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O público e o privado em Hannah Arendt Marco António Antunes Universidade da Beira Interior Índice 1 Introdução ............. 1 2 Grécia Antiga: a génese da esfera privada e da esfera pública .... 2 2.1 A esfera privada ......... 2 2.2 A esfera pública ......... 3 3 O social e o político ........ 3 4 A promoção do social ....... 5 5 A esfera pública: o comum .... 8 6 A esfera privada: a propriedade . . 10 7 O social e o privado ........ 12 8 A localização das actividades hu- manas ............... 13 9 Bibliografia ............ 14 Resumo As origens da acção remontam à polis grega, espaço de acção política, através da plurali- dade de opiniões. Em As esferas pública e privada Arendt pretende realizar uma gene- alogia da acção política sublinhando a oposi- ção entre a esfera daquilo que é comum (koi- non) aos cidadãos - a esfera pública da polí- tica - e a aquilo que lhes é próprio (idion) ou do domínio da casa (oikos) – a esfera pri- vada. 1 Introdução Em A Condição Humana, Hannah Arendt te- matiza os três conceitos fundamentais que constituem a génese da sua antropologia filosófica: trabalho, produção e acção 1 . Quanto ao trabalho, ele é necessário à so- brevivência biológica e efectiva-se na acti- vidade do animal laborans, o qual a partir de um estádio primitivo de existência vivia isolado dos outros seres humanos regendo- se apenas pelos ditames fisiológicos da vida animal. Em relação à produção, ela é o está- dio do homo faber que produz objectos durá- veis (técnicas) partilhando o seu saber de fa- brico com outros homens. A acção é a carac- terística matricial da vida humana em socie- dade. Os homens agem e interagem uns com os outros no seio de uma vida política em so- ciedade. Só a acção é a única característica da essência humana que depende exclusiva- mente da contínua presença de outros ho- mens. Arendt enquadra o trabalho (labor) e a produção (work) no domínio da esfera pri- vada, enquanto a acção está exclusivamente 1 - A contemplação é o último elemento con- ceptual da antropologia filosófica de Hannah Arendt. Consiste na relação do homem com o mundo físico na tentativa de apreender leis eternas semelhantes às leis da Matemática e da Física. Este conceito é tema- tizado em The life of the spirit. Compreende reflexão filosófica e religiosa.

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O público e o privado em Hannah Arendt

Marco António AntunesUniversidade da Beira Interior

Índice

1 Introdução. . . . . . . . . . . . . 12 Grécia Antiga: a génese da esfera

privada e da esfera pública. . . . 22.1 A esfera privada. . . . . . . . . 22.2 A esfera pública. . . . . . . . . 33 O social e o político. . . . . . . . 34 A promoção do social. . . . . . . 55 A esfera pública: o comum. . . . 86 A esfera privada: a propriedade. . 107 O social e o privado. . . . . . . . 128 A localização das actividades hu-

manas . . . . . . . . . . . . . . . 139 Bibliografia . . . . . . . . . . . . 14

Resumo

As origens da acção remontam à polis grega,espaço de acção política, através da plurali-dade de opiniões. EmAs esferas pública eprivadaArendt pretende realizar uma gene-alogia da acção política sublinhando a oposi-ção entre a esfera daquilo que é comum (koi-non) aos cidadãos - a esfera pública da polí-tica - e a aquilo que lhes é próprio (idion)ou do domínio da casa (oikos) – a esfera pri-vada.

1 Introdução

EmA Condição Humana, Hannah Arendt te-matiza os três conceitos fundamentais queconstituem a génese da sua antropologiafilosófica: trabalho, produção e acção1.Quanto ao trabalho, ele é necessário à so-brevivência biológica e efectiva-se na acti-vidade do animal laborans, o qual a partirde um estádio primitivo de existência viviaisolado dos outros seres humanos regendo-se apenas pelos ditames fisiológicos da vidaanimal. Em relação à produção, ela é o está-dio do homo faber que produz objectos durá-veis (técnicas) partilhando o seu saber de fa-brico com outros homens. A acção é a carac-terística matricial da vida humana em socie-dade. Os homens agem e interagem uns comos outros no seio de uma vida política em so-ciedade. Só a acção é a única característicada essência humana que depende exclusiva-mente da contínua presença de outros ho-mens. Arendt enquadra o trabalho (labor) ea produção (work) no domínio da esfera pri-vada, enquanto a acção está exclusivamente

1 - A contemplação é o último elemento con-ceptual da antropologia filosófica de Hannah Arendt.Consiste na relação do homem com o mundo físicona tentativa de apreender leis eternas semelhantes àsleis da Matemática e da Física. Este conceito é tema-tizado emThe life of the spirit. Compreende reflexãofilosófica e religiosa.

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no plano da esfera pública (política). O pri-vado é o reino da necessidade. O públicoé o reino da liberdade. A acção (política)nunca é equivalente a um trabalho necessá-rio à sobrevivência biológica ou à produçãotécnica. A acção é uma actividade comu-nicacional mediada pela linguagem da plu-ralidade de opiniões no confronto político eefectivada através da retórica.

Para Arendt, a evolução da sociedade, aassimilação da acção pelo social privado, ouniformismo das actividades humanas e oconsequente conformismo demonstram bematé que ponto se perdeu a distinção entre apolis (esfera pública) e o oikos/idion (esferaprivada). A sociedade actual representa a ex-tensão da esfera privada doméstica ao espaçopúblico da política. Este aspecto central évisível a partir da Modernidade verificando-se a assimilação da igualdade, outrora cir-cunscrita ao espaço político, pela esfera pri-vada. A igualdade moderna e contemporâ-nea rejeita a praxis (acção) e a lexis (dis-curso) constituintes da comunidade política,valorizando o conformismo e uniformizaçãodo comportamento. Consequentemente, ohomem reduz-se a um produto quantitativocondicionado, isto é, o objecto primordialdas análises cientifistas das ciências sociaise em particular do behaviorismo, economia"matemática"e estatística.

