possibilidade de criação de uma ação direita de

inconstitucionalidade estadual que tenha como paradigma não a Constituição

Federal, mas sim a Constituição dos Estados, e previu-se como guardião dessas

Constituições Estaduais não o Supremo Tribunal Federal, mas os Tribunais de

Justiça dos Estados, tendo por legitimado ativo o Procurador-Geral de Justiça

(chefe do Ministério Público estadual) e, como objeto, as leis ou os atos

normativos municipais.

Contudo, pode-se constatar que, durante a vigência da CF/46, com a

introdução da EC no. 16/65, postularam-se três formas de controle de

constitucionalidade das leis no Brasil: via de exceção (controle no caso concreto);

via de ação interventiva (controle direto, mas que se dá num caso concreto) e via

de ação direta (controle abstrato da lei).

4.7. Constituição de 1967- 69

Mostrou-se, no item anterior, que, durante a vigência da CF/46, o Brasil

sofreu mais um golpe de Estado. Em 1º de abril de 1964, os militares despojaram

do poder João Goulart, assumindo em seu lugar o Comando Militar

Revolucionário, que, via Ato Institucional de 09.04.64 90, manteve a ordem

instituída com a CF/46, impondo, no entanto, várias cassações de mandatos e

suspensão de direitos políticos (cf. SILVA, 1998, p. 88).

Elegeu-se Presidente da República o Marechal Humberto de Alencar

Castelo Branco, para um período complementar de três anos. Este governou

baseado em Atos Institucionais (cf. IDEM). 90 Segundo Arantes (1994, p. 77): “O Ato Institucional n. 1, no seu preâmbulo, fixou a base de todas as mudanças que o regime efetivaria no ordenamento jurídico existente e na Carta de 46: ‘A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constitucional. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contem a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas, sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.

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O Ato Institucional no. 2, de 27 de outubro de 1965, dentre outras coisas,

suspendeu as garantias de vitaliciedade e inamovibilidade de toda a magistratura

do País, ou seja, enfraqueceu o Poder Judiciário. Foi nesse contexto que surgiu a

Emenda Constitucional no. 16/65, que, como visto, alterou o sistema de controle

de normas até então vigente no País. Com a introdução dessa emenda à CF/46,

criou-se o controle concentrado de normas no Brasil, controle este que se faz

sobre a lei em tese e é realizado exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal,

ao lado do já consagrado controle difuso, que se realiza no caso concreto (cf.

ARANTES, 1994, p. 78 e SILVA, 1998, p. 88) 91.

O Ato Institucional no. 4, de 7 de dezembro de 1966, “considerando que a

Constituição de 1946, além de haver recebido numerosas emendas, já não

atende às exigências nacionais” e “considerando que se tornou imperioso dar ao

país uma Constituição que, além de uniforme e harmônica, represente a

institucionalização dos ideais e princípios da Revolução”, estabeleceu

procedimento para o Congresso Nacional aprovar a nova Constituição criada pelo

governo militar.

A Constituição foi outorgada em 24 de janeiro de 1967, quando assume a

Presidência o Marechal Arthur da Costa e Silva . Essa nova Carta Política 91 Arantes (1994, p. 79-80) traz dados interessantes sobre essa emenda 16/65: “Por ocasião dessa reforma judiciária, o próprio Supremo Tribunal Federal propôs a introdução da representação de inconstitucionalidade como forma de ação direita, como controle IN ABSTRACTO das normas. E foi além quando sugeriu, ele mesmo, ‘uma prejudicial de inconstitucionalidade, a ser suscitada, exclusivamente, pelo próprio Supremo Tribunal Federal ou pelo Procurador Geral da República, em qualquer processo em curso perante outro juízo’, ou seja, uma espécie de avocatória para assuntos constitucionais relevantes. Curiosamente, na Exposição de Motivos à Emenda 16, o então Ministro da Justiça Magalhães justificou a aceitação do primeiro dispositivo proposto pelo Supremo e a negação do segundo. De acordo com o ministro, ‘ao ver da comissão, avocatória só se explicaria para corrigir omissões de outros órgãos judiciários, se vigorasse entre nós, como vigora por exemplo na Itália, o privilégio de interpretação constitucional por uma Corte especializada, a ponto de se lhe remeter obrigatoriamente toda questão daquela natureza, levantada de ofício ou por uma das partes em qualquer processo, desde que o juiz ou tribunal não a repute manifestamente infundada.’ Ou seja, a avocatória nos casos constitucionais retiraria dos juízes e tribunais inferiores a faculdade de interpretar constitucionalmente as leis (princípio do modelo difuso), coisa que o regime ainda não estava disposto a fazer. Deve-se registrar que a proposta partiu do Próprio STF e foi negada pela comissão presidida pelo ministro da justiça. Nessa mesma linha, quase caiu também o artigo que previa a participação do Senado no controle das normas através da suspensão das leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo. A comissão que redigiu a proposta da Emenda 16 chegou a excluir do texto esta disposição, incumbindo ao presidente do Senado apenas ‘fazer publicar no Diário Oficial e na Coleção de Leis’ a decisão do STF. O Congresso rejeitou a nova redação e o Senado permaneceu com a mesma função prevista pela Carta de 46”.

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manteve o disposto no Ato Institucional no. 2, no que se refere a perda das

garantias da magistratura, bem como o controle de constitucionalidade direto

instituído com a Emenda Constitucional no. 16/65 (cf. ARANTES, 1994, p. 80-81 e

SILVA, 1998, p. 88). Como afirma Mendes (1999, p. 253):

A Constituição de 1967 não trouxe grandes inovações no sistema de controle de constitucionalidade. Manteve-se incólume o controle difuso. A ação direita de inconstitucionalidade subsistiu, tal como prevista na Constituição de 1946, com a Emenda n. 16, de 1965.

Mas, no referente à representação para fins de inte rvenção, cabe ressalva

o fato de a Constituição de 1967 ter ampliado seu objetivo. A nova Carta instituiu

que esta ação interventiva tem o objetivo de assegurar não só a observância dos

chamados princípios constitucionais sensíveis (art. 10, VII), mas também

promover a execução de lei federal (art. 10, VI, 1a parte). Ademais, transferiu do

Congresso Nacional para o Presidente da República o poder de suspender ato ou

lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quando esta medida

se fizer suficiente para restabelecer a normalidade no referido Estado (art. 11, §

2o). Essa disposição permanece prevista na ordem constitucional instituída em

1988.

A Constituição imposta em 1967 sofreu forte influência da Constituição do

Estado Novo de Vargas (CF/37). Sua principal preocupação foi com a “segurança

nacional” 92. Era uma Constituição que concentrava ainda mais os poderes nas

mãos do Presidente da República e, com isso, implantou-se o chamado

federalismo cooperativo 93. Por fim, essa Carta Política dos militares reduziu

drasticamente a autonomia individual, com a suspensão de direitos e garantias

92 “(...) conceito que se tornou abrangente de diversas situações, dotado de um grande vazio semântico que acabava por permitir a manipulação da Constituição em diversos de seus pontos” (BASTOS, 2002, p. 211). 93 “Foi uma Constituição centralizadora. Trouxe para o âmbito federal uma série de competências que antes pertenciam a Estados e Municípios. Reforçou os poderes do Presidente da República. Na verdade poderíamos dizer que a despeito do Texto Constitucional afirmar a existência de três Poderes, no fundo existia um só, que era o Executivo, visto que a situação tornava por demais mesquinhas as competências tanto do Legislativo quanto do Judiciário. Paulo Bonavides com muita precisão averba: ‘Nenhuma Constituição em toda a nossa história republicana deu tantos poderes ao Presidente da República quanto a de 1967, seguida da Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que lhe trouxe um reforço caudaloso’” (BASTOS, 2002, p. 212).

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constitucionais. 94 Por tudo isso, e também por outros motivos, essa Constituição

caracterizou-se como extremamente autoritária, como aponta Silva (1998, p. 89).

A intensificação da oposição, aliada aos movimentos estudantis, que em

1968 ganharam volume com o apoio tanto do clero “progressista” quanto dos

trabalhadores, deu causa à edição do Ato Institucional no. 5, de 13 de dezembro

de 1968. Esse famigerado ato institucional rompeu com a ordem constitucional e

criou uma ordem paralela : permitia ao Presidente da República fechar o

Congresso Nacional, suspender e cassar direitos políticos e mais: proibia o uso

do habeas corpus e suprimia a competência do Poder Judiciário para analisar

atos do Poder Executivo (cf. BASTOS, 2002, p. 214 e BOTTALLO, 2005, p. 44).

Ressalte-se que o conteúdo do Ato Institucional no. 5 (AI-5) se contrapunha

à Constituição de 1967. 95 E o mais importante para este estudo: seu art. 11

proibia o Poder Judiciário de apreciar qualquer ato do Poder Executivo praticado

com fundamento nesse AI-5 (BASTOS, 2002, p. 216).

Logo depois adoece o Presidente Costa e Silva, e seu vice Pedro Aleixo

não assume o poder. O Ato Institucional no. 12, de 31 de agosto de 1969, declara

Costa e Silva temporariamente impedido do exercício da Presidência, daí instituir-

se que o Poder Executivo passa a ser exercido por uma Junta Militar, composta

pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (cf. SILVA, 1998, p. 89 e

BASTOS, 2002, p. 215).

Ocorre que o poder se deteriorava a cada dia, o terrorismo recrudescia,

tendo sido seqüestrado até um embaixador dos Estados Unidos. Tudo isso levou

a Junta de Ministros Militares a editar o Ato Institucional no. 16, de 14 de outubro

94 “Sem embargo a Constituição de 1967 foi uma tentativa de agasalhar princípios de uma Constituição democrática, conferindo um rol de direitos individuais, liberdade de iniciativa, mas onde a todo instante se sente a mão do Estado autoritário que a editou” (BASTOS, 2002, p. 213). 95 “Esse Ato [AI-5] marca-se por um autoritarismo ímpar do ponto de vista jurídico, conferindo ao Presidente da República uma quantidade de poderes de que muito provavelmente poucos déspotas na história desfrutaram, tornando-se marco de um novo surto revolucionário, dando a tônica do período vivido na década subseqüente. Criava-se uma situação confusa, porque era preciso compatibilizar o Ato n. 5 com a própria Constituição de 1967 por ele mantida, o que não era fácil, dado que muitas vezes suas disposições eram profundamente contraditórias” (BASTOS, 2002, p. 214).

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de 1969, que declarou vagos os cargos de Presidente e vice-Presidente da

República (IDEM).

Essa mesma Junta Militar outorgou, três dias depois, ou seja, em 17 de

outubro de 1969, a Emenda Constitucional no. 1/69.

Praticamente todos os autores concordam que essa Emenda

Constitucional no. 1/69 foi uma nova Constituição. Isso porque alterou

substancialmente o texto da CF/67. No que tange ao controle de

constitucionalidade das leis, segundo Arantes (1994, p. 82):

(...) foi ela [EC/69] que completou, por assim dizer, a evolução do movimento de diferenciação/concentração da organização judiciária brasileira ao introduzir medidas que visavam desafogar o Supremo Tribunal Federal das causas de menor relevância e reforçar o seu papel de cúpula do judiciário para os assuntos constitucionais e de interesse nacional, através principalmente da avocatória.

De fato, a Emenda Constitucional no. 1/69, no art. 119, I, “o”, instituiu, in

verbis:

Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal: I - processar e julgar originalmente; (...) o) as causas processadas perante quaisquer juízos ou Tribunais, cuja avocação deferir a pedido do Procurador-Geral da República, quando decorrer imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, para que se suspendam os efeitos de decisão proferida e para que o conhecimento integral da lide lhe seja devolvido (BECKER, 2004, p. 237).

Contudo, criou-se o instituto da avocatória, o que enfraqueceu

significativamente o controle difuso realizado por qualquer juiz ou tribunal diante

de um caso concreto . “Com esse instrumento reduzia-se a praticamente zero o

risco de serem impugnados os atos do executivo federal pelos juízes e tribunais

inferiores” (ARANTES, 1994, p. 83).

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Cabe lembrar que o Procurador-Geral da República, durante a égide da

CF/67-69, tinha a função de advogado da União. Dessa forma, ao provocar

perante o Supremo Tribunal Federal a avocação de uma causa que estivesse

tramitando em qualquer juízo inferior, ele a estaria fazendo em nome próprio do

Presidente da República, de quem era diretamente subordinado, podendo,

inclusive, ser demitido sem qualquer justificativa, já que seu cargo era de

confiança e demissível “ad nutum”.

Percebe-se que o instituto da avocatória marcou “o ponto máximo da

concentração da competência de controle constitucional no STF” (ARANTES,

1994, p. 83). No entanto, não obstante pretender conferir o monopólio da

declaração de inconstitucionalidade ao órgão de cúpula do Poder Judiciário,

assim como os Tribunais Constitucionais europeus, no Brasil o mecanismo criado

se processava no sentido inverso dos procedimentos nas Cortes européias:

“enquanto no modelo concentrado os tribunais inferiores são obrigados a remeter

o incidente de inconstitucionalidade à corte constitucional, aqui é o Supremo

Tribunal que, mediante provocação do Procurador Geral, chama para si o

julgamento dos processos” (IDEM).

Assim, o que se observa no Brasil é que o controle concentrado de

constitucionalidade instituído, sobretudo com a avocatória, não servia como

instrumento para garantir os direitos individuais, mas sim como instrumento para

garantir os interesses do governo. Os juízes do Supremo Tribunal Federal, ao

deferirem pedido do Procurador-Geral da República, no sentido de avocarem para

si o julgamento de qualquer processo que estivesse tramitando numa instância

inferior, estavam garantindo os interesses dos detentores do poder. Como não

havia espaço para a democracia, tampouco o controle de cons titucionalidade era

democrático (cf. RAMOS, 2000, p. 72).

Ainda no que se refere ao controle de constitucionalidade, como bem

lembra Mendes (1999), a Constituição de 1967 não trouxe a previsão do controle

das normas municipais frente às Constituições Estaduais, criada sob a égide da

Constituição Federal anterior com a EC no. 16/65. A Emenda no. 1, de 1969,

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trouxe expressamente de volta esta hipótese de controle realizada nos Tribunais

de Justiça, para fins de intervenção nos municípios. 96

A título de curiosidade, o mesmo jurista traz, em sua obra, comentário

breve sobre a Emenda Constitucional no. 7, de 1977, que instituiu a figura da

representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou

estadual. Em suas palavras:

A Emenda n. 7, de 1977, introduziu, ao lado da representação de inconstitucionalidade, a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual, outorgando ao Procurador-Geral da República a legitimidade para provocar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal (art. 119, I, e). E, segundo a Exposição de Motivos apresentada ao Congresso Nacional, esse instituto deveria evitar a proliferação de demandas, com a fixação imediata da correta exegese da lei. Finalmente, deve-se assentar que a Emenda n. 7, de 1977 pôs termo à controvérsia sobre a utilização de liminar em representação de inconstitucionalidade, reconhecendo, expressamente, a competência do Supremo Tribunal para deferir pedido de cautelar, formulado pelo Procurador-Geral da República (CF 1967/1969, art. 119, I, p) (MENDES, 1999, p. 254).

Por tudo que foi visto até aqui, pode-se resumidamente afirmar que a

Constituição Federal de 1967-69: manteve o controle difuso instituído com a

CF/1891 e as alterações que lhe foram impostas com a CF/1934, entretanto, haja

vista o instituto da avocatória, trazido pela Emenda Constitucional no. 1/69, este

controle quedou drasticamente reduzido; ampliou o objeto da representação

interventiva e delegou ao Presidente da República a competência para decretar a

suspensão da lei estadual inconstitucional, se essa medida fosse suficiente para

restabelecer a normalidade ou, caso necessário, proceder a intervenção; manteve

o controle concentrado de constitucionalidade introduzido ao sistema brasileiro

com a Emenda Constitucional no. 16/65; foi instrumento nas mãos de um Estado

autoritário e não democrático, em que a magistratura não tinha garantias (AI-2) e

96 “A Constituição de 1967 não incorporou a disposição da Emenda n. 16, que permitia a criação do processo de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados, para declaração de lei ou ato dos municípios que contrariassem as Constituições dos Estados. A Emenda n. 1, de 1969, previu, expressamente, o controle de constitucionalidade de lei municipal, em face da Constituição estadual, para fins de intervenção no município (art. 15, § 3o., d)” (MENDES, 1999, p. 253/254).

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o poder Judiciário estava impedido de apreciar atos do Poder Executivo (AI-5);

por fim, a emenda constituciona l no. 7/77 criou uma ação para fins de

interpretação de lei federal ou estadual; contudo, o controle de constitucionalidade

visava garantir os interesses do governo militar, e não os direitos fundamentais

dos cidadãos.

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CAPÍTULO V

O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE NA ATUALIDADE BRASILEIRA

5.1. Noções introdutórias

Com a redemocratização do País em 1988, alterou-se bastante o controle

de constitucionalidade vigente até então no Brasil. Silva (1998, p. 90) explica que

“a luta pela normalização democrática e pela conquista do Estado Democrático de

Direito começara assim que se instalou o golpe de 1964 e especialmente após o

AI-5, que foi o instrumento mais autoritário da história política do Brasil”.

Em 1982 houve eleições dos Governadores, e o povo tomou as ruas em

prol da normalização democrática. Em 1984, a multidão invadiu as ruas pedindo

eleições direitas para Presidente da República. Foram manifestações em vão,

mas as forças democráticas não desanimaram. Depositaram suas esperanças na

candidatura de Tancredo Neves, então Governador de Minas Gerais, para a

Presidência da República. Tancredo “concorreria pela via indireta no Colégio

Eleitoral com o propósito de destruí-lo” (SILVA, 1998, p. 90).

