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ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 212 O RAPTO DE PERSÉFONE, A BUSCA DE DEMÉTER, O INFORTÚNIO DE DEMOFONTE E OS MISTÉRIOS DE ELÊUSIS NA ÁTICA ARCAICA Graduanda Mariana Albuquerque (NEA / UERJ) Orientadora: Profª. Drª. Maria Regina Candido (NEA / UERJ) Por muitas vezes, as deusas Deméter (Δήμηηεπ) e Perséfone (Πεπζεθόν) foram invocadas em uma referência única como as “Duas Deusas”. Mãe e filha, inseparáveis, eram também chamadas de Deméteres (BURKERT, 1993: 314). O Hino Homérico a Deméter relata o mito central das deusas sua separação com o rapto de Perséfone por Hades (Ἀΐδῃ), anteriormente mencionado por Hesíodo em sua Teogonia e a instituição dos Mistérios em Elêusis. Essa comunicação pretende viabilizar a compreensão da narrativa mítica do rapto de Perséfone por Hades, através da análise do Hino Homérico a Deméter que se estima datar entre os séculos VII e VI a.C. assim como da Teogonia hesiódica. Pretende, ainda, estabelecer uma relação entre a narrativa mítica das “Duas Deusas” e a introdução do culto de Mistérios em Elêusis, a partir da tríade Deméter-Perséfone-Demofonte. Para isso é necessário permearmos alguns aspectos da Teogonia, do Hino Homérico e da religião grega na Ática. Em seu texto, Hesíodo explana a genealogia dos deuses de forma sistemática. Conforme o historiador Moses Finley, no livro O Legado da Grécia: uma nova avaliação”, na Teogonia consta mais de 350 nomes, entre deuses, semideuses, heróis e personagens do imaginário social grego. De acordo com o doutor em língua e literatura grega, JAA Torrano, a poesia hesiódica está ligada formalmente à épica homérica, igualmente constituída de hexâmetros 1 . A Teogonia, do período arcaico, expõe uma 1 Um dactílico é uma seqüência de três sílabas poéticas, a primeira longa e as duas seguintes breves. Portanto o verso hexâmetro dactílico ideal consiste de seis pés (grupos silábicos que formavam a estrutura básica dos versos), sendo cada um dactílico.

O rapto de Perséfone, a busca de Deméter , o infortúnio de Demofonte e os ...neauerj.com/Anais/coloquio/mariana.pdf · 2016-06-08 · formava seus deuses e os guardava como protetores,

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    MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO

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    2010

    212

    O RAPTO DE PERSFONE, A BUSCA DE DEMTER, O INFORTNIO DE

    DEMOFONTE E OS MISTRIOS DE ELUSIS NA TICA ARCAICA

    Graduanda Mariana Albuquerque (NEA / UERJ)

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Regina Candido (NEA / UERJ)

    Por muitas vezes, as deusas Demter () e Persfone () foram

    invocadas em uma referncia nica como as Duas Deusas. Me e filha, inseparveis,

    eram tambm chamadas de Demteres (BURKERT, 1993: 314). O Hino Homrico a

    Demter relata o mito central das deusas sua separao com o rapto de Persfone por

    Hades (), anteriormente mencionado por Hesodo em sua Teogonia e a instituio

    dos Mistrios em Elusis.

    Essa comunicao pretende viabilizar a compreenso da narrativa mtica do rapto

    de Persfone por Hades, atravs da anlise do Hino Homrico a Demter que se estima

    datar entre os sculos VII e VI a.C. assim como da Teogonia hesidica. Pretende, ainda,

    estabelecer uma relao entre a narrativa mtica das Duas Deusas e a introduo do culto

    de Mistrios em Elusis, a partir da trade Demter-Persfone-Demofonte. Para isso

    necessrio permearmos alguns aspectos da Teogonia, do Hino Homrico e da religio

    grega na tica.

    Em seu texto, Hesodo explana a genealogia dos deuses de forma sistemtica.

    Conforme o historiador Moses Finley, no livro O Legado da Grcia: uma nova

    avaliao, na Teogonia consta mais de 350 nomes, entre deuses, semideuses, heris e

    personagens do imaginrio social grego. De acordo com o doutor em lngua e literatura

    grega, JAA Torrano, a poesia hesidica est ligada formalmente pica homrica,

    igualmente constituda de hexmetros1. A Teogonia, do perodo arcaico, expe uma

    1 Um dactlico uma seqncia de trs slabas poticas, a primeira longa e as duas seguintes breves. Portanto

    o verso hexmetro dactlico ideal consiste de seis ps (grupos silbicos que formavam a estrutura bsica dos

    versos), sendo cada um dactlico.

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    caracterstica do prprio estilo potico: a marca da oralidade em sua composio

    (TORRANO, 2007: 18).

    Segundo Eric Havelock, no devemos pensar a composio oral dos gregos como

    improviso ou meramente estilstica, e sim entender que ela era uma composio rtmica,

    potica, inclusive. No obstante, os termos potico e poesia equivalem a letrado e

    arte da escrita. A inveno do alfabeto, que converteu a lngua grega em um artefato,

    introduziu um novo estado mental, alfabtico. Vale ressaltar que o aparecimento do

    alfabeto e, por conseguinte da escrita fontica, foi uma das inovaes que contriburam

    para a formao da plis () ateniense.

    De acordo com a historiadora Neyde Theml, em seu livro O pblico e o privado

    na Grcia, a apropriao da escrita na plis se fez, primeiramente, na modalidade de

    comunicao oral, pois a escrita era pblica, portanto era para ser vista, lida e ouvida.

    Apesar da emergncia da escrita, a tradio oral no se desestruturou, ambas coexistiram,

    por isso os primeiros textos possuam marcas de oralidade. Conforme Havelock, podemos

    observar na transcrio alfabtica dos textos essa caracterstica de parceria entre o oral e

    escrito.

    Segundo Havelock, a escrita, ao se tornar um artefato visvel, podia ser preservado

    sem recurso memria. O registro histrico anterior a ela era potico, posteriormente, a

    histria ganha corpo e subsiste como artefato escrito, no qual a prosa o meio adequado

    para este fim, uma vez que, em geral, usada como linguagem de instruo e informao,

    prezada em termos de contedo. Se no registro ps-escrita temos a figura do historiador,

    na preservao da memria dos antigos, h a figura do aedo (). Ao contrrio da

    autoridade do histor que era conferida por ele ser uma testemunha que viu (autopsia) e

    investigador que ouviu, a autoridade do aedo consistia na inspirao advinda das Musas

    (u).

    Conforme o historiador Jean-Pierre Vernant, em Mito e pensamento entre os

    gregos, o aedo possua uma viso direta dos acontecimentos passados, quando inspirado

    pelas Musas que viam tudo o que acontecia. O poeta conhece o passado, pois ele tem o

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    poder de estar presente no passado. Presena direta no passado, revelao imediata, dom

    divino, todos esses traos, que definem a inspirao pelas Musas (VERNANT, 1973: 74).

    A relao do aedo com a memria era estabelecida atravs da ltima, uma vez que a

    memria transporta o poeta para os acontecimentos de outrora e a organizao temporal da

    sua narrativa reproduz tais acontecimentos, os quais ele assiste na ordem em que

    ocorreram.

    Entretanto, a rememorao do passado tem como requisito necessrio o

    esquecimento do tempo presente. Podemos perceber essa caracterstica ao analisarmos a

    figura do aedo, que apesar de conseguir visualizar o passado e coisas que ele jamais

    presenciou quando inspirado pelas Musas, preservando o passado atravs da memria, no

    lhe era possvel ver o presente, pois era cego. No obstante, a figura do aedo e,

    conseqentemente, o seu canto eram importantes para os gregos, pois institua o resguardo

    da memria, no s dos heris, mas da prpria polis e dos prprios gregos, dessa forma,

    para Vernant, memria pode ser vista como uma fonte de imortalidade

    Conforme o historiador S. G. Pembroke, o xito inicial do poema de Hesodo pode

    ser explicado por conter tais idias, aceitas pela sociedade da sua poca. Pois ao dizer que

    foi inspirado pelas Musas, que lhe apareceram no monte Hlicon, Hesodo apresenta a

    legitimao do seu texto (FINLEY, 1998: 339). Pembroke afirma, baseando-se em

    Herdoto, que Hesodo e Homero foram os que compuseram o relato grego do nascimento

    dos deuses, atribuindo-lhes ttulos, as honras apropriadas a cada um deles e suas

    respectivas especialidades, ainda indicaram qual seria sua aparncia (FINLEY, 1998: 339).

