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O RIO TOCANTINS ENGOLIU MEU AVÔ Cronicontos

o rio tocantins engoliu meu avo - catolica-to.edu.br · Aproveito esses escritos para homenagear a minha Avó paterna, Maria Nolêto Perna, e aos meus tios e tias, filhos de Manoel

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O RIO TOCANTINS ENGOLIU MEU AVÔCronicontos

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Prof. Roberto Malheiros - Pontifícia Universidade Católica de Goiás

Goiânia - GO2012

O RIO TOCANTINS ENGOLIU MEU AVÔ

Francisco Perna Filho

CRONICONTOS

Copyright © 2012 by Francisco Perna Filho

Editora KelpsRua 19 nº 100 — St. Marechal Rondon

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Impresso no BrasilPrinted in Brazil

2012

PER Perna Filho, Francisco.rio O Rio Tocantins engoliu Meu Avô / Francisco Perna Filho Goiânia : Kelps, 2012 116 p.

ISBN: 978-85-8106-225-9

1. Literatura Brasileira. contos. I. Título.

CDU: 821.134.3 (81) - 34

CIP - Brasil - Catalogação na FonteBIBLIOTECA ESTADUAL PIO VERGAS

Índice para catálogo sistemático:literatura brasileira

CDU: 821.134.3 (81) - 34

Goiânia em Prosa e Verso

Maximo Gorki, numa viagem pelas distâncias da União Soviética, viu-se rodeado por muitos jovens e não tão jovens, após uma palestra, que lhe mostraram seus escritos e falaram das dificuldades que tinham para publicá-los. O velho escriba solicitou à União de Escritores que olhasse com carinho aquelas pessoas desamparadas e excluídas do circuito editorial do país, pois, em sua opinião, dali poderia sair um ou mais artistas que valessem a pena. Essa era a ideia: publicar e publicar. Um Bernardo Élis, que porventura surgisse daquele meio, compensaria tanto papel, tinta e trabalho gastos.

É com essa mesma mentalidade que a Prefeitura de Goiânia, através de sua Secretaria de Cultura, criou o programa Goiânia em Prosa e Verso. Neste ano de 2012, em sua 5ª edição, o programa publica 204 autores, entre consagrados e novos.

A importância da literatura para a sociedade e para o indivíduo pode ser focada de vários ângulos, dentre os quais, o fato inegável de que um grande livro ajuda a formar o mundo. O Dom Quixote, de Cervantes Saavedra, ajudou em muito no enriquecimento e na consolidação do idioma espanhol. Mais ainda se pode dizer de A Divina Comédia, de Dante, que, segundo grande número de estudiosos, foi fundamental para a criação da língua e da nação italianas.

A relação da literatura com a história é muito íntima e até pouco tempo era desconsiderada. Para se conhecer a formação do Rio Grande do Sul, nada melhor do que ler O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Para o conhecimento da luta pela terra, na Bahia, o recomendado é Jorge Amado. O que poderia ser mais estimulante para o aprofundamento na alma e nos sentimentos do caboclo sertanejo de Minas Gerais? Nada além de Guimarães Rosa.

O caminho literário para o conhecimento e a vivência dos fenômenos históricos e sociais é mais eficiente e prazeroso do que o melhor tratado acadêmico sobre o assunto. Isso ocorre porque a literatura, como arte, ultrapassa os dados objetivos e circula na área dos sentimentos e das emoções, apelando para o que há de mais humano no leitor: seu lado lúdico, lírico, afetivo e dramático.

A falta de leitura criou uma situação assustadora em nosso país:

cerca de 30% dos considerados alfabetizados padecem de uma deformação grave: conseguem ler as palavras, mas não entendem o que leem; 70% dos estudantes universitários não interpretam corretamente os textos que leem, e sua capacidade de comunicação escrita é precária, quando não é nula. Tudo isso é reforçado pela linguagem em acrônimos imposta pela internet. Resultado: a falência da fantasia, a morte do sonho e da imaginação.

A superação dessa catástrofe só é possível pela leitura constante de boa literatura, pelo contato com os estilos cultos e elaborados, a leitura dos autores consagrados.

Uma pergunta de difícil resposta é necessariamente formulada quando se trata de um programa como o Goiânia em Prosa e Verso, que pretende dar oportunidade a escritores ainda desconhecidos e que estão fora do circuito editorial, acadêmico ou de mercado. A pergunta se refere ao valor artístico da obra. Em primeiro lugar, nós não temos a receita para determinar o valor de uma obra nova, recém-escrita, pela primeira vez mostrada ao público. O melhor é não ter opinião preconcebida a respeito, permitindo o livre trânsito das várias posturas, sejam estilísticas ou ideológicas, e deixar que a história, como tem feito no decorrer dos séculos, faça seu trabalho de limpeza e separe o que vai permanecer do que vai para o esquecimento.

Seja para o simples prazer, seja para ampliar conhecimentos, a fruição estética, o contato com a literatura de qualidade, comprovada e testada pela história, é fundamental para o ser humano, para o desenvolvimento de seu espírito crítico, para a substituição, em seu ser, de valores inferiores por valores superiores, para ampliar sua visão do mundo, para aumentar sua capacidade criativa, para desenvolver sua imaginação e fantasia, para o enriquecimento da vida interior do indivíduo e da sociedade.

Maestro Joaquim JaymeSecretário Municipal de Cultura

Aproveito esses escritos para homenagear a minha Avó paterna, Maria Nolêto Perna, e aos meus tios e tias, filhos de Manoel Perna, que se incumbiram de levar adiante o seu legado de sabedoria, honestidade, amor ao próximo. São eles: Raimunda Coelho Perna (Mundica), Tito Nolêto Perna (In Memoriam), Francisco Nolêto Perna (In Memóriam), Anália Nolêto Aquino, DilaNolêto Aquino, Elza Nolêto Perna e Edvaldo Nolêto Perna.

Aqui também homenageio meus irmãos, meus primos - em es-pecial a minha prima Altair Machado Perna, por ter disponibilizado uma cópia do Jornal A Tarde, de Carolina – MA (1944), que trazia uma crônica sobre nosso Avô, e ao primo Carlos Alberto Varão Perna, pela gentileza de digitalizar esse material, com o qual abro este livro -, filhos e sobrinhos, bem como aos esposos e esposas dos meus tios, em especial à minha Mãe, Adalgisa Nolêto Perna, pela imensa colaboração e compa-nheirismo, no sentido de educar homens e mulheres e difundir, mundo afora, a Família Perna.

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SUMÁRIO

Apresentação .............................................................................................. 11Manoel Perna ............................................................................................. 13O Rio Tocantins engoliu meu Avô .......................................................... 15Eu jamais imaginara a dor da alma ......................................................... 17Síncope ........................................................................................................ 19Ouvindo a própria voz .............................................................................. 23Encontro de amigos .................................................................................. 25Religião, xenofobia, ................................................................................... 29sexo e literatura .......................................................................................... 29Nelson da Luz, a céu aberto ..................................................................... 33Seres da Recepção ...................................................................................... 35Via crucis .................................................................................................... 37Até as pedras cantam ................................................................................ 39Últimas palavras ........................................................................................ 41Ternura, talvez seja .................................................................................... 45o que nos falta ............................................................................................ 45A bela moça da praça ................................................................................ 47Um olhar sobre as diferenças ................................................................... 49Espaço e preconceito ................................................................................. 51Signos em rotação ..................................................................................... 55O Silêncio dos Inocentes .......................................................................... 57Espelhado de céu muito sereno ............................................................... 61Ascensão e queda....................................................................................... 65Deformidades............................................................................................. 67A droga da vagina ..................................................................................... 69Um canto no canto do muro podesoar turvo como pode soar música ......................................................... 71

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A ilusão digital ........................................................................................... 73Da necessidade de envelhecermos .......................................................... 75O pó da Pós-Modernidade ....................................................................... 77Quem vende o seu voto, vota contra si mesmo ..................................... 79Enriquecimento de urânio ....................................................................... 83Olhando o homem, o peixe se reconhece .............................................. 87Os demônios são mais nobres ................................................................ 89Medo, um ato de humanidade ................................................................. 91Uma Temporada no Inferno .................................................................... 93Do Meu Caminhar .................................................................................... 95Qua me stultitia insanire putas? .............................................................. 97Plenilúnio ................................................................................................... 99O poeta e a cidade – memórias ............................................................ 103Pontos de fuga .......................................................................................... 107O que sabemos a respeito de nós mesmos ........................................... 109Crônica, uma teoria................................................................................. 111

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APRESENTAÇÃO

As crônicas e contos aqui reunidos foram escritos e publicados entre 2005 e 2012 - em vários veículos de comunicação de Goiânia e Palmas: jornais, revistas, blogs etc. -, e versam sobre os mais variados te-mas: política, opinião, artes plásticas, literatura, abordando aspectos do nosso cotidiano e da nossa contemporaneidade, e a sua publicação aten-de a um desejo da minha Esposa, Rosana, de vê-los reunidos em livro.

Este livro é uma homenagem que faço ao meu Avô paterno, Ma-noel de Sales Perna, morto por afogamento no Rio Tocantins, em 1946, cujo corpo se perdera nas suas correntezas, nunca sendo encontrado. O título faz alusão à crônica homônima que escrevi há algum tempo: “ O Rio Tocantins engoliu meu Avô”.

Os textos, aqui organizados, não seguem uma ordem temática e/ou histórica, abarcam os gêneros textuais: crônica e conto, daí o nome Cronicontos. Também não seguem qualquer ordem de classificação, tão somente aparecem intercalados, cabendo a você leitor, caso seja do seu interesse, distingui-los. Para isso, no final do livro, teorizo sobre o assunto crônica: material construído para atender aos meus alunos do Curso de Jornalismo da Faculdade Cambury, turma de 2005.

Março de 2012

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MANOEL PERNAPor J. Nogueira Rêgo

Aos solavancos das águas em fortíssimo banzeiro, sumiu-se e morreu em naufrágio no Tocantins, Manoel de Sales Perna – Mandú.

Foi um golpe trágico no destino da infeliz vítima. Ele que fora um dos mais destros e fortes nadadores das nossas águas, a zombar, afoito, em braçadas largas dos ímpetos das correntes, teve que sucumbir pro-curando salvar uma netinha no momento terrível do naufrágio da barca que a velha “Camocim” rebocava.

Quem, nesta cidade, não conhecia Manoel Perna?!Era a alegria enfeitada nos gestos de meninice, a brincar pilhérico

com toda gente numa expansão jovial peculiar à sua própria natureza.Desde moço era a mesma índole alegre, comunicativa, fértil em

criar termos esquisitos e jocosos. Era uma alma boa, vivendo neste mundo ininterruptamente a zombar das dificuldades da vida, sem alte-rar, absolutamente, a bonomia do seu caráter.