Sua eleição, em 15 de janeiro de 1985, foi saudada como o início de um

novo período na história das instituições políticas brasileiras. Entretanto, Tancredo

morreu sem assumir a Presidência. O Brasil chorou e as esperanças

democráticas minguaram.

Assumiu a presidência o Vice-Presidente José Sarney, “que sempre esteve

ao lado das forças autoritárias e retrógradas” (SILVA, 1998, p. 91). Mesmo assim,

Sarney encaminhou a proposta de Emenda Constitucional nO. 26, de 27 de

novembro de 1985, ao Congresso Nacional. Por via dessa emenda constitucional,

convocou-se uma Assembléia Nacional Constituinte, na verdade um Congresso

Constituinte, pois foram chamados para elaborar a nova Carta Política os

membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. 97

97 “Em verdade, a EC n. 26, de 27.11.85, ao convocar a Assembléia Nacional Constituinte, constitui, nesse aspecto, um ato político. Se convocava a Constituinte para elaborar Constituição nova que substituiria a que estava em vigor, por certo não tem natureza de emenda constitucional,

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Nossa Constituição vigente de 1988 é fruto dos trabalhos desse Congresso

Constituinte. O Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses

Guimarães, a apelidou de “Constituição Cidadã” 98, “porque teve ampla

participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta

decididamente para a plena realização da cidadania” (SILVA, 1998, p. 92). Na

verdade, a alcunha de cidadã lhe foi dada porque seu propósito foi o de valorizar

o indivíduo face ao Estado.

Com o fim do regime militar e voltando o País a ser uma democracia, um

pouco mais democrático passou a ser o controle de constitucionalidade das

normas. Um pouco mais democrático porque ainda não criaram instrumento para

que o cidadão realize o controle direto da constitucionalidade das leis como, por

exemplo, existe na Alemanha. 99

A Constituição de 5 de outubro de 1988 manteve o controle difuso criado

na CF/1891, bem como as alterações que lhe foram incorporadas com a CF/1934,

quais sejam: exigência do voto de pelo menos a maioria absoluta dos membros

dos tribunais para declarar a inconstitucionalidade de uma lei (art. 97); a pois esta tem precisamente sentido de manter a Constituição emendada. Se visava destruir esta, não poderia ser tida como emenda, mas como ato político” (SILVA, 1998, p. 89). 98 Bottallo (2005, p. 45) explica que a expressão “Constituição Cidadã” foi cunhada posteriormente: “Bem mais tarde, quando já promulgada a nova Constituição, o Senado Federal lançou uma edição oficial de seu texto. Esta edição teve circulação muito breve e restrita em razão do caráter ‘polêmico’ de seu prefácio, escrito pelo Deputado Ulisses (sic) Guimarães, sob o título ‘A Constituição Coragem’. Eis o texto integral deste expressivo e apaixonado documento histórico: ‘O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Geograficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é o seu fim e sua esperança, é a CONSTITUIÇÃO CIDADÃ . Cidadão é o que ganha, come, mora, sabe, pode se curar. A Constituição nasce do parto da profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade. Por isso mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do Governo e a administração dos impasses. O Governo será praticado pelo Executivo e o Legislativo. Eis a inovação da Constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades, contra a ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos. É a Constituição coragem. Andou, imaginou, ousou, viu, destroçou tabus, tomou o partido dos que só se salvam pela lei. A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça.’ Aí está, pois, onde a expressão, hoje consagrada, ‘Constituição Cidadã’, foi forjada.” 99 Na Alemanha existe uma “espécie de fiscalização concreta provocada por meio de ação direta. Está-se a referir ao recurso constitucional” (CLÈVE, 2000, p. 92).

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possibilidade de o Senado Federal suspender os efeitos da decisão do STF “erga

omnes” (art. 52, X) e, por fim, a ação interventiva federal (art. 34, VII) e estadual

(art. 35), que, não obstante serem ações diretas, processam-se num caso

concreto. Além de manter o arcabouço jurídico do controle de constitucionalidade

difuso das Constituições anteriores, a Constituição vigente ampliou

significativamente o direito de propositura da ação direta, que surgiu em nosso

sistema com a EC no. 16/65. Ademais, criou a chamada ação direita de

inconstitucionalidade por omissão. A EC no. 03/93 trouxe ao sistema mais duas

ações de controle direto de constitucionalidade: a ação declaratória de

constitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Importante observar a sistemática do controle de normas na Constituição

de 1988, bem como cada uma das inovações trazidas com essa nova Carta.

Primeiro cabe esclarecer que a Constituição de 1988 conceitua-se como

rígida, pois prevê o processo de emendas constitucionais para a alteração de

seus dispositivos (art. 60), processo legislativo este mais complexo que o

processo legislativo comum. Ademais, prevê a competência do Poder Judiciário

para realizar o controle repressivo das normas. Contudo, preenche os dois

requisitos essenciais para a existência de um controle de constitucionalidade das

normas nos Estados modernos: a rigidez constitucional e a previsão de um órgão

de controle para garantir a supremacia da Constituição.

A incompatibilidade de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição

pode se dar de diferentes maneiras:

1. Existe a inconstitucionalidade por ação e a inconstitucionalidade por

omissão. A inconstitucionalidade por ação, também chamada de “positiva”, ocorre

quando o Estado age, ou seja, quando o Estado cria uma lei ou um ato normativo

contrário à Magna Carta. Um exemplo seria uma lei criada pelo Poder Legislativo

que estabelecesse privilégio tributário para uma determinada seita religiosa e não

estendesse o benefício às demais entidades religiosas do país. Uma lei com esse

conteúdo estaria claramente ferindo o princípio constitucional da igualdade,

esculpido no art. 5º, caput, da CF/88, combinado com o inciso VI desse mesmo

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artigo (que trata da liberdade religiosa em específico). Já a inconstitucionalidade

por omissão, ao contrário da por ação, é chamada de “negativa”, pois ocorre

quando existe uma omissão estatal. O Estado é inerte e deixa de disciplinar

matérias para as quais o Texto Constitucional reclama regulamentação. Típico

exemplo dessa forma de inconstitucionalidade é o art. 7º, XI, da CF/88, in verbis:

“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à

melhoria de sua condição social: (...) XI - participação nos lucros, ou resultados,

desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da

empresa, conforme definido em lei” (grifo inexistente no original). Assim que foi

promulgada nossa “Constituição Cidadã”, os trabalhadores urbanos e rurais

passaram a ter o direito de participação nos lucros e, excepcionalmente, na

gestão da empresa. Entretanto, como o dispositivo constitucional exige a criação

de uma lei que defina como se dará essa participação, enquanto não foi criada

essa lei, o direito existia, entretanto, não podia ser exercido. A lei que

regulamenta esse preceito constitucional apenas foi criada no ano de 2000 – Lei

10.101/00. Assim, até o advento de referida lei infraconstitucional, o Estado

estava omisso (inerte) com relação a um mandamento constitucional, qual seja:

que seu artigo 7º, XI, fosse regulamentado;

2. A inconstitucionalidade pode ser total ou parcial. A inconstitucionalidade

total ocorre quando uma lei ou um ato normativo é totalmente incompatível com o

Texto Constitucional, enquanto a inconstitucionalidade parcial se dá quando uma

lei ou um ato normativo apenas em parte conflita com a Constituição. 100

3. A inconstitucionalidade pode ser ainda formal ou material. A

inconstitucionalidade formal, como o próprio nome diz, ocorre quando existe uma

incompatibilidade não de conteúdo, mas sim na forma como a lei ou o ato

normativo foi elaborado. A Constituição exige um procedimento legislativo

específico para cada espécie normativa arrolada em seu art. 59. Se o

procedimento de criação de uma lei ou um ato normativo não seguir os passos

100 Miranda (1996, p. 339) ressalta que: “Quanto à inconstitucionalidade por omissão, é total aquela que consiste na falta absoluta de medidas legislativas ou outras que dêem cumprimento a uma norma constitucional ou a um dever prescrito por norma constitucional e parcial aquela que consiste na falta de cumprimento do comando constitucional quanto a alguns de seus aspectos ou dos seus destinatários”.

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indicados na Constituição, estará fadado à inconstitucionalidade. Quando um

projeto de lei é apresentado por pessoa ou órgão a quem a Constituição não

conferiu legitimidade para deflagrar o processo legislativo, ele está fadado à

inconstitucionalidade formal, e como o erro ocorreu na primeira fase do processo

legislativo - fase da iniciativa do projeto de lei -, diz-se que se trata de

inconstitucionalidade formal subjetiva. Quando o vício no processo legislativo não

se dá na primeira fase, mas sim nas demais fases do procedimento, diz-se que a

inconstitucionalidade é formal objetiva . Já a inconstitucionalidade material,

diferentemente da formal, não se relaciona ao procedimento legislativo : ela se

refere ao conteúdo das normas. Normas materialmente inconstitucionais possuem

conteúdos incompatíveis com os preceitos da Magna Carta. Típico exemplo seria

uma lei que criasse privilégios injustificáveis para uns e não os estendesse para

todos, ferindo claramente o princípio da igualdade, consagrado no art. 5º, caput,

da CF/88. 101

A CF/88 prevê dois momentos para a realização do controle de

constitucionalidade. O controle pode ser prévio ou preventivo , ou pode ser

posterior, também chamado de repressivo. O controle prévio, em regra 102, é

realizado pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo, pois se faz durante o

101 Miranda (1996, p. 339) explica que: “A inconstitucionalidade material reporta-se ao conteúdo, a inconstitucionaldiade formal à forma do acto jurídico-público (porque a distinção recai dentro da inconstitucionalidade por acção). Se todo o acto jurídico possui um conteúdo e uma forma, um sentido e uma manifestação, e se o acto jurídico-público se destina a atingir o fim previsto pela norma e nasce, de ordinário, mediante um processo, ele tanto pode ser inconstitucional (ou ilegal) por seu sentido volitivo divergir do sentido da norma como pode sê-lo por deficiência de formação e exteriorização”. 102 O controle prévio da constitucionalidade das leis pode excepcionalmente ser realizado pelo Poder Judiciário, se provocado a defender direito subjetivo de parlamentar. Os parlamentares têm o direito subjetivo de participar de processos legislativos hígidos, ou seja, têm a garantia ao devido processo legislativo. Se estiver tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei que contrarie a Constituição, esse procedimento legislativo não é correto e, portanto, atinge direito subjetivo dos parlamentares de participarem, somente, de processos de criação de leis de acordo com os preceitos constitucionais. Um exemplo hipotético: Suponhamos que uma comissão de Senadores da República, representantes dos Estados do sul do País, apresentem um projeto de lei (no caso um projeto de emenda constitucional) visando a separação física e econômica de seus territórios para com o restante do Brasil, a fim de constituírem uma nova Nação. Um projeto de emenda constitucional nestes termos, que estivesse tramitando no Senado Federal, estaria claramente ferindo o Princípio Federativo, uma cláusula pétrea da Constituição (art. 60, §4º, I, CF/88). Um Senador da República que não pretenda participar desse procedimento viciado poderá ajuizar uma ação individual, para que o Poder Judiciário se manifeste sobre a possibilidade ou não de prosseguimento daquele projeto de emenda tendente a abolir a forma federativa do Estado. Conclui-se com o exemplo que o Poder Judiciário, por não participar do procedimento de criação das leis, apenas poderá realizar controle sobre os projetos que tramitam no legislativo, se provocado pelos Parlamentares, e em defesa de direito subjetivo destes.

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processo de criação da lei, antes de sua entrada em vigor no sistema. Trata-se de

um controle político, já que, além de ser prévio, realiza-se por órgãos de natureza

política. 103 O Poder Legislativo pode realizar o controle prévio seja nas

Comissões de Constituição e Justiça – órgão fracionário das Casas Legislativas

que tem por função analisar a constitucionalidade de todos os projetos de lei que

são apresentados –, seja nas sessões de discussão e votação dos projetos em

plenário. Já o Poder Executivo realiza o controle de constitucionalidade prévio no

momento da sanção ou veto . Se o chefe do Poder Executivo entender que o

projeto aprovado pelo Legislativo é incompatível com a Constituição, ele faz um

veto jurídico (art. 66, §1º, da CF/88 104).

Segundo Melo Franco (1976, p. 140-141):

Quanto ao Brasil, o controle político sempre existiu. Pela Constituição do Império ele era exclusivo, pois somente à Assembléia Geral competia ‘fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las’ (art. 15, no. 8). As Constituições republicanas também têm estabelecido, de certa maneira, o controle político, ao lado do jurisdicional, aceito desde 1891. Na verdade, é um controle político prévio à declaração de inconstitucionalidade dos projetos de lei, feita pelas Comissões de Constituição do Senado Federal e da Câmara dos deputados. Também o é o veto aposto pelo Presidente da República a uma lei, por motivo de inconstitucionalidade.

O controle posterior, por outro lado, como se realiza depois da lei entrar em

vigor no sistema, em regra 105 é realizado em nosso País pelo Poder Judiciário,

103 Ver capítulo 3.3 - o controle político na França. 104 In verbis: “Art. 66, §1º. Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto”. 105 A doutrina costuma apresentar hipóteses em que o controle posterior é realizado pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo. O Poder Legislativo realiza o controle repressivo em três situações: 1ª) quando o Congresso Nacional, via decreto legislativo, susta os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa (art. 49, V, CF/88); 2ª) quando o Congresso Nacional analisa a constitucionalidade de uma medida provisória antes de convertê-la em lei (art. 62, § 5º, da CF/88), e 3ª) refere-se à competência dos Tribunais de Contas para deixar de aplicar lei que entenda contrária à Constituição, nos termos da súmula 347 do STF. Já o poder Executivo realiza o controle posterior excepcionalmente por força da interpretação dada ao art. 23, I, da CF/88, pelo STF, que permite ao chefe do Poder Executivo, dentro de seu âmbito de atuação, deixar de aplicar lei que considere incompatível com a Constituição. Nesse sentido, diz Palu (1999, p. 148-149): “É conhecida a posição no sentido de que o Executivo pode descumprir lei que entenda inconstitucional, tendo o dever de levar o fato ao

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seja de forma difusa (influência norte-americana), seja de forma concentrada

(influência de Kelsen).

Podem ser objeto de controle de constitucionalidade: quaisquer leis ou atos

normativos, tratados internacionais, omissões, súmulas vinculantes 106 ou

decisões judiciais.

Não podem ser objeto de controle as normas originalmente constitucionais.

O Brasil não admite a tese de que existem normas originalmente constitucionais

inconstitucionais. Essa tese é defendida por Otto Bachof, magistrado e professor

de Direito Constitucional da Universidade da Tübingen, na Alemanha. Para ele,

“também uma norma constitucional pode ser nula, se desrespeitar em medida

insuportável os postulados fundamentais da justiça” (apud BOTTALLO, 2005, p.

Poder Judiciário, por força de seu poder final de interpretar a Constituição. Esse o enfoque, anterior ao texto de 1988, de José Frederico Marques, Caio Tácito, Themístocles Brandão Cavalcanti, Orlando Miranda de Aragão, Manuel Gonçalves Ferreira Filho e José Celso de Mello Filho.” 106 Súmulas são decisões reiteradas de um Tribunal, num mesmo sentido, sobre determinada matéria. Uma única decisão de um Tribunal não faz súmula. Apenas após reiteradas decisões no mesmo sentido, para casos semelhantes, é que podemos afirmar que se criou uma súmula. Até 2004 as súmulas não tinham, no Brasil, força vinculante. Eram apenas indicativas e não de observação obrigatória. Era facultativo segui-las ou não. Não tendo as súmulas, pois, força obrigatória de lei, não podiam, contudo, sofrer controle de constitucionalidade. Ocorre que, com a edição da Emenda Constitucional no. 45, de 8 de dezembro de 2004 (publicada em 31/12/04), conhecida por “emenda da reforma do judiciário”, criou-se a famigerada súmula vinculante. O art. 2º da referida emenda constitucional acresceu à Constituição, entre outras coisas, o art. 103, A, in verbis: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso” (grifos da autora desta dissertação). Com esse novo art. 103, A, vigorando em nossa CF/88, é possível afirmar que súmulas vinculantes podem, sim, ser objeto de controle de constitucionalidade, posto serem de observância obrigatória, sob pena de anulação do ato administrativo ou cassação de sentença judicial que lhes forem contrárias. Mas se a súmula não for vinculante, como ninguém estará obrigado a cumpri-la, não há que se falar em controle.

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121). Bachof postula que, acima da Constituição alemã, existem os direitos

naturais, que são limites ao Poder Constituinte Originário. O Brasil não admite a

teoria de que exista algo acima da Constituição. Para nosso Supremo Tribunal

Federal, o Poder Constituinte Originário é inicial, incondicionado e ilimitado e,

sendo assim, as normas originalmente por ele criadas são sempre constitucionais,

mesmo que tenham criado injustiças ou violado os chamados direitos naturais.

