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Tamara Machado Fracalanza O que é a filosofia clínica e como funciona? Na bibliografia sobre a filosofia clínica é comum encontrar a sua conceituação abordada a partir da contextualização da história do seu surgimento e desenvolvimento protagonizada por Lucio Packter. Trata-se de uma história que começou há pouco mais de 30 anos sobre uma nova proposta de cuidado e de um novo exercício de vivência humana (Goya, 2005), fundamentado na reflexão filosófica e no atendimento clínico. Apresentar a filosofia clínica pela sua historicidade não poderia deixar de ser uma forma particularmente coerente, já que este é o processo inaugural de qualquer atendimento filosófico-clínico, o ponto de partida fundamental para o seu acontecer. Assim, observa-se que no seu surgimento, Lucio Packter, insatisfeito com as ciências comprometidas com o cuidado do devir humano, como a psiquiatria e a psicanálise, encontrou o caminho, para compreender e orientar pessoas, na reflexão filosófica, da qual derivou a metodologia clínica. Por reflexão filosófica, considera-se, na bibliografia estudada, a atitude do filósofo reflexiva, questionadora e crítica, a qual, muitas vezes, abandona pressupostos estabelecidos na intenção de compreender mais amplamente o mundo na sua cotidianidade (Aiub, 2008) para lidar com a sua perplexidade. Dada esta atitude filosófica, é original na filosofia clínica “[...] a possibilidade de se construir uma radicalidade metodológica capaz da negação máxima de qualquer pressuposto – em seu caso terapêutico – como ponto de partida” (Goya, pág. 146, 2005). Nesse sentido, a FC não traz na sua formulação uma teoria universalizante capaz de explicar todos os fenômenos humanos. A compreensão e elaboração de conceitos sucedem à prática clínica e ao encontro do partilhante com filósofo, possibilitando o máximo de zelo pela singularidade daquele que a vivencia. Todo o processo filosófico-clínico parte de uma redução fenomenológica do filósofo, da suspensão de pré-juízos, seguida por uma observação e escuta atentas do partilhante que se mostra e se desvela no seu modo de ser único. O cenário no qual se dá este processo é o espaço clínico, um espaço privilegiado de

O Que é a Filosofia Clínica e Como Funciona

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O Que é a Filosofia Clínica e Como Funciona

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Tamara Machado Fracalanza

O que a filosofia clnica e como funciona?

Na bibliografia sobre a filosofia clnica comum encontrar a sua conceituao abordada a partir da contextualizao da histria do seu surgimento e desenvolvimento protagonizada por Lucio Packter. Trata-se de uma histria que comeou h pouco mais de 30 anos sobre uma nova proposta de cuidado e de um novo exerccio de vivncia humana (Goya, 2005), fundamentado na reflexo filosfica e no atendimento clnico. Apresentar a filosofia clnica pela sua historicidade no poderia deixar de ser uma forma particularmente coerente, j que este o processo inaugural de qualquer atendimento filosfico-clnico, o ponto de partida fundamental para o seu acontecer. Assim, observa-se que no seu surgimento, Lucio Packter, insatisfeito com as cincias comprometidas com o cuidado do devir humano, como a psiquiatria e a psicanlise, encontrou o caminho, para compreender e orientar pessoas, na reflexo filosfica, da qual derivou a metodologia clnica. Por reflexo filosfica, considera-se, na bibliografia estudada, a atitude do filsofo reflexiva, questionadora e crtica, a qual, muitas vezes, abandona pressupostos estabelecidos na inteno de compreender mais amplamente o mundo na sua cotidianidade (Aiub, 2008) para lidar com a sua perplexidade. Dada esta atitude filosfica, original na filosofia clnica [...] a possibilidade de se construir uma radicalidade metodolgica capaz da negao mxima de qualquer pressuposto em seu caso teraputico como ponto de partida (Goya, pg. 146, 2005). Nesse sentido, a FC no traz na sua formulao uma teoria universalizante capaz de explicar todos os fenmenos humanos. A compreenso e elaborao de conceitos sucedem prtica clnica e ao encontro do partilhante com filsofo, possibilitando o mximo de zelo pela singularidade daquele que a vivencia. Todo o processo filosfico-clnico parte de uma reduo fenomenolgica do filsofo, da suspenso de pr-juzos, seguida por uma observao e escuta atentas do partilhante que se mostra e se desvela no seu modo de ser nico. O cenrio no qual se d este processo o espao clnico, um espao privilegiado de cuidado para o conhecimento dos [...] elementos circunstanciais, crenas, formas de pensar, sentir, ser no mundo, agir [...]daquele que procura atendimento e que [...] interferem fortemente na conduta do paciente, auxiliando ou impedindo os processo e movimentos necessrios aos tratamentos (Aiub, p. 25, 2010). A primeira consulta clnica a inaugural e importante por representar o primeiro contato entre partilhante e filsofo. quando se estabelecem as formas de relao, a interseo entre eles, que pode ser positiva, negativa, confusa ou indefinida. Ainda nesta consulta o filsofo explica os procedimentos da filosofia clnica e o partilhante discorre sobre o que o levou a procurar o atendimento, o assunto imediato. Neste momento, fundamental que o filsofo faa o mnimo de interferncia durante o relato, apenas por meio de agendamentos mnimos, dado que pouco conhece do partilhante. Aps esse primeiro contato, pode ocorrer, em apenas uma consulta, do partilhante compreender sua questo para as suas movimentaes existenciais, ou, em outros casos, podem suceder consultas ao longo de um prazo indeterminado que sero realizadas uma vez por semana durante cerca de cinquenta minutos este roteiro ir depender de cada caso. A narrao da historicidade o procedimento seguinte abordagem do assunto imediato. O partilhante, ao contar a sua histria, possibilita ao filsofo clnico obter informaes para a fundamentao dos trs eixos metodolgicos da FC: os exames categoriais, a estrutura de pensamento e os submodos. Tais eixos possibilitam ao filsofo um exame conjunto criterioso e rigoroso, numa perspectiva hermenutica compreensiva, ou seja, nunca determinista ou definitiva, dos modos existenciais do partilhante bem como dos encaminhamentos factveis. Aiub (2010) atribui a cada um dos trs eixos as respectivas funes para uma compreenso do partilhante: para os Exames Categoriais a funo de conhecer como o partilhante se posiciona no mundo, para a Estrutura de Pensamento, como o partilhante e, finalmente, para os Submodos, como o partilhante age.A historicidade, aps ser contada, divida em partes a convite do filsofo a partir dos dados obtidos do partilhante, portanto, respeitando sua maneira de fazer essa segmentao, para ser esmiuada em seus detalhes, para buscar dados significativos que no foram contados por qualquer motivo. Esse processo de diviso continua at que no se tenham mais dados novos trazidos pelo partilhante. Terminada a coleta de dados, o prximo passo a investigao acerca dos significados dos termos, os enraizamentos, [...] a fim de conhecer mais, estabelecer relaes, confirmar hipsteses [...] (Aiub, p.19, 2005). A compreenso do significado dos termos fundamental para o processo, j que h uma multiplicidade de linguagens e contextos para aquilo que expressado. Uma palavra pode ter diversos significados, por exemplo, e para compreender o universo do outro, o filsofo dever ir em direo ao apreender o mundo como o na representao do outro. Os exames categoriais constituem as categorias a serem observadas no intento de contextualizar e localizar existencialmente o partilhante. As categorias examinadas em FC implicam tanto os predicados, os diversos modos de ser das coisas, como descreve Aristteles, quanto os modos de ordenao do intelecto kantiano e, dos conceitos engendrados por estes grandes filsofos, abstraem-se as formas de conhecer, [...] de identificar semelhanas e diferenas no transcurso de cada investigao singular (Packter apud Aiub, pg. 21, 2005). Na FC, o conhecimento no absoluto, seno plstico, temporal e delimitado pela representao do partilhante, os exames categoriais decorrem dos significados do prprio partilhante dado s suas vivencias e so atualizados a cada consulta. As categorias filosficas na FC so: assunto (imediato e ltimo), circunstncia, tempo, lugar e relao. Apesar de fundamentadas nos conceitos de categorias aristotlicas e kantianas, as categorias da FC foram resignificadas conforme a problemtica emergente do contexto clnico. A categoria Assunto representa o assunto imediato e o assunto ltimo. O Assunto imediato refere-se ao que leva a pessoa a procurar a clnica, enquanto o Assunto ltimo o que ser trabalhado na aplicao dos Submodos, ou ainda, como enfatiza Aiub (2005), sobre o que ser de fato pautado o objetivo clnico. Circunstncia diz respeito ao contexto e s relaes entre este entorno e a subjetividade do partilhante na sua multiplicidade, j que neste entorno esto consideradas as questes culturais, familiares, sociais, polticas, econmicas, etc. O espao existencial do corpo, a maneira como nos sentimos nos espaos que o corpo ocupa, a categoria Lugar. Tempo a categoria que representa o tempo cronolgico e o tempo subjetivo do partilhante. Nesta categoria importante conhecer como o tempo para o partilhante. Alguns minutos, dependendo da circunstncia, podem significar uma eternidade ou ainda a relao passado, presente e futuro pode dar-se de vrias maneiras subjetivamente. Uma pessoa pode viver intensamente o seu passado ou h aquela a quem importa mais o futuro. As relaes e a maneira como so vivenciadas pelo partilhante compem a categoria Relaes.Na Estrutura de Pensamento, apesar da rigidez que possa parecer significativa no termo estrutura, est relacionada maneira como a pessoa est dinamicamente na sua vida, em relao aos seus contextos e a si mesma. Representa a sua maneira de vir a ser. Assim sendo,

o estudo da Estrutura de Pensamento do partilhante que permite ao filsofo clnico observar os padres de movimentao existencial e de constituio estrutural do partilhante. A partir da compreenso de tais padres, possvel prever, por aproximao, provveis reaes do conjunto mediante modificaes de um de seus elementos (Aiub, p. 52, 2005).

Para o termo Pensamento, neste eixo so considerados no apenas o pensamento racional, mas se refere, tambm, ordem do querer, imaginar, sentir, amar, desejar. Os tpicos da EP so: Como o mundo parece, O que acha de si mesmo, Sensorial e Abstrato, Emoes, Pr-Juzos, Termos agendados no Intelecto, Termos: Universal, Particular e Singular, Termos: Unvoco e Equvoco, Discurso Completo e Incompleto, Estruturao de Raciocnio, Busca, Paixes Dominantes, Comportamento e Funo, Espacialidade: Inverso Recproca de Inverso Deslocamento Curto Deslocamento Longo, Semiose, Significado, Armadilha Conceitual, Axiologia, Tpico de Singularidade Existencial, Epistemologia, Expressividade, Papel Existencial, Ao, Hiptese, Experimentao, Princpios de Verdade, Anlise de Estrutura, Intersees de Estrutura de Pensamento, Matemtica Simblica, Autogenia. Os Submodos representam as formas que o partilhante tem para lidar com suas questes. Questes essas que dizem respeito ao mundo e maneira como o partilhante vive subjetivamente este mundo. H vrias maneiras possveis de agir de um partilhante, de forma que os Submodos, assim como todos os eixos da FC, devem ser analisados singularmente. Os Submodos so: Em direo ao termo singular, Em direo ao termo universal, Em direo ao termo singular, Em direo ao termo universal, Esquema Resolutivo, Em direo ao desfecho, Inverso, Recproca de Inverso, Diviso, Argumentao derivada, Atalho, Busca, Deslocamento Curto, Deslocamento longo, Adio, Roteirizar, Percepcionar, Esteticidade, Esteticidade Seletiva, Traduo, Informao Dirigida, Vice-conceito, Intuio, Retroao, Intencionalidade dirigida, Axiologia, Autogenia, Epistemologia, Reconstruo, Anlise indireta, Expressividade, Princpios de Verdade. Os Submodos servem ao filsofo clnico por ser o eixo a partir do qual ir realizar o planejamento clnico e de forma a analisar quais so as possibilidades de movimentaes existenciais, conforme o sentido que estas tm para o partilhante.

parte da coleta de dados verificar, no tpico da Anlise da Estrutura, quais so as possibilidades de movimentao daquela Estrutura de Pensamento. Em quais tpicos, categorias e a partir de quais Submodos possvel moviment-la. Onde h mais rigidez, maior flexibilidade. Quais so as aberturas para a construo de novos Submodos, para a modificao de pesos dos tpicos da Estrutura de Pensamento, para a incluso de novos tpicos, Submodos ou dados categoriais. (Aiub, 2005, p. 57)

Posto a rigorosa metodologia da FC, existiria um risco tecnocrtico tonar-se uma mera aplicao de mtodos e tcnicas - nesta proposta? Esta possibilidade pode ser desmantelada no momento em que o mtodo perde o seu af em detrimento do outro, a primazia daquele que vivencia e significa, de forma que o mtodo ajustvel. Por outro lado, h um mtodo, um caminho a percorrer que possibilita uma direo em qualquer sentido j que dependente do outro que se apresenta. Este caminho no definitivo, mas possibilita trazer luz a elaborao e reelaborao conceitual, nem que seja para ser contestado e temporizado. Que depois se transforme, modifique, sofra uma metamorfose, porm que exista para evocar como um chamamento para uma ao. No , portanto, um conjunto de tcnicas empregadas, usadas segundo parmetros rgidos, seno uma empreitada obsessiva pela compreenso afinada daquele que se mostra (partilhante) para aquele com quem compartilha (filsofo), estando os dois em constante reciprocidade, numa relao na qual nenhum saber predomina e construdo no tempo da cumplicidade. Ao filsofo clnico cabe a qualidade do olhar, j que jamais chega totalidade do outro que se apresenta, pois algo sempre se-lhe-escapa. assim uma possibilidade, antes de tudo, de cuidado e de se estar junto.

REFERNCIAS:

AIUB, M. O incio da clnica: aproximaes e exames categoriais. Informao Dirigida, Porto Alegre - RS, v. 1, n.1, p. 11-27, 2005.________ Como ler a filosofia clnica: Prtica da autonomia do pensamento. 1. ed. So Paulo: Paulus, 2010. v. 1. 70p .________Para entender Filosofia Clnica: o apaixonante exerccio do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2008.

GOYA, Will. RASCUNHOS FILOSFICOS SOBRE UM (NOVO) CONCEITO TICO DE SUBJETIVIDADE EM CLNICA. Informao Dirigida, Porto Alegre/RS, v. 01, n.jan-jun, p. 141-155, 2005