A casa de sua família era sempre o ponto onde os índios de toda esta vasta região vinham se hospedar, ouviam-lhe a palavra amiga, pe-diam-lhe conselhos, tinham-lhe atenção qual se fora um verdadeiro chefe de tribo; ao chegarem, varejavam-lhe a casa, tomavam conta do corredor, da varanda e cozinha, dormiam pelo chão, as janelas, de onde contemplavam o dia inteiro a rua, ficavam encardidas de urucu e, quan-tas vezes, em noites de luar, espalhavam-se em roda à porta da rua e era um formigar de gente a assistir as danças selvagens das aldeias ritmadas com gestos e toadas monótonas.

Os Craô chorarão sentidos a falta do amigo de todos os tempos. Homens, mulheres e crianças virão trazer o preito de sua amizade, de sua saudade, ao velho Perna – seu protetor desde a meninice.

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Pobres caboclos que, embora tenham a assistência da Missão Evangélica, não têm contudo o conforto desse amigo de muitos e mui-tos anos.

JORNAL A TARDE - Ano XXI - Maranhão - Carolina - 30 de Novembro de 1946 - Número 824 – Editor: Catão Maranhão.

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O RIO TOCANTINS ENGOLIU MEU AVÔ 

Os rios, naturalmente, correm. É da natureza deles o livre curso. Não tem nada que os impeça, rompem qualquer obstáculo que se lhes apresente. Não fazem distinção de tempo e leito, não consideram castas nem poder, retumbam os gritos ancestrais; não param nunca, mesmo quando lhes desviam o curso, mesmo quando desembocam no mar.

Pelos rios, os homens descobriram outras terras, alimentaram descobertas e distâncias. Neles, depositaram esperanças, viram-se re-fletidos e morreram inúmeras vezes, como o meu avô, Manoel de Sales Perna, um exímio nadador, a quem o rio não deu guarida, engolido pelo Tocantins ao salvar a minha prima, Maria Úrsula, bem próximo à cida-de de Carolina, no Maranhão.

As pessoas morrem, os rios são perenes. A qualquer tempo, estão em movimento. Nunca se repetem, sempre impressionam, seduzem e devoram. Água não tem cabelo, professam os antigos, e se tivesse, sem hesitar, diria que o meu avô teria vivido um pouco mais, a tempo de me conhecer e poder falar um pouco sobre a sua vida, suas origens, e da afeição pelos índios Krahô.

Dele sei pouco, mas sempre pude imaginá-lo, quando não pelas histórias contadas pelo meu pai, Francisco Nolêto Perna, pela fotografia ampliada que o meu tio, Tito Perna, traz emoldurada na sala de sua casa e, mais recente, sendo redescoberto, por obra da ficção, pelo escritor Bernardo Carvalho, no premiado “Nove Noites”, Companhia das Letras (2003), quando o engenheiro Manoel Perna, que na vida real era bar-beiro, pôde contar a história d o antropólogo americano BuellQuain, discípulo de Ruth Benedict da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, que se suicidou em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar

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a aldeia Krahô, a caminho de Carolina, no Maranhão, para se encontrar com o meu Avô. Fato que, embora sirva à ficção de Carvalho, aconteceu na vida real, como atestam os documentos e o testemunho do meu pai.

Apesar de não ter podido conhecê-lo em vida, vejo-o sempre em meu pai, em mim, nos meus filhos e irmãos. Vejo-o no rio que o engo-liu, pois passou a fazer parte dele, uma vez que o seu corpo nunca foi encontrado. Eternizou-se nas suas corredeiras, imortalizou-se no seu remanso, como na mitologia: os rios da eternidade.

Vejo-o sempre quando vou a Miracema do Tocantins, quando miro o rio do Porto do Padre, da Praia de Areia, do Flutuante do “Seu” Manoel, da Praia do Urubu, da Usina do Lajeado. Muitos desses lugares, que agora citei, já não existem mais, mas vivem na minha memória, como o meu avô, que, pela obra da ficção, virou personagem e “zom-bou” do rio que o engoliu. (02/05/2008).

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EU JAMAIS IMAGINARAA DOR DA ALMA

Quando eu era pequeno, ficava horas deitado no colo da “Mamãe-ninha” a ouvir o barulho sonolento e longínquo dos barcos a vapor, que cruzavam o Tocantins, precisamente em Miracema do Norte (Tocan-tins, até então, era só o rio), e ficava ali, na mais pura inocência, contem-plando as estrelas, quando ela me fazia cafuné e me contava histórias, que iriam me marcar para sempre.

Quantas e quantas vezes, ali, naquela meia-lua de cimento, em que eu me sentava e deitava no seu colo macio (ela sentada em tambo-rete) eu pude vê-la chorar, sem entender o que se passava, o que de fato ela estava sentindo. Eu era muito jovem para compreender o universo, e chorar, para mim, era apenas algo exterior, eu jamais imaginara a dor da alma.

O tempo passou, eu cresci, ela se foi. A partir daí eu comecei a materializar a dor, o sofrimento, a ausência e a solidão, já não era mais o mesmo, apesar dos vinte e poucos anos, ainda cheio de muitos sonhos e ilusões. Continuei a contemplar o céu, não com a mesma frequência; não com a mesma inocência, por que eu já conhecia a solidão, já sabia dos desencontros, e eu me tinha demasiadamente humano.

Os barcos passaram a ser eternos, ficaram na minha memória, e sempre que alguém querido se vai, eles deslizam suavemente pelos meus olhos. Com os barcos eu aprendi sobre chegadas e partidas, eu aprendi a contemplar lonjuras e a chorar abandonos e nunca mais me saiu da alma o peso e a dor do mundo, eu passei a contabilizar os dias e os becos, os murmúrios e solidões, talvez aí o poeta tenha surgido.

Com os barcos eu conheci mundos, revi o colo de minha mamãe-

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ninha, encontrei pessoas, que me foram preciosas, mas que se foram tão rapidamente, sem que eu pudesse ao menos agradecer pela amizade. Pessoas que surgem nas nossas vidas, dividem conosco a sua felicidade, acostumam-nos com as suas presenças e depois, leves demais, vão–se embora, nos deixando com uma dor tão grande, não nos dando tempo para nada.

Não sabemos ao certo o que nos aguarda, que rumo tomaremos, quem encontraremos no caminho, como estaremos amanha. Apenas caminhamos, para bem lembrar Fernando Pessoa:navegar é preciso, vi-ver não é preciso, pois viver é de uma imprecisão danada, já que nunca saberemos que dor nos aguarda.  Ela sempre nos surpreende, quando alguém parte, quando alguém sofre, quando alguém clama por justiça.

Talvez os barcos tenham muito a nos ensinar, embora fabricados por nós, comportam a dor da madeira cortada, da solidão de seus por-tos de origem, de suportar tanta carga, mas estão sempre a deslizar pelos rios da sabedoria. Quem sabe eles nos digam muito de nós, por que, apesar de toda inconsciência, nos ajudam na travessia dessa nossa longa vida. (15/07/2008)

  

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SÍNCOPE

As pernas não respondiam. Por mais que tentasse, nada. Estavam ali imobilizadas, soltas, distendidas, presas à cama. Algo que ele demo-rou a compreender. Somente tomando consciência da real situação em que se encontrava, quando, num átimo, sentiu um leve formigamento na perna esquerda, o que o fez, subitamente, tentar tocá-la, mas não pôde, estava preso, do tronco para baixo, totalmente à mercê do que ele sempre temera: a total dependência dos outros.

O quarto velho e desgastado compunha um ambiente triste e de-solador, imprimindo no branco manchado de suas paredes a história de muitas vidas que por ali passaram. Do teto, também pintado de branco, um pouco mais conservado, pendiam duas finas correntes, nas quais os tubos de soro eram fixados, servindo, muitas vezes, aos olhos toldados de algum paciente, como apêndice dos seus delírios.

Era longe demais para chorar, para lembrar-se de qualquer coi-sa que o tornasse ao comum, ao familiar. Uma feição grave se apos-sou do seu rosto, parecia desconhecer tudo, inclusive a si mesmo, de quem não lembrava o nome. Tudo era muito longe, diria distante, como os dedos dos pés que não se mexiam, não serviam para nada, totalmente inúteis. Quem o teria deixado ali, que mal fizera para que um filho da puta qualquer o imobilizasse daquela maneira? Se pelo menos ele pudesse se lembrar de alguma coisa, um nome que fosse; quem sabe o dele.

Um desespero tomou conta de si, precisava acalmar-se, o corpo estava molhado de suor. Alguém veio, caminhou em sua direção, es-tacou ali, bem próximo dele, mas nada disse. Uma fragrância silvestre invadiu o quarto. Tinha de se segurar, não havia nada a fazer, era só esperar. Talvez alguém que viera acabar de fazer o serviço. Bastariam

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mais dois passos, o travesseiro, e pá! Acabou. Um verdadeiro pânico sobre ele se abateu.

Acenderam as luzes, e ele, como que aliviado, mas ainda sem sa-ber de nada, contemplou os grandes olhos verdes da enfermeira que esboçara um sorriso, depositando a bandeja de remédios e seringas na mesinha ao lado da sua cama, quando, delicadamente e satisfeita, ino-culou a agulha da seringa no tubo de soro, posteriormente prometendo que ele ficaria bom. Logo tudo acabará! Sentiu-se aliviado.

Por um momento, certo torpor, uma quentura percorrera-lhe o corpo, foi quando pôde divisar, do outro lado, numa cama parecida com a sua, um senhor de uns setenta anos, cabelo branco e escasso, todo en-tubado e amarrado pelos pulsos. Estava num sanatório, num hospício, pensou. Sua cabeça girou, sentiu o que lhe restava do corpo bambo, mas um sentir sem muita esperança. Um sentimento alheio a tudo, como aquele que se tem quando reencontramos pessoas que há muito não víamos, que por elas alimentávamos muita feição e encantamento, mas que, ao revê-las, descobrimos que o nosso poder criador é lastimável, o que amávamos era o longe, o distante. Naquele momento conseguimos varrer os últimos vestígios de uma existência, de um compartilhamento. Adormeceu.

Acordou com uma grande vontade de esvaziar a bexiga, foi ao desespero. Como? Como sairia dali para mijar? estava paralisado, preso duplamente pelas pernas e pelo soro que o obrigava a conservar a mão esquerda sobre o lençol, sobre o colchão da cama. Ouviu um som vindo de fora, percebeu que se tratava de um rádio, um programa religioso. Muita gritaria. Inquietou-se. Sua bexiga iria estourar, o que fazer? Ten-tou chamar a enfermeira, mas o som ficara preso na garganta, estava muito fraco, debilitado. Com uma mão começou a pressionar o pinto, que também estava adormecido. Que loucura! Do outro lado, o senhor da cama estrebuchava, tentava se soltar, fazendo um alarido estranho, um som esquisito, um piado, um chiado, sabe-se lá, eram espasmos se-guidos, parecendo que após tamanho esforço, o homem não se resta-beleceria, mas contrariando as previsões, ele se acalmara, o cansaço se esvaíra, e ele voltara a dormir.

