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155 O regime totalitário como meio de dominação da sociedade de massa na concepção de Hannah Arendt CRISTIANO TIAGO ARAUJO 1 Resumo: O presente trabalho, busca compreender como o regime totalitá- rio instaurado na Alemanha Nazista, entre 1933 a 1945, pôde dominar e manipular a sociedade de massa, levando os cidadãos de diversas classes a aderirem a este sistema. Para haver esta compreensão, faz-se necessário de- monstrar o contexto social, econômico e político da Europa no final do século XIX e início do século XX. Isto, em certo sentido, daria fôlego para a insurreição da Primeira Guerra Mundial, deixando a Alemanha em profundas crises so- cioeconômicas. Hannah Arendt (1906-1975), com sua filosofia e teoria polí- tica, contribui na concepção deste novo regime, identificando os pressupostos essenciais para que, com sucesso, conquistasse-se a opinião pública, aprovei- tando-se da situação frágil que se encontrava o país germânico. Desta forma, o totalitarismo foi visto como a única solução para resolver seus problemas. Através destas análises, serão sintetizadas quais foram as influências e os tra- ços deixados, que se fazem presentes em uma perspectiva política atual. 1. Bacharel em filosofia pela Faculdade São Luís, Brusque/SC. Este artigo científico é o resultado do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado, defendido e aprova- do como exigência para obtenção do título de Bacharel em Filosofia, em dezembro de 2013, sob a orientação do Prof. MSc. Pe. Francisco Lawall. Bacharelando no curso de teologia da Faculdade Dehoniana, Taubaté/SP. T A )LORVRoD TA 1 (2019) 155-192

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O regime totalitário como meio de dominação da sociedade de massa na concepção de Hannah Arendt

CRISTIANO TIAGO ARAUJO1

Resumo: O presente trabalho, busca compreender como o regime totalitá-rio instaurado na Alemanha Nazista, entre 1933 a 1945, pôde dominar e manipular a sociedade de massa, levando os cidadãos de diversas classes a aderirem a este sistema. Para haver esta compreensão, faz-se necessário de-monstrar o contexto social, econômico e político da Europa no final do século XIX e início do século XX. Isto, em certo sentido, daria fôlego para a insurreição da Primeira Guerra Mundial, deixando a Alemanha em profundas crises so-cioeconômicas. Hannah Arendt (1906-1975), com sua filosofia e teoria polí-tica, contribui na concepção deste novo regime, identificando os pressupostos essenciais para que, com sucesso, conquistasse-se a opinião pública, aprovei-tando-se da situação frágil que se encontrava o país germânico. Desta forma, o totalitarismo foi visto como a única solução para resolver seus problemas. Através destas análises, serão sintetizadas quais foram as influências e os tra-ços deixados, que se fazem presentes em uma perspectiva política atual.

1. Bacharel em filosofia pela Faculdade São Luís, Brusque/SC. Este artigo científico é o resultado do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado, defendido e aprova-do como exigência para obtenção do título de Bacharel em Filosofia, em dezembro de 2013, sob a orientação do Prof. MSc. Pe. Francisco Lawall. Bacharelando no curso de teologia da Faculdade Dehoniana, Taubaté/SP.

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Palavras-Chave: Hannah Arendt, Regime Totalitário, Sociedade de Massa.

Abstract: This work, seeking to understand how the totalitarian regime instituted in Nazi Germany, between 1933 and 1945, could dominate and manipulate the mass society, leading citizens of different classes to join this system. To have this understanding, it is necessary to demonstrate the social, economic and political situation of Europe in the ending of nineteenth and early twentieth cen-turies, which would cause, later, as initial impulse , the First World War, leaving Germany with profound socioeconomic crisis. Hannah Arendt (1906-1975), with hers philosophy and political theory, contributes to conception of this new arrangement, identifying the essential prerequisites for, if succeed, conquer to the public, taking advantage of the fragile situation present in the German country. Thus, totalitarianism was seen as the only solution to solve their prob-lems. Through these analyzes, will be synthesized the influences and traces left, which are present in a current policy perspective.

Keywords: Hannah Arendt, Totalitarians Regime, Mass Society.

A política sempre esteve presente nas discussões filosóficas, desde a antiguidade com pensadores clássicos, perpassando pelo pe-ríodo medieval, até os dias atuais. Chega-se, portanto, na contempo-raneidade com um vasto conteúdo político que fora elaborado e, por consequência, concretizado ao longo dos anos na história da humani-dade. Porém, o regime totalitário, iniciado na década de 30 do século passado, se tornara algo novo, sem precedentes, e que de certa forma indignou muitos filósofos europeus, como Karl Jaspers, Walter Benja-min, Gabriel Marcel entre outros, já que este regime fora aplicado e sistematizado na Alemanha, berço de grandes pensadores.

É neste contexto que surge Hannah Arendt (1906-1975), de origem judaica, atuou como filósofa e teórica política. Ela foi uma das primeiras pensadoras a estudar, refletir e sistematizar o regime totalitário. A questão que se tornou relevante para autora baseia-se no sentido do regime totalitário ceifar a vida de milhares de pessoas (sobretudo judeus) e mesmo assim conquistar o apoio da maioria dos cidadãos alemães.

A questão que este trabalho busca responder é: se pudermos identificar as crises, frustrações humanas do início do Século XX, será possível traçar também perspectivas para a política de nossos dias? Para chegar a uma resposta, é necessário identificar as frustra-ções do cenário político atual, a partir do pensamento de Hannah

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Arendt, sintetizando traços e reflexos dos regimes totalitários sob uma perspectiva política aplicada hoje no Brasil.

1. O cenário sociopolítico das potências europeias no final do século XIX e início do século XX

A Europa dos dias atuais é vista, pelos habitantes e pelos res-ponsáveis das políticas públicas da América do Sul, como um exem-plo a ser seguido, no que tange as realidades econômicas, culturais. Podem-se encontrar várias perspectivas e linhas intelectuais que dis-cordem ou não deste modus operandi almejado. Porém, nesta primei-ra parte será apresentado que a mesma Europa vista como potência mundial no final do século XIX, e ‘perfeita’ na contemporaneidade passou por sérios problemas, sejam eles morais, econômicos e sociais. Ainda hoje, existem sombras de um passado não tão distante das atrocidades que lá ocorreram. A geração atual verá isso somente nos livros didáticos.

1.1 A Europa dos “anos dourados”

Grandes eventos marcaram períodos na história da humanida-de, eventos apontados por grandes invenções, descobertas e a ascen-são de uma classe mais privilegiada, neste caso a burguesia, porém, nem sempre foi assim.

O autor, filósofo e historiador Luiz Cesar Rodrigues, na obra A Primeira Guerra Mundial (1988), afirma que este período, fora conhecido como a bela época, (la belle époche) marcada por estabi-lidade, paz e até por valores seguros. Este tipo de sociedade de fato existiu, mas só para aqueles extratos superiores, a classe burguesa. Esta grande burguesia vivia momentos de alegria, pois, as revoluções científicas e tecnológicas abriram perspectivas de aumento das suas fortunas particulares, oferecendo a estes mais poderes, já que eram determinados pelas suas riquezas.2

O mundo, aos olhos das elites dominantes, parecia pronto e acabado e a história quase realizada, faltando apenas levar os miracu-losos produtos da civilização ocidental aos pobres e retardados povos

2. Cf. Luiz Cesar RODRIGUES, A primeira guerra mundial, 1988, p. 4.

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dos continentes periféricos.3

Esta sociedade terminaria momentos antes, com a explosão da Guerra em 1914, conhecida posteriormente como a Primeira Guer-ra Mundial. Com isto, percebeu-se que, sob esta superfície tranquila existiam inúmeros e poderosos fatores de insatisfação social; de um lado havia a estabilidade e a segurança, do outro lado pairava a ins-tabilidade, o medo, o ódio das classes dominadoras, os protestos e a violência.

Daniel Furuno, jornalista da revista BBC História, acrescenta dizendo que: “por trás do cenário de aparente calmaria, uma tormen-ta estava se formando, com crises diplomáticas, revoluções e conflitos regionais, até que o primeiro trovão ribombou nos céus em junho de 1914.”4

Hannah Arendt,5 em sua obra Origens do totalitarismo (1951), interpreta filosoficamente a sistematização do totalitarismo nazista; a autora afirma que, para este determinado período, deve-se confessar certa nostalgia pelo que se chamava de idade de ouro da segurança.

3. Idem, p. 5.

4. Daniel John FURUNO, “1ª guerra mundial: um genocídio que definiu o destino da humanidade”, in BBC História 1/10 s.d, p. 9.

5. Hannah Arendt nasceu em 1906, em Honover, na Alemanha, porém fora criada em Konigsberg. Oriunda de uma família de judeus não praticantes, inseridos na vida e na cultura da Alemanha daquela época. Seu pai morreu quando ela tinha 6 anos de idade, portanto, a figura de sua mãe foi importante na sua educação. De personalidade forte, Martha Cohn Arendt, tinha ligação com os socialdemocratas e grande admiração por Rosa Luxemburgo. Nos estudos, Hannah Arendt defendeu sua tese de doutorado intitulada O conceito de amor em Santo Agostinho. Dedi-cou-se aos estudos políticos, sobretudo no período nazista, na qual foi perseguida e por poucos dias presa pelo fato de ser judia. Arendt refugia-se no ano de 1933 nos Estados Unidos da América, na cidade de Nova Iorque. Em 1951 naturaliza-se americana e consolida sua carreira acadêmica na New School for Social Research, nesta mesma cidade, leciona aulas sobre Kant na universidade de Chicago. Arendt preservou uma profunda amizade com Walter Benjamim, Martin Heidegger e Karl Jaspers, recebendo também influências filosóficas destes pensadores. Morreu em 1975 na cidade de Nova Iorque. [Cf. Celso LAFER, “Hannah Arendt: vida e obra”, in Hannah ARENDT, Homens em tempos sombrios, São Paulo, 2008, p. 291 et seq.].

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1.2 O poderio imperialista como forma de expansão e coer-ção

Durante a segunda metade do século XIX, inicia-se um processo de ampliação territorial chamado de imperialismo. É a am-pliação que designou o domínio dos territórios, sobretudo, africanos e asiáticos. Diversas vezes o imperialismo foi causa de interesses eco-nômicos, para alimentar a soberba, promover a combatividade e, por fim, conseguir o prestígio.6

A expansão econômica correspondia ao crescimento industrial, isto significava o aumento da produção de bens a serem consumidos. Este processo de produção é tão ilimitado quanto a capacidade do homem de organizar, produzir consumir e fornecer. Nas palavras de Arendt:

O imperialismo surgiu quando a classe detentora da produção capita-lista rejeitou as fronteiras nacionais como barreira à expansão econô-mica. A burguesia ingressou na política por necessidade econômica: como não desejava abandonar o sistema capitalista, cuja lei básica é o constante crescimento econômico, a burguesia tinha de impor essa lei aos governos, para que a expansão se tornasse o objetivo final da política externa.7

A própria burguesia utilizava como força de expressão o lema “expansão por amor à expansão”8 para persuadir os governos nacio-nais a terem uma forte postura inclinada ao caminho de uma política mundial.9 Diante desta pressão burguesa, inicia-se uma batalha eco-nômica entre grandes potências da época, tentando favorecer seus próprios interesses, que ultrapassavam limites territoriais, com isso, os conflitos "burocráticos” (que posteriormente também serviram como o estopim para a futura guerra) eram inevitáveis. Nesse sentido, a autora comenta: "dificilmente se pode compreender como a concor-rência entre empresas comerciais - impérios - armadas até os dentes

6. Cf. Norberto BOBBIO; Nicola MATTECCI; Gianfranco PASQUINO, Dicionário de política, 1998, p. 611-612.

7. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 156.

8. Idem, p. 156.

9. Cf. Jean Baptiste DUROSELLE, A Europa de 1815 aos nossos dias, 1976, p. 44.

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terminasse de outro modo que não a vitória para uma e morte para outras”.10

Esta utilização da expansão política em proveito de uma ex-pansão econômica, não poderia se concretizar de modo positivo, pois, diferentemente de uma estrutura econômica, a política não pode expandir-se (territorialmente) como a economia. Um estado-nação jamais deve impor suas leis e normas econômicas ou sociais a outro estado-nação.11

Não foram poucas as vezes que este tipo de dominação acon-teceu, na qual os líderes da nação conquistadora acreditavam que os nativos jamais fossem capazes de se governarem sem a supervisão de-les e, do contrário, os nativos concluíam que os conquistadores os ex-cluíam e os separavam para sempre do resto da humanidade. "Impe-rialismo não é construção de impérios, e expansão não é conquista”.12

O imperialismo parecia, de certa forma, levar soluções aos pro-blemas, produzindo uma falsa esperança. Esse sistema de produção capitalista fora baseado na má distribuição de seus próprios bens, re-sultando num "excesso de poupança, isto é, no acúmulo de um capi-tal que estava condenado à ociosidade dentro da capacidade nacional existente de produção e consumo”.13 Esse dinheiro era de fato supér-fluo, já que além de ser um montante bastante grande, não tinham mais perspectivas de investimento interno.

Identificados como uma espécie de parasita, os burgueses per-maneciam economicamente estáveis, porém, as consequências dei-xadas por esta ânsia de acúmulos de riqueza eram gradativamente ultrajantes aos povos mais simples da sociedade, "o lixo humano, que cada crise, seguindo-se invariavelmente a cada período de crescimen-to industrial, eliminava permanentemente da sociedade produtiva”.14

Esta era imperialista demonstrara um fato novo, da forma como os agentes do capital supérfluo e da mão de obra supérflua uniram-se, e, juntos, acabaram abandonando seus países. Deste modo, essa ideia imperialista de expansão ilimitada, parecia oferecer um remédio per-

10. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 156.

11. Cf. Idem, p. 157.

12. Idem, p. 160.

13. Idem, p. 177.

14. Idem, p. 180.

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manente para um mal permanente. O notório crescimento da ralé foi observado desde cedo por

historiadores do século XIX, porém, muitos destes historiadores deixaram de perceber que a ralé, não podia ser identificada com o crescimento da classe trabalhadora industrial, e também, não com o povo como um todo, pois eles eram o refugo de todas as classes. Arendt diz: "[...] a ralé não é apenas o refugo, mas, também o subproduto da sociedade burguesa, gerado por ela diretamente e, portanto, nunca separável dela completamente”.15

1.3 A Primeira Guerra Mundial

Pode-se perceber que o desenrolar de todas as ocasiões apre-sentadas a partir da segunda metade do século XIX, não demandaria relações diferentes dos impérios-nações, senão disputar uma guerra. Portanto, concretizando-se os efeitos das tramas diplomáticas, dos conflitos políticos, das contradições econômicas e de muitas outras circunstâncias, formam-se a base de sustentação para o surgimento de uma batalha amparada no poder e nos interesses de cada nação.

A filósofa, ao escrever sobre o tema em 1949, dizia ser quase impossível descrever sobre o que de fato aconteceu na Europa no dia 4 de Agosto de 1914. "Os dias que antecedem e os que se seguem à Primeira Guerra Mundial não são como o fim de um velho período e o começo de um novo, mas como a véspera de uma explosão e o dia seguinte”.16

Ao examinar o desempenho dos fatores econômicos, sociais e políticos do continente europeu na passagem do século, ver-se-á traços profundos de uma tensão que só aumentava e que desencadearia em um conflito armado e mortífero.

Observando com atenção, existe um fator comum que per-passa e engloba todos os elementos geradores do conflito. Segundo Rodrigues:

A primeira guerra mundial foi, sem dúvida, produto da combinação de competição econômica, chauvinismos nacionais, rivalidades impe-

15. Idem, p. 186.

16. Idem, p. 300.

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rialistas e dos sonhos expansionistas das nações mais poderosas. [...] o grande conflito foi provocado pelo desejo, evidente em cada uma das nações da época, de refazer os espaços econômico-políticos, europeu e extra-europeu de acordo com as suas respectivas ambições nacionais e imperialistas.17

Não se previa que a guerra teria uma duração tão longa, e que seria demasiadamente sangrenta, ao ponto de ceifar a vida de 8,5 milhões homens, dos quais 1,3 milhões eram franceses, e 1,7 milhões eram alemães.18

1.4 As consequências e crises da Primeira Guerra Mundial na Europa

As batalhas da Primeira Guerra Mundial cessaram no dia 11 de novembro de 1918, diante de vários acordos e tratados de paz esmiu-çados em múltiplas cláusulas.19 Entretanto, por mais que as nações estivessem sob a luz destes tratados, nada mudaria as condições geo-gráficas, sociais e políticas daqueles países, sobretudo o sentimento das pessoas, pois as perdas foram imensas.

Na obra, Do imperialismo à libertação colonial (1965), o autor apresenta que somente na França, houve 4726 municípios invadidos no período da guerra, 620 deles foram completamente destruídos, e 1334 estavam, mais da metade, danificados. "A própria terra havia sofrido horrores, sendo necessário prepará-la novamente para poder ser utilizada, numa extensão de 2 milhões de hectares. O espetáculo era medonho”.20

Este novo mapa geográfico, que fora configurado com os efei-tos da guerra, obrigava crescentes importações. Assim o balanço co-mercial com os Estados Unidos, Canadá e Argentina que em 1913 acusava um saldo favorável a estas três nações de 15 bilhões de fran-cos franceses, em 1918 eleva-se a 115 bilhões. Com isto, a liquidação destes débitos de guerra transformou aqueles que antes eram credo-

17. Luiz Cesar RODRIGUES, op. cit., p. 29-30.

18. Cf. Jean Baptiste DUROSELLE, op. cit., p. 71.

19. Cf. Luiz Cesar RODRIGUES, op. cit., p. 60.

20. Heitor Ferreira LIMA, Do imperialismo à libertação colonial, 1965, p. 44.

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res em devedores. Somente os Estados Unidos e o Japão se tornaram credores do mundo no fim da guerra em seis milhões de dólares.21

Todos os investimentos realizados em valores de rendas fixas, como apólices públicas, hipotecas, depósitos em conta fixa entre ou-tros, perderam seus valores. Arendt diz que a explosão da guerra em 1914, e suas consequências de instabilidade (aqui interpreta-se social, econômica e política), havia destruído a fachada do sistema político, a ponto de ‘deixar seu esqueleto’ totalmente à mostra. Era visível o sofrimento de um número cada vez maior de grupos de pessoas, que já não se aplicavam às regras do mundo que as rodeava. "O ódio, que certamente não faltava ao mundo, antes da guerra começou a desem-penhar um papel central nos negócios públicos de todos os países, de modo que o cenário político, [...] assumiu uma atmosfera sórdida e estranha”.22

1.5 A quebra da bolsa de valores de Wall Street em Nova Iorque (O crack de 1929)

O que aconteceu na bolsa de Wall Street foi algo atípico, foi um fenômeno mais grave, como um sinal alarmante que constituía na decadência de todo um regime econômico já constituído. Para melhor compreender a extensão que esta crise provocou, segue: “A crise econômica que começou nos Estados Unidos em 1929 foi uma crise sem precedentes na história do capitalismo americano, como do capitalismo mundial. Distinguiu-se, com efeito, de todas as crises anteriores por sua duração, por sua profundeza, por sua extensão, por seus efeitos destruidores e pelo caráter particular de sua retomada”.23

Sua duração se estendeu praticamente até 1933, sua extensão é destacável, já que se alastrou por vários países, sejam eles de des-taque agrícola ou industrial, envolveu todos os setores de atividades, provocou o desemprego, falências, a inutilização de estoques, a ponto de queimá-los, a diminuição do capital fixo e a desestabilização eco-nômica em geral.24

21. Cf. Idem, p. 45-46.

22. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 301.

