O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    1/[email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    2/[email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    3/19

    Lista de autores, por ordem de sada dos contos:

    Pedro Paixo | Joo Tordo | Rui Zink | Lusa Costa Gomes | Eduardo Madeira | Ins Pedrosa

    Afonso Cruz | Gonalo M. Tavares | Manuel Jorge Marmelo | Mrio de Carvalho

    Dulce Maria Cardoso | Pedro Mexia | Fernando Alvim | Possidnio Cachapa | David Machado

    JP Simes | Rui Cardoso Martins | Nuno Markl | Joo Barreiros | Raquel Ochoa | Joo Bonicio

    David Soares | Pedro Santo | Onsimo Teotnio Almeida | Mrio Zambujal | Manuel Joo Vieira

    Patrcia Portela | Nuno Costa Santos | Ricardo Adolfo | Ldia Jorge | Srgio Godinho

    Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

    [email protected]

    http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspxhttp://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx
  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    4/19

    Contos Digitais DN

    A coleo Contos Digitais DN-lhe oferecida pelo

    Dirio de Notcias, atravs da Biblioteca Digital DN.

    Autor: Rui Cardoso Martins

    Ttulo: O Progresso da Humanidade

    Ideia Original e Coordenao Editorial:Miguel Neto

    Design e conceo tcnica de ebooks: Dania Afonso

    ESCRITORIO editora | www.escritorioeditora.com

    2012 os autores, DIRIO DE NOTCIAS, ESCRITORIO editora

    ISBN: 978-989-8507-23-5

    Reservados todos os direitos. proibida a reproduo desta obra por qualquer meio, sem o consenti-

    mento expresso dos autores, do Dirio de Notcias e da Escritorio editora, abrangendo esta proibio

    o texto e o arranjo grfico. A violao destas regras ser passvel de procedimento judicial, de acordo

    com o estipulado no Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

    [email protected]

    http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspxhttp://www.escritorioeditora.com/http://www.escritorioeditora.com/http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx
  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    5/19

    sobre o autor

    Rui Cardoso Martins

    Nasceu em Portalegre, em 1967. Licenciado em Comunicao Social pela Universidade

    Nova de Lisboa, escritor, argumentista e jornalista. Publicou os romances E Se Eu GostasseMuito de Morrer(2006), traduzido em vrias lnguas, e Deixem Passar o Homem Invisvel

    (2009), que ganhou o Grande Prmio de Romance e Novela da Associao Portuguesa de

    Escritores/Direco Geral do Livro e Bibliotecas (APE/DGLB). Tem contos publicados

    em revistas nacionais e internacionais. cronista e reprter internacional doPblicodesde

    a fundao do jornal (dois prmios Gazeta). Fundou as Produes Fictcias onde cocriou

    e escreveu, por exemplo, os programas Contra-Informao eHerman Enciclopdia. ainda

    coautor do programa de humor Estado de Graa, em exibio na RTP, e argumentista das

    longas metragensZona J, Duas Mulherese do ltimo filme de Fernando Lopes, Em Cmara

    Lenta. O seu terceiro romance, Se Fosse Fcil Era Para os Outros, acaba de ser lanado

    (Setembro de 2012).

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    6/19

    6

    O Progresso da Humanidade

    Rui Cardoso Martins

    O jovem Oliveira andava h tempos perturbado com assuntos que no queria expli-

    car mas, como disse polcia um dos seus poucos amigos, no se esperava que acabasse

    de forma to horrorosa e impossvel de entender.

    Emagrecera muito, falava-se, mas isso no preocupa ningum hoje em dia, pelo

    contrrio. Oliveira estava a trocar gordura por massa muscular, notava-se na espessurados braos e pescoo, e at se perdera a impresso, que dera logo na infncia, talvez

    por causa das ancas largas, de que a vida dele seria uma luta contra os alimentos e cedo

    acabaria gordo e rendido sua condio natural.

    A mudana de fsico nas ltimas semanas provava o total empenhamento no que

    estava a fazer, fosse o que fosse, correspondendo ao antigo Oliveira que chegou a ser

    admirado pelo seu esprito positivo mas que, naturalmente, acabou de vez quando morreu.

    De qualquer maneira, estava irreconhecvel quando o encontraram naquele stio

    esquisito. Da ltima vez que soube dele, tinha voltado de Espanha onde foi fazer no sei o

    qu. Mas algo aconteceu, declarou o amigo.

    Na mesma linha abstracta, mas meditativo, o Inspector interrogou-se no inqurito:

    No homicdio, no parece suicdio, nem acidente, ou causa natural, talvez uma mistura

    disto tudo... Talvez tenhamos que inventar um conceito na criminologia. Uma categoria

    nova e, por assim dizer, selvagem, para classificar o bito do indivduo em causa.

    O depoimento da famlia de Oliveira foi inconclusivo. Os pais disseram estar h

    dois anos sem contacto com o jovem. Depois duma zaragata, ele mudara-se para o outro

    lado da cidade sem dizer onde e levando, ao que parece no houve queixa oficial ,

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    7/19

    7

    a gaveta das jias. No sabiam mais nada e pareceram aliviados com o fim do pesadelo.