Também não resistiu, deixou-se abater, mijou-se todo, mas tam-

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bém nada mais importava, estava ali mesmo, imobilizado, inútil, des-prezado. Por um bom tempo quedou aliviado, era o que parecia. Uma sensação de bem estar, de alívio. Mas a felicidade durou pouco, fora ar-rastado por um sentimento de perda, de desprezo. O coração era puro ruído, como uma velha máquina de arroz, ia e vinha, parecendo querer arremessá-lo para outra realidade, talvez menos cruel. Não tinha certe-za de qual. Viver era mesmo muito difícil, principalmente na condição em que se encontrava. Ali, preso, sozinho. Ao som do seu coração, mais uma vez adormeceu.

Bom dia! Bom dia! Fora acordado pelos berros do médico que o saudara. Como vai o meu paciente? Parece-me muito bem! Ouvia tudo aquilo ainda desconfiado, sem saber bem ao certo do que se tratava. Tentou virar-se subitamente, mas fora impedido por uma dor bem agu-da, vindo da sua virilha; nisso percebeu que tinha conseguido mexer a perna, os dedos dos pés. Não podia acreditar naquilo que estava fazen-do, ele que há tão pouco estivera em pânico, sem ninguém, imobilizado, a mercê dos outros. Agora ali, sentindo dor, mexendo com as partes baixas.

Levou a mão ao pinto, pôde senti-lo. Apalpou o saco, estava cres-cido, suado, grudado na sua perna nua. Um sentimento de alegria to-mou conta de todo o seu ser. O médico a tudo assistia sem entender nada, estava ali, contemplando aquele homem que se redescobria. Mais uma vez falou: vejo que a anestesia já passou, deixe-me ver o corte, pu-xou de supetão o curativo. Perfeito! a cirurgia foi um sucesso, não há mais hérnia, agora é só repouso. Você está de alta, vou pedir a enfermei-ra para tirar o seu soro, na próxima semana você vem para tirarmos os pontos.

Um telefone tocou, deu-se conta que estava na mesinha ao lado da sua cama. Pôde reconhecê-lo como seu, um celular. Esticou o bra-ço direito para pegá-lo. Alô! Disse ele. Uma voz melodiosa respondeu: Amor, estou indo buscá-lo, preparei um café da manhã delicioso para você. Por um momento, contemplou os raios de sol que entravam pelo velho vitrô, sorveu o ar da manhã e sorriu aliviado. (novembro de 2008)

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OUVINDO A PRÓPRIA VOZ

Tudo foi muito estranho e engraçado, lembro-me bem, eu estava na rodoviária de Miracema do Norte, não posso precisar o ano, década de 70, quando vi pela primeira vez um gravador e ouvi a gravação que dele saia, fiquei encantado. Como seria possível aquilo?

Cheguei em casa deslumbrado com o novo conhecimento, com a nova tecnologia. Meses depois, meu Pai foi a Goiânia e nos presen-teou com um belo gravador, último tipo, genuinamente japonês, uma maravilha. Passamos a gravar todos os sons que encontrávamos, que fazíamos acontecer, desde batidas em latas, até o som da descarga do banheiro, tudo com muito entusiasmo e graça.

Passamos a gravar as nossas conversas, as conversas dos vizinhos. Brincávamos de espiões, cantávamos e nos dizíamos cantores, artistas. Enquanto isso, uma montoeira de fitas K-7 ia se acumulando nas es-tantes da casa, compondo a nossa coleção. O certo é que éramos puro entusiasmo, a mesma que tínhamos pelos inúmeros livros da minha in-fância.

São agradáveis lembranças, mas, o mais agradável, o inusitado, o puro estranhamento, deu-se na fazenda Caridade, do meu avô mater-no, quando, à noite, nas reuniões que fazíamos, sob a luz dos candeei-ros e lamparinas, no pátio da casa grande, o meu pai, Francisco Nolêto Perna; meus avós, vovô Antônio Nolêto e vovó EuzébiaNolêto; minha mãe, Adalgisa Nolêto; meus irmãos; meus amigos que levávamos; os vaqueiros; e os trabalhadores da fazenda estávamos conversando e, de-pois de muita conversa, após termos ouvido o pífaro de taboca do seo Tonhão, meu pai pediu silêncio. Todos silenciaram, e ele, meu pai, aper-tou o PLAY do gravador para ouvirmos as nossas falas, as conversas ali travadas, o som ancestral do seo Tonhão. Foi o êxtase total, uma cena

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indescritível, se considerarmos o rosto, o deslumbramento de cada um. Deus ali se manifestara, o mito, a cosmogonia, os espíritos ancestrais orquestravam aquele evento.

Talvez, se fosse hoje, nada de extraordinário aconteceria, ainda mais por se tratar de ouvir a própria voz, uma simples gravação não cau-saria tanto entusiasmo, numa época de instantaneidade, de tecnologias que capturam a voz, a imagem, os movimentos e, para muitos, a aura de cada um.

As lembranças da infância são para sempre, não se apagam, boas ou ruins, estarão sempre presentes, como podemos ver no filme O Ca-çador de Pipas (The KiteRunner), Direção de Marc Forster, baseado no romance do afegão KhaledHosseini (2003), que conta a história de Amir (Khalid Abdalla), um garoto Pashtun rico de WazirAkbar Khan, distrito de Cabul, que é atormentado pela culpa de ter traído seu amigo de infância, Hassan, filho do empregado do seu pai, Hazara Uma histó-ria comovente, de perdas encontros e desencontros.

Falo do filme, porque foi ele que me fez reviver este fato do gra-vador, uma história não de tristeza, mas de alegria, de boas lembranças, quando silenciávamos para ouvirmos a nossa voz, amparados pela luz das lamparinas, dos candeeiros e, muitas vezes, da lua cheia que nos acompanhava. Uma lembrança gostosa de descoberta e aprendiza-do. (04/03/2008)

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ENCONTRO DE AMIGOSPara Madel Nolêto Perna

Fui o primeiro a chegar, tudo era silêncio, as luzes ainda estavam apagadas. Entrei, deixei alguns livros sobre a escrivaninha, sentei-me e fiquei esperando para ver quem entrava depois de mim.

Era muito cedo, li alguns textos, fiz algumas pesquisas, conferi a manchete dos principais jornais, e esperei. Por algum momento, tive a impressão de que alguém havia chegado. Pura impressão! Somente eu permanecia ali.

Impacientei-me, deixei um aviso de que eu estava presente, mas que me ausentaria por um instante. Saí, fui à padaria da esquina, tomei um café delicioso, li o jornal diário, e voltei para interagir com os ami-gos, mas nada, eles ainda não tinham chegado. Fiquei preocupado, será que eu me enganara quanto ao horário? Não! Pude ver que já passava das oito e eles não chegavam, ninguém dava sinal de vida.

Resolvi adiantar umas atividades, escrevi algumas páginas, per-maneci ali na expectativa, coloquei uma música e deixei-me embalar. Imerso que estava na música, não me dei conta de que Marcelo acabara de entrar. Chegou, permaneceu quieto, não falou com ninguém, apenas anunciou que chegara. Depois de constatado sua presença, respeitei seu desejo de ficar isolado, também permaneci quieto.

Após Marcelo, entraram Karine, Paulo e Rodrigo, todos eles pare-ciam cumprir um ritual, se portaram como Marcelo, silenciosamente. A princípio, fiquei apreensivo, imaginando que eles tivessem alguma coisa contra mim, mas depois percebi que era paranóia minha.

Lembrei-me de outras situações, de outros espaços, de outros lugares. Quantas vezes ficamos desconfiados, aturdidos, desolados, só porque alguém que a gente conheceu passa por nós, não nos cumpri-

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menta, como se não existíssemos, como se o conhecimento de outrora, o bate-papo, as piadas, as gargalhadas, a roda de amigos, nada disso im-portasse, tivesse um pouquinho de valor, até descobrirmos que a pessoa era míope e havia esquecido os óculos em casa.

Ponderei  nas minhas observações. Fiquei meio hesitante quanto a puxar conversa, mas arrisquei um “Oi!”. Não logrei êxito, a pessoa, não vou falar o nome, pois pega mal, simplesmente não me deu aten-ção, estava ocupada. Vê se pode, numa manhã como aquela, tranquila, ainda muito cedo, a pessoa já está ocupada, faz-me uma desfeita dessas. Logo para mim que nunca que lhe neguei uma palavra, uma resposta; que quase nunca me disse ocupado. Não porque não trabalhe, muito pelo contrário, mas por achar indelicado negar uma palavra para um amigo, mesmo um conhecido, ou colega de trabalho, como queiram as designações.

Continuei com o meu trabalho, quando entraram Rosana, Ma-del, Bôsco, Jádson e Maurício, todos eles de uma só vez, já passava das nove da manhã, muito tarde para um dia de trabalho, mas cada um tem seus motivos. Madel acenou com uma carinha alegre, pediu minha atenção e disse: Compadre, estou achando você muito sério hoje, o que lhe aconteceu? Achei graça da carinha, e respondi com outra carinha de tristeza, dizendo, em seguida, que de fato estava um pouco entristecido, por imaginar que ninguém me dava atenção, mas que o meu humor, depois dessa receptividade toda por parte dela, já começava a melhorar.

Trocamos mais algumas palavras, falamos do óbvio, nos aquieta-mos nos nossos afazeres, e o tempo passou. Era mesmo um dia frio, frio não somente pela temperatura do ar condicionado naquela sala, exage-radamente 17º graus, mas pelo clima que se instalara ali, não sei se so-mente da minha parte, uma vez que as outras pessoas sorriam, trocavam palavras, olhares. O que sei, de fato, é que o mar parecia não estar para peixe, muito menos para pescador.

O telefone tocou, não o meu, o da sala, e todos, absortos nos seus afazeres, permaneceram ali, sentados, totalmente alheios ao que se pas-sava exterior aos seus afazeres. Tive de me levantar, atravessei a sala, entrei na cabine de vidro, onde o chefe ficava, e atendi o bendito, digo, o

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estridente telefone. Ninguém, simplesmente ninguém, do outro lado da linha. Era mesmo uma manhã atípica. Não me aborreci, simplesmente voltei para o meu lugar e prossegui viagem nos meus afazeres.

Mais uma vez tive de ausentar-me da sala, mas deixei um recado, eu precisava ir urgente ao banheiro. Logo na saída esbarrei com a moça do café, que vinha abarrotada de garrafas e odores, contagiando todo o corredor por onde passara. Olhamo-nos, ela entrou, eu saí apressada-mente. Como diz o ditado: “um pé lá, outro cá”. Foi desse jeito, eu estava muito envolvido com o meu trabalho e tinha pouco tempo para realizar aquela atividade. A minha pesquisa, aparentemente banal, me tomaria muito tempo ainda.

Quando voltei, recebi um recado: “durante a sua ausência Mau-rício tentou falar com você”. Eu pensei comigo, esse cara é muito estra-nho. Nós estávamos tão próximos, ele sabia que eu estava ali, anunciou quando chegou, passamos, desde a sua chegada, mais de duas horas pró-ximas, para ele só puxar conversa quando eu me fizera ausente. Isso só pode ser gozação, pensei. Mas tudo bem!