23. Idem, p. 71.

24. Cf. Heitor Ferreira LIMA, op. cit., p. 70.

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Uma grande parte da população norte-americana negociava na bolsa com os próprios recursos que possuía ou com simples emprés-timos. Não somente isto, capitais vinham de toda a Europa para Nova Iorque, em busca dos elevados rendimentos que almejavam. Assim, os negócios de títulos haviam assumido um caráter febril, apoderan-do-se de todos, ganhando uma extensão extraordinária.25

O dia 24 do mês de outubro se tornara histórico, e fora conhe-cido como ‘quinta-feira negra’. Durante os dias que procederam ao dia 29, os negócios decaiam a cada momento, chegando ao pânico total, uma avalanche impetuosa sobrevinha na bolsa de valores. A impressão dada era de uma cidade varrida por um furacão, assim em apenas alguns dias, numerosos títulos sofreram baixas de 30% ou até mais.26

1.6 Panorama mundial da crise europeia

Esta queda da atividade norte-americana não deixaria de man-dar resquícios para todas as direções do globo. Houve, portanto, uma diminuição violenta de seu comércio exterior. As importações que estavam a todo vapor, diminuíram. Consequentemente as exporta-ções seguiram o mesmo rumo, já que não havia mercado favorável para os negócios.

A crise se estendeu a todos os mercados, segue uma paralisia do comércio mundial a diminuição considerável do crédito interna-cional a partir de 1931. Nova Iorque e Londres, como grandes praças mundiais, baixaram de modo apreciável (o crédito internacional), de-sorganizando assim por completo o mercado internacional de capi-tais. Vários países não arcavam mais com seus compromissos, porém, os credores se recusavam aceitar as mercadorias dos países devedores, sendo este o único meio saldar seus débitos.27

Na Alemanha a situação piorava cada vez mais, havia um mon-tante de 6 milhões de desempregados, mais o número de 2 milhões que não estavam inscritos formalmente no controle do governo. A tensão política ainda era grande, e em 2 de dezembro de 1932, o

25. Cf. Ibidem.

26. Cf. Idem, p. 74.

27. Cf. Idem, p. 82-83.

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General Von Schleicher substituía Von Papen na chefia do governo, sendo que algumas semanas mais tarde ele era substituído por Adolf Hitler.

Diante destas condições, os países que perderam ou saíram mal repartidos na partilha dos mercados, efetuada após a guerra, apresen-taram a questão de uma nova divisão do mundo, a qual não poderia ser feita, por meios pacíficos. Estes países eram principalmente a Ale-manha de Hitler, a Itália de Mussolini e o Japão militarista.28

O clima entre essas nações, que já foram grandes potências, co-meça novamente a ‘esquentar’, as preocupações individuais se tor-nara agora primeiro plano, para tentar garantir um futuro promissor, sobretudo, para suas economias.

Esta compreensão histórica é de suma importância, a com-preensão dos pressupostos que serviriam de argumentação para a instauração de um regime totalitário, por detrás da alta sociedade, os problemas sociais, econômicos e políticos acumulavam forças reacio-nárias e que, juntamente com os ideais imperialistas de várias nações que almejavam economicamente a agregação de territórios, desenca-deariam na Primeira Guerra Mundial.

Torna-se importante destacar, que as crises vividas após o con-flito mundial abriram espaço para a instauração de um novo tipo de governo, pois este se aproveitaria da condição frágil na qual a Alema-nha se encontrava, para responder e buscar solucionar os problemas sociais que ali existiam.

2. As formas de adesão das camadas sociais e cultu-rais ao regime totalitário

Neste momento, após a década de 30 do século XX, grande parte da população jazia perdida, e não possuía mais a credibilidade na política europeia, de modo especial, na Alemanha. Eram tempos difíceis, que, logo após o imperialismo, as crises externas, o desfalque humano e social da Primeira Guerra, arrastaram o mercado econô-mico e a política para uma profunda desesperança que atingia direta-mente as populações das cidades.

Hitler infere:

28. Cf. Idem, p. 74.

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[...] a missão principal dos Estados Germânicos é cuidar e pôr um paradeiro a uma progressiva mistura de raças. A geração dos fracalhões de hoje naturalmente gritará e se queixará de ofensa aos mais sagrados direitos dos homens. Só existe, porém, um direito sagrado e esse direi-to é, ao mesmo tempo, um dever dos mais sagrados, constituindo em velar pela pureza racial, para, defesa da parte mais sadia da humanida-de, tornar possível um aperfeiçoamento maior da espécie humana.29

Portanto, o principal interesse neste capítulo é entender de que modo o regime totalitário foi aceito como uma proposta ideal para o momento em que viviam os alemães. O que então, estaria por vir? Quais as respostas que os líderes sociais e políticos dariam e que tipo de atitude poderia ser adotada com o intuito de garantir a adesão po-pular de distintas classes sociais, econômicas e também intelectuais?

2.1 O totalitarismo na concepção arendtiana

Arendt, em sua teoria, defende que a política acontece na li-berdade e que esta é baseada na pluralidade humana, isto é, requer um âmbito relacional entre os indivíduos para que haja uma possível aceitação de opiniões. A condição da liberdade é a existência de es-paços de debate e de ação, assim, libertos de todo tipo de coerção e violência.30

É de suma importância que a liberdade seja fundada na política, e isto só acontece no espaço público, onde, através de um comando de autoridade,31 o respaldo (a ser executado) deve ser um ato livre.32

29 Adolf HITLER, Minha luta, 2001, p. 252.

30. Cf. Claudio Boeira GARCIA, “Arendt: liberdade política”, in Kathlen Luana OLI-VEIRA; Valério Guilherme SCHAPER (orgs.), Hannah Arendt: uma amizade em comum, 2011, p. 44.

31. O comando de autoridade explicitado representa que, dentro de uma sociedade organizada, isto é, na vida política, existem normas e leis que são deferidas pelos representantes legais. Na atuação liberta do cidadão, ele, por si só, tem a convicção de que necessita obedecer para a construção e organização daquilo que é tido como comum e público.

32. Cf. Sônia Maria SCHIO, “Hannah Arendt: a questão da autoridade”, in Kathlen Luana OLIVEIRA; Valério Guilherme SCHAPER (orgs.), Hannah Arendt: uma amizade em comum, 2011, p. 99.

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A capacidade humana de agir, de modo geral, significa tomar a iniciativa, imprimir movimento a alguma coisa. A ação como início e movimento, é a efetivação da condição humana na pluralidade, ou seja, do viver como ser distinto e singular entre os iguais.33

Partindo desta síntese do pensamento político da filósofa ale-mã, onde a liberdade se faz e é necessária na vida pública, é que se iniciará a conceituação de totalitarismo, que por sua vez, baseou-se em ideologias, propagandas e num sistema de dominação a fim de liderar a massa para alcançar seus próprios objetivos.

Segundo a filósofa, os movimentos totalitários são espécies de organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados. Esse tipo de agremiação se diferencia de outros partidos e movimentos, justa-mente pelo fato da exigência de uma lealdade total, irrestrita e in-condicional de cada membro participante. O líder faz essa exigência, até mesmo antes de tomar o poder, pois, é algo que faz parte de seu plano e da ideologia. Sendo assim, o movimento precisa ser organi-zado posteriormente e carece necessariamente que as condições para o seu crescimento sejam criadas artificialmente (ficção totalitária), de modo que possibilite a lealdade total, que, por conseguinte é a base psicológica do domínio total. Assim, acrescenta a autora: “Não se pode esperar essa lealdade de seres humanos completamente iso-lados que, desprovidos de outros laços sociais - de família, amizade, camaradagem - só adquirem o sentido de terem lugar neste mundo quando participam de um movimento ou pertencem a um partido”.34

A dominação neste ponto se torna algo tão abrangente que exi-ge uma participação efetiva do cidadão. Essa lealdade se caracteriza pelo fato de haver um despojamento total de seus integrantes, como uma espécie de altruísmo. “[...] para o assombro de todo mundo civi-lizado, estará até disposto a colaborar com a sua própria condenação e tramar a própria sentença de morte, contanto que seu status como membro do movimento permaneça intacto”.35

Arendt tenta demonstrar metaforicamente a organização es-trutural de um sistema totalitário através da imagem de uma cebola. Ao centro, como uma espécie de espaço vazio, encontra-se o líder.

33. Cf. Hannah ARENDT, A condição humana, 2000, p. 190-191.

34. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 373.

35. Idem, p. 357.

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Qualquer que seja a sua atitude, o que quer que ele faça, ele o faz de dentro, não de fora, nem de cima. Todas as outras camadas, as orga-nizações de frente, as diversas sociedades profissionais, as formações de elite, a burocracia partidária e os grupos de policiamento, relacio-nam-se de tal modo que cada uma forma uma fachada em uma só di-reção e o centro na outra. Explanando melhor, aqueles que estão nas camadas desempenham um papel de mundo exterior (como um tipo de vida normal) e que ao mesmo tempo vivem de maneira extrema e radical dentro da ideologia aplicada. Neste tipo de sistema há uma grande vantagem, que é proporcionada aos seus adeptos, a ficção de um mundo normal. Deste modo, os simpatizantes das organizações de frente, que são membros do partido, envolvem-se em uma ilusão de normalidade, proporcionando uma enganosa fachada ao mundo exterior. "A estrutura da cebola torna o sistema organizacionalmente à prova de choque contra a fatualidade do mundo real”.36

O totalitarismo é uma forma de dominação singular e sem pre-cedentes na história, principalmente pelo aparecimento do conceito “homem massa”. "Portanto em vão se procurarão os traços ou as pre-missas em experiências anteriores, a não ser que se caia em genera-lidades e redundâncias; crueldade, despotismo, tirania e ditadura”.37

Esta, certamente, é uma forma de governo que não tolera ne-nhum tipo de oposição, onde o diálogo jamais acontece, e que, diante dos fatos apresentados pelos líderes, através da propaganda salvífica conquista-se o auge e a supremacia puritana da humanidade, encon-tra-se então apenas uma saída, concordar ativamente como os ideais apresentados.

Em suma, Arendt diz que o regime totalitário é uma forma de governo cuja essência é o terror e o princípio da ação é a lógica de uma ideia fortemente creditada para atingir, através da manipulação, seus fins específicos.

2.2 O descrédito social e político na Alemanha

Faz-se necessário entender o que se passava na época com os ci-

36. Hannah ARENDT, Entre o passado e o futuro, 2009, p. 137.

37. José João Neves Barbosa VICENTE, A singularidade do totalitarismo em Hannah Arendt, 2011, p. 54.

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dadãos desta nação no que se refere à estruturação social, e assim, por conseguinte perceber quais as reais dificuldades que estavam postas, e, identificar como a crise política foi apresentada para atingir os fins que seus líderes, na pessoa de Hitler, almejavam, ou seja, perceber como este conseguiu chegar ao poder, e ter o consentimento do Rei-chstag38 alemão para colocar em prática seus planos ideológicos.

A Alemanha aos poucos vinha se recuperando da derrota de 1918, que por suas consequências deixou sua nação desolada ao pon-to de viver, em algumas regiões, uma condição de miséria. Quando esta caminhava e se reestruturava, a grande depressão de 1929 vinha deixá-la em um momento crítico mais uma vez.

Conforme apresenta o historiador político Robert Gellately, na sua obra Apoiando Hitler (2001), a maior parte dos cidadãos alemães estava cansada com o experimento democrático de Weimar,39 com as eleições, com as consecutivas votações, com as incontáveis manifes-tações bem como com as violações das leis. Nas ruas a situação era crítica, pois, nos postos de bem estar40 as filas eram quilométricas e o caos social já estava instaurado.41

Havia uma falta de esperança no país e era ampla a percepção que se vivia um colapso de valores culturais e morais. As grandes famílias que antes tinham vários filhos com o intuito de prosperar e

38. Parlamento alemão é a tradução de Reichstag, local onde se reunem os políticos alemães para deliberar sobre questões públicas de seu país. Localizado em Berlin, sua construção foi finalizada em 1894. Em 1933, teve partes do prédio incendia-das, sendo o motivo, a oposição ao Nacional Socialismo, incêndio que foi atribuído aos comunistas da época. Cf. VISIT Berlim (online), 2013, disponível em: <http://www.visitberlin.de/pt/node/ 657579>, acesso em: 10 de outubro de 2013.

39. A República de Weimar iniciou-se no dia 6 de fevereiro de 1919, após o fim da Primeira Guerra Mundial. Deste modo, deu-se início a um sistema parlamentário democrático que perdurou até o ano de 1933. A república leva este nome por ter sido instaurada e proclamada na cidade de Weimar, na Alemanha. Cf. OPERA MUNDI, Memória 1919 (online), 2013, disponível em: <http:// operamundi.uol.com.br/conteudo/ticias/19679/hojenahistoria1919republicadeweimar.shtml>, acesso em: 10 outubro de 2013.

40. Os postos de bem-estar são caracterizados como um tipo de ajuda social para os cidadãos que passavam por dificuldades sociais, porém, com a crise que se alastrava rapidamente, aqueles que nunca haviam precisado de ajuda anteriormente, neste período, também lutavam por um lugar na fila a fim de conseguir ajuda do governo alemão.

41. Cf. Robert GELLATELY, Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista, 2011, p. 34.

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perpetuar a sua prole reduziram-na de maneira drástica, com isso os abortos começam a ter proporções alarmantes, assim como a prosti-tuição.42

Algo que fora decididamente humilhante bem como um dos sinais mais fortes da crise que se vivia neste período, era o fato de que as esposas e mulheres se viam obrigadas a trabalhar para ajudar no sustento e nas despesas de suas casas. Assim, a jornada dupla, como chamavam, fez parte de uma grande quantidade de famílias alemãs, e, por conseguinte, as mulheres foram as que mais apoiaram o nazismo alemão.43

Por último, porém não menos importante, é a demonstração do contraste vivido pelo desemprego nesta questão social da qual se aborda. Sobre o desemprego em 1933, quando Hitler Chegou ao poder a situação era:

[...] o número oficial de desempregados era de 6 milhões, mas havia outros 2 milhões de “escondidos”, pessoas que tinham desistido de se registrar em busca de trabalho. [...] quase 40% dos trabalhadores - operários e colarinhos-brancos - estavam sem ocupação, e, além disso, estimava-se que mais de 3 milhões tinham subempregos. Diante des-ses números, o Estado reduziu as medidas de bem-estar social, como o seguro-desemprego.44

Diante desses fatos fica claro o desespero que pairava na Ale-manha. Os alemães, como indivíduos extremamente, educados, or-ganizados e que tinham, diante de tantos filósofos alemães, grande conhecimento intelectual, viviam momentos estarrecedores de um profundo colapso social e moral, ou seja, o sofrimento tornar-se-ia causa desesperadora para que, com a promessa de mudança, a adesão a este mesmo regime parecesse a melhor proposta no intuito de se recuperar aquilo que antigamente era tão bem vivido por todas as famílias.

Havia uma falta de esperança no país antes de Hitler e a taxa de suicídios, causada pela depressão e vista como última solução, já

42. Cf. Idem, p. 35.

43. Cf. Ibidem.

44. Idem, p. 36.

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era quatro vezes maior do que a Grã-Bretanha e o dobro dos Estados Unidos.45

A crise social deixa a Alemanha em uma situação igualitária no que se refere à pobreza, fazendo com que aqueles que antes pos-suíam bens, status e reservas em dinheiro caíssem para uma única classe, pois também eram vítimas do colapso em que viviam; isto era uma novidade e, por conseguinte, uma realidade a ser encarada para uma grande maioria.

A filósofa alemã interpreta profundamente o quanto essa úni-ca classe pode prejudicar o sistema partidário, pois um partido tem como função representar estes indivíduos que participam ativamen-te de um grupo social, uma vez que a sua fonte de origem eram as classes.46

Deste modo, os partidos haviam perdido aqueles simpatizantes neutros que, porventura, nunca haviam se interessado por política. Assim, ocorre o que Arendt chama de primeiro colapso do sistema partidário continental, que se resume no insucesso de recrutar novos membros dentre a geração mais nova e a perda do consentimento e apoio silencioso das massas, que neste momento já marchavam para onde vissem oportunidade de se expressar e demonstrar a sua violen-ta oposição.47

Hitler foi nomeado Chanceler da Alemanha no dia, 30 de ja-neiro de 1933, com 43 anos e já era líder de seu partido desde 1920. Ao conceber o título de Chanceler, logo o Reichstag seguiria rumo a uma dissolução, já que todas as frentes partidárias (nazistas, comunis-tas e nacionalistas) queriam se livrar da democracia parlamentarista.

Uma informação importante é que, a partir do momento em que os movimentos totalitários iniciaram suas manobras e invadiram o parlamento com o seu desprezo parlamentar, eles acabaram por conseguir conquistar o povo em geral de que as maiorias parlamenta-res eram espúrias e não mais correspondiam necessariamente com a realidade do país, arruinando com isso a dignidade e a confiança dos governos.48

45. Cf. Idem, p. 34.

46. Cf. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 364.

47. Cf. Ibidem.

48. Cf. Idem, p. 362.

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Nas eleições de março de 1933, o Nacional Socialista conse-guiu uma pequena maioria nas cadeiras do Reichstag, comparado aos parceiros nacionalistas, e logo já se reuniu com os recém-eleitos e com o ministério da justiça, para então reiterar seu compromisso com o novo Chanceler. Isso seria de suma importância, uma vez que Hitler precisaria de dois terços do Reichstag para aprovar mudanças constitucionais direto de seu gabinete e não somente pelo parlamen-to. Aqui, portando, começaria seu legado, pois já na primeira mudan-ça constitucional no dia 23 de março do mesmo ano, aprovaram a Lei Habilitante.49

Diante disso, Adolf Hitler, emite uma declaração oficial do go-verno, na qual demonstrava que tinha uma agenda social e política que ia além da supressão do comunismo (seu slogan dizia: ataque ao marxismo), da geração de empregos e da restauração da posição da Alemanha na Europa. “Seus objetivos declarados agora incluíam a criação de uma “real comunidade do povo” e ele ainda aludiu à ne-cessidade de uma purificação moral do corpo político”.50

2.3 O racismo na Europa

Na defesa de seu mestrado, Ricardo Gomes Ribeiro constrói uma reflexão neste sentido, fundamentada no pensamento de Arendt onde expõe que, enquanto o homem continua a ser a base e a fonte da história, a base e também a fonte da natureza, não existem ou consistem apenas nas leis e no funcionamento da própria natureza. Assim, uma interpretação nazista dizia que os fracos deveriam mor-rer e os fortes deveriam continuar vivendo. Portanto, pregavam que a ação de matar simplesmente estava ligada à tarefa de obedecer às ordens da natureza, que está em comunhão com os fortes, os bons e

49. A Lei Habilitante de 23/03/1933 foi uma lei de caráter constitucional, aprovada pelo Parlamento, (Reichstag) com quórum de emenda constitucional, depois que, o Partido Comunista tinha sido declarado ilegal e vários deputados socialistas ha-viam sido presos. Esta lei também concedia poderes ilimitados a Hitler, para deli-berar conforme a sua vontade. Cf. ESTADÃO, Hitler (online), 2013, disponível em: <http//acervo.estadao.com.br/noticias/personalidades,hitler,896,0.htm>, acesso em: 10 outubro de 2013.

50. Robert GELLATELY, op. cit., p. 39.

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os vencedores.51

Este tipo de preconceito, na maior parte das vezes, consiste em incitar e infligir que as pessoas tratem outro indivíduo de forma dife-rente, caracterizando-o como inferior ou menos merecedor de alguns direitos.

A raça se tornou uma tentativa para explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da compreensão, sobretudo dos europeus, cujas formas e feições assustavam e humilhavam os homens brancos sejam imigrantes ou conquistadores, pois, não dese-javam pertencer à mesma espécie humana. Com essa ideia, encon-trou-se resposta às infinitas monstruosidades cometidas na África, conhecida como um continente povoado e abarrotado de selvagens, onde num único brado os conquistadores gritavam: “Exterminemos todos estes brutos!”.52

Na obra de Pisier, a filósofa diz que Hitler apoia-se em um ra-cismo sábio, afirmando: “A questão da raça não é somente a chave da história, é a da cultura humana.”53

Hitler ainda dizia: “O povo alemão deve, antes de tudo, tomar consciência de sua raça, uma raça superior, a raça ariana. A fórmula é desesperadamente simples; [...] o mesmo sangue pertence a um mesmo império”.54

Esse império racial que o ditador propunha, era visivelmente percebido no sentido de manter uma linhagem pura, tentando impe-dir os chamados ‘impuros’ de se reproduzirem, dando ao casamen-to sua devida santidade para criar seres à imagem do Senhor e não “monstros entre o homem e o macaco”.55

Contudo, as vantagens apresentadas para extrair da utilização de um preconceito, não são somente de ordem econômica, mas, po-dem ser também de ordem política. Para tentar chegar ao poder ou até permanecer nele, um partido ou um líder pode fomentar diver-gências entre determinados grupos, deste modo explica Arnold M.

51. Cf. Ricardo Gomes RIBEIRO, Hannah Arendt: o totalitarismo e a relação com o conceito do mal e da moral, 2010, p. 82.

52. Idem, p. 215.

53. Evelyne PISIER, História das ideias políticas, 2004, p. 343.

54. Ibidem.

55. Ibidem.

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Rose: “Os ditadores modernos souberam com uma habilidade con-sumada “dividir para reinar”, tanto para se manterem no poder quan-to para realizarem conquistas. Sabe-se que, em vários países, Hitler recrutava os seus partidários [...], prometendo-lhes as posições e os bens dos judeus, enquanto apelava para os sentimentos latentes de superioridade racial.”56

O surgimento da ideologia racista na Alemanha nasceu com a proposta de unir o povo alemão contra o domínio estrangeiro. Neste ímpeto de unir os estados alemães fez-se com que os sentimentos nacionais aflorassem ao ponto de ser difícil distinguir o que era con-siderado de fato racismo e o que era considerado nacionalismo por parte das pessoas.

Algumas ideologias tornaram-se públicas e, por conseguinte, obtiveram uma aceitação abrangente, ao ponto de se tornarem ideo-logias plenamente desenvolvidas. Arendt apresenta que esses ideais estão baseados em uma única opinião, suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de pessoas e orienta-las nas experiências e nas situações da vida moderna. “[...] a ideologia difere da simples opinião na medida em que se pretende detentora da chave da histó-ria, e em que julga poder apresentar a solução dos “enigmas do uni-verso” e dominar o conhecimento íntimo das leis universais "ocultas”, que supostamente regem a natureza e o homem.” 57

Com isso, a autora demonstra que uma ideologia é capaz de persuadir todo um grupo de pessoas a aderirem suas convicções como uma espécie de ficção, que por mais que seja difícil compreen-der, é posto em uma mesa com vista em uma solução da qual esta grande maioria de indivíduos utiliza e aceita livremente para respon-der a seus anseios e suas impressões.

Assim, duas ideologias sobressaíram-se dentro de uma dimen-são de persuasão racional, a primeira é entre a luta econômica de classes, e a segunda é a que interpreta a história como uma luta natu-ral entre raças. “Ambas atraíram as massas de tal forma que puderam arrolar o apoio do Estado e se estabelecer como doutrinas nacionais oficiais”.58 A opinião pública livre, adotou de tal maneira, que não fo-

56. Arnold M ROSE et al., Raça e ciência II: a origem dos preconceitos, 1972, p. 164.

57. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 189.

58. Ibidem.

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ram apenas os intelectuais, mas as grandes massas que rejeitam apre-sentações de fatos, passados ou presentes, que não se ajustem naquilo em que acreditam.59

2.4 O nacionalismo alemão

Baseado na obra Patriotismo e nacionalismo (1950), de Gusta-vo Corção, ver-se-á o conceito de nacionalismo, na tentativa de com-preender como este sentimento pode, de certa forma, prejudicar o pensamento e as atitudes da grande maioria de uma nação.

Em sua obra, Corção diz que na Antiguidade existia como que uma área específica, no caso, a filosofia moral, que caracterizara as virtudes e os vícios que fazem um cidadão patriota ou nacionalista. Ele acrescenta dizendo que o patriotismo é “a virtude reguladora dos fatos humanos especificados pelos laços de convivência que pren-dem os homens de uma comunidade marcada por unidade cultural e política”.60 Já o nacionalismo é um vício que se opunha à virtude do patriotismo.61

O fenômeno do nacionalismo é algo antigo e tem por carac-terística um espírito marcado pela convicção da inimizade entre os homens. Em um âmbito internacional aflora um sentimento de egoísmo que marcou o mundo moderno. Assim, o nacionalismo está diretamente ligado às filosofias totalitárias que possuíam também uma exaltação mórbida de um sentimento de nacionalidade, que sig-nificava uma espécie de egoísmo coletivo, não é mais um sentimento patriótico, mas, sim, um desvio, uma perversão.62

Existe uma relação muito próxima entre o nacionalismo e o to-talitarismo, que acaba tomando uma forma consistente após a degra-dação do povo depois da derrota da Primeira Guerra Mundial. Neste contexto surge, portanto, a associação daqueles que acabam por com-partilhar da mesma ideia, ou seja, uma retomada de poder através do nacionalismo. Este pensamento busca o poder para recuperar o domínio de um espaço nacional, até então considerado perdido, não

59. Ibidem.

60. Gustavo CORÇAO, Patriotismo e nacionalismo, 1950, p. 64.

61. Cf. Idem, p. 65.

62. Cf. Idem, p. 67.

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necessita que as atitudes estejam empregadas dentro de leis e normas vigentes, sobretudo no que se refere a direitos humanos.63

Em sua obra, Hitler destaca a importância deste sentimento quando escreve, "O primeiro dever de um Estado nacionalista é evi-tar que o casamento continue a ser uma constante vergonha para a raça e consagrá-lo como instituição destinada a reproduzir a imagem de deus e não criaturas monstruosas [...]”.64 O líder nacionalista uti-liza sempre do mesmo método e do mesmo recurso: Convence as multidões de que seus males vem de fora, das outras nações. E trata logo de criar um ideal a ser realizado. “[...] No caso da Alemanha, o ideal proposto foi também o do domínio do mundo, mas a motivação buscava bases na crença de uma superioridade racial.”65

O líder nacionalista aparece como um profeta que trata de prometer a cura dos grandes males nacionais, desde que a multidão, a grande massa consinta em se despojar, ao menos de modo provi-sório, de alguns direitos estabelecendo analogamente o nexo entre o nacionalismo e o totalitarismo. Para um nacionalista totalitário a nação pode e tem o direito à indignidade, tem o direito de exigir de um escritor, para que ele não escreva o que pensa, e também possui o direito de educar os meninos para que um dia possam e sejam ca-pazes de ter a coragem suficiente de denunciar seus próprios pais se preciso fosse.66

Há um abismo entre o conceito de patriotismo e o conceito de nacionalismo. Este último acabou tornando-se um grande aliado no projeto totalitário de Hitler, pois se a população de massa alemã estivesse com este espírito aflorado, a concretização e a aceitação das arbitrariedades cometidas nos campos de concentração não acarre-tariam em consciências tão cruéis, até porque grande parte de seus argumentos estariam ligados à banalidade do mal.

2.5 O antissemitismo

Neste subtítulo o foco metodológico permear-se-á com o obje-

63. Cf. Luiz Cesar RODRIGUES, op. cit., p. 27-28.

64. Adolf HITLER, op. cit., p. 236.

65. Gustavo CORÇÃO, op. cit., p. 74.

66. Cf. Idem, p. 75-77.

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tivo de compreender a origem do antissemitismo, com isso perceber como Hitler utilizou desta ferramenta para concretizar seu projeto nazista através do apoio da massa alemã.

No capítulo primeiro da obra Origens do totalitarismo (1951), apresenta-se uma das principais definições da origem do ódio contra o povo judeu, e esta definição é dada por Tocqueville (1805-1859), que diz:

[...] o povo francês passou a odiar os aristocratas no momento em que perderam o poder, porque essa rápida perda de poder não foi acom-panhada de qualquer redução de fortunas. Enquanto os nobres dispu-nham de vastos poderes, eram não apenas tolerados mas respeitados. Ao perderem seus privilégios, e entre eles o privilégio de explorar e oprimir, o povo descobriu que eles eram parasitas, sem qualquer fun-ção real na condução do país.67

O que Tocqueville quer dizer é que nem a opressão e nem a exploração em si chegam a causar ressentimento tão grande quanto a riqueza sem função que, neste caso, é muito mais intolerável, pois ninguém consegue compreender e, consequentemente, aceitar. Esta riqueza é fortemente considerada a única coisa que sobrou aos ju-deus, pois estes já haviam perdido as funções públicas e as influências que possuíam.68

A riqueza sem o poder e o distanciamento participativo em um determinado grupo (dentro da sociedade) tem como sentimento considerar os indivíduos (judeus) como parasitas e revoltantes por-que nessas condições desaparecem os últimos laços que mantem as ligações entre o homem.69

Nota-se aqui um ponto interessante; este sentimento acaba sendo fortalecido pelo próprio nazismo, para que, com objetividade começasse dentro da própria sociedade alemã, a conquistar a opinião pública e, que de tal modo pensassem da mesma forma. Em suma, houve a privação social de um grupo, os judeus, já com o intuito de despertar este sentimento de desprezo na população.

67. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 24.

68. Cf. Ibidem.

69. Cf. Idem, p. 25.

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Outra doutrina é a que se rotula ‘antissemitismo eterno’, tendo o ódio aos judeus como algo normal, que se manifesta com maior virulência segundo o desenvolvimento da história. Se, por exemplo, é verdade que a humanidade tem insistido em considerar matar os judeus como algo normal e, até mesmo, humana, o próprio ódio aos judeus fica justificado sem necessitar argumentos.70

Esta classe judaica constituía uma exceção à regra geral, no sentido que eles não pertenciam necessariamente a qualquer uma das classes nos países em que viviam; como grupo, não eram nem trabalhadores, nem gente de classe média, nem latifundiários, nem camponeses. Suas riquezas, na verdade, parecia fazer deles membros da classe média, mas não participavam ativamente do desenvolvi-mento capitalista e, como grupo, eles não se importavam muito com a questão do status social, ainda mais quando a emancipação foi dada a eles na Europa durante o século XIX. Sobre isto Hannah Arendt afirma: "É realmente surpreendente ver com que uniformidade os judeus desprezaram as oportunidades de se engajar em empresas e negócios capitalistas normais”.71

A manipulação da propaganda anti-judaica acabou sendo uma arma altamente favorável à ideologia nazista. Esta propaganda deve ter um formato popular para que o entendimento desta seja com-preendido até pelos que possuem uma faculdade de assimilação li-mitada e seu nível espiritual será tão menos elevado quanto o da massa que se quer atingir. No que diz respeito às mulheres, Hitler afirma que a massa feminina carece em espírito crítico, é espontânea e sensível às imagens; já a masculina é viril, e a propaganda deve saber conquistar seu coração, não seu espírito. O apelo se dá na histeria, não à sua inteligência, mas a seus instintos e, jamais à sua razão.72

Diante dos assuntos abordados através da concepção arendtia-na de totalitarismo, entende-se que este regime contribuiu ao encon-trar maneiras e utilizar- se de ferramentas para conquistar o apoio e a adesão da população, bem como, da sociedade de massa alemã caracterizada pelo desinteresse político.

70. Cf. Idem, p. 27.

71. Idem, p. 34.

72. Cf. Evelyne PISIER, op. cit., p. 334.

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3. Os reflexos do regime totalitário em uma perspecti-va política atual

Neste último quesito, o intuito principal é apresentar algu-mas possibilidades de formas totalitárias de governo na atualidade. Portanto, há ocorrências de fatos que evidenciam a existência de tal governo, embora não haja possibilidade de prever a sua concretude. O que se pode verificar são os pressupostos, comparados com o re-gime instaurado na Segunda Guerra Mundial pela Alemanha, que se encaixam dentro da política vivida, ou seja, com a presença de uma sociedade massificada.

3.1 A banalidade do mal e a incapacidade de pensar e julgar

Este é um tema que inquietou a filósofa alemã. A banalidade do mal e a incapacidade de pensar e julgar tomou muitas horas de reflexão durante e após o julgamento do réu Eichmann.73 Isto acon-teceu na década de 60 do século passado, tornando a autora não so-mente conhecida, mas, também contestada, quando denominou o mal, neste caso, como mal banal.74

O que foi percebido por Arendt, é que Eichmann não tinha grandes defeitos morais, inclinações ideológicas ou até pressupostos de rancores raciais e antissemitas. O grande problema que ele pos-suía, era apenas a simples ausência do pensamento, uma incapacidade de perceber, e através de um raciocínio sadio, julgar suas próprias atitudes.75 “Nele não se encontravam [...] motivações especificada-mente más, e a única característica notória que podia se perceber em seu comportamento, [...] é que não era estupidez, mas irreflexão”.76

Muitas vezes a frase proferida por Eichmann durante todo o julgamento era, “Minha honra é minha lealdade”.77 Assim, ele nunca

73. Adolf Karl Eichmann foi funcionário nazista encarregado do transporte dos prisio-neiros para os campos de concentração e de extermínio. Foi julgado em Jerusalém e posteriormente, enforcado.

74. Cf. Sônia Maria SCHIO, Hannah Arendt: o mal banal e o julgar, 2011, p. 127.

75. Cf. Idem, p. 128.

76 Hannah ARENDT, A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar, 1993, p. 6.

77. Hannah ARENDT, Eichmann em Jerusalem: um relato sobre a banalidade do mal, 2011, p. 121.

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havia tomado decisões próprias, pois, tinha extremo cuidado em estar coberto por ordens vinda de seus superiores e não gostava de fazer perguntas. Com o assassinato dos judeus não tive nada a ver. Nunca matei um judeu, nem um não-judeu, nunca matei um ser humano.78

Desta forma, o réu era considerado um cidadão comum te-mente à lei, raciocinava dentro da restrição de limites impostos, sua atitude acabou por nublar os aspectos de virtudes e vícios de uma obediência cega, ou a obediência de cadáver79, como o próprio Ei-chmann costumava mencionar com orgulho.80

Neste ponto começam as indagações da autora que diz: Eu ve-nho pensando há muitos anos [...] sobre a natureza do mal. E o de-sejo de me expor - não aos feitos os quais, depois de tudo, eram bem conhecidos, mas ao próprio perpetrador do mal - foi provavelmente o motivo mais convincente para a minha decisão de ir a Jerusalém.81

Portanto, como afirma a doutora Sônia Schio: "O mal banal não tem ‘raízes’, pois ele é sem profundidade, mas atinge e prejudica as pessoas, que são inocentes, desprotegidas, e sem qualquer motivo”.82

Para Arendt, o pensamento é essencial na tomada de decisões, é uma atividade do espírito que atualiza os dados procedentes das próprias ações na contemporaneidade, ou seja, isto ocorre quando o sujeito se retira do mundo das aparências e passa a atuar internamen-te, junto à própria memória e imaginação.83

Foi neste sentido que Eichmann errou, pois abdicou do pensar. Ele apenas raciocinava, utilizava seu intelecto para organizar determi-nados dados que lhe eram atribuídos, e diante de suas atitudes e seu diálogo no julgamento, concluía-se que ele jamais pensou, refletiu e julgou. Para Arendt, o pensar é a via para apreender a dimensão de toda experiência significativa do homem. O indivíduo que exercita a capacidade de pensar, vive um momento de intimidade consigo:

78. Cf. Idem, p. 109.

79. O sujeito se fazer de morto, obedecer cegamente, sem questionar e/ou refletir.

80. Cf. Bethânia ASSY, “Eichmann, banalidade do mal e pensamento em Hannah Arendt”, in Eduardo Jardim MORAES; Newton BIGNOTTO, Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias, 2001, p. 140.

81. Bethânia ASSY apud Hannah ARENDT; Karl JASPERS, in Correspondence, 1992, p. 522.

82. Sônia Maria SCHIO, op. cit., p. 129.

83. Cf. Ibidem.

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“A vida do espírito na qual faço companhia a mim mesmo pode ser sem som; mas nunca é silenciosa; e jamais pode se esquecer comple-tamente de si, pela natureza reflexiva de todas as suas atividades”.84

Conforme Schio, não há uma única forma de entender o mal banal, mas sim, diversas maneiras de explicar a sua efetivação tam-bém nos dias atuais, como a ausência do pensamento, a falta de ques-tionamento, a irreflexão, o fechamento ao mundo e à realidade e ain-da a imersão na vida privada com a inexistência do espaço público, a desesperança da consciência, a falta de imaginação e a incapacidade de colocar-se no lugar do outro.85

3.2 A sociedade de massa como manobra de manipulação política hoje

Qual a solução que se encontra diante dessa heteronomia que as massas da sociedade aderem? Se iniciar uma resposta apontando que a solução estaria relacionada à educação, no sentido de que, esta contribui com o sujeito tendo em vista um pensamento crítico refle-xivo e emancipatório, vive-se momentos questionáveis em nosso país.

Na atual conjuntura, percebe-se que há um grande desinteresse dos brasileiros pela política atual, uma grande parte da população não sente-se representada por aqueles que estão à frente da administra-ção pública ou que almejam se candidatar.

De acordo com uma pesquisa contratada pelo CNI – Conselho Nacional da Indústria, 61% dos mil entrevistados disseram não ter in-teresse algum, ou pouco interesse nas eleições de outubro deste ano. Entre estes, 45% afirmam que estão pessimistas em relação ao resul-tado final das urnas na contagem oficial do pleito eleitoral. Quando indagou-se a premissa de que “todos os candidatos são corruptos, en-tão não faz a diferença em quem eu voto”, o resultado é que 55% dos eleitores concordam com este pensamento.86

Um agravante é que este mesmo desinteresse está fortemente

84. Idem, p. 59.

85. Cf. Idem, p. 132.

86. Cf. PORTAL DA INDÚSTRIA, Brasileiros estão pessimistas com as eleições deste ano (online), 2018, disponível em: <http://www.portaldaindustria.com.br/estatis-ticas/rsb-45-eleicoes-2018/> , acesso em: 23de agosto de 2018.

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instalado na classe mais jovem, aqueles que opcionalmente podem ou não votar no pleito eleitoral pelo fato de possuir entre 16 e 18 anos. A informação é preocupante, pois desde o ano de 2002 houve um declínio proporcional da presença dos jovens na política.87 Neste sentido percebe-se que o país vive um profundo desinteresse e falta de representatividade por parte daqueles que, no ímpeto da juven-tude, poderiam contribuir para a mudança daquilo que se chama de velha política.

Arendt defende a importância de o indivíduo ser um partícipe ativo da vida pública, “A vida política, então, engloba tanto o cresci-mento de pertencimento como a necessidade de cada um participar, de alguma forma, para contribuir e complementar o convívio”.88

Outro dado relevante apresenta que a educação no Brasil vem decaindo consecutivamente ano após ano. A UNESCO apresenta re-latórios do Ranking Mundial da Educação relacionado ao Índice de Desenvolvimento Educacional (IDE) de cada país. Em 2007 o Brasil se encontrava na posição 76°, em 2008 o país se encontrava na 80ª posição89 e no relatório divulgado em 2011 chega-se a posição 88ª diante do quadro mundial da educação, ficando atrás de seus vizinhos latinos, como Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia.90

O exame educacional do PISA (Programme for International Student Assessment), que avalia os conhecimentos de leitura, ma-temática e ciências dos adolescentes, apresentou o Brasil em uma classificação bastante baixa no ano de 2015. Entre os 70 países par-ticipantes, os estudantes brasileiros se classificaram em 63º lugar em

87. Cf. G1.COM, Número de eleitores jovens cai por desilusão com a política (onli-ne), 2018, disponível em: <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noti-cia/2018/08/16/no-de-eleitores-jovens-cai-por-desilusao-com-politica-e-falta--de-identificacao-com-os-partidos-avaliam-especialistas.ghtml>, acesso em: 21 se agosto de 2018.

88. Sônia Maria SCHIO, op. cit., p. 97.

89. Cf. REVISTA VEJA, Brasil cai quatro posições no ranking da UNESCO (online), 2013, disponível em: <http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/brasil-cai- quatro--posicoes-ranking-unesco>, acesso em: 10 outubro de 2013.

90. Cf. FOLHA DE SÃO PAULO, Brasil fica no 88º lugar no ranking de educação (online), 2013, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/saber/882676-bra-sil-fica-no-88-lugar-em-ranking-de-educacao-da- unesco.shtml>, acesso em: 10 de outubro de 2013.

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ciências, 59º em leitura e 65º lugar em matemática.91

Deste modo, torna-se preocupante que nos últimos anos tenha havido esta queda e falta de investimento de qualidade no desenvol-vimento educacional no país. Este dado se faz necessário ao passo que uma má educação, contribui para que sujeito não encontre a capacidade de refletir, indagar e possuir a habilidade de construir um pensamento emancipado e maduro, não cria laços de pertença com a esfera pública.

Deste modo, percebe-se que a sociedade de massa apolítica e irreflexiva, é identificada, por vários aspectos, desde uma tradição ca-luniosa e dos descreditados políticos que percorrem a vida pública deste país, e até os problemas mais complexos como o da educação que aparentemente parece não instigar melhoras na política pública.

3.3 Propaganda, ficção e ideologia: os nazismos de hoje

Durante o período da Segunda Guerra Mundial, ou já no início da mesma, a propaganda foi um forte aliado para promover e difun-dir a mensagem à grande multidão que deveria aderir a ideia de que o totalitarismo seria sem dúvida a melhor forma de governo diante das crises e misérias que a Alemanha vivia naquele momento. Assim, o Nacional Socialismo utilizou da criação de um imaginário, que sus-pendia a real verdade, no sentido de que, o regime total poderia ser a melhor solução para seus problemas.

Gomes Ribeiro afirma que os verdadeiros governados que vi-viam sob o domínio totalitário, não distinguiam mais o que era ver-dade e mentira, o que era ficção e o que era fato.92 A ideologia sur-ge neste contexto, utiliza uma explicação lógica para dar crédito as ideias e atitudes, assim a ideologia se aproveita da situação atual para sua perfeita instalação. "A ideologia procura realizar uma demonstra-ção que tem como objetivo arrumar os fatos, a partir da dedução das

91. Cf. EXAME, Brasil está entre os piores no ranking mundial de educação (online), 2018, disponível em: <https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-esta-entre-os--8-piores-em-ciencias-em-ranking-de-educacao/>, acesso em: 22 de agosto de 2018.

92. Cf. Ricardo Gomes RIBEIRO, Hannah Arendt: o totalitarismo e a relação com o conceito do mal e da moral, 2010, p. 29.

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premissas de um silogismo infalível”.93 Em outras palavras, utiliza-se da lógica de uma ideia, que pode se apresentar de forma enganosa, suficientemente forte para demonstrar e convencer que a opção to-talitária fornece uma resposta para superar as crises e os problemas.

Até o momento foram elucidadas as formas que o nazismo uti-lizou para garantir a participação ativa para a concretização dos pla-nos totalitários, porém, após este período, onde se encaixariam esses mesmos métodos, a propaganda e a ficção hoje?

Existe hoje a necessidade constante de métodos para conquis-tar a opinião pública, sobretudo na política, influenciando as pers-pectivas do entendimento político do cidadão. Isto pode tornar-se um risco, pois o interesse pelo público não é visto como primordial por grande parte da população, não especializada e muito menos preo-cupada em saber como funciona e a importância que os indivíduos politizados têm principalmente na escolha de seus líderes em uma sociedade democrática.

O cidadão comum atua no papel do receptor da comunicação de massa e é usuário de um sistema diferenciado de informação, isto ocorre de maneira mais ou menos ativa.94 Desta forma, muitos se caracterizam, e a mídia contribui com isso, como pessoas ávidas, con-sumidoras de escândalos, frustradas e desinformadas. “Assim a mídia segue uma lógica perversa, oferece o máximo de informações sobre o máximo de assuntos no mínimo de tempo”.95

Na sociedade democrática, sobretudo no Brasil, há como ca-racterística defendida na constituição, que os partidos políticos são regidos dentro de diretrizes e normas, que, para ter consentimento

93. Fabio Abreu PASSOS, A implicação política da faculdade de pensamento na filosofia de Hannah Arendt, 2008, p. 91.

94. Essa maneira mais ou menos ativa, significa que o cidadao comum, receptor, re-cebe as informações muitas vezes não fundamentadas, em outras palavras “pela metade” não se interessando em buscar com profundidade e consistência aquilo que lhe foi transmitido, por isso ele é menos ativo quando se torna um repetidor de notícia sem saber o que de fato acontece ou em entender por completo a situação. Já o cidadão mais ativo demonstra interesse em compreender a noticia que lhe é transmitida buscando informações complementares para então possuir um juízo concreto, diferenciando o que pode ser verdade e o que pode ser simplesmente uma informação tendenciosa manipuladora, para atingir um objetivo específico.

95. Alessandra ALDÉ, A construção da política: cidadão comum, mídia e atitude política, 2001, p. 9-10.

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popular, defendem ideias específicas, correntes liberais ou tradicionais e estereótipos seccionados que defendem seus ideais e procuram atingir o maior número de eleitores tentando constantemente de-monstrar que é possível ter a face do cidadão marcada pela caracteri-zação e ideologia de cada organização partidária.

Contudo, ao identificar a trajetória dos representantes parti-dários eleitos, percebe-se que muitos discursos e comportamentos mudam diante daquilo que o próprio partido tem nas suas origens, passando a promover eventos de acordo com os critérios de ‘noticia-bilidade’. Deste modo, os partidos políticos perdem suas forças, por causa da complexidade e fácil mutabilidade exigida frente às situa-ções mais diferentes e imprevistas no meio social que está inserido.96

A estrutura econômica está intrinsicamente ligada à política, de modo efetivo quando sabe-se que mais da metade das emissoras de rádio e televisão pertencem a políticos ou a parentes e pessoas ligadas aos políticos.

No Brasil cerca 50% das emissoras de televisão, rádio, revistas e jornais estão nas mãos de grandes corporações. São holdings que do-minam o mercado da comunicação, da ‘noticiabilidade’ e das infor-mações que chegam nas casas da grande maioria da população.97 Este poder de influência é muito eficaz para uma sociedade que, por ter grandes déficits educacionais, não está acostumada com o processo reflexivo apresentado por Hannah Arendt, o que seria extremamen-te importante para um agir pautado na tríplice atitude do pensar, querer e julgar levando todos à um patamar mais elevado do espírito humano.

Segundo Alessandra Aldé, a mídia e a esfera pública tendem a seguir lógicas diferentes, a primeira trabalha para atingir a capta-ção e a atenção, especialmente em termos de televisão. A notícia é industrialmente produzida para estar sempre ‘fresquinha’, depende de elementos de apelo popular como: a novidade, a negatividade, o conflito, o escândalo, a personalização e a exceção. A segunda, isto é,

96. Cf. Idem, p. 15-16.

97. Cf. CARTA CAPITAL, Cinco famílias controlam metade dos veículos de mídia do país (online), 2017, disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/cinco-familias-controlam-50-dos-principais-veiculos-de-midia-do-pais-indica-re-latorio>, acesso em: 20 de agosto de 2018.

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a política, se adapta a estas exigências, perdendo a confiabilidade do grande público, algo que não deveria acontecer, pois, a política não se trata somente dos grandes atos corruptivos e dos escândalos que os jornais enfatizam em demonstrar.98

A política que acontece no âmbito da pluralidade, se faz ne-cessária no campo da doxa, de seres que expõem suas opiniões sobre os mais variados temas de compreensão. É neste tipo de diálogo que se mostra relevância, se tiver como alicerce um pensamento e uma reflexão cujos conceitos estão baseados e ancorados em uma pers-pectiva do bem público, em conjuntura com as melhores formas e decisões de se viver na sociedade.

Há uma privação do esforço cognitivo em observar e com-preender os assuntos e problemas mais importantes que se fazem latente no cotidiano. Deste modo, o universo político de hoje (políti-cos, mídia e economia) tenta gradativamente conquistar a aprovação e o voto do eleitor utilizando destes hábitos, como a falta de interesse, para atingir o objetivo de massificação através dos meios de comu-nicação.

Cada vez mais o eleitor tem sido considerado pela mídia como um típico consumidor de produtos, ele anseia por informações já pensadas por outros, diminuindo sua capacidade cognitiva, fazendo--os aceitar e concordar com aquilo que lhe parece ser melhor. Disso a indústria de comunicação entende muito bem, utilizando de ferra-mentas personalistas, conquistando as partes da população que me-lhor lhes convém.99

Na atualidade, a ideia de que uma política não se faz sem a construção de uma imagem pública emerge com força nas democra-cias contemporâneas, assim sendo, hoje fazer política é fazer imagem, é encontrar um caminho determinado que conduzam aos interesses e desejos individuais.100

Em vista disso, há uma forte impressão de que o diálogo e as ideias foram totalmente deixados de lado e a política contemporânea se concretiza somente de pessoas, não no sentido da pluralidade, mas

98. Cf. ALDÉ, loc. cit. p. 27.

99. Cf. CONFERÊNCIA BRASILEIRA DE MARKETING POLÍTICO, A propagan-da política no Brasil contemporâneo, 2008, p. 179.

100. Cf. Idem, p. 180.

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da personificação de personagens fabricados pelos marqueteiros no desígnio de conquistar o eleitorado, deste modo, segue um trecho da obra Casos e Coisas (2001), do publicitário Duda Mendonça que diz: “Como regra básica e geral, nunca se esqueça de que tudo na TV é informação. O que conta não é só o texto, mas o corpo de quem está ali, enviando esta ou aquela mensagem. Conta o timbre da voz, a entonação, as pausas, o olhar, os gestos, a roupa, o corte do cabelo e até um simples piscar de olhos”.101

Neste contexto, percebe-se claramente a semelhança com a fic-ção totalitária do período nazista, pois se criava uma perspectiva de falsa realidade, fazendo com que todos os cidadãos daquela época, bem como aqueles que estavam diretamente inseridos no sistema, agissem com normalidade. Assim, desta mesma maneira, acontece na política contemporânea, o cidadão comum acredita conhecer a política com seus argumentos previamente manipulados, e os repre-sentantes da esfera pública se moldam, independente de como seja, para conquistar a confiança e a aprovação deste mesmo cidadão. Des-ta forma, vive-se em uma aparência superficial, uma conformidade intelectual e uma realidade surreal.

Outro fato que também prejudica uma compreensão e um desgosto na política, não só no Brasil, mas em âmbito mundial, são os constantes casos de corrupção que rasgam a carga da moralidade e o papel idôneo dos representantes políticos. Na linguagem popular, quando escândalos de uma rede de corrupção vêm à tona na mídia de massa, muitas expressões se resumem com os cidadãos afirmando que não há mais jeito ou, não tem mais como acreditar na política.

A sociedade de massa faz parte de todos os sistemas políticos existentes, e que, de forma mais precisa, no Brasil, pode ser identifica-da pela população que já perdeu o descrédito na política e também, aqueles que, por não ter recebido uma educação de qualidade no intuito de elevar seu próprio nível de compreensão, reflexão e inda-gação, deixam-se levar por pessoas, muitas vezes mal intencionadas. Essa afirmação pode ser clareada com o famoso dito de Martin Lu-ther King que disse: “o que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.

E como fica o papel do líder? Se levar em conta que a pessoa

101. Duda MENDONÇA, Casos e coisas, 2001, p. 50.

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do líder são aqueles eleitos para que sejam a voz do cidadão em sin-tonia com o bem comum, vive-se forte instabilidade, sobretudo por conta do descrédito destas pessoas. A democracia brasileira vive nos últimos anos uma crise generalizada em todos os setores, economia, saúde pública, educação, segurança e também cultural. Entretanto, percebe-se que tudo isto está intrinsicamente ligada a uma política de má qualidade e sem comprometimento que não visa à educação e o bem comum da sociedade, pois deixa esta mesma desamparada, fora do rumo, com atos e planejamentos totalmente contrário àquilo que a política aristotélica apresenta. O estado tem a tarefa de pro-porcionar a educação para os cidadãos instigando-os à prática de atos virtuosos. Isso se dá, principalmente, pela via do exemplo por parte do legislador.102

Frente o que fora estudado, relacionando as características do regime totalitário alemão com os dados apresentados na atual polí-tica brasileira, encontra-se algumas semelhanças na organização do sistema político. Porém, isto não pode ser adotado como um pres-suposto para afirmar que vive-se uma forte tendência que culmina-ria em um regime totalitário, pois, este tipo de regime não pode ser profetizado e a política é como um ser vivo, que se molda diante das ideias e opiniões que ao longo do tempo vão se concretizando.

Ademais, são contextos diferentes, e hoje, é possível ter uma amplitude maior no que se refere ao conhecimento e na busca de dados e informações, isso pode fazer com que o cidadão que almeja a democracia não deixe se conquistar tão facilmente por retóricas cotidianas e abusivas.

A internet é considerada uma ferramenta importante para en-contrar informações claras e pertinentes, (se criteriosamente pesqui-sado) frente a isso, lembra-se dos portais de transparências que abran-gem desde os municípios até o Governo Federal.

Portanto, não se pode cair em uma objetivação, de que, se on-tem a história percorreu este caminho, hoje acontecerá da mesma maneira, o futuro, mesmo com diagnósticos e memórias cuidadosa-mente traçadas do passado, é incerto.

Arendt é bastante esperançosa neste sentido, quando afirma que todo nascimento é uma nova possibilidade, “o começo, antes de

102. ARISTÓTELES, A política, 1998, p. 77.

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tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; poli-ticamente, equivale à liberdade do homem”.103 Em outras palavras é a característica do homem que ao começar, está envolto na política fundada na liberdade da ação, e se por algum motivo errar possui novamente a liberdade de recomeçar.

Conclusão

O ato de se analisar o pensamento arendtiano, coincide com anseio de conhecer melhor a política, pois a autora contribuiu pro-fundamente com o seu pensamento a partir do momento que utili-zou a filosofia estudando os filósofos clássicos, medievais e modernos para traçar perspectivas e compreensões do que é a política hoje.

Outra característica importante que fora explanada é que, ela mesma se dizia contemplativa, seus estudos sobre o pensar, o querer e o julgar, demonstraram aquilo que ela chamou de silêncio gritante. É a atitude nobre de pensar e refletir que levaria o ser humano a agir com maturidade e consciência perante seus atos cotidianos.

Diante disto, este trabalho percorreu um período significativo, do imperialismo da segunda metade do século XIX até as formas de governo da contemporaneidade, com a expectativa de compreender como a política atual pôde estar ligada aos resíduos do regime totalitário. É pertinente o estudo abrindo novas interpelações, já que como cidadão é necessário preocupar-se com a política de sua deter-minada pátria, assim, entender como ela ocorre e quais as caracterís-ticas ou ideologias a que ela está atrelada.

Abre-se, portanto, margem para novas pesquisas que queiram adentrar e aprofundar temas que foram relacionados neste trabalho, aqui elencados de modo específico no intuito de atingir o objetivo desejado.

Alguns caminhos poderiam levar o pesquisador a novos traba-lhos como por exemplo: compreender e demonstrar o sentido e o conceito de alienação da sociedade de massa; outro tema instigante seria a concepção do Estado de Exceção e sua relação com o nazismo; e também apresentar as ferramentas e métodos (simulacro) da mídia atual no efeito psicológico fazendo com que o cidadão aja somente

103. Hannah ARENDT, Origens do totalitarismo, 2011, p. 532.

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através de impulsos e reflexos, (condicionamento) para atingir o ob-jetivo almejado pela indústria midiática.

Assim sendo, a política está vinculada à vivência do ser humano, no mundo que ele está inserido. Esta depende do homem, e o homem depende da política, pois vive-se um espaço comum, de todos, que necessita de organização para que os cidadãos habitem a sociedade com dignidade e liberdade dentro de pareceres sugeridos com vis-tas na pluralidade humana. Arendt contribuiu com seu pensamento, quando demonstrou que a política se faz entre as pessoas e com as pessoas, buscando viver na esfera pública de um modo livre, na qual a doxa seja relevante e que diante da discussão de ideias o resultado seja sempre o melhor para a vida comum, onde os cidadãos cumpram com seus deveres e gozem de seus direitos.

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