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    Noam Chomsky

    O QUE O TIO SAM REALMENTE QUER

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    SOBRE O AUTOR

    Noam Chomsky uma das figuras mais importantes na Lingstica do sculo XX. Nascido emFiladlfia, em 1928, leciona, desde 1955, no Instituto Tecnolgico de Massachusetts, onde se tornoucatedrtico aos 32 anos.

    Alm de seu trabalho como lingista, Chomsky escreve livros sobre temas contemporneos. Suaspalestras tm despertado a ateno de platias em todo o pas e pelo mundo afora.

    Num mundo mais sensato, seus incansveis esforos para promover a justia j lhe teriam dadodireito ao Prmio Nobel da Paz, mas o Comit continua atribuindo-o a pessoas como HenryKissinger.

    Se voc est acostumado a pensar que os Estados Unidos so os defensores da democracia nomundo, certamente a leitura deste livro vai lhe parecer incrvel. Mas Chomsky um erudito, e,embora os fatos aqui descritos sejam conhecidos e falem por si ss, toda concluso sustentada porvolumosas provas documentais (veja nas pginas 133-138 as referncias a algumas delas).

    Foi muito difcil compilar o vasto espectro do pensamento social de Chomsky num livro topequeno. Voc encontrar, na pgina 139, uma lista de outros livros polticos do autor, que sereferem aos temas aqui introduzidos e com detalhes mais abrangentes.

    Arthur Naiman,Sandy Niemann

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    OS OBJETIVOS PRINCIPAIS DA POLTICA EXTERNA DOS ESTADOS UNIDOS

    A proteo do nosso territrio

    A relao entre os Estados Unidos e os outros pases obviamente remonta s origens da histria da

    Amrica, mas como a Segunda Guerra Mundial foi um verdadeiro divisor de guas, comecemosento por a.

    Enquanto a guerra promovia o enfraquecimento ou a destruio de nossos rivais industriais, aosEstados Unidos ela propiciava enormes benefcios. Nosso territrio jamais foi atacado, e a produoamericana mais que triplicou.

    Mesmo antes da guerra, os Estados Unidos j eram de longe o principal pas industrial do mundocomo o eram desde a virada do sculo.

    Mas, nesse momento, possuamos literalmente 50% da riqueza mundial e controlvamos os doislados dos dois oceanos. Nunca houve um perodo na histria em que uma nao tenha tido umcontrole e uma segurana do mundo to esmagadores.

    Aqueles que determinam a poltica norte-americana sabiam muito bem que os Estados Unidossairiam da Segunda Guerra como a primeira potncia global da histria, tanto assim que, durante edepois da guerra, j planejavam, cuidadosamente como. moldar o mundo do ps-guerra. Como esta uma sociedade aberta, podemos ler os planos deles, muito claros e francos.

    Os estrategistas norte-americanos - desde os ligados ao Departamento de Estado at os do Conselhode Relaes Exteriores (um dos grandes canais pelos quais lderes empresariais influenciam apoltica externa) - concordaram que o domnio dos Estados Unidos tinha de ser mantido. Mas haviauma divergncia de opinio sobre como fazer isso.

    Na extrema linha dura, temos documentos como o Memorando 68 do Conselho de SeguranaNacional (de 1950). O CSN 68 desenvolveu as opinies do secretrio de Estado Dean Acheson e foiescrito por Paul Nitze, que ainda anda por a (ele foi um dos negociadores do controle dearmamentos de Ronald Reagan). O CSN 68 propunha uma "estratgia de empurrar para trs", que"fomentaria as sementes da destruio dentro do sistema sovitico, para que pudssemos entonegociar um pacto, em nossos termos, com a Unio Sovitica" (um Estado ou Estados sucessores).

    As polticas recomendadas pelo CSN 68 exigiriam sacrifcios e disciplina nos Estados Unidos emoutras palavras, gigantescos gastos militares e cortes nos servios sociais. Seria necessrio tambmsuperar o excesso de tolerncia que permite demasiada dissidncia interna.

    Essas polticas j estavam, de fato, sendo implementadas desde 1949, quando a espionagem dosEUA na Europa Oriental foi transferida para uma rede liderada por Reinhard Gehlen, que j haviadirigido a inteligncia militar nazista na Frente Leste da guerra. Essa rede era parte da aliana EUA-nazistas, que absorveu rapidamente muitos dos piores criminosos de guerra e estendeu suasoperaes para a Amrica Latina e para outras partes do mundo.

    Essas operaes incluam um exrcito secreto, patrocinado pela aliana EUA-nazistas, que seencarregava de fornecer agentes e provises militares a exrcitos que tinham sido criados por Hitler

    e que, no incio da dcada de 1950, ainda estavam operando na Unio Sovitica e no Leste Europeu.(Esse fato conhecido nos Estados Unidos, mas considerado insignificante, embora pudesseprovocar caras feias e viradas de mesas se descobrssemos, por exemplo, que a Unio Sovitica

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    enviara agentes e provises a exrcitos comandados por Hitler, que estavam operando nasMontanhas Rochosas.)

    O extremo-liberal

    O CSN 68 a extrema linha dura, e lembre-se: polticas no eram somente tericas, muitas delas jestavam realmente sendo implementadas. Agora, vejamos o outro extremo: o grupo denominado"os pombos", onde o principal pombo era, sem dvida, George Kennan, que dirigiu a equipe deplanejamento do Departamento de Estado at 1950, quando foi .substitudo por Nitze. A propsito,o escritrio de Kennan foi responsvel pela rede de Gehlen.

    Kennan era um dos mais inteligentes e lcidos estrategistas dos EUA e uma das mais importantespersonalidades na configurao do mundo ps guerra. Seus escritos so uma ilustraoextremamente interessante da posio dos "pombos". Se algum quiser realmente conhecer essepas, um documento bom para consultar o Estudo de Planejamento Poltico 23, escrito por Kennanpara a equipe de planejamento do Departamento de Estado, em 1948. Eis aqui um exemplo de seucontedo: Ns temos cerca de 50% da riqueza mundial, mas somente 6,3% de sua populao... Nestasituao, no podemos deixar de ser alvo de inveja e ressentimento. Nossa verdadeira tarefa, na prxima fase, planejar um padro de relaes que nos permitir manter esta posio dedesigualdade... Para agir assim, teremos de dispensar todo sentimentalismo e devaneio; nossaateno deve concentrar-se em toda parte, em nossos objetivos nacionais imediatos... Precisamos parar de falar de vagos e... irreais objetivos, tais como direitos humanos, elevao do padro devida e democratizao. No est longe o dia em que teremos de lidar com conceitos de poder direto. Ento, quanto menos impedidos formos por slogans idealistas, melhor.

    O EPP 23 era, logicamente, um documento altamente secreto. Para pacificar o povo, era necessriodifundir "slogans idealistas" (como ainda constantemente feito), mas aqui os estrategistas estavamfalando entre si.

    Seguindo essas mesmas linhas, numa reunio de embaixadores americanos na Amrica Latina, em1950, Kennan observou que a maior preocupao da poltica externa norte-americana deve ser "aproteo das nossas (isto , da Amrica Latina) matrias-primas". Devemos, portanto, combater aperigosa heresia que, segundo informava a Inteligncia americana, estava se espalhando pelaAmrica Latina: "A idia de que o 'governo tem responsabilidade direta pelo bem do povo".

    Os estrategistas americanos chamam essa idia de comunismo, seja qual for a real opinio daspessoas que a defendem. Elas podem formar grupos de auto-ajuda, baseados na Igreja, ou quaisqueroutros, mas se elas apiam tal heresia, elas so comunistas.

    Essa posio tambm clara nos arquivos pblicos. Por exemplo, um grupo de estudos de alto nveldeclarou, em 1955, que a ameaa principal das potncias comunistas (o verdadeiro sentido do termocomunismo na prtica) a recusa em exercer seu papel servial, isto , o de "complementar aseconomias industriais do Ocidente".

    Kennan seguiu explicando os meios que devamos utilizar contra os inimigos que caam nessaheresia:

    A resposta final pode ser desagradvel, mas... no devemos hesitar diante da represso policial dogoverno local. Isso no vergonhoso, porque os comunistas so essencialmente traidores...

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    melhor ter um regime forte no poder do que um governo liberal, indulgente, brando e infiltrado decomunistas.

    Tais polticas no comearam com liberais ps-guerra como Kennan. H trinta anos, o secretrio deEstado de Woodrow Wilson j havia declarado que o significado prtico da Doutrina Monroelevava em conta que "os Estados Unidos consideram seus prprios interesses. A integridade das

    outras naes americanas um mero acidente, no um fim". Wilson, o grande apstolo daautodeterminao, concordou que o argumento era "irrefutvel", embora fosse "apoltico"apresent-lo publicamente.

    Wilson agiu de acordo com esse pensamento ao invadir, entre outras coisas, o Haiti e a RepblicaDominicana, onde seus soldados assassinaram, destruram e demoliram o sistema poltico vigente,deixando as empresas norte-americanas firmemente no controle e preparando, assim, o cenrio paraditaduras brutais e corruptas.

    A "Grande rea''

    Durante a Segunda Guerra Mundial, grupos de estudo do Departamento de Estado e do Conselho deRelaes Exteriores desenvolveram planos para o mundo ps-guerra nos termos do que elesdeterminaram a "Grande rea", para que esta fosse subordinada s necessidades da economia norteamericana.

    Estavam includos na "Grande rea" o Hemisfrio Ocidental, a Europa Ocidental, o Oriente, oantigo Imprio Britnico (que estava sendo desmantelado), as incomparveis fontes de energia doOriente Mdio (que estavam passando ento para as mos americanas ao mesmo tempo em queexpulsvamos nossos rivais, Frana e Inglaterra), o resto do Terceiro Mundo e, se possvel, omundo inteiro. Esses planos foram sendo executados medida que as oportunidades permitiam.

    A cada setor da nova ordem mundial foi designada uma funo especfica. Os pasesindustrializados seriam guiados pelas "grandes oficinas", Alemanha e Japo, que tinhamdemonstrado sua proeza na guerra (e agora estavam trabalhando sob a superviso norte-americana).

    Ao Terceiro Mundo cabia executar sua principal funo de fonte de matrias primas e demarcado para as sociedades industriais capitalistas, como dizia um memorando do Departamentode Estado, de 1949. Era para ser explorado (nas palavras de Kennan) para a reconstruo daEuropa e do Japo. (As referncias foram feitas ao Sudeste Asitico e a frica, mas as questesforam colocadas de modo geral.)

    Kennan sugeriu at mesmo que a Europa receberia assim um estmulo psicolgico com o projeto deexplorao da frica. Naturalmente, ningum sugeriu que a frica explorasse a Europa para suareconstruo, melhorando talvez seu estado de esprito. Esses documentos liberados so lidossomente por estudiosos, que parecem no encontrar nada de estranho ou dissonante em tudo isso.

    A Guerra do Vietn emergiu da necessidade de garantir esse papel de servial. Os vietnamitasnacionalistas no quiseram aceitar isso e, portanto, tinham de ser esmagados. A ameaa no era a deque eles iriam conquistar algum, mas que eles poderiam dar um exemplo perigoso deindependncia nacional, que inspiraria outros pases na regio.

    O governo dos EUA tinha de desempenhar dois importantes papis. O primeiro era o de garantir osdistantes domnios da Grande rea. Isso exigia uma postura bastante ameaadora, para assegurar

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    que ningum interferisse nessa tarefa motivo pelo qual houve tantas campanhas dirigidas para asarmas nucleares.

    O segundo papel era conseguir subvenes pblicas para a indstria de alta tecnologia. Por vriosmotivos, o mtodo adotado tem sido, em grande parte, a aplicao em gastos militares.

    Livre comrcio um bom termo para ser utilizado nos departamentos de economia e em editoriaisde jornais, mas ningum do mundo empresarial, nem do governo, leva a srio esse doutrina. Ossetores da economia americana que podem competir internacionalmente so, principalmente,aqueles subvencionados pelo governo: a agricultura intensiva, em termos de capital (aagroempresa,como chamada), a indstria de alta tecnologia, a indstria farmacutica, a indstriabiotecnolgica, etc.

    O mesmo vlido para outras sociedades industriais. O governo dos EUA faz o povo pagar pelapesquisa e pelo desenvolvimento e proporciona, em grande parte por intermdio dos militares, ummercado garantido para a produo suprflua. Se algo comercivel, o setor privado encarrega-sedele. O sistema de subsdio pblico e lucro privado o que eles chamam delivre empresa.

    A restaurao da ordem tradicional

    Os estrategistas do mundo ps-guerra, como Kennan, por exemplo, logo perceberam que ia serimprescindvel, para o bem das empresas americanas , que as outras sociedades ocidentais serefizessem dos prejuzos da guerra, para que pudessem importar mercadorias manufaturadas dosEUA, e assim, fornecerem oportunidades de investimentos. (Estou incluindo aqui o Japo comoparte do Ocidente, seguindo a conveno sul-africana de tratar os japoneses como "brancoshonorrios".) Entretanto, era fundamental que essas sociedades se reconstrussem de uma maneirabem especfica.

    A ordem tradicional de direita tinha de ser restabelecida, com a dominao das empresas com adiviso e o enfraquecimento dos sindicatos e com o peso da reconstruo sendo colocadointeiramente nos ombros da classe trabalhadora e dos pobres.

    O principal obstculo no caminho era a resistncia antifascista. Ns, ento, a reprimimos no mundointeiro e instalamos em seu lugar, na maioria das vezes, fascistas e ex-colaboradores nazistas. svezes, isso requeria extrema violncia, mas, em outras, isso era feito por meio de medidas maissuaves, como subverter eleies ou esconder alimentos extremamente necessrios. (Este deveria sero captulo 1 de qualquer histria honesta do perodo ps-guerra, mas, na verdade, isso raramente discutido.)

    Esse modelo poltico foi estabelecido em 1942, quando o presidente Roosevelt colocou o almirantefrancs Jean Darlan como govemador-geral de toda frica do Norte francesa. Darlan era um dosprincipais colaboradores nazistas e autor de leis anti-semitas, promulgadas no governo de Vichy (oregime fantoche dos nazistas na Frana).

    Entretanto, muito mais importante foi o caso primeira rea liberada da Europa - o Sul da Itlia -,onde os EUA, seguindo o conselho de Churchill, impuseram uma ditadura de direita liderada peloheri de guerra fascista, o marechal de campo Badglio, e pelo rei Victor Emmanuel III, quetambm foi um colaborador fascista.

    Os estrategistas norte-americanos reconheceram que a "ameaa" na Europa no era a agressosovitica (que analistas srios como Dwight Eisenhower no previram), mas a resistncia

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    antifascista operria e camponesa com seus ideais democrticos radicais, o poder poltico e aatrao dos partidos comunistas locais.

    Para evitar um colapso econmico, que aumentaria a influncia desses partidos, e para reconstruiras economias capitalistas dos pases da Europa Ocidental, os EUA instituram o Plano Marshall(sob o qual a Europa foi subvencionada em mais de 12 bilhes de dlares, entre 1948 e 1951, com

    emprstimos e concesses, fundos estes utilizados na compra de um tero das exportaes norteamericanas para a Europa no auge do ano de 1949.

    Na Itlia, um movimento de base operria e camponesa, liderado pelo Partido Comunista, haviatomado seis divises alemes durante a guerra e libertado o Norte da Itlia. Quando as foras norte-americanas avanaram pela Itlia, dispersaram essa resistncia antifascista e restauraram a estruturabsica do regime fascista anterior guerra.

    A Itlia tinha sido uma das principais reas de subverso da CIA - Central de IntelignciaAmericana - desde que a agncia foi fundada. A CIA estava preocupada que os comunistasganhassem o poder nas decisivas eleies italianas de 1948. Muitas tcnicas foram utilizadas,inclusive a restaurao da polcia fascista, que destruiu sindicatos e escondeu alimentos. Mas, aindaassim, no estava claro que o Partido Comunista seria derrotado.

    O primeiro memorando do Conselho de Segurana Nacional (CSNI-1948) especificou uma srie deaes que os EUA realizariam se acaso os comunistas vencessem as eleies. Uma das respostasplanejadas seria a interveno armada, com ajuda militar, em operaes secretas na Itlia.

    Algumas pessoas, especialmente George Kennan, propuseram ao militar antes das eleies. Eleno queria riscos, mas outros o convenceram de que poderiam ganhar por meio da subverso, o quese concretizou realmente.

    Na Grcia, as tropas britnicas entraram depois que os nazistas se haviam retirado. Impuseram umregime to corrupto que provocou nova resistncia. Como a Inglaterra, em seu declnio ps-guerra,foi incapaz de manter o controle. Em 1947, os Estados Unidos entraram, apoiando uma guerraassassina, que resultou em 160.000 mortes.

    Foi uma guerra repleta de torturas, exlios polticos de dezenas de milhares de gregos, e aquilo quechamamos "campos de reeducao" para outras dezenas de milhares de pessoas, destruio desindicatos e nenhuma possibilidade de independncia poltica.

    A Grcia foi decididamente colocada nas mos de investidores americanos e empresrios locais,enquanto grande parte da populao teve de emigrar para sobreviver. Os beneficirios foram oscolaboradores nazistas, e as principais vtimas foram os trabalhadores e os camponeses daresistncia antinazista, liderada pelos comunistas.

    A nossa vitoriosa "defesa" da Grcia contra sua prpria populao serviu de modelo para a Guerrado Vietn - como explicou Adlai Stevenson, na ONU, em 1964. Os conselheiros de Reagan usaramexatamente o mesmo modelo, falando sobre a Amrica Central. E o mesmo padro foi seguido emmuitos outros lugares.

    No Japo, o governo de Washington iniciou, em 1947, o chamado "caminho inverso", que reverteuos primeiros passos em direo democratizao empreendida pela administrao militar do

    general MacArthur. O "caminho inverso" reprimiu os sindicatos e outras foras democrticas ecolocou o pas firmemente nas mos dos empresrios, que haviam apoiado o fascismo japons - umsistema misto de poder estatal e privado que dura at hoje.

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    Quando as foras norte-americanas entraram na Coria, em 1945, dissolveram o governo popularlocal, composto basicamente de antifascistas, que resistiram aos japoneses. Os EUA inauguraram a uma represso brutal, usando a polcia fascista japonesa e coreanos que haviam colaborado com os japoneses durante a ocupao. Cerca de cem mil pessoas foram assassinadas na Coria do Sul antesdaquilo que chamamos Guerra da Coria. Inclusive, foram mortas entre trinta e quarenta mil

    pessoas durante represso a uma revolta camponesa, na pequena regio da Ilha de Cheju.O golpe fascista na Colmbia, inspirado pela Espanha de Franco, trouxe pouco protesto do governonorte-americano. A mesma coisa ocorreu com o golpe militar na Venezuela e com a restaurao deum admirador do fascismo no Panam. Mas o primeiro governo democrtico da histria daGuatemala, inspirado no New Deal de Roosevelt, provocou um amargo antagonismo norte-americano.

    Em 1954, a CIA maquinou um golpe que transformou a Guatemala num inferno em terra. E, desdeento, mantm-se assim, com interveno e apoio regular dos EUA, especialmente durante osgovernos Kennedy e Johnson.

    Outro aspecto da represso resistncia antifascista foi o recrutamento de criminosos de guerracomo Klaus Barbie, um oficial da SS que havia sido chefe da Gestapo em Lyon, na Frana. L, elerecebeu o apelido de "aougueiro de Lyon". Embora ele tivesse sido responsvel por crimeshediondos, o Exrcito dos EUA encarregou-o da espionagem na Frana.

    Quando Barbie foi finalmente trazido de volta Frana, em 1982, para ser julgado como criminosode guerra, seu emprego como agente foi assim explicado pelo coronel (aposentado) Eugene Kolb,corpo de contra-espionagem do Exrcito americano: "As 'habilidades' [de Barbie] eram um malnecessrio... Suas atividades haviam sido dirigidas contra o clandestino Partido Comunista e contraa Resistncia Francesa", que j eram alvo da represso dos libertadores norte-americanos.

    J que os Estados Unidos continuavam onde os nazistas tinham desistido, fazia muito sentidoaproveitar os especialistas em atividades anti resistncia. Mais tarde, quando se tornou difcil, ouimpossvel, proteger esse valioso pessoal na Europa, muitos deles esconderam-se nos EstadosUnidos ou na Amrica Latina, muitas vezes com a ajuda do Vaticano e de padres fascistas.

    L, eles se tornaram conselheiros militares de governos policiais, apoiados pelos Estados Unidos,inspirados, muitas vezes quase abertamente, no Terceiro Reich. Eles tambm se tornaramtraficantes de drogas, comerciantes de armas, terroristas e educadores - ensinando a camponeseslatino americanos tcnicas de tortura inventadas pela Gestapo. Alguns alunos nazistas fizeram odever de casa na Amrica Central, estabelecendo, deste modo, uma ligao direta entre os camposde extermnio e os esquadres da morte, tudo graas aliana ps-guerra entre os EUA e os SS.

    Nosso compromisso com a democracia

    Com um documento de alto nvel atrs do outro, os estrategistas norte-americanos expunham aviso de que a principal ameaa nova ordem mundial, liderada pelos EUA, era o nacionalismo doTerceiro Mundo - algumas vezes chamado de ultranacionalismo: os "regimes nacionalistas" queatendem s "exigncias populares de elevao imediata dos baixos padres de vida das massas" eproduo de bens que satisfaam s suas necessidades bsicas.

    As metas bsicas dos estrategistas, insistentemente repetidas, eram evitar que os ultranacionalistastomassem o poder, se por um golpe de sorte eles chegassem ao poder, retir-los e instalar ali

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    governos que favorecessem os investimentos privados do capital interno e externo, a produo paraexportao e o direito de remessa de lucros para fora do pas. (Essas metas nunca foram contestadasnos documentos secretos. Para um estrategista da poltica norte-americana, essas metaspraticamente fazem parte do ar que ele respira.)

    A oposio democracia e s reformas sociais nunca popular no pas vtima. No se consegue

    estimular muito as pessoas que a vivem com isso. exceto um pequeno grupo ligado s empresasnorte americanas, que naturalmente vai lucrar com isso.

    Os EUA esperam contar com a fora e fazer alianas com os militares - "o grupo menosantiamericano da Amrica Latina", como disseram os estrategistas de Kennedy -, de modo que sepode confiar neles para esmagar qualquer grupo popular local que saia do controle.

    Os EUA esto dispostos a tolerar reformas sociais como na Costa Rica, por exemplo, somentequando so eliminados os direitos dos trabalhadores e preservadas as condies para osinvestimentos estrangeiros. Devido ao governo da Costa Rica ter sempre respeitado esses doisprincpios imperativos que o deixaram seguir com suas reformas.

    Outro problema, que repetidamente apontado nesses documentos secretos, o excessivoliberalismo dos pases do Terceiro Mundo. Esse particularmente o problema da Amrica Latina,onde os governos no esto suficientemente comprometidos com o controle de idias, restries deviagens e onde o sistema judicial to deficiente que exige prova para acusao de crimes.

    Essa foi uma das constantes queixas durante o perodo Kennedy (depois dele, os arquivos no forammais colocados disposio do pblico). Os liberais de Kennedy eram inflexveis sobre anecessidade de vencer os excessos democrticos que permitem a "subverso", que para eles, claro,significava pessoas pensando coisas erradas.

    Os EUA no primam, no entanto, pela falta de compaixo pelos pobres. Em meados da dcada de1950, por exemplo, nosso embaixador na Costa Rica recomendou que a United Fruit Company, quebasicamente governava a Costa Rica, apresentasse "uma ligeira e superficial encenao de interessehumano em relao aos trabalhadores, pois isso poderia ter um grande efeito psicolgico". Osecretrio de Estado John Foster Dulles concordou, dizendo ao presidente Eisenhower que, paramanter as massas da Amrica Latina na linha, "h que adul-las um pouco, para faz-las pensar quevoc gosta delas .

    Exposto tudo isso, fcil entender a poltica dos EUA para o Terceiro Mundo. Somos radicalmenteopostos democracia se seus resultados no podem ser controlados. O problema com asdemocracias verdadeiras e que elas podem fazer seus governantes carem na heresia deresponderem s necessidades de sua prpria populao, em vez das dos investidores norte-americanos.

    Um estudo do sistema interamericano, publicado pelo Instituto Real de Assuntos Internacionais, emLondres, concluiu que, enquanto os EUA falsamente louvam a democracia, seu compromissoverdadeiro com a "empresa capitalista privada". Quando os direitos dos investidores soameaados, a democracia tem de desaparecer; se esses direitos so salvaguardados. assassinos etorturadores so bem-vindos.

    Governos parlamentaristas foram derrubados com o apoio dos EUA e, algumas vezes, com

    interveno direta. No Ir, em 1953; na Guatemala, em 1954 (e em 1963, quando Kennedy apoiou ogolpe militar para evitar a ameaa do retorno democracia); na Repblica Dominicana, em 1963 e

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    1965; no Brasil, em 1964; no Chile, em 1973, e freqentemente em outros lugares. Nossa polticaem geral tem sido a mesma, tanto em El Salvador como em outras partes do mundo.

    Os mtodos no so l muito agradveis. O que as foras contra-insurgentes americanas fizeram naNicargua, ou o que os nossos substitutos terroristas fazem em El Salvador ou na Guatemala, no apenas matana comum, o principal componente a tortura brutal e sdica, batendo bebs contra

    pedras, pendurando mulheres pelos ps, com os seios cortados, a pele do rosto escalpelada, parasangrarem at a morte, ou cortando a cabea de pessoas, colocando-as em estacas. A questo esmagar o nacionalismo independente e as foras populares que possam construir uma democraciagenuna.

    A ameaa do bom exemplo

    Nenhum pas est isento desse tratamento, no importa o quo insignificante ele seja. Na verdade,so os pases mais fracos e mais pobres que causam as maiores histerias.

    Veja o Laos dos anos 1960, provavelmente o pas mais pobre do mundo. A maioria de seushabitantes nem mesmo sabia que tal coisa chamada Laos existia, eles s sabiam que havia umaaldeiazinha aqui e outra acol mais prxima.

    Mas to logo uma pequena revoluo social comeou a aparecer ali, Washington submeteu o Laos aum mortfero "bombardeio secreto"* destruindo virtualmente grandes reas habitadas, comoperaes que, como foi admitido depois, nada tinham a ver com a guerra que os EUA estavamtravando no Vietn do Sul.

    Granada tem cem mil habitantes, que produz em noz-moscada, e mal pode ser encontrada no mapa.Mas quando Granada iniciou uma incipiente revoluo social, Washington imediatamente entrouem ao para destruir a ameaa.

    Desde a Revoluo Bolchevique de 1917 at a queda dos governos comunistas do Leste Europeu,no final da dcada de 1980, era possvel justificar qualquer ataque norte-americano como defesacontra a ameaa sovitica. Ento, quando os Estados Unidos invadiram Granada, em 1983, opresidente do Estado-Maior Conjunto das Foras Armadas explicou que, na eventualidade de umataque sovitico na Europa Ocidental, uma Granada hostil poderia proibir o abastecimento depetrleo no Caribe para a Europa Ocidental e, ento, no poderamos defender nossos aliadossitiados. Agora isso parece cmico, mas esse tipo de histria ajuda a mobilizar a opinio pblicapara apoiar a agresso, o terror e a subverso.

    O ataque contra a Nicargua foi justificado sob a alegao de que, se no os contivssemos l,"eles" poderiam ultrapassar a fronteira de Harlingen, no Texas - apenas dois dias de carro. (Para aspessoas mais instrudas, havia outras desculpas mais sofisticadas e certamente mais plausveis.)

    A Nicargua to importante para o empresariado americano que ela poderia sumir do mapa queningum perceberia. A mesma coisa com El Salvador. Mas ambos tm sido submetidos a assaltoshomicidas pelos Estados Unidos, com o custo de centenas de milhares de vidas e muitos bilhes dedlares._____________________________________________________________* N.T.: O autor refere-se aqui logicamente no-divulgao do fato na mdia local e internacional,

    poca do acontecimento.

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    tripolarismo ou trilateralismo - ou seja, os trs maiores blocos econmicos que competem entre si.O primeiro bloco baseado no yen, com o Japo no centro e as antigas colnias japonesas naperiferia.

    Retrocedendo aos anos 1930 e 1940, o Japo chamou isso de a Grande Esfera da Co-Prosperidadeda sia Oriental. O conflito com os Estados Unidos nasceu da tentativa de o Japo exercer ali o

    mesmo tipo de controle que as potncias ocidentais exerciam em suas respectivas esferas. Mas apsa guerra ns reconstrumos a regio para eles. E no tivemos, ento, nenhum problema com que oJapo a explorasse - s que agora o Japo teria de explor-la sob nosso abrangente poder.

    H muitas tolices escritas acerca de como o Japo, de fato, tornou-se um grande competidor, queprovam que somos honrados e fortalecemos nossos inimigos. As verdadeiras opes polticas,entretanto, eram mais estreitas. Uma era restaurar o imprio japons, mas agora sob nosso totalcontrole (essa foi a poltica seguida).

    A outra opo era ficar fora da regio e permitir ao Japo e ao resto da sia seguirem caminhosindependentes, excludos da "Grande rea" de controle norte-americano. Isso era impensvel.

    Alm disso, depois da Segunda Guerra, o Japo no era considerado como possvel concorrente,mesmo num futuro remoto. Especulou-se talvez, a certa altura dos acontecimentos, que o Japoseria capaz de produzir algumas bugigangas, nada mais que isso. (Havia um forte componente deracismo nisso.) O Japo recuperou-se em grande parte por causa da Guerra da Coria e depois coma Guerra do Vietn, que estimulou a produo japonesa e trouxe enormes lucros ao Japo.

    Alguns estrategistas, logo no incio do ps-guerra, foram mais perspicazes, entre eles GeorgeKennan. Ele props que os EUA estimulassem o Japo a se industrializar, mas com limite: os EUAcontrolariam a importao do petrleo japons. Kennan disse que isso dar-nos-ia "poder de veto", seacaso o Japo sasse fora da linha. Os EUA seguiram esse conselho, mantendo o controle doabastecimento e das refinarias de petrleo. Ainda no incio da dcada de 1970, o Japo controlavasomente cerca de 10% de seu prprio abastecimento de petrleo.

    Esse um dos principais motivos pelo qual os EUA tm se interessado tanto pelo petrleo doOriente Mdio. No precisvamos do petrleo para ns mesmos; a Amrica do Norte liderava, at1968, a produo mundial de petrleo. Entretanto, queremos realmente manter as mos na alavancado poder mundial, e nos assegurar que os lucros fluam principalmente para os Estados Unidos epara a Inglaterra. por isso que mantemos bases militares nas Filipinas. Elas so parte de umsistema global de interveno apontada para o Oriente Mdio, para garantir que as foras locais nosucumbam ao "ultranacionalismo".

    O segundo maior bloco competitivo est baseado na Europa e dominado pela Alemanha, que estdando um grande passo em direo consolidao do Mercado Comum Europeu. A Europa. temuma economia mais forte que a dos Estados Unidos, alm de uma populao maior e mais beminstruda.

    Se um dia ela agir conjuntamente e se tornar um poder integrado, os EUA podero tornar-se umapotncia de segunda classe. Isso provvel com uma Europa dirigida pela Alemanha, tomando aliderana na restaurao da Europa Oriental, em seu tradicional papel de colnia econmica,basicamente parte do Terceiro Mundo.

    O terceiro bloco dominado pelos Estados Unidos e baseado no dlar. Foi recentemente ampliadocom a incluso do Canad, maior parceiro comercial, e logo incluir o Mxico e outras partes do

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    hemisfrio, por meio do "tratado de livre comrcio", projetado, em primeiro lugar, para osinteresses dos investidores norte-americanos e seus associados.

    Ns sempre assumimos que a Amrica Latina nos pertence por direito. Como Henry Stimson(secretrio de Guerra, sob FDR e Taft, e secretrio de Estado de Hoover) uma vez declarou "nossaregiozinha, logo ali, que nunca incomodou ningum". A consolidao do bloco, baseado no dlar,

    significa que o esforo para frustrar o desenvolvimento independente na Amrica Central e noCaribe vai continuar.

    A menos que voc entenda nossas lutas contra nossos rivais industriais e o Terceiro Mundo, apoltica externa norte-americana parece ser uma srie de erros ocasionais, inconsistentes e confusos.Na verdade, nossos lderes tm sido mais que bem-sucedidos, dentro dos limites de suaspossibilidades, nas tarefas a eles atribudas.

    Nossa poltica de boa vizinhana

    Como os preceitos desenvolvidos por George Kennan foram seguidos? Como deixamos inteiramente de lado a preocupao com os "objetivos vagos e irreais tais como os direitos humanos, aelevao do padro de vida e a democratizao?" J expus nosso "compromisso com a democracia,mas e quanto s outras duas questes?

    Vamos focalizar a Amrica Latina, e comear olhando para os direitos humanos. Um estudo feitopor Lars Schoultz, um destacado acadmico especialista em direitos humanos da Amrica Latina,mostra que "a ajuda norte-americana tende a ser desproporcionalmente distribuda para os governos"latino-americanos que torturam seus cidados. No tem nada a ver com quanto o pas precisa deajuda, somente com sua disposio em servir riqueza e ao privilgio.

    Estudos mais profundos, feitos pelo economista Edward Herman, revelam uma estreita correlaoem todo o mundo entre a tortura e a ajuda norte-americana e fornecem uma explicao: ambas secorrelacionam com a melhoria das condies de operaes das empresas. Em comparao com esteguia de princpios morais, assuntos tais como tortura e carnificina caem na insignificncia.

    E a elevao do padro de vida? Isso foi supostamente tratado na Aliana para o Progresso pelopresidente Kennedy, mas o tipo de desenvolvimento imposto foi direcionado, em sua maior parte,para as necessidades dos investidores norte-americanos. A Aliana fortificou e ampliou o sistemavigente, pelo qual os latino-americanos produzem colheitas para exportao e reduzem as colheitasde subsistncia, como milho e feijo, cultivadas para o consumo local. Com o programa da Aliana,por exemplo, a produo de carne aumentou, enquanto o consumo interno de carne diminuiu.

    Esse modelo agroexportativo de desenvolvimento, em geral, produz um "milagre econmico" ondeo PNB - Produto Nacional Bruto - sobe, enquanto a maioria da populao morre de fome. Quandose segue tal orientao poltica, a oposio popular inevitavelmente aumenta, o que, ento, sereprime com terror e tortura.

    (O uso do terror profundamente arraigado em nosso carter. Nos idos de 1818, John QuincyAdams elogiou a "eficcia salutar" do terror em se tratando das "hordas misturadas de ndios enegros sem lei". Ele escreveu isso para justificar a violncia de Andrew Jackson, na Flrida, quepraticamente exterminou a populao nativa e deixou a provncia espanhola sob o controle

    americano, impressionando muito Thomas Jefferson e outros mais com sua sabedoria.)

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    O primeiro passo o uso da polcia; ela decisiva porque sabe detectar logo o descontentamento eelimin-lo antes da "grande cirurgia (como chamada nos documentos de planejamento) sernecessria. Se a "grande cirurgia" for necessria, ns contamos com o Exrcito. Quando noconseguimos mais controlar o Exrcito dos pases da Amrica Latina - particularmente a regio doCaribe e da Amrica Central - tempo de derrubar o governo.

    Os pases que tentaram inverter as regras, como a Guatemala, sob os governos capitalistasdemocrticos de Arvalo e Arbenz, ou a Repblica Dominicana, sob o regime capitalistademocrtico de Bosch, tornaram-se alvo da hostilidade e da violncia dos Estados Unidos.

    O segundo passo utilizar os militares. Os EUA sempre tentaram estabelecer relaes estreitas comos militares de pases estrangeiros, porque essa uma das maneiras de derrubar um governo quesaiu fora do controle. Assim foram assentadas as bases para os golpes militares no Chile, em 1973,e na Indonsia, em 1965.

    Antes desses golpes, ramos bastante hostis ,aos governos do Chile e da Indonsia, mascontinuvamos enviando armas. Mantenha boas relaes com os oficiais certos e eles derrubaro ogoverno para voc. O mesmo raciocnio motivou o fluxo de armas dos Estados Unidos para o Irvia Israel, desde o incio de 1980. De acordo com altos oficiais israelenses envolvidos, esses fatoseram conhecidos j em 1982, muito antes de haver refns.

    Durante o governo Kennedy, a misso dos militares latino-americanos, dominados pelos EUAmudou de "defesa hemisfrica" para "segurana interna" (que basicamente significa guerra contra a,prpria populao). Essa deciso fatdica implicou a "direta cumplicidade [dos Estados Unidos]"com "os mtodos dos esquadres de extermnio de Heinrich Himler", no julgamento retrospectivode Charles Maechling, que foi encarregado do planejamento de contra-insurgncia, de 1961 a 1966.

    O governo Kennedy preparou o caminho para o golpe militar no Brasil em 1964, ajudando aderrubar a democracia brasileira, que se estava tornando independente demais. Enquanto os EstadosUnidos davam entusiasmado apoio ao golpe, os chefes militares instituam um estado de segurananacional de estilo neonazista, com represso, tortura, etc. Isso provocou uma exploso deacontecimentos semelhantes na Argentina, no Chile e em todo o hemisfrio, desde os meados de1960 at 1980 - um perodo extremamente sangrento.

    (Eu penso, falando do ponto de vista legal, que h um motivo bem slido para acusar todos ospresidentes norte-americanos desde a Segunda Guerra Mundial. Eles todos tm sido verdadeiroscriminosos de guerra ou estiveram envolvidos em crimes de guerra.)

    Os militares agem de maneira tpica para criar um desastre econmico, seguindo freqentementereceita de conselheiros norte-americanos, e depois decidem entregar os problemas para os civisadministrarem. Um controle militar aberto no mais necessrio, pois j existem novas tcnicasdisponveis, por exemplo, o controle exercido pelo Fundo Monetrio Internacional (o qual, assimcomo o Banco Mundial, empresta fundos s naes do Terceiro Mundo, a maior parte fornecida emlarga escala pelas potncias industriais).

    Em retribuio aos seus emprstimos, o FMI impe a "liberalizao": uma economia aberta penetrao e ao controle estrangeiros, alm de profundos cortes nos servios pblicos em geral paraa maior parte da populao, etc. Essas medidas colocam o poder decididamente nas mos dasclasses dominantes e de investidores estrangeiros (estabilidade"), alm de reforar as duas

    clssicas camadas sociais do Terceiro Mundo - a dos super-ricos (mais a classe dos profissionaisbem sucedidos que a serve) e a da enorme massa de miserveis e sofredores.

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    A dvida e o caos econmico deixados pelos militares garantem, de forma geral, que as regras doFMI sero obedecidas - a menos que as foras populares queiram entrar na arena poltica. Nestecaso, os militares talvez tenham de reinstalar a "estabilidade".

    O Brasil um exemplo esclarecedor desse caso. Sendo um pas muito bem dotado de recursos

    naturais, alm de ter um alto desenvolvimento industrial, deveria ser uma das naes mais ricas domundo. Mas graas, em grande parte, ao golpe de 1964 e ao to aclamado "milagre econmico" quese seguiu ao golpe (sem falar nas torturas, assassinatos e outros instrumentos de "controle dapopulao"), a situao de muitos brasileiros , agora, provavelmente parecida com a da Etipia - ebem pior que a da Europa Oriental, por exemplo.

    O Ministrio da Educao informa que mais de um tero do oramento educacional vai para aalimentao escolar, porque a maioria dos estudantes da rede pblica ou come na escola ou nocome.

    De acordo com a revista South (uma revista de reportagens sobre empresas do Terceiro Mundo), oBrasil tem uma taxa de mortalidade infantil maior que a do Sri Lanka. Um tero da populao viveabaixo da linha da misria e "sete milhes de crianas abandonadas pedem esmola, roubam echeiram cola nas ruas. E para milhares delas a casa um barraco na favela... ou cada vez mais umpedao de terra embaixo da ponte.

    Isso o Brasil, um dos pases de natureza mais rica do planeta.

    A situao semelhante em toda a Amrica Latina. Apenas na Amrica Central o nmero depessoas assassinadas pelas foras apoiadas pelos EUA, desde o final de 1970, gira em torno deduzentos mil, ao mesmo tempo que os movimentos populares, que visavam obter a democracia e areforma social, foram dizimados. Essas faanhas qualificam os Estados Unidos como fonte deinspirao para o triunfo da democracia em nosso tempo", nas admirveis palavras da liberal Nova Repblica. Tom Wolfe conta-nos que a dcada de 1980 foi "um dos grandes momentos de ,ouro dahumanidade, jamais vivido". Como diria Stalin:"estamos deslumbrados com tanto sucesso.

    A crucificao de El Salvador

    Por muitos anos, a represso, a tortura e o assassinato foram praticados em El Salvador porditadores instalados e sustentados pelo nosso governo, uma matria sem nenhum interesse aqui;alm disso, a histria nunca foi realmente contada. No final da dcada de 1970, entretanto, ogoverno norte-americano comeou a preocupar-se com dois fatos.

    Um era o de que Somoza, o ditador da Nicargua, estava perdendo o controle do pas. Os EstadosUnidos estavam perdendo a principal base para seus exerccios de fora na regio. Um segundoperigo era talvez o mais ameaador. Em El Salvador, nos anos 1970, houve um crescimento daschamadas "organizaes populares" - associaes camponesas, cooperativas, sindicatos emovimentos eclesiais de base - que se reuniam em torno de grupos de auto- ajuda, etc. Issoaumentou a ameaa democracia.

    Em fevereiro de 1980, o arcebispo de El Salvador, Don Oscar Romero, enviou uma carta ao

    presidente Carter em que implorava o no envio de ajuda militar para a junta que governava o pas.Ele dizia que tal ajuda seria usada para "estimular a injustia e a represso contra organizaes

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    populares" que estavam lutando "pelo respeito por seus direitos humanos mais elementares" (desnecessrio dizer que isso dificilmente seria notcia em Washington).

    Poucas semanas depois, o arcebispo Romero foi assassinado enquanto celebrava uma missa. Oneonazista Roberto D'Aubuisson foi considerado totalmente responsvel pelo assassinato (entreoutras incontveis atrocidades).

    D'Aubuisson foi "lder vitalcio" do Arena, partido que ainda governa El Salvador; os membrosdesse partido, como o ex-presidente Alfredo Cristiani, tinham de fazer um juramento de sangue emlealdade a ele.

    Dez anos depois, milhares de camponeses e pobres da regio urbana participaram de uma missacomemorativa, juntamente com inmeros bispos estrangeiros, mas os Estados Unidos foramnotados pela ausncia. A Igreja salvadorenha props formalmente a canonizao de Romero.

    Tudo isso se passou com raras referncias no pas que subvencionou e treinou os assassinos de DomRomero. OThe New York Times, o "jornal testemunha", no publicou nenhum editorial sobre oassassinato quando ele ocorreu, nem nos anos seguintes, e tambm nenhum editorial ou reportagemfoi feita sobre a comemorao.

    Em 7 de maro de 1980, duas semanas antes do assassinato, foi institudo um estado de stio em ElSalvador, e a guerra contra a populao comeou com fora total (e com o contnuo apoio eenvolvimento dos Estados Unidos). O primeiro e principal ataque foi o grande massacre de RioSumpul, uma operao militar, coordenada pelos exrcitos hondurenhos e salvadorenhos, na qualpelo menos seiscentas pessoas foram massacradas. Crianas foram cortadas em pedaos comfaces. mulheres foram torturadas e afogadas. Dias depois, partes dos corpos ainda eramencontradas no rio.Havia observadores da Igreja, de modo que as informaes saamimediatamente, mas os principais meios de comunicao no acharam nada que valesse umareportagem.

    Os camponeses foram as principais vtimas dessa guerra, junto com lderes sindicais, estudantes,padres ou qualquer suspeito de trabalhar pelos interesses do povo. No ltimo ano do governoCarter, 1980, o nmero de mortes chegou a algo em torno de dez mil, aumentando para cerca de13.000 j sob o comando dos reaganistas.

    Em outubro de 1980, o novo arcebispo condenou "a guerra de extermnio e genocdio contra aindefesa populao civil", desencadeada pelas foras de segurana. Dois meses depois, estas foramaclamadas por seu "herico servio ao lado do povo, contra a subverso" pelo "moderado" favoritodos Estados Unidos, Jos Napolen Duarte, ao ser nomeado presidente civil da junta.

    O papel do "moderado" Duarte era manter a fachada para os dirigentes militares e garantir-lhes acontnua chegada de fundos norte-americanos, mesmo depois de as foras armadas terem violentadoe assassinado quatro freiras americanas, o que provocou protestos aqui. Trucidar salvadorenhos uma coisa, porm violentar e matar freiras americanas definitivamente um erro de relaespblicas. Os meios de comunicao de massa evitaram e abafaram a histria, seguindo a lideranado governo Carter e sua comisso de investigao.

    Os recm-chegados reaganistas foram mais longe, tratando de justificar a atrocidade, notadamente oministro de Estado Alexander Haig e a embaixatriz das Naes Unidas, Jeane Kirkpatrick. Mas

    ainda foi considerado se valia a pena ter um julgamento-farsa, enquanto anos mais tardedesculpavam a junta assassina - e naturalmente seu financiador.

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    Os jornais independentes de El Salvador, que poderiam ter informado essas atrocidades, foramdestrudos. Embora eles fossem abertamente a favor das empresas, eram ainda indisciplinadosdemais para o gosto dos militares. O problema foi resolvido entre 1980 e 1981, quando o editor deum desses jornais foi morto pelas foras de segurana e o outro fugiu para o exlio. Como decostume, esses acontecimentos foram considerados muito insignificantes para merecer mais que

    algumas palavras nos jornais norte-americanos.Em novembro de 1989, seis padres jesutas, cozinheira e a filha dela foram assassinados peloExrcito. Naquela mesma semana, pelo menos mais 28 civis salvadorenhos tambm foram mortos,inclusive a dirigente do principal sindicato, a lder de uma organizao universitria, nove membrosde uma cooperativa agrria indgena e dez estudantes universitrios.

    As agncias de notcias transmitiram uma reportagem por intermdio do correspondente da APDouglas Grant Mine, relatando como os soldados entraram num bairro operrio, prximo capitalde San Salvador, capturaram seis homens e mais um garoto de 14 anos, por medida de segurana.Em seguida, colocaram todos contra a parede e os fuzilaram. "Eles no eram padres nem defensoresdos direitos humanos", escreveu Mine, mas, mesmo assim, essas mortes passaram em grande partedespercebidas, assim como a reportagem de Mine.

    Os jesutas foram assassinados pelo Batalho Atlacatl, uma unidade de elite criada, treinada eequipada pelos Estados Unidos. A unidade foi formada em maro de 1981, quando 15 especialistasem contra-insurgncia, da Escola de Foras Especiais do Exrcito norte-americano, foram enviadospara El Salvador. Desde o incio, o Batalho esteve envolvido com o extermnio em massa. Umtreinador norte-americano descreveu seus soldados como "particularmente ferozes... Ns sempretivemos dificuldade em conseguir que eles capturassem os prisioneiros em vez de suas orelhas".

    Em dezembro de 1981, o Batalho participou de uma operao na qual foram mortos mais de milcivis, numa verdadeira orgia de estupros, incndios e assassinatos. Mais tarde, o Batalho esteveenvolvido em bombardeios de cidades, matana de centenas de civis por fuzilamento, afogamento eoutros mtodos. A grande maioria das vtimas era de mulheres, crianas e velhos.

    O Batalho Atlacatl estava sendo treinado pelas Foras Especiais norte-americanas, pouco antes dematar os jesutas. Esta tem sido a norma em toda a existncia do Batalho. Alguns dos pioresataques ocorreram justamente quando o Batalho recm-chegara dos EUA.

    Na "inexperiente democracia" de El Salvador, jovens adolescentes de 13 anos eram capturados emassaltos a favelas e acampamentos de refugiados e, em seguida, forados a entrar para o Exrcito,onde eram doutrinados em rituais copiados dos SS nazistas, inclusive com brutalizao e estupros,preparando-os assim para os extermnios, que freqentemente tinham caractersticas sexuais esatnicas.

    A natureza desse tipo de treino do Exrcito salvadorenho foi descrita por um desertor, que recebeuasilo no Texas, em 1990. Seu nome foi mantido em sigilo para proteg-lo dos esquadres da mortesalvadorenhos, apesar do pedido do Departamento de Estado para que ele fosse enviado de volta aEl Salvador.

    Segundo esse desertor, os recrutas tinham de matar cachorros e urubus, mordendo-lhes a garganta etorcendo-lhes a cabea, alm de terem de olhar os soldados torturarem e matarem suspeitos

    dissidentes, arrancando-lhes as unhas, cortando-lhes a cabea e partes do corpo. Em seguida,brincavam com seus braos para fazer graa.

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    A Guarda Nacional sempre foi notadamente brutal e sdica. Em junho de 1979, levou a cabo umasrie macia de atrocidades na guerra contra os sandinistas, bombardeando bairros residenciais emMangua, matando dezenas de milhares de pessoas. Nessas alturas, o embaixador norte-americanoenviou um telegrama Casa Branca dizendo que seria desaconselhvel mandar a Guarda Nacionalsuspender o bombardeio, porque isso poderia interferir na poltica de manter a Guarda no poder e

    deixar os sandinistas de fora.Nosso embaixador na Organizao dos Estados Americanos (OEA) tambm falou a favor do"Somozismo sem Somoza", mas a OEA rejeitou prontamente a sugesto. Poucos dias depois,Somoza voou para Miami com o que restava do Tesouro Nacional, e a Guarda desmoronou.

    O governo Carter levou os comandantes da Guarda para fora do pas em avies com sinais da CruzVermelha (um crime de guerra) e comeou a reconstitu-la nas fronteiras da Nicargua. Os EUAtambm usaram a Argentina como uma intermediria. (Naquela poca, a Argentina estava sob ocomando de generais neonazistas, que deram uma folga na tortura e no assassinato de sua prpriapopulao para ajudar a restabelecer a Guarda logo rebatizada de oscontras ou "guerreiros daliberdade.)Reagan utilizou-os para lanar uma guerra terrorista em grande escala contra a Nicargua,combinada com uma guerra econmica, que foi muito mais letal. Ainda intimidamos outros pasespara que no enviassem ajuda tambm.

    Mesmo assim, apesar dos nveis astronmicos da ajuda militar, os EUA no conseguiram criar umafora militar vivel na Nicargua. Isso foi realmente notvel, analisando bem. Nenhuma guerrilhano mundo obteve tantos recursos, mesmo remotamente, quanto os contras obtiveram dos EUA.Provavelmente poderia se iniciar uma insurgncia guerrilheira, na regies montanhosas dos EstadosUnidos, com tais recursos.

    Por que os EUA foram to longe na Nicargua? A organizao de desenvolvimento internacional aOxfam - explicou os motivos verdadeiros ao declarar que em sua experincia de 76 anos em pasesem desenvolvimento "a Nicargua foi... excepcional no esforo e no firme compromisso daquelegoverno... em melhorar as condies de vida do povo e em estimular sua participao ativa noprocesso de desenvolvimento".

    Dos quatro pases centro-americanos onde a Oxfam teve presena significativa (El Salvador,Guatemala, Honduras e Nicargua), somente na Nicargua houve um real e substancial esforo emresolver as injustias da posse da terra e em estender os servios mdicos, educacionais e agrcolass famlias de camponeses pobres.

    Outras organizaes contaram histrias semelhantes. No incio da dcada de 1980, o BancoMundial considerou "alguns setores da Nicargua extraordinariamente mais bem-sucedidos quequalquer outra parte do mundo". Em 1983, o Banco Interamericano de Desenvolvimento concluiuque "a Nicargua fazia notveis progressos no setor social e estava lanando bases para umdesenvolvimento socioeconmico a longo prazo.

    O sucesso das reformas sandinistas aterrorizaram, ento, os estrategistas norte-americanos. Elessabiam que, "pela primeira vez, a Nicargua tinha um governo que se interessava pelo povo ,conforme afirmou Jos Figueres, o pai da democracia na Costa Rica. (Embora Figueres tenha sido o

    principal lder democrtico na Amrica Central durante quarenta anos, suas inaceitveisobservaes sobre o mundo real foram completamente censuradas pela mdia norte-americana.)

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    O dio provocado pelos sandinistas por estes tentarem dirigir recursos aos pobres (sendo at bem-sucedidos nisso) foi realmente magnfico de se observar. Praticamente todos os estrategistaspolticos dos EUA compartilharam desse dio, atingindo um verdadeiro frenesi.

    Nos idos de 1981, um membro da Secretaria de Estado alardeou que ns iramos "transformar aNicargua na Albnia da Amrica Central", isto , pobre, isolada e politicamente radical, de modo

    que o sonho sandinista de criar um modelo novo e exemplar para a Amrica Latina seria umfracasso.

    George Shultz chamou os sandinistas de "um cncer, bem aqui em nossas terras", que tinha de serdestrudo. Na outra ponta do cenrio poltico, um lder do Senado, o liberal Alan Cranston, declarouque, se no fosse possvel destruir os sandinistas, teramos ento de deix-los "apodrecer no [seu]prprio pus.

    Ento, os Estados Unidos lanaram um triplo ataque contra a Nicargua. Primeiro, exercendo umaextrema presso para pressionar o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento asuspenderem todos os projetos de assistncia ao pas. Segundo, lanaram a guerra dos contras juntamente com uma guerra econmica ilegal para acabar com o que a Oxfam corretamente chamoude "a ameaa de um bom exemplo .

    Os terrveis ataques terroristas dos contras, sob ordens dos EUA, em direo aos "alvos leves"contriburam, juntamente com o boicote econmico, para o fim de toda e qualquer esperana dedesenvolvimento econmico e reforma social. O terror norte-americano assegurou que a Nicarguano desmobilizasse seu exrcito e enviasse seus parcos e limitados recursos para a reconstruo dasrunas, que foram deixadas pelos ditadores apoiados pelos EUA e pelos crimes dos reaganistas.

    Uma das mais respeitveis correspondentes da Amrica Central, Julia Preston, escreveu(trabalhando na poca para o Boston Globe) que "autoridades do governo afirmaram estar contentesem ver os contras debilitarem os sandinistas, forando-os a desviar seus escassos recursos para aguerra e afastando-os, assim, dos programas sociais . Aquilo era fundamental, j que os programassociais eram o corao de um bom exemplo que poderia contaminar outros pases da regio ecorroer o sistema americano de roubo e explorao.

    Recusamo-nos, at mesmo, a prestar ajuda na hora da catstrofe. Em 1972, aps um terremoto, osEUA enviaram uma considervel soma de recursos em auxlio Nicargua, sendo que a maior partedesses recursos foi roubada por nosso amigo Somoza. Entretanto, em 1988, quando um desastrenatural - o furaco Joan - abalou a Nicargua, ns no enviamos sequer um centavo, porque, se otivssemos enviado, este centavo provavelmente teria chegado ao povo e no aos bolsos de umbandido rico. Ainda pressionamos nossos aliados a enviarem pouca ajuda.

    A devastao do furaco mais a perspectiva bem-vinda de fome em massa e os danos ecolgicos, alongo prazo, ajudaram nossos esforos (ou reforaram nossos objetivos). Ns queramos que osnicaragenses morressem de fome para que pudssemos acusar os sandinistas de m gestoeconmica. J que no estavam sob nosso controle, deveriam sofrer at a morte.

    Terceiro, usamos ardis diplomticos para esmagar a Nicargua. Como escreveu Tony Avirgan no jornal costarriquenho Mesoanzerica, "os sandinistas caram numa trama perpetrada pelo presidentecostarriquenho Oscar Arias e outros presidentes centro-americanos, o que lhes custou as eleies defevereiro [1990]".

    Para a Nicargua, o plano de paz de agosto de 1987 era bom negcio, lembrou Avirgan: elesadiantariam as eleies nacionais em alguns meses e permitiriam a observao internacional, como

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    j tinham feito em 1984, "em troca de terem os contras desmobilizados e a guerra levada a um fim.... O governo nicaragense cumpriu o que foi exigido pelo plano de paz, entretanto, ningum maisprestou a mais leve ateno ao plano.

    Arias, a Casa Branca e o Congresso nunca tiveram a mnima inteno de cumprir qualquer aspectodo plano. Os EUA triplicaram virtualmente os vos da CIA em reforo aos contras. Em poucos

    meses, o plano de paz estava totalmente sepultado.Assim que a campanha eleitoral comeou, os Estados Unidos tornaram bem claro que o embargoeconmico, que estava estrangulando o pas, e o terror dos contras continuariam se os sandinistasganhassem a eleio.

    Teramos de ser no mnimo nazistas ou stalinistas incorrigveis para considerar uma eleioconduzida sob tais condies como justa e livre. Ao sul de nossas fronteiras, poucos sucumbiram atais iluses.

    Se uma coisa como essa tivesse sido praticada por nossos inimigos,... eu deixo a reao da mdiapor conta de sua imaginao. O incrvel foi que os sandinistas ainda obtiveram 40% dos votos,enquanto as manchetes do The New York Times proclamavam que os americanos estavam "unidosna alegria" com essa "vitria do jogo limpo americano.

    As faanhas dos Estados Unidos na Amrica Central, nos ltimos 15 anos, so uma enorme tragdia, no s pelo avassalador custo humano, mas tambm porque h uma dcada havia reaisperspectivas de progresso em direo a uma democracia significativa, comprometida com asnecessidades humanas, j com os primeiros sucessos visveis em El Salvador, Guatemala eNicargua.

    Esses esforos poderiam ter funcionado e ensinado lies teis a outros flagelados com problemassemelhantes, o que logicamente era o que os estrategistas norte-americanos mais temiam. A ameaafoi abortada com sucesso, talvez para sempre.

    Fazendo da Guatemala um campo de extermnio

    Se houve um lugar na Amrica Central que obteve alguma cobertura pela mdia antes da revoluosandinista, este lugar foi a Guatemala. Em 1944, uma revoluo derrubou um tirano odioso,resultando da o estabelecimento de um governo democrtico que se inspirou basicamente no NewDeal, de Roosevelt. Nos dez anos de interldio democrtico que se seguiram, houve o incio de umbem-sucedido desenvolvimento econmico independente.

    Isso causou uma verdadeira histeria em Washington. Eisenhower e Dulles advertiram que "aautodefesa e a autopreservao dos Estados Unidos estavam em jogo, a menos que o vrus fosseexterminado. Os relatrios da Inteligncia norte-amercana eram muito francos quanto ao perigorepresentado pela democracia capitalista na Guatemala.

    Um memorando da CIA, de 1952, descreveu a situao da Guatemala como "adversa aos interessesdos EUA" devido "influncia comunista... baseada na defesa das reformas sociais e da polticanacionalista". O memorando advertia que a Guatemala "tinha recentemente aumentadosubstancialmente seu apoio s atividades comunistas e antiamericanas em outros pases da AmricaCentral. Um primoroso exemplo citado foi uma alegada doao de 300.000 dlares a Jos Figueres.

    Como j foi mencionado anteriormente, Jos Figueres foi o fundador da democracia na Costa Rica eo principal lder democrtico da Amrica Central. Embora tenha contribudo entusiasticamente com

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    a CIA e tenha chamado os Estados Unidos de "o porta-bandeira de nossa causa", alm de ter sidoconsiderado pelo embaixador norteamericano na Costa Rica como "a melhor agncia de propagandaque a United Fruit Company poderia encontrar na Amrica Latina", Figueres tinha um estiloindependente e, portanto, no era de tanta confiana quanto Somoza ou outros bandidos a nossoservio.

    Na retrica poltica dos Estados Unidos, isso possivelmente faria dele um "comunista". Ento, se aGuatemala havia dado dinheiro para ajud-lo a vencer a eleio, isso mostrava que a Guatemalaapoiava os comunistas.

    Pior ainda, o mesmo memorando continuava, as "diretrizes radicais e nacionalistas" do governocapitalista democrtico, incluindo a "perseguio dos interesses econmicos estrangeiros,especialmente os da United Fruit Company", haviam ganho "o apoio ou aquiescncia da maioriados guatemaltecos". O governo estava obtendo a "mobilizao dos camponeses at aqui inertes", eminando, ao mesmo tempo, o poder dos grandes latifundirios.

    Alm disso, a revoluo de 1944 tinha despertado "um forte movimento nacional para libertar aGuatemala da ditadura militar, do atraso social e do 'colonialismo econmico', que haviam sidonormas do passado", e "inspirado a lealdade e se ajustado ao interesse da maioria dos guatemaltecospoliticamente conscientes". As coisas tornaram-se ainda piores depois que uma bem-sucedidareforma agrria comeou a ameaar a "estabilidade" nas naes vizinhas, onde a populao sofridano poderia deixar de notar tais medidas.

    Em resumo, a situao ficou horrvel. Ento, a CIA empreendeu um bem-sucedido golpe. AGuatemala tornou-se o aougue que at hoje, com a interveno regular dos Estados Unidossempre que as coisas ameaam sair fora da linha.

    No final da dcada de 1970, as atrocidades estavam novamente alcanando limites absurdos,provocando protestos verbais. Mesmo assim, ao contrrio do que muita gente cr, a ajuda militarpara a Guatemala continuou virtualmente a mesma, sob o governo dos "direitos humanos" deCarter. Nossos aliados tambm se voltaram nossa causa - notadamente Israel, que consideradoum ativo estrategista, em parte devido ao seu sucesso em promover terrorismo de Estado.

    Com Reagan, o apoio ao quase genocdio na Guatemala tornou-se absolutamente fantico. O maisradical dos Hitlers guatemaltecos que ns j apoiamos l, Rios Montt, foi saudado por Reagan comoum homem totalmente dedicado democracia. No incio dos anos 1980, os amigos de Washingtontrucidaram dezenas de milhares de guatemaltecos, a maioria ndios do planalto, alm de outrosincontveis casos de pessoas torturadas e violentadas. Grandes regies foram dizimadas.

    Em 1988, um jornal guatemalteco recentemente aberto, chamado La Epoca, foi explodido porterroristas ligados ao governo. Naquela poca, a mdia aqui estava muito preocupada com o fato deum jornal financiado pelos Estados Unidos na Nicargua, La Prensa - que propunha abertamente aderrubada do governo e apoiava o exrcito terrorista dirigido pelos EUA -, ter sido forado a deixarde lanar algumas edies devido falta de papel de imprensa. Isso causou uma torrente deindignao e insultos, no Washington Post e em outros lugares, contra o totalitarismo sandinista.

    Por outro lado, a destruio do La Epocano despertou interesse algum e nem foi noticiada aqui,embora o fato tenha sido bem conhecido pelos jornalistas norte-americanos. Naturalmente, os meiosde comunicao de massa norte-americanos no esperavam noticiar que as foras de segurana,

    financiadas pelos Estados Unidos, haviam silenciado a nica voz independente na Guatemala, quehavia tentado, poucas semanas antes, se levantar.

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    Um ano depois, um jornalista do La Epoca, Jlio Godoy, que havia fugido aps a exploso do jornal, voltou Guatemala para uma breve visita. Quando voltou aos Estados Unidos, ele comparoua situao da Amrica Central com a da Europa Oriental. Para ele, os europeus orientais tinham"mais sorte que os centro-americanos", Godoy escreve por qu:

    Enquanto em Praga o governo imposto por Moscou degradaria e humilharia os reformistas, ogoverno da Guatemala, criado por Washington, os assassinaria. Isso ainda continua, num virtualgenocdio que j fez mais de 150.000 vtimas [aquilo que a Anistia Internacional chama de], "umprograma governamental de assassinato poltico.

    A imprensa ou se conforma ou, como no caso do La Epoca, desaparece. "A gente tentado aacreditar", continua Godoy, "que algumas pessoas na Casa Branca rendem homenagens aos deusesastecas, oferecendo o sangue centro-americano". E cita um diplomata da Europa Ocidental queafirmou: "Enquanto os norte-americanos no mudarem sua atitude na regio, no haver aquiespao para a verdade ou para a esperana.

    A invaso do Panam

    O Panam tem sido tradicionalmente controlado pela sua minscula elite europia, menos de 10%da populao. Isso mudou em 1968, quando Omar Torrijos, um general populista, liderou um golpeque permitiu aos negros e aos mestios pobres partilharem uma fatia mnima do poder, sob suaditadura militar.

    Em 1981, Torrijos foi morto num acidente areo. At 1983, o governante efetivo do Panam foiManuel Noriega, um criminoso que havia sido aliado de Torrijos e da CIA.

    O governo norte-americano j sabia que Noriega estava envolvido com o trfico de drogas, desdepelo menos 1972, quando o governo de Nixon considerou a possibilidade de elimin-lo. Contudo,ele continuou na folha de pagamentos da CIA. Em 1983, uma comisso do Senado norte-americanoconcluiu que o Panam havia se tornado um grande centro de lavagem de dinheiro e de trfico dedrogas.

    O governo norte-americano, mesmo assim, continuou a prestigiar os servios de Noriega. Em maiode 1986, o diretor do rgo de Represso s Drogas elogiou Noriega por sua "vigorosa polticacontra o trfico de drogas". Um ano mais tarde, esse diretor deu "boas-vindas nossa estreitaassociao" com Noriega, enquanto o procurador-geral Edwin Meese paralisou uma investigao doDepartamento de Justia dos EUA sobre as atividades criminosas de Noriega. Em agosto de 1987,uma resoluo do Senado condenando Noriega foi contestada por Elliott Abrams, uma autoridadedo Departamento de Estado, encarregado da poltica norte-americana na Amrica Central e noPanam.

    Ainda assim, quando Noriega foi finalmente processado, em Miami, em 1988, todas as denncias,exceto uma, eram referentes a atividades praticadas antes de 1984, quando ele era o nosso "garoto",ajudando os Estados Unidos na guerra contra a Nicargua, fraudando eleies com a aprovao dosEUA e geralmente servindo de modo satisfatrio aos interesses norte-americanos. Isso nada teve aver com a repentina descoberta de que ele foi gngster e traficante de drogas - o que sempre sesoube.

    Tudo muito previsvel, como um estudo atrs do outro mostra. Um tirano brutal cruza facilmente alinha, do amigo admirvel para o "vilo" e a "escria" quando comete o crime de independncia.

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    Um erro comum o de ir alm do roubo aos pobres - o que at bom - e comear a interferir nosinteresses dos privilegiados, provocando a oposio dos lderes empresariais.

    Em meados de 1980, Noriega j era considerado culpado por esses crimes. E, entre outras coisas,ele parecia no estar disposto a ajudar os EUA na guerra dos contras. Sua independncia ameaavatambm nossos interesses no Panam. Em 1 de janeiro de 1990, a maior parte da administrao do

    Canal estava para passar ao controle do Panam no ano 2000, o Canal passar completamente paraeles. Tnhamos de nos assegurar, ento, que o Panam estaria nas mos de pessoas que pudssemoscontrolar antes daquela data.

    Como no podamos mais confiar em Noriega para cumprir nossas ordens, ele tinha de sumir.Washington imps sanes econmicas que virtualmente destruram a economia, deixando a cargaprincipal cair sobre a maioria pobre e no branca. Essa populao tambm passou a odiar Noriega,porque ele era responsvel pela guerra econmica (que era ilegal, se algum quer saber) que estavalevando seus filhos a morrerem de fome.

    Em seguida, tentou-se um golpe militar, mas falhou. Ento, em dezembro de 1989, os EUAcomemoraram a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria invadindo o Panam de modofulminante, matando centenas ou talvez milhares de civis (ningum sabe ao certo, e poucos ao nortedo Rio Grande tm interesse suficiente em saber). Isso restaurou o poder da elite branca e rica, quehavia sido destituda pelo golpe de Torrijos, bem a tempo de assegurar um governo dcil namudana administrativa do Canal, em 1de janeiro de 1990 (como foi observado pela imprensadireitista europia).

    Durante todo esse processo, a imprensa norteamericana foi comandada por Washington,selecionando viles segundo as necessidades do momento. Aes anteriormente perdoadastornaram-se crimes. Por exemplo, em 1984, a eleio presidencial panamenha foi vencida porArnulfo Arias. A eleio foi roubada por Noriega com violncia e fraude considerveis.

    Mas Noriega ainda no se havia tornado desobediente. Ele era nosso homem no Panam, e o partidode Arias foi julgado por ter perigosos elementos do "ultranacionalismo". O governo Reaganaplaudiu, portanto, a violncia e a fraude, e mandou para l o secretrio de Estado, George Shultz,para legitimar a eleio roubada e elogiar a verso da "democracia" de Noriega como um modelopara os errantes sandinistas.

    A aliana Washington-mdia e os principais jornais abstiveram-se de criticar a eleio fraudulentano Panam, mas consideraram como totalmente sem valor as eleies sandinistas daquele mesmoano - que foram muito mais livres e honestas - porque no puderam ser controladas.

    Em maio de 1989, Noriega novamente rouba uma eleio, dessa vez de um representante daoposio empresarial, Guillermo Endara. Noriega usou menos violncia do que em 1984. Mas ogoverno Reagan havia sinalizado estar contra Noriega. Seguindo o roteiro j previsvel, a imprensaexpressou sua indignao ante o fracasso dele em seguir nosso elevado padro democrtico.

    A imprensa comeou tambm a denunciar veementemente as violaes dos direitos humanos, queanteriormente no haviam merecido a mnima ateno. Na poca da invaso do Panam, emdezembro de 1989, a imprensa j havia satanizado Noriega, transformando-o num monstro pior quetila, o rei dos hunos (foi basicamente a repetio da satanizao de Kadafi, da Lbia). Ted Koppel jurava que "Noriega pertencia quela confraria especial de viles internacionais, homens como

    Kadafi, Idi Amin e o Aiatol Khomeini, que os americanos amam odiar". Dan Rather colocou-o "notopo da lista de ladres, das drogas e da escria do mundo". Na verdade, Noriega foi um bandido demuito menor calibre - exatamente como era quando trabalhava para a CIA.

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    Em 1988, por exemplo, o Americas Watchpublicou uma reportagem sobre os direitos humanos noPanam, mostrando um quadro desolador. Mas como os relatrios e as informaes mostramclaramente, o registro de violaes de Noriega aos direitos humanos no era nada diferente do deoutros clientes dos Estados Unidos na regio, nem era pior do que no perodo em que Noriega aindaera um dos nossos favoritos e seguia nossas ordens.

    Tome o caso de Honduras, por exemplo. Embora no seja um governo terrorista e assassino comoos de El Salvador e da Guatemala, os abusos contra os direitos humanos, l, eram provavelmentepiores do que no Panam. De fato, havia um batalho treinado pela CIA, em Honduras, que por sis j havia cometido mais atrocidades do que Noriega.

    Ou ento considerem os ditadores apoiados pelos Estados Unidos, como Trujillo, na RepblicaDominicana, Somoza, na Nicargua, Marcos, nas Filipinas, Duvalier, no Haiti, e uma srie deoutros gngsters da Amrica Central, durante a dcada de 1980. Todos eram mais brutais queNoriega, mas os Estados Unidos os apoiaram incontestavelmente por dcadas, mesmo sabendo dasterrveis atrocidades cometidas - enquanto os lucros saam de seus pases e desembocavam nosEUA. O governo de George Bush continuou a exaltar Mobutu, Ceausescu e Sadam Hussein, entreoutros, todos criminosos piores que Noriega. Suharto, da Indonsia, indiscutivelmente o piorassassino de todos eles, permanecia como "moderado" na mdia de Washington.

    De fato, no exato momento em que o Panam foi invadido, devido ao ultraje na violao dosdireitos humanos feito por Noriega, o governo Bush anunciou a venda de alta tecnologia para aChina, justificando que 300 milhes de dlares, em negcios para as empresas norte-americanas,estavam em jogo, e assim os contatos foram secretamente retomados, poucas semanas depois domassacre na Praa Tiananmen.

    No mesmo dia em que o Panam foi invadido, a Casa Branca anunciou tambm planos (e osimplementou logo em seguida) de suspender a proibio de emprstimo ao Iraque. O Departamentode Estado explicou com seriedade que a medida objetivava alcanar "o aumento de metas deexportao americano e nos colocar em melhor posio para tratar com o Iraque sobre o relatriodos direitos humanos...

    O Departamento de Estado continuou com essa farsa enquanto Bush repelia a oposio democrticairaquiana (banqueiros, profissionais, etc.) e bloqueava esforos no Congresso para condenar oscrimes atrozes de seu velho amigo Sadam Hussein. Comparado com os amigos de Bush em Bagd ePequim, Noriega parecia a Madre Teresa de Calcut.

    Aps a invaso, Bush anunciou um bilho de dlares em ajuda ao Panam, dos quais 400 milhesconsistiam em incentivos s empresas norteamericanas para exportar produtos ao Panam, 150milhes foram para pagar emprstimos aos bancos e 65 milhes foram para outros emprstimos aosetor privado e garantias aos investidores americanos. Em outras palavras, cerca de metade da ajudafoi um presente do contribuinte americano s empresas americanas.

    Os EUA colocaram os banqueiros de volta ao poder depois da invaso. O envolvimento de Noriegacom o trfico de drogas era trivial se comparado com o deles. O trfico de drogas, l, foi sempreconduzido pelos bancos - e como o sistema bancrio praticamente no regulamentado -, issoresulta numa sada natural para o dinheiro do crime. Essa tem sido a base altamente artificial daeconomia panamenha e permanece assim - possivelmente em grau mais elevado - aps a invaso.

    As Foras Armadas de Defesa Panamenha foram tambm reconstrudas com os mesmos oficiais.

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    Em geral, tudo est praticamente na mesma, s que agora os servidores encarregados so maisconfiveis. (O mesmo se passa com Granada, que se tornou um grande centro de lavagem dedinheiro das drogas, desde a invaso americana. A Nicargua tambm se tornou um importantecanal de ligao para o mercado americano de drogas, depois da vitria de Washington na eleiode 1990. A norma padronizada - assim como a omisso em perceb-la.)

    Vacinando o Sudeste Asitico

    As guerras americanas na Indochina fazem parte da norma geral. Por volta de 1948, oDepartamento de Estado reconheceu claramente que o Viet Minh, a resistncia antifrancesacomandada por Ho Chi Min, era o movimento nacional do Vietn. Mas o Viet Minh no cedeu ocontrole s oligarquias locais, favorecendo ento o desenvolvimento independente e ignorando osinteresses dos investidores estrangeiros.

    Temia-se que o Viet Minh pudesse ter xito, j que, nesse caso, "a podrido propagar-se-ia" e o"vrus infectaria" a regio, para adotar a linguagem que os estrategistas usaram anos aps anos.(Com exceo de alguns loucos e alienados, ningum temia a conquista - o que eles mais temiamera que um exemplo positivo fosse bem sucedido.)

    O que se faz quando se tem um vrus? Primeiro voc o destri e, em seguida, vacina as vtimas empotencial para que a doena no se propague. essa a estratgia que os EUA utilizam no TerceiroMundo.

    Se possvel, aconselhvel fazer com que os militares locais destruam para voc. Se eles nopuderem, voc ter de contar com suas prprias foras. Isso mais oneroso, e deselegante, masalgumas vezes voc tem de fazer isso. O Vietn foi um desses lugares em que tivemos de agirassim.

    Bem no final dos anos 1960, os EUA bloquearam todas as tentativas de um acordo poltico para oconflito, mesmo aqueles propostos pelos generais de Saigon. Se houvesse um acordo poltico,poderia haver progresso na direo de um desenvolvimento bem sucedido fora da nossa influncia -resultado esse inaceitvel.

    Ao invs disso, ns instalamos um terror de Estado, de estilo tipicamente latino-americano no Suldo Vietn, subvertendo a nica eleio livre na histria do Laos, porque o lado errado ganhou, ebloqueamos a eleio no Vietn, porque era bvio que o lado errado iria ganhar l tambm.

    O governo Kennnedy fez uma escalada de ataque contra o Vietn do Sul, partindo de um macioterror de Estado para uma agresso aberta. Johnson enviou uma enorme fora expedicionria paraatacar o Sul do Vietn e expandiu a guerra para toda a Indochina. Isso certamente destruiu o vrus -porm, a Indochina ter sorte se dentro de cem anos conseguir se recuperar.

    Enquanto os EUA extirpavam a doena do desenvolvimento independente pela raiz no Vietn,evitaram tambm sua propagao, apoiando a tomada de poder na Indonsia por Suharto, em 1965,promovendo a queda da democracia nas Filipinas por Ferdinando Marcos, em 1972, e apoiando alei marcial na Coria do Sul e na Tailndia, e assim por diante.

    O golpe de Suharto na Indonsia, em 1965, foi particularmente bem acolhido pelo Ocidente, porque

    destruiu ali o nico partido poltico de massa resultando em poucos meses numa matana de cercade setecentas mil pessoas, a maioria camponeses sem terra - "um raio de luz na sia", como se

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    rejubilou o principal pensador doThe New York Times, James Reston, assegurando aos seus leitoresque os EUA tinham participado desse triunfo.

    O Ocidente ficou muito grato em fazer negcios com o novo lder "moderado" da Indonsia, comoo Christian Science Monitor descreveu o general Suharto, aps ele ter lavado as mos de sangueenquanto acumulava centenas de milhares de cadveres do Timor e de outras partes. Esse

    impressionante extermnio de massa "um blsamo para o corao", assegurou-nos o respeitvelEconomist , referindo-se, sem dvida, sua atitude em relao s empresas ocidentais.

    Depois que a guerra do Vietn terminou, em 1975, o objetivo principal dos Estados Unidos tem sidomaximizar o sofrimento e a represso nos pases que foram devastados pela violncia. O grau decrueldade realmente espantoso.

    Quando os menonitas tentaram vender lpis para o Camboja, o Departamento de Estado tentouimpedi-los. Quando a Oxfam tentou enviar-lhes dez bombas solares, a reao foi igual. O mesmo sesucedeu com os grupos religiosos que tentaram mandar ps escavadeiras para o Laos, para quefossem desenterradas as bombas lanadas pelos ataques americanos.

    Quando a ndia tentou enviar cem bfalos domsticos para o Vietn para compensar a quantidadeenorme de gado destruda pelos ataques americanos - lembre-se que, nesse pas primitivo, o bfalodomstico representa o fertilizante, o trator e a sobrevivncia -, os Estados Unidos ameaaramcancelar o programa de ajuda Alimento para a Paz. (Com isso, at Orwell ficaria surpreso.) Nenhumgrau de crueldade suficientemente grande para os sdicos de Washington. As classes instrudasconhecem o suficiente para olhar do outro lado.

    Para sangrar o Vietn, ns apoiamos indiretamente o Khmer Vennelho por intermdio de nossosaliados, China e Tailndia. Os cambojanos tiveram de pagar com sangue at estarmos seguros deque no haveria recuperao no Vietn. Os vietnamitas foram punidos por terem enfrentado aviolncia norte-americana.

    Ao contrrio do que praticamente todos dizem - direita ou esquerda -, os Estados Unidosalcanaram seu objetivo na Indochina. O Vietn foi destrudo. No h mais perigo ali de umdesenvolvimento bem-sucedido poder servir de modelo para outros pases da regio.

    Logicamente, no foi uma vitria total para os Estados Unidos. Nossa grande meta - a dereincorporar a Indochina ao sistema global dominado pelos EUA - ainda no foi alcanada.

    Mas o nosso objetivo bsico - o decisivo, o que realmente importava - foi o de destruir o vrus, eisso ns conseguimos. O Vietn um pas em desespero e os Estados Unidos fazem o que podempara mant-lo assim. Em outubro de 1991, os Estados Unidos ignoraram mais uma vez os enrgicosprotestos de seus aliados, na Europa e no Japo, e renovaram o embargo e as sanes contra oVietn. Os pases de Terceiro Mundo devem aprender que no podem ousar levantar a cabea.Seno, o valento global os perseguir incansavelmente por cometerem esse crime inconfessvel.

    A Guerra do Golfo

    A Guerra do Golfo ilustrou bem este mesmo guia de princpios, como poderemos ver claramente, selevantarmos o vu da propaganda.

    Quando o Iraque invadiu o Kuwait, em agosto de 1990, o Conselho de Segurana da ONUimediatamente condenou o Iraque e lhe imps severas sanes. Por que a ONU reagiu to

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    prontamente e com uma firmeza to sem precedentes? A aliana entre a mdia e o governo norte-americano tinha uma resposta padro.

    Primeiro, disseram-nos que a agresso iraquiana era um crime singular e, portanto, merecia umareao singularmente dura. "A Amrica est onde sempre esteve - contra a agresso, contra todosaqueles que usam da fora para substituir o imprio da lei" - assim fomos informados pelo

    presidente Bush - o invasor do Panam e nico chefe de Estado condenado pela Corte Internacionalpelo uso ilegal da fora (a condenao da Corte deveu-se ao ataque norte-americano contra aNicargua). A mdia e as classes instrudas repetiram obedientemente a lio ditada pelo seu lder,curvando-se em reverncia grandiosidade de seus altos princpios.

    Segundo, essas mesmas autoridades declararam, em coro, que finalmente a ONU estava agorafuncionando como fora planejada. Eles argumentavam que isso era impossvel antes do fim daGuerra Fria, quando a ONU se tornou ineficiente graas dissidncia da Unio Sovitica e estridente retrica antiocidental do Terceiro Mundo.

    Nenhum desses argumentos resistem, mesmo por um instante, a um exame mais minucioso. Nem osEUA e nem os demais pases aliados estavam sustentando algum alto princpio no Golfo. O motivodessa resposta sem precedentes a Sadam Hussein no foi sua brutal agresso, mas sim por ele terpisado em falso.

    Sadam Hussein um gngster assassino exatamente como era antes da Guerra do Golfo, quando eleera nosso amigo e scio comercial favorito. Sua invaso ao Kuwait foi certamente uma atrocidade,porm dentro dos padres de outros crimes praticados pelos Estados Unidos e seus aliados, e nemto terrvel quanto as que ocorreram em outras regies. Por exemplo, a invaso da Indonsia e aanexao do Timor Oriental, que alcanaram propores prximas s de um genocdio, devido aodecisivo apoio dos EUA e de seus aliados. Talvez um quarto dos setecentos mil habitantes tenhamsido mortos, uma carnificina superior ocorrida em Pol Pot, em relao populao, naquelemesmo perodo.

    Nosso embaixador na ONU naquela poca (hoje senador por Nova York), Daniel Moynihan, assimexplicou sua faanha na ONU em relao ao Timor Oriental: "Os EUA queriam que as coisasocorressem justamente da forma como ocorreram, e trabalharam para isso. O Departamento deEstado desejava que a ONU comprovasse sua total ineficcia em quaisquer medidas que fossemempreendidas por ela. Esta tarefa foi dada a mim, e eu a cumpri com considervel sucesso.

    O ministro das Relaes Exteriores australiano justificou a aquiescncia de seu pas na invaso doTimor Oriental (e a participao com a Indonsia no roubo das ricas reservas de petrleo do Timor)dizendo simplesmente que "o mundo um lugar muito injusto, repleto de exemplos de conquistaspela fora". Quando o Iraque invadiu o Kuwait entretanto, seu governo fez uma ressonantedeclarao, afirmando que "os pases maiores no podiam invadir os menores e sarem ilesos".Nenhum limite do cinismo perturba a equanimidade dos moralistas ocidentais.

    Quanto ONU estar finalmente funcionando como fora planejada, os fatos so claros - masabsolutamente obscurecidos pelos guardies da correo poltica, que controlam com mos-de-ferroos meios de expresso. Por muitos anos, a ONU tem sido bloqueada pelas grandes potncias,primeiramente pelos EUA - no pela Unio Sovitica ou pelo Terceiro Mundo. Desde 1970, osEstados Unidos tm vetado muito mais resolues no Conselho de Segurana do que as outrasnaes (a Inglaterra em segundo lugar, a Frana em terceiro e a URSS em quarto).

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    Nossa histria na Assemblia Geral semelhante. E a "retrica estridente antiocidental" do TerceiroMundo resulta geralmente numa chamada para acatar a lei internacional, uma barreiralamentavelmente frgil contra a pilhagem dos poderosos.

    A ONU foi capaz de responder agresso iraquiana porque, pela primeira vez, os Estados Unidospermitiram isso. A severidade sem precedentes das sanes da ONU foi resultado de intensas

    ameaas e presses dos Estados Unidos. As sanes tiveram uma oportunidade rara e boa defuncionar, no s por causa de sua dureza como tambm porque os habituais violadores de sanes- EUA, Inglaterra e Frana - as acataram, por mais estranho que parea.

    Mas, mesmo depois de permitir as sanes, os Estados Unidos imediatamente bloquearam a sadadiplomtica ao despachar uma enorme fora militar para o Golfo, qual a Inglaterra se uniu,apoiada pelas ditaduras das famlias que governam os pases petrolferos no Golfo, com aparticipao apenas nominal dos outros pases.

    Uma fora menor de dissuaso seria suficiente para que as sanes tivessem um efeito significativo,o que um exrcito de meio milho de soldados no poderia conseguir. O propsito da rpidaconcentrao militar era eliminar o perigo de o Iraque sair de modo pacfico do Kuwait.Por que uma soluo diplomtica era to pouco atraente? Poucas semanas aps a invaso doKuwait, no dia 2 de agosto, as linhas bsicas de um possvel acordo poltico estavam tornando-seclaras. A resoluo 660 do Conselho de Segurana exigia a retirada imediata do Kuwait e tambmconvocava negociaes simultneas para as questes de fronteira. Em meados de agosto, oConselho de Segurana considerou uma proposta iraquiana de retirada do Kuwait naquele contexto.

    Parece que ali havia duas questes: primeiro, o acesso do Iraque ao Golfo, que teria implicado umarrendamento ou um outro controle sobre duas reas pantanosas desabitadas, entregues ao Kuwaitpela Inglaterra, em sua deciso imperial (que havia deixado o Iraque praticamente sem sada para omar); segundo, a soluo de uma disputa em torno de um campo de petrleo, que se estendia porduas milhas dentro do Kuwait, alm de uma fronteira no estabelecida.

    Os EUA praticamente rejeitaram a proposta, ou quaisquer outras negociaes. No dia 22 de agosto,sem revelar os fatos acerca da iniciativa iraquiana (o que aparentemente era conhecido), oThe NewYork Timesinformou que o governo Bush estava determinado a bloquear a "via diplomtica" portemer que "a crise se difundisse" muito mais dessa maneira. (Os fatos principais foram publicadosuma semana mais tarde pelo dirio Newsday, de Long Island, mas a mdia, em geral, mantevesilncio sobre o assunto.)

    A ltima oferta antes do bombardeio, emitida pelos oficiais norte-americanos, a 2 de janeiro de1991, exigia a total retirada iraquiana do Kuwait. No havia nenhuma especificao sobrefronteiras, mas a oferta foi feita num contexto de acordos no especficos, "ligados" a outrasquestes: armas de destruio em massa na regio e o conflito rabe-israelita.

    As ltimas questes incluam a ocupao ilegal do Sul do Lbano por Israel, em violao resoluo 425 do Conselho de Segurana, de maro de 1978, que exigia a retirada imediata eincondicional do territrio invadido. A resposta dos Estados Unidos foi a de que no haveriadiplomacia. A mdia, com exceo do Newsday, omitiu os fatos enquanto louvava os altosprincpios de Bush.

    Os EUA recusaram-se a considerar as questes "articuladas" porque se opunham diplomacia emtodas essas questes. Isso ficou claro meses antes da invaso do Kuwait pelo Iraque, quando osEUA rejeitaram a oferta iraquiana de negociao sobre armas de destruio em massa. Na oferta, o

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    Iraque propunha a destruio total tanto das armas qumicas quanto das biolgicas, se outros pasesda regio tambm dessem fim a suas armas de destruio em massa.

    Sadam Hussein era, ento, amigo e aliado de Bush, e, sendo assim, recebeu uma respostasignificativa. Washington disse que acolheria bem a proposta iraquiana de destruir suas prpriasarmas, mas no queria que isso ficasse ligado a outras " questes ou sistemas de armas.

    No houve meno sobre "os outros sistemas de armas". E havia uma razo para isso. Israel no stem armas qumicas e biol