Depois dessa do Maurício, eu resolvi agir. Pensei comigo mesmo: você não vai perder nada, muito pelo contrário, você só tem a ganhar. Arrisquei uma conversa com o Bôsco: olá! mas nada de resposta. O ca-marada simplesmente não me respondeu, achei-o grosseiro, mal educa-do e prepotente. Nada disso, era só julgamento precipitado, na verdade, o cara não havia percebido que eu falava com ele, estava mergulhado até a tampa nos seus afazeres, mas, após uns dois minutos, ele me respon-deu: amigo,  desculpe-me, é que eu precisava entregar um relatório ago-ra de manhã, sem falta, e tive de terminá-lo com urgência, os homens precisavam dele.

Fiquei aliviado, era só impressão minha. Talvez com os outros também ocorresse o mesmo. Cada um nos seus afazeres, prioritaria-mente o ganha-pão, depois as conversas, as piadas, as gozações. Falamos amenidades, refletimos sobre o momento político, sobre os desmandos e escândalos: tudo igual, só o disfarce é que muda, disse-me.

Perguntou-me o que eu iria fazer no final da tarde, eu disse que não tinha nada programado, que pensava em sair para tomar uma cer-vejinha. Tudo bem, disse ele, é isso mesmo, uma cervejinha. Aonde va-

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mos, perguntou-me. Não sei ainda, respondi. Que tal o Toscana? emen-dei. Perfeito, disse ele. - Então tá combinado, respondi. Voltamos para os nossos afazeres.

Depois daquele caloroso bate-papo, resolvi passar tudo a limpo, sem receio nenhum, chamei para conversar: Karine, Rosana, Jádson, Paulo, Rodrigo e Marcelo, com todos eles tive papos para lá de amis-tosos, reconhecemos que estávamos em dívida uns com os outros, que precisávamos sair, nos falar mais, foi quando eu lhes comuniquei que havia marcado com o Bôsco, no Toscana, eles acharam maravilhoso. Combinamos às seis.

Eu simplesmente estava feliz, quase feliz, pois ainda faltava o Maurício, que estava ausente. Resolvi ligar para ele, falou-me que teve de sair às pressas, pois tinha uma audiência às 9h30, e que não podia se atrasar. Falei do nosso encontro, ele acenou positivamente.

Estavam o Jádson, o Maurício e a Karine, todos muito anima-dos, quando eu cheguei. Abraçamos-nos, foram minutos de sorrisos e brincadeiras. Nisso foram chegando os outros: Paulo, Rodrigo, Marcelo, Rosana e Madel. Foi uma grande festa, juntamos mais duas mesas, e a diversão havia começado sem tempo para acabar. Varamos a noite, já passava das duas, quando resolvemos ir embora.

Embalados pelos chopes, nos despedimos com promessas de nos encontrarmos mais vezes. Desejamo-nos boa sorte, felicidades. Mais uma vez, abraçamo-nos, pedimos a atenção de cada um ao volante, e o cuidado com os bafômetros. Em coro, cantamos:  Se vai dirigir, não beba; Se vai beber, não dirija, e completamos: mas se já bebeu e tem de dirigir, vá belezinha pra casa. Foi quando a Madel falou: Amigos, a amizade tem de ser presencial, vamos nos encontrar mais vezes, chega de Messenger.(2008)

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RELIGIÃO, XENOFOBIA,SEXO E LITERATURA

Quando me contenho, me tenho; quando me solto, sou óbvio.

(Chico Perna) 

Esta semana, tivemos aqui na Revista Bula, apaixonadas discus-sões sobre os mais variados temas, a começar pelo da existência ou não de Deus. Outro papo foi um texto - dito “xenófobo” pelo Angelini - es-crito pela minha amiga Cássia Fernandes. Também presenciamos um mini diálogo - entre o Braz e o Flávio Paranhos - versando sobre a arte do elogio nas terras goyazes. Um espaço riquíssimo, digno das boas ca-beças que aqui vêm, mesmo que seja para tratar de amenidades.

Apesar dos temas profundos aqui tratados, nesta edição particu-lar, questões metafísicas deram o tom da conversa, exaltaram os ânimos, até porque discutir religião, como estamos cansados de saber, sempre traz opiniões apaixonadas. Tudo bem, cada um na sua, ou quem sabe, dependendo dos embalos noturnos, na dos outros.

E por falar na dos outros, quem diria, o Ronaldo, o grande astro das estrelas, foi logo se envolver com meteoros, e olha que meteoros. Agora o Rapaz está deprê, perdendo alguns contratos, sem coragem sequer para processar quem quer que seja. Ao Fantástico, disse que se fosse processar alguém se auto-processaria. Boa, né? Mas boa mesmo é a do travesti que terá sua autobiografia lançada por algum maluco, o que não é de assustar ninguém, porquanto neste país qualquer medíocre vira celebridade. Perdemos o senso! E ele, o fenômeno, perdeu a sorte: nem o trevo de quatro folhas na virilha pôde salvá-lo. Aliás, deu azar, já que o seu algoz disse ter beijado várias vezes aquelas folhinhas.

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Mas a notícia do Ronaldo não foi a pior, ele tem dinheiro, tem poder e a mídia. Não sofrerá tanto. Agora, o duro são as crianças maltra-tadas e mortas aqui e fora do Brasil, como o caso daquela austríaca que viveu sob o jugo do pai-monstro, por muitos anos. Dura é a condição subumana das pessoas que dependem de barcos para o seu transporte na Amazônia. Duros são os bebês no freezer daquela mãe em Wenden, Alemanha.

Dizem que a vida imita a arte, podem até dizer, mas há muito que a arte não é mais referencial para nada. A vida tem sido muito dura e cruel, perdeu-se o senso de tudo. Mata-se sem dó e com requintes de uma crueldade que não imaginamos. Tortura-se com a maestria de quem educa. Roubam-nos a esperança, a alegria, o entusiasmo para acreditar que as coisas podem melhorar.

Tudo parece desmoronar, até ouvirmos a história de Esaú e Jacó. Não a história bíblica, nem a machadiana, mas uma história de seres reais: dois meninos pobres em recursos materiais, mas ricos em espírito e determinação, nos provando que as dificuldades podem, sim, ser ven-cidas, quando se tem o apoio da família. Que o estudo é e será sempre uma possibilidade de melhoria de vida, um caminho para o desenvolvi-mento humano. Esaú, Medicina; Jacó, Ciências Sociais.

Esaú foi aprovado em primeiro lugar no vestibular de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Anda meia hora a pé, para pegar um ônibus, e, depois, de ônibus, anda mais uma hora, até chegar à Universidade. Jacó, da mesma forma, também empreende essa jornada, para cumprir os créditos no curso de Ciências Sociais.

Esses meninos são mais do que reais, são filhos de país que lêem, pais que valorizam o conhecimento, que sabem, como diz meu amigo Pedro Luzt, referindo-se à sua mãe, “que uma caneta pesa bem menos do que uma enxada e pode mudar vidas”. É o que estamos vendo. Quan-do a família é consciente da importância da leitura, valoriza a educação, os estudos, certamente os filhos herdarão esse gosto, saberão, também, legar aos seus filhos essa corrente redentora da mediocridade humana.

Pois bem, experiência como a dos garotos de Recife não são so-litárias. Na Bahia, mais precisamente no sertão, um professor de Lite-ratura, ex-professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, preo-

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cupado com o desenvolvimento das pessoas de sua cidade, não hesitou em levar para lá todo seu acervo literário, mais de cinco mil livros, que estão transformando o cotidiano da cidade, transformando vidas, possi-bilitando aos seus pares a possibilidade de também se tornarem leitores críticos do mundo.

Em Natal, o inusitado, o juiz Mário Jambo, da 2ª Vara Criminal da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, sentenciou que Paulo Henrique da Cunha Vieira, Ruan Tales Silva de Oliveira e Raul Bezerra de Arruda Júnior terão de estudar para continuar em liberdade provisória. Os três foram presos durante a Operação Colossus. Em agosto de 2007, quando a Polícia Federal prendeu 18 pessoas acusadas de integrar uma quadri-lha especializada em roubar senhas de correntistas de bancos pela inter-net e falsificar cartões de créditos. Os acusados terão de ler três livros de literatura e, a cada três meses, eles terão de entregar um resumo de dez laudas dos livros indicados pelo juiz. As primeiras obras a serem lidas são A hora e a vez de Augusto Matraga, último conto do livro Sagarana, de Guimarães Rosa, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

Três experiências maravilhosas - os pais de Esaú e Jacó, o profes-sor de literatura e o magistrado de Natal - que fazem a diferença, que nos levam a refletir sobre o caminho da leitura, e que dariam uma bela discussão aqui na Bula - para lá da metafísica. (07/05/2008).  

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NELSON DA LUZ, A CÉU ABERTO

Em outubro de 2011, Nelson Renato da Luz, um cidadão brasilei-ro, miserável, morador de rua, foi preso ao tentar furtar placas de zinco da estação República do metrô de São Paulo. Dois dias depois, a juíza da 14ª Vara Criminal da Capital converteu o flagrante em prisão preventiva e, posteriormente, por intercessão de alguns advogados, defensores dos oprimidos, descobriu-se que o “meliante” era inimputável, por sofrer de transtornos mentais, o que fez com que o relator da 1ª Câmara de Direi-to Criminal cogitasse interná-lo num hospital de custódia e tratamento, mas concluiu que tal medida só se aplicaria nos casos de crimes violen-tos ou praticados com grave ameaça, o que não era o caso de Nelson, daí a decisão de converter a prisão preventiva em prisão domiciliar.

Até aí, tudo bem, o hilário nessa história toda é que o mendigo é morador de rua, sem teto, sem residência fixa, sem “domicilio”, vivendo a céu aberto, quando não, sob as marquises dos prédios da grande cida-de de São Paulo, não podendo, portanto, cumprir prisão domiciliar aos moldes da Justiça Brasileira, já que prisão domiciliar pressupõe perma-necer em casa, sem direito de sair à rua, o que, no caso dele, contraria a determinação do juiz, e o coloca na condição de descumpridor de uma ordem judicial, podendo ser preso a qualquer momento, mesmo já es-tando preso.

Pensando de outra maneira, já que sua prisão é domiciliar e ele é um sem-teto e vive nas ruas, pela lógica, o seu domicílio são as ruas, sendo assim, não poderá, em hipótese alguma, ser considerado um infrator da lei, uma vez que das ruas não se ausenta, nelas per-manece, mesmo sem ter consciência do que seja prisão domiciliar; mas é certo que saiba muito de ausências, de privações, de frio, de fome e de abandono.

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Não sabemos o que se passa na cabeça de ser que furta placas; não sabemos com pretensão ele as furtou. Talvez, quem sabe, tenha fixação pelos signos, pelos símbolos, pela linguagem. Ou mais simples, queira apenas proteger-se das intempéries: do frio, da chuva, dos ditos “huma-nos”, empedernidos pela própria estupidez. Ou, talvez, sonhasse mesmo com um cantinho, um abrigo para si, onde pudesse cumprir a sua pri-são mental, o que, por ironia o levara à prisão e ao constrangimento de cumprir uma pena a céu aberto, passagem que me faz lembrar um dos maiores poetas da língua Portuguesa, o goiano José Décio Filho, que insistia em vender um terreno, que possuía em Goiânia (se não me falha a memória), ao também escritor e imortal da ABL, Bernardo Elis, que, não resistindo aos inúmeros apelos do amigo, fora conhecer tal terreno, estacando admirado ante a pequenez da gleba, o que o fez interrogar José Décio: - É este o terreno, Zé? No que José Décio respondeu: - Já viu o tamanho do céu?