Esse entendimento do Supremo está longe de ficar imune a críticas, mas não

cabe no presente estudo discorrer sobre o assunto. Convém apenas anotar os

ensinamentos de Miranda (1996, p. 319-322), no que se refere aos limites do

poder constituinte originário, bem como às normas constitucionais

inconstitucionais:

Quanto a nós, perfilhamos a existência de uma <axiologia transpositiva que não está na disponibilidade do positivo constitucional ou de que não é titular sem limites o poder constituinte>. Como dissemos, há limites transcendentes que correspondem a imperativos de Direito natural, tal como, em cada época e em cada lugar, este se refrange na vida social. Todavia, não cremos que, a dar-se qualquer forma de contradição ou de violação dessa axiologia, estejamos diante de uma questão de inconstitucionalidade, mas sim diante de uma questão que ultrapassa, para ter de ser encarada e solucionada em plano diverso - na da Constituição material que é adoptada ou no tipo constitucional ao qual pertence. No extremo, poderá haver invalidade ou ilegitimidade da Constituição. O que não poderá haver será inconstitucionalidade: seria incongruente invocar a própria Constituição para justificar a desobediência ou a insurreição contra suas normas. (...) Não concordamos, pois, com Bachof quando, reivindicando para toda e qualquer ordem constitucional valores supralegais, daí retira susceptibilidade de inconstitucionalidade. Ainda que aceitemos que em toda e qualquer ordem jurídica se encontram aqueles valores, nem sempre eles alcançam força suficiente para conformarem a Constituição e, portanto, para determinarem constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos actos jurídicos-públicos. No interior da mesma Constituição originária, obra do mesmo poder constituinte (originário), não divisamos como possam surgir normas inconstitucionais (...). Não vamos, porém, ao ponto de afastar o poder, e até o dever, do juiz de não aplicar normas constitucionais contrárias a imperativos de Direito natural, violadoras de valores fundamentais, gravemente injustas (assim como não negamos o direito de resistência dos cidadãos). Mas, repetimos, a questão não é então

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de inconstitucionalidade, mas de injustiça da lei constitucional, e como tal tem de ser assumida. Tudo está então em saber se o juiz - qualquer juiz, e não especificamente o Tribunal Constitucional - goza de autoridade social para isso e se na comunidade é suficientemente clara e forte a consciência daqueles imperativos e valores.

As normas infraconstitucionais criadas no ordenamento jurídico antes da

promulgação da Constituição de 1988 e compatíveis com o novo texto foram

recepcionadas. Já as disposições infraconstitucionais existentes, porém

incompatíveis com o novo texto, não foram recepcionadas. Não se fala no Brasil

em inconstitucionalidade superveniente. Uma norma infraconstitucional que era

compatível com o antigo texto constitucional vigente, mas que é incompatível com

a nova Carta Magna, não será recepcionado pela nova ordem. Não se fala que

essa lei se tornou inconstitucional com a promulgação da nova Carta Política.

Entende-se que essa lei não foi recepcionada. O Brasil adota a teoria da

recepção, e não a teoria da inconstitucionalidade superveniente.

Miranda (1996, p. 340) explica que:

A separação entre inconstitucionalidade originária e superveniente concerne, como sabemos, o diverso momento de edição das normas constitucionais. Se na vigência de certa norma constitucional se emite um acto (ou um comportamento omissivo) que a viola, dá-se inconstitucionalidade originária. Se uma nova norma constitucional surge e dispõe em contrário de uma lei ou de outro acto precedente, dá-se inconstitucionalidade superveniente (...).

Frise-se que o Brasil não adota essa doutrina. Aqui falamos em não-

recepção, jamais em inconstitucionalidade superveniente.

Vista em linhas gerais a teoria dos atos inconstitucionais, cabe analisar

mais detalhadamente as duas formas de controle existentes na Constituição

Federal de 1988: o controle difuso e o controle concentrado, a partir do seguinte

quadro:

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5.2. Controle difuso

O controle difuso está regulamentado de forma implícita na CF/88 – art. 5º,

XXXV; art. 102, III; art. 103, A – e seu procedimento é disciplinado no Código de

Processo Civil, sobretudo nos arts. 480/482.

Foi visto no item 3.2 desta dissertação que o controle difuso tem origem na

doutrina norte-americana e que pode ser realizado por qualquer juiz ou tribunal no

momento de julgar um caso concreto, assim como foram vistos os sinônimos pelo

qual esse controle é reconhecido pela doutrina: controle repressivo ou posterior;

controle aberto; controle por via de defesa ou controle por via de exceção. Cabe

agora aprofundar o estudo do controle difuso na sistemática da CF/88

O controle difuso não exige um procedimento especial para se realizar.

CONTROLE

DIFUSO CONCENTRADO 1803, Juiz John Marshall ORIGEM 1920, Hans Kelsen EUA - caso Marbury x Madison Constituição Austríaca Sistema americano Sistema europeu qualquer juiz ou tribunal COMPETÊNCIA STF (Tribunais ou Cortes

Constitucionais) caso concreto OBJETO lei em tese (controle concreto) (controle abstrato) é incidental A DECLARAÇÃO DE é pedido principal “incidenter tantum” INCONSTITUCIONALIDADE via de EXCEÇÃO FINALIDADE via de AÇÃO (é instrumento de proteção (é instrumento para manter dos direitos individuais) a harmonia do sistema)

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Para Clève (2000, p. 105),

Não há norma específica dispondo sobre o procedimento dos incidentes de inconstitucionalidade no primeiro grau de jurisdição. A questão de inconstitucionalidade, no primeiro grau, portanto, será resolvida como todas as demais questões prejudiciais de mérito (ilegalidade, direito intertemporal, entre outras) que emergem no processo para robustecer uma pretensão ou a resistência a uma pretensão deduzida em juízo por alguém. Nos tribunais, porém, não apenas os respectivos regimentos internos tratam do problema, como também o Código de Processo Civil (arts. 480 a 482).

Qualquer parte num processo – seja o autor, o réu, o juiz, o promotor ou

terceiros interessados – podem argüir a inconstitucionalidade de uma lei que seja

contrária à Constituição e relevante para a solução do litígio levado a juízo. 107 A

declaração de inconstitucionalidade se dará de forma incidental. Isso porque

nesse tipo de controle o pedido principal do interessado não é a declaração de

inconstitucionalidade, mas sim a garantia de defesa de um direito individual.

Clève (2000, p. 96-97) ensina:

(...) A questão de inconstitucionalidade não consubstancia objeto principal do processo, tal como ocorre na ação direta genérica; porém, a decisão do caso concreto exige a preliminar solução da invocada questão de inconstitucionalidade.

107 “(...) no direito brasileiro a questão constitucional pode ser levantada pelo réu por ocasião da resposta (contestação, reconvenção, exceção), por aquele que na qualidade de terceiro integra a relação processual, ou ainda pelo autor na inicial de uma ação de qualquer natureza (civil, trabalhista, eleitoral), proposta perante qualquer órgão jurisdicional, desde que competente para a causa (inclusive os Tribunais nos casos de competência originária). A questão constitucional pode ser levantada no processo de conhecimento (rito ordinário ou sumaríssimo), pouco importando se se trata de ação constitutiva, declaratória ou condenatória, no processo de execução (especialmente por ocasião dos embargos, mas não apenas aí) e, mesmo, no processo cautelar. A questão constitucional pode ser deduzida nas ações constitucionais, inclusive no mandado de segurança, no habeas corpus e no habeas data, podendo também ser suscitada na ação civil pública e na ação popular”; e “Podem provocar a questão da constitucionalidade todos aqueles que integram, na qualidade de partes, ou de terceiros (assistentes, litisconsortes, oponentes, entre outros), a relação processual, assim como o Ministério Público (quando oficie no feito). Por outro lado, não é indispensável a alegação das partes. O juiz ou o Tribunal (em face de argüição do relator, do revisor ou de qualquer membro) está autorizado a recusar a aplicação de lei ou ato normativo, por inconstitucionais, a despeito do silêncio das partes” (CLÈVE, 2000, p. 97-98). 108 Essa emenda alterou a forma de composição do órgão especial, exigindo, como novidade, que metade das vagas sejam preenchidas por membros eleitos por seus pares.

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(...) Almeja-se, apenas, a solução da questão constitucional na medida em que ela resolve, também, uma dada situação litigiosa submetida à apreciação judicial.

Se o competente para analisar a questão for um juiz de primeira instância,

ao sentenciar a causa, ele decidirá quanto à constitucionalidade ou não da lei

reclamada, antes de entrar no mérito do pedido principal. Desde 2005, em função

da EC no. 45/04, havendo súmula vinculante do STF, referente à lei ou ao ato

normativo questionado em juízo, o posicionamento sumular deve ser respeitado

pelo juiz de primeira instância. Caso o entendimento do STF não seja observado,

caberá reclamação constitucional, ação ajuizada diretamente no STF, e que visa

garantir a autoridade das decisões da Corte (art. 101, I, “l”, CF/88).

Da decisão monocrática de um juiz de primeira instância cabe, ainda,

recurso de apelação para um Tribunal. A questão da inconstitucionalidade,

quando chega para análise num Tribunal, deve seguir o procedimento especial

disciplinado no art. 97, da CF/88, in verbis:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo de Poder Público.

Este artigo supratranscrito cristaliza o princípio da reserva de plenário.

Quando uma ação contendo argüição de vício de inconstitucionalidade de lei

chega a um Tribunal, a Turma, a Câmara ou a Seção que receber referida ação

para analisar e julgar poderá:

1. Entender que a lei argüida de vício não é inconstitucional, pelo contrário,

está de acordo com os preceitos da Magna Carta. Tomando essa posição, a

Turma, a Câmara ou a Seção do Tribunal poderá julgar imediatamente o pedido

principal da lide;

2. Mas, se entender que a lei reclamada é, sim, inconstitucional, nesse

caso, deverá suscitar questão de ordem e encaminhar o julgamento da questão

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envolvendo a inconstitucionalidade de lei para o julgamento pelo pleno ou órgão

especial do Tribunal, nos termos do art. 97, CF/88.

O Pleno são todos os Desembargadores ou Ministros integrantes de um

Tribunal. Para os Tribunais com mais de vinte e cinco membros (ex: TJSP), criou-

se a figura do órgão especial, que, de acordo com o art. 93, XI, CF/88

(recentemente alterado pela EC no. 45/04 108), será composto por no mínimo onze

e no máximo vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições

administrativas e jurisdicionais da competência do tribunal pleno. As vagas para

composição do órgão especial serão providas metade pelo critério da antiguidade

e a outra metade pelo voto de todos os membros do tribunal. O pleno ou o órgão

especial somente poderão declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo

pelo voto de pelo menos a maioria absoluta de seus membros. 109

De acordo com Clève (2000, p. 103):

A maioria simples satisfaz-se com o pronunciamento favorável da maioria dos presentes, uma vez alcançado o QUORUM. A maioria absoluta, entretanto, apenas se satisfaz com a manifestação favorável do primeiro número inteiro subseqüente à metade dos membros do pleno ou do órgão especial (e não dos presentes).

Uma vez decidida a questão da inconstitucionalidade pelo voto da maioria

absoluta do pleno ou do órgão especial do Tribunal, a ação é novamente

encaminhada à Turma, à Câmara ou à Seção de origem, para que se proceda ao 109 “Constituindo o preceito do art. 97 da Constituição ‘condição de eficácia’ da decisão, cumpre aplicar ao caso concreto o ato normativo contestado na hipótese de a decisão tomada pelo órgão especial ou tribunal pleno não alcançar a maioria absoluta (...). A inconstitucionalidade pronunciada pelo tribunal, sem a satisfação da exigência referida, implicará a aplicação da lei contestada como se fosse constitucional. É preciso salientar que a exigência da maioria somente atinge as decisões que envolvam a declaração final de inconstitucionalidade. Os tribunais brasileiros entendem que as argüições de incompatibilidade de lei ou ato normativo anterior em face da Constituição (ou da reforma: emenda ou revisão) envolvem uma questão de direito intertemporal (revogação: critério da vigência) e não uma questão de constitucional (critério da validade). Por esse motivo, o reconhecimento judicial da revogação não demanda pronunciamento da maioria absoluta dos membros do tribunal ou do órgão especial, na forma do art. 97 da Constituição Federal, podendo ser pronunciada mesmo por órgão parcelar da Corte de Justiça (as Câmaras, V.G), e, nesse caso, pelo voto da maioria simples de seus membros. O Pretório Excelso entende, também, que o princípio da reserva do Plenário não tem qualquer projeção sobre as decisões colegiadas proferidas em sede meramente cautelar, restringindo-se, em sua aplicabilidade, unicamente às hipóteses de declaração final de inconstitucionalidade (PET 1458-CE, Rel. Min. Celso de Mello, j. 26.02.1998, DJU 04.03.1998)” (CLÈVE, 2000, p. 102-103).

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julgamento do pedido principal. Frise-se, portanto, que o pleno ou o órgão

especial julgam apenas a questão do vício de inconstitucionalidade, mas não o

pedido principal da lide. Cabe ressaltar que a decisão do plenário é irrecorrível 110,

e vincula o órgão fracionário no julgamento do caso concreto.

Clève (2000, p. 106) observa:

Nessa linha, o Supremo entende que a juntada do acórdão proferido no Pleno ou no órgão especial, quando este haja acolhido a argüição de inconstitucionalidade, é obrigatória, sob pena de não conhecimento de eventual recurso extraordinário, por ausência de peça essencial para o julgamento definitivo, não bastando a transcrição do decidido ou a juntada do voto condutor (AGRRE 158.540-4, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 23.05.1997 e AGRRE 164.569, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU 04.02.1994).

Os Tribunais sentenciam mediante acórdãos. Dos acórdãos dos Tribunais

podem, excepcionalmente, caber recursos especial e extraordinário. Se o acórdão

violar dispositivo de lei federal, caberá recurso especial para o Superior Tribunal

de Justiça (STJ), e, se violar preceito constitucional, poderá ser objeto de recurso

extraordinário, a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O recurso

especial não interessa a este estudo, pois refere-se à violação de leis federais

(controle de legalidade), mas o recurso extraordinário é relevante. 111

Segundo o art. 102, III, da CF/88, in verbis:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em última ou única instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição;

110 Cf. súmulas 293, 455 e 513 do Supremo Tribunal Federal nesse sentido. 111 Miranda (1996, p. 324) ensina que: “Inconstitucionalidade e ilegalidade são ambas violações de normas jurídicas por actos do poder. Verificam-se sempre que o poder infringe a Constituição, a lei ou qualquer outro preceito que ele próprio edite e a que necessariamente fica adstrito. Não divergem de natureza, divergem pela qualidade dos preceitos ofendidos, ali formalmente constitucionais, aqui contidos em lei ordinária ou nestas fundados. A distinção radica na norma que disciplina o acto de que se trate, fixando-lhe pressupostos, elementos, requisitos (de qualificação, validade e regularidade). Se for a Constituição, o acto será inconstitucional no caso de desconformidade; se tais requisitos não se encontrarem senão na lei, já a sua falta torná-lo-á meramente ilegal”.

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b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

De acordo com a Constituição, portanto, o STF poderá realizar controle de

constitucionalidade difuso ao analisar recursos extraordinários. O STF, assim

como os demais tribunais, deve seguir, ao julgar um recurso extraordinário, o

procedimento especial exigido no art. 97, da CF/88. Ou seja, o STF, ao analisar

um recurso extraordinário em que está em questão a validade ou a interpretação

das normas constitucionais, deverá suscitar questão de ordem e encaminhar o

recurso para julgamento pelo pleno – no caso do STF, os onze Ministros.

Somente pelo voto da maioria absoluta dos membros do STF (seis Ministros)

poderá ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei. É importante notar que o

Regimento Interno do STF exige que estejam presentes à sessão de julgamento

pelo menos oito Ministros (art. 143, parágrafo único, RISTF).

Clève (2000, p. 112) ensina que:

Satisfeito o quorum [8 Ministros], a proclamação da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade do preceito ou do ato impugnado dependerá da manifestação, num ou noutro sentido, de seis Ministros que compõe a maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal (art. 173 do Regimento Interno). Se não for alcançada a maioria necessária à declaração de inconstitucionalidade, estando licenciados ou ausentes Ministros em número que possa influir no julgamento, este será suspenso a fim de aguardar-se o comparecimento dos Ministros ausentes ou a convocação de Ministros do Superior Tribunal de Justiça (antes da CF de 1988: Tribunal Federal de Recursos), para a satisfação da exigência do art. 97 da Constituição (art. 173, parágrafo único, do Regimento Interno).

Mas será que todas as vezes que chegar uma ação no controle difuso o

STF ou os outros tribunais deverão suscitar questão de ordem e encaminhar o

julgamento da questão constitucional controvertida para o pleno ou para o órgão

especial do Tribunal?

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Enaltecendo os princípios da economia processual, da segurança jurídica e

da racionalização orgânica do poder judiciário, os tribunais vinham dispensando

esse procedimento especial do art. 97, da CF/88, toda vez que já houvesse

decisão do órgão especial ou do pleno do próprio Tribunal, ou do Supremo

Tribunal Federal. 112 A dispensa do procedimento especial, quando possível,

agiliza os trabalhos no Poder Judiciário, evitando, com isso, burocracia

desnecessária e decisões conflitantes. Essa tendência à dispensa do

procedimento especial foi confirmada com a edição da lei 9756 de 17/12/98, que

acrescentou ao Código de Processo Civil um parágrafo único ao seu art. 481,

estabelecendo, in verbis: “Art. 481. Os órgãos fracionários dos tribunais não

submeterão ao plenário, ou órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade,

quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do STF sobre a

questão”.

Nesses termos, a partir de 1999, a praxe dos Tribunais 113 de dispensar o

procedimento especial, quando já houvesse pronunciamento deste ou do plenário

do STF sobre a questão constitucional controvertida posta, passou a ser legal.

Cabe ressaltar que, antes da edição da EC no. 45/04, o STF tinha

competência para apreciar todos os recursos extraordinários que lhe fossem

encaminhados, preenchidos certos requisitos processuais, como, por exemplo, o

prequestionamento 114. Desde 2005 isso mudou. Com a aprovação da emenda da

reforma do judiciário, o STF pode escolher quais recursos extraordinários irá

112 “Esse entendimento jurisprudencial marca uma evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, ainda que de forma tímida, os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto. A decisão do Supremo Tribunal Federal, tal como colocada, antecipa o efeito vinculante de seus julgados em matéria de controle de constitucionalidade incidental, permitindo que o órgão fracionário se desvincule do dever de observância da decisão do Pleno ou do órgão Especial do Tribunal a que se encontra vinculado. Decide-se autonomamente com fundamento na declaração de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade) do Supremo Tribunal Federal proferida incidenter tantum” (MENDES, 1999, p. 380). 113 Nos Juizados Especiais (competente para ações de pequeno porte) os recursos são encaminhados para julgamento nas Turmas Recursais. Estas não precisam cumprir o procedimento do art. 97, da CF/88, pois não são equiparadas aos Tribunais (Cf., neste sentido, CLÈVE, 2000, p. 103-104 e CHIMENTI et al., 2004, p. 387). 114 Prequestionamento significa que o dispositivo constitucional, supostamente violado, precisa ter sido analisado, expressamente, no acórdão ou sentença das instâncias inferiores. Cf. no sentido da necessidade do prequestionamento: AGR 144816-5, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 12.04.1996; AGR 155188-8, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 15.05.1998; e AGR 193772, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 24.10.1997.