    No armazm, pedira dois meses de licena sem vencimento. Quando lhe responde-

    ram que no, despediu-se.

    O quarto de aluguer foi descoberto e inspeccionado. No pagou o ltimo ms. Deixouapenas roupa velha, pontas de cigarro no cho e um computador antigo (com o disco

    rgido queimado e irrecupervel), dando a impresso de que Oliveira sara limpando os

    vestgios do passado ou, noutra leitura, levando consigo tudo aquilo que lhe dizia respeito.

    Mas existem dados objectivos sobre os ltimos meses de Oliveira, desde anotaes

    sobre a calibragem dos aparelhos com que treinava no ginsio, e quantas vezes os

    levantava, at factos ocorridos pouco antes de o encontrarem, meio comido, numa serra

    do Norte.

    Tais informaes foram encontradas no caderno junto do corpo. Foi escrito mo

    e, no entender das autoridades, parece uma mistura de bloco de notas prtico com diriontimo. Revelou-se muito til. Est quase tudo legvel, apesar das pginas coladas pelo

    sangue e pelas dentadas.

    O tom geral calmo, estruturado e directo, por vezes parece escrito em tempo real.

    Mas, aqui e ali, revela pulses violentas e confusas, aparentemente favorveis instau-

    rao duma nova ordem utpica, mistura com saudosismo, reveladoras, na opinio

    do Inspector, de que o indivduo em causa no estava bem e que foi pena ningum ter

    dado por isso a tempo de o salvar.

    Numas das primeiras pginas do caderno, Oliveira relata precisamente a viagem aEspanha, num fim-de-semana prolongado, registando-a como o episdio espanhol. O

    tom ingnuo surpreendeu alguns.

    21 de Junho. Sierra de M.

    Almoo. Chego inalmente ao acampamento e sou muito bem recebido pelos camaradas daqui

    e de l, depois de dizer a senha.

    Que unio fantstica, que energia se respira neste local escondido! E depois de tantos dias de

    conversas e cdigos na Net, e da longa viagem de comboio, o contacto directo com a naturezavai-me fazer bem. O cheiro dos pinheiros brutal. tarde, temos uma partida de futebol e

    um torneio de tiro de soga (duas equipas e uma corda grossa de 30 metros). noite, h uma

    marcha na clareira da loresta.

    22 de Junho. Manh. Est tudo a dormir. Que fresco... Ontem, demos-lhe bem na cerveja!

    Queimei as palmas das mos a puxar a corda... e perdemos. Houve um concerto rock na

    tenda central que deve ter acordado todos os bichos nocturnos. Quando escureceu a srio

    j era muito tarde. A cerimnia no solstcio de Vero: o sol est o mais longe possvel da

    Terra, o dia o mais longo do ano. Com Wagner no altifalante, deram-me um archote aceso

    e marchei no meu posto, o melhor que pude, numa das pontas da formao. Olhei para trs

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    8/19

    8

    e estvamos todos a fazer uma enorme cruz luminosa, talvez do tamanho duma arena, mas

    acho que icou torta.

    Depois de almoo. H pouco, distrado, no respondi a uma saudao duns camaradas, ras-

    teiraram-me e ca. Disseram que eu nunca teria a honra de ser um cado, um mrtir dacausa, e achei que era brincadeira. Mas o maior deles (uns 130 quilos) puxou-me o nariz e

    chamou-me porco judeu, chui e jornalista iniltrado, sucessivamente. Disse que num mundo

    de cordeiros como eu, ele preferia ser lobo. Para cmulo, sem mais nem menos acusou-me

    de ontem ter saltado de propsito do desenho dos archotes para estragar a fotograia area

    da sustica, tirada do cimo duma rocha! Vi a foto da cruz gamada e de facto algum sai do

    caminho, mas no se v a cara, sei l se fui eu! Defendi-me, mas eram muitos. Agora no

    posso mesmo mostrar a cara.

    Acho que estes tipos so completamente nazis. Pelo menos, so um bocadinho mais nazis do

    que eu esperava.

    Fim da Tarde.Conclu que o acampamento onde vim parar pago, esotrico e sanguin-

    rio. No vou ao debate de encerramento. O tema central a ressurreio de Hitler, quando

    regressar no seu Ovni de Messias.

    No conto repetir este episdio espanhol. Eniei-me na tenda, espero que seja noite. Algum

    roubou o anel da minha av da mochila. Pensava vend-lo, no sei como vou voltar sem

    dinheiro. Nunca vi tantas tatuagens. Ouo botas. Vou escapar pela zona mais densa das btulas.