Assim como em José Décio Filho, talvez, para Nelson, o céu seja o limite, onde poderá refestelar-se com alguns flashes de sanidade, sem os privilégios dos “ladrões sofisticados”, que usam terno e gravata e têm foro privilegiado e nenhum sentimento. (15/03/2012)

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SERES DA RECEPÇÃO

Depois de vencer a oralidade, que foi fundamental para nos dar conta de um passado remoto, com seus ritos iniciáticos e escatológicos, suas crenças e mitos, o homem empreendeu pesquisas, as mais diversas, sempre buscando a melhor forma de expressão, que culminaria com a invenção da escrita pelos sumérios e egípcios, e evoluiria até o ano de 1522, com a publicação do primeiro caderno de caligrafia pelo italiano Ludovico Arrighi, para chegar aos nossos dias com as tecnologias mais avançadas.

Foram séculos de oralidade até esta maravilhosa invenção: a es-crita e, posteriormente, as várias formas de publicação, de impressão. De lá para cá, o homem levou anos para aperfeiçoá-la, procurou com-preender o seu tempo, comparar épocas, atitudes e comportamentos. Conheceu estilos, imitou-os, para depois desenvolver o seu. Um proces-so lento e solitário.

O percurso de uma construção escrita é, muitas vezes, compli-cado. E mbrenha-se em matas densas, sentenças várias, tratados e apa-rentes irresoluções. Há de se buscar o melhor ângulo: ponto de vista, para chegar aonde se quer chegar. Escrever é necessário, principalmente quando se tem o que dizer, porquanto requer concentração, conheci-mento, insistência e persistência, mesmo para o factual.

Escreve-se hoje para repercutir amanhã, um amanhã tão impre-ciso quanto aquilo que virá a ser fato. Um amanhã que se reportará ao hoje, que já será ontem e, mais uma vez, um outro fato, muito mais importante, ganhará status de novidade e tornar-se-á providencial para matar a sede de leitura (ou de informação) dos carentes leitores de uma vida sem graça: seres da recepção.

“Nenhum texto é gratuito”, já disseram, mesmo porque as impres-

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sões que carrega refletem a intenção de quem o escreve, ou para quem se dirige. Afinal, toda impressão traz um ponto de vista e, ao leitor, cabe refazer os caminhos, buscar o foco, aceitar ou refutar o dito. Mas, para isso, há de se compreender o escrito, o que, de certa forma, proporciona a quem se aventura por esse campo, o da leitura, uma ampliação das coisas, dos fatos.

Escrever por vocação quase sempre é prazeroso. Mas não se pode deixar enganar ao acreditar que talento é tudo. Ledo engano, talento facilita, mas nada substitui o conhecimento pela leitura, pelo estudo. Escrever, como navegar, ao contrário de viver, deve ser preciso, caso contrário, corre-se o risco de ser abatido ou trombar em uma grande rocha da incompreensão.

Muitos tentam dizer, mas, infelizmente, patinam e não saem do lugar. Outros falam, falam; ou melhor, escrevem, escrevem e não dizem nada, obra da tautologia, do despreparo. Uns citam, citam e se perdem em remorsos. Quanto papel é depositário do lixo gerado à mercê da cola, da cópia, do sem-sentido. Quantos fantasmas perambulam à es-pera de algum endinheirado com vontade de “ser lido”. Pois, escrever, também é forma de imortalidade. Não é preciso ter talento – como nos fazem crer as academias.

Depois de tanto caminhar, inquietar-se, procurar a melhor forma de expressão, vive-se, agora, a glória da instantaneidade, da precisão tec-nológica, mas, ao mesmo tempo, parece haver um desinteresse pela ma-téria mais densa, pelo estudo mais aprofundado. As pessoas têm pressa em dizer, em viver, estão fartas de informação e fofoca, mas ausentes de criticidade e reflexão. Tropeçam na língua, na linha e morrem às mar-gens do texto.(22/07/2008).

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VIA CRUCIS

O ápice do amor é a morte, diz George Bataille no seu livro O Erotismo, pois, segundo ele, para que uns tenham vida, é preciso que outros seres morram, e isso só se dá no paroxismo do amor, aqui entendido como a força de Eros: vida, em oposição a Thana-tos, morte.

Se a morte é a única certeza que nós temos com relação ao futuro, o que nos parece óbvio, a ausência que ela provoca pode ser relativa, ou melhor, o que se supõe como fim, pode ser apenas o começo de uma perpetuação.

O corpo é vital para o espírito aqui na terra. A terra é o es-pelho desse corpo quando tudo se acaba. Viver, sofrer, seguir em frente, eis o que o sentimento de vitalidade nos provoca, já que as paredes são apenas ilusões, barreiras materiais para onde correm os homens.

O que sabemos da vida, a não ser que a possuímos até perdê-la? Melhor dizendo, como encaramos o nosso dia-a-dia e refletimos o nos-so modo de existir? Não estaríamos distantes demais daquilo que seria considerado ideal para um ser humano?

Quantas vidas ainda teremos de viver? Quantas catástrofes te-remos de presenciar? Quantos pilantras teremos de eleger para que consigamos entender o verdadeiro sentido da nossa existência? Talvez milhares, porquanto o homem parece não querer enxergar o lastro de destruição por ele deixado.

Pensemos nas guerras, na fome, no tráfico de seres humanos. Pensemos do poder de potência dos negociadores de armas, nos obtu-sos governos que se alastram pelo mundo afora. Pensemos na explora-ção sexual de crianças e adolescentes, nos desvios do dinheiro público,

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nas licitações fraudulentas, nos traficantes de drogas, soldados da des-truição.

Muita coisa ruim tem tentado se perpetuar no mundo, mas as almas de boa vontade, os anjos da boa nova têm insistido nas ações que valorizam o ser humano, têm buscado a preservação da vida, a valori-zação da solidariedade, o amor incondicional entre os povos.

Talvez o que tenhamos feito tenha sido pouco, mas não em vão. Cada olhar de apoio, cada palavra de encorajamento, cada gesto de so-lidariedade, tudo isso tem uma importância imensurável, tudo isso é capaz de transformar vidas, tanto de quem doa quanto de quem recebe. São gestos como esses que nos dão a dimensão do que é ser verdadeira-mente humano, a força de Eros em toda sua plenitude, com toda a sua força, para o reaprendizado de existências.(08/07/2008).

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ATÉ AS PEDRAS CANTAM

Minas Gerais já legou ao Brasil grandes nomes no campo das Artes. Na Literatura, destacamos Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Autran Dourado, Ziraldo, Ruy Castro, Mário Palmério e tantos outros; nas artes, mais especificamente na Música, os valores também são grandiosos, para apenas exemplificar, falemos de Milton Nascimento, Lô Borges, Toninho Horta, Flávio Venturini, Beto Guedes, Wagner Tiso, os grupos: Skank e Jota Quest.

Quando falei que Minas já legou, poderia ter mencionado outros nomes tão bons, mas sem o peso midiático, sem o conhecimento devi-do, sem a valorização, ainda do belo e grande trabalho que desenvolvem. Sei muito bem que o Brasil desconhece o Brasil, como bem sei, também, que Minas Gerais desconhece muito dos seus talentos artísticos, como é o caso do Mestre Obolari, como é conhecido o músico e professor uni-versitário Geraldo MagellaObolari de Magalhães: Matemático, Mestre em Planejamento e Gestão Ambiental,e, para completar, piloto privado de avião.

As estações, a natureza, os nomes e as coisas vivem em perfeita harmonia na musicalidade marcante do Mestre Obolari, nelas estão o ritmo, a leveza e os tons, colhidos na alegre infância, na paisagem mi-neira rica em fauna e flora; em mitos e lendas, em muita musicalidade e força telúrica.

Obolari, que atualmente vive em Palmas – TO, no Centro-Norte do Brasil,  é um cara tranqüilo, de bom papo, muito culto, apaixona-do por literatura; um grande conhecedor da obra de Nelson Rodrigues. Obolari, com sua visão perquiridora, enxerga bem além da simples realidade, traz essa visão apurada para introspecção de suas músicas, sempre melodiosas, que falam de amor, relacionamentos e reencontros.

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Quem ouve Obolari, sem sombra de dúvidas, tem um registro para sempre das melodiosas baladas que, por certo, ainda embalarão muitos casais, serão temas de muitos romances e comporão a alegria das belas manhãs tropicais.

Será preciso conferir, em breve, suas belas canções, como: “Ja-mais” e “FlyAway” em parceria com Ed Porto; “Encontro “Até as Pedras Cantam”; “Doroty (Querendo Dizer)”; “Amor Interestelar”, já que o mú-sico prepara seu primeiro CD, uma obra que já sai madura e com muita qualidade. (03/07/2008).

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ÚLTIMAS PALAVRASPara M.Cavalcanti

Já passava das 9h, subitamente fora acordado pelo barulho do despertador, levantou-se de sobressalto e olhou apressadamente para o relógio no criado da cama. Era preciso correr, não tinha muito tempo. Olhou-se no espelho da sala, vira um rosto amassado pela longa noite de sono. A barba por fazer, não ficaria bem ir assim. Abriu o armário do banheiro, pegou uma gilete, creme de barbear, tudo muito corrido, tudo muito depressa, tudo muito preciso.

Era preciso acelerar, o carro cantou pneu, saiu em disparada. Nada poderia detê-lo, não fossem os sinais que sucessivamente iam se fechando. Conspiração! Pensou. Não adiantava impacientar-se, mas im-pacientou-se. Esmurrou o volante, saltitou no banco do carro. Ensaiou, numa seqüência rápida, engatar todas as marchas, mas nada. O carro permanecia imóvel, apesar de bufar pelas aceleradas do seu condutor. O homem, a máquina e o sinal.

Lembrou-se do que lhe dissera a viúva, logo após ficar sabendo do acontecido: “ele estava bem, fez um lanche às 15h, tomou banho às 19h, tomou um copo de leite às 20h e viu televisão. Às 22h, beijou-me, se disse indisposto, e foi se deitar. Ninguém sabia de nada, ele nunca havia mencionado que sentisse qualquer coisa. Nenhuma dor, nada! Conti-nuava como sempre, seguia a sua rotina no atelier, continuava muito visitado por amigos, discípulos e colecionadores.

Os sinais foram se abrindo, um a um, e o carro arrancou com toda força. Não poderia atrasar-se. Afinal de contas aquela seria a última homenagem que faria ao seu grande amigo. Acelerou fundo, passou sob o viaduto em direção a Bela Vista, passou em disparada pelo autódro-

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mo, não parou no sinaleiro que, de súbito, se fechara. Precisava chegar a tempo. Precisava chegar a tempo.