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julgar. Ele verificará a relevância da questão constitucional para a sociedade,

antes de decidir se julga ou não o recurso. O novo § 3º, acrescentado ao art. 102,

da CF/88, pela EC no. 45/04, dispõe nos seguintes termos:

No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei 115, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros 116.

Quanto aos efeitos da decisão no controle difuso, diz-se que são: inter

partes e ex tunc. Inter partes porque valem apenas para as partes envolvidas no

processo em que houve o incidente de inconstitucionalidade. Ex tunc porque o

Brasil adotou a teoria clássica de John Marshall, para quem um ato nulo o é

desde a sua criação. Portanto, os efeitos da decisão retroagem à data da edição

do ato viciado.

Em regra, os efeitos são, portanto, inter partes e ex tunc. Entretanto, o art.

52, X, da CF/88, prevê a possibilidade de os efeitos da sentença, numa ação de

controle difuso, serem estendidos para todos. In verbis:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

Assim, apesar de os efeitos da sentença, no controle difuso, se limitarem

às partes do processo, é possível que o Senado Federal estenda os efeitos da

decisão do STF erga omnes, ou seja, para todos.

115 Este dispositivo constitucional, introduzido com a EC no. 45/04, requer lei que o discipline. Assim sendo, enquanto não advir essa lei, entende-se que o STF não pode recusar o exame e o julgamento de recursos extraordinários, que lhes são encaminhados sem a observância da pertinência social da questão constitucional controvertida. 116 O quorum de 2/3 no Judiciário corresponde à maioria qualificada (no STF são 8 ministros), enquanto no Poder Legislativo maioria qualificada são 3/5 dos membros da casa.

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De acordo com a doutrina majoritária, a suspensão do Senado tem efeitos

erga omnes (para todos), mas ex nunc (não retroagem) 117. Ou seja, a suspensão

da lei declarada inconstitucional pelo STF vale para todos, mas os efeitos dessa

decisão somente passam a valer a partir da suspensão da lei viciada pelo

Senado.

Cabe um exemplo para melhor se compreender a diferença prática na

mudança dos efeitos: Suponha-se que o Estado crie uma lei que institua um

imposto qualquer. Alguns contribuintes, entendendo ser essa lei inconstitucional,

ajuízam ações individuais pedindo para que não sejam compelidos a pagar o

tributo eivado de vício. Um dia essas ações individuais chegarão ao STF. Se ele

entender que o imposto é mesmo inconstitucional, encaminhará ofício ao Senado

Federal, que tem competência para suspender os efeitos da lei erga omnes. Para

os contribuintes que ajuizaram ação própria e obtiveram a declaração do STF de

que a lei é inconstitucional, os efeitos da decisão são ex tunc, retroagindo à data

de edição da lei viciada. Dessa forma, esses contribuintes, além de não terem

mais de recolher o imposto viciado, receberão de volta o que foi pago

indevidamente. Se o Senado suspender os efeitos da lei declarada

inconstitucional pelo STF, todos os contribuintes estarão desobrigados ao

pagamento do tributo, mas, como a suspensão do Senado tem efeitos apenas ex

nunc (não retroagem), os que não ajuizaram ação própria não terão direito a

receber de volta o que foi pago indevidamente.

No que tange à competência do Senado Federal, estampada no art. 52, X,

da CF/88, algumas questões e observações se levantam na doutrina.

A primeira observação advém de uma leitura acurada do próprio dispositivo

constitucional. Note-se que o art. 52, X, da CF/88, fala em “suspensão” de “lei

117 Lenza (2003, p. 94) é um dos autores que defende que a suspensão do Senado Federal tem apenas efeito ex nunc. Para ele: “O nome ajuda a entender: SUSPENDER A EXECUÇÃO de algo que vinha produzindo efeitos significa dizer que se suspende a partir de um momento, não fazendo retroagir para atingir efeitos passados” (Ver também CHIMENTI et al., 2004, p. 385 e ARAÚJO e NUNES JR, 2003, p. 29). Mendes (1999) e Clève (2000) defendem corrente minoritária e entendem que, como a suspensão do Senado é um ato político, seus efeitos são ex tunc (retroagem).

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declarada inconstitucional por decisão definiti va do Supremo Tribunal Federal”

(grifos da autora desta dissertação).

Suspender uma lei não é o mesmo que revogar. Na suspensão a lei

continua válida, mas sem produzir seus efeitos. A revogação, por outro lado,

ocorre somente se: lei posterior expressamente revogar a anterior, ou, lei

posterior disciplinar a mesma matéria de modo diferente, revogando a anterior

tacitamente. Dessa forma, devemos atentar para o fato de que o Senado Federal

suspende os efeitos da lei declarada inconstitucional, em última instância, pelo

STF, e não revoga a lei, que continua vigente no ordenamento, mas sem produzir

seus efeitos jurídicos próprios. Só para lembrar: uma norma jurídica pode ser

considerada sob três planos, da validade, da vigência e da eficácia. Uma norma é

válida se estiver de acordo com a Constituição, que é o fundamento último de

validade para todas as normas do ordenamento jurídico; vigente se tiver entrado

em vigor e eficaz se estiver produzindo seus efeitos jurídicos próprios. Assim, não

devemos confundir suspensão da eficácia de uma norma jurídica com vigência.

Trata-se de planos distintos. Uma norma pode estar vigente, mas ter seus efeitos

jurídicos próprios suspensos, ou aguardando regulamentação.

A segunda observação que se extrai do texto do art. 52, X, da CF/88, é

com relação ao uso da palavra “lei”. Ao tratar genericamente o termo “lei”, a

Constituição instituiu o Senado Federal como órgão nacional, nos casos de

suspensão de lei declarada inconstitucional pelo STF. Isso porque não falou a

Constituição em lei federal. Ela diz somente “lei”, e aí se incluem as leis federais,

as estaduais e as municipais que, por ventura, tenham sido declaradas

inconstitucionais, em decisão definitiva do STF (cf. LENZA, 2003, p. 93).

Importante salientar que, se o controle de constitucionalidade de uma lei

estadual ou uma lei municipal estiver sendo realizado por um Tribunal de Justiça

Estadual, tendo como paradigma a Constituição do Estado, e não a Constituição

Federal, deve o Tribunal de Justiça (TJ), após declarar a inconstitucionalidade da

lei viciada, encaminhar ofício para a casa legislativa competente para efetuar a

suspensão da lei, com efeitos erga omnes. No caso de o TJ declarar a

inconstitucionalidade de lei estadual, o ofício será encaminhado à Assembléia

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Legislativa do Estado ou à Câmara Legislativa do Distrito Federal; mas, se

declarar a inconstitucionalidade de lei municipal, deverá encaminhar a decisão à

Câmara Municipal correspondente (cf. MICHEL TEMER, 1998, p. 44 e MENDES,

1999, p. 393).

Uma questão surge ao se analisar o art. 52, X, da CF/88: o Senado Federal

está obrigado a suspender os efeitos das leis declaradas inconstitucionais por

decisão definitiva do STF?

Segundo o próprio STF, não. O Senado Federal não está obrigado a

suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, pois trata -se de

uma discricionariedade política (binômio conveniência e oportunidade). Caso

contrário, se o Senado Federal estivesse obrigado a suspender a execução de lei

declarada inconstitucional, em última instância, pelo STF, o princípio da

separação dos poderes estaria sendo violado, posto que o Poder Judiciário

estaria se imiscuindo no Poder Legislativo, e ambos devem ser independentes e

harmônicos entre si, sem submissão de um ao outro.

Para Ferreira Filho (2002, p. 43), não se trata de uma faculdade do Senado

Federal suspender os efeitos de lei declarada inconstitucional pelo STF: trata-se

de um dever. Para ele, o Senado Federal, uma vez sendo comunicado pelo STF

da existência de lei incompatível com o ordenamento jurídico, tem a obrigação de

suspender seus efeitos erga omnes.

Outra questão controvertida, ainda no art. 52, X, da CF/88, é com relação à

extensão da suspensão procedida pelo Senado Federal. O dispositivo

constitucional preceitua, in verbis: “(...) suspender a execução, no todo ou em

parte (...)” (grifo da autora). Haja vista os termos legais, pode o Senado Federal

suspender apenas parte da lei declarada inconstitucional pelo STF? O Senado

pode escolher a parte que suspenderá ou não, de uma lei declarada

inconstitucional em controle difuso pelo STF?

A doutrina e a jurisprudência majoritárias asseveram que a expressão “no

todo ou em parte” significa que, se o STF julgar a lei totalmente inconstitucional, o

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Senado pode suspendê-la totalmente, mas se o STF declarar parcialmente

inconstitucional a lei, o Senado poderá suspender, apenas em parte, os efeitos

dessa lei erga omnes. Assim, se o STF declarar parcialmente inconstitucional

uma lei, o Senado poderá suspender sua execução nessa mesma extensão.

Temer (1998, p. 44), defendendo corrente minoritária, entende que o

Senado não está obrigado a suspender os efeitos da lei declarada inconstitucional

pelo STF na mesma extensão da declaração efetivada pelo Tribunal.

Mendes (1999, p. 394) ressalta que “o instituto da suspensão pelo Senado

de execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo assenta -se hoje em

razão de índole exclusivamente histórica”. Explica que isso se deve ao fato de

esse instituto se mostrar inadequado face às novas técnicas de decisão utilizadas

hoje pelo STF no controle de constitucionalidade das normas, como a

interpretação conforme e a declaração de inconstitucionalidade parcial sem

redução de texto. Mais à frente, neste estudo, falaremos dessas novas técnicas

de decisão.

Por fim, cabe ressaltar que o controle difuso não pode ser realizado no bojo

das ações coletivas, como, por exemplo , a ação civil pública e o mandado de

segurança coletivo, quando estiverem em discussão direitos difusos ou coletivos

(súmula 266 do STF). Isso porque nessas ações, como o objeto são direitos

difusos ou coletivos, necessariamente a decisão afetará a todos (erga omnes), e

como normalmente são ajuizadas numa comarca de primeira instância, quedaria

a seguinte situação indesejável: um juiz de primeiro grau estaria declarando a

inconstitucionalidade de uma lei erga omnes usurpando, dessa forma,

competência que é exclusiva do STF, via controle concentrado. Somente o STF

pode declarar uma lei ou um ato normativo inconstitucional com efeitos erga

omnes (veja quadro sinóptico). O controle de constitucionalidade difuso somente

poderá ser realizado nas ações coletivas que tenham por objeto direitos

individuais homogêneos, cujo controle será apenas um incidente no processo e

afetará tão-somente as partes nele envolvidas. 118

118 Mais informações sobre o tema podem ser encontradas em: Mendes (1999, p. 396-403) e Palu (1999, p. 217-225).

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Agora que foi esmiuçado o controle difuso na CF/88, cabe ver mais a fundo

o controle concentrado, começando pela representação de inconstitucionalidade

para intervenção, ação direta criada com a CF/34 e que está a meio caminho do

controle difuso e do controle concentrado. A representação interventiva não pode

ser considerada uma ação de controle difuso pura, pois seus efeitos são erga

omnes e o controle se realiza diretamente no STF. Mas também não pode ser

considerada uma ação direta de controle concentrado, posto que se realiza diante

de um caso concreto de intervenção.

De acordo com o disposto nos artigos 1º, caput, e 18, caput, da CF/88, a

regra é que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel

dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, todos entes autônomos.

Portanto, a intervenção de um ente federativo em outro será a exceção.

A União poderá intervir excepcionalmente nos Estados, no Distrito Federal,

ou ainda nos municípios localizados em Territórios Federais, e uma das formas de

se proceder a essa intervenção é mediante ação interventiva federal (art. 36, III,

da CF/88). Trata-se de ação ajuizada pelo Procurador-Geral da República,

diretamente no STF, que tem por objeto lei ou ato normativo estadual, ou distrital

de natureza estadual, que desrespeitar qualquer dos chamados princípios

constitucionais sensíveis, arrolados no inciso VII, do art. 34, da CF/88. São eles:

a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;

b) direitos da pessoa humana;

c) autonomia municipal;

d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta;

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais,

compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e no

desenvolvimento do ensino e nas ações e no serviço públicos de saúde.

Caso o STF julgue procedente, pelo voto da maioria absoluta dos seus

membros, a ação interventiva proposta pelo Procurador-Geral da República, ele

requisitará ao Presidente da República que decrete a intervenção. O Presidente

da República poderá, via decreto, limitar-se a suspender a execução do ato

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impugnado, se essa medida bastar para o restabelecimento da normalidade (art.

36, §3º, CF/88). Mas, se essa medida não for suficiente, o Presidente da

República decretará intervenção federal (art. 84, X, CF/88), nomeando um

interventor e afastando as autoridades responsáveis pelo ato de seus cargos.

Cessados os motivos para a intervenção, as autoridades afastadas voltarão a

seus cargos, salvo impedimento legal, como, por exemplo, crime de

responsabilidade (art. 36, § 4o, CF/88).

Os Estados também poderão, excepcionalmente, intervir em seus

Municípios (art. 35, IV, da CF/88). O procedimento é simétrico ao previsto para a

intervenção federal. Mas, na intervenção estadual, o legitimado para propor a

ação interventiva é o Procurador-Geral de Justiça, chefe do Ministério Público

Estadual, e o competente para analisá-la são os Tribunais de Justiça dos

Estados. O objeto são as leis ou os atos normativos municipais que estejam

violando os princípios sensíveis previstos nas Constituições Estaduais. Um

Tribunal Estadual, entendendo ser a representação procedente, comunica ao

Governador do Estado. Este, via decreto, poderá limitar-se a suspender a

execução do ato municipal impugnado. Mas se essa suspensão não for suficiente

para restabelecer a ordem, ele decretará a intervenção, nomeando um interventor

e afastando as autoridades responsáveis pelo ato. Cessados os motivos da

intervenção, retornam as autoridades anteriormente afastadas, salvo impedimento

legal.

Cabe ressaltar que essas ações interventivas federal e estadual têm, na

verdade, duas finalidades: uma jurídica, que é assegurar a supremacia das

normas constitucionais, e uma política, que é realizar a intervenção. O pedido nas

ações de intervenção denomina-se “representação”.

O exposto até agora – controle difuso e ação direta para fins de

intervenção – não foi nenhuma novidade na Constituição de 1988, posto que,

como visto, já existiam sob a égide das Constituições anteriores. As grandes

novidades trazidas com a Constituição de 1988 referem-se ao controle

concentrado. Primeiro ela ampliou significativamente o rol dos legitimados para

propor ação direta de inconstitucionalidade, e mais: criou uma ação direta de

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inconstitucionalidade para o controle das omissões do Poder Público; depois, em

1993, via Emenda Constitucional no. 03, criou-se ainda mais duas espécies de

ações diretas, a ação declaratória de constitucionalidade e a argüição de

descumprimento de preceito fundamental. Cabe ver como se processa cada uma

dessas ações diretas.

5.3. Ação direta de inconstitucionalidade (Adin)

Como se trata de ação para o controle concentrado das normas, a ação

direta de inconstitucionalidade tem como objeto as leis em tese. Sendo assim, o

processo que instaura é objetivo , ao passo que não existem partes discutindo em

juízo. Não há que se falar em autor nem em réu na Adin, pois não está em

discussão um caso concreto, mas tão-somente a lei em tese. Aliás, não há

necessidade de a lei estar vigendo para que o controle via Adin se realize. Basta

promulgação e publicação da norma viciada (cf. CLÈVE, 2000, p. 133).

Já foi visto que o controle concentrado foi criado na Europa, com a

Constituição Austríaca de 1920-29, idealizada por Kelsen. Foi visto também que,

no Brasil, a Adin surgiu durante a vigência da CF/1946, quando foi introduzida no

sistema pela EC no. 16/65. Essa ação era inicialmente chamada de

“representação de inconstitucionalidade”, e o único que tinha legitimidade para

propô-la era o Procurador-Geral da República, chefe do Ministério Público

Federal. O Procurador-Geral da República, durante a vigência da CF/46, era

nomeado pelo Presidente da República, e podia ser demitido ad nutum, ou seja, a

qualquer momento e sem necessidade de justificativa. Como o único legitimado

para propor a representação de inconstitucionalidade, durante a vigência da

CF/46, era o titular de um cargo demissível ad nutum, pode-se afirmar que o

controle concentrado das normas era bastante deficiente.

A CF/88 ampliou expressivamente o rol dos legitimados para a propositura

da Adin. Ademais, quanto ao Procurador-Geral da República – que continua

sendo um dos legitimados para propor Adin –, ela estabeleceu que não pode mais

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ser demitido ad nutum. Com a CF/88, o Procurador-Geral da República passou a

ser nomeado para um mandato de 2 anos, permitida a recondução.

De acordo com o art. 103, da CF/88, in verbis:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (grifo da autora desta dissertação).

Nota-se que a CF/88 aumentou bastante o rol dos legitimados para propor

a Adin 119, o que tornou o controle concentrado mais significativo no Brasil.

