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II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades
Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013
O QUADRO ANTIGO DO CEMITÉRIO ECUMÊNICO SÃO FRANCISCO
DE PAULA COMO UM LUGAR DE MEMÓRIA
FRIO, BRUNA R. (1); GASTAUD, CARLA R. (2)
1. Universidade Federal de Pelotas. Programa de Pós-Graduação em Memória e Patrimônio Avenida Duque de Caxias, 741/101 – Fragata – Pelotas/RS 96030-001
2. Universidade Federal de Pelotas. Programa de Pós-Graduação em Memória e Patrimônio Rua Lobo da Costa, 1877 – Centro – Pelotas/RS 96010-150
RESUMO Este artigo busca perceber o Quadro Antigo do Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula em Pelotas, Rio Grande do Sul a partir do conceito de lugar de memória de Pierre Nora. Este trabalho foi organizado em três partes: em um primeiro momento, apresenta-se breve histórico sobre os cemitérios. Em um segundo momento, apresenta-se os conceitos de memória, de lugar de memória e de patrimônio. Os lugares de memória são patrimônios culturais projetados simbolicamente e podem estar atrelados a um passado vivo que ainda marca presença e reforça traços identitários. Em um terceiro momento, apresenta-se o conceito de lugares de memória aplicado aos cemitérios. Considera-se o Quadro Antigo do Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula como um lugar de memória por ser um espaço cheio de apropriações e significados. As sociedades projetam nos cemitérios seus valores, crenças, estruturas socioeconômicas e ideologias., Múltiplos aspectos das comunidades, que ajudam a compreender os vínculos que existem entre a cidade e o cemitério como lugar de memória e como representação da vida social, estão presentes ali. Para quem se dispõem a procurar, os cemitérios podem guardar ricas surpresas.
Palavras-chave: Lugar de Memória. Quadro Antigo do Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula. Cemitérios.
UM POUCO DA HISTÓRIA DOS CEMITÉRIOS
Até o século XVIII não havia uma separação radical entre a vida e a morte. “Os mortos
deveriam ficar perto dos vivos, mas em espaço sagrado” (REIS, 1991, p. 310). Por essa razão
iniciou-se o costume de sepultamento nas igrejas. Tal mudança ocorreu devido à influência do
iluminismo francês, juntamente com o avanço do individualismo, do pensamento racional e da
secularização da vida cotidiana.
Difundiu-se, neste período, a crença de que “o enterro nas igrejas, próximo dos
túmulos dos santos e suas relíquias facilitava a passagem de um mundo extraterreno
assegurando a salvação da alma” (COE, 2000, p. 02). Para a sociedade da época, a igreja era
uma das portas de entrada do paraíso e “a proximidade física entre cadáver e imagens
divinas, aqui embaixo, representava um modelo da contiguidade espiritual que se desejava
obter lá encima, entre a alma e as divindades” (REIS, 1991, p. 171).
Todavia, o espaço sagrado dos santos não podia comportar todos os cadáveres.
Portanto, enterravam-se nas igrejas os católicos considerados “melhores”, ou seja, os mais
favorecidos financeiramente. O enterro fora da igreja era reservado aos católicos com menor
poder aquisitivo, aos não-católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, escravos e
condenados.
Mesmo com essa separação criou-se um sério problema de falta de espaço – devido
ao crescimento populacional e a transmissão de doenças através dos miasmas concentrados
nas naves e criptas das igrejas. Surgiu, “em 1855, na Inglaterra, uma lei que regulamentava os
sepultamentos e estes começaram a ser feitos fora do centro urbano, nos cemitérios”
(LUCAS, 2006, p.11).
Cemitério é o lugar onde são sepultados os cadáveres dos mortos. “A palavra
cemitério vem do latim “coemeterium” que vem do grego “kimitírion”, a partir do verbo “kimaó”,
que significa “pôr a jazer” ou “fazer deitar”” (BELLOMO, 2000, p. 15). Anteriormente,
designava a parte exterior da igreja, isto é, um adro ou um “atrium”, que é a área da frente da
igreja.