Retornou ao que lhe dissera a viúva: “Nos últimos dias, eu o achei estranho, há muito que ele não abria um velho armário onde guarda-va suas primeiras telas, as quais não mostrava para ninguém”. - Falava, emocionada, a mulher – “Chegou mesmo a dizer: Eu quero que a Celina fique com esta tela, se me esquecer, não deixe de dar a ela”. O quadro era um velho Dom Quixote montado no seu Rocinonte, assinado em letras vermelhas, datado de dezembro de 1963.

Muitos carros estavam estacionados ao longo da pista lateral do cemitério, ele deu a seta, indicando que viraria para o lado esquerdo. À sua frente, do outro lado, uma placa com letras grandes e prateadas em que se podia ler: “Cemitério Memorial”. Suspirou fundo, esperou um carro que passava no sentido contrário da pista, mais uma vez acele-rou com vontade, atravessou a pista, virou para direita, muitos carros, muito movimento. Procurou um lugar no estacionamento, parou a uma quadra da sala de velório. Desceu do carro, caminhou rápido, estava um pouco alterado, temia não mais encontrar o amigo, apressou o passo, passou por um longo corredor, quando encontrou um conhecido, per-guntando pelo amigo morto, obteve como resposta: “não, ainda não o enterram”.

Estava com sorte, pensou. Passou por duas salas, apressou o passo mais ainda, chegou à sala, onde o amigo estava sendo velado, no mo-mento em que estavam fechando o caixão, na hora em que já estavam colocando os parafusos que prendiam a tampa, no exato momento, ele estacou e, ali mesmo, gritou: “Por favor, não fechem! Não fechem! Eu preciso vê-lo pela última vez, por favor! Houve um silêncio, as pesso-as se entreolharam, o caixão foi reaberto, quando ele, se aproximando do caixão, começou um discurso, a princípio desconexo, para depois ir tomando forma, tornando-se inteligível. Na medida em que falava se lembrava da viúva: “ele falou muito da exposição que fariam em home-nagem a ele, a homenagem que você estava organizando. “Ele gostava muito de você”.

Todos ali, comovidos e atônitos, presenciavam aquele homem na sua última homenagem, nos arroubos da meia idade, no enlevo das pa-

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lavras, menos alguém, um homem alto, de uns quarenta e seis anos, que meneava a cabeça negativamente, enquanto ele pronunciava suas comoventes palavras: “Ele foi nosso mestre, todos nós, se não a maioria, aprendemos com ele. O nosso pai no desenho, na pintura, um verdadei-ro mestre na acepção mais elevada do termo. Obrigado mestre e amigo”.

Enquanto proferia suas últimas palavras, absorto naquilo que acreditava, não observou as pessoas mais próximas ao caixão, atônitas, pareciam não entender aquele discurso esquizóide, ainda mais vindo de pessoa tão culta. Só se deu conta quando o homem se aproximou e falou baixinho ao seu ouvido: “Pedro, Pedro, quem está aí não é o seu amigo Cervantes, quem está aí é mamãe, a minha mãe, você entrou na sala errada”. Quando se deu conta do feito, não sabia o que dizer e não disse, naquele momento, apenas uma sentença fora pronunciada: “ma-mãe, mamãe! a vovó tá dormindo. A vovó tá dormindo”.(28/06/2008)

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TERNURA, TALVEZ SEJAO QUE NOS FALTA

Cada um deve comportar os seus abismos, apesar da insuficiên-cia de muitos, que, a reboque, carregam uma dor bem maior do que suportam e, por isso, precisam de ajuda, de compreensão, de quem lhes garanta o pão de cada dia e a doce palavra de consolo.

Talvez não saibamos, ainda, da nossa impotência. Do tempo que, célere, nos conduz. Das tragédias diárias que teremos de enfrentar. Da dor progressiva de quem chora a depressão. Do triste olhar de quem há muito perdeu a esperança. Pouco sabemos da nossa desumanidade, já que o nosso interesse é pelo corpo, pela forma, pelo poder e dinheiro.

Se pouco sabemos, é porque a nossa ignorância é bem maior do que a vontade de enxergar a miséria humana - tão próxima de nós, tão dentro de nós – colocar-se no lugar do outro. Ser mais solidário, altruís-ta, sensato e irmão. Ninguém vence o mundo sem vencer-se a si mesmo. Ninguém dá carinho sem conhecê-lo.

Nada do que fazemos passa incólume aos olhos da natureza. Toda ação gera uma reação, isso é mais do que sabido. As nossas inimizades são do tamanho dos inimigos que possuímos. Os nossos delírios, aos olhos alheios, não passam de loucura. Ama-se o aprazível, o que é belo, o fácil.

Quantos se julgam dono do saber, do conhecimento, do estabe-lecimento que dirigem, da repartição onde trabalham. Quantos maltra-tam por insegurança, por incompetência e, por que não dizer, por pura maldade. Quantos, por inveja, desprezam, ofendem e, covardemente, perseguem.

Amar aquilo que se faz é, no mínimo, compreensível, agora, acei-

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tar o outro nas suas diferenças, nos seus delírios, na sua impaciência, são atitudes enlevadas, dignas de humanidade, de sensatez, de libertação.

O mundo, as artes e o saber não têm donos, estão aí para os ho-mens de fé, de coragem, de determinação e sensatez, apesar dos abutres que rondam as nossas cabeças tentando uma brecha para sua devoção.

Ternura, talvez seja o que nos falta, ou pelo menos, um pouco da-quilo que necessitamos para enfrentar a turbulência da nossa desuma-nidade. Juntando a ela um pouco de carinho, afeto, atenção e empatia, sem sombra de dúvidas, o mundo tornar-se-ia mais mundo e menos imundo. (21/06/2008).

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A BELA MOÇA DA PRAÇA 

Eu sempre procurei observar as coisas ao meu redor, o mundo que me cerca, as pessoas com as quais convivo, os traços que compõem as raças, os textos, os mais variados, a natureza na sua totalidade, dentro do universo que eu alcanço. Tudo atendendo a uma ordem que só eu en-tendo, mas que, para muitos, é uma total desorganização, já que penso por imagens, logo a minha vida é pura imaginação, apesar do cartesia-nismo que impera à minha volta.

Tudo nos serve, de alguma forma, para alguma coisa. A leitura mais banal, o palito de picolé, ali jogado, a lata de óleo fora do lugar, os riscos na parede, a parede descascada, um pé de chinelo no monturo, um olhar enviesado, uma mulher embevecida, um bêbado desconcer-tante, um otário na sua prepotência, um pobre diabo na sua impavidez. Tudo tem uma serventia neste mundo.

Se tudo tem uma serventia, é preciso saber observar, ir além do convencional, e isso um bom bar ajuda, e foi o que fiz, pois sempre me considerei um homem dado à tardes etílicas, a convescotes “sabadais”. Um ser de Brahmas e limões, de boêmias e ilusões, postado desde muito cedo numa mesa do Canindé, na Praça da Cirrose, quando ela entrou, um tanto plácida, cabelos a altura dos ombros, pele morena, curvas to-nais, olhar de perscrutação, altura bem acima do efeito dos meus goles, e um jeito de pronunciar que aprisionava. As palavras não conseguiriam traduzir o seu cheiro, mas tudo bem, eu estava bem ali.

Ela chegou, não sei de onde veio, mas foi logo passando por mim e sentou-se a três mesas da que eu estava sentado. Todos a olhavam, e eu, desde o momento da sua chegada, vibrava de emoção, mas não sabia o que fazer. Foi quando apareceu uma menina, dessas que vendem flores nos bares e desafiou-me a comprar um rosa, dizendo que a moça, ela

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mesmo, havia pedido. Não acreditei, mas também não me calei, propus o seguinte: - se você entregar um bilhete para ela, e ela gostar do escrito, eu compro a flor e ainda te dou um cruzado, ou cruzeiro? Não me lem-bro mais. Só sei que ela topou. Pedi-lhe um tempo para compor o bilhe-te, e ela ficou de passar mais tarde (dez minutos) para levar o bilhete, e foi aí que eu pasmei, já que não me vinha nada à mente para compor o que eu julgara a minha maior arma de conquista: a poesia.

Beberiquei a cerveja, chupei o limão, tomei um pouquinho da pinga de engenho (por que de engenho e arte, como diria o Velho Ca-mões, em mares tão tenebrosos) e desafiei a procela, os mares bravios da minha ignorância, até lembrar-me, de súbito, de uma velha música de infância: Maria Bonita. Lembram: acorda Ma..ri..á bo.ni..ta/le..van.ta, vai fazer o ca...fé. Valha-me Deus! Isso é coisa pra se lembrar agora, pensei comigo, mas a música insistia em permanecer ali, não abrindo espaço para mais nada.

A menina da flor olhava-me insistentemente, e nada, nenhum pouquinho de inspiração, e eu correndo o risco de perder a moça para alguém mais ousado que, mesmo sem versos ou bilhete, pudesse ir até ela e simplesmente, por magnetismo, seduzi-la, aí tudo estaria perdido. Foi aí que eu deixei de lado o preconceito e comecei a cantarolar, can-tarolar a tal Maria Bonita, quando, de repente, eis que surge o grande verso, a sentença que me condenaria ao paraíso, a eternidade: Quem não adora a cor morena, morre, sonha e não vê nada...Estou acordado, assinado: Chico Perna.(09/06/2008)

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UM OLHAR SOBRE AS DIFERENÇASa muda da minha rua falou-me das estrelas,

com ela aprendi a escutar o rio da minha infância.

Ao nascermos, a primeira leitura que fazemos do mundo é a lei-tura sensorial: os sons, as cores, os cheiros, a temperatura, as texturas, os sabores. Daí, passamos para abstração do mundo, começamos a sair do concreto para o abstrato, vamos eliminando as figuras; passamos ao simbólico, às sentenças, ao descortínio do que se nos apresenta implíci-to, nas entrelinhas. Tornamo-nos críticos do mundo e das coisas, senho-res do nosso nariz, da nossa boca, do nosso paladar, do nosso cheiro, do nosso som. Espelhos de uma sociedade perfeita, aparelhada de um esta-do perfeito, de uma justiça perfeita, de um legislativo perfeito, portanto de homens perfeitos. Democraticamente perfeitos.

Descoberto um mundo não tão perfeito, ou quase imperfeito, modificamos a nossa crença, antes absoluta, para um aprendizado de realidades outras: os nossos pares são tão imperfeitos quanto nós, mas não se dão conta disso, até serem colocados à prova da convivência, quando os pré-conceitos afloram, quando a razão é imperativa e degra-da, alija e maltrata.

Começamos a nos redescobrir como seres sensíveis, dotados de sentidos e de intuição; capazes de sentimentos e de reflexão. Passamos a valorizar o que somos e o que temos. Passamos a olhar o mundo, outra vez, com os olhos infantis para o descortino de um tempo ainda não corrompido. Um mundo vibrante, de formas e  cores; de sons e cheiros. Redescobrimos a beleza do simples, para uma contemplação de pleni-tudes.

Reabilitamo-nos para a convivência plena: sem preconceito, sem

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discriminação, sem qualquer estigma. O outro nas suas particularida-des, com as suas diferenças, com as suas idiossincrasias. O outro que - ao nos mostrar aquilo que somos - nos habilita para recifração de um mundo mais humano e pleno.(07/06/2008)

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ESPAÇO E PRECONCEITO

Há muito que ouço e leio julgamentos do tipo:  “esses são poe-tas menores”, “aqueles são poetas maiores”. Fale-se muito, classifica-se sem critérios, abusa-se de chavões, mas consistentemente nada se tem de concreto. Sobressaindo-se os ditos “Grandes” os “consagrados”, os “intocáveis”, donos de uma obra magistral. “A melhor de todas”. Já ouvi muito dos  “ditos consagrados”  e olha que as academias, os salões, as agremiações, estão cheios desses imortais indivíduos, tão sonhadores nem quem tempo têm para realidade.

Para a realidade literária, aquela que bate à porta, que clama para ser lida e ouvida. Aquela que está na rua, nas velhas cidades, na univer-salidade dos becos, no lirismo da despedida. Uma realidade que pulsa na Internet, nos blogs, nos fóruns, nas revistas eletrônicas, exemplo, a Bula.

Lembro-me de ouvir por aí, da boca de muitos intelectuais, que eles jamais escreveriam para blogs, para revistas eletrônicas, que isso seria rebaixar-se; que tais espaços não tinham a nobreza para compor-tar tamanha erudição e imortalidade. Que bobagem! Eu dizia, e ficava observando, escrevendo, refletido. E vi quando as coisas começaram a mudar, quando os nossos intelectuais, os renomados, passaram a des-cobrir o alcance que tem a Internet. Descobriram também que revistas como esta não se faz do dia para noite, é preciso paciência, seriedade, determinação e bom conteúdo.

A propósito do que estou dizendo, lembrei-me de Julio Cortázar, escritor argentino, numa entrevista concedida ao jornalista uruguaio Omar Prego, ao ser perguntado sobre as influências sofridas pelos au-tores latino-americanos, e a resistência deles em aceitar tais influências, principalmente quando os pais intelectuais eram, também, latino-ame-

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ricanos. E, mais ainda, a recusa  desses escritores a escreverem o que consideravam como gêneros menores: romances policiais, rádionovelas e memórias.

A esse questionamento, que agora transcrevo, Julio Cortázar, inte-ligentemente, responde perguntando: “Será que isso não vem das falsas categorias de valores que existem na literatura, e em tantas outras coi-sas nesta vida? Porque em outro nível ocorre o caso de escritores que recusariam, horrorizados, um eventual convite para que escrevessem radionovelas. Porque consideram que a radionovela é um gênero secun-dário, insignificante, e eles não poderiam concordar em fazer uma coisa dessas. Raciocínio sumamente sofismático, porque tudo se resolveria fa-zendo boas novelas de rádio, que aliás existem(...)” e completa “(...)Em Cuba, por exemplo, mais de uma vez disse aos escritores cubanos, que se queixam de não serem editados, principalmente os jovens: “vocês se queixam porque não são editados, e na realidade vocês deveriam é to-mar de assalto e se apropriar dos novos meios de comunicação cultural de Cuba, ou seja, o rádio e a televisão.” A resposta é sempre a mesma: “Ah, isso não, eu sou poeta”, ou: “Eu sou romancista.” Consideram indig-no pôr a mão em outros meios de comunicação”. Pena não ter ele, Cor-tázar, durado para contemplar, estupefato, a explosão que é a Internet. Talvez dissesse - como diria meu pai: - Um colosso!

Rompido o preconceito, abertas as portas da interatividade, mui-tos questionamentos surgem, suscitados pelo espaço democrático que temos aqui na Bula, um desses questionamentos diz respeito ao que foi colocado logo atrás a respeito da fala de Cortázar e do que mencionei no início deste texto: o quanto somos preconceituosos quando o assunto é arte, principalmente Literatura e, mais ainda, quando essa literatura é brasileira.

Na edição passada - há uma discussão sobre o valor de alguns críticos literários, como Harold Bloom: se ele tem ou não tem compe-tência ou se é um mero modismo inventado pela mídia, como também o fora “Claude Levy Straus”. Depois disso, para atender a uma ami-ga, doutoranda, do Carlos Willian, vieram as batidas listas: “melhores obras”, “maiores autores”(aqui entraria Julio Cortázar, que era altíssimo, e que recebeu de Juan Rulfo, o seguinte comentário: “Tem um coração

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tão grande que Deus necessitou fabricar um corpo para acomodar esse coração.”), dos “melhores filmes”. Há uma repetição, as mesmas obras, os mesmos autores, algo muito fechado, desconsiderando o quanto de coisa maravilhosa existe na Literatura universal, na Literatura Brasileira Universal. Todas as obras citadas nessas listas têm o seu valor, são gran-des, sim, mas se considerarmos que são listas pessoais, são tão iguais, mas tão iguais que parecem não permitir que se fale de outras obras.

Pensemos, por exemplo, em E.T.A. Hoffmann, Juan Carlos Onet-ti, Franz Kafka, Carlos Fuentes, RuanRulfo, Autran Dourado, Murilo Rubião, Willian Faulkner, Alenjo Carpentier, e, claro, Gerardo Mello Mourão, autor do grande poema épico “Os Peãs”; do tão maravilho-so: “Invenção do Mar”; e do mais musical deles: “Cânon & Fuga”, do qual transcrevo poema a seguir e aproveito para encerrar parte desta reflexão: 

O que as sereias diziam a Ulisses na Noite do mar

Sobre a frase musical de Ivar Frounberg “Wassagen die Sirenenals Odysseus vorbeisegelte”

 Ninguém jamais ouviu um canto igualAo canto que te cantoEscuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o marSó ouvem minha voz – a noite e o mar e tuMarinheiro do mar de rosas verdes: Virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim – e ao ritmoDe teu corpo entre a cintura e as ancasMais o lençol de aromas de meu corpoEm monte de pétalas desfeito: E dormirás comigoE os que dormem com deusas                 Deuses serão 

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Vem dormir comigo                     E comigoe todas as sereias.Todas as deusas se entregamao amante que um dia possuiu uma deusae então todas as fêmeas dos homensHelenas, Briseidas e a Penélope tuahão de implorar às Musas – e as Musas a Eros e Afroditea volúpia de uma noite contigo. Não partas!                                                 Se partiresAs velas de tua nau serão escassasPara enxugar-te as lágrimas – e nuncaNunca mais tocarás a pele das deusasNunca mais a virilha das fêmeas dos homensE nunca mais serás um deus E nunca mais a melodia de uma canção de amorDos hinos do himineu:Abelhas mortas para sempre irão morarNa pedra do jazigo de ceraDe teus ouvidos cegos.Mas vemE vem dormir comigo         E comigo         E minhas mãos irmãs e todas         As sereias do mar        As sereias da terra        E as sereias dos céus.   

(21/05/2008)     

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SIGNOS EM ROTAÇÃO

Até bem pouco tempo, professor era aquele que professava algo, tinha o que dizer, valia-se da sua cátedra para incutir conhecimentos, semear o bem, os mais edificantes ensinamentos. Tempo de Mestres, não somente de títulos, mas de fato, e de artes, ser universal, de uma alma grande e profícuo conhecimento.

O que aconteceu com tão valioso ser? Praticamente inexiste. So-braram poucos e esta geração quase não teve ou tem a oportunidade de conviver com um desses, uma vez que a nossa realidade acadêmi-ca é caótica, já não comporta os grandes mestres: magister, os que aí estão, quase sempre, não passam de oportunistas de um mercado em ascensão, já que não deram certo nas suas profissões originárias, des-cambaram para uma área, que, à primeira vista, parece tudo acolher, daí a tragédia em que vivemos.

Se por um lado não existem mais os mestres, certamente não há razão para existência de discípulos, muito mais ainda num tempo de muita exaltação midiática e pouco aprofundamento nas questões essen-ciais, como pensar o outro, a solidariedade, a ética, o meio ambiente, sem falar na nossa rica e preciosa Língua Portuguesa, que de tão mal-tratada e vilipendiada, perdeu força e prestígio, um exemplo claro disso está nas universidades, mais especificamente nos cursos de comunica-ção social.

Como vemos, se não há uma valorização da Língua Portugue-sa, nem mesmo nos cursos em que ela é de fundamental importância, como jornalismo e publicidade e propaganda, quem dirá nos outros cursos, onde ela “não é tão importante assim.” Mas tudo bem! Dirão uns. - Tudo isso faz parte da modernidade, vivemos na era da imagem, precisamos dominar a técnica, e acabou! Vociferarão outros. Ninguém

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sentirá falta da Língua, muito menos dos grandes Mestres, uma vez que não se pode sentir falta daquilo que não se conhece.

A realidade é dura e triste, mas o que me dá um dó danado é nin-guém fazer nada, é deixar gente tão incompetente, sem conhecimento mínimo das questões básicas, como ensino e aprendizagem, movidos apenas pela vaidade e a ganância do mercado, passar-se por mestre, por dono do saber, conduzir pessoas, destinos, desconsiderando a própria ignorância.

Como dizem: a vida é cíclica, e, por isso, talvez, ainda venhamos, nas gerações pósteras, a reaver os mestres que se foram, reformados no ânimo e no sangue dos vindouros homens de bem, e aí, um outro ser, que também sou eu, numa crônica como esta, não lamentará ausências, mas falará de feitos e bondade, de respeito e solidariedade, tudo isso escrito em bom Português.

  *Título tomado de empréstimo ao escritor Mexicano Octávio Paz.(08/04/2008)

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O SILÊNCIO DOS INOCENTES 

A dor da gente é dor de menino acanhadoMenino-bezerro pisado no curral do mundo a penar 

Que salta aos olhos igual a um gemido calado      A sombra do mal-assombrado é a dor de nem poder chorar          

Moinho de homens que nem girimuns amassados         Mansos meninos domados, massa de medos iguais           Amassando a massa a mão que amassa a comida   

Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais

(Raimundo Sodré) 

Uma das coisas mais abjetas praticadas pelo ser humano é a tor-tura, seja ela física ou psicológica. Ato desumano, covarde, perverso e indigno. Atenta contra o que há de mais caro ao ser humano, sua liber-dade.

Pelo menos é praxe na história universal que a torturas atendam a fins vários, mas, primordialmente, o que se sobressai é a de retirar do torturado confissões sobre algo que ele sabe ou que supostamente pode-ria saber sobre pequenos delitos ou sobre crimes mais graves.

Os métodos são vários, utilizados desde muito pela humanidade, como o fez a igreja Católica naquilo a que chamou de santa inquisição - na Idade Média - quando utilizou toda forma de aparelhos de tortura, como alicates, tesouras, garras metálicas para destroçar seios e mutilar órgãos genitais, barras de ferro aquecidas e chicotes. Os métodos eram vários, o que importava era a eficácia para obter informações sobre bru-xaria, satanismo e outras loucuras inimagináveis. Tudo em nome de um deus que não era o nosso.

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Há notícias de que o padre dominicano Bernardo Guy (Bernar-dusGuidonis, 1261-1331) escreveu o livro LiberSententiarumInquisitio-nis (Livro das Sentenças da Inquisição) no qual descreve vários métodos utilizados para obter confissões dos acusados, tanto físicos como psi-cológicos, dentre os quais o de obrigar a vítima a ingerir urina e excre-mentos. 

Se na Idade Média as práticas beiravam ao rudimentar, na moder-nidade ganharam sofisticação, como as câmaras de gás ou os campos de concentração, criados pela bestial figura de Adolf Hitler. Nas ditaduras espalhadas pelo mundo, milhares de pessoas sucumbiram nas mãos car-niceiras de hediondas figuras. No nosso País não foi diferente, milhares de estudantes, pais e mães de família foram maltratados, torturados e mortos em nome de um regime de exceção.

Dos métodos utilizados pelos torturadores brasileiros, alguns chocaram e ainda chocam a todos, como seguem: Choque elétrico, Pau--de-arara, Cadeira de dragão, Afogamento, Telefone, Palmatória, Es-pancamento, Esbofeteamento, Empalamento, Queimadura com cigar-ros, Geladeira, Mordida de cachorro, Coroa de Cristo, Violação sexual, Arrancamento de dentes, Injeções de éter subcutâneas, Arrancamento de unhas, Soro da “verdade” (Pentotal), Fuzilamento simulado, Ameaça de morte (à própria pessoa, filhos, companheiros etc), Assistir à tortura de companheiros, Aplicar torturas em companheiros, Desorganização temporo-espacial.*

Como se vê, a bestialidade humana se supera a cada tempo, às vezes nos pega de surpresa, nos deixando estarrecidos, como foi o caso da menina L. de 12 anos, torturada aqui em Goiânia pela “empresária” Sílvia Calabresi, 42, que, sem sombras de dúvidas, conhecia muito bem os métodos medievais de tortura descritos acima. O que choca, além do ato covarde da tortura, é a frágil figura torturada, sozinha, indefesa, obrigada a toda forma de humilhação e dor.

O que choca é saber dos gritos silenciosos desta criança, das dores da alma que persistirão por toda vida. O que choca é a indi-ferença de tantas pessoas à dor desse ser tão fragilizado. Oh, Deus! Pelo menos o que se tem lido sobre tortura é que os torturadores buscam, a qualquer preço, a confissão de suas vítimas, confissão de

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algum delito, de alguma trama. E dessa pobre criancinha, que con-fissão ela buscava obter?

Fora brutalmente maltratada, alijada do que se tem de mais caro, o direito à infância e à liberdade. Não estudava, passava dias sem comer, trabalhava até 1h40 da madrugada, retomando o trabalho doméstico às 5h. Viveu todo tipo de humilhação, inclusive métodos medievais, como ingerir fezes e urina de cachorro. Era constantemente amarrada, quei-mada com ferro elétrico, tinha as unhas mutiladas, a língua mutilada, era amordaçada, sendo obrigada a ficar por horas com um pano, den-tro da boca, embebido por pimenta, a mesma que lhe era aplicada nos olhos.

Como deve ter sofrido esta menininha, meu Deus. Como deve ter clamado por socorro, silenciosamente. Uma coisa me chamou atenção, o paradoxo do ato: ao mesmo tempo em que torturava, que buscava não sei que tipo de confissão, tapava a boca da menina, não permitindo que ela falasse. Arrancava-lhe pedaços da língua. Por pouco não tivemos mais um serial killer, pela forma como vinha agindo, consciente dos seus atos, já havia torturado outras crianças, agora era só intensificar as sessões de tortura, até não se contentar mais com a dor física, buscando a morte.

Transtorno? Transtornados ficamos nós, ao assistirmos boquia-bertos ao sadismo dessa besta, dessa psicopata, que, ajudada pela em-pregada doméstica, Vanice Maria Novaes, 23, cometera tamanha bru-talidade. O que impressiona é que a empregada doméstica em vez de defender a criança das atrocidades da patroa, age contrariamente, e também passa a torturar a sua igual, o que nos remete a Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, no Capítulo LXVIII / O Vergalho[1], quando um ex-escravo, Prudêncio, açoita outro em praça pública e, questionado pelo antigo patrão sobre o porquê daquele ato, recebe com resposta: “É um vadio e um bêbado”, a essa fala, segue a se-guinte reflexão de Brás Cubas:

(...)Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem com-

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paixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mes-mo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do maroto!(...)

Recorremos à ficção na tentativa de uma compreensão do real, mas não há compreensão quando os casos se multiplicam, como os maus tratos do aposentado Ovídio Martinelli, de 93 anos, que sofre do mal de Alzheimer, e foi espancado pelas suas “cuidadoras” Rosânge-la Pereira Coutinho, de 44 anos, e Patrícia Santos Alves, de 25. Cenas chocantes que nos deixam indignados, estarrecidos, sofridos, principal-mente quando são cometidas contra seres tão frágeis e indefesos e, por se saber que os atos não são praticados por estranhos, mas por pessoas tão próximas, que ainda ousamos chamar de próximos e sempre ofere-cemos a outra face.

O título deste texto foi tomado de empréstimo ao filme (Silenceof The Lambs, The, 1991), dirigido por Jonathan Demme. (28/03/2008).

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ESPELHADO DE CÉU MUITO SERENO

Depois de morar em São Luis do Maranhão, Cuiabá, Palmas, Goiânia e Fortaleza, Jádson Barros Neves voltou à sua pequena cidade, Guaraí-TO, para uma jornada de intensas leituras e escritas.

Leitor de William Cuthbert Faulkner, estudioso contumaz das nossas Letras, traz na alma, um tanto quanto inquieta, os causos, lendas e mitos da Região Norte, principalmente do sul do Pará, onde trabalhou como vendedor de secos e molhados, juntamente com seu pai, já fale-cido.

Jádson, ao longo dos seus quarenta e dois anos de existência, vem construindo um trabalho de fôlego na narrativa contemporânea bra-sileira, mais particularmente na categoria conto. Detentor de diversos prêmios literários, tanto no Brasil, como no exterior, valendo destacar o Concurso Guimarães Rosa/Radio France Internationale.

Enquanto o primeiro livro não chega (ainda é para este ano) Já-dson vai se firmando como escritor, conquistando novos leitores e no-vas premiações, como recentemente o fez, nos 40 anos da UNICAMP, quando teve o seu conto “O Funil” incluído no livro “CONTOS – UNI-CAMP ano 40” (Editora da Unicamp,2007).

Ambientado num vilarejo qualquer, às margens de um rio qual-quer, da memória do autor, o conto nos fala de companheirismo e per-das. Conta a história de Suzana, viúva de Orlando, e a do seu cunhado, José, na incansável busca para encontrar o irmão que fora tragado pelo rio quando nadava de volta para canoa, após recuperar a sua vara de pesca que caíra na água.

Narrada em terceira pessoa, intercalada por idas e vindas, irrom-pendo, às vezes, o discurso direto e o discurso indireto livre. O tempo narrado compreende quatro dias na vida dos personagens, desde a Sexta

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à tarde, quando Orlando caiu no rio, o Sábado e Domingo de buscas, até Segunda feira, quando o corpo foi encontrado.

Já de início, pode-se ver a força narrativa de Jádson, as belas ima-gens com que trabalha, consubstanciadas pela força lírica do seu texto. Como se pode conferir neste trecho:

“José havia remado a tarde inteira, por mais de dez quilômetros, rio abaixo, e também havia procurado ao longo do delta, nos baixios e nos remansos e agora estava exausto. Subia a ladeira que dava no vi-larejo, onde uma lua gorda, amarela, nascia atrás da colina da igreja. Quando passava, as pessoas olhavam-no em silêncio, e José as cumpri-mentava e baixava a cabeça e as pessoas também baixavam a cabeça. Era um coro só, o coro do silêncio. José vinha adoecido daquele crepúsculo rápido e sangrento, daquele fim de inverno chuvoso, que ainda repercu-tia no horizonte em forma de relâmpagos esparsos.(...)”.

Com assomada capacidade perceptiva Jádson Barros Neves con-segue, pela plasticidade de suas imagens, compor a atmosfera propícia para o fato narrado, como quando descreve a velha casa onde moram José e Suzana e, outrora, Orlando:

“A casa onde ela morava era velha, pintada de um amarelo cor-rompido pela ação das intempéries e descascada pelo sol. Esquecida, quase abandonada há anos, suas duas portas, suas três janelas fechadas, com fendas na madeira, guardando o silêncio e a poeira de muito tempo de esquecimento”.

Assim como a descrição encimada, muitos outros belos trechos são marcadamente inesquecíveis, como o que segue: 

“Ela concordou mais uma vez com a cabeça e José foi fechando os olhos lentamente, contemplando a imensa lua amarela que sangrava perto da janela e lembrando do quanto era bonita a chuva no delta. Vi-ra-a à tarde, uma cortina escura, que cavalgou escurecendo o horizonte”.

Percebe-se aqui, pelas passagens lidas e superficialmente analisa-das, o pleno domínio da narrativa curta por Jádson Barros, a primazia com que tece as tensões nas suas histórias, sempre carregadas de muita reflexão e humanidade. Um voltar-se sobre si mesmo, revelando e enco-brindo, causando no leitor a vontade de seguir adiante, como bem nos ensina Wendel Santos:

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“O conto forma-se sob o anseio de duas tensões: o de revelar e o de encobrir. Tais tensões podem compor-se de modo o mais diverso. Há o conto que alterna revelação e encobrimento; há o conto que, de início, revela um mínimo suficiente para despertar a curiosidade leitora e, em seguida, numa ordem de crescimento constante, encobre seu objeto até o ponto em que é necessário outra vez revelá-lo(...)”

Jádson sabe muito bem do que fala Wendel Santos. Ele tem pleno domínio da técnica e da arte da escrita, sem falar no seu apurado senso estético. Adentrar a sua obra é permitir-se participar desse jogo, dessas tensões, para uma jornada de acontecimentos. O leitor está convidado a conhecer mais de perto o poder criativo deste autor tocantinense, que, sem medo de errar, faz parte do que de melhor há na Literatura Brasi-leira. Boa leitura!.

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ASCENSÃO E QUEDA

O que leva um indivíduo a expor o filho ao vexatório papel de se transformar na bola da vez na imprensa nacional, ainda mais se pensar-mos que este filho tem apenas oito anos, e que tal atitude poderá marcá--lo negativamente para o resto da vida? Dizem as más línguas que tudo foi arquitetado pelo pai, que é candidato a vereador e queria um tempo na mídia. Não sei se devo acreditar nisso. Seria patético admiti-lo, mas vindo do “ser humano”, tudo é possível. 

É difícil julgar, e acho que não devemos fazê-lo, mas o caso tor-nou-se público e merece as nossas considerações. De que lado estamos? Ou será que não devemos tomar partido e proceder de uma perspectiva de quem vê e se indigna, mas se cala? Não sei, sinceramente, não sei. Talvez para compreendermos um pouco mais como tudo isso funciona, precisemos compreender a lógica do mercado, do capital.

Por Deus, eu já sofri muito sendo professor universitário, princi-palmente quando indivíduos ali chegam cheios de sonhos, de promessas e de ilusão. Caem de pára-quedas e ali permanecem, como o quadro, a carteira, o giz, