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 O que vive e o que está morto na teoria marxista da história  9 O que vive e o que está morto na teoria marxista da história VIVEK CHIBBER * Introdução Aproximadamente na última década, o debate sobre a teoria marxista da história parece ter perdido força. Isto não é algo inteiramente surpreendente, con- siderando a enorme energia investida nessa questão durante cerca de um quarto de século – nenhum debate pode durar eternamente. Ao mesmo tempo, calmarias como essa podem ser interpretadas como uma oportunidade para um escrutínio,  por assim dizer. 1  Isto é particularmente verdadeiro no que concerne ao debate sobre o materialismo histórico, já que essa é uma área na qual seus protagonistas seguiram meticulosamente o fio da meada de seus argumentos e se esforçaram para manter clareza. Na realidade, é possível mapear a extensão em que determinadas  proposições sobreviveram ao escrutínio, bem como a rgumentos opostos se man- tiveram firmes. Grande parte do crédito por ter instilado essa cultura nos debates marxistas é de G. A. Cohen, cujo livro Karl Marx’ s Theory of History: a Defenc e quase que por si só elevou a qualidade dos argumentos sobre o tema. 2  De fato, a * Professor da New York University ([email protected]). Texto original: What Is Living and What Is Dead in the Marxist Theory of Histor y,Historical Materialism , Leiden, Brill, n.9, v.2, 2011, p.60-91. Tradução de Leonardo Schiocchet (PPGA/UFF); revisão da tradução de Angela Lazagna.  1 Gostaria de agradecer a Charles Post, Erik Wright e Robert Brenner por seus extensos comentários a versões anteriores deste artigo, bem como ao comitê de Historical Materialism . Agradecimentos especiais a Sebastian Budgen, por me persuadir a tirar este artigo da gaveta para a sua publicação. Para um bom resumo do debate desde os anos de 1990, ver Callinicos (2004).  2 Cf. Cohen (1978). CRÍTICA marxista  A      R       T        I            G      O     S       Miolo_Rev_C ritica_Marxista-35_ GRAFICA).indd 9 Miolo_Rev_Critica_Marxista-35_(GRAFICA).indd 9 02/10/2012 17:08:15 02/10/2012 17:08:15

O Que Vive e o Que Está Morto Na Teoria Maxista Da História

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Artigo sobre a atualidade do pensamento marxista no mundo

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  • O que vive e o que est morto na teoria marxista da histria 9

    O que vive e o que est morto na teoria marxista da histria VIVEK CHIBBER *

    IntroduoAproximadamente na ltima dcada, o debate sobre a teoria marxista da

    histria parece ter perdido fora. Isto no algo inteiramente surpreendente, con-siderando a enorme energia investida nessa questo durante cerca de um quarto de sculo nenhum debate pode durar eternamente. Ao mesmo tempo, calmarias como essa podem ser interpretadas como uma oportunidade para um escrutnio, por assim dizer.1 Isto particularmente verdadeiro no que concerne ao debate sobre o materialismo histrico, j que essa uma rea na qual seus protagonistas seguiram meticulosamente o fio da meada de seus argumentos e se esforaram para manter clareza. Na realidade, possvel mapear a extenso em que determinadas proposies sobreviveram ao escrutnio, bem como argumentos opostos se man-tiveram firmes. Grande parte do crdito por ter instilado essa cultura nos debates marxistas de G. A. Cohen, cujo livro Karl Marxs Theory of History: a Defence quase que por si s elevou a qualidade dos argumentos sobre o tema.2 De fato, a

    * Professor da New York University ([email protected]). Texto original: What Is Living and What Is Dead in the Marxist Theory of History, Historical Materialism, Leiden, Brill, n.9, v.2, 2011, p.60-91. Traduo de Leonardo Schiocchet (PPGA/UFF); reviso da traduo de Angela Lazagna.

    1 Gostaria de agradecer a Charles Post, Erik Wright e Robert Brenner por seus extensos comentrios a verses anteriores deste artigo, bem como ao comit de Historical Materialism. Agradecimentos especiais a Sebastian Budgen, por me persuadir a tirar este artigo da gaveta para a sua publicao. Para um bom resumo do debate desde os anos de 1990, ver Callinicos (2004).

    2 Cf. Cohen (1978).

    CRTICA

    marxistaARTIGOS

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    recente publicao de uma nova edio desse livro um momento oportuno para indagar sobre o lugar da teoria hoje.3

    O livro de Cohen no notvel apenas pela clareza e pela fora do seu ar-gumento. Ele tambm tem o mrito de ressuscitar uma verso do materialismo histrico que, no final da dcada de 1970, caiu em descrdito. Naturalmente, estamos nos referindo verso ortodoxa da teoria tal qual elaborada por Engels em Anti-Dhring e popularizada, sobretudo, por Plekhanov na virada do sculo que designa as foras produtivas humanas como o motor da histria. Durante mais da metade do sculo XX, o materialismo histrico ortodoxo foi considerado uma interpretao natural das alegaes um tanto vagas de Marx para sustentar uma teoria definitiva do desenvolvimento histrico. Ele se tornou senso comum tanto para marxismo oficial quanto para o dissidente. Foi apenas na dcada de 1960 em parte devido influncia do maoismo, em parte em virtude da celebrao aos recentes movimentos anticolonialistas que essa teoria passou a ser criticada, no apenas pelo mainstream, mas tambm pela nova esquerda. O materialismo histrico determinista-tecnolgico foi ento contraposto a uma verso que elevava a luta de classes a uma posio de primazia. Os tericos que ganharam popularidade entre a nova esquerda Althusser, Gramsci, Habermas, dentre outros subestimaram sistematicamente a importncia das foras produ-tivas, ao passo que elevaram a importncia dos conceitos de classe e de luta de classes no cerne do materialismo histrico. Portanto, quando Karl Marxs Theory of History foi lanado, a verso do materialismo histrico anunciada no livro havia decididamente cado em descrdito junto a esse pblico.

    O efeito imediato do trabalho de Cohen foi um novo sopro de vida ao mate-rialismo histrico ortodoxo uma conquista, em si mesma, impressionante. Mas a clareza com a qual Cohen apresentou seu argumento tambm teve o efeito, como era de se esperar, de revelar as falhas da sua da teoria. Examinaremos tais falhas em breve, com certo detalhe. Por ora, o ponto a ser observado que, dada a evi-dncia dessas falhas, o materialismo histrico ortodoxo no recuperou seu status como a interpretao natural da teoria marxista da histria. Muito pelo contrrio: a verso da luta de classes do materialismo histrico recebeu seu prprio impulso, primeiramente atravs do trabalho do historiador Robert Brenner. No incio, o questionamento de Brenner foi indireto. Em uma srie de artigos muito influentes, Brenner desenvolveu um relato da transio europeia do feudalismo ao capitalismo que dependeu muito pouco do mecanismo explicativo central ao materialismo his-trico ortodoxo.4 No foi a exigncia do desenvolvimento das foras produtivas que direcionou a transio, mas sim o resultado contingente do conflito entre senhores e camponeses. Logo a seguir, Brenner emite em dois trabalhos um desafio direto, tanto a Cohen quanto ao determinismo tecnolgico, sustentando no apenas que a teoria era invlida, seno que ela poderia no ser nem mesmo aquela que Marx

    3 Cf. Cohen (2002). 4 Estes esto contidos em Ashton; Philpin (1985).

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    subscrevera nos seus ltimos anos.5 Concomitantemente aos questionamentos de Brenner, surge uma srie de crticas ao trabalho de Cohen, o que minou ainda mais a confiana na verso tecnolgico-determinista do materialismo histrico por ele desenvolvida.6 Assim, no final da dcada de 1980, os debates sobre a teoria da histria comeam a se aglutinar em torno de dois polos o materialismo histrico ortodoxo e a verso da luta de classes cada qual reivindicando algum grau de fidelidade aos esparsos comentrios de Marx sobre o assunto, e assentando-se, cada um deles, em argumentos cuidadosamente elaborados.

    Neste ensaio, proponho um balano das mais recentes tentativas de superar o impasse dentre as diferentes verses do materialismo histrico. As tentativas em questo so as de Alan Carling e as de Erik Wright, Andrew Levine e Elliott Sober.7 O que faz com que os trabalhos desses autores sejam interessantes o fato de reconhecerem em Brenner e em Cohen dois modelos opostos de materialismo histrico e desenvolverem explicitamente (Carling) ou implicitamente (Wright, Levine e Sober) argumentos presentes no debate Cohen-Brener. Esses trabalhos reconhecem os desafios colocados por Brenner verso ortodoxa do materialismo histrico e se empenham em modific-la no sentido de torn-la imune s crticas consideradas. No caso de Carling, isto realizado atravs da apresentao do que ele alega ser uma fuso dos dois modelos, uma reconciliao genuna; no caso de Wright, Levine e Sober, o que oferecido no tanto uma fuso, mas uma verso mais fraca do materialismo histrico de Cohen, mais modesta em suas reivindi-caes e, segundo nosso entendimento, capaz de acomodar as crticas feitas verso de Cohen. Argumentarei que, enquanto as duas tentativas de resgate obtm algum sucesso, no final elas vacilam em uma das seguintes formas: ou simples-mente falham em convencer, ou enfraquecem de tal modo as alegaes da teoria, que esta acaba perdendo o seu sabor caracteristicamente marxista. Esse segundo caso equivale a um veredito favorvel a uma verso alternativa do materialismo histrico, baseada na luta de classes ou nas relaes de propriedade.

    Os dois componentes do materialismo histricoO fato de duas interpretaes do materialismo histrico se reunirem em torno

    das relaes de propriedade e do desenvolvimento propulsor das foras de pro-duo no mera coincidncia. Com efeito, tais interpretaes recorrem a dois componentes distintos da teoria propriamente dita. A teoria marxista da histria consiste, na realidade, em duas subteorias analiticamente distintas: uma teoria das formas sociais e uma teoria das transies8 de uma forma a outra. A primeira

    5 Para o primeiro escrito, ver Brenner (1986). Para o segundo, Brenner (1989). 6 Ver, inter alia, Wright; Levine (1980); Katz (1989); Rigby (1987); Martin (1983). 7 Os trabalhos relevantes so: Carling (1991); Carling (1993); Wright; Levine; Sober (1993). 8 Utilizarei aqui de forma intercambivel, por exemplo, teoria das transies ou teoria da transi-

    o, respectivamente, conforme o uso do autor, ora no plural (theory of transitions) ora no singular (theory of transition ou transition-theory). (N.T.)