Mendes (1999, p. 255-256) entende que:

Com isso satisfez o constituinte apenas parcialmente a exigência daqueles que solicitavam fosse assegurado o direito de propositura da ação a um grupo de, v.g., dez mil cidadãos ou que defendiam até mesmo a introdução de uma ação popular de inconstitucionalidade. (...) O monopólio de ação outorgado ao Procurador-Geral da República no sistema de 1967/69 não provocou uma alteração profunda no modelo incidente ou difuso. Este continuou predominante (...). A Constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103) (...). Convém assinalar que, tal como já observado por Anschutz ainda no regime de Weimar, toda vez que se outorga a um Tribunal

119 Para as Adin’s estaduais – aquelas que têm como paradigma as Constituições Estaduais e como órgão de controle os Tribunais de Justiça dos Estados –, a legitimidade para propor a ação virá disposta nas Constituições Estaduais, mas deve-se respeitar o paralelismo com a Constituição Federal. Dessa forma, as Constituições Estaduais não podem delegar legitimidade a apenas um órgão. Devem prever vários legitimados, assim como a Constituição Federal.

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especial atribuição para decidir questões constitucionais, limita-se, explícita ou implicitamente, a competência da jurisdição ordinária para apreciar tais controvérsias. Portanto, parece quase intuitivo que, ao ampliar de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade.

Dentre os legitimados arrolados pela CF/88, alguns são chamados pela

doutrina de legitimados universais, e outros de legitimados especiais. Os

legitimados universais são assim denominados porque podem propor toda e

qualquer Adin, sem necessidade de comprovar interesse de agir. Já os

legitimados especiais precisam demonstrar pertinência temática, para daí, sim,

estarem aptos para propor Adin. São legitimados universais, também chamados

de “genéricos”: o Presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da

Câmara dos Deputados; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da

Ordem dos Advogados do Brasil e Partido Político com representação no

Congresso Nacional. E são legitimados especiais: o Governador de Estado, ou do

Distrito Federal; a Mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara Distrital e

Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Cabem algumas observações sobre esses legitimados.

Antes da edição da EC no. 45/04, o art. 103, da CF/88, trazia

expressamente como legitimados para propor Adin apenas “Governador de

Estado” e “Mesa de Assembléia Legislativa”. A CF/88 era silente quanto ao

Governador do Distrito Federal e à Mesa da Câmara Legislativa do Distrito

Federal. Mas o STF, por uma interpretação extensiva 120, admitia a legitimidade

deles para propor Adin. Ademais, em 1999, a lei 9868, que disciplina o

procedimento das Adin’s e das Adecon’s (ações declaratórias de

constitucionalidade), corrigiu o silêncio da CF/88, instituindo expressamente a

competência do Governador do Distrito Federal e da Mesa da Câmara Legislativa

120 Para Osório Silva Barbosa Sobrinho (2004, p. 8): “Essa extensão, data venia, fere o sistema constitucional da Carta de 1988, uma vez que ela, propositalmente, foi omissa quanto aos dois novos legitimados, além de, quando desejou dar atuação legitimadora à autoridade pública junto ao STF, fê-lo expressamente. Foi assim quando previu a atuação do Advogado-Geral da União no julgamento de ADIn (art. 103, § 3º, da CF)”.

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Distrital para propor Adin. 121 Hoje, a própria CF/88 já traz previsão de

legitimidade para qualquer Governador de Estado ou do Distrito Federal e da

Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou Mesa de qualquer das

Assembléias Legislativas dos Estados. Entretanto, esses órgãos estaduais ou do

Distrito Federal são legitimados especiais, precisando, portanto, comprovar o

interesse de agir (pertinência temática).

No caso da legitimidade de Partido Político para propor Adin, os

doutrinadores ensinam que basta o Partido Político possuir um Senador, ou um

Deputado Federal, para estar preenchido o requisito de representação no

Congresso Nacional exigido pela Constituição para que o Partido Político esteja

apto a propor qualquer ação de controle concentrado (legitimado universal).

Para Mendes (1999, p. 257):

A propositura da ação pelos partidos políticos com representação no Congresso Nacional concretiza, por outro lado, a idéia de defesa das minorias, uma vez que se assegura até às frações parlamentares menos representativas a possibilidade de argüir a inconstitucionalidade de lei. Ressalte-se que não são numericamente significativas as ações propostas pelas organizações partidárias. É verdade, porém, que muitos dos temas mais polêmicos submetidos ao Supremo Tribunal, no processo de controle abstrato, fo ram trazidos à baila mediante iniciativa dos partidos políticos. Assim, a discussão sobre a constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 2, de 1992, que antecipou o plebiscito sobre a forma e sistema de governo previsto no art. 2o.,do ADCT, o questionamento da legitimidade da lei do salário-mínimo, a controvérsia sobre a legitimidade do pagamento mediante precatório para os créditos de natureza alimentícia. Isto para não falar das diversas ações propostas contra a política econômica do Governo.

Com relação à legitimidade de confederação sindical, cabe ressaltar que,

segundo o art. 535, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT): “As

confederações organizar-se-ão com o mínimo de três federações e terão sede na

121 Barbosa Sobrinho (2004, p. 8) afirma que: “Nesse passo, não temos dúvida em afirmar que a lei ordinária foi superior a uma emenda constitucional, pois ampliou o rol dos legitimados do próprio texto magno, que não atribuiu a qualquer lei, seja ordinária, seja complementar, a ampliação de entes legitimados à propositura de ação direta de inconstitucionalidade. Em suma, foi o legislador ordinário mais realista que o próprio rei”.

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Capital da República (...)”. Dessa forma, é importante que seja uma entidade de

âmbito nacional, para que esteja apta a propor Adin. De acordo com a doutrina,

uma entidade, para que possa ser considerada de âmbito nacional, precisa estar

representada, no mínimo, em 1/3 dos Estados da Federação, ou seja, em no

mínimo nove Estados do Brasil. Não podem, assim, as Centrais Sindicais, os

Sindicatos ou a Central Única dos Trabalhadores (CUT) ajuizar Adin, pois não se

caracterizam como uma confederação. Os conselhos profissionais (ex: Conselho

Regional de Medicina - CRM) são uma espécie de autarquias e, portanto, não são

entidades de classe de âmbito nacional (RT, 695/228).

O único conselho profissional que tem legitimidade para propor Adin é o

Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por determinação

expressa da CF/88. Aliás, ele é legitimado universal, estando apto a propor

qualquer Adin, sem a necessidade de provar interesse de agir (pertinência

temática).

Podem ser objeto de Adin, em regra, leis ou atos normativos federais ou

estaduais contrários à CF/88. Quem tem competência originária para julgar essa

Adin federal é o STF. Já a Adin, em âmbito estadual, pode ter por objeto, em

regra, leis ou atos normativos estaduais ou municipais incompatíveis com as

Constituições Estaduais (CE’s). Quem tem competência originária para analisar e

julgar Adin’s estaduais são os Tribunais de Justiça dos Estados (TJ’s).

Cabe atentar para o fato de que não existe controle concentrado de normas

municipais face à CF/88 através de Adin, por falta de previsão legal. De acordo

com a CF/88, apenas normas federais ou estaduais podem ser controladas por

Adin.

A doutrina costuma chamar essa falta de previsão constitucional para o

controle das normas municipais de “silêncio eloqüente” (cf. ARAÚJO e NUNES

JR., 2003, p. 41). Trata-se de um fundamento jurídico pautado no fato de que, se

a Constituição silenciou, foi proposital.

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Entretanto, se as normas da CF/88, violadas por leis ou atos normativos

municipais, estiverem repetidas, reproduzidas ou imitadas na Constituição do

respectivo Estado, caberá controle de constitucionalidade perante o Tribunal de

Justiça Estadual.

Na verdade, até o julgamento da Reclamação no. 383, em 1992 (cf.

ARAÚJO e NUNES JR., 2003, p. 43), o STF entendia que, se uma norma

municipal estivesse afrontando uma norma da Constituição Estadual (CE), que

fosse cópia de uma norma Constitucional, não seria possível o ajuizamento de

uma Adin estadual perante o Tribunal de Justiça (TJ), sob pena de este estar

usurpando competência exclusiva do STF. Assim, por exemplo, o art. 5º da

Constituição do Estado de São Paulo (CESP) é uma reprodução do que dispõe o

art. 5º da CF/88. Se uma norma municipal afrontar o art. 5º da CESP, sendo ele

uma cópia do art. 5º da CF/88, não cabe Adin estadual, pois se o TJ emitir decisão

nesse caso, estará interpretando, por reflexo, a própria Constituição.

Após 1992, o STF mudou radicalmente seu entendimento, passando a

aceitar controle concentrado por Adin estadual, mesmo em se tratando de

violação de normas repetidas na Constituição. Mas isso não usurpa competência

exclusiva do STF? Sim, por isso, para esses casos, excepcionalmente, admite-se

recurso extraordinário da decisão do TJ para o STF.

Assim, se lei ou ato normativo municipal (ou distrital de natureza municipal)

violar norma da CE, que esteja repetida na CF/88, cabe Adin perante o TJ. Mas,

do acórdão do Tribunal, excepcionalmente, caberá recurso extraordinário para o

STF, haja vista a matéria constitucional envolvida no julgamento. Cabem duas

observações neste ponto:

1ª - O ajuizamento do recurso extraordinário é facultativo , pois não se trata

de um recurso de ofício. Assim, pode restar uma incongruência. É possível

existirem duas ações iguais, uma no STF e uma no TJ, e não necessariamente os

dois Tribunais darão a mesma interpretação ao dispositivo constitucional; e

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2ª - Via recurso extraordinário, acabará ocorrendo um controle concentrado

sobre as normas municipais, o que não era a intenção do legislador constituinte

(silêncio eloqüente).

Pelo exposto até aqui, nota-se que, em regra, pode ser objeto de controle

concentrado, via Adin federal, leis ou atos normativos federais ou estaduais. As

leis ou os atos normativos municipais, ou distritais de natureza municipal,

somente podem ser analisados pelo STF via Adin se estiverem violando

dispositivo de lei da Constituição Estadual ou da Lei Orgânica do Distrito Federal,

repetido na Constituição Federal, e mais: desde que haja recurso extraordinário

da decisão do Tribunal de Justiça para o STF.

Também foi exposto que não serão objeto de Adin leis ou atos normativos

de efeitos concretos. Afinal, a Adin é uma ação objetiva, ou seja, ação em que

não existem partes litigantes: a lei é analisada em tese, e não em um caso

concreto.

As leis, em regra, são gerais, abstratas e impessoais. Ocorre que existem

exceções. Existem normas que não são gerais, abstratas e impessoais, pelo

contrário, são leis de efeitos concretos, são pessoais. Um bom exemplo de lei de

efeitos concretos é a previsão contida no art. 51, I, da CF/88, in verbis:

Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado.

Nota-se, da leitura do artigo supratranscrito, que não se trata de uma lei

geral e impessoal. A resolução da Câmara dos Deputados que autorizar

instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República,

ou contra os Ministros de Estado, tem efeitos concretos. Sendo assim, essa

resolução não pode sofrer controle de constitucionalidade através de Adin, ação

em que não se discutem casos concretos.

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Outro exemplo de lei com efeitos concretos que não pode ser objeto de

Adin é o art. 49, III, da CF/88. De acordo com esse dispositivo, cabe ao

Congresso Nacional autorizar a ausência do Presidente e do Vice-Presidente da

República do País, quando ela for superior a 15 dias. O decreto -legislativo do

Congresso Nacional que autoriza as autoridades a se ausentarem por mais de 15

dias é um decreto de efeitos concretos e, como tal, não pode sofrer controle de

constitucionalidade concentrado através de Adin.

No que se refere aos atos normativos, vale a mesma regra que para as

leis. Se o ato normativo for de efeitos concretos, não há que se falar em controle

por Adin. Acontece que, diferentemente das leis, em regra, os atos normativos do

Poder Executivo são de efeitos concretos. Eles não inovam na ordem jurídica.

Apenas regulamentam as leis existentes para dar-lhes efetividade. Sendo assim,

não podem ser objeto de controle concentrado por Adin. 122

Com relação aos atos normativos do Poder Judiciário - regimentos internos

dos tribunais e resoluções -, cabe a mesma regra. Se forem gerais, abstratos e

impessoais, poderão ser objeto de controle concentrado na Adin. No entanto, se o

ato normativo for interna corporis, ou seja, se o ato normativo interessar apenas

ao próprio órgão (ex: resolução do Tribunal que determina qual a ordem de

distribuição interna dos processos que lhe são encaminhados), não caberá

controle via Adin.

Por fim, não podem ser objeto de Adin as normas anteriores à CF/88 que

não foram recepcionadas pela nova Magna Carta. Com relação a essas normas

anteriores e incompatíveis com a nova Carta Política, já foi dito que não se fala

em inconstitucionalidade superveniente. Entende-se, no Brasil, que, se as normas

são incompatíveis com o novo texto constitucional, elas não são recepcionadas.

Fala-se em recepção e não-recepção de normas anteriores, e não em

constitucionalidade e inconstitucionalidade. Sendo assim, não há que se falar em

122 Atente-se para o fato de que a EC no. 32, de 11 de setembro de 2001, alterou o art. 84, VI, da CF/88, criando o que a doutrina tem chamado de “decreto autônomo”. Autônomo porque inova na ordem jurídica, sendo geral, abstrato e impessoal e, contudo, comportando controle concentrado mediante Adin.

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167

Adin para controlar normas não recepcionadas: elas não podem ser declaradas

supervenientemente inconstitucionais, pois não se adota essa doutrina no Brasil.

O procedimento da Adin está disciplinado na CF/88, na lei 9868/99 (que

disciplina os procedimentos das Adin’s e Adecon’s); nos arts. 169 a 178 do

Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) e na lei 8038/90 (que

institui normas procedimentais para os processos no STJ e STF).

Foi visto que essa ação de controle concentrado pode ser proposta por

qualquer dos legitimados arrolados no art. 103, da CF/88, diretamente no STF. O

Ministro Relator que receber a petição inicial, não sendo o caso de indeferimento

liminar, pedirá informações aos órgãos ou autoridades das quais emanou a lei ou

o ato normativo impugnado. As informações devem ser prestadas no prazo de 30

dias, contados do recebimento do pedido. Barbosa Sobrinho (2004, p. 21)

observa: “Há, sim, contraditório [na Adin], mas não por via de contestação, que é

ato próprio de parte”. No caso da Adin, o contraditório se perfaz com as

informações prestadas pelas autoridades ou órgãos da qual emanou o ato

normativo impugnado.

É possível o relator, considerando a relevância da matéria e a

representatividade dos postulantes, através de despacho irrecorrível, admitir a

manifestação de outros órgãos ou entidades (art. 7º, § 2º, da lei 9868/99). Trata-se

da previsão do amicus curiae.

Amicus curiae, amigo ou aliado da corte, foi uma figura criada por influência

do jurista alemão Peter Häberle, que, na obra “Hermenêutica Constitucional. A

sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a

interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição”, prega a idéia da

democratização no controle de constitucionalidade, ou seja, quanto maior o

número de pessoas discutindo a Constituição, melhor (HÄBERLE, 2002).

Após o prazo para as informações, são citados, sucessivamente, o

Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, para se

manifestarem, cada qual, num prazo de 15 dias.

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168

O Advogado Geral da União (AGU) foi criado no Brasil com a CF/88. Antes

de 1988 o Procurador-Geral da República agregava as funções de defensor da

União e da sociedade. Com a CF/88, a carreira foi separada. Os defensores da

União passaram a integrar a Advocacia-Geral da União e o Ministério Público

Federal passou a ser defensor apenas da sociedade, não mais do chefe do

executivo federal. A função do AGU foi idealizada por HANS KELSEN na

Constituição Austríaca de 1920 e está vinculada à defesa da constitucionalidade

da lei ou ato normativo federal 123 impugnado.

O Procurador-Geral da República (PGR), na função de fiscal da lei, poderá

se manifestar no sentido da constitucionalidade, ou não, da norma impugnada.

Importante ressaltar que o PGR se manifesta, mesmo que tenha sido o autor da

ação.

Uma vez prestadas as informações, e sendo apresentadas as

manifestações do AGU e do PGR, finalmente o Ministro Relator lançará

RELATÓRIO, com cópia para todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento.

Havendo necessidade de mais informações para a solução do caso,

poderá o Relator:

- requisitar peritos, para emitir pareceres sobre a questão; 124

- fixar data para audiência pública, a fim de ouvir a opinião de pessoas com

experiência e autoridade na matéria; e

- solicitar informações aos Tribunais Superiores, aos Tribunais Federais e

aos Tribunais Estaduais, acerca da aplicação da norma impugnada, no âmbito de

suas jurisdições.

123 Se a norma impugnada for estadual, o AGU somente defenderá a constitucionalidade do ato normativo quando for do interesse da União. 124 Para Barbosa Sobrinho (2004, p. 27): “A nomeação de perito ou comissão de peritos representa um avanço ciclópico, pois retira dos Ministros (e dos magistrados em geral) aquela presunção e auto-atribuição absurda de que sabem tudo. Mesmo gozando os Ministros da presunção do notório saber jurídico, não devemos esquecer que a ciência jurídica é muito ampla, ou melhor, não tem limites, sendo, portanto, impossível de ser dominada em sua totalidade por um único ser humano, se é que é possível sê-lo por toda a humanidade, uma vez que muitos conceitos e institutos jurídicos centenários continuam sem formulação precisa imune à crítica. Sem se falar na interdisciplinariedade das matérias”.

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169

O STF, para declarar a inconstitucionalidade, precisa do voto da maioria

absoluta dos seus membros, ou seja, seis Ministros, desde que presentes, no

mínimo, oito Ministros – quorum exigido para a instalação da sessão de

julgamento no STF (art. 143, parágrafo único, e art. 173, do RISTF).

Cabem algumas considerações finais sobre o procedimento da Adin. Como

se trata de uma ação que instaura um processo objetivo , decorrem daí algumas

conseqüências:

1ª – Não existe lide, não há que se falar em partes. A lei é analisada em

tese;

2ª – Não existe prazo prescricional (perda do direito de agir em juízo) ou

decadencial (perecimento do próprio direito)125. Isso porque os atos

inconstitucionais jamais se convalidam pelo mero decurso de tempo (súmula 360,

STF);

3ª – Não é admitida a intervenção de terceiro, segundo o art. 7º da lei

9868/99. A intervenção de terceiros é instituto disciplinado no Código de Processo

Civil (arts. 56/80). Ele prevê a participação de outras pessoas num processo, seja

por oposição, nomeação à autoria, denunciação da lide ou chamamento ao

processo. Nenhuma dessas modalidades é aceita no procedimento da Adin;

4ª – Também não se admite assistência jurídica (art. 169, § 2º, do RISTF),

aquela regulamentada no Código de Processo Civil (arts. 50/52);

5ª – Não obstante não ser possível a intervenção de terceiros e a

assistência jurídica, previstas no Código de Processo Civil, admite-se no processo

125 Prescrição e decadência são institutos jurídicos disciplinados no Código Civil Brasileiro. A prescrição ocorre quando, em decorrência do decurso de tempo, o indivíduo perde o direito de ir à juízo postular a garantia de um direito; já na decadência, o decurso de tempo não afeta só o direito de reclamar uma prestação judiciária para a defesa do direito: atinge o próprio direito, que deixa de existir. Assim, por exemplo, se alguém pagar uma dívida prescrita, tudo bem, pois o credor ainda tinha o direito de receber, só não possuía mais o direito de reclamar ao judiciário; entretanto, se a dívida estiver atingida pela decadência, ela não existe e não pode ser paga.

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da Adin a participação do amicus curiae, ou seja, a participação de outros órgãos

ou entidades que entendam da questão controvertida;

6ª – Não é admitida a desistência da ação (art. 5º, caput, da lei 9868/99).

Uma vez ajuizada a Adin, seu autor não está autorizado a desistir. Barbosa

Sobrinho (2004, p. 19) explica que “a vedação de desistência da ação (...) decorre

da função de guardião da Constituição exercida pelo STF, sendo evidente o

interesse público no debate da questão”.

7ª – A decisão do STF em Adin é irrecorrível, portanto, não cabe nem ação

rescisória (art. 26, da lei 9868/99). É cabível embargos de declaração da decisão

do STF que julgar Adin, pois não se trata propriamente de um recurso. Os

embargos de declaração estão previstos no art. 535, do Código de Processo Civil

(CPC), e são usados para os casos em que ocorra omissão, obscuridade ou

contradição no acórdão do STF, não visando, contudo, a revisão do mérito da

questão discutida;

8ª – O STF, ao julgar a Adin, não está vinculado aos argumentos

apresentados nem pelo autor, nem pelo AGU ou PGR, nem pela autoridade da

qual emanou a lei ou o ato normativo impugnado. O STF está vinculado apenas

ao pedido, podendo decidir por seus próprios fundamentos.

O procedimento para as Adin´s em âmbito estadual, segue simetricamente

o procedimento das Adin´s federais. Um dos legitimados ajuíza ação direta de

inconstitucionalidade diretamente no TJ. O Desembargador Relator, não sendo o

caso de indeferimento liminar da petição inicial, abrirá prazo de 30 dias para

informações, depois encaminhará a questão para o Procurador-Geral do Estado

(advogado do Estado) e para o Procurador-Geral de Justiça (chefe do Ministério

Público Estadual), para cada qual se manifestar num prazo de 15 dias. É possível

a manifestação de outros órgãos da sociedade (amicus curiae). Por fim, a decisão

do TJ deve ser por maioria absoluta de seus membros ou dos membros de seu

órgão especial.

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Já se falou que Kelsen difere da doutrina clássica quanto à natureza do ato

inconstitucional. A doutrina clássica - defendida pelo juiz John Marshall, da

Suprema Corte norte-americana, e trazida para o Brasil por Ruy Barbosa -

assevera que uma lei ou um ato normativo inconstitucional é NULO. Sendo assim,

os efeitos da decisão da Corte Constitucional são erga omnes (para todos) e ex

tunc (retroagem à edição do ato viciado), já que o que é nulo o é desde a sua

origem.

O STF adota, em regra, essa teoria clássica. Considera nula a norma

viciada. Com efeito, a decisão do STF em controle concentrado tem natureza

jurídica de sentença declaratória, ao passo que apenas declara uma situação que

já vinha se perpetrando.

Kelsen, por outro lado, defende que a natureza jurídica do ato normativo

inconstitucional é de ato ANULÁVEL. Sendo um ato imcompatível com a

Constituição anulável e não nulo, os efeitos da decisão do Tribunal Constitucional

são erga omnes (para todos) e ex nunc (não retroagem). Para essa corrente, a

natureza jurídica da decisão da Corte Constitucional é constitutiva-negativa, ao

passo que a Corte considera válida, por determinado período, norma

inconstitucional e, ao mesmo tempo, nega essa validade constitucional,

considerando-a nula a partir da decisão, ou alguma data no futuro.

Nas decisões em Adin, como regra, o STF adota a doutrina norte-

americana (clássica), considerando os efeitos da ação erga omnes e ex tunc.

Entretanto, a lei 9868/99, em seu art. 27, introduziu no Brasil uma técnica

de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade. Para casos

que envolvam questões de segurança jurídica ou excepcional interesse social,

pode o STF, mediante a decisão de 2/3 de seus membros (maioria qualificada,

que corresponde a oito Ministros), estabelecer outro regime de efeitos que não o

ex tunc. Portanto, o STF poderá determinar efeitos ex nunc ou pro futuro,

dependendo da conveniência ou da oportunidade.

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Nessas hipóteses, o STF irá ponderar, de um lado, o princípio da nulidade

da lei ou do ato normativo inconstitucional (doutrina clássica); do outro, os

postulados da segurança jurídica e do relevante interesse social. O princípio da

nulidade dos atos inconstitucionais somente será afastado se o STF entender que

a declaração de nulidade acabaria por distanciar-se ainda mais da vontade

constitucional. A não-declaração de nulidade de ato viciado apenas se justifica

nos casos em que a lacuna jurídica que restará com a expulsão da norma viciada

do sistema seja mais prejudicial que a sua manutenção. Tome-se como exemplo

uma lei federal que cria cargos públicos. Esses cargos são providos e seus

ocupantes entram em exercício. Se essa lei vier, posteriormente, a ser declarada

inconstitucional pelo STF, em Adin, e se os efeitos forem os regulares, erga

onmes e ex tunc, os atos praticados por esses funcionários públicos serão

considerados nulos ou inexistentes, para todos. Mas se o STF mudar o efeito para

ex nunc, a declaração de inconstitucionalidade valerá da sentença para frente. Os

atos já praticados serão preservados, garantindo o interesse de terceiros

envolvidos, e os vencimentos recebidos pelos funcionários também

permanecerão. Afinal, os funcionários trabalharam.

Ainda sobre os efeitos da Adin, cabe ressaltar que, desde a promulgação

da EC no. 45/04, a Adin tem efeito vinculante. De acordo com o art. 102, § 2º, da

CF/88, in verbis:

As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (grifos da autora deste trabalho).

Antes da EC no. 45/04 muito se discutia sobre o efeito vinculante na Adin.

Isso porque esse efeito era previsto no art. 28, da lei 9868/99, e, por isso, alguns

juristas entendiam que, como a Constituição não havia lhe previsto esse efeito,

uma lei ordinária não poderia fazê-lo. Entendiam, portanto, que o artigo 28 da lei

9868/99 era inconstitucional, pois previa além do permitido constitucionalmente.

Ocorre que a Constituição já previa o efeito vinculante para as Adecon’s (ações

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declaratórias de constitucionalidade) desde a sua criação (EC no. 03, de 17 de

março de 1993). A Adecon, se procedente, significa que o STF considerou a

norma impugnada constitucional, ao passo que, se improcedente, a norma foi

declarada inconstitucional. Na Adin é o inverso: se procedente, a norma é

inconstitucional; se improcedente, a norma é constitucional. Sendo assim, a Adin

e a Adecon são consideradas ações de caráter dúplice ou ambivalente.

Considerando isso, o ex-Ministro Sepúlveda Pertence, do STF, entendia que: se o

caso analisado pela Corte, em Adin, pudesse ser objeto de Adecon, então a Adin

produziria efeito vinculante, com respaldo constitucional. Mais à frente, quando for

estudada a Adecon, ver-se-á que somente pode ser objeto dessa ação leis ou

atos normativos federais. Com efeito, somente as Adin’s sobre normas federais

podiam ter efeito vinculante. Com a edição da EC no. 45/04 não existe mais

discussão. Toda e qualquer Adin, seja de norma federal, seja de norma estadual,

tem efeito vinculante.

Resumindo, os efeitos da Adin são:

- erga omnes (para todos);

- ex tunc (doutrina clássica: ato inconstitucional é nulo, portanto não existe

desde a sua edição - efeitos da decisão retroagem); mas, por razões de

segurança jurídica ou relevante interesse social, pode o STF, mediante voto de

2/3 dos seus membros (8 Ministros), mudar esse regime de efeitos para outro

qualquer, ex nunc ou pro futuro (doutrina de Kelsen: ato inconstitucional é

anulável, portanto os efeitos serão estabelecidos de acordo com o poder

discricionário do Tribunal); e

- vinculante, em relação aos órgãos do Poder Judiciário e da administração

pública direta e indireta, nas três esferas de poder (federal, estadual ou

municipal). Se algum juiz ou Tribunal não observar uma decisão definitiva do STF

com efeito vinculante, caberá reclamação constitucional, ação ajuizada

diretamente no STF, que visa garantir a autoridade de suas decisões vinculantes

(art. 102, I, “l”, CF/88).

Importante observar que no controle concentrado não há que se falar em

competência do Senado para suspender os efeitos da lei ou ato normativo

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declarado inconstitucional pelo STF, erga omnes. Isso porque, no controle

concentrado, a decisão do STF já é erga omnes, valendo para todos.

Segundo Torrecillas Ramos (1994, p. 85), a suspensão do Senado Federal,

“a partir de 1977, por decisão do STF, somente se aplica no controle incidental”.

O controle concentrado é regido pelo princípio da parcelaridade, o que

significa que o STF pode julgar total ou parcialmente inconstitucional lei ou ato

normativo contrário à CF/88. O STF, ao realizar controle repressivo, pode

expurgar do texto legal palavra, expressão, frase, artigo, parágrafo, inciso ou

alínea que considere contrário ao Texto Constitucional 126. Quando assim o faz, o

STF está realizando a chamada interpretação conforme com redução de texto.

Com redução de texto porque a parte eivada de vício de inconstitucionalidade

será expulsa do ordenamento jurídico.

Mas existe, também, a interpretação conforme sem redução de texto . Ela

ocorre quando o STF declara que a mácula da inconstitucionalidade reside em

uma determinada aplicação da lei, ou em um dado sentido interpretativo. Assim,

nota-se que a inconstitucionalidade não é propriamente do texto legal, mas sim de

uma ou mais das possíveis interpretações que lhes são empregadas. Nos casos

de interpretação sem redução de texto, o STF indicará a interpretação que seja

conforme à Constituição. Normalmente, essa técnica de interpretação é utilizada

quando a norma é redigida em uma linguagem ampla e genérica, abrangendo

várias hipóteses, sendo que apenas uma (ou algumas delas) é inconstitucional.

As demais encontram-se em perfeita conformidade com a Carta Magna. Veja-se

um exemplo em que seja cabível esse tipo de interpretação: imagine-se que o

Poder Público crie uma lei que majora a alíquota de um imposto. A lei não fala,

expressamente, quando inicia sua vigência. O Poder Público quer cobrar essa

nova alíquota imediatamente. E assim o faz. Ocorre que, tanto para a criação de

novos tributos quanto para a majoração dos já existentes, a CF/88 exige que se

respeite o princípio da anterioridade, ou seja, somente se pode cobrar um novo

126 O Presidente da República, no momento do veto jurídico (controle preventivo), apenas está autorizado a excluir artigo, parágrafo, inciso e alínea por inteiro. Ele não pode vetar uma palavra, uma frase ou expressão (art. 66, §2º, CF/88). Os poderes do STF, em controle posterior, são muito maiores.

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imposto ou uma nova alíquota no exercício financeiro seguinte ao de sua criação

ou majoração. O STF, ao analisar essa lei, verificará que ela está formal e

materialmente hígida. A incompatibilidade com a CF/88 está na interpretação

dada à lei pelo Poder Público. O STF irá fixar uma interpretação conforme à

CF/88, sem mexer no texto. Assim, o STF declarará a interpretação correta que

deve ser conferida à lei: cobrar a nova alíquota somente no próximo exercício

financeiro.

Ressalte-se que o STF, quando realiza interpretação conforme (seja ela

com ou sem redução de texto), somente pode atuar como legislador negativo, ou

seja, aquele que interpreta a lei. Nunca como legislador positivo, que cria leis, sob

pena de infração ao princípio da separação dos poderes. A função do Poder

Judiciário é julgar, não legislar.

Com efeito, somente poderá haver interpretação conforme se houver

espaço para uma interpretação do judiciário. Se o sentido da norma é unívoco,

não cabe interpretação conforme. Para o ex-Ministro do STF, Moreira Alves,

(...) se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição Federal contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo (apud ARAÚJO e NUNES JR., 2003, p. 48) 127.

Conclui-se, desse modo, que o limite da interpretação conforme é o

conteúdo inequívoco dado pelo legislativo à norma.

A interpretação conforme é tratada por alguns doutrinadores como técnica

de interpretação, enquanto, para outros, ela é uma modalidade de decisão

judicial. Tanto faz como a consideram, o importante é que serve para:

- interpretação constitucional;

- concretização da constituição; e

- controle de constitucionalidade.

127 Representação de inconstitucionalidade n. 1.417-7-DF, j. em 12-9-1987, Ementário do STF, v. 1497, p. 72; JUIS, n. 7.

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Estando presentes o periculum in mora e o fumus boni iuris, é possível a

concessão de medida cautelar em Adin. Se concedida, determina-se

provisoriamente a suspensão dos efeitos jurídicos da lei ou do ato normativo

impugnado (art. 102, I, “p”, da CF/88 e arts. 10/12, da lei 9868/99).

Em regra, o efeito da cautelar é ex nunc, pois se trata de uma decisão

provisória. Entretanto, o STF, pelo voto da maioria absoluta de seus membros (6

Ministros), estando presentes à sessão de julgamento pelo menos oito Ministros,

poderá conceder um efeito diferente à cautelar, ex nunc ou pro futuro.

Salvo se houver manifestações em sentido contrário, a concessão da

liminar, em medida cautelar de Adin, torna aplicável a legislação anterior, caso

existente (art. 11, § 2º, lei 9868/99). Isso porque o STF, quando concede liminar

em medida cautelar de Adin, está dizendo que a lei ou o ato normativo impugnado

será considerado nulo ou inexistente no ordenamento jurídico até que se decida

em definitivo a Adin. Contudo, cria-se uma lacuna no sistema ao se suspender

provisoriamente os efeitos da norma reclamada. Daí a importância de se

restabelecer os efeitos de norma anterior, se existente , para se evitar uma lacuna

prejudicial ao sistema. Aliás, denomina-se esse procedimento de concessão de

liminar em Adin de medida cautela r, porque assim dispõe a lei. Mas, na verdade,

o que ocorre na liminar concedida em Adin é uma verdadeira antecipação de

tutela 128, posto que o STF, liminarmente, irá antecipar os possíveis efeitos de

uma futura decisão definitiva na Adin.

Para Palu (1999, p. 148): “(...) indiscutível que nas ações diretas de

inconstitucionalidade possível a medida cautelar, que em realidade trata-se de

antecipação de tutela, retroagindo os efeitos que somente seriam obtidos com a

sentença final”.

128 A tutela antecipada (art. 273, CPC) difere das medidas cautelares (arts. 796 e ss, CPC), ao passo que visa a antecipação do próprio pedido principal da ação, tendo em vista a presença de elementos que evidenciem a verossemelhança (mais do que fumus) do direito. As medidas cautelares, por sua vez, existem para garantir a eficácia do processo, para garantir que o processo chegue ao seu fim, sem o perecimento do direito. Nas medidas cautelares, como existe apenas uma fumaça de bom direito, pedem-se medidas assecuratórias do processo e do direito, mas não a antecipação dos efeitos do pedido principal da ação.

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5.4. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão

(Adin por omissão)

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão foi uma inovação

trazida com a CF/88, em seu art. 103, § 2º.

Ela pode ser proposta pelos mesmos legitimados da Adin (art. 103, CF/88)

e tem como objeto as omissões do Poder Público. Sua finalidade é combater a

doença conhecida na doutrina por “síndrome de inefetividade das normas

constitucionais”.

Para se entender como o Poder Público pode ser omisso, é preciso

compreender primeiro a e ficácia das normas constitucionais.

No que se refere à eficácia das normas constitucionais, a classificação

mais usada no Brasil foi a criada por Silva (1998). De acordo com seus

ensinamentos, na Constituição temos: normas de eficácia plena; normas de

eficácia contida e normas de eficácia limitada.

As normas de eficácia plena são aquelas com aplicabilidade direta,

imediata e integral. São normas auto-aplicáveis, pois não precisam ser

regulamentadas. Desde a promulgação da CF/88 elas já se aplicam direta,

imediata e integralmente. O art. 5º, caput, da CF/88, por exemplo, estabelece o

princípio da igualdade. Esse princípio não precisa ser regulamentado para poder

ser aplicado, pois já possui aplicabilidade direta, imediata e integral, desde a

entrada em vigor da CF/88.

As normas de eficácia contida possuem aplicabilidade direta, imediata,

mas, possivelmente , não integral. Isso porque as normas de eficácia contida,

desde a promulgação da CF/88, aplicam-se imediata e integralmente. Entretanto,

é possível que legislação integradora posterior, ou disposição da própria

Constituição, venha a restringir os seus efeitos. O art. 5º, XIII, da CF/88, por

exemplo, determina que é livre o exercício de qualquer profissão, atendidas as

qualificações profissionais que a lei estabelecer. Assim, todos podem exercer a

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profissão que escolherem, entretanto, para alguém ser advogado, precisa obter o

título de bacharel em direito e aprovação na OAB (requisitos infraconstitucionais).

Somente portando uma carteira da OAB (restrição legal) é possível exercer o livre

exercício da advocacia (direito constitucional).

Por fim, têm-se as normas de eficácia limitada, de aplicabilidade indireta,

mediata e reduzida. Sendo assim, essas normas apenas poderão ser aplicadas

depois de regulamentadas por norma infraconstitucional integradora. As normas

de eficácia limitada podem ser de duas espécies: princípios institutivos ou normas

programáticas.

Princípios institutivos correspondem àqueles dispositivos em que a

Constituição estabelece o princípio, mas não sua operatividade, requisitando

expressamente, para tanto, complemento de lei. Exemplo clássico desse tipo de

norma constitucional é o art. 195, § 7º, CF/88. Ele determina que “são isentas de

contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência

social que atendam às exigências estabelecidas em lei”. Assim, as entidades

beneficentes que atenderem aos requisitos legais ficarão isentas das

contribuições para a seguridade social. No entanto, essa lei ainda não existe,

estando o Poder Público omisso nesse mandamento constitucional. É para casos

como este que existe a Adin por omissão e também o mandado de injunção,

instrumento de controle difuso das omissões do Poder Público.

As normas programáticas são aquelas que estabelecem programas a

serem seguidos pelos administradores e legisladores. Por exemplo, o art. 3º, III,

da CF/88, reza: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil: (...) III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais e regionais”. Esses objetivos impostos pela Constituição são metas que

devem ser buscadas pelo Poder Público. Mas não se trata de uma meta imediata,

que possa ser cumprida de plano. É necessário criar condições para que o

objetivo constitucional seja atingido. Canottilho (1991) diz que essas normas não

possuem “densidade normativa”. São apenas programas e, como tal, não podem

ser objeto de Adin por omissão nem mandado de injunção, posto que não há

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densidade normativa que justifique constituir o Poder Público em mora, por não

cumprir imediatamente o mandamento constitucional.

Tendo sido vistas resumidamente a eficácia das normas constitucionais,

fica mais fácil compreender a inconstitucionalidade por omissão. Ela ocorre, como

já exposto, nos casos das normas constitucionais que trazem princípios

institutivos que carecem de regulamentação do Poder Público para ganhar

operatividade. Portanto, pode ocorrer inconstitucionalidade por omissão do Poder

Público somente no que se refere às normas constitucionais de eficácia limitada,

do tipo princípio institutivo.

Para o controle das omissões do Poder Público, há um instrumento de

controle difuso, o mandado de injunção, e um instrumento de controle

concentrado, a Adin por omissão. O mandado de injunção está previsto no art. 5º,

LXXI, da CF/88, e é instrumento de controle difuso das omissões que tornem

inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas

inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Qualquer inte ressado na

edição da lei para resguardar seus direitos individuais pode utilizar-se deste

instrumento. A Adin por omissão está prevista no art. 103, §2º, da CF/88. É

instrumento de controle concentrado que pode atacar toda e qualquer omissão do

Poder Público, sendo legitimadas para propô-la as pessoas previstas no art. 103,

da CF/88. Em ambas as ações, o STF tem a função de velar pela efetividade das

normas constitucionais, mas, no controle concentrado via Adin por omissão, a

finalidade é mais ampla: a defesa do ordenamento jurídico como um todo, para

que não possua lacunas. Já no controle difuso via mandado de injunção, o que se

pretende é a garantia de um direito individual.

As omissões do Poder Público podem ser totais ou parciais. Totais quando

não existe a norma regulamentadora; parciais, quando a lei integradora existe, no

entanto ela disciplina a matéria de forma insatisfatória.

O procedimento da Adin por omissão é semelhante ao da Adin. As únicas

diferenças são:

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- o AGU não se manifesta no controle das omissões, afinal de contas, não

existe ato normativo para ser defendido. Como já visto, a função do AGU está

vinculada à defesa da constitucionalidade das leis impugnadas: se não há lei a

ser defendida, não há que se falar em participação do AGU na ação; e

- não existe medida cautelar em Adin por omissão. Não há que se falar em

concessão de liminar para os casos em que a lei ainda não foi criada.

Cabe ressaltar que não existe prazo para a propositura da Adin por

omissão. Mas, é claro, é preciso que haja transcorrido um prazo razoável para

constituir um órgão em mora. Nossa atual Constituição Federal foi promulgada em

5 de outubro de 1988. Não seria razoável ajuizar Adin por omissão em 05 de

novembro de 1988, pois um mês não é um prazo razoável para caracterizar uma

omissão do Poder Público. Trata-se apenas de uma lacuna técnica, não de

omissão.

Falta falar dos efeitos da Adin por omissão. Como regra geral, o STF

declara, em controle concentrado, a omissão inconstitucional para todos e desde

sempre, ou seja, desde que promulgada a CF/88, que exige expressamente

regulamentação integradora. Os efeitos da Adin por omissão são, portanto, erga

omnes e ex tunc.

Uma vez declarada a inconstitucionalidade da omissão, pode o STF criar a

lei integradora, a fim de dar efetividade ao mandamento constitucional?

Não. De acordo com o entendimento do próprio STF, se ele criasse a lei,

estaria ferindo o princípio da tripartição dos poderes (art. 2º, CF/88). Afinal, quem

tem competência para legislar não é o Poder Judiciário, este apenas legisla em

casos excepcionais como função atípica, por exemplo, quando elabora seu

regimento interno. Competente para legislar é o Poder Legislativo , e se o STF

criasse a lei omissa, estaria se imiscuindo no Poder Legislativo, contrariando,

portanto, a separação dos poderes idealizada por Montesquieu.

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O que deve fazer o STF então, após declarar inconstitucional a omissão do

Poder Público?

Depende.

Se o órgão competente para editar a norma for o Poder Executivo , então o

STF fixará um prazo de 30 dias para que ele elabore o ato normativo, sob pena

de responsabilidade. Ou seja, se o Poder Executivo não elaborar o ato normativo

exigido pela Constituição em 30 dias, o indivíduo prejudicado pela omissão

poderá ajuizar ação de perdas e danos face ao Estado. Nesses casos, a decisão

do SFT tem natureza mandamental, ao passo que constitui o Poder Executivo em

mora.

Mas se o órgão competente para editar a norma for o Poder Legislativo,

não poderá o STF fixar prazo para a elaboração da lei, sob pena de ferir a

autonomia do Poder Legislativo e, portanto, ir de encontro com o princípio da

separação dos poderes, estampado no art. 2º da CF/88. Para esses casos, a

natureza da sentença do STF será apenas declaratória, posto que o STF não

pode constituir o Poder Legislativo em mora.

Em casos isolados, o STF, ao apreciar mandado de injunção (controle

difuso), tem se inclinado a deferir o direito do interessado em ajuizar ação

indenizatória (perdas e danos) face ao Estado, desde que demonstrado o nexo

causal entre o dano e a inércia legislativa (cf. ARAÚJO e NUNES JR., 2003, p.

62-64). Isso porque existem duas teorias quanto à questão das omissões:

1ª – dos concretistas, para quem, apesar de o Poder Judiciário não poder

criar a lei que é da competência do Poder Legislativo, sob pena de violar a

separação de poderes, ele pode, sim, constituir o órgão legiferante em mora,

estabelecendo um prazo razoável para que a lei seja criada, estabelecido caso a

caso. Se o prazo transcorrer in albis, caberá ação de perdas e danos face ao

Estado. Daí o nome de concretistas: visam concretizar de fato, e do modo pelo

menos possível, o mandamento constitucional;

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2ª – dos não-concretistas, para os quais o STF, nos casos de omissão do

Poder Legislativo, somente pode declarar a inconstitucionalidade da omissão, e

mais nada.

Seria bom que o STF adotasse a teoria concretista não só para casos

isolados, mas para todas as omissões. Somente assim, talvez, o Poder

Legislativo se sentisse realmente compelido a concretizar os mandamentos

constitucionais.

5.5. Ação declaratória de constitucionalidade (Adecon)

A ação declaratória de constitucionalidade (Adecon) surgiu na CF/88 com a

introdução da EC no. 3, de 17 de março de 1993. Sua finalidade é declarar a

constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Mas toda lei não se presume

constitucional? Sim, mas essa presunção é iuris tantum (vale enquanto), pois

admite prova em contrário. O objetivo da Adecon é exatamente transformar essa

presunção iuris tantum em iuri et iuri. Ou seja, sua finalidade é transformar uma

presunção relativa em absoluta, a qual não admite questionamento em contrário.

Busca-se, através da Adecon, afastar o nefasto quadro de insegurança

jurídica ou incerteza sobre a validade ou aplicação de lei ou ato normativo federal.

Preserva-se, contudo, a ordem jurídica constitucional. Aliás, é preciso que haja

controvérsia judicial sobre a norma federal questionada para que seja possível o

ajuizamento da Adecon.

Leis ou atos normativos estaduais ou municipais não podem ser objeto de

Adecon. A competência para julgá-la é exclusiva do STF (art. 102, I, “a”, CF/88).

Os legitimados da Adecon são os mesmos da Adin e estão arrolados no

art. 103, da CF/88. Isso desde o advento da EC no. 45/04. Antes da edição da

“emenda da reforma do judiciário”, apenas podiam propor Adecon:

- o Presidente da República;

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- a Mesa do Senado Federal;

- a Mesa da Câmara dos Deputados; e

- o Procurador-Geral da República.

Agora todos os relacionados no art. 103, da CF/88, estão legitimados para

propor Adecon, devendo obedecer, somente, ao critério dos legitimados

universais e legitimados especiais, já tratados quando foram estudados os

legitimados para propor Adin.

O procedimento da Adecon também é semelhante ao da Adin. Aliás,

ambas as ações estão disciplinadas na lei 9868/99.

O AGU (Advogado-Geral da União) não participa das Adecon’s. Afinal, o

autor da ação já afirma a constitucionalidade da lei ou ato normativo federal, não

carecendo, portanto, ser defendido pelo AGU. 129

A Adecon será julgada pelo pleno do STF (11 Ministros). A

constitucionalidade ou não da lei somente poderá ser decidida com o voto da

maioria absoluta do pleno (6 Ministros), estando presentes à sessão de

julgamento, no mínimo, 8 Ministros. Cabe ressaltar que, da mesma forma como

na Adin, não é possível na Adecon intervenção de terceiros nem desistência da

ação. A decisão do STF em Adecon também é irrecorrível, salvo embargos de

declaração. Seus efeitos são:

- erga omnes (para todos);

- ex tunc (retroagem); e

- vinculante, com relação aos órgãos do Poder Judiciário e à

Administração Pública direita ou indireta, federal, estadual, distrital ou

municipal.

É possível a concessão de medida cautelar na Adecon (art. 21, da lei

9868/99). Para esses casos, o STF pode, por decisão da maioria absoluta de

129 O PGR (Procurador-Geral da República) se manifesta em todas as ações de controle concentrado que tramitam no STF.

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seus membros (6 Ministros), determinar que os Tribunais suspendam o

julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo

discutido na Adecon, até que o STF julgue em definitivo a ação.

Mas deve-se atentar para o fato de que a suspensão dos julgamentos

poderá perdurar por no máximo 180 dias, a contar da publicação da parte

dispositiva da decisão liminar, no Diário Oficial da União. Após este prazo de 180

dias, se o STF ainda não tiver julgado em definitivo a ação, cessará a eficácia da

liminar concedida em medida cautelar, e os demais processos em que a norma

discutida está presente voltam a ser processados e julgados normalmente pelos

órgãos competentes.

A medida cautelar em Adecon tem efeitos:

- erga omnes (para todos);

- ex nunc (a suspensão dos julgamentos dos processos que envolvam a

norma em discussão na Adecon valem a partir da publicação da

decisão liminar do STF, no Diário Oficial da União); e

- vinculante.

Não obstante a CF/88, no art. 102, § 2º, deixar bastante claro que somente

as decisões definitivas do STF possuem efeito vinculante, o STF admite efeito

vinculante à decisão liminar da medida cautelar na Adecon 130. Sendo vinculante o

efeito da decisão em medida cautelar, sua autoridade pode ser preservada pelo

instrumento da reclamação constitucional (art. 102, I, “l”, CF/88).

Apenas para finalizar este estudo sobre a Adecon, cabe ressaltar que a EC

no. 03/93, que introduziu a Adecon ao nosso ordenamento jurídico, foi objeto de

muita discussão. Muitos defendem a inconstitucionalidade de referida emenda. Os

argumentos dos que defendem a inconstitucionalidade da Adecon são, em linhas

gerais:

130 Ex: Adecon no. 04.

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1. Na Adecon não se respeita o princípio constitucional do contraditório e

da ampla defesa. Ninguém no processo irá defender a inconstitucionalidade da

norma, pois trata-se de um procedimento objetivo, não existe autor e réu, e

analisa-se a lei em tese, e não um caso concreto;

2. O efeito vinculante da decisão do STF fere a autonomia dos demais

juízes e tribunais. Aliás, esse argumento também é utilizado para atacar o efeito

vinculante em Adin;

3. A Adecon viola o devido processo legal, o princípio da inafastabilidade

do controle judicial e, até mesmo, a separação de poderes, já que o STF estaria

agindo como legislador, e não como julgador;

4. A Adecon enfraquece o controle difuso.

Figueiredo (2003, p. 170) pondera:

Alguns apressados por certo dirão que a medida é benéfica, porquanto, se a teleologia do direito vem em abono dos valores ‘certeza e segurança’, nada melhor que a recente previsão. Por certo a visão é distorcida. É distorcida porque, em grande medida, o controle da constitucionalidade pela via de exceção fica muito prejudicado. De nada valerá existir o controle incidental se a Suprema Corte no ‘dia seguinte’ à propositura, v.g., de um mandado de segurança, por jurisdicionado, vem a decidir que tal lei é constitucional. Imediatamente seu direito ‘não poderá’ ser apreciado pelo Juiz Natural, garantia secular e importantíssima do direito constitucional e de seus jurisdicionados. Eis aí, igualmente, uma inversão e invasão na teleologia do princípio da independência e harmonia dos Poderes. A possibilidade de ingresso da declaratória, logo após a promulgação da lei (ou da vigência do ato normativo), configura uma ‘contradição’, na medida em que o Judiciário passa a ser um ‘chancelador’ dos atos e leis produzidas pelo Poder Legislativo. Vincula-se assim de alguma forma a competência e função de Poderes que, por imperativo constitucional, são ‘independentes e harmônicos’.

Não obstante uma parcela significativa de juristas se levantarem contra a

Adecon e, sobretudo, contra o efeito vinculante – que a partir de dezembro de

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2004 passou a ser concedido constitucionalmente também para a Adin (EC no.

45/04) –, para o STF a Adecon é constitucional. 131

Alguns autores vêem na Adecon um retorno à antidemocrática avocatória,

recurso que era utilizado durante os governos ditatoriais no Brasil. Como se

temiam as decisões dos juízes de primeira instância, que eram muitos e

imparciais, preferia-se que as decisões importantes fossem avocadas para

julgamento diretamente pelo STF, órgão mais próximo ao governo e, portanto,

mais facilmente monitorado.

5.6. Argüição de descumprimento de preceito fundamental (Adpf)

A argüição de descumprimento de preceito fundamental (Adpf) está

prevista no art. 102, § 1º, da CF/88, in verbis:

A argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei (grifo da autora deste trabalho).

O dispositivo constitucional supratranscrito é uma norma de eficácia

limitada, portanto, enquanto não regulamentado, o STF não podia apreciar Adpf.

Mas esse artigo foi regulamentado na Lei 9882/99, chamada “Lei Celso

Bastos”, em homenagem ao Presidente da Comissão elaboradora da lei, o

saudoso professor da PUC/SP, Celso Ribeiro Bastos. 132

O art. 1º, caput, dessa lei 9882/99, traz a primeira hipótese de cabimento

dessa ação, qual seja, “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante

de ato do poder público”. Nessa primeira hipótese, o objeto da Adpf é qualquer

ato do Poder Público que viole preceito fundamental. Essa hipótese é chamada,

na doutrina, de “argüição autônoma”.

131 Ver julgamento da Adecon no. 1-1/DF, relator Ministro Moreira Alves. 132 A comissão elaboradora dessa lei foi composta por outros importantes juristas, além do Presidente Celso Bastos: Oscar Dias Corrêa (ex-Ministro do STF); Ives Gandra Martins; Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes (atual Ministro do STF).

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O parágrafo único, desse mesmo art. 1º, prevê a segunda hipótese,

chamada, na doutrina, de “argüição por equiparação” (ou “por equivalência”).

Dispõe o referido parágrafo, in verbis:

Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; II - (VETADO).

O objeto dessa segunda hipótese de cabimento de Adpf, portanto, é

controvérsia judicial relevante, seja sobre leis federais ou estaduais, seja sobre

leis municipais ou anteriores à CF/88.

Muito se discute quanto à constitucionalidade deste parágrafo único, do art.

1º, da lei 9882/99. Como ele traz uma hipótese não expressamente prevista na

CF/88, muitos defendem sua inconstitucionalidade, ao passo que a lei foi além da

CF/88, ampliando as competências do STF, o que somente a própria Constituição

poderia ter estabelecido. A Adin no. 2231/DF, que tramita no STF, requer a

declaração de inconstitucionalidade desse parágrafo único.

Para os que defendem a constitucionalidade da argüição por equiparação,

o parágrafo único, do art. 1º, da lei 9882/99, apenas explicitou uma hipótese

genericamente prevista na primeira hipótese de cabimento da Adpf. Ou seja, a

argüição por equivalência (parágrafo único) explicita o princípio genérico da

segurança jurídica, estampado no art. 5º, caput, da CF/88, colocando como objeto

da hipótese de cabimento da Adpf a segurança das relações jurídicas. Dessa

forma, o discutido parágrafo não ampliou competência do STF não prevista pela

CF/88. Como a segurança jurídica é um preceito fundamental e a segurança nas

relações jurídicas é um princípio daquele decorrente, pode-se afirmar que a

segunda hipótese de cabimento de Adpf, trazida com a lei 9882/99, é apenas um

exemplo específico de violação a preceito fundamental decorrente da CF/88.

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Assim, visto que, em última análise, o objeto da Adpf é violação a preceito

fundamental decorrente da Constituição, resta a grande questão: o que é preceito

fundamental?

A CF/88 e as leis não dizem o que é preceito fundamental. A doutrina é

quem traz o conceito do que é preceito fundamental. Mas, em última instância,

quem decide o que é ou não preceito fundamental, caso a caso, é o STF. Digno

de nota é o fato de que, até hoje, o STF nunca definiu o que seja preceito

fundamental. Em algumas decisões, ele já afirmou o que não é preceito

fundamental, mas só.

Para Tavares (2001, p. 134), preceitos fundamentais são os valores que

conferem identidade à Constituição.

Segundo Cássio Juvenal Faria, preceitos fundamentais são:

Normas qualificadas, que veiculam princípios e servem de vetores de interpretação das demais normas constitucionais, como, por exemplo, os ‘PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS’ do Título I (art. 1º ao 4º); os integrantes de CLÁUSULA PÉTREA (art. 60,§ 4º); os chamados PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS SENSÍVEIS (art. 34, VII); os que integram a enunciação dos DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS (Título II); os PRINCÍPIOS GERAIS DA ATIVIDADE ECONÔMICA (art. 170); etc. (apud LENZA, 2003, p. 118).

Silva (1998, p. 557) diz que “preceito fundamental” não é a mesma coisa

que “princípio fundamental”, obtendo um alcance mais amplo para abranger todas

as prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como, por

exemplo, a forma de governo, o sistema de governo, o regime político e, de forma

preponderante, os direitos e as garantias fundamentais.

Ferdinand Lassalle, em A essência da Constituição (1863), para diferenciar

a Constituição (lei fundamental) de uma lei comum, apresentou três

características para que uma lei possa ser considerada fundamental. Maria Garcia

(2002, p. 120-122) assim sintetiza essas características: a lei fundamental deve

ser básica, alicerce para as demais; a lei fundamental deve ser fundamento de

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outros direitos, e, por fim, o que é fundamental é necessário, existe porque deve

necessariamente existir.

Transportando essa doutrina de Lassalle, interpretada por Garcia, pode-se

afirmar que preceitos fundamentais são aqueles que se caracterizam por serem:

básicos, fundamentais e necessários. Necessário no sentido de que o preceito

fundamental é como é porque necessariamente deve ser, pois, de outra forma,

não há de ser. Sendo assim, preceito fundamental é aquele que é como é, e sem

o qual o resto do ordenamento jurídico não se sustenta.

Ainda no que tange ao objeto da Adpf, convém transcrever por inteiro o art.

1º, da lei 9882/99, e atentar para seus termos:

Art. 1º. A argüição prevista no §1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante ao Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único: Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição; II - (VETADO) (grifos da autora desta dissertação).

Nota-se que a lei fala em “ato do Poder Público” que viole preceito

fundamental, e não em ato normativo do Poder Público que atente a preceito

fundamental. Sendo assim, cabe Adpf para quaisquer atos do Poder Público,

sejam os normativos (gerais, abstratos e impessoais), sejam os de efeitos

concretos. Contudo, vemos que o objeto da Adpf é mais amplo que o da Adin,

que, como visto, não pode ter como objeto de controle leis ou atos normativos de

efeitos concretos.

Ademais, o parágrafo único deixa claro que podem ser objeto de Adpf atos

do Poder Público federal, estadual, municipal ou, ainda, os anteriores à CF/88.

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No estudo da Adin esclareceu-se que ela não pode ser utilizada no controle

de constitucionalidade de normas municipais, tampouco normas anteriores à

CF/88. Mais um caso, portanto, em que a Adpf é mais abrangente que a Adin.

A competência para analisar e julgar Adpf é exclusiva do STF, pois trata-se

de ação para o controle concentrado das normas. Têm legitimidade para propor

Adpf os mesmos legitimados para propor Adin genérica, Adin por omissão e

Adecon.

Interessante notar que o art. 2º, II, da lei 9882/99, que disciplina a Adpf,

previa a legitimidade de qualquer pessoa lesada para propor Adpf. Entretanto,

referido dispositivo foi vetado. Dessa forma, o indivíduo que se sentir lesionado

por ato do Poder Público que viole preceito fundamental ou deverá ajuizar ação

própria no controle difuso de constitucionalidade ou poderá representar ao

Procurador-Geral da República, que é um dos legitimados para propor Adpf, para

que este, se entender que é o caso, proponha a ação de controle concentrado

adequada.

No pólo passivo da Adpf somente poderão figurar entes públicos ou

privados que exerçam função pública, já que somente podem ser objeto de Adpf

atos do Poder Público que violem preceitos fundamentais decorrentes da

Constituição.

O art. 4º, § 1º, da lei 9882/99, estabelece que somente caberá Adpf para os

casos em que não houver outro instrumento capaz de sanar a lesividade. Trata-se

do princípio da subsidiariedade da Adpf. Acontece que a Adpf tem caráter

residual, ao passo que somente será possível sua utilização se o direito lesionado

não puder ser garantido por outra ação de controle concentrado, seja a Adin, seja

a Adecon.

Para a maioria dos juristas – por exemplo, Clèmerson Merlin Clève, Gilmar

Ferreira Mendes, Alexandre de Moraes e outros –, a Adpf tem caráter residual.

Mas Tavares (2001, p. 237) entende de forma diferente . Para ele: “(...) o instituto

não se contém em área residual porque a compreensão da Lei Maior não oferece

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qualquer indício para que possa interpretar dessa maneira a posição do instituto

no sistema”.

O STF, apenas pelo voto da maioria absoluta de seus membros (6

Ministros), e estando presentes à sessão de julgamento pelo menos 8 Ministros,

poderá decidir a argüição. Julgada a Adpf, o STF comunicará às autoridades ou

órgãos responsáveis as condições e o modo de interpretação e aplicação do

preceito fundamental. E o Presidente do STF determinará o imediato cumprimento

da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente. Dez dias após o trânsito em

julgado da decisão, sua parte dispositiva será publicada no Diário da Justiça e no

Diário Oficial da União.

A decisão do STF em Adpf tem efeitos erga omnes (para todos) e ex tunc

(retroagem), em regra, pois o STF, pelo voto da maioria qualificada de seus

membros (8 Ministros), poderá conceder um efeito diverso.

A lei 9882/99 prevê efeito vinculante para as decisões do STF em Adpf.

Entretanto, é muito discutido esse efeito, posto que a Constituição é silente

quanto ao assunto. Será que a legislação infraconstitucional poderia conceder

efeito que a CF/88 não prevê? Será que a lei foi além da CF/88, sendo, portanto,

inconstitucional? Essas questões ainda não foram decididas em definitivo pelo

STF, e como a lei concede efeito vinculante a essa ação, também prevê a

reclamação constitucional, ação que tem por finalidade garantir a autoridade das

decisões do SFT, com efeito vinculante.

A decisão do STF em Adpf, assim como na Adin e na Adecon, é

irrecorrível, salvo embargos de declaração para os casos de omissão,

obscuridade ou contradição no acórdão.

O art. 5º, da lei 9882/99, dispõe que o STF, por decisão da maioria absoluta

dos seus membros (6 Ministros), poderá deferir pedido de medida cautelar em

Adpf.

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192

A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais

suspendam o andamento dos processos, os efeitos das decisões judiciais ou

qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição,

salvo se decorrentes da coisa julgada.

Note-se que a liminar em Adpf tem uma amplitude maior que a da Adecon.

A medida cautelar em Adecon vigora pelo prazo máximo de 180 dias, enquanto

na Adpf não tem prazo. Ademais, a liminar em Adecon suspende apenas o

julgamento dos processos que envolvam a norma em discussão no STF; já na

Adpf, suspende-se o julgamento, o processamento e qualquer outra medida

relacionada à norma argüida.

Muitos viram nessa previsão de liminar na Adpf a volta da famigerada

avocatória, criada em 1977, sob a égide da Constituição de 1967/69. Tavares

(2001, p. 253-255) explica:

O instituto da avocatória foi marcado por forte estigma autoritário e, na atualidade, continua a ser invocado sempre que surge uma nova proposta de medida constitucional a conferir, aparentemente mais poderes ao Supremo Tribunal (...). Para a ‘confusão’ talvez concorra a redação do art. 5º. da Lei n. 9.882/99 (...). Não há, contudo, razão para referido engano (...). A avocatória ocorria em função do tema, sem qualquer conexão com a inconstitucionalidade. Boa parte das impugnações que se levantaram contra a avocatória eram totalmente procedentes, já que se deslocava a competência natural dos juízes para o julgamento do feito. No caso da ação direta declaratória e (...) da argüição, o juiz da causa continua competente para o julgamento.

Figueiredo (2003, p. 187) acredita

(...) que a argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da Constituição, PODE VIR A SER um instrumento que habilita a concretização da matéria constitucional positiva, desde que sua interpretação projete a dimensão dos direitos humanos, dos direitos fundamentais em sua expressão mais ampla e compreensiva.

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5.7. Ponderações sobre o controle da constitucionalidade na atualidade

brasileira

Visto o sistema de controle de normas vigente em nosso ordenamento

jurídico, cabem apenas mais algumas observações.

O controle difuso foi o primeiro a ser introduzido no Brasil, já com a

primeira Constituição Republicana, de 24 de fevereiro de 1891. Entretanto, de

1891 a 1988, é possível constatar que o controle concentrado evoluiu muito mais

que o difuso, que acabou por perder grande parte de sua utilidade, ficando

enfraquecido diante do concentrado, sobretudo com a recente EC no. 45/04, que

instituiu a famigerada súmula vinculante.

Com o surgimento da súmula vinculante em nosso sistema jurídico, as

decisões do STF, com esse efeito, deverão necessariamente ser observadas

pelos juízes e tribunais inferiores, sob pena de reclamação constitucional.

Muitos juristas vêem com bons olhos a supremacia do controle

concentrado sobre o difuso. Justificam-se afirmando que o controle concentrado é

melhor para a preservação da segurança jurídica, pois impede decisões

contraditórias, o que contribui para a estabilidade social.

Para Mendes (1999, p. 365):

A Constituição de 1988 conferiu ênfase (...) não mais ao sistema difuso ou incidente, mas ao modelo concentrado, uma vez que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes passaram a ser submetidas ao Supremo Tribunal Federal, mediante processo de controle abstrato de normas. A ampla legitimação, a presteza e a celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, constituem elemento explicativo de tal tendência. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal, mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função, tanto quanto como instrumento de defesa da ordem

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objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas.

O estudo aqui realizado não permite afirmar qual sistema – difuso ou

concentrado – é o mais eficiente para a guarda da Constituição e, principalmente,

para a proteção dos direitos fundamentais. Mas uma coisa não se pode negar: de

fato, a ampliação do controle abstrato, bem como os novos institutos criados em

nosso ordenamento jurídico, como, por exemplo , a súmula vinculante, sinalizam

para uma maior segurança jurídica, ao passo que o reconhecimento da

inconstitucionalidade concentra-se cada vez mais no órgão de cúpula do Poder

Judiciário, o Supremo Tribunal Federal. Com isso evitam-se as diversas decisões

contraditórias, que são inerentes ao controle difuso, posto que esse é realizado

por qualquer juiz ou tribunal. Entretanto, não obstante trazer maior segurança

jurídica às relações sociais, cabe não olvidar que a concentração das

controvérsias constitucionais no Supremo Tribunal Federal leva ao risco de uma

maior concentração de poderes no Executivo Federal, que, em geral, sente-se

ameaçado com a imparcialidade dos juízes de primeira instância.

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CONCLUSÕES

1. O mecanismo do controle de constitucionalidade é somente um dos

diversos instrumentos existentes na chamada “jurisdição constitucional”. É

também o instituto mais importante, posto que visa resguardar os preceitos

constitucionais. Sendo assim, é o mecanismo capaz de garantir um verdadeiro

Estado de direito, Estado que respeita os direitos individuais, principal objeto do

controle de constitucionalidade.

2. Na Antiguidade Clássica, o controle das normas era realizado pela polis.

Durante a Idade Média cabia a Deus a tarefa de realizar o controle das normas,

posto que não existia um sistema de controle formalmente estruturado. Na

Modernidade, com a criação dos Estados Nacionais e, sobretudo, após o

surgimento das chamadas “Constituições rígidas”, o controle de

constitucionalidade começa a ser estruturado na história mundial ocidental.

3. Na Inglaterra não existe controle de constitucionalidade, uma vez que não

existe uma Constituição escrita. As leis que regulam o poder são em grande parte

costumeiras ou, senão, previstas em textos esparsos. Não obstante, os tribunais

ingleses de há muito tempo vêm garantindo, através da interpretação, os

chamados direitos individuais, o principal objeto do controle de

constitucionalidade.

4. Nos Estados Unidos a supremacia é da Constituição e do Poder Judiciário,

seu guardião. Lá foi criado o controle difuso de constitucionalidade das normas,

controle este que se realiza por qualquer juiz ou tribunal, na análise de um caso

concreto.

5. Na França o controle das normas é somente político. Em razão dos anos

de opressão e da histórica ojeriza aos juízes naquele país , entende-se que o

Poder Judiciário não tem legitimidade para anular uma lei criada pelo Parlamento,

instituição de maior legitimidade popular. Daí ter sido criado um órgão de natureza

política, distinto dos demais poderes instituídos, incumbido da função de realizar o

controle prévio de constitucionalidade das normas.

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6. Na Constituição austríaca de 1920-29, foi criado por Hans Kelsen o

sistema concentrado de controle de normas. No controle concentrado, um

Tribunal Constitucional (Corte especializada), não obstante ser um órgão jurídico,

é o único habilitado para realizar o controle de constitucionalidade das normas. A

Corte Constitucional analisa as leis em tese, abstratamente consideradas, e não

num caso concreto.

7. O Brasil adotou o controle difuso, de origem norte -americana, a partir da

primeira Constituição Republicana, de 1891. A Constituição de 1934 aperfeiçoou

o controle concreto, exigindo a maioria absoluta do pleno ou do órgão especial

dos tribunais para poder ser declarada a inconstitucionalidade de lei ou ato

normativo, prevendo a competência do Senado Federal para suspender com

efeitos erga omnes a lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do

Supremo Tribunal Federal e criando a ação para fins de intervenção, bem como o

mandado de segurança. A Constituição de 1937 foi um retrocesso. Em virtude da

ditadura instituída no país, não existiu na prática o controle de constitucionalidade

das normas. Com a Constituição de 1946, o sistema de controle de

constitucionalidade no Brasil atinge sua plenitude. A Emenda Constitucional no.

16, de 1965, introduziu no Brasil, ao lado do já consagrado controle difuso, o

controle concentrado das normas, de influência austríaca. A Constituição de

1967/69 não trouxe grandes novidades ao sistema, mas previa a famigerada e

temida avocatória.

8. A Constituição de 1988 prevê um sistema misto de controle de

constitucionalidade. Misto porque agrega tanto o controle difuso, que se realiza

por qualquer juiz ou tribunal no julgamento de um caso concreto, quanto o

controle concentrado, que analisa as leis em tese e somente pode ser realizado

pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um controle via ação direta e, desde

a promulgação da Emenda Constitucional n. 3, de 1993, temos cinco espécies de

ações diretas: a ação direita para fins de intervenção (Adin interventiva), a ação

direita de inconstitucionalidade (Adin), a ação direita de inconstitucionalidade por

omissão (Adin por omissão), a ação declaratória de constitucionalidade (Adecon)

e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (Adpf).

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9. Nota-se uma evolução no controle de constitucionalidade do Brasil, no

sentido de prestigiar mais o controle concentrado das normas em detrimento do

controle difuso, o que favorece a consagração do princípio da segurança jurídica.

Em síntese, pode-se dizer que o mecanismo de controle de

constitucionalidade das normas é o que garante a existência de um Estado de

direito, pautado em leis racionais que preservam os direitos fundamentais. Antes

do surgimento dos Estados nacionais modernos, já se falava em controle das

normas, entretanto, não de forma estruturada como se conhece hoje. Foi com o

surgimento das constituições escritas que o sistema de controle das normas

ganhou maior destaque no mundo ocidental. No Brasil, o controle das normas era,

a princípio, apenas difuso, a exemplo do modelo norte-americano. A atual

Constituição brasileira, de 1988, prevê tanto o controle difuso como o controle

concentrado, idealizado por Kelsen. Com a edição da EC no. 3/93 – que criou a

Adecon e a Adpf – e da EC no. 45/04 – que instituiu a súmula vinculante –, nota-

se uma nítida tendência em reforçar, no País, o controle de constitucionalidade

concentrado diretamente no STF.

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