    A certa altura da vida o jovem Oliveira comeara a sofrer, aparentemente, na opiniodo Inspector, de uma inadaptao quase congnita s coisas que o cativavam. Entusias-

    mava-se muito no incio, mas depois comeava a ver os defeitos, a som-los rapidamente

    na cabea, e terminava numa desiluso brutal que o obrigava a mudar de objecto. O

    carisma evaporava-se.

    bvio que desprezava a democracia partidria. Admirava a ordem, a autoridade, e

    at a fora bruta das ditaduras, incluindo o genocdio controlado nas circunstncias par-

    ticulares dum processo revolucionrio. Por vontade dele, o mundo inteiro podia muito

    bem ser governado por uma s pessoa e os opositores deviam estar calados, evitando

    guerras inteis. E se toda a gente ficasse na sua terra, no havia estrangeiros, s os neces-srios para limpar fossas, fazer cablagens de cobre, reparar estradas, etc.

    Mas Oliveira, em momentos inesperados, tambm revelara um corao triste e vul-

    nervel que o atacava por dentro e traio. Se calhar sofrera um grande desgosto, a

    hiptese esteve sempre em aberto e h boas pistas nesse sentido.

    Esforava-se muito durante meses, aprendia, imitava os lderes dum grupo mas,

    logo que se integrava, tendia a dispersar-se, acabando por perder sem glria o trabalho

    anterior. Com o tempo, ganhou m fama entre os que lidaram com ele e tiveram que

    aturar-lhe os estados de alma.

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    9/19

    9

    Por exemplo, numa semana acreditava na mensagem de Cristo e na piedade crist, e

    na outra chamava fraco a Jesus e culpava-o de corromper a humanidade a debilidade

    moral da misericrdia e da caridade, a praga de todos os homens serem iguais , isto ,

    de ser o causador da decadncia da civilizao, e acabava furioso com esse homem. Mas,quando acalmava, admitia, por sua vez, que o seu maior resultado, o catolicismo antiju-

    daico, se adaptara, ao longo da Histria, s virtudes de excelentes governos autoritrios

    e era uma bela doutrina para esqueleto dum Estado.

    Oliveira era um esprito muito influencivel, mas ainda mais teimoso, terrvel com-

    binao para uma personalidade.

    Segundo o amigo, podia ser quase esquizofrnico encontr-lo duas vezes na rua,

    com um intervalo grande pelo meio.

    Na segunda vez que algum o via, se calhar era j uma pessoa diferente...

    O amigo confirmou a mudana radical desencadeada pelo episdio espanhol: antesde Oliveira ir a Espanha, vira-o noite, na rua, de cabea rapada e bluso paramilitar. Ia

    beber nos bares com os companheiros, atacar um prdio de okupase varrer em seguida

    os maricas, pretos e hippiesdo bairro, por esta ordem. At assustava. Semanas depois, re-

    gressado de Espanha, deixara crescer o cabelo e um bigode de pontas finas e conversava

    de outra maneira, com inexplicvel respeito pelos outros e quase a medo. Voltara a ser

    um solitrio, a pensar nas coisas l s dele.

    No percebi o que lhe aconteceu. S notei que o nariz tinha levado uma porrada

    e parecia torto. Estava mais magro. Nunca mais o vi na vida, disse o amigo. Alis, naverdade j no ramos amigos, dvamo-nos muito bem em putos, mas preciso reco-

    nhecer que j no tnhamos nada a dizer um ao outro.

    Oliveira no gostava da confuso do mundo e tentava melhor-lo periodicamente.

    Tinha febres de doutrinao (num leque de escolhas estreito). Foi assim que um dia partiu

    sozinho para aquilo em que acreditou pela ltima vez. A misso do jovem Oliveira. E foi

    tambm por isso que acabou degolado e sem tripas, estendido numa laje, no alto da serra.

    Convm lembrar dois perodos de Oliveira que se podem considerar intermdios

    ou, melhor, preparatrios da tragdia.Vm descritos no caderno com frases e comentrios mais curtos do que o traumtico

    episdio espanhol. Talvez seja mudana de estilo, ou amadurecimento da linguagem, e

    no um sinal de que o seu esprito ardente arrefece. Repara-se nas maisculas, a reforar

    a majestade que confere a certas pessoas e ideias. Os lugares-comuns so mais empolga-

    dos, ganhando certa originalidade.

    Durante o Vero, recolhera. Vigilante de armazm noite, ginsio durante o dia.

    Preparava a primeira fase da viagem. A parte terica, de explorao.

    No estava a arrefecer. Pelo contrrio.

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    10/19

    10

    12 Outubro. Cheguei a Santa Comba tarde. Deixei a mochila na penso e passei pela casa,

    mas estava fechada. A duzentos metros j sentia o magnetismo do local. Do Homem que

    l viveu. Fiz a p os dois quilmetros at ao cemitrio. As lores estavam frescas, em cima

    da campa. Os ciprestes gelados apontavam o cu. O Divino ica ali. Mas vergavam com o

    vento, dominados por um Poder maior. Nesse intervalo das rvores, os derradeiros raios de

    sol acariciavam o descanso eterno do melhor ilho da Ptria.

    No passado, fui distrado por aparncias. Por folclores. Isso acabou. Sinto que a Nao

    Eterna que me vai habitar. A Ela pertence o meu Ser.

    Voltei com a lua, ao quarto da penso. Com a lua escrevo estas palavras.