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    preocupa-se, fundamentalmente, com a individuao dos diferentes tipos de sis-temas sociais ou modos de produo; a segunda tem como objeto o mecanismo pelo qual a histria se move por meio dos modos de produo. A teoria das formas sociais claramente considerada uma base9 para a sua prima mais ilustre: ela tem a funo de identificar os tipos sociais individuais que habitam a histria, de analisar sua dinmica interna e, finalmente, de registrar sua sequncia. Uma vez que esse trabalho preparatrio concludo, a teoria das transies histricas entra em cena para prover uma explicao para a sequncia geral dos modos de produo que foram identificados. Esta ltima se dedica, fundamentalmente, explicao dos mecanismos que comeam a operar assim que um modo de produo mergulha na sua crise final e que governam, portanto, a consolidao do novo modo.

    A teoria das formas sociaisOs marxistas afirmam que a histria pode ser dividida em pocas ou perodos

    distintos e que cada poca possui sua dinmica econmica caracterstica ou leis de movimento. Os mecanismos que geram essas diferentes dinmicas, e que tm a funo de definir uma poca em relao outra, so os conjuntos de relaes de propriedade relaes de produo predominantes. As relaes de propriedade tambm constituem a base das relaes de classe.

    A microdinmica das relaes de produoNo nvel micro, as relaes de produo estabelecem o que Brenner deno-

    minou regras de reproduo para os agentes individuais. Os agentes fazem o que fazem porque as relaes de propriedade, por definio, governam a distri-buio dos meios de produo10 em uma dada ordem social. Os meios possudos pelos agentes sociais determinam as estratgias que esto ao seu alcance para a reproduo individual. Erik Wright vai ao mago da questo quando afirma que o que voc possui determina o que voc deve fazer para ganhar a vida.11 Este um argumento estrutural forte, ou seja, seria possvel predizer, ainda que num plano bastante genrico, que as escolhas reprodutivas so feitas pelos agentes com base nos meios sua disposio. Um produtor rural com direitos garantidos sobre sua terra provavelmente assumir uma estratgia econmica diferente da assumida por um produtor que foi desprovido desses direitos, e assim por diante.

    As relaes de propriedade no produzem automaticamente as relaes de classe. Elas o fazem apenas quando atribuem o poder sobre os meios de maneira

    9 Do original under-labourer. O autor parece referenciar o conceito de Locke, para quem under--labourer no tanto um trabalhador subordinado, mas algum que realiza um trabalho que serve de base para outros. Locke define o prprio filsofo como um under-labourer (ou trabalhador de base), que trabalha removendo um pouco do lixo que se coloca no caminho ao nosso conheci-mento. Traduo livre de Locke (1975, Book IV cap. II, p.10). (N.T.)

    10 Productive assets, no original em ingls. (N.T.) 11 Wright (2005).

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    desigual, de sorte que um grupo de agentes possa impor suas demandas s ati-vidades produtivas de outro grupo.12 Quando o grupo anterior consegue de fato viver das demandas impostas ao trabalho desse ltimo, os marxistas definem esta relao como uma relao de explorao e, portanto, uma relao de classe. O fato de que os meios de produo sejam distribudos de forma desigual signi-fica que uma classe tem a capacidade de [can] explorar a outra; a enumerao precisa destes direitos determinar, por sua vez, como uma classe explora outra. Exemplificando, o fato de os donos de terras no feudalismo gozarem de direitos superiores, mas no absolutos, sobre a terra significa que eles tm a capacidade de [can] arrogar parte do trabalho dos seus arrendatrios na forma de renda; mas, pelo fato de suas arrogaes no serem absolutas, e em virtude de os camponeses tambm possurem direitos parciais sobre a terra, devido aos costumes, os senho-res devem exercer a ameaa da fora fsica para concretizar suas arrogaes. Isto contrasta com os direitos dos proprietrios de terras no capitalismo, que gozam de direitos exclusivos sobre a terra; neste caso, as ameaas fsicas tornam-se redundantes para que se faa cumprir a arrogao pela renda, j que a expulso de camponeses se torna uma opo muito mais concreta. A renda , portanto, comum ao feudalismo e ao capitalismo, mas extrada nos dois sistemas por meio de mecanismos bastante diferentes. Um tipo particular de luta de classes gera, portanto, um regime de explorao correspondente.

    Quando o acesso aos meios de produo se d por meio de uma distribuio desigual, esta no apenas confina os agentes numa relao interdependente e exploratria, seno, ao faz-lo, assegura que a relao seja fundamentalmente conflituosa. O cumprimento dos direitos de propriedade sempre traz consigo algum tipo de dominao poltica seja no mbito da produo, seja na esfera institucional, onde os direitos propriedade so assegurados. Esta dominao a usurpao forada de parte do produto social gera, por conseguinte, resistncia por parte das classes produtoras. Isto, por sua vez, obriga as classes dominantes a assegurarem sua dominao poltica sobre os produtores como uma precondio para a sua explorao o que confina os grupos em um conflito contnuo. Embora os marxistas tenham demorado em reconhecer isto, a teoria das formas sociais est comprometida com algum tipo de antropologia filosfica uma descrio mnima da natureza humana que deve incluir a suposio de que os agentes tm interesse na autonomia. Sem o comprometimento com a autonomia como um impulso humano fundamental, impossvel justificar a ideia a qual os marxistas certamente se apegam de que a explorao necessariamente gera resistncia e, em virtude disso, a luta de classes.

    12 O elemento da coero , a meu ver, necessrio para que qualquer relao seja apreendida como uma relao de classe. Transferncias puramente voluntrias doaes, presentes etc. no so consideradas exploratrias. So consideradas relaes de classe apenas se se descobrir que sua natureza voluntria um pretexto ideolgico e que elas ocorreram de forma sistemtica.

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    A luta de classes desempenha um duplo papel na teoria da histria. Por um lado, constitui um eixo fundamental do conflito poltico em qualquer formao social.13 Por outro, cria os meios pelos quais as sociedades se deslocam de um conjunto de relaes de propriedade a outro o mecanismo que propulsiona a histria adiante. Isto no deveria causar surpresa. A luta de classes diz respeito s condies nas quais os atores asseguram os meios de produo a segurana dos seus direitos de propriedade, o tom e o nvel da explorao etc., sendo um corolrio natural que tais conflitos tambm deveriam conduzir a mudanas na estrutura da prpria propriedade. o que muitos marxistas enfatizaram ao longo do sculo passado. uma contribuio de Brenner ter corretamente afirmado, tal como entendo, que at o advento do capitalismo todas as outras transies foram consequncias no intencionais da defesa dos direitos de propriedade existentes.14 As transies, por sua vez, foram catalisadas por profundas crises econmicas, durante as quais os meios normais de extrao dos excedentes15 sucumbiram, au-mentando repentinamente o nvel de conflito entre produtores e proprietrios. A resoluo da crise a reemergncia de uma extrao estvel do excedente no necessariamente resulta em novas relaes de propriedade, mas engendra um in-tervalo para que as transformaes de tais perodos aconteam. Se elas acontecero ou no, ser um resultado contingente da luta de classes.

    A teoria das transiesA teoria das formas sociais faz algumas afirmaes um tanto incisivas sobre

    a dinmica interna de um perodo histrico e sobre o mecanismo por meio do qual as novas formas sociais surgem. O que ela tem a dizer sobre as transies entre uma poca e outra , entretanto, essencialmente correto: que tais transies so provocadas pela luta de classes. Essa teoria tem muito pouco a dizer sobre as caractersticas substantivas da transio e, especificamente, sobre a nova forma social. Como ela ser, quais sero suas caractersticas estruturais depende de qual classe garantir, em ltima instncia, a hegemonia subsequente a uma crise geral do sistema. Portanto, a sequncia real das formas sociais no pode ser prevista

    13 Esta uma alegao um tanto controversa, mesmo entre os marxistas. Alguns tm alegado que a luta de classes no deve ser privilegiada como estando acima de outros conflitos, enquanto outros mantm que esta ocupa um lugar exclusivo. Para os objetivos deste ensaio, no importa qual das duas alegaes correta. Mas vale ressaltar que, mesmo para os defensores da alegao mais fraca, o conflito de classe talvez possa no ser o conflito central, mas deve estar entre aqueles conside-rados como centrais dinmica de uma formao social. Os marxistas devem se comprometer em considerar isto como uma clivagem fundamental, se no a mais importante.

    14 Comparemos isto narrativa de Paul Sweezy sobre a ascenso do capitalismo, na qual, mais ou menos conscientemente, os senhores mudam para novas relaes de produo de forma a acumular mais rendimentos. Ver sua contribuio ao famoso debate Dobb-Sweezy, em Hilton (1976).

    15 O conceito marxista de mais-valia traduzido para o ingls como surplus-value. Aqui, o autor usa simplesmente o termo surplus, que optei por traduzir como excedente tal como sugere o sentido mais geral do termo em ingls. (N.T.)

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    somente com base nesta teoria, j que ela ressalta as contingncias da luta de classes.

    quando a teoria das transies intervm. Esse componente do materialis-mo histrico indica especificamente o momento da transio entre um modo de produo a outro. Sua principal funo estipular um conjunto de condies que compila a transio a um novo modo de produo. Seja qual for o conjunto de relaes de produo que emerge como a nova forma dominante independen-temente da classe que estabelece sua dominao , este deve exibir nessa teoria certas propriedades. Com efeito, de acordo com a teoria clssica, a classe suces-sora , de fato, compelida apenas por um atributo particular: ela deve ser a classe que controlar o contnuo desenvolvimento das foras produtivas. Em qualquer conjuntura histrica, isso limita drasticamente o leque dos candidatos que podem substituir uma formao social em crise. A inflexibilidade dessas imposies depende dos limites nos quais essas condies operam, depende do rigor inter-pretativo da teoria. Na sua verso mais fraca, a teoria simplesmente prev que o novo modo de produo preservar o nvel de desenvolvimento estimulado pelo anterior; na sua verso mais forte, afirma que a classe que estabelece sua dominao ser aquela adequada para o desenvolvimento mais rpido das foras produtivas. Assim, o debate no interior do materialismo histrico , fundamentalmente, sobre o quo rigorosamente a teoria pode defender uma alegao.

    O termo materialismo histrico tem, ao longo do sculo XX, abarcado de forma pouco precisa ambas as teorias que acabei de apresentar. Para muitos dos marxistas da Segunda Internacional em diante, houve uma diviso do trabalho fundamental entre os seus dois componentes. A teoria das formas sociais est es-sencialmente relacionada individuao dos diferentes tipos de sistemas sociais ou modos de produo esta identifica suas distintas relaes de produo, mostra suas leis motrizes e as formas especficas da luta de classes para cada tipo, bem como a maneira segundo a qual a luta entre as classes conduz uma ordem social ao fracasso e ascenso da ordem subsequente. A teoria das transies tem a fun-o de explicar a no arbitrariedade das transies entre os modos de produo, num sentido muito especfico: o modo de produo que substitui o anterior no simplesmente determinado pelos caprichos da luta de classes, mas imposto pelas exigncias funcionais das foras produtivas. Estas imposies so o que confere certa lgica ao curso da histria. A histria no simplesmente impulsionada pelas contingncias da luta de classes. A resoluo dos conflitos de classe em certas conjunturas-chaves a saber, quando as formaes sociais entram em crise em si governada pelas exigncias das foras produtivas. A classe que ganha, que estabelece sua dominao, aquela que se submete a essas exigncias. Por conseguinte, as classes que vencem em momentos-chaves so as mais adequadas tarefa. Isto significa, afinal, que existe um determinismo razoavelmente forte em relao trajetria da histria humana. Se fosse para ser recriado a partir de algum ponto de partida, o caminho do referido desenvolvimento seria, no que lhe

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    relevante, similar, ou mesmo idntico, a algum outro considerado nesta iterao particular. A histria , neste sentido, governada por leis.16

    O que est em jogo possvel agora reconhecer o que est em jogo no debate acerca do mate-

    rialismo histrico. A questo central parece ser qual dos dois componentes do materialismo histrico deve sustentar o peso explicativo inicial: a teoria das formas sociais ou a teoria das transies? Isto, por sua vez, parece depender dos limites impostos pelas exigncias das foras produtivas sobre as novas relaes de produo. Quanto mais fortes as exigncias, menor o papel da luta de classes para explicar a mudana de um perodo a outro.

    Na sua verso mais forte, a teoria das transies afirma que as exigncias funcionais das foras produtivas so to fortes que, quando os modos de produo entram em crise, o leque das possveis relaes de produo que os sucedero pode ser reduzido a apenas um o mais adequado para o desenvolvimento das foras produtivas. Como veremos, esta parece ser a interpretao oferecida por Cohen. Em seu materialismo histrico estritamente ortodoxo, uma vez que o conjunto das relaes de produo A entra em crise, os candidatos para a sucesso das relaes de produo so reduzidos a apenas um o conjunto B, j que este o mais adequado ao desenvolvimento das foras produtivas. A luta de classes o mecanismo que acarreta a transio para B, mas o fato de B seguir-se a A , de certa forma, inserido [hard-wired] no sistema. A explicao de porque o modo de produo B segue-se ao modo A no precisa mencionar os detalhes relativos luta de classes. A explicao de por que B e no os conjuntos de relaes de produo C ou D segue-se a A est relacionada aos efeitos benficos de B para as foras produtivas. Observemos que nesta verso do materialismo histrico cada um dos dois componentes atua numa dimenso distinta: a teoria das formas sociais explica a dinmica no interior de uma forma social, enquanto a teoria da transio explica a dinmica de uma forma social outra.

    Consideremos agora as consequncias se fizermos exigncias menos estritas. Uma alegao mais fraca para a teoria das transies considera que as relaes de produo que podem substituir aquelas dominadas pela crise no so as melhores para o futuro desenvolvimento das foras produtivas, mas simplesmente as mais adequadas para o seu desenvolvimento contnuo mesmo que seja num nvel mais baixo do que o nvel mximo. O potencial sucessor das relaes de produo em uma conjuntura histrica particular agora se amplia de um conjunto a vrios. Ob-servemos como isto afeta o peso que cada componente do materialismo histrico possui. Suponhamos que estamos preocupados em explicar a transio da forma

    16 No minha inteno que isto seja considerado um convite para um debate sobre as leis do de-senvolvimento histrico. Apenas tentei explicar o que os marxistas querem dizer quando se referem existncia de tais leis.

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    social A forma B, exatamente como no pargrafo precedente. Na verso mais exigente da teoria da transio, assim como delineado no pargrafo anterior, o fato de B seguir-se a A foi inserido [hard-wired] no sistema, j que B era, de fato, o conjunto de relaes de produo mais adequado ao desenvolvimento das foras produtivas. Mas ao renunciarmos esta suposio, os potenciais sucessores de A se ampliam de modo a incluir no apenas B, mas tambm C e D, considerando que estes ltimos tambm promovem o desenvolvimento contnuo das foras produtivas mesmo que em nveis inferiores quele acarretado por B. A luta de classes agora comea a sobressair como uma explicao sobre qual conjunto de relaes de produo surge aps a derrocada de A. Nesta verso menos exigente da teoria das transies, o conjunto de relaes de produo que de fato termina sucedendo A depender dos fatos acerca da luta de classes. Pode ser o conjunto B, dependendo de quais classes se encontrem mais bem organizadas e consigam vencer as outras classes; tambm pode ser o conjunto C ou D. As exigncias funcionais das foras produtivas explicam agora apenas o alcance das potenciais relaes de produo que podem suceder A; aquela que efetivamente suceder A, a partir do referido leque de possibilidades, algo a ser explicado pela luta de classes. O poder explicativo da luta de classes e, portanto, da teoria das formas sociais foi consideravelmente expandido.

    medida que continuamos a enfraquecer as restries que a teoria da transio impe ao processo de transio, o peso explicativo da teoria das formas sociais proporcionalmente aumenta. medida que reduzimos as exigncias das foras produtivas s relaes de produo que se seguem, a explicao para quais relaes de produo que, de fato, substituiro aquelas em declnio depender mais dos detalhes da luta de classes, e menos da relao governada por uma lei [law-like] entre foras produtivas e relaes de produo. O leque dos possveis futuros em qualquer perodo nodal que caracterize a transio de uma forma social outra aumenta consideravelmente; isto significa, de maneira decisiva, que o poder do materialismo histrico enquanto teoria da histria geral tambm se enfraquece. Ela pode explicar post hoc por que a histria humana acabou acontecendo da forma como aconteceu; mas no capaz de estabelecer um argumento slido de que a histria tinha que tomar o curso que de fato tomou. Se os movimentos de classe e as dinmicas organizacionais forem diferentes, a sequncia das formaes sociais tambm ser e, por conseguinte, nestas condies, a trajetria geral da histria tambm ser diferente.

    Estas so as implicaes para o materialismo histrico se os argumentos fa-vorveis a uma teoria forte da transio no encontrarem uma justificativa segura. O ponto crucial examinar a seguir se existe alguma razo para acreditarmos que as exigncias funcionais das foras produtivas possuem a capacidade [can], medida que a histria avana, de exercer imposies fortes emergncia de no-vos tipos de relaes de produo. Examinaremos, alm disso, quais argumentos foram desenvolvidos por Cohen, Carling e Wright, Levine e Sober de modo

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    a amparar a verso ortodoxa do materialismo histrico que afirma que as foras produtivas de fato exercem tal poder. Cohen e Carling tentam defender a verso mais ambiciosa do argumento, segundo a qual as exigncias das foras produtivas s relaes de produo se encontram em sua definio mais estreita. Wright, Levine e Sober, reconhecendo a dificuldade desses argumentos, contestam-nos ao enfraquecerem a alegao, e ao apresentarem um materialismo histrico que possui uma teoria das transies menos ambiciosa. Mostrarei que Wright, Levine e Sober esto corretos em seu pessimismo em relao ao gambito de Cohen nem ele nem Carling conseguem defender de maneira convincente a plausibilidade do materialismo histrico ortodoxo. Mas o remdio buscado por Wright, Levine e Sober tem seu preo. Sua verso menos ambiciosa do materialismo histrico certamente mais plausvel, mas nela o peso explicativo visivelmente desloca-do da teoria da transio para a teoria das formas sociais. Desse modo, embora anunciem seu argumento como uma verso defensvel do materialismo histrico ortodoxo, esta , na verdade, uma verso que no pode seno depositar seu peso em uma teoria das formas sociais e no em uma teoria da transio. Sendo assim, mais provvel que ela seja uma alternativa ao materialismo histrico ortodoxo, ao invs da sua encarnao. Para todos os propsitos prticos, somos deixados com uma verso da luta de classes da histria.

    O materialismo histrico ortodoxo de CohenA apresentao rigorosa de G. A. Cohen de um materialismo histrico ortodoxo

    provocou uma verdadeira avalanche de respostas. A maioria delas questionou de forma bastante convincente a defensibilidade da teoria maneira que Cohen a desenvolve. Descreverei, portanto, seu argumento de forma resumida, apresentan-do prontamente suas fragilidades, j que no direi nada de particularmente novo. Esta seo se define mais como um exerccio de limpar o terreno, cuja inteno estabelecer o fundamento para aquilo que central nesse ensaio, ou seja, um exame das tentativas de Carling e Wright, Levine e Sober de salvar a teoria.

    (I) Tambm mrito de Cohen o fato de ter enunciado, mais claramente do que qualquer um antes dele, o que exatamente est implicado no materia-lismo histrico ortodoxo. A teoria tem sido convencionalmente descrita como sendo composta pelas seguintes teses: a tese do desenvolvimento: as foras produtivas tm uma tendncia autnoma a se desenvolver por meio da histria.17

    17 Cohen observa corretamente que se as foras produtivas possuem uma tendncia autnoma ao desenvolvimento, isto no deve ser confundido com a alegao de que as foras produtivas tm uma tendncia a se desenvolver autonomamente. A ltima interpretao pode sugerir que as foras produtivas se desenvolvem independentemente das relaes de produo nas quais esto incorporadas. Isso impossvel de sustentar, j que, como observamos acima, a estrutura dos in-centivos aos produtores estabelecida pelas relaes de produo nas quais eles se encontram. As estratgias reprodutivas que eles escolhem so, portanto, respostas s relaes de produo, e so

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    A capacidade de se desenvolver desta maneira sugere um determinado poder que no apenas se mantm independentemente das estruturas sociais e das circuns-tncias, mas de fato se mantm acima delas. Como Cohen argumenta, este poder independente das foras produtivas parece se apoiar no artifcio de que a mudana social raramente envolve uma regresso no nvel das foras produtivas sociais.18 Com efeito, parece que as estruturas sociais conectadas produo tendem, na sua totalidade, a ser propcias ao desenvolvimento das foras produtivas. Cohen sugere que disto se pode arriscar uma nova assertiva, como se segue:

    (II) A tese da primazia: a natureza das relaes de produo em uma sociedade explicada pelo nvel das suas foras produtivas.

    Na interpretao de Cohen, essa assertiva envolve um compromisso com a presena de uma relao funcional entre foras produtivas e relaes de produo: estas so selecionadas com base na sua funcionalidade para o desenvolvimento das foras produtivas. Antes de iniciarmos a discusso sobre as vantagens dessa teoria, devemos notar que a tese da primazia enunciada por Cohen necessita ser ampliada. Tal como se encontra, a teoria de Cohen afirma que as relaes de pro-duo que emergem na transio a um novo modo de produo so propcias para o desenvolvimento das foras produtivas. Mas pode haver, a qualquer momento, uma variedade de relaes de produo que so adequadas a esta funo. No pode ser suficiente para o materialismo histrico ortodoxo que as foras produtivas selecionem, sem uma especificao subsequente, qualquer uma destas relaes de produo rivais. Como sublinham Wright, Levine e Sober, seria irracional para os atores sociais, na hiptese de Cohen, escolher relaes de produo que sejam menos timas para o desenvolvimento das foras produtivas. Alm disso, Cohen afirma que as foras produtivas explicam as relaes de produo existentes num modo de produo. E, se o mecanismo de seleo no for otimizante, tudo aquilo que ele pode explicar que as relaes de produo selecionadas no travam as foras produtivas; em outras palavras, tudo o que se pode dizer com segurana que as foras produtivas poderiam selecionar quaisquer relaes de produo que no travem o seu desenvolvimento. A teoria no poderia explicar por que este conjunto de relaes de produo foi de fato selecionado, o que na verdade o

    essas estratgias que desenvolvem as foras produtivas. Ao escolher a primeira explicao, Cohen no est argumentando que as foras produtivas se desenvolvem autonomamente em relao s relaes de produo, mas, ao invs disso, que as relaes de produo que persistem, assim o fazem em virtude do seu efeito benfico s foras produtivas. Portanto, as foras produtivas se de-senvolvem por causa das relaes de produo, mas, se relaes de produo que no desenvolvem as foras produtivas fossem adotadas, elas seriam descartadas a favor de outras mais compatveis. por causa desse poder de selecionar relaes de produo adequadas que podemos apreender as foras produtivas como possuindo uma tendncia autnoma ao desenvolvimento. Ver Cohen (1988, cap. 5).

    18 Stylised facts, no original em ingls. (N.T.)

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    que a teoria deve fazer (Cohen, 1978, p.170-171).19 Assim, devemos adicionar uma terceira tese teoria:

    (III) A tese da otimidade:20 as relaes de produo selecionadas pelas foras produtivas so aquelas timas para o subsequente desenvolvimento das foras produtivas.

    O materialismo histrico ortodoxo afirma, pois, que as relaes de produo de qualquer modo de produo persistem porque so timas para o desenvolvi-mento das foras produtivas. Para que este argumento tenha alguma fora, no basta observar que as relaes de produo que triunfam em um novo modo de produo so as melhores no sentido especificado mais acima; tambm necessrio demonstrar que elas so selecionadas porque so timas e que no resultariam de uma feliz coincidncia. Isto exige que os partidrios do materialismo histrico ortodoxo proponham um mecanismo capaz de operar esse tipo de distino. Tal mecanismo requer a presena de algum fator, cuja funo seja escrutar o conjunto existente das possveis relaes de produo e selecionar aquele mais adequado para desenvolver ainda mais os poderes produtivos [productive powers] da so-ciedade. Na ausncia de tal mecanismo, o materialismo histrico no possui uma teoria da histria. Possui apenas uma maneira de classificar o curso que a histria tomou e pode apontar somente que a histria se desenvolveu dessa maneira, e no que tinha que se desenvolver assim. O debate sobre o materialismo histrico desde a publicao do livro de Cohen tem, de maneira clara, enfocado a plausibilidade dessa suposio.

    A seleo de um objeto com base na sua funcionalidade pode se amparar em dois tipos gerais de mecanismos: um intencional, e outro que pode ser chamado de darwiniano. O primeiro depende da possibilidade de uma seleo consciente feita com base nos efeitos do objeto em questo. O segundo depende da eficcia da circularidade do feedback que conecta os efeitos do objeto s chances de sua reprodutibilidade, de sorte que, com o tempo, apenas aqueles objetos que possuem os atributos que produzem o efeito apropriados sobrevivero. Os mecanismos intencionais podem ser divididos em dois tipos: 1) conspiratrio, segundo o qual os atores selecionam as instituies por intermdio de algum tipo de deliberao coletiva, e 2) no conspiratrio, segundo o qual as decises so tomadas indi-vidualmente e reunidas de acordo com um padro social. Certas caricaturas do marxismo clssico apresentaram, em algumas ocasies, a transio ao socialismo como a seleo de novas foras produtivas por meio de um tipo de conspirao da classe trabalhadora uma verso do primeiro tipo de explicao intencional. Mas, mesmo que essa explicao possua um gro de plausibilidade para a previso do

    19 A importncia dessa questo foi primeiramente reconhecida por Wright; Levine (1980), e foi mais bem desenvolvida em Wright, Levine; Sober (1993, p.31-32).

    20 Optimality-thesis, no original em ingls. (N.T.)

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    conflito no capitalismo, seria muitssimo estranho consider-la um modelo geral para as transies modais. Mecanismos no conspiratrios, ao contrrio da sua contraparte, geralmente assumem a forma de algum tipo de explicao estrutural e so, portanto, mais plausveis. Os atores so considerados possuidores de um con-junto de preferncias e as instituies sociais so por eles selecionadas na medida em que se encaixam ao ordenamento da sua preferncia [preference-ordering]. Neste caso, a preferncia seria por instituies que aumentem otimamente a pro-dutividade do trabalho.

    Cohen nos oferece um materialismo histrico que depende de um mecanismo intencional no conspiratrio.21 Em outras palavras, ele sugere que as novas rela-es de produo so selecionadas pelos agentes sociais devido sua capacidade de elevar a produtividade, e que as escolhas so feitas individualmente (Cohen, 1988, p.89-92).22 A possibilidade de imaginarmos que os agentes sociais procuram selecionar as novas relaes de produo entre as relaes sociais, por meio deste tipo de clculo, no improvvel; tal como muitos dos seus crticos indicaram, a dificuldade em aceit-la repousa na suposio de que eles sero capazes de faz-lo de uma maneira especfica. Primeiro, dificilmente justificvel presumir que um cardpio de opes ser, em algum momento, apresentado aos agentes sociais da maneira exigida pela teoria de Cohen, permitindo-lhes no apenas simplesmente

    21 Esta afirmao pode parecer estranha luz do fato de que Cohen anuncia o materialismo histrico como um exemplo de explicao funcional, o que geralmente contrastado s explicaes inten-cionais. incontestvel que Cohen oferece uma verso intencional do seu argumento, uma vez que forado a desenvolv-lo. O que est em jogo se isso significa o abandono do seu compromisso anterior com o carter funcional do materialismo histrico. No penso que algo substancial dependa do veredito dessa questo. Se definirmos as explicaes funcionais de sorte que elas no possam se referir a um mecanismo intencional em sua defesa, devemos concluir que Cohen, ao contar apenas com esta estratgia, abandonou seus compromissos anteriores. Este o veredito de Alan Carling (1993, p.38). Mas se, ao invs disso, permitirmos que as explicaes funcionais possam sobreviver interpretao causal, seu compromisso com uma explicao funcional se mantm. Nosso veredito deriva inteiramente da nossa definio de explicaes funcionais. Mas, qualquer que seja a nossa concluso sobre o assunto, ela no acarretar consequncias para a defensibilidade da prpria explicao.

    22 Cohen, de fato, no afirma que os atores, na realidade, escolhem as relaes de produo que so timas para as foras produtivas. O que eles na verdade escolhem so relaes de produo que minimizam o seu esforo de trabalho e, portanto, maximizam o lazer, ceteris paribus. Pode-se arriscar que o que Cohen oferece uma verso de um mecanismo darwiniano, j que, de modo estrito, o efeito sobre foras produtivas , para os autores, secundrio ao efeito sobre o seu dilema acerca da relao trabalho-lazer. O efeito sobre as foras produtivas apenas deriva deste ltimo, e poderia variar independentemente deste. Isto absolutamente correto, mas, no caso do argumento de Cohen, especfico [pedantic]. , sem dvida, possvel imaginar novas relaes de produo que reduziriam o tempo de trabalho sem desenvolver as foras produtivas, simplesmente, digamos, por aumentarem e monitorarem os custos da nova classe dominante e tornando, portanto, mais fcil classe trabalhadora vagabundear. Mas Cohen assume claramente que a minimizao ocorre atravs do aumento de produtividade do trabalho. Em outras palavras, isto considerado parte das preferncias dos atores. Assim, de acordo com essa teoria, exemplos contrrios como o recm-apresentado so negligenciados. Escolher com base nos efeitos sobre o tempo de trabalho o mesmo que escolher com base nos efeitos sobre as foras produtivas. Isto pode ser incorreto, mas, neste momento, apenas estamos interessados nos detalhes da teoria e no na sua veracidade.

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    escolher dentre os seus itens, seno, tambm, rejeitar uma escolha a favor de outra. Em outras palavras, os agentes devem estar cientes no apenas da possibilidade de relaes de produo alternativas, mas tambm da sua disponibilidade, e no h razo para presumir que este ser o caso. Alm disso, uma vez que um conjunto de relaes de produo adotado, este tender a produzir interesses em sua defesa com base em outros fatores, para alm da maximizao da produtividade como seus efeitos sobre o poder de classe. Os agentes se organizariam, pois, em defesa de relaes de produo menos produtivas, sendo questionvel que o poder necessrio poderia ser constantemente reunido a fim de abandonar um conjunto recm-escolhido a favor de outro candidato repentinamente mais atrativo, considerando-se a provvel resistncia (Carling, 1993, p.39-40).

    A verso de Cohen do materialismo histrico ortodoxo parece, portanto, cam-balear, por ser incapaz de suportar o peso da tese da otimidade. Em face ao que foi exposto, existem dois meios para salvar o materialismo histrico na sua forma ortodoxa. Primeiro, poderamos tentar aduzir um novo tipo de mecanismo capaz de sustentar o carter funcional das relaes de produo e, portanto, preservar a teoria na sua presente forma; segundo, poderamos diluir as afirmaes da teo-ria, de modo a torn-la mais plausvel, ao mesmo tempo que preservaramos seu suposto ncleo. O trabalho de Alan Carling representa um esforo no sentido da primeira iniciativa, enquanto Wright, Levine e Sober apresentam uma teoria que pretende levar a cabo a segunda, ao defenderem uma verso mais fraca da tese sobre a direo [directionality]. Passaremos agora a esses esforos.

    A sntese de CarlingAo apresentar sua verso do materialismo histrico, Alan Carling no apenas

    preserva a assertiva sobre a primazia das foras produtivas, mas tambm realiza uma sntese das teses de Brenner e Cohen. Se for bem-sucedido, este esforo certamente poder reivindicar a inaugurao da prxima etapa na agenda de pesquisas marxista, bem como o fato de ter ocasionado o fim de um dos debates mais importantes dos ltimos anos. O argumento de Carling percorre dois cami-nhos: primeiro, oferece uma teoria sobre as origens do capitalismo que, segundo o nosso entendimento, funde o materialismo histrico de Cohen ao de Brenner; segundo, apresenta uma teoria sobre a expanso do capitalismo, que depende da presena do mesmo mecanismo seletivo que Cohen foi incapaz de apresentar, ressuscitando, pois, o materialismo histrico ortodoxo.23

    Na explicao de Brenner sobre a ascenso do capitalismo, o fato de ele ter ocorrido na Inglaterra, assim como o fato de ele no ter ocorrido na Frana e na Europa Oriental, atribudo s diferentes respostas peste negra as quais, por sua vez, foram explicadas pelas diferentes capacidades de classe dos senhores nessas

    23 Ambos os argumentos podem ser encontrados em Carling (1993), ainda que a sntese de Brenner e Cohen esteja completamente desenvolvida em Carling (1991).

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    regies. Enquanto a classe nobre francesa foi incapaz de transformar os direitos do proprietrio campons sobre a terra, sua contraparte ao leste do Elba foi capaz de impingir um novo regime de servido aos produtores camponeses. apenas na Inglaterra que o padro medieval de crescimento econmico rompido, graas ascenso de novas relaes de propriedade. Brenner argumenta que essa inovao se tornou possvel apenas por causa de uma configurao de foras nica na regio: enquanto os senhores foram incapazes de impor um novo regime de servido como o da sua contraparte ao do leste da Alemanha, foram, ao mesmo tempo, capazes de impedir os tipos de ganhos sobre a terra estabelecidos pelos camponeses fran-ceses, graas ao legado histrico da villeinage.24 Os camponeses ingleses foram, portanto, capazes de escapar da servido que caracterizava suas contrapartes da Europa oriental; no entanto, foram incapazes de antecipar e prevenir a evoluo dos direitos do senhor sobre a terra, que resultaram na emergncia dos direitos plenos de propriedade e, portanto, no capitalismo. A inovao inglesa atribuda, deste modo, ao fato de que a classe senhorial inglesa era mais forte do que a fran-cesa, porm, mais fraca do que a alem; ela foi capaz de evitar a ascenso de um campesinato livre, mas incapaz de induzir seus produtores servido completa.

    Carling prope em seguida trs casos que podemos conceber como modelos dos tipos de poder feudal: o modelo francs, o polons e o ingls. Cada um deles representa uma forma institucional diferente de feudalismo, com suas correspondentes configuraes de poder e sistemas de organizao de extrao do excedente. Assumimos duas condies como nosso pano de fundo. Primeiro: em qualquer regio marcada por diferentes formas de feudalismo, tal como as dos modelos recm-mencionados, existia uma descentralizao poltica resistente, que assegurava a permanncia correspondente da variao nas formas feudais. Segundo: a regio estava sujeita a recorrentes ciclos de exploses e colapsos demogrficos que caracterizaram o desenvolvimento europeu medieval. Alm disso, cada perodo de colapso demogrfico enfraquecia as estruturas de proprie-dade existentes, criando, deste modo, a oportunidade para uma transformao das relaes de propriedade, ou das caractersticas internas dessas relaes. Carling argumenta que numa regio marcada por formas feudais heterogneas, o colapso ocasionado pelo ciclo demogrfico e pela luta de classes para o restabelecimento do controle senhorial favoreceu um leque de possveis solues: 1) a preservao das formas existentes; 2) a mudana na sua periodicidade; ou 3) a transio de uma delas a um novo modo de produo. Dentre essas trs possveis solues, anota Carling, a variante inglesa do feudalismo foi a mais propcia a uma eventual transformao para o capitalismo.

    24 Villeinage uma forma de regime de servido, varivel, referente a uma classe de servos campo-neses (villein) da Idade Mdia. Para o autor, o que importa aqui que tal regime no implicava em uma dominao unilateral e completa do senhor sobre a terra e, portanto, sobre o campons. Mediante a falta de um termo equivalente no portugus, mantive o termo original para diferenciar esse de outros regimes de servido, dado que esta era a inteno do prprio autor. (N.T.)

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    Enquanto houver um feudalismo ingls entre estas variveis e enquanto o ciclo demogrfico continuar, em um dado momento ocorrer uma transio de tipo ingls do feudalismo em capitalismo. Uma vez que essa transio inicial foi bem-sucedida, o segundo elemento da teoria de Carling entra em ao. Lem-bremos que a fragilidade da teoria de Cohen a sua incapacidade de inspirar confiana na existncia de um mecanismo que selecione as relaes de produo timas para o desenvolvimento das foras produtivas. Carling aponta, desse modo, a possibilidade de imaginarmos um mecanismo darwiniano que sele-cione os tipos de relaes de produo que o materialismo histrico ortodoxo requer. Tal mecanismo a competio intersocial; ao que parece, ela pode ser de dois tipos: ou diretamente econmica, como as situaes em que o capitalismo penetra nas regies pr-capitalistas por intermdio do comrcio ou do investi-mento direto; ou, mais diretamente, como confronto militar. As sociedades com maior eficincia produtiva so mais bem-sucedidas em mobilizar recursos para a guerra e, portanto, mais aptas a gozar, a longo prazo, de um sucesso militar sobre as sociedades adversrias menos produtivas. Carling um tanto obscuro acerca desta questo, mas, presumivelmente, a conquista deve seguir-se a uma imposio das relaes de produo dos vitoriosos, o que transforma o antigo regime em um tipo mais compatvel ao crescimento.25 O avano das foras pro-dutivas acontece, nesta teoria, por meio da competio entre sociedades dotadas de diferentes tipos de relaes de produo.

    Carling ilustra seu argumento por meio da transio ao capitalismo. Aparen-temente, sua hiptese que esse exemplo simplesmente delineia uma lgica que pode ser generalizada a outros casos de transio na histria. Em qualquer regio geogrfica que possua mltiplas unidades de sistemas econmicos, quando uma mudana para um novo conjunto de relaes de produo ocorre em uma dessas unidades, uma luta competitiva estabelecida entre esta e as unidades que possuem conjuntos de relaes de produes mais antigas e menos produtivas. As novas relaes de produo acabam substituindo suas rivais. Mas, se fizermos uma pausa, parecer evidente que todo este argumento foi influenciado pelo exemplo escolhido a ascenso e a difuso das relaes de produo capitalistas. fcil acreditar que uma unidade econmica dominada pelo capitalismo, ao competir com outras unidades, vencer, j que a diferena da produtividade entre os modos de produo capitalistas e pr-capitalistas simplesmente sem precedentes. claro que, por apresentarem esta diferena, as relaes de produo capitalistas tende-ro a se expandir para outras regies. Mas ser que esta lgica funciona quando

    25 Deduzo isto de outras observaes que Carling faz entre parnteses, j que ele , para nossa frustrao, vago sobre como a competio intersocial conduziria substituio das relaes de produo artrticas por outras mais compatveis ao crescimento. Por exemplo, no existe nada em seu argumento que exclua a possibilidade de que tal substituio ocorra por meio de uma abolio das relaes de produo mais antigas. Este seria um paralelo direto ainda que chocante histria na seleo natural. Ver Carling (1993).

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    a competio acontece em uma fase anterior da histria, na qual a diferena do nvel das foras produtivas no to expressiva?

    Carling surpreendentemente vago sobre qual mecanismo tem a funo de transmitir novas relaes de produo mais adequadas numa regio onde pre-dominam foras produtivas estagnadas. Contudo, parece que os dois candidatos mais provveis so: 1) sua simples imposio por meio de um conflito militar, ou 2) de que elas se imponham por intermdio de algum tipo de efeito-explicativo [demonstration-effect]. O sucesso do primeiro candidato depende da realizao de duas condies: primeiramente, deve-se esperar que a sociedade que possua relaes de produo que conduzam eficincia ganhe da sua adversria menos produtiva; e, em segundo lugar, deve-se esperar que os conquistadores forcem ou induzam, de forma bem-sucedida, os sujeitos derrotados a adotarem as novas relaes de produo. Quando o conflito ocorre entre uma economia capitalista e uma economia feudal, talvez seja possvel esperar que, durante a sua continuidade, a eficcia dinmica do capitalismo gere recursos muito maiores do que os da eco-nomia feudal, de sorte que tal conflito resulte em um sucesso militar. Entretanto, quando o conflito ocorre entre tipos de sociedades de classe no capitalistas, isto no parece estar garantido.

    Como o prprio Carling admite, no existe, de fato, razo para considerarmos que, nos conflitos militares, as sociedades que possuem relaes de produo que promovam o aumento da sua produtividade derrotaro, de maneira lgica, aquelas que possuem relaes artrticas. Para alm dos caprichos da guerra, cujo desfecho frequentemente depende das tticas, da ideologia, da organizao poltica etc., no h motivos para pressupor que a maior eficincia das novas relaes de produo aumentar as chances de sucesso. O que mais importante em tais circunstn-cias no a eficincia em obter novos recursos, mas, ao invs disso, o quantum realmente obtido. Como ressalta Carling, um grande e poderoso imprio que se encontra em um nvel tcnico baixo pode, contudo, concentrar seus esforos para derrotar um pequeno, porm gil, competidor que se encontra num nvel tcnico mais avanado (Carling, 1993, p.51). Mas se isso for verdade, o exemplo de que tal competio opera como um mecanismo de transmisso das novas relaes de produo encontra-se, para dizer o mnimo, consideravelmente enfraquecido. O que a guerra seleciona o que no surpreendente diretamente destinado capacidade militar. Sendo esta capacidade um resultado complexo de muitos fatores, e sendo a eficincia produtiva apenas um deles, no possvel antecipar que a guerra, de maneira lgica, selecionar favoravelmente a eficincia pro-dutiva. Contudo, mesmo se as sociedades que se encontram em nveis tcnicos mais avanados forem capazes de assegurar uma vitria militar, um problema completamente diferente presumir que, num cenrio post bellum, elas tambm sero capazes de impor suas novas relaes de produo aos perdedores. Tais transformaes da estrutura produtiva dependem de uma capacidade por parte dos vitoriosos que transcende o poder que se requer para simplesmente ganhar

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    a guerra. Elas dependem de uma capacidade do Estado e de uma capacidade da classe, algo que desafia a lgica.

    O problema dos interesses e da capacidade de classe tambm enfraquece a hiptese de uma segunda via para a imposio de novas relaes de produo ti-mas, atravs de um tipo de efeito-explicativo [demonstration-effect] das melhores relaes. possvel acreditar que os proprietrios tomaro conhecimento de bem como ficaro impressionados por outras economias mais produtivas. Contudo, no simples acreditar que eles ficaro to impressionados a ponto de iniciarem a transformao dos seus prprios sistemas produtivos. Em primeiro lugar, j que os modelos econmicos adversrios se assentam em relaes de produo dife-rentes, uma transio a estas relaes de produo envolveria o desmantelamento das prprias relaes sociais com base nas quais esses proprietrios mantm seu poder. A probabilidade de que esses proprietrios ajam desta maneira pode ser considerada um tanto baixa. Alm disso, mesmo que eles estejam inclinados a agir desta maneira, temos que nos esforar para assumir que a) eles tero a capacidade de transformar as relaes de produo existentes, e b) eles as transformaro de acordo com a sua inteno. A histria est cheia de exemplos de transformaes que produziram resultados muito diferentes daqueles pretendidos.

    Carling parece desconfortavelmente ciente de que a teoria da seleo competi-tiva que oferece corre perigo de ser sepultada sob uma montanha de advertncias. Talvez, ele aceita, tudo o que possa ser afirmado que a histria possui uma inclinao que lhe conferida pela primazia competitiva; uma inclinao mais fraca do que uma tendncia, mas consideravelmente mais forte do que absoluta-mente nada (Carling, 1993, p.51). Talvez... Mas isto estaria bastante distante do materialismo histrico que Cohen desenterrou e que Carling to admiravelmente procurou defender. Se existe alguma relao caracterizada por uma lei entre as foras produtivas e as relaes de produo que governe o desenvolvimento his-trico, ela se tornou extremamente fraca. Na melhor das hipteses, como observa Carling, ela se imbui de uma inclinao, ao invs de um forte impulso. No possvel presumir que as relaes de produo que se estabelecem aps perodos de transio sejam selecionadas pelas exigncias funcionais das foras produtivas. Em vez disso, o que parece existir so vrios conjuntos de relaes de produo compatveis com um dado nvel das foras produtivas. No possvel presumir qual delas vencer, apesar da luta competitiva entre sistemas econmicos ao menos que tomemos como exemplo a transio ao capitalismo. Mas o ponto mais importante que a direo na qual esta transio ocorreu no parece ser genera-lizvel a outras instncias. E, at que isso possa acontecer, no possvel afirmar que encontramos um mecanismo que salvar a tese da otimidade de Cohen.26

    26 As opinies de Carling evoluram desde o seu trabalho mais antigo. Para sua posio mais recente, ver Carling (2006); Carling (2009).

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    A reconstruo do materialismo histrico de Wright, Levine e Sober Se as foras produtivas no so eficazes para selecionar as relaes de produo

    timas para o seu contnuo desenvolvimento, o compromisso marxiano com uma teoria do desenvolvimento histrico tambm deve ser descartado? Em uma srie de artigos posteriormente reunidos em um livro, Erik Wright, Andrew Levine e Elliott Sober argumentam de maneira corajosa que no. Talvez o materialismo histrico, na sua verso mais forte, como aquela incorporada na tese da otimida-de, no seja defensvel; no entanto, um materialismo histrico mais concessivo e nuanado pode manter o cerne daquilo que o materialismo histrico ortodoxo procura defender, medida que diminui o seu excesso de peso. Wright, Levine e Sober consideram que a motivao central do projeto de Cohen uma defesa da direo [directionality], da histria, originada endogenamente por meio da dinmica entre foras produtivas e relaes de produo. Os autores argumentam que se a teoria for reconstruda de maneira apropriada, ainda possvel defen-der seus componentes centrais. Ainda seria possvel considerar que a histria conduzida pelo desenvolvimento das foras produtivas em direo a um maior poder produtivo.

    Abandonando a tese da otimidade A reconstruo do materialismo histrico de Wright, Levine e Sober abandona,

    no seu cerne, a tese da otimidade. Eles concordam e, na verdade, encontram-se dentre os primeiros a argumentar que no possvel assumir a existncia de qualquer mecanismo cuja funo seja selecionar as relaes de produo timas para um desenvolvimento das foras produtivas.27 Mas se as foras produtivas no possuem esta capacidade, em que sentido o marxismo possui uma teoria da histria? Quais so os limites para a contingncia que agora so transferidas para o interior da teoria? Wright, Levine e Sober argumentam que enquanto os novos modos de produo se tornam menos previsveis, ainda assim existem limites considerveis para a possvel variedade de resultados ou seja, no que tudo pode acontecer. Em particular, enquanto se passa a considerar a possibilidade de uma maior variedade de relaes de produo como candidatas seleo, tambm verdade, afirmam, que o novo conjunto ser aquele que minimamente

    27 Cf. Wright; Levine (1980). Esse artigo foi, em verdade, o primeiro a ressaltar a centralidade da tese da otimidade na teoria de Cohen. O prprio Cohen no atentou para isso em seu livro, ainda que estivesse aparentemente ciente dessa importncia. Na verdade, esse artigo (um entre os seus primeiros) claramente mais crtico a Cohen do que suas manifestaes posteriores. Tal mudana parece ter aparecido na altura em que Wright elaborava sua defesa do marxismo, contrapondo--se s crticas presentes nos trabalho de Giddens ao marxismo. Esta foi a primeira vez que Wright revelou sua verso resistente regresso [sticky downwards]* da direo [directionality], que se encontrava desde ento, de certa maneira, confusa. Veja Wright (1983). [Em economia, algo que se move para cima com relativa facilidade, ao passo em que dificilmente se move para baixo, como por exemplo preos e salrios. N.T.]

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    preserva o nvel existente de desenvolvimento tcnico. Enquanto as novas relaes de produo forem mais adequadas para preservar o nvel de desenvolvimento existente do que para permitir a sua regresso, o resultado total que o desenvol-vimento das foras produtivas ser resistente regresso [sticky-downwards]. Isto no quer dizer que elas nunca regressaro; no entanto, tais casos de regresso so historicamente raros, e o caso mais tpico aquele no qual as foras produtivas continuam avanando, ou, no pior dos casos, mantm-se estacionrias.

    Nesta verso do materialismo histrico, a teoria das formas sociais ocupa uma posio muito mais proeminente do que na verso enunciada por Cohen. Ao invs de haver apenas um conjunto de relaes de produo compatvel com as foras produtivas durante o perodo de transio, o que agora emerge um leque de possveis conjuntos. Qual deles de fato se estabelecer como sucessor depende dos aspectos da luta entre as classes sociais. Desse modo, quando tentamos apreender a sequncia real das formaes sociais, o peso explicativo retirado da teoria das transies na sua forma clssica. A razo pela qual isto deve ser visto como uma verso do materialismo histrico ortodoxo, e porque poderia ser visto como interessante, dupla: primeiro, o leque de relaes de produo, que o cardpio de opes numa dada conjuntura ainda limitado; isso no significa que, ao descartarmos a tese da otimidade, tudo ser possvel em qualquer conjuntura (Wright; Levine; Sober, 1993, p.90). Em segundo lu-gar, os limites do leque de candidatos do qual um novo conjunto de relaes de produo ser selecionado so de tal ordem que, quaisquer que sejam as relaes de produo que o substituam, elas preservaro a relao caracterizada por uma lei [law-like] entre foras produtivas e relaes de produo (obviamente, isto significa que as relaes devem ser compatveis com o desenvolvimento das foras produtivas) (Wright; Levine; Sober, 1993, p.91). Isto preserva aquilo que Wright, Levine e Sober consideram como a motivao central do materialismo histrico: a ideia de que a histria possui uma direo clara, dos nveis mais baixos aos nveis mais altos de produtividade.

    Nesta nova verso do materialismo histrico, o impulso para um contnuo desenvolvimento das foras produtivas consideravelmente mais fraco do que no materialismo histrico ortodoxo de Cohen. possvel que agora existam longos perodos na histria que no apresentem um progresso tecnolgico contnuo. Mesmo nas transies a novos modos de produo, tudo o que requerido que o novo conjunto de relaes de produo seja de tal sorte que resolva os problemas de incompatibilidade que geraram a crise. Apesar dessa considervel amplitude, os autores afirmam que a teoria ainda mantm o seu compromisso com uma di-reo [directionality] da histria, j que as seguintes condies estabelecem que:

    (I) A probabilidade de manter-se estacionrio maior do que a de regressar;(II) Existem alguns conjuntos alternativos de relaes de produo mais

    favorveis ao desenvolvimento das foras produtivas;

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    (III) A probabilidade de mover-se em direo a esse novo conjunto de relaes de produo maior do que a de regressar (Wright; Levine; Sober, 1993, p.79).

    Se essas condies so vlidas, a direo da histria acontecer a partir das relaes de produo menos produtivas s mais produtivas. E, na medida em que so vlidas, tambm existe um determinado limite variedade de novos modos de produo possveis, em qualquer nvel das foras produtivas; se este limite for vlido, o abandono da tese da primazia no pressupe que tudo pode acontecer. Wright, Levine e Sober so, de maneira tentadora, breves ao discutirem a nova teoria, bem como ao compararem esse novo resultado com o anterior. Para reco-nhecer o peso depositado nessa nova e fraca verso do materialismo histrico, interessante que esmiucemos a seguir suas implicaes.

    Do materialismo histrico fraco ao materialismo histrico minimalistaObservemos j de incio a existncia de uma ambiguidade na rigorosa

    afirmao relativa s foras produtivas que vem sendo desenvolvida. Uma vez que a tese da otimidade abandonada, duas possveis curvas na trajetria do desenvolvimento histrico emergem. Materialismo histrico fraco: as relaes de produo que predominam em qualquer perodo determinado o fazem porque so favorveis ainda que no necessariamente timas ao contnuo desenvol-vimento das foras produtivas. Materialismo histrico minimalista: as relaes de produo que predominam em qualquer perodo determinado o fazem porque mantm minimamente o nvel de desenvolvimento existente das foras produtivas, mesmo que no as desenvolvam sistematicamente no futuro.

    Obviamente, o materialismo histrico fraco o mais forte dos dois, j que respalda o impulso das foras produtivas e, ao faz-lo, admite que estas restrin-gem de maneira significativa o cardpio no qual as novas relaes de produo so selecionadas. O materialismo histrico minimalista endossa uma alegao muito mais fraca: que as foras produtivas selecionam as relaes de produo por causa da sua habilidade para manter o nvel de desenvolvimento das foras produtivas. Assim, a funo das relaes de produo prevenir uma regresso das foras produtivas. Mas, precisamente em virtude das suas ambies mais fracas, o materialismo histrico minimalista corre o risco de ser menos e talvez pouco interessante. Se ele ou no interessante um tema ao qual retornarei em breve. Entretanto, gostaria antes disso de examinar se a teoria de Wright, Levine e Sober forte o suficiente para defender que o materialismo histrico fraco superior ao materialismo histrico minimalista.

    Wright, Levine e Sober no oferecem nenhum motivo convincente para pre-sumirmos que o materialismo histrico fraco provavelmente seja mais verdadeiro do que o materialismo histrico minimalista. Consideremos seus argumentos para as perspectivas de desenvolvimento das foras produtivas. Os dois principais

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    motivos alegados sobre por que deveramos pressupor uma tendncia cumula-tiva em direo ao desenvolvimento so os seguintes: primeiro, enquanto todos os agentes podem no estar interessados no avano da produtividade, alguns poucos agentes se beneficiariam da sua constante reduo; segundo, enquanto no houver um interesse social generalizado na reduo da produtividade, existir uma boa razo para considerar que sempre haver agentes com interesse em aument-la. O aumento da produtividade favorece a diminuio da intensidade do trabalho,28 e j que todos os agentes possuem um interesse em diminuir a intensidade do seu prprio trabalho, possvel presumir que eles manteriam as inovaes, onde quer que as encontrem.29 Logo, a capacidade produtiva de uma sociedade certamente resistiria regresso [sticky downwards] e, dependendo da fora do segundo mecanismo, possuiria uma inclinao ao desenvolvimento.

    Mas precisamente a fora desse segundo mecanismo que deve ser questiona-da. verdade que os agentes possuem algum interesse na reduo da intensidade do trabalho e, portanto, no aumento da produtividade. Contudo, o interesse na reduo da intensidade do trabalho deve tambm ser levado em conta em oposio a outros que podem ser considerados no menos importantes. Existe primeiramente a questo de quem se beneficia dos frutos do trabalho. A presena de uma classe senhorial efetivamente organizada, ou de um imoderado Estado monrquico, pode ser funcional apropriao suficiente do novo produto de modo a neutralizar o incentivo positivo oferecido pelo interesse na reduo da intensidade do trabalho. E isto aconteceria no somente em virtude dos efeitos benficos das suas explo-raes, mas por causa da opresso extra, oriunda da crescente presena poltica e militar dos exploradores [extractors].

    Essa presena crescente transbordaria para outras dimenses, como a li-berdade e a autonomia, que, de acordo com suposies do prprio materialismo histrico, constituem as preferncias centrais dos agentes humanos que no so menores que o desejo de diminuir a intensidade do trabalho. Mesmo se ignorarmos tais externalidades, poderiam existir e frequentemente existem outros (e mais diretos) efeitos perniciosos das inovaes tais como os riscos adicionais os quais os produtores podem no estar dispostos a adotar.

    No h razo para acreditarmos que os agentes, ao considerarem seus efeitos lquidos [net effects], adotaro as inovaes no seu prprio regime de trabalho; mas existem boas razes para acreditarmos que devem existir agentes com um interesse ativo em impedir a adoo dessas tecnologias por outros agentes. Isto mais bvio no caso das classes dominantes, que possuem um interesse direto, por exemplo, em impedir a adoo de novas tecnologias que possam aumentar

    28 Toil, no original em ingls. (N.T.) 29 Wright; Levine; Sober (1993, p.81). Observemos que a afirmao se situa no nvel micro. Podem

    existir agentes que possuam um interesse em impedir redues na intensidade do trabalho de outros e, portanto, que poderiam ter um interesse na reduo social intensidade do trabalho.

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    a autonomia dos produtores, ou os seus prprios custos de monitoramento etc. Wright, Levine e Sober subestimam essa questo ao depositarem seus argumentos no nvel do agente, enquanto abstraem das questes das estruturas sociais nas quais os agentes esto posicionados. Indubitavelmente, os agentes inclinar-se-o a ado-tar inovaes que reduzam a intensidade do seu prprio trabalho, sob a condio de que qualquer reduo desse tipo corresponda aos seus interesses materiais. Entretanto, em uma sociedade de classes, a reduo na intensidade do trabalho por um grupo pode muito bem aumentar o esforo de trabalho para outros; esta reduo poderia muito bem desestabilizar o processo de extrao do excedente, se isso resultar em um maior poder para os produtores imediatos. Portanto, completamente possvel que proprietrios prefiram uma ordem social que seja menos produtiva, contanto que assegure a sua reproduo estvel.

    O desfecho de tudo isso que, na ausncia de um ambiente adequado abrangido, fundamentalmente, pelos tipos de relaes de propriedade em vigor, simplesmente no h razo para presumir que o impacto lquido das inovaes nos interesses dos agentes ser de tal ordem que facilitar a aceitao irrestrita de inovaes. importante ressaltar que o que est em jogo no a adoo de novas tecnologias por indivduos concretos, seno a presena de um mecanismo que permita sua expanso atravs do conjunto da sociedade. por essa razo que Brenner e alguns de seus defensores afirmam que, na ausncia de um impulso inovao, os produtores optaro por estratgias mais conservadoras, mas que privilegiam a proteo dos nveis existentes de bem-estar, ao invs de correrem os tipos de riscos exigidos para o aumento dessas inovaes. Se a trajetria do desenvolvimento histrico depender dos efeitos lquidos [net effects] dos dois mecanismos propostos por Wright, Levine e Sober particularmente dos efeitos do segundo mecanismo a garantia de que o materialismo histrico fraco seja aceito em detrimento do materialismo histrico minimalista escassa.

    Se o materialismo histrico minimalista a verso que a reconstruo de Wright, Levine e Sober podem manter, o que nos resta no uma teoria que prev uma ascenso contnua das foras produtivas, mas uma teoria, na qual as foras produtivas somente resistem regresso, ou seja, seu nvel de desenvolvimento tende a ser resistente regresso [sticky downwards]. Se este for o caso, a teoria deve admitir a possibilidade de longos perodos de estagnao histrica pero-dos caracterizados por um estado estacionrio das foras produtivas (Wright; Levine; Sober, 1993, p.80). Isto no necessariamente ocorrer nos limites de um modo de produo, j que existe alguma razo para supor que, nas transies a novos modos de produo, as relaes de produo que no estimulam o desen-volvimento ocasionalmente se combinaro com as foras produtivas, na medida em que no forcem a sua regresso.30

    30 Wright, Levine e Sober parecem reconhecer essa possibilidade. Ver Wright; Levine; Sober (1993, p.37-39).

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    As implicaes de um materialismo histrico minimalistaDuas concluses podem ser tiradas a partir de uma breve considerao do

    materialismo histrico minimalista. Primeiro, pode-se admitir que as hipteses mais poderosas acerca das restries impostas pela teoria das transies no se sustentam, e que o cardpio de opes em uma dada conjuntura histrica um tanto amplo. Dito de outro modo, poder-se-ia aceitar a morte do materialismo histrico ortodoxo, o que certamente tornaria a teoria mais plausvel. Mas isso acarretaria consequncias que repercutiriam em outras regies do materialismo histrico. Consideremos o que isso significa quando se ambiciona oferecer uma explicao do desenvolvimento histrico como um produto de uma relao ca-racterizada por uma lei [law-like] entre foras produtivas e relaes de produo. Na teoria de Cohen, parte do apelo de suas alegaes provm do papel claramente identificvel que as foras produtivas desempenham no desenvolvimento histrico. Enquanto existirem numa sociedade outros fatores que, na sua interao com os efeitos das foras produtivas, ameacem o crescimento, possvel acreditar que aqueles efeitos sejam causalmente superiores, por assim dizer eles tero a ca-pacidade de dominar e superar os efeitos dos outros mecanismos, de modo que o resultado final conduzir ao desenvolvimento. A teoria de Cohen , a esse respeito, uma encarnao direta da tradio monista do materialismo histrico inscrita na Primeira Internacional. Admitir a possibilidade de que as relaes de produo podem surgir somente onde elas preservam o nvel existente das foras produtivas ou onde podem de alguma maneira transform-las, o que deve corresponder aos interesses das novas classes dominantes significa eliminar esse monismo a favor de uma viso mais pluralista da causalidade no desenvolvimento histrico. Enquanto as foras produtivas (apenas) mantm sua capacidade de se desenvol-verem, a realizao dessa capacidade passa a ser contingente sua interao com os outros mecanismos na sociedade, cujos resultados finais no necessariamente favorecero o crescimento.31 Mas se isso for verdade, difcil aceitar porque o curso real da histria deve ser explicado por uma dialtica entre foras produtivas e relaes de produo. Essa dupla continua a exercer uma fora, mas isso algo to genrico, de sorte que sua utilidade explicativa se empobrece. A explicao em qualquer anlise concreta das transies histricas ser obtida, no em funo da influncia causal das necessidades funcionais das foras produtivas, mas em virtude da direo dos eventos guiados pela luta de classes.

    A segunda concluso que pode ser tirada dessa breve considerao a seguinte: mesmo que seja verdade que a crise do modo de produo no consegue provo-car a emergncia, bem como a consolidao das novas relaes de produo que aumentem o crescimento, essa situao no pode permanecer indefinida. Cedo ou tarde, uma classe com os interesses adequados tambm desenvolver a capacidade

    31 Ver a discusso sobre o modo de produo asitico em Wright; Levine; Sober (1993, p.52, n.11).

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    indispensvel a esse crescimento. Mais ainda, podemos presumir que a cada repe-tio do ciclo esta probabilidade cresce, sobretudo se o nvel das foras produtivas for ligeiramente maior a cada ciclo.32 Assim, enquanto as foras produtivas por si s no podem gerar novas relaes de produo mais apropriadas, elas ainda possuem a funo de colocar essa questo na agenda de discusses.33 Neste caso, as foras produtivas ainda so fatores explicativos relevantes em situaes nas quais as novas relaes de produo so adotadas, j que o seu desenvolvimento prvio o que, precisamente, ocasiona possibilidade de que as novas relaes de produo ascendam.

    O argumento acima exposto anlogo a outro argumento defendido por Wright, Levine e Sober, concernente explicao da origem do Estado de bem-estar social. Os marxistas tradicionalmente argumentam que o Estado de bem-estar social um produto da luta de classes, mais especificamente do crescimento organizacional da classe trabalhadora. Seus principais crticos rejeitam esse argumento ao ressaltar que outros fatores, para alm dos de classe, desempenharam um papel crucial no seu surgimento fato injustificadamente ignorado pelos marxistas. Wright, Levine e Sober sublinham a existncia de dois aspectos do surgimento do Estado de bem-estar social que necessitam ser distinguidos o fato da sua origem e as variaes na sua forma, no seu tempo de maturao [timing] etc. O fato de o Estado de bem-estar social ter surgido apenas no capitalismo e, mais especifi-camente, o fato de ter surgido durante o amplo perodo histrico do capitalismo explicado pela lgica da classe e da luta de classes. Mas a luta de classes no poderia explicar diretamente o desenvolvimento real da sua legislao, bem como da variedade destes Estados, tal como os marxistas tradicionalmente tentaram argumentar. O desenvolvimento dos amplos movimentos da classe trabalhadora nos pases industriais teve a funo de introduzir esse tipo de Estado na agenda de discusses. Contudo, uma vez que essa discusso ainda era deficitria [once it was on the slate], o processo preciso da adoo desse Estado e os traos institu-cionais especficos por ele incorporados podem ser explicados por outros fatores, aos quais as anlises no marxianas frequentemente no se referem: geopoltica, manobras burocrticas, outros movimentos etc.

    nesse sentido que as foras produtivas operariam como uma causa para o surgimento de novas e mais propcias relaes de produo. Em ambos os casos, um conjunto de causas as foras produtivas, no caso das transies significativas e os movimentos da classe trabalhadora, no caso do Estado de bem-estar social introduz novos avanos na agenda de discusso, enquanto outro conjunto seleciona o elemento especfico dentre aqueles itens presentes na agenda. Assim, em ambos os casos, a primeira srie de fatores retm a relevncia explicativa.

    32 Erik Wright sugeriu-me isso ao comentar um ensaio que escrevi anos atrs. 33 Put something on the agenda (ou raise as an issue), no original em ingls, possui o sentido de

    problematizar algo, transformar em uma questo o que antes era simplesmente afirmado. (N.T.)

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    Gostaria de indicar que o paralelo esquadrinhado acima incorreto. A fora do argumento de Wright, Levine a Sober depende do significado relacionado a introduzir algo na agenda de discusses. Na explicao desses autores, isto significa que o agente causal tem a funo de causa estrutural do resultado. Nos casos que incorporam causalidades estruturais, o fator causativo primordial (estrutural) no o disparador do evento que produzido; mas, ainda assim, um aumento no peso da causa estrutural possui a funo de aumentar a probabilidade do resultado previsto. Uma vez que a dimenso da causa estrutural alcana um determinado nvel limiar, ela aumenta radicalmente a probabilidade de que algum disparador trar o resultado previsto.

    A relevncia dos movimentos da classe trabalhadora para a formao de Esta-dos de bem-estar social um exemplo bem-sucedido de causalidade estrutural. importante ressaltar que, para que isto funcione, necessria a presena de algum mecanismo que conecte a causa estrutural o poder da classe trabalhadora ao resultado. Essa ligao providenciada pelos interesses de classe dos trabalha-dores: considerando que os trabalhadores possuem um interesse na formao de um Estado que desmercantilize a fora de trabalho, que isole os trabalhadores das flutuaes do mercado, que socialize o trabalho domstico etc., um ndice cres-cente do seu poder associativo torna mais provvel que esse poder seja utilizado na transformao dos Estados existentes para que essa condio de bem-estar seja assegurada. A sequncia real dos eventos que conduziram formao de um Estado de bem-estar social por meio de vitrias eleitorais, reformas burocrticas racionais, guerra civil etc. pode ser considerada sem importncia. Esses eventos so relevantes para explicar no o fato do Estado de bem-estar social, mas o seu tempo de maturao [timing], suas formas particulares etc. Para explicaes sobre o motivo do surgimento dos Estados de bem-estar, tudo o que devemos conhecer o fato do poder da classe trabalhadora e dos seus interesses nesses Estados.

    Ora, o que no ficou totalmente claro se existe um mecanismo estrutural-mente causal que conecte as foras produtivas a alguns supostos disparadores, o que poderia acarretar transies que incorporem as relaes caracterizadas por uma lei entre foras produtivas e relaes de produo. Em outras palavras, no possvel demonstrar que os nveis crescentes das foras produtivas so uma causa estrutural para o surgimento de novas relaes de produo. Consideremos uma vez mais o que deveria ser a estrutura do argumento: enquanto o nvel das foras produtivas aumenta gradativamente com o tempo, as crises no modo de produo sero solucionadas de modo a tornar mais provvel o estabelecimento de novos conjuntos de relaes de produo mais adequadas. Esta explicao , no caso da estrutura, muito semelhante explicao do poder da classe trabalha-dora para o surgimento do Estado de bem-estar social: se a importncia do fator causal aumenta, aumentam as chances do tipo de resultado previsto pela teoria. Contudo, existe uma diferena: enquanto no exemplo examinado mais acima existe um mecanismo que conecta a possvel causa aos seus efeitos, impossvel

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    detectar uma conexo similar no caso das foras produtivas. Dito de outro modo, por que um aumento nas foras produtivas origina um novo conjunto de relaes de produo mais adequadas?

    Se fossemos arriscar uma simetria minuciosa com o exemplo do Estado de bem-estar social, o argumento deveria admitir a existncia de um interesse por parte dos atores sociais no surgimento de novas relaes de produo, assim como um aumento na sua capacidade de atuarem para esse surgimento. Dado este interesse no surgimento de novas relaes de produo, um crescimento na capacidade dos atores sociais ser empregado na acelerao da emergncia de novas relaes de produo. Contudo, como j argumentamos, mesmo que seja verdade que os agentes sociais possuem um interesse no aumento da produtividade, ceteris paribus, este interesse pode ser e previsivelmente ser sufocado por outros interesses ameaados pelas externalidades coexistentes s foras produtivas mais desenvolvidas. Portanto, no existe razo para presumir que a situao de classe dos atores histricos inclui um interesse nessa forma de desenvolvimento. Alm do mais, mesmo que tal interesse exista, no h motivos que nos faam acreditar que foras produtivas mais eficazes aumentariam a capacidade desses atores centrais direo desejada. verdade que uma melhor produtividade aumenta o excedente social e, portanto, gera mais recursos. Mas a distribuio desses recursos no pode ser prevista, j que eles podem ser facilmente destinados aos atores sociais que possuem um forte interesse na reproduo da ordem existente. Portanto, um aumento no nvel tcnico das foras produtivas no tem um efeito definitivo na probabilidade de que as novas relaes de produo substituam aque-las em crise. difcil imaginar como isto pode ser antecipado. Se as divergncias entre este caso e o caso do Estado bem-estar forem tais como as descrevemos, ento a opo de considerar as foras produtivas como uma causa estrutural das novas relaes de produo no est disponvel para Wright, Levine e Sober. Se as foras produtivas no podem ser consideradas uma causa estrutural, afirmar que elas introduzem novas relaes de produo na agenda de discusses, da mesma maneira que a classe trabalhadora introduziu o Estado de bem-estar social nessa agenda algo enganoso.

    Hesperus Phosphorus! Ou o materialismo histrico minimalista a teoria da luta de classes!

    Faamos uma reflexo. Argumentei que, se Wright, Levine e Sober rejeitam a tese da otimidade eles devem rejeit-la, j que desejam salvar o materialis-mo histrico , existem duas interpretaes do materialismo histrico que se lhes apresentam disponveis: 1) o materialismo histrico fraco, que afirma que a progresso das relaes de produo na histria de tal ordem que facilita o desenvolvimento das foras produtivas, mesmo que no seja num nvel timo; 2) o materialismo histrico minimalista, que simplesmente recupera a assertiva de que a progresso das relaes de produo de tal ordem que as foras produ-

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    tivas apenas no regressam. Wright, Levine e Sober insinuam, na exposio da sua nova verso do materialismo histrico, que deveriam se decidir pela segunda verso. Tenho argumentado que essa a verso que eles de fato deveriam aceitar. Com base nas suas prprias concluses, difcil manter uma tese que defenda o contnuo desenvolvimento das foras produtivas por meio da histria. No existe um mecanismo disponvel que possa operar sistematicamente na seleo das re-laes de produo que aumentem o crescimento, mesmo quando essas relaes no necessitam ser timas. Alm disso, os agentes podem, com efeito, ter interesse no sacrifcio das relaes de produo que intensificam o crescimento a favor de outras que pressupem outros interesses, como estabilidade ou poder poltico. Resta-nos, pois, uma teoria que afirma que o que governado por leis no curso da histria simplesmente que as relaes de produo, no decorrer das pocas, impedem uma regresso do nvel das foras produtivas.

    So muitas as implicaes. O materialismo histrico minimalista certamen-te plausvel enquanto teoria do desenvolvimento histrico. Contudo, seu poder explicativo consideravelmente reduzido para a compreenso da sequncia real das formas sociais observadas na histria. Esta sequncia no pode ser explicada pelas necessidades funcionais das foras produtivas. Relembremos que, como o conjunto das relaes de produo que possibilitam o desenvolvimento se amplia de modo a aumentar o nmero de candidatos, as exigncias funcionais das foras produtivas enquanto meca