A mudança dos enterros afetou principalmente os povos de predominância católica e
“a construção dos novos cemitérios não agradou boa parte da elite da época, pois a ideia de
salvação estava intimamente ligada ao local de sepultamento” (COE, 2000, p. 03).
Acreditava-se que “o campo santo ameaçava noções tradicionais de espaço sagrado e outros
aspectos da mentalidade funerária predominante” (REIS, 1991, p. 310), afinal, “o local de
sepultura era um aspecto importante da identidade do morto” (REIS, 1991, p. 191).
Mesmo com essa resistência inicial, a lei foi cumprida e os cemitérios passaram a fazer
parte de um processo ininterrupto de transformação social.
Tais mudanças permitem-nos identificar, hoje em dia, nos cemitérios toda uma
representação simbólica do universo social daquela época, possibilitando diferentes análises
dos fenômenos relacionados à dinâmica cultural. Afinal, já existia na elite o anseio de
monumentalizar-se perante a comunidade. “Desde o início, os cemitérios adjacentes às
igrejas foram mais um meio de hierarquização do que de salvação das almas. A sepultura ‘ad
sanctos’ (interior da igreja) consolidou as diferenças sociais, tornando visível o tratamento
dado aos mortos nobres e aos mortos menos favorecidos” (PEREIRA, p.19, 2002).
Bellomo (2000, p.15) destaca:
Os cemitérios reproduzem a geografia social das comunidades e definem as classes locais. Existe a área dos ricos, onde estão os grandes mausoléus; a área da classe média, em geral com catacumbas na parede, e a parte dos pobres e marginais. A morte igualitária só existe em discurso, pois, na realidade, a morte acentua as diferenças sociais. As sociedades projetam nos cemitérios seus valores, crenças, estruturas sócio-econômicas e ideologias. Deste modo, a análise permite conhecer múltiplos aspectos da comunidade, constituindo-se em grandes fontes para o conhecimento histórico.
A saída das igrejas, fez com que famílias tradicionais buscassem na arte funerária um
meio de ostentar a imponência de seus nomes e valores sociais faustosos na suntuosidade de
seus túmulos, destacando seus mortos: “era e sempre foi o desejo dos mais abastados,
distinguir-se através de uma marca perene, de um objeto de consagração – o túmulo – pela
atração de comparar-se aos grandes personagens da história” (ABREU, 1994, p. 207).
De acordo com Vaz (2007, p.60) “outra função que assumem os cemitérios é a da
demarcação social. Os mais abastados recebiam sepultura nas igrejas ou edificavam
mausoléus, como pequenas reproduções de igrejas nos cemitérios”. Tal situação já ocorria
quando os enterros eram realizados nas igrejas “o que definia o mapa social do espaço
funerário não era a igreja, mas o tipo de sepultura, se no adro ou no corpo do templo, perpétua
ou comum, de irmandade ou não, perto ou longe dos altares, em carneiras ou no chão” (REIS,
1991, p.191).
A consideração pelo morto levou as famílias da cidade a ornarem os seus túmulos,
diferenciando-os, trazendo personalidade, valores e ideais aos jazigos, afinal, o morto é o
benemérito, reconhecido pelos seus feitos, para que os vivos o reconheçam em morte tal
como foi reconhecido em vida. Desta forma, “o cemitério católico emerge dos descampados
como um suntuoso jardim: o túmulo torna-se um artigo de arte, consagrando um estilo, uma
época, uma sociedade e sua economia” (CARVALHO, 2005, p.10).
As famílias, a partir da primeira metade do século XX, contratavam construtores e
escultores de renome, em sua maioria de origem italiana ou com formação na Europa, para
construírem e ornamentarem os túmulos de seus entes queridos. Tais monumentos ajudariam
a perpetuar a memória do morto e da sociedade. O falecido deveria ter uma ‘morada’ digna de
sua importância social e de sua família.
A partir de tal cultura, o cemitério tornou-se um local pleno de significações que se
inserem no campo dos dogmas, superstições, lendas e verdades. Apesar da aparência muitas
vezes triste, os cemitérios podem guardar ricas surpresas para quem se dispõe a procurar.
Há algum tempo os cemitérios estão sendo vistos por outra perspectiva. Não são
apenas o local onde os mortos são enterrados mas também, fonte de pesquisa e possíveis
roteiros histórico de visitação em regiões turísticas . Isto ocorre em razão de os cemitérios
possuírem elementos que demonstram a história social e artística das regiões através da
estatuária, das obras arquitetônicas, dos epitáfios e dos símbolos encontrados e analisados
nos túmulos, valorizando e exaltando a preservação desses imensos patrimônios públicos,
como confirma Pereira (2002, p. 57):
[...] muito do que possuímos como história nos foi contada pelos objetos relativos à morte. Se as catacumbas são consideradas a primeira arte cristã que conhecemos, e se o tesouro histórico, deixado pelos egípcios possui inestimável valor para a humanidade no ponto de vista social, artístico, econômico, histórico, os cemitérios da cidade possuem valor inquestionável já que são parte da narrativa da cultura local. Suas estátuas, túmulos e adornos constituem um acervo a ser preservado, pois dificilmente poderá ser recriado tal conjunto, resguardando a história local.
Os cemitérios podem nos dar valiosas informações, afinal, de acordo com Bellomo
(2000), são fonte histórica para a preservação da memória familiar e coletiva, fonte de estudo
das crenças religiosas, forma de expressão do gosto artístico, forma de expressão da
ideologia política, fonte para conhecer a formação étnica, fonte para estudo da genealogia,
fonte reveladora da perspectiva de vida de uma sociedade.
Um passeio por esses locais vale por uma boa aula de história. Apesar de inusitadas,
visitas aos túmulos são uma forma interessante de volta ao passado, afinal, é possível
perceber desde o movimento artístico à religiosidade da época, e até mesmo as datas de
nascimento e morte das pessoas enterradas causam curiosidade. Por estas razões a
preservação dos jazigos é fundamental, pois não há dúvida de que são patrimônio. Há quem
tenha interesse em saber, que importância tiveram as pessoas que estão enterradas lá para o
desenvolvimento da cidade e em que condições morreram, afinal, “os monumentos aos
mortos, podem servir de base a uma relembrança de uma período que a pessoa viveu por ela
mesma, ou de um período vivido por tabela” (ABREU, 1994, p. 213).
Muitos cemitérios do mundo são conhecidos como “museus a céu aberto”. Recebem
inúmeras visitas todos os dias, sejam turistas, curiosos, pesquisadores ou familiares. Alguns
servem de cenários para filmes, como o Cemitério da Saudade1 em Campinas, outros são
considerados patrimônio da cidade como o Cemitério Luterano de Novo Hamburgo.
Alguns cemitérios são famosos por sua beleza incomparável como os cemitérios de
Gênova e Milão, na Itália. Outro famoso é o Cemitério Nacional de Arlington, em Washington
(EUA). Lá, estão os túmulos dos soldados mortos durante as duas Grandes Guerras Mundiais
e do ex-presidente John Kennedy.
Não são apenas os cemitérios famosos que atraem os visitantes e curiosos. Túmulos
em cemitérios menores e não tão conhecidos também guardam personagens ilustres, como é
o caso do local onde está enterrado o cantor Elvis Presley, em Memphis (EUA), que se
transformou em lugar de verdadeira romaria, principalmente em agosto, mês de seu
falecimento ou o túmulo de Ayrton Senna, Campeão Mundial de Fórmula I, o qual está incluído
até mesmo nas excursões de turistas estrangeiros quando passam por São Paulo.
Na Europa existem diversos cemitérios medievais, que aos poucos, quando
escavados, são uma preciosa fonte para compreensão de certos hábitos alimentares,
doenças e anatomia do homem medieval. Como exemplo cita-se o Cemitério Medieval das
Barreiras, localizado em Fão, no Concelho de Esposende, em Portugal.
Ponto obrigatório de visitação em Buenos Aires é o Cemitério da Recoleta. Cheio de
esculturas e mármores, sepulturas e mausoléus se misturam a passeios de portenhos e
visitas guiadas de turistas. Uma curiosa junção de morte, praça e museu, costume raro para
muitos povos, é rotina na capital argentina, atraindo cada vez mais turistas em busca das
belezas e histórias que estão por trás dos sepulcros da cidade. Mas, é claro, que nem só pela
rica arquitetura e beleza o Cemitério da Recoleta é atração na capital argentina. Ele guarda
grandes personalidades da história e cultura do País, tais como: Eva Perón, Adolfo Bioy
Casares e Facundo Quiroga.
Tido como o mais belo cemitério do mundo, o Père Lachaise, em Paris, também recebe
visitas diárias de turistas, famílias e estudiosos. Os túmulos de Proust, Molière, Balzac, Edith
Piaf, Sara Bernhard, Alan Kardec, Jim Morrison e dos apaixonados Abelardo e Heloísa são
visitados por verdadeiras multidões, às vezes em tours organizados.
SOBRE MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E LUGARES DE MEMÓRIA
Se existe um fenômeno que é sempre atual e vivido – seja física ou afetivamente – é o da
memória. A rememoração auxilia a recomposição da relação entre passado e presente, além de ser
1 O Cemitério da Saudade serviu de locação para o filme “Memórias Póstumas” de 2001.
considerada uma estratégia de sobrevivência emocional. Como afirma Bosi (1994, p. 48) “o
passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente”.
A memória está vinculada a identidade do sujeito e a sensação de pertencimento do
mesmo a determinado grupo social, afinal, “sem memória o sujeito se esvazia, vive
unicamente o momento presente, perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua
identidade desaparece”. (CANDAU, 2012, p. 132) Muito mais do que saber para onde vai, o
sujeito é como o pássaro Goofus Bird, utiliza a memória para saber de onde vem.
Le Goff (2003, p. 437) salienta:
A memória é a quinta operação retórica: depois da inventio (encontrar o que dizer), a dispositio (colocar em ordem o que se encontrou), a elocutio (acrescentar o ornamento das palavras e das figuras), a actio (recitar o discurso como um ator, por gestos e pela dicção) e, enfim, a memoria (memoriae mandare, “recorrer à memória).
Poderíamos afirmar que apenas a memória seria capaz de alimentar nosso sentimento
de continuidade, porém, também o patrimônio “assegura a continuidade – de um passado
regenerado a um futuro estabilizado. Ele pode configurar a permanência dos valores e dos
recursos diante da incerteza do futuro” (POULOT, 2009, p. 25).
O patrimônio pode ser considerado, portanto, “uma dimensão da memória” (CANDAU,
2012, p. 16), pois auxilia no fortalecimento da identidade individual e coletiva. Qualquer
sociedade exige que sua memória seja bem cuidada e o patrimônio auxilia o trabalho da
memória de um lugar e de um grupo.
Pensando nisso, acredita-se que existam “lugares de memória que são verdadeiros
patrimônios culturais, projetados simbolicamente e podem estar atrelados a um passado vivo
que ainda marca presença e reforça os traços identitários do lugar” (ANDRADE, 2008, 570).
O conceito de “lugar de memória” foi elaborado por Pierre Nora (1993, p. 13),
destacando que:
Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção. [...] Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões de eternidade.
Arévalo (2004, p.04) interpreta: “Nora apresenta sua categoria de "Lugares de
Memória" como resposta a essa necessidade de identificação do indivíduo contemporâneo” e
Candau (2012, p. 157) acrescenta, “um lugar de memória é um lugar onde a memória
trabalha”.
Acreditamos que a memória está estratificada no lugar e Andrade (2008, p. 571)
salienta que “os lugares de memória e as memórias do lugar se conjugam em busca de
instrumentos de reforço da identidade e da singularidade local” (ANDRADE, 2008, 571).
“Todos os traços que têm por vocação “fixar” o passado (lugares, escritos,
comemorações, monumentos) contribuem para a manutenção e transmissão da lembrança
de dados factuais” (CANDAU, 2012, p. 164). “Eles unem a ideia de patrimônio, como
preservador de uma memória, e do espaço, como veiculador da mesma, o que gera o uso da
categoria lugares de memória” (ARÉVALO, 2004, p. 01).
De acordo com Nora (1993, p. 07), os lugares de memória são “lugares onde a
memória se cristaliza e se refugia”.
Como afirmamos no início desta sessão, a memória evoca o passado, ao mesmo
tempo em que atualiza e difunde os valores do presente. É indissociável da identidade e se
torna imprescindível para a união dos grupos sociais. Há tantas memórias quantos grupos
sociais e uma sociedade sem memória é uma sociedade sem história. Por isso, Nora (1993, p.
13) afirma:
Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais.
“Os lugares de memória são essencialmente meios, meio de acesso a uma memória,
que não é memória, é história, porque está reconstituída através de vestígios e, mais
importante, uma memória que é reivindicada e não espontânea” (ARÉVALO, 2004, p. 12). Ou
seja, “os lugares de memória seriam tanto lugares materiais, a exemplo de museus e
arquivos, quanto lugares pouco palpáveis ou imateriais, como aniversários, elogios fúnebres.
rituais, comemorações” (ABREU, 1994, p. 207) e, acrescento, cemitérios.
O QUADRO ANTIGO DO CEMITÉRIO ECUMÊNICO SÃO FRANCISCO
DE PAULA
O Quadro Antigo do Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula é um espaço
frequentado pelos vivos, que zelam pelos túmulos, mantendo-os limpos, decorados e por
vezes íntegros. A área correspondente ao Quadro Antigo, como o próprio nome sugere, é o
espaço de origem do cemitério atual, onde foram erguidas as primeiras catacumbas, na
segunda metade do século XIX, em consequência da epidemia de cólera, que lotou o
Cemitério do Passeio (que não existe mais) e por questões de planejamento urbano e higiene.
É importante salientar que também os corpos enterrados no Cemitério do Passeio2 foram
transladados para o novo Cemitério da cidade.
O Quadro Antigo é dividido em quatro faces igualmente cortadas por duas avenidas
que se cruzam ao centro (FIGURA 1).
FIGURA 1 – Planta Baixa do Quadro Antigo do Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula
Fonte: Arquivo Pessoal
A primeira avenida encontra-se a frente do portão de entrada e segue em direção a
Capela do Senhor do Bonfim e a segunda avenida segue em direção a um pequeno portão, do
lado leste, que dá entrada lateral para uma parte mais nova do cemitério. Há nestes
quadrantes, três ordens de sepulturas: duas abaixo para adultos e uma acima para crianças.
Um número considerável de palmeiras (FOTOGRAFIA 1) integra a paisagem.
2 O Cemitério do Passeio tinha “frente a leste pela rua Andrade Neves, fundos a oeste até a rua General Osório,
face ao sul pela Bento Gonçalves e para norte ao campo aberto que havia aí, onde faziam os sepultamentos. os cadáveres, depois da encomendação, eram da Matriz até ali, levados à mão” (OSÓRIO, 1997, p. 130).
FOTOGRAFIA 1 – Quadro Antigo do Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula
Fonte: Diogo Sallaberry, 2009
Os quatro quadrantes do local são preenchidos por túmulos de diversos tipos, os mais
comuns são carneiras de chão e os mais elaborados mausoléus.
Melhor do que qualquer outro lugar, os cemitérios construídos na segunda metade do século XIX refletiram visões de mundo de diferentes grupos sociais, expressas por meio de modos socialmente apreendidos de viver que incluem comportamentos, ideias, crenças e valores. (MOTTA, 2011, p. 218)
A julgar pelas datas de falecimentos dos mortos no local, o período de tempo das
construções varia de 1860 a 1980, o que favorece uma ausência quase total de padrão do tipo
de túmulo e de recursos empregados na construção e ornamentação dos mesmos. Tal como
na arquitetura da cidade, há convivência entre o clássico, o maneirismo e o contemporâneo.
Pensando nisto, entendemos que “a versatilidade dos cemitérios como fontes de informações
e a identidade cultural que preservam, convidam a pensar sobre seu valor patrimonial”.
