O RELÓGIO DE JULIUS HECKETHORN E A SONATA DE · PDF fileCresceu ouvindo os sons de carrilhões de relógios e quando, em sua infância, fugiu da primeira guerra mundial com seu pai

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  • XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro, Centros tica, Esttica

    18 a 22 de julho de 2011 UFPR Curitiba, Brasil

    O RELGIO DE JULIUS HECKETHORN E A SONATA DE SCARLATTI

    Martha Costa Guterres Paz (UFRGS)

    Resumo:

    Uma leitura sob a perspectiva da msica de Avalovara desnuda o fazer do autor em relao construo desse romance. No se configuram como meramente fortuitas as referncias a peas musicais, mas elas se apresentam organizadas de forma similar a estrutura da obra com seus movimentos temticos. A concepo construtiva do relgio do personagem Julius Heckethorn, a partir da fragmentao em treze trechos da introduo da sonata K 462 de Scarlatti, agrupados em trs sistemas principais e a relao dessa ordenao com a espiral superposta ao Palndromo de Loreius, demonstra a inteno do autor em construir um projeto artstico que envolve literatura e msica. Este trabalho mostra as relaes musicais presentes em Avalovara, tendo como referncia os pequenos trechos do fracionamento da pea de Scarlatti, os encadeamentos harmnicos que identificam tais trechos e o complexo ordenamento numrico ao qual se submetem os sistemas musicais e que possibilitam a marcao do tempo no relgio concebido pelo personagem de Osman Lins. notrio o apreo do autor pelos nmeros tendo sido Matyla Ghyka apontado por ele como inspirador no que concerne s suas elucidaes acerca dos significados destes sob a tica dos pitagricos. As relaes com a msica e com os nmeros desvelam uma estruturao do romance que o projetam no sentido da ordem cosmognica.

    Palavras-chave: Sonata, Avalovara (Osman Lins), Relgio.

    Introduo Transparece em Avalovara uma ordem estrutural cuidadosamente elaborada por seu autor em

    que a frase simtrica do palndromo de Loreius se interconecta com a espiral superposta ao quadrado construdo com vinte e cinco outros quadrados menores, dentro dos quais se insere uma letra de cada palavra daquela enigmtica frase. Por sua vez a espiral se relaciona com o relgio construdo pelo personagem Julius Heckethorn (J. H.) em que o soar das horas expe uma ordenao de fragmentos musicais da sonata K 462 de Domenico Scarlatti, ordenao esta que se submete a uma lei de formao baseada em sequncias numricas e relaes geomtricas bem definidas. Uma anlise estrutural e de informaes diversas obtidas da narrativa sugerem com alguma clareza que Osman Lins inspirou-se nas descries numricas de Matila Ghyka para edificar seu romance em quase todos os seus aspectos. Em entrevista inserida no livro Evangelho na Taba, aborda essa identidade com os nmeros e seu carter ordenador:

    Posso, entretanto, adiantar que a minha atrao pelas estruturas de inspirao geomtrica no se definiu a partir da leitura de outros romances, e sim a partir da leitura dos ensaios de Matila C.Ghyka: Esthtique des Proportions dans la Nature et Art e Le Nombre dOr [...] Tambm Pitgoras e a alquimia no so estranhos minha atrao pelas figuras geomtricas. Quanto aos nmeros, tem fascinado aos homens desde sempre. Na Idade Mdia, como podemos ler em Curtius, eram frequentes as obras regidas por uma estrutura numeral. A Divina Comdia, baseada na trada e na dcada culminncia dessa tendncia. E o meu livro, j o disse mais de uma vez, constitui entre outras coisas, uma homenagem ao

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    poema de Dante. tambm construdo com base na trada e na dcada1.

    No tema metaliterrio S, o narrador descreve em detalhes a estrutura de sua obra, sem no entanto esgotar todas as possibilidades, deixando para o leitor descobrir as nuances mais sutis que envolvem os aspectos musicais fortemente presentes ao longo de todo o romance. O tema P apresenta detalhes da vida e das escolhas do personagem J. H. e expe todos os passos que cercaram a construo de seu relgio singular.

    Matila Ghyka, em sua obra El Numero de Oro I. Los ritmos, discorre sobre o tetracto pitagrico, cuja importncia metafsica fez com que fosse includo no juramento de iniciao para a irmandade de Pitgoras. O tetracto um tringulo formado por unidades numricas, em que a base composta por quatro unidades, a segunda linha por trs, a terceira por duas e o topo do tringulo por uma unidade. Tem-se, ento, uma sequncia de 1, 2, 3 e 4 unidades cujo somatrio igual a 10 (1+2+3+4=10). Para os pitagricos o nmero 10 simbolizava o Universo, ou o Ritmo da Alma do Mundo que se relacionava com a alma do homem por intermdio do nmero 5, ou seja, a metade de 10.

    1 =1

    1 1 =2

    1 1 1 =3

    1 1 1 1 =4

    O nmero 5, como metade da dcada, tem um significado muito especial para os pitagricos. o nmero de Afrodite, deusa da unio fecundadora, do amor gerador. constitudo pelo nmero 2, o primeiro nmero par, smbolo do sexo feminino, e mais o nmero 3, o primeiro nmero mpar, assimtrico e masculino.

    O relgio musical de Julius Heckethorn medida que amadurece, J. H. define seu gosto pela construo de relgios, ofcio que

    herdou de seus antepassados. Cresceu ouvindo os sons de carrilhes de relgios e quando, em sua infncia, fugiu da primeira guerra mundial com seu pai para Londres, para compensar a ausncia das batidas das horas, aprende msica, escolhendo o cravo como instrumento pessoal.

    Admira Mozart e Scarlatti, e utiliza os dez compassos da introduo da sonata K 462 para cravo deste compositor, fracionada em treze fragmentos, para dar vida acstica a seu notvel relgio. Cria trs sistemas nos quais agrupa trs, quatro e cinco fragmentos em cada um: o sistema A contm os fragmentos 1, 5 e 11; o sistema B, os fragmentos 2, 4, 7 e 9; o sistema C, os fragmentos 3, 6, 8, 10 e 13. Um quarto sistema abriga o 12 fragmento.

    A escolha da sequncia 3, 4 e 5 muito possivelmente advm do teorema de Pitgoras para o tringulo retngulo em que o clculo da hipotenusa a raiz quadrada da soma do quadrado dos catetos. Estas trs unidades so as nicas unidades mnimas inteiras que produzem um tringulo retngulo. As demais so mltiplas destes nmeros. Ghyka, em seu livro Esthtique des

    1 LINS, Osman. Evangelho na Taba: outros problemas inculturais brasileiros. So Paulo: Summus, 1979, p. 179.

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    Proportions dans la Nature et Art e Le Nombre dOr menciona o teorema de Pitgoras como uma das jias da matemtica grega.

    Para o grupo A, o fragmento 1 soa aps 4 horas, os fragmentos 1 e 5 soam aps 1 hora e os fragmentos 1, 5 e 11 soam aps 6 horas, completando um ciclo de 11 horas. Para o sistema B, o fragmento 2 soa aps 2 horas, os fragmentos 2 e 4 soam aps 2 horas, os fragmentos 2, 4 e 7 soam aps 3 horas e os fragmentos 2, 4, 7 e 9 soam aps 6 horas, completando um ciclo de 13 horas. Para o grupo C, o fragmento 3 soa aps 4 horas, os fragmentos 3 e 6 soam aps 3 horas, os fragmentos 3, 6 e 8 soam aps 5 horas, os fragmentos 3, 6, 8 e 10 soam aps 6 horas e os fragmentos 3, 6, 8, 10 e 13 soam aps 3 horas, completando um ciclo de 21 horas. Para os trs grupos, as sequncias de fragmentos se repetem indefinidamente, observando os mesmos intervalos.

    Existe uma dada hora em que todos os fragmentos, menos o 12o, so ouvidos e a introduo da sonata toca quase inteira. Este fato vai se repetir a cada 125 dias e trs horas (convertido para decimal produz o nmero 125,125) resultado da multiplicao de 11 por 13 e por 21 horas e dividido por 24 horas. O nmero total de horas que separam uma audio integral dos doze fragmentos da sonata de Scarlatti de outra, igual a 125,125*24 = 11*13*21 = 3003 (horas), o mnimo mltiplo comum dos trs nmeros acima (11, 13, 21). Pode-se chegar a esses nmeros pela multiplicao 5x5x5 (esquemas A, B e C e o nmero 5, representativo do microcosmo) cujo resultado tambm 125. A relao de 13 com 21 evidencia que Osman Lins teria utilizado o nmero de ouro originado da Divina Proporo, 1,618, pois a multiplicao deste por 13 resulta em 21,034, de modo que, ao desprezar a frao decimal, chega-se ao nmero inteiro 21. Os dois nmeros fazem parte da srie de Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34,...) em que cada elemento relaciona-se com o anterior por adio, respeitando-se a condio de serem nmeros inteiros. medida que os nmeros tendem a infinito (a partir do 22 nmero da srie) a relao an/an-1 tende ao nmero ureo em sua forma precisa (1,61803399...).

    Tem-se, assim, os nmeros 125, 13 e 21, dos quais obtm-se o nmero 11 por meio da equao algbrica 125*24 = X*13*21, de modo que X = 10,989. Como os fragmentos musicais do relgio somente podem soar nas horas cheias, o nmero anterior fracionrio deve ser arredondado para o nmero 11. Refazendo o clculo 11*13*21/24 chega-se ao nmero 125,125, de modo que, convertendo-se a parte fracionria (0,125) para horas (0,125*24)., obtm-se o ciclo de 125 dias e 3 horas Verificando-se a srie de Fibonacci constata-se que o nmero 11 resulta da soma do nmero anterior ao nmero 13 (8) com o nmero anterior quele que lhe antecede (3), ou seja, 11 = 8+3.

    Julius acrescenta o 12o fragmento, separado do esquema tripartite, a ser repetido de 5 em 5 horas. Em decorrncia desse quarto sistema, haveria um momento em que a introduo inteira seria ouvida, e isso somente se repetiria 625 dias e 15 horas depois. Tal nmero de dias se deve multiplicao de 3003 horas (125,125*24 ou 11*13*21) por 5 horas (repetio do 12o fragmento). Assim, obtm-se 15015 horas, que, dividido por 24 horas, resulta nos 625 dias e 15 horas anteriormente referidos. Novamente o nmero 15015 o mnimo mltiplo comum de 11, 13, 21 e 5, o que significa que no existe intervalo de tempo inferior a esse que possa propiciar a audio integral da introduo da sonata de Scarlatti.

    O defeito calculado introduzido por J. H. no mecanismo de seu artefat