Arendt afirma que o agir comunicacio-nal da esfera política aparece absorvido pe-los interesses privados da intimidade. Destemodo, a esfera social deixa de estar sub-metida à hierarquia do Poder. A políticaperde a personalidade da democracia gregatransformando-se numa vontade geral buro-crática. A conservação da vida e a desigual-dade inerentes à esfera doméstica passam ater interesse para a acção política. Do mesmo

modo, as teorias políticas do Absolutismoacentuavam que o Estado, na figura do Rei,deveria assegurar o direito de propriedade ea acumulação de riqueza dos cidadãos. Con-trariamente a estas concepções as doutrinassocialistas, desde Proudhon a Marx, defen-dem a abolição da propriedade privada e adistribuição da riqueza num sistema de pro-dução cooperativista de base comunitária.Ora, Arendt embora aceite o princípio revo-lucionário marxista, segundo o qual a forçade trabalho é a origem da propriedade rejeitaos regimes socialistas e em particular as te-ses de Marx referentes à ditadura do proleta-riado, prevendo o perigo do totalitarismo damassa proletária.

2 Grécia Antiga: a génese daesfera privada e da esferapública

2.1 A esfera privadaÉ a esfera da casa (oikos), da família edaquilo que é próprio (idion) ao homem.Baseia-se em relações de parentesco comoa phratria (irmandade) e a phyle (amizade).Trata-se de um reino de violência em que sóo chefe da família exercia o poder despóticosobre os seus subordinados (a sua mulher, fi-lhos e escravos). Não existia qualquer dis-cussão livre e racional. Os homens viviamjuntos subordinados por necessidades e ca-rências biológicas (por exemplo: alimenta-ção, alojamento, segurança face aos inimi-gos). A necessidade motivava toda a activi-dade no lar: o chefe da família proporcio-nava os alimentos e a segurança face a ame-aças internas (por exemplo: revoltas de es-cravos) e externas (outros senhores que qui-

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sessem destruir uma dada casa e família), amulher era propriedade do chefe da famíliae competia-lhe procriar e cuidar dos filhos,os escravos ajudavam o chefe da família nasactividades domésticas. Na esfera privada,existia a mais pura desigualdade: o chefe dafamília comandava e os outros membros dafamília eram comandados. O chefe da famí-lia não era limitado por qualquer lei ou jus-tiça. Assegurando a manutenção da ordemdoméstica, exercia um poder totalitário so-bre a vida e a morte. Na esfera privada, ohomem encontrava-se privado da mais im-portante das capacidades - a acção política.O homem só era inteiramente humano se ul-trapassasse o domínio instintivo e natural davida privada.

2.2 A esfera públicaÉ a esfera do comum (koinon) na vida polí-tica da polis. Baseia-se no uso da palavra eda persuasão através da arte da Política e daRetórica. Para Aristóteles, a esfera públicaera o domínio da vida política, que se exerciaatravés da acção (praxis) e do discurso (le-xis). Os cidadãos exerciam a sua vida polí-tica participando nos assuntos da polis. Ven-cer as necessidades da vida privada consti-tuía a condição para aceder à vida pública.Só o homem que tivesse resolvido todos osassuntos da casa e da família teria disponibi-lidade para participar num reino de liberdadee igualdade sem qualquer coacção. Todossão iguais (não há desigualdade de coman-dar e de ser comandado) e todos são livresem expressar as suas opiniões. O poder dapalavra através da persuasão (a prática da re-tórica) substitui a força e a violência da es-fera privada. Os cidadãos livres e iguais daesfera pública da polis opõem-se, assim, às

relações de dominação e de propriedade so-bre os subordinados do oikos2 .

Deixar o lar e a família manifestava amais importante virtude política - a coragem.No oikos, o homem defendia a sua sobrevi-vência biológica. Na polis, o homem tinhade ter coragem para arriscar a própria vidalibertando-se do servilismo do amor à vida.A vida boa, que Aristóteles identificava coma acção política, significava a libertação dohomem face às esferas do animal laborans edo homo faber efectivando-se através da vir-tude da coragem e da eudaimonia (vida boa).Ter coragem era a condição para aceder àvida política afirmando uma individualidadediscursiva e contrariando a mera socializaçãoimposta pelas limitações da vida biológicaprivada. Ser cidadão da polis, pertencer aospoucos que tinham liberdade e igualdade en-tre si, pressupunha um espírito de luta: cadacidadão procurava demonstrar perante os ou-tros que era o melhor exibindo, através dapalavra e da persuasão, os seus feitos sin-gulares, isto é, a polis era o espaço de afir-mação e reconhecimento de uma individua-lidade discursiva.

3 O social e o político

Hannah Arendt salienta que existe uma rela-ção mútua entre a acção humana e vida emcomum na comunidade ou sociedade. Este

2 - Apesar da essência pública da política, Arendtafirma que a linha divisória entre a esfera privada e aesfera pública desaparece ocasionalmente em Platãoe Aristóteles. Para Platão, as experiências da vida pri-vada podem ser transferidas para a vida na polis. EAristóteles, seguindo Platão, defendeu que a origemhistórica da polis estava ligada à superação das neces-sidades do oikos e somente a finalidade última da vidaboa na polis (a felicidade) transcende a insuficiênciabiológica da casa e da família.

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facto, é um dos motivos da incorrecta tradu-ção da expressão animal político, formuladapor Aristóteles, como animal social. ParaAristóteles, o homem é um animal político.Todavia, os tradutores e comentadores deAristóteles, desde Séneca até S. Tomás deAquino, traduziram incorrectamente animalpolítico por animal social. Esta substitui-ção do político pelo social é a consequên-cia da concepção latina da sociedade comouma sociedade da espécie humana, na qualos homens se associam para viver juntosem função de fins específicos (por exemplo:para dominar os outros ou para cometer umcrime). Deste modo, existe uma diferençasubstancial entre a polis dos gregos como es-paço de afirmação da política, através da li-berdade e igualdade dos cidadãos, e a socie-dade dos romanos como um espaço de domi-nação do poder imperial sobre os cidadãos erestantes súbditos do Império Romano.

Arendt salienta as posições de Platão eAristóteles, para os quais o termo social sig-nificava apenas a vida em comum das espé-cies animais, enquanto limitação da vida bi-ológica. A sociedade era uma característicabiológica do animal humano e de outras es-pécies animais. A política tanto para Platão,como para Aristóteles era a única caracterís-tica essencialmente humana. Para Arendt, oanimal político de Aristóteles significava so-mente a existência de uma característica ma-tricial e única da condição humana, que con-sistia na acção política dos cidadãos da polisnum espaço de liberdade e igualdade. Me-diante a política, o homem tinha a possibi-lidade de escapar à organização instintiva ebiológica da casa e da família.

Paralelamente à incorrecta tradução deanimal político como animal social, os lati-nos traduziram erradamente a noção de ho-

mem como um ser vivo dotado de fala, for-mulada também por Aristóteles, como ani-mal racional. Para Arendt, Aristóteles queriaapenas indicar não a faculdade racional defala, mas a capacidade dos cidadãos da polisconfrontarem opiniões através do discurso.Contrariamente, todos os que viviam fora dapolis (mulheres, crianças, escravos e bárba-ros) estavam impedidos não da faculdade defalar, mas do poder de discursarem publica-mente uns sobre os outros confrontando opi-niões.

Para Arendt, a confusão entre o social eo político decorre da moderna concepção dasociedade, a qual encara a política como umespaço de regulação da esfera privada. OEstado nacional tende a regular a vida do-méstica mediante uma "economia nacional","economia social"ou "administração domés-tica colectiva". Actualmente, a economia po-lítica do Estado nação efectiva-se no con-trolo do poder estatal sobre a família e a ad-ministração doméstica do lar. Trata-se de umprocesso contraditório, pois originariamentea economia pertencia ao domínio do chefe dafamília e a política à cidadania na polis.

A esfera privada da família, fenómenopré-político na Grécia Antiga, transformou-se num "interesse colectivo"controlado pelomonopólio de um Estado soberano, conse-quentemente a esfera privada e a esfera pú-blica correlacionam-se reciprocamente. Naépoca contemporânea, Marx recebeu dosmodernos economistas políticos a ideia quea política é uma função da vida social e opensamento, o discurso e acção são superes-truturas dependentes da infra-estrutura eco-nómica. Para Arendt, esta situação anula adualidade clássica entre esfera privada e es-fera pública.

Porém, durante a Idade Média, ainda exis-

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tia uma oposição, embora enfraquecida ecom uma localização diferente, entre a es-fera privada do social e a esfera pública dopolítico. Após a queda do Império Romano,o poder religioso da Igreja Católica forneciaum substituto para a cidadania anteriormenteoutorgada pelo governo municipal. Mas pormais "profana"que se tornasse a Igreja Cató-lica existia uma comunidade de crentes uni-dos pela fé em Cristo. O sagrado monopo-lizava a vida social e a vida política. Como feudalismo, verifica-se a absorção da es-fera privada dos vilãos e dos servos da glebapelo senhor feudal que centraliza o poderna esfera pública do feudo3 (que incluía ocastelo, a vila e as propriedades dos vilãos).O senhor feudal administrava a justiça apli-cando as leis na esfera privada e na esfera pú-blica. Comparativamente, o chefe de famíliada Grécia Antiga só conhecia a lei e a justiçana polis. Na esfera privada da casa e da famí-lia, isto é, nas primeiras formas de efectiva-ção do social, o chefe da família grega podiadominar os escravos, a mulher e as criançassem qualquer limite judicial ou legal.

A transferência dos moldes familiares (eprimeiramente sociais) da esfera privadapara a esfera pública institucional manifesta-se nas corporações profissionais da IdadeMédia - os guilds, confréries e compagnons- e mesmo nas primeiras companhias comer-ciais onde estava presente, desde a origemetimológica, a ideia de uma partilha de bensmateriais privados (tais como o pão e o vi-nho) no domínio público. Na Idade Média, osignificado da expressão "bem comum"nãoestava ligado à política. Mas apenas à re-ciprocidade de interesses materiais e espi-

3 - Habermas (1984: 13-41) salienta que publicarsignificava requisitar para o senhor.

rituais entre os vários indivíduos. Estes sópodiam conservar a sua individualidade pri-vada quando um deles se encarregava de ga-rantir os interesses partilhados pela comuni-dade. A existência desta situação explica-sedevido a uma mentalidade cristã, que reco-nhecia o bem comum extensível à vida pri-vada e à vida pública4 . Deste modo, se-gundo Arendt o pensamento medieval, queconcebia a política e a família subordinadosao fim divino, foi incapaz de compreender oabismo originário entre a esfera privada e aesfera pública.