    Franois Chamoux, na obra A civilizao grega na poca arcaica e clssica, ressalta

    essa importncia atribuda a Homero e Hesodo, por Herdoto, no domnio religioso:

    a eles que devemos a apresentao potica da Teogonia (ou

    genealogia dos deuses); deram aos deuses os seus nomes rituais;

    definiram os pormenores dos seus cultos e respectivos atributos;

    deram a conhecer a sua figura.2

    2 CHAMOUX, Franois. A civilizao grega na poca arcaica e clssica. Lisboa: Edies 70, n/a. p. 150.

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    Apesar dos deuses que compem a narrativa mtica do rapto de Persfone j

    tivessem sido apresentados nas epopias homricas, na Teogonia que aparece, pela

    primeira vez, uma meno ao rapto de Persfone por Hades. No obstante, vale ressaltar

    que no poema de Hesodo no h nenhuma referncia aos Mistrios em Elusis, apenas cita

    que:

    [Zeus] Tambm foi ao leito de Demter nutriz que pariu Persfone

    de alvos braos. Edoneu [Hades] raptou-a de sua me, por ddiva

    do sbio Zeus (Teogonia, v. 912 914)

    No que concerne aos Hinos Homricos, conhecemos, hoje, um total de trinta e trs

    hinos. Contudo, embora sejam chamados homricos, no cabe ao autor da Ilada e

    Odissia a autoria de tais poemas. O termo homrico lhes atribudo, pois encontramos

    marcas da escrita pica nesses textos, neles podemos observar caractersticas do poema

    homrico, como o metro pico (hexmetro dactlico) e uma narrao direta. Alm de

    apresentar uma relao entre oralidade e escrita.

    Porm, no s de aproximaes com Homero que estes hinos so constitudos.

    Conforme o antroplogo Ordep Serra, encontramos tambm frmulas e esquemas da

    poesia hesidica nos Hinos Homricos, uma vez que ambos so dedicados celebrao de

    divindades e compem uma narrativa descritiva (SERRA, 2009: 20). Ainda que algumas

    caractersticas os coloquem como um grupo, h outras que evidenciam certa ausncia de

    homogeneidade. o caso da datao, uns estima-se datar do sculo VII a.C., outros do

    sculo II a.C., e da extenso, h hinos com mais de quatrocentos versos e hinos com apenas

    trs versos.

    O Hino Homrico a Demter estima-se datar entre fins do sculo VII a.C e incio

    do VI a.C. e conta com quatrocentos e noventa e cinco versos para narrar o mito do rapto

    de Persfone e a introduo do culto de Mistrio em Elusis. Para que possamos

    compreender a anlise dos textos e as problemticas sugeridas a partir deles, nos

    necessrio permear, brevemente, a narrativa mtica do rapto de Persfone conforme o

    Hino Homrico a Demter e alguns aspectos da religio grega.

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    No obstante, vale ressaltar que apesar dos textos literrios serem nossa fonte mais

    abundante, so aqueles que mais podem nos induzir a um erro. Pois, de acordo com

    Chamoux, a imaginao dos gregos sempre foi exercida com predileo sobre os mitos

    relativos aos deuses (CHAMOUX, 1983: 143). Os gregos no conheciam o dogma da

    imutabilidade no domnio mitolgico, uma vez que o grande nmero de lugares de culto, a

    disperso da populao e o particularismo das cidades gregas favoreciam a proliferao

    dos mitos e a sua diversidade (CHAMOUX, 1983: 143). Sendo assim, nem o texto de

    Homero, nem o de Hesodo, nem os Hinos Homricos esto a salvo de terem sofrido

    alteraes, seja acrscimos subseqentes ao panteo ou a elaborao de verses diferentes

    (FINLEY, 1998: 339).

    No que diz respeito ao grande nmero de lugares de culto, Fustel de Coulanges, em

    seu escrito A cidade antiga, explica o motivo dessa enorme variedade de cultos locais.

    De acordo com Fustel, o primeiro aparecimento das crenas religiosas de uma poca em

    que os homens ainda viviam no estado de famlia, esses novos deuses tiveram,

    primeiramente, um carter domstico (COULANGES, 2009: 139-141). Cada famlia

    formava seus deuses e os guardava como protetores, para no compartilhar suas graas

    com os de fora da famlia.

    Somente depois de muito tempo, esses deuses passaram a sair do seio de suas

    famlias para habitar o imaginrio coletivo, o que acontecia quando a divindade de uma

    famlia adquiria grande prestgio na imaginao dos homens e parecia to importante

    quanto famlia fosse prspera. Assim, toda a cidade queria adot-la e prestar um culto

    pblico divindade, para obter dela seus favores, foi o que aconteceu com a Demter dos

    Eumlpidas Frente a essa colocao, Fustel faz uma ressalva quanto a uma conseqncia:

    quando uma famlia consentiu assim compartilhar o seu deus, reservou para si mesma

    pelo menos o sacerdcio. (COULANGES, 2009: 139-141). Podemos ver a questo dos

    sacerdotes em Aristteles quando este escreve:

    Tais so os encargos do arconte. O basileu, primeiramente,

    encarrega-se dos Mistrios, assistido por intendentes eleitos pela

    assemblia em votao por mos levantadas, sendo dois deles

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    dentre todos os atenienses, um dentre os Eumlpidas, e um dentre

    os Crices3 (Constituio de Atenas, LVII)

    De volta narrativa mtica do rapto e a sua relao com a introduo dos cultos de

    mistrios, analisaremos passagens da narrativa descrita no Hino Homrico a Demter. A

    narrativa tem incio com Persfone, filha de Demter deusa ligada semeadura e colheita

    e Zeus (), colhendo flores numa plancie quando, ento, a terra se abre. Dela surge

    Hades, o que muitos acolhe, Senhor do Mundo Subterrneo, e rapta a deusa. Durante nove

    dias, Demter procurou pela filha. No dcimo dia, deparou com Hcate ( ) que

    confirmou ter ouvido os gritos de Persfone, embora no tenha visto o rosto de seu raptor.

    Foram ao encontro de Hlios ( ), que vigia deuses e homens. Este lhes disse o nome

    do raptor de Persfone, Hades, e que este o fez com consentimento de Zeus.

    Demter decidiu no mais voltar ao Olimpo (n) e vagou pela terra, na

    figura de uma velha, chegando a Elusis (no) (para regio de Elusis, anexo 1).

    Aceitou o convite para cuidar do filho mais novo de Metanira (), esposa de

    Celeu ( ), basileus () de Elusis. Ao entrar no palcio, a deusa sentou em

    um banco e durante muito tempo permaneceu ali, em silncio, com o rosto coberto por um

    vu. At que uma criada, Iambe (), a fez rir com gracejos e trejeitos. Demter no

    aceitou o vinho, mas pediu que lhe preparassem uma bebida a base de cevada, kuken.

    A deusa, ento, comeou a cuidar da criana, Demofonte ( ). Demter

    esfregava Demofonte com ambrosia e durante a noite colocava-o no fogo. Cada dia o

    menino se parecia mais com um deus. E essa era a inteno de Demter, torn-lo imortal e

    eternamente jovem. Porm, uma noite, Metanira viu o filho em meio s brasas e iniciou

    uma srie de lamentos. Demter revela seus planos, frustrados, a Metanira, dizendo:

    Imortal e por todo o tempo agrato, o filho teu/ Eu tornaria, com

    um privilgio perene; Ora j impossvel que escape ao fado da

    morte (Hino Homrico a Demter, v. 260 262)

    3 A Constituio de Atenas, de Aristteles. [Traduo: Francisco Murari Pires]. So Paulo: Editora Hucitec,

    1995.

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    A deusa solicita que lhe seja erguido um templo, onde ela ensinar seus ritos aos

    homens, se apresenta em sua forma e deixa o palcio. Quando o templo fica pronto,

    Demter recolhe-se ao seu interior e uma terrvel seca prostra-se sobre os campos. Em vo,

    Zeus solicita a Demter que retorne ao Olimpo e retome suas atividades. Ento, Zeus, o

    senhor dos raios e deus dos deuses, recorre a Hades, o rico em hspedes e Senhor do

    Mundo dos Mortos, que devolva Persfone sua me.

    Hades concede o pedido a Zeus, porm faz com que Persfone coma uma semente

    de rom ainda no Mundo Subterrneo, o que determina o seu retorno anual ao Mundo dos

    Mortos para ficar com o esposo. Pois, acreditava-se que aquele que comesse algo no

    Mundo Subterrneo no poderia deix-lo. Contudo, Zeus concede a sua filha Persfone

    regressar ao mundo superior para estar com sua me Demter durante dois teros do ano,

    tendo que retornar ao Mundo Subterrneo para passa o outro um tero com seu esposo

    Hades. Vejamos a citao:

    [Zeus] Sua filha consentiu passasse, do ciclo anual, A tera parte

    no seio da bruma tenebricosa, As outras duas, porm, com a me,

    entre os imortais (Hino Homrico a Demter, v. 445 447)

    Quando se reencontra com a filha (para o retorno de Persfone, anexo 2),

    Demter faz brotar os frutos e a terra se cobre de flores e folhagens. Porm, antes de

    regressar ao Olimpo, a deusa revela seus ritos e ensina seus mistrios a Triptlemo

    (), o primeiro iniciado nos Mistrios, seguido de Diocles ( ), Eumolpo

    (), Celeu e Polixeno (). Tendo fundado os ritos (para mistrios

    eleusinos, anexo 3), Demter regressa com Persfone ao Olimpo, encerrando, assim, a

    narrativa mtica das Duas deusas.

    A partir da narrativa mtica do rapto de Persfone, mencionada por Hesodo na

    Teogonia e descrita no Hino Homrico a Demter, podemos estabelecer uma relao entre

    tal narrativa e a introduo do culto de Mistrios em Elusis. Para tal, utilizaremos algumas

    passagens do Hino, consideradas essenciais para compreender a proposta da trade na

    introduo do culto de mistrios em Elusis. Uma vez que a hiptese levantada a

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    intrnseca relao dos personagens deusa Demter, deusa Persfone e humano Demofonte

    com o estabelecimento dos Mistrios eleusinos.

    Quando chega a Elusis na forma de uma anci, Demter recebe a proposta para

    cuidar de Demofonte e enquanto se dedica a tornar a criana imortal, no se fala, no Hino,

    de Persfone ou da dor de Demter pela perda da filha. Levantamos, aqui, um

    questionamento: poderamos, ento, interpretar essa ausncia de Persfone e o desejo de

    imortalizar Demofonte como uma substituio, uma supresso da falta de sua filha pela

    adoo de outro? Sim, poderamos. Todavia, essa no a questo que cerne este trabalho,

    portanto no nos ateremos a ela.

    A partir da anlise da narrativa mtica, propomos, em um primeiro momento,

    perceber o rapto de Persfone por Hades como o agente que propicia a instituio dos

    Mistrios em Elusis, posto que sem rapto no se faria necessrio a busca de Demter, que

    a levaria Eleusis e a Demofonte e, por fim, ao reencontro com sua filha Persfone. Ento,

    temos um segundo momento com a busca de Demter e o seu vaguear que a levam a

    Elusis.

    Em um momento seguinte, compreendemos a passagem em que Metanira v

    Demter envolver Demofonte em fogo e grita por temor ao filho, interrompendo o ritual de

    imortalizao deste, como uma segunda parte do processo da introduo do culto de

    Mistrios em Elusis. Uma vez que, conforme o historiador Mircea Eliade, em Histria

    das crenas e idias religiosas, somente aps o fracasso da imortalizao de Demofonte,

    seu infortnio, Demter se revelou como deusa e exigiu que lhe fosse erigido um templo

    para transmitir aos homens seus ritos.

    Nessa passagem podemos nos questionar por que Demter no retomou o ritual de

    imortalizao, aps a interrupo de Metanira. Para responder essa questo valemo-nos de

    duas explicaes, uma que o ritual uma vez interrompido no poderia ser retomado.

    Segundo Maria Regina Candido, em Media, mito e magia: a imagem atravs dos

    tempos, havia uma diviso entre um espao sagrado dos deuses e um espao profano dos

    homens e para os helenos, em seu pensamento mgico-religioso, ambos formavam dois

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    mundos opostos, ainda que complementares. E para o leigo, o contgio direto com o

    espao sagrado revela uma transgresso de algo que se revestia de interdito (CANDIDO,

    2006 / 2007: 70).

    A outra explicao em funo da crena dos gregos de que havia uma ordem no

    mundo (ksmos - ) e certas regras, sendo essa ordem relacionada aos interesses dos

    deuses e no do homem. Como os deuses lutavam entre si pelo respeito (honra time -

    ), honrar determinado deus poderia significar ofender outro. Assim sendo, os homens

    deveriam evitar falhar em sua obrigao para com os deuses, inclusive porque caso isto

    ocorresse, se tornariam mpios (asebs - ) e se esperaria cair sobre eles a ira dos

    deuses. Segundo Chamoux, havia na relao homens e deuses uma familiaridade que no

    se revestia de efuso mstica. Ao contrrio, tratava-se de uma conscincia de que os deuses

    existiam, de que estavam prximos e de que se interessam pela sorte dos mortais.

    Posto isso, consoante a Peter Jones, observemos que a obrigao para com os

    deuses no era feita s de reverncias e adorao, mas tambm do cumprimento de certas

    leis especiais dadas aos homens. Como respeitar aqueles que no estavam sob proteo de

    sua prpria cidade e evitar o homicdio e crimes de sangue, pois se considerava uma

    poluio (miasma - ) para a cidade (JONES, 1997: 106-107). Metanira ao adentrar o

    espao sagrado do ritual que Demter realizava para tornar Demofonte imortal, revela uma

    transgresso, interfere nos planos da deusa, no respeita aquela que estava sem a proteo

    de sua cidade, trazendo contaminao para si e os espaos profano e sagrado.

    Retomando a proposio de estabelecer uma relao entre a narrativa mtica e a

    introduo do culto de Mistrios em Elusis, a partir da trade, percebemos que a fundao

    dos cultos de Mistrios no se faz completa ainda. Falta um terceiro elemento para compor

    essa trade da qual j fazem parte Demter e Demofonte. Esse terceiro elemento j

    pertenceu a essa trade, mas agora se ausenta, ento para complet-la temos o retorno de

    Persfone do Mundo Subterrneo, o reencontro das duas deusas e os ensinamentos dos

    ritos de Demter aos homens. Com a trade formada, temos o ltimo momento desse

    processo, a instituio do culto dos Mistrios em Elusis.

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    Dessa forma, podemos compreender atravs da anlise do Hino Homrico a

    Demter, a importncia dos personagens que compem essa trade e sua relao intrnseca

    com a introduo do culto de Mistrios em Elusis. Ao passo que podemos perceber a

    instituio do culto de Mistrios ao mesmo tempo, pela separao das duas deusas, o

    fracasso da imortalizao de Demofonte e o reencontro de Demter com Persfone.

    ANEXOS

    Anexo 1 Mapa da regio de Elusis

    Retirado do site: http://www.mlahanas.de ; em 19/10/2010

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    NCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIO

    MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO

    & IX FRUM DE DEBATES EM HISTRIA ANTIGA

    2010

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    Anexo 2 O Retorno de Persfone. Cermica grega de figuras vermelhas. Regio da

    tica, Grcia. 440 a.C.

    Localizao: The Metropolitan Museum of Art - Nova York, EUA.

    Retirado do site: http://www.metmuseum.org

  • ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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    Anexo 3 Mistrios eleusinos. Cermica grega de figuras vermelhas. Regio da tica,

    Grcia. Sculo IV a.C.

    Localizao: Muse Archologique National of Athens Atenas, Grcia.

    Retirado do site: http://www.greek-thesaurus.gr

  • ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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    DOCUMENTAO TEXTUAL

    ARISTTELES. A Constituio de Atenas. Traduo: Francisco Murari Pires. So

    Paulo: Editora Hucitec, 1995;

  • ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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    HESODO. Teogonia: a origem dos deuses. Traduo: Jos Antnio Alves Torrano. So

    Paulo: Editora Iluminuras, 2001;

    Hino Homrico a Demter. Traduo: Ordep Serra. So Paulo: Odysseus Editora, 2009.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BRANDO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrpolis: Editora Vozes, 2004. Vol. I,

    18 edio;

    BURKERT, Walter. A Religio Grega nas pocas Arcaica e Clssica. Lisboa:

    Fundao Calouste Gulbenkian, 1993;

    CANDIDO, Maria Regina. Media, mito e magia: a imagem atravs dos tempos. Rio de

    Janeiro: NEA / UERJ, 2006 2007;

    CHAMOUX, Franois. A Civilizao Grega na poca arcaica e clssica. Lisboa:

    Edies 70, 1983;

    COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. So Paulo: Martin Claret, 2009;

    ELIADE, Mircea. Histria das crenas e das idias religiosas. Vol. 1: da Idade da Pedra

    aos Mistrios de Elusis. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2010;

    FINLEY, M. I. (org). O legado da Grcia: uma nova avaliao. Braslia: Editora

    Universidade de Braslia, 1998;

    HAVELOCK, Eric A. A revoluo da escrita na Grcia e suas conseqncias culturais.

    So Paulo: Ed. UNESP / Paz e Terra, 1996;

    JONES, Peter V. (org). O mundo de Atenas: uma introduo cultura clssica

    ateniense. So Paulo: Martins Fontes, 1997;

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    THEML, N. O Pblico e O Privado Na Grcia do VIII Ao IV Sc. A.C.: O Modelo

    Ateniense. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998;

    VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia

    histrica. So Paulo: DIFEL / EDUSP, 1973.