    13 de Novembro. Regressei casa. Est quase em runas. Revoltante. Espreitei o grande jardim

    (vinha?) das traseiras, feito um silvado coberto de folhas mortas. Tambm a latada de uvas

    doces foi invadida por ervas trepadoras, hera daninha. Esta mantm-se verde todo o ano....

    As lores so roxas.

    Assinei a petio para o museu. Uma vergonha se no deixarem fazer o museu. E dizem-se

    democratas. Bom, so realmente democratas... Eu rachava-lhes democraticamente as cabeas

    de melancia. E atirava o recheio aos ces.

    Falei com um responsvel do movimento pelo museu. Amanh posso ver o esplio! Prevejo

    um dia extraordinrio. Vou esperar com calma.

    14 de Novembro. Mal dormi. Tentarei sintetizar o Tesouro que vi.

    A Glria de nove sculos de Imprio interrompida pelos traidores da Ptria. Perdeu-se tudo

    em to pouco tempo... Toquei no pincel da barba, a navalha, um conjunto de lminas, umrestaurador Olex a meio, a escova do fato. Est tudo catalogado em dezenas de caixotes de

    Sonasol e batata frita Pla-Pla. Dizem FRGIL. Tambm me senti frgil.

    Entre os objectos mais pessoais, s no pensam exibir as botas ortopdicas. E a maldita cadeira

    que fez cair o Presidente do Conselho. Que o matou no forte da Barra, ao bater com a nuca no

    cho. Essa cadeira preferida no est, para evitar mais sarcasmos. Alis, penso que a cadeira

    foi para abate logo na altura. E bem.

    Mas estava a cama de ferro de solteiro, as malas de carto no meio do p. O Professor

    dedicou a vida a todos ns, humildemente. Suportou um peso enorme, s com a sua F nos

    destinos da Nao. No pediu nada em troca.

    Peguei na caneta com que assinou leis do Imprio. Imagino que aquela caneta tambm mandou

    alguns comunas para as frigideiras de frica. Uma assinatura a tinta permanente para o

    campo de rias do Tarrafal, a derreter a moleirinha debaixo do zinco... Espero que sim.

    tarde, iz a descoberta dos jornais da poca. Interessante. Muito interessante, mesmo.

    algures neste dia, depois do almoo, que se encontra, segundo o Inspector, a

    chave, ou eixo, do destino de Oliveira. O momento em que descobriu a vocao final.

    Cansado, sentou-se e abriu ao acaso uma caixa de pastas com recortes de jornais dos anos

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    11/19

    11

    30 e 40 (sc. XX). O perodo de maior esplendor do Regime, como Oliveira escreve,

    com cerimnia. No meio dos recortes estavam vrias notcias de primeira pgina sobre a

    Feira Mundial de Nova Iorque, em 1939, dedicada ao Mundo do Amanh. A feira que

    anunciou um mundo de paz e prosperidade para todos os pases do mundo, com cidadesutpicas e verdes, a primeira transmisso em directo de televiso a cores e a primeira

    camisola de nylon, por exemplo.

    Oliveira ficou toda a tarde a ler. Nada estava catalogado e foi possvel descobrir

    os artigos que manuseou, pois deixou-os colados uns aos outros, num canto da caixa.

    Numa pgina, dava-se conta dos avanos da construo do Pavilho Portugus, e do

    xito que o comissrio portugus, Antnio Ferro, esperava da participao: o triunfo

    do modernismo portugus. Oficialmente, no entanto, o regime descrevia o local como

    o nosso modesto pavilho, cantinho de terra portuguesa na grande Amrica. Em

    passeio nos jardins de Belm, Ferro entrevistava o ditador sobre os limites da Esttica.Este respondia: Ainda hoje aos Estados autoritrios que a arte mais deve, porque so

    mais construtivos, porque procuram febrilmente deixar na nossa poca alguma coisa de

    durvel, de eterno.

    Ditador deve ser lido no seu lado positivo. Numa entrada do dirio, por sinal, o

    jovem Oliveira aprecia os termos: Ditador, ditadura, palavras bonitas que tentaram

    banir do lado bom do dicionrio. O fascismo traz-se no corao. Uma testemunha,

    presente no museu ao mesmo tempo que Oliveira (pediu para no ser identificada),

    contou tambm ao Inspector as exclamaes de alegria do jovem no momento em quedescobriu o retrato autografado de Mussolini. Era a moldura que o ditador portugus

    tinha na secretria, e s escondeu na gaveta quando a II Guerra Mundial comeou. Isto

    , acrescentou em nota lateral o Inspector, que se interessou a srio pelo assunto (dado

    o valor de prova na investigao da morte de Oliveira), quando de repente o Lago da

    Paz da Feira de Nova Iorque se transformou numa pardia: os pavilhes ao seu redor

    entraram em guerra uns com os outros e ningum se falava. O de Itlia parece que foi

    reempacotado. A Alemanha no, nem sequer foi convidada.

    Eu tambm tenho o meu retrato do Duce!, foi o que o rapaz gritou disse a tes-

    temunha.Em dois recortes mais antigos, de 1938, agrafados um ao outro, o Inspector

    encontrou o triunvirato sentimental perfeito, o caldo verde poltico no qual o indivduo

    em causa nadava. Trs fotorreportagens: na primeira, imagens de Hitler em Nurember-

    ga, perante 150 mil oficiais nazis, anunciando que a Alemanha atingira a auto-suficincia

    alimentar e militar. Uma sustica de archotes perfeita, melhor do que nos episdios

    espanhis..., escreveu o Inspector, com ironia, na nica vez em que se refere a Oliveira

    com menor respeito.

    Agrafada de Nuremberga, uma reportagem sobre Mussolini intitulada Como se

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    12/19

    12

    repousa e tonifica um dos homens que mais trabalham no mundo (Mussolini nada no

    lago de Como, de careca reluzente, Mussolini discursa em tronco nu em cima duma

    ceifeira mecnica, Mussolini dana com camponesa num bailarico popular).

    Finalmente, na coluna do lado, anunciava-se a abertura oficial do concurso da Aldeiamais Portuguesa de Portugal. No a mais bonita, mas a mais portuguesa. Portugal, de

    h um sculo para c, tem vindo a desaportuguesar-se, a trocar a sua vida antiga, simples,

    ingnua, graciosa, muito sua e distinta da dos outros povos, pelo modo de ser, pensar e

    agir do estrangeiro, nomeadamente do francs. A tarefa, agora, era reaportuguesar

    Portugal. Restitu-lo ao seu torro nativo, pureza dos seus costumes primitivos, posto

    de parte o receio de certos assustadios e derrotistas, tementes de que tal renacionaliza-

    o empecilhe o Progresso.

    O Inspector sublinhou a expresso pureza dos seus costumes primitivos. Mais um

    termo que surge ligado desgraa de Oliveira, tudo indica que sim.Mas a pista mais forte a do prprio dia da abertura de Nova Iorque, 1939. O Inspector

    fotocopiou o recorte e distribuiu-o pelos colegas. Quando se inaugurava a feira mundial

    que mostrava o Mundo do Amanh, as viagens interplanetrias e os robs cozinheiros,

    o Dirio de Notcias publicava, em caixa destacada na primeira pgina, a rubrica:

    COISAS QUE NO ESTO CERTAS

    primeira vista o caso parece no ter importncia de maior. Mas tem. E muita. Haver lobos

    em terras do Continente portugus uma vergonha. um sinal de primitivismo, de barbrie,

    de atraso, que no se compadece com as expresses do nosso progresso, com a situao de um

    pas como Portugal, pas civilizado, pas europeu.

    Esta notcia teve grande impacto no jovem. O Inspector acha que sem ela, lida no

    local e no ambiente em que estava, o indivduo em causa ainda hoje estaria vivo. Os

    colegas e superiores no acreditaram que um pargrafo de jornal, com quase setenta

    anos, pudesse causar aquilo, mas o Inspector fez uma pesquisa paralela nos jornais e

    Internet. Depressa descobriu a extraordinria coincidncia: a visita de Oliveira a SantaComba deu-se na altura em que surgiram notcias novas sobre o regresso dos lobos a

    Portugal. Setenta anos depois.

    Os pastores da Serra do Gers queixavam-se de graves prejuzos provocados por

    lobos. Os lobos j me comeram este ano mais de 20 cabras, e uma das vezes foi a 300

    metros da minha casa. Tem sido uma coisa horrvel, dizia um. Os incndios destruram

    300 hectares de mato no cimo dos montes. Os rebanhos desciam a serra e os lobos esfo-

    meados vinham atrs.

    Outro pastor, dono de 60 vacas, explicava que o Estado nunca paga a tempo as in-

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    13/19

    13

    demnizaes previstas pela lei: O lobo est a ser alimentado pelos nossos animais. uma

    espcie protegida, mas quem lhe d de comer somos ns.

    Segundo o Inspector, a pgina do dirio de Oliveira nesse dia explicava tudo.

    Escreveu:

    AINDA H LOBOS

    Entramos, por assim dizer, na fase prtica.

    Regressou capital. Ginsio de dia (ritmo mais intenso), vigilante noite. Aos fins-

    -de-semana, inscreveu-se num grupo de caa no Alentejo, que nunca identificou. Seguia

    sexta-feira noite, numa carreira de autocarro.

    Algumas pessoas interrogam-se agora como foi possvel o jovem ter praticado caasem licena e com armas de fogo no registadas. O Inspector no aprofundou o assunto,

    considerando-o secundrio. Mas concluiu que ou ele manteve laos com algum nos

    grupos extremistas, ou aprendeu o suficiente, enquanto por l andou, e tambm no

    submundo dos ginsios e seguranas, para comprar o material sem problemas. De repente,

    Oliveira surgiu com uma caadeira e, em breve, com uma carabina de caa grossa.

    Se calhar apresentou papis falsos no grupo de caa em que se inscreveu. Deixa-

    vam-no guardar as armas na pequena sede na provncia, debaixo da vitrina dos trofus.

    Presas com cadeado e corrente, enroladas no camuflado.Oliveira gostava dos companheiros de caa, quase todos bastante mais velhos. Depois

    dum almoo-convvio, mostrou respeito pelo passado deles.

    24 Fevereiro, Charneca do O. Almoo.

    Metade destes homens estiveram em frica. Lutaram pelo Portugal Africano, h mais de

    trinta anos. A caa traz-lhes boas memrias e temos tido conversas interessantes. Aqui no

    h problemas em falar e acho que coniam em mim, o da cidade, desde que inalmente

    matei duas perdizes no ar com dois tiros, no sbado passado... Um deles, a quem chamamo Gaio, mostrou-me cicatrizes das quatro balas dum turra, trs delas no peito. Mas disse

    que ao preto no sobrou carne nem para uma nica cicatriz. Que pegou na G3 e o desfez em

    cubinhos, em caldos knorr, em fondue.

    Por falar nisso, aqui comem muito. Esto um bocado gordos. Tambm bebem vinho e aguar-

    dente. Um careca anda revoltado porque h dias lhe tiraram a licena de caa, ele conduzia

    com os copos. Como se isso tivesse alguma coisa a ver, esta lei nova estpida, diz o homem

    a toda a hora. Durante um ano, vem s para ajudar na cozinha.

    Sei que no posso contar com eles directamente para a misso. Tm as suas vidas e no vo

    arrisc-las. Mas esto-me a ensinar tudo o que preciso: escolher o stio, camular-me, esperar

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    14/19

    14

    o alvo, apontar, acertar. Estou ansioso pela montaria ao javali, para a semana, que o mais

    parecido, pelo menos usa-se bala de carabina (calibre 300 ou 330) e ces.

    A minha maneira, claro, ter que ser muito diferente, ainda para mais sozinho e sem ces.

    3 de Maro, manh

    Ainal houve uma troca a meio da semana e o javali foi trocado por uma batida raposa,

    hoje e amanh. Em certa medida, imagino que tenha algo de parecido com os meus objecti-

    vos, como candeo que .

    Tarde

    Saiu-me uma porta debaixo dum sobreiro. minha frente, um terreno livre com ervas

    encharcadas, depois arbustos e, no cimo, um pequeno bosque, com algumas rochas de granito

    redondo. Com a ajuda do Gaio, aprendi a distinguir vrios pssaros e tentei v-los e escut--los antes de comear a barulheira dos batedores.

    minha frente estava uma milheirinha, atrs um chapim real, acho. Do lado esquerdo, na

    rvore, um cartaxo. Cantavam todos ao sol, sem ligarem guia, por cima de ns todos, a

    chamar o companheiro.

    Mas l chegou a berraria e as cornetas e as bombinhas de carnaval dos batedores, minha

    frente, atrs do bosque.

    As raposas so muito manhosas, se ouvem um tiro deitam-se no cho a fazerem-se de mortas.

    Vem muito mal: se o vento estiver a favor, so capazes de passar pelas nossas pernas sem

    darem por isso, se no nos mexermos, nem izermos barulho e no derem pelo cheiro.

    Ouvi vrios disparos distncia, mas no me calhou nenhuma. No turno seguinte, iz eu

    de batedor, com uma corneta de spray. Parecia que estava no futebol outra vez... Andmos

    quilmetros, at iquei com picos nas cuecas.

    No inal, camos ao todo cinco raposas. S no foram mais porque um caador falhou dois

    tiros seguidos. Foi gozado e disse que as deixou escapar de propsito porque ecologista.

    Observei as raposas penduradas na pickup, de cabea para baixo, antes de serem esfoladas.

    Pingavam sangue, com a lngua de fora.

    Uma delas era mesmo bonita... o plo dourado, o focinho curto e arrebitado. Pode-se dizer queera bela como uma mulher.

    O Inspector destacou logo este pargrafo estranho, com um sinal a lpis. Pressentiu

    que era relevante. Mais tarde, confirmou as suspeitas.

    4 de Maro:

    Aconteceu uma coisa um bocado chata. Hoje, na primeira batida, no meio da gritaria dos

    batedores, vi uma bola de plo ruivo a correr na minha direco. Fiquei muito quieto e apontei

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    15/19

    15

    devagar. Eram duas raposas coladas uma outra. Estavam a fazer aquilo e acabaram

    pegadas pelos coisos como ces. O macho puxava para o outro lado e com isto tropearam,

    enroladas minha frente. No tiveram hiptese. Nem me viram. Mas tive que dar mais dois

    tiros e ela, principalmente ela, fartou-se de gritar. Usei cartucho de chumbo 5.Toda a gente se riu muito.

    Que ideia estpida, senhor raposo e senhora raposa, fazer poucas-vergonhas logo de manh,

    hora da caada!

    O mais curioso desta histria, disse o ex-amigo polcia, foi o tom em que Oliveira

    a descreveu.

    Parece mau gosto, brutalidade, mas para mim no . Era a reaco tpica dele

    quando estava a sofrer a srio. Olhe, lembrou-se!...