Arendt assegura que Maquiavel foi oúnico autor pós-clássico que reconheceu aseparação entre a esfera privada e a esferapública. EmO Príncipe, Maquiavel defende,tal como os gregos, a coragem como umaqualidade política essencial. E procura res-taurar a identidade clássica da política atra-vés da figura do Condottieri (mercenário), oqual passa da privacidade das circunstânciasnaturais existentes em todos os indivíduospara o domínio público do Principado.

4 A promoção do social

Para os gregos, não existia um conceito uní-voco de social. O social situava-se tanto naesfera privada das relações da casa e da famí-lia, como na esfera da participação política.Arendt assinala um factor fundamental quecontribuiu para a promoção do social: a su-bordinação da esfera pública aos interessesprivados dos indivíduos. Consequentemente,os meios deste processo foram: o desenvol-

4 - Nas primeiras comunidades cristãs "Todos oscrentes viviam unidos e possuíam tudo em comum.Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiropor todos, de acordo com as necessidades de cada um.(...)"(Act. 2, 44-45).

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vimento das actividades artísticas privadas(romance, a música e a poesia); a estereoti-pização do comportamento no conformismoda sociedade (vontade geral, convenções so-ciais dos salões, burocracia, economia, es-tatística, behaviorismo, cientismo, "mão in-visível", multidão numerosa, doutrinas so-cialistas e comunistas enquanto coacção dacomunidade totalitária, sociedade de mas-sas, promoção do labor a interesse público).Arendt critica a estereotipização conformistados comportamentos sociais, que negam aespontaneidade da opinião. Esta tendênciaverifica-se desde o século XVIII até à actua-lidade. O conformismo da sociedade adoptaum duplo posicionamento: o político consti-tui o receptáculo dos interesses domésticos enas relações sociais desaparece a pluralidadeda discussão política em virtude de uma von-tade geral normalizada. Ora, para Arendt apolítica e a história são o campo da multi-plicidade de acções possíveis devendo o ho-mem abolir o conformismo e exercitar umavida activa pluralista.

A passagem das preocupações da esferaprivada da família e da casa para o domí-nio da política anulou a oposição clássica en-tre a polis e o oikos. A esfera privada ac-tual teve a sua origem nos últimos períodosdo Império Romano. Numa época em quedevido à desagregação do Império os cida-dãos procuravam afirmar os seus direitos pri-vados (nomeadamente o direito de proprie-dade) no espaço público como resposta aosataques dos bárbaros. Na modernidade, oprivado opunha-se à esfera da sociabilidade eda esfera política situando-se no domínio doindividualismo. No século XVIII, Rousseaudefendeu que os sentimentos privados deve-riam ser preservados da esfera comum dosocial. O desenvolvimento das actividades

artísticas privadas nomeadamente a música,a poesia e o romance aprofundaram a rela-ção entre a sociabilidade e a individualidade.Os românticos, Rousseau e Tocqueville re-agiram contra a tentativa da sociedade ni-velar o individualismo negando a discussãocrítica, pois no fundo o intimo privado e asociedade constituíam formas de valorizaçãoda subjectividade individual. Na perspec-tiva de Rousseau, os homens agem semprenuma vontade geral que unifica a opinião pú-blica, mesmo que inicialmente tenham opi-niões divergentes. Antes da desintegração dafamília nuclear, que ocorreu principalmentea partir do século XVIII, o chefe da famí-lia exercia um poder despótico controlandoos membros da família e do lar evitando adesunião e afirmando uma opinião única de-tentora do interesse comum. O modelo degoverno do chefe da família foi adoptado naesfera política pelo poder despótico do Rei.Mas posteriormente com o liberalismo [e osideais da Revolução Francesa] o poder po-lítico transforma-se numa "espécie de go-verno de ninguém", isto é, numa vontade ge-ral consubstanciada no espaço público bur-guês dos salões, cafés e clubes, bem comona democracia parlamentar. Neste contexto,a burocracia assume um controlo despóticonas relações sociais uniformizando o com-portamento humano perante a administra-ção pública. Arendt salienta implicitamenteque este "governo de ninguém"significa ape-nas uma vontade geral podendo conduzir aum poder tirânico na repressão das mino-rias. Deste modo, não existe ausência de go-verno, mas um poder desligado da pessoa doRei e concentrado numa vontade geral uni-tária. Esta última aparece efectivada inicial-mente na tentativa de democracia directa (noperíodo da Revolução Francesa) e posterior-

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mente na democracia representativa. Nesta"normalização"da conduta social, Rousseaudefende a existência de convenções predefi-nidas nos salões da alta sociedade do séculoXVIII.

Do mesmo modo, também na sociedadede classes do século XIX e mais recente-mente no século XX com a sociedade demassas a acção individual de afirmação deuma racionalidade discursiva foi absorvidapor uma sociedade unitária, que uniformi-zou o privado e o público através da supre-macia do social. Contrariamente ao modelogrego de oposição entre o oikos e a polisdefendido por Arendt, a política passou apreocupar-se com a esfera privada, ou seja, osocial privado adquiriu um estatuto de acçãopolítica. A economia, anteriormente ligadaao lar transformou-se em economia políticadoméstica ao serviço do conformismo pri-vado. A estatística, instrumento da nova eco-nomia tende, a reduzir o homem a um pro-duto quantitativo remetendo a história paraum conjunto de leis automáticas objectivasque não podem ser contrariadas pela plura-lidade de opiniões subjectivas. O behavio-rismo reduz a actividade humana a estímu-los e respostas condicionados previamentedefinidos. O cientismo da sociedade, queestá na base da economia matemática, dobehaviorismo, da estatística e mesmo da bu-rocracia, pressupõe uma uniformização darotina do quotidiano e a transformação dasciências sociais em "ciências do comporta-mento"[matemático].

Arendt critica o despotismo das multidõesnumerosas defendendo o modelo político dapolis grega em que a acção política era indi-vidual e estava restrita aos cidadãos. Nesteponto, podemos colocar uma questão: Comosó os cidadãos tinham acesso à vida polí-

tica não haveria o perigo de uma elite deeruditos restringir a liberdade de discussãodos outros indivíduos? Arendt afirma quemaior população significa maior probabili-dade do social monopolizar a totalidade daesfera pública. Mas se aceitarmos a legitimi-dade de uma classe política restrita não exis-tirá a possibilidade de um totalitarismo so-fisticado da minoria da classe dirigente, umaespécie de meta-poder desligado dos proble-mas reais dos indivíduos?

Os economistas liberais defenderam quea base da economia seria uma harmonia deinteresses na comunidade, uma "mão invisí-vel"que colectivamente regularia os interes-ses individuais. Contrariamente, Marx afir-mou que a sociedade é a história da luta declasses e que só na esfera comunista o ho-mem seria igual ao seu semelhante comple-tamente livre e sem Estado. Para Arendt, em-bora Marx na revolução do proletariado re-cuse o conformismo, a sociedade comunistarecai num novo conformismo em que a li-berdade individual é absorvida pela vontadeda comunidade. Na perspectiva de Arendt,Marx errou ao prever que somente uma revo-lução poderia provocar a decadência do Es-tado e que a sociedade comunista significariaum reino de liberdade. Ora para Arendt, oEstado enquanto espaço político deve resis-tir à uniformização do social pelos interes-ses privados e o "reino de liberdade"somentepode existir no confronto das opiniões públi-cas.

Arendt lamenta que actualmente a condutasocial da sociedade de massas, no seu es-forço de promover o político e o privado auma uniformização do comportamento con-sumista, tenha conduzido ao conformismodo social negando a pluralidade da discus-são. De facto, na sociedade de massas o ho-

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mem garante a sua sobrevivência no despo-tismo de uma única opinião desprovida dadiscussão racional pela acção política da pa-lavra e da persuasão. Para Arendt, esta situ-ação pode conduzir ao totalitarismo, à des-truição da política e da própria humanidade.A sociedade de massas é guiada pela activi-dade do labor. Na sociedade massas, o ani-mal laborans adquiriu o estatuto de assala-riado (ou em termos marxistas proletário),procura apenas a subsistência da sua vida eda sua família pelo mero consumo, interessa-se pelo trabalho material naturalmente ad-mitido longe de qualquer produção técnica,acção política ou vida contemplativa. Destemodo, a promoção social pelo labor condu-ziu o espaço público da política a um pro-cesso de afirmação da sobrevivência bioló-gica. Os condicionalismos da vida orgânicatransformaram-se em interesse social e polí-tico. A divisão do trabalho, enquanto mul-tiplicidade da manipulação, foi o modo deefectivação da vida orgânica do animal labo-rans, isto é, o trabalho adquiriu excelência(uma virtude classicamente ligada à esferapolítica) tal como se verifica nas teorias mar-xistas e leninistas que valorizam a condiçãolaboral do proletariado, e consequentementea sua produção material, como matriz do in-teresse colectivo. Ora, para Arendt a exce-lência apenas pode existir na acção políticaatravés do confronto de opiniões. A promo-ção do social incorporou a excelência na es-fera privada do labor. A promoção do labora coisa pública libertou o trabalho da sobre-vivência biológica e incorporou-o na praxispolítica. Os factores que favoreceram a pro-moção do labor a interesse da sociedade e daesfera pública foram, sobretudo, os seguin-tes:

– a desagregação entre as capacidades téc-

nicas do trabalho e o desenvolvimento huma-nístico (o animal laborans é incapaz de reco-nhecer o valor humanístico da política comomeio de excelência e autopromove o valor dotrabalho como meio de sobrevivência bioló-gica capaz de atingir a esfera pública);

– a subordinação do labor às explicaçõesdas ciências físicas e consequentemente a se-paração entre ciências físicas e ciências soci-ais.

5 A esfera pública: o comum

O termo "público"remete para dois fenóme-nos distintos embora correlacionados. Emprimeiro lugar "público"centra-se na ideia deacessibilidade: tudo o que vem a público estáacessível a todos: pode ser visto e ouvidopor todos. Quando divulgamos um pensa-mento ou um sentimento através de uma es-tória , bem como quando divulgamos experi-ências artísticas individuais o privado torna-se de acesso público. A garantia deste fe-nómeno depende de uma condição essen-cial: os outros têm de partilhar a realidadedo mundo e de nós mesmos. No entanto,para Arendt há sentimentos que não podemser inteiramente divulgados aos outros no es-paço público: a dor física e o amor. O en-cantamento por "pequenas coisas"pode pare-cer insignificante, mas constitui o sentimentode um povo em que o bom senso pelos pe-quenos objectos contraria o processo de in-dustrialização. Em segundo lugar, o termo"público"centra-se na ideia de comum. A re-alidade do mundo tem um bem comum ouinteresse comum do artefacto e dos negócioshumanos, na medida em que é partilhado porindivíduos que se relacionam entre si. Coma sociedade de massas, o homem perdeu a

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capacidade de viver em comum limitando-seao mero consumo.

Arendt assinala que a filosofia cristã dovínculo da caridade tematizado por S. Agos-tinho a partir da mensagem de Cristo, éo único princípio capaz de unir as pessoascriando um mundo extraterreno que aceitao amor ao próximo como forma de evi-tar a condenação do mundo. Para Arendt,as comunidades cristãs foram incapazes decriar uma esfera política própria. Con-tudo, nas ordens monásticas a esfera públicamanifestava-se na adopção comum de regu-lamentos [por exemplo: a regra de S.Bento]que proibiam a excelência e o orgulho defen-dendo a humildade da acção evangélica. Anegação da política como fenómeno terrenoque não durará eternamente está subjacenteà concepção cristã do mundo. Para os cris-tãos, a queda do Império Romano foi a cons-tatação de que toda a política desligada dasubmissão à omnipotência cristã é efémera.A recusa cristã do mundo terreno produziuna actualidade um efeito inverso: verifica-sea intensificação do materialismo e a conse-quente formação de uma sociedade das mas-sas consumistas desligadas do espírito da co-munhão.

Arendt defende, contra o consumo da so-ciedade de massas, uma comunhão dos in-teresses individuais pela política, que trans-cenda o espaço intergeracional e se afirmede forma estrutural como fenómeno meta-mortal. Neste sentido, Arendt ultrapassa asalvação da alma como bem comum dos cris-tãos salientando a função fundamental da ac-ção humana (política) que sobrevive à histó-ria quando se manifesta como presença noespaço público. Na Antiguidade, os homensingressavam na vida pública através da ac-ção política para alcançarem notoriedade e,

assim, escaparem ao anonimato da vida natu-ral da esfera privada. Esta garantia de notori-edade da esfera política conduzia à intençãode ser lembrado para além da morte. A laici-zação da esfera pública (e consequente perdada preocupação metafísica) é um indício sig-nificativo do desaparecimento da esfera pú-blica clássica5. De facto, apesar da separa-ção entre a tradição no domínio da religiãoe a política no domínio do interesse público,tanto a polis grega, como a res publica dosromanos eram herdeiras de uma concepçãometafísica, que consagrava a imortalidade daacção como a maior prova de valor político.

Arendt salienta a opinião de Adam Smithsegundo a qual a admiração pública quese efectiva na vaidade consumista e a pos-terior recompensa monetária são intermu-táveis possuindo a mesma natureza: am-bos são processos subjectivos que tendema tornar objectiva a esfera pública atravésde formação de status. Esta objectividadedo status manifesta-se no poder do dinheirocomo satisfação das necessidades individu-ais prontamente transformadas em assuntopúblico. Mas, para Arendt nunca a soci-edade de massas empenhada no mero con-sumo e na subjectividade dos interesses pri-vados, bem como a esfera privada da famíliae da casa poderá substituir a pluralidade deopiniões na esfera pública da política. A es-fera pública do comum não resulta da igual-dade da natureza humana, mas fundamental-mente de um objecto comum - a política -que interessa a todos os indivíduos ainda quesob perspectivas diferentes. Assim se com-preende a pluralidade de opiniões no espaço

5 - Para Arendt, alguns filósofos e os defensores davida contemplativa são os únicos que ainda procuramreabilitar a perspectiva metafísica da imortalidade noespaço público.

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político. Quando o interesse comum da polí-tica se transforma no interesse único privadodo regime tirânico e da sociedade de mas-sas surge a destruição da comunhão na esferapública criando-se as condições para o apa-recimento do totalitarismo. Especificamente,a sociedade massas destrói a esfera privadae a esfera pública: impede a pluralidade deopiniões num espaço público comum; excluios homens da casa e da família enquanto re-fúgios perante o mundo.

6 A esfera privada: apropriedade

No âmbito da esfera privada, Arendt rea-liza uma explicação dos conceitos de pro-priedade e riqueza inerentes à esfera da fa-mília e da casa. Arendt afirma que só coma garantia da propriedade privada e da ri-queza necessária à subsistência biológica ohomem poderia escapar à escravidão e à po-breza tornando-se, assim, capaz de ultrapas-sar as necessidades da vida natural e aspirarà cidadania na polis. Arendt destaca que amentalidade cristã e o socialismo contribuí-ram para a desagregação da propriedade e dariqueza, elementos clássicos da esfera pri-vada. O cristianismo encara a propriedadee a riqueza de forma não-individualista, mascomo bens partilháveis em comunidade. Osocialismo no seu conjunto defende um mo-delo cooperativista de administração da pro-priedade e da riqueza.

Segundo Arendt, viver na esfera privadasignificava estar privado de ser ouvido e vistopor todos numa comunidade política em queos indivíduos partilham objectivamente umaacção política num espaço comum - a po-lis. A esfera privada limitava-se a um inte-

resse pessoal circunscrito aos condicionalis-mos da sobrevivência biológica na família ena casa. Na Antiguidade, os romanos com-preenderam que a esfera privada e a esferapública deveriam coexistir simultaneamente.A esfera privada oferecia actividades "espi-rituais"como o estudo das ciências e das ar-tes, embora nunca pudesse substituir a acçãopolítica na condução dos assuntos públicos.Todavia, enquanto os romanos nunca sacrifi-caram a esfera privada face à maior impor-tância do espaço político (salientando queos escravos encontram no lar um refúgio euma educação), os gregos ao invés denota-ram sempre na esfera privada da casa e dafamília a ausência da essência da condiçãohumana - a acção política.

O aparecimento do cristianismo contri-buiu para a quase extinção da ideia que o larera um espaço íntimo de privação. Para oscristãos, quer na esfera privada da casa e dafamília, quer na esfera pública da política ohomem procurava o amor ao próximo paraobter a salvação e evitar a condenação. Osafazeres da casa e da família deveriam servirpara obter o bem-estar material da comuni-dade desprovido das honras e do poder, poisa humildade de acção e do sentimento cons-tituía a principal premissa da caridade evan-gélica. Na perspectiva cristã, a principal fun-ção da política era proporcionar o bem-estare evitar a privação na casa e na família. Estaresponsabilidade cristã da política visava en-quadrar o espaço público à luz de uma sote-riologia que evitasse o pecado. Para Arendt,o ideal cristão e as teses de Marx partiam deum aspecto comum: a crença que a políticanão era omnipotente. Para os cristãos, a po-lítica era um mal necessário, mas sempre su-bordinado à teologia. Para Marx, o Estadoe a política devem ser extintos sendo subs-

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tituídos por um modelo [ficção] comunista.A decadência da esfera pública da polis nãofoi a consequência directa do cristianismo edo marxismo, foi antes o facto da economiadoméstica se transformar em economia polí-tica do Estado nação. A decadência da esferapública foi acompanhada da ameaça da des-truição da esfera privada nomeadamente dapropriedade.

Arendt critica o equívoco da relação en-tre, por um lado, a riqueza e, por outro lado,a pobreza enquanto inexistência de propri-edade. De facto, o surgimento de socieda-des ricas, mas em que não existe proprie-dade privada demonstra o equívoco da asso-ciação entre propriedade e riqueza6 . Desdea Antiguidade, ser proprietário significavaque o indivíduo possuía uma parte do mundoe chefiava uma família. Ou seja, o indiví-duo tinha o controlo sobre uma parte da po-pulação e do território, elementos estes queconstituíam no seu conjunto juntamente comos outros elementos do Estado (o Poder, osórgãos do Estado e a lei) o fundamento docorpo político. Ser privado da propriedadesignificava ficar impedido de garantir a sub-sistência do lar e da família (perdendo igual-mente a cidadania e a protecção da lei), en-quanto ser pobre não implicava necessaria-mente a perda da propriedade e da cidada-nia. Na polis grega, a lei pública regulavaa liberdade dos cidadãos na sua acção polí-

6 - Arendt está a pensar, seguramente, nos regimessocialistas e comunistas. No entanto, embora nessesregimes os cidadãos participem na "renda anual da so-ciedade"não existindo propriedade privada é incertoque possam ser qualificados como sociedades ricascomparativamente aos regimes capitalistas. Só umaanálise económica, sociológica e estatística estruturaldo tecido produtivo desses regimes poderia avaliar aexistência de sociedades ricas.

tica separando-se da lei natural do mais forteconfinada à família e à casa. Arendt refereque a lei da polis pressupunha a aplicaçãoda acção política a uma espécie de muro se-parador entre o terreno comum da política eo processo biológico do oikos e não ao actode legislar nem a um conjunto de proibições.Ou seja, a lei era a lei dos cidadãos da po-lis e nunca a lei da casa e da família. Nestecontexto, a propriedade assegurava um lugarpróprio de subjectividade individual e de do-mínio da necessidade natural, um lado ocultosem o qual o homem deixaria de ser verda-deiramente humano.

A existência da riqueza privada constituíaum meio pelo qual o homem não estava de-pendente de um senhor, mas podia ele pró-prio empenhar-se na sua subsistência. A ri-queza não significava apenas a acumulaçãode bens materiais, mas um processo capaz deevitar a pobreza e a escravidão libertando ohomem do labor e oferecendo-lhe a possibi-lidade de superar a necessidade natural, poissó assim seria possível alcançar a plena li-berdade na acção política. Contudo, quandoo homem procurava ampliar a propriedade,para além da subsistência, sacrificava a dis-ponibilidade necessária para a cidadania napolis.

Até à era moderna, a propriedade eraum lugar sagrado. A riqueza da proprie-dade agrícola estava associada à protecçãodos deuses. Porém, na modernidade a pro-priedade sagrada perdeu o carácter sagradosendo expropriada em favor de uma burgue-sia e aristocracia em contínua ascensão. Estasituação explica-se, segundo Arendt, porquea propriedade privada era contrária à acumu-lação de riqueza desejada pela classe capita-lista. Arendt termina a temática em torno deesfera privada com a tese de Proudhon, se-

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gundo a qual a propriedade é um roubo. ParaProudhon, a propriedade privada, na medidaem que impede a entreajuda e a produtivi-dade social existente na acumulação de ri-queza por parte da classe trabalhadora, deveser abolida e substituída por um sistema depropriedade cooperativista.

7 O social e o privado

A Modernidade acentuou a promoção do so-cial. A esfera pública verdadeiro instru-mento de sociabilidade passa a proteger aesfera privada da riqueza e da propriedadeda casa. Arendt salienta que, para Bodin, oRei deveria garantir a propriedade dos seussúbditos. Arendt questiona as concepçõesmodernas da propriedade referindo que a ri-queza inerente à propriedade destina-se uni-camente ao uso e ao consumo. Deste modo,quando a riqueza se transforma na acumula-ção de capital o privado passa a ter suprema-cia e invade o domínio político. O governomoderno, que protegia a esfera privada daluta de todos contra todos, era a única ins-tância considerada comum. Mas no fundo,o Estado protegia sempre os interesses pri-vados dos mais fortes tal como diagnosticouMarx [no célebre Manifesto do Partido Co-munista]. Arendt vai mais longe e afirma quemais grave do que isso foram os seguintesfactores: a extinção da diferença entre a es-fera privada e a esfera pública tal como exis-tia no mundo grego; a transferência das pre-ocupações privadas para a política; a valori-zação da esfera privada como fenómeno ma-tricialmente social.

Na mutação da esfera privada, a proprie-dade adquire um significado móvel podendoser trocada e consumida por outros, isto é, osocial justifica a perda do poder privado so-

bre os objectos7. Arendt salienta a concep-ção revolucionária de Marx sobre a proprie-dade. Para Marx, a propriedade pertence ver-dadeiramente àqueles que realizam a forçade trabalho - os proletários. Desde que a ri-queza se tornou coisa pública a propriedadeprivada, lugar tangível terreno de uma pes-soa, passou a estar ameaçada. Locke consta-tou o perigo do desaparecimento da proprie-dade privada e defendeu que sem a proprie-dade privada de nada serve o comum. O de-saparecimento da esfera privada e a sua subs-tituição pela omnipresença do social corres-ponde à eliminação dos aspectos comuns(não-privativos) da esfera privada. Por umlado, as posses privadas da subsistência na-tural inerentes à família e à casa que usa-mos e consumimos deixam de ser necessá-rias ao mundo comum. E, por outro lado, apropriedade privada deixa de ser um refúgioseguro contra a publicidade do espaço pú-blico. Ora, para Arendt respeitar a propri-edade privada é o único meio de assegurarum lugar próprio e seguro. Os corpos políti-cos pré-modernos estavam conscientes des-tas características não-privativas da esferaprivada. Mas, limitaram-se a proteger a se-paração entre a posse privada e a política co-mum tornando-se incapazes de proteger a es-fera privada da expansão crescente do social.Por outro lado, as modernas teorias políticase económicas defendem que o governo deveproteger a propriedade privada favorecendoa acumulação de riqueza. Arendt critica aingerência do espaço público político na es-fera privada denotando que as medidas dosocialismo e do comunismo acentuam ainda

7 - Este fenómeno coincide com o desenvolvi-mento do comércio, da burguesia, bem como com oadvento da Revolução Industrial.

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mais a decadência da propriedade privada eda própria esfera privada.

Finalmente, Arendt salienta que desde osprimórdios da história até à actualidade ohomem tenha procurado esconder as neces-sidades corporais da subsistência na esferaprivada. Escravos, mulheres crianças e tra-balhadores sempre foram marginalizados emantidos fora do espaço público. Porém, osmovimentos da emancipação dos trabalha-dores (por exemplo: o sindicalismo) e dasmulheres (por exemplo: os movimentos fe-ministas) pertencem a um momento revolu-cionário em que as funções corporais e osinteresses naturais pelo mundo material pas-sam a ser divulgados publicamente. Nestesentido, Arendt realça o facto dos vestígiosrestritos da intimidade privada (por exemplo:alimentação, procriação, trabalho do animallaborans), modernamente transformados eminteresse público, continuem a estar depen-dentes das necessidades da vida corporal.

8 A localização das actividadeshumanas

As actividades humanas localizam-se, se-gundo Arendt, em dois planos: o plano davida activa que compreende o labor (traba-lho para a subsistência biológica), work (tra-balho enquanto produção técnica) e acção(confronto opinativo mediante a palavra e apersuasão na esfera pública da política; oplano da vida contemplativa (reflexão reli-giosa e filosófica do espírito). Neste últimoponto da temática de esfera privada e da es-fera pública, Arendt escolhe o exemplo dabondade cristã para demonstrar que a esferaprivada não se ocupa somente do necessá-rio à subsistência biológica, mas pode adop-

tar uma perspectiva teológica que defendeo amor ao próximo como garantia escato-lógica. Mas tal como afirma a referida au-tora, se por um lado, a bondade cristã é pra-ticada individualmente por um cristão em re-lação a outro, também é certo que ela não en-contra refúgio na esfera privada íntima, poissempre que é divulgada publicamente desa-parece o mobile de uma bondade desinteres-sada por amor ao próximo. Deste modo, ateologia cristã defende que os indivíduos aoagirem por bondade devem fazê-lo sem tes-temunhas num espírito de humildade evan-gélica sobre-humana8. Mas, por ocultar assuas actividades o homem foge do espaçopúblico da participação política. Maquia-vel, contrariamente à teologia cristã, defen-deu que a bondade pode destruir a esfera po-lítica. A glória está na base do poder político.A política versa sobre as relações de poder enunca sobre a maldade ou bondade das ac-ções humanas, pois os homens agem semprena. busca da glória e são violentos por na-tureza. Arendt conclui sublinhando que Ma-quiavel critica também a corrupção da Igrejaproveniente desta se ocupar de assuntos pro-fanos. E mesmo a Reforma é perigosa, por-que os novos movimentos religiosos protes-tantes ao defenderem uma resistência passivaao mal legitimam a liberdade absoluta dosgovernantes.

8 - "Guardai-vos de fazer as vossas boas obrasdiante dos homens, para vos tornardes notados poreles. De contrário, não tereis nenhuma recompensado vosso Pai que está nos Céus. Quando, pois, deresesmola, não toquem trombeta diante de ti, como fa-zem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, a fim deserem louvados pelos homens. (Mt 6, 1-2).

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9 Bibliografia

AAVV (1988). Bíblia Sagrada, Lisboa, Di-fusora Bíblica.

ARENDT, Hanna (1997).A Condição Hu-mana, Rio de Janeiro, Forense Univer-sitária, 8a edição revista.

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