(NEITZKE, 2010, p. 543)
Então, na primeira metade do século XIX, Pelotas teve um Cemitério em crescimento,
construindo sua identidade pela própria personalização do morto burguês, que possuía um
belo nicho, rodeado de signos escatológicos permanentes (estátuas, vasos, bustos, fotos,
cruzes, identificação...). Toda vez que os recursos permitiram às famílias exaltar as
características de seus entes, estas o fizeram. “Os autores de projetos de cemitério do século
XIX desejavam que fossem ao mesmo tempo parques organizados para a visita familiar e
museus de homens ilustres, como a Catedral de S. Paulo, em Londres" (ABREU, 1994, p.
208).
Os cemitérios oitocentistas, com suas evidências alegóricas, de cenários operáticos e de convulsiva dramaticidade [...] esses lugares de enterramento desempenharam uma espécie de eficácia simbólica da conservação e da memória, materializada na monumentalidade arquitetônica de seus túmulos individualizados. (MOTTA, 2011, p. 281)
Nas sepulturas é possível observar, pelos adornos, que eram para o sepultamento das
pessoas da burguesia, ou de irmandades, pois algumas lápides apresentam brasões (de
Barões, Coronéis e suas famílias) ou elementos representativos das profissões (médicos,
advogados, engenheiros, entre outros). Isto faz com que a área do Quadro Antigo represente
o espaço mais importante do Cemitério e recupere grande parte da história de Pelotas. Afinal,
em um passeio pelo Quadro Antigo podemos nos deparar com o túmulo de “ilustres
moradores” como Barão de Arroio Grande em uma parede, Visconde da Graça em jazigo,
Barão de Santa Tecla em uma Capela, Coronel Pedro Osório em um mausoléu próximo à
capela, o escultor Antonio Caringi em um mausoléu com estátua de bronze confeccionada
pelo próprio antes da morte, Salis Goulart em uma carneira de chão, um busto homenageando
Frederico Bastos, Edmundo Berchon em um mausoléu, Mozart Russomano em um mausoléu,
entre tantos outros. Tais túmulos costumam ser visitados pelas famílias e também por
estudantes e curiosos em busca de informações.
Ao caminhar entre os jazigos, perambula-se por um verdadeiro labirinto funerário. A
ausência de uma distribuição de espaço dificulta o inventário, por exemplo, no momento de
identificar a localização exata de um túmulo.
Na lateral direita da Capela do Senhor do Bonfim estão localizados as sepulturas
pertencentes às Irmandades: a de Nossa Senhora do Rosário, que após sua dissolução ficou
para a Santa Casa, e a Irmandade de São Miguel e Almas. As demais extensões de
catacumbas são particulares, ou pertencentes à Santa Casa. A ornamentação das sepulturas
e a existência de um terreno mais ao fundo para o enterramento dos menos favorecidos em
sepulturas de chão, nos permite perceber a carga elitista do local.
Considerações Finais
Nora (1993, p. 21) afirma que lugares de memória são:
Lugares, com efeito, nos três sentidos da palavra, material, simbólico, funcional. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se sua imaginação o investe de uma aura simbólica. São lugares que estendem uma história regada de cumplicidade, significações, afetividade, pertencimento, ou simplesmente de alma.
Ou seja, “só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica, só
entra na categoria se for objeto de um ritual" (ARÉVALO 2004, p. 05).
“Os ritos de morte possuem um valor emblemático de identidade” (CANDAU, 2012, p.
190). Por ser um espaço cheio de apropriações e significados, o cemitério acaba por nos unir
em grande medida ao passado, através daqueles que já se foram e do modo como ali foram
deixados. E por ser um lugar “onde a comunidade vê partes significativas do seu passado com
imensurável valor afetivo” (GASTAL, 2002, 77).
Candau (2012, p.156-157) acrescenta, “a razão fundamental de ser de um lugar de
memória é a de deter o tempo, bloquear o trabalho de esquecimento, fixar um estado de
coisas, imortalizar a morte”, portanto, poderia sim, o cemitério ser considerado um lugar de
memória.
Motta (2011, p. 280) destaca:
Há uma correlação entre lugares, memórias, pessoas e grupos. Um lugar, de certo modo, é uma construção social resultante do enraizamento de um ou mais indivíduos num eixo espaço-temporal comum, que se converte em elemento fundamental para a construção de memórias e narrativas a emoldurar o passado, o presente e o futuro.
O Cemitério registra parte da história de uma localidade através da disposição e do
formato dos túmulos, das inscrições nas lápides, das datas de falecimento. Por esta razão,
Carlos (1996, p. 16), afirma: “o lugar guarda em si, não fora dele, o seu significado e as
dimensões do movimento da história em constituição enquanto movimento da vida”. Afinal, as
sociedades projetam nos cemitérios seus “valores, crenças, estruturas socioeconômicas e
ideologias. Deste modo, a análise permite conhecer múltiplos aspectos da comunidade,
constituindo-se em grandes fontes para o conhecimento histórico” (BELLOMO, 2000, p. 15).
E mais,
com suas evidências alegóricas, de cenários operáticos e de convulsiva dramaticidade, esses lugares de enterramento desempenharam uma espécie de eficácia simbólica da conservação e da memória, materializada na monumentalidade arquitetônica de seus túmulos individualizados (MOTTA, 2012, p. 281).
É importante informar que “os autores de projeto de cemitério do século XIX
desejavam que os cemitérios fossem ao mesmo tempo parques organizados para a visita
familiar e museus de homens ilustres, como a Catedral de São Paulo, em Londres” (ABREU,
1994, p. 208).
Arévalo (2001, p. 03) afirma que:
o apelo que nossa sociedade faz de preservação de sua memória é, em última instância, a necessidade de reconstituição de si mesma, encarada
como algo formado no passado para o presente, por isso, preservar vestígios, trilhas, fósseis, etc.
Tal pensamento vem ao encontro do pensamento de Vaz (2007, p. 03), quando afirma
que o “sentimento de continuidade das histórias formam ideias que nos ajudam a
compreender os vínculos que existem entre a cidade e o cemitério como lugar de memória e
representação da vida social”.
As memórias eternizam lugares como referências e cenários para uma constante visita
ao passado, trazendo em si, os mais diversos sentimentos documentados e aflorados em
narrativas, sonhos e percepções. Além disso, nos cemitérios,
o que o homem faz durante a vida é incorporado ao patrimônio do seu clã e da sua comunidade. Assim, existe uma estreita associação entre a arte funerária e a memória coletiva, tanto para fins políticos, como sociais e religiosos. Daí a necessidade do culto dos mortos (BELLOMO, 2000, p. 54)
A partir do conceito de Nora (1993) e das explanações feitas acima, podemos
considerar os cemitérios lugares de memória se pensá-los como “lugares mistos, híbridos e
mutantes, intimamente laçados entre a vida e a morte, de tempo de eternidade; numa espiral
do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel” (NORA, 1993, p.
22).
Acredita-se, portanto, que os cemitérios podem ser considerados lugares de memória,
pois são verdadeiros patrimônios culturais projetados simbolicamente e podem estar
atrelados a um passado vivo que ainda marca presença e reforça os traços da identidade do
lugar. E mais, “quando os antigos cemitérios não se renovam, tendem cada vez mais a se
tornar sítios arqueológicos, lugares de memórias residuais” (MOTTA, 2011, p. 295).
Concluímos com este trabalho que as sociedades projetam nos cemitérios seus
valores, crenças, estruturas socioeconômicas e ideologias. Deste modo, múltiplos aspectos
da comunidade e que ajudam a compreender os vínculos que existem entre a cidade e o
cemitério como lugar de memória e como representação da vida social, estão presentes ali.
Assim como as praças, os prédios e as ruas, os cemitérios são imprescindíveis.
Deveriam ser conhecidos e reconhecidos como patrimônio, como um local de onde se pode
extrair conhecimento histórico, artístico e cultural sobre a cidade, ser interpretado como um
local onde a visitação é uma experiência positiva, como local de reconhecimento a si próprio e
aprendizado, e não ser visto apenas como local onde se prezam somente os devidos respeito
e lamúria aos mortos.
Referências
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