    Dois ou trs anos antes, Oliveira tinha apanhado a namorada na cama com outro,um colega de escola dela. Foi uma cena muito parecida com essa das raposas, na minha

    opinio... e a sorte dos dois foi ele no estar armado. Era ruiva, linda, e estava farta dele.

    O jovem abandonou a casa dos pais e mudou para o outro lado da cidade. Nunca

    mais o viram com mulheres.

    Na noite da caada, Oliveira despediu-se dos companheiros e no voltou.

    Noite:

    Garantem-me que os lobos do Sul acabaram h uns 40 anos. Parece que h menos tempo um

    mido viu um lobo nestas terras, debaixo dum castanheiro, a vigiar um rebanho de borregos.

    Mas esse ou veio de Espanha, ou foi engano, talvez um co grande. Aqui j no h lobos. Vou

    tatuar um no brao.

    Despediu-se do emprego nessa semana.

    No se sabe o dia em que chegou ao Gers. Ter acampado primeiro junto da

    barragem de Vilarinho das Furnas. No dirio, refere as paredes mais altas da aldeia-

    -fantasma, afogada pela barragem, erguendo-se da gua.Depois partiu para a zona do pastoreio, entre a Peneda e o Gers.

    Averiguaes junto dos pastores confirmaram que, ao chegar zona, Oliveira no

    foi bem acolhido, porque ningum o conhecia e por outras razes: um pensou que era

    mais um ecologista fantico, procura de venenos e armadilhas de ferro, os horrveis

    ganchos que partem as patas dos bichos, algo que negaram utilizar; outro julgou que

    fosse um representante do Governo. Fiz-lhe a minha queixa dos pagamentos atrasados

    e dos animais que me comeram na serra, ainda na semana passada me foi mais uma

    cabra, mas ele logo me disse que estava ali para outra coisa.

    Vou aos lobos, mas antiga, foi o que ele me disse. Tinha o focinho dum lobo

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    16/19

    16

    desenhado no brao. Na altura no percebi nada.

    Ou fez que no percebia, acrescentou o Inspector. A polcia acredita que Oliveira

    fez um acordo com um dos pastores, usando o sentido prtico j revelado na histria da

    carabina (nova, mas sem nmeros de srie visveis ou outras formas de localizao. Nema fbrica em Itlia descobriu o lote exacto).

    Oliveira omite pormenores, mas teve orientao no terreno.

    1 de Abril, Gers.

    Andei uns quarenta quilmetros a p, por azinhagas. Montei a minitenda perto dum riacho e

    o posto de vigia num ponto alto. Pus um cobertor numa placa lisa de basalto, o que me permite

    disparar deitado. Cortei vrios ramos de giestas para me esconder.

    Ainda no vi nada, s dois ou trs cavalos selvagens no caminho, nas pastagens mais frescas,aves de rapina no cu e coelhos no cho. No os posso caar, chamaria demasiado a ateno.

    E afugentava-me a presa.

    No farei fogo noite, nem comerei nada quente, para no cheirar distncia. Enterro as

    latas. Creio que vou ter mais hipteses ao cair da noite. Trouxe culos de viso nocturna. Vejo

    tanto como eles, agora, mesmo com a lua nova. No contavam com isso...

    Do meu posto de vigia controlo um rebanho de cabras.

    Se aqui no funcionar, coloco a hiptese de usar um fojo que ainda existe, segundo me

    disseram, aqui perto, a norte. uma espcie de curral grande num buraco, uma arena

    fechada de rochas altas, granitos e xistos, que os pastores construram no passado. S h

    uma entrada, com uma laje colocada num ngulo de maneira que um lobo que entra j no

    consegue saltar para fora.

    O isco do lobo era, antigamente, uma cabra ou borrego doente ou ferido.

    3 de Abril.

    Hoje ouvi uivos. Corri para a rocha mas tive uma surpresa. Eram ces. Tinham-me dito que

    h aqui matilhas de ces abandonados h tanto tempo que icaram selvagens. Chamam-lhes

    ces assilvestrados. Parecem perigosos. Mas no passam de ces.

    4 de Abril

    Vi o primeiro lobo! Era enorme, cinzento, com a lngua esticada e vermelha como um leno

    molhado. As cabras desataram numa berraria e a fugir monte abaixo e eu iquei paralisado,

    a ver, deixando-o desaparecer, com a carabina ali to perto! Tenho de me concentrar. Que

    estpido desperdcio! Nunca percebi tipos que vo s observar os bichos, sem levarem nada

    para casa.

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    17/19

    17

    6 de Abril

    O lobo de ontem devia ser um solitrio. Gosto desses. S no h espao nesta serra para os dois.

    Os solitrios so lobos jovens expulsos pelo macho dominante da alcateia. S o chefe tem

    direito a procriar com a sua companheira, tambm a nica que tem lobitos (ou lobachos). Atserem proscritos, e tentarem fundar ou entrar noutra alcateia, os solitrios so humilhados,

    mordidos, todos os companheiros os tratam mal. E todos os falhanos na caa so atribudos

    ao desgraado, mesmo quando outro lobo que no cumpriu a funo no cerco presa. Como

    em tudo, neste mundo desatinado, tambm existe um lobo expiatrio.

    15 de Abril

    Continuo vigilante, mas cansado. De manh, acordo molhado da geada. Os dias passam.

    Estes animais comem ou no?! Onde andam eles? Comeo a perder a esperana de encontraruma alcateia em movimento. Vi trs javalis, mas eles j no caam javali. Para apanhar um

    animal to grande, e deit-lo ao cho, so precisos pelo menos sete lobos. As alcateias aqui

    tm no mximo quatro.

    Tarde

    Descobri o fojo. grande e parece em bom estado, s que est cheio de mato.

    16 de Abril

    Sa a meio da noite, depois de escutar uivos ao luar. Aventurei-me num pequeno vale de cas-tanheiros, numa direco que ainda no tinha experimentado. Tenho esperana de que seja

    um ninho, um covil, mas pouco vi. S o brilho de quatro olhos distncia. Estou na tenda.

    Volto amanh.

    Sou um soldado na trincheira da civilizao.

    17 de Abril

    Encontrei o covil! Afugentei, com um tiro falhado, dois lobos que o guardavam. Mas depois

    encontrei a mea. Estava prenha e mostrou-me os dentes. A bala era mais explosiva doque eu pensava. Uma patinha de lobito saiu para fora da barriga, ainda a mexer. Havia

    outros cachorros l dentro. Vim-me embora o mais depressa que pude e cortei-me na mo,

    deitou sangue.

    Agora tenho que apanhar o lobo chefe... ele j deve ter o meu cheiro. No saio daqui sem

    tratar do assunto.

    18 de Abril.

    Apanhei um cabrito coxo. Amanh vou p-lo dentro do fojo, e espero. Dizem que s vezes

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    18/19

    18

    basta um tiro. No vou dar hipteses. Se o lobo icar ferido, pode mesmo assim saltar para

    fora, acossado e cheio de dio. O caador passa a caado...

    Aqui termina o dirio de Oliveira, cujo corpo foi encontrado uma semana depois,j descarnado em grande parte. No brao direito, sobrava metade da tatuagem do lobo.

    Aparentemente, disparou mais um tiro de carabina, que se encontrava a alguns metros

    do cadver. O fmur direito de Oliveira estava rachado, com formigas. possvel que

    tenha escorregado, o ferimento parece resultado duma queda. A questo seria aprofun-

    dada no relatrio final do Inspector.

    A descoberta da carcaa da loba grvida, com quatro fetos no ventre, foi muito

    lamentada pelos servios florestais. A bala era da carabina de Oliveira, assim como a

    cpsula de uma segunda cada no cho, segundo a balstica.

    Fez-se o inqurito aos pastores da serra. Julgavam que o rapaz tinha voltado a casa.Afirmaram no ter nada contra os lobos, mas que no podem ser eles a pagar-lhes a

    comida e os estragos. Nisso parecem ter razo, porque as indemnizaes demoram meses

    a chegar. Ainda para mais, muitas vezes conclui-se que a morte do animal foi provocada

    no por lobos, mas por ces assilvestrados, caso em que no h lugar indemnizao.

    Para a autpsia de Oliveira chamou-se, alm de um perito forense, um tcnico vete-

    rinrio. Levou tempo.

    O relatrio do Inspector comea num tom formal, mas termina numa espcie de

    desabafo. Depois de uma investigao indita, a surpresa:A anlise dos ferimentos mostra que o indivduo em causa no foi atingido por arma

    de fogo nem sofreu, provavelmente, golpe de arma branca. A hiptese de homicdio ou

    suicdio violento foi descartada, em princpio.

    Mas tudo indica estar errada a primeira hiptese de ter sido um lobo, ou lobos.

    O lobo tem uma morfologia de crnio e mandbulas nica, cujo poder de dentada

    de 60 quilos por centmetro quadrado. Consegue triturar ossos com uma s dentada,

    incluindo pescoo, para aceder ao tutano e medula. A forma como morreu a vtima,

    com a jugular rasgada e toda a zona cervical mastigada, em golpes menos violentos mas

    persistentes, e muito numerosos, aponta para dentes de um animal, ou animais, com umpoder de dentada de 20 quilos por centmetro quadrado, no mximo.

    Tal deixava em aberto a hiptese javali. Mas o ADN esclareceu.

    Os plos e saliva encontrados nas comissuras das feridas, incluindo na cavidade

    ventral (vulgo barriga), de onde haviam sido extrados e devorados os intestinos, confir-

    maram, sem dvida, que a morte de Oliveira foi, tristemente, consequncia dum ataque

    de vulgares ces domsticos, abandonados pelo homem.

    [email protected]

  • 7/24/2019 O Progresso Da Humanidade - Rui Cardoso Martins

    19/19

    19

    (Publicado originalmente na revista Fices,em 2007)

    Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

    Para aceder aos restantes contos visite: Biblioteca Digital DN

    http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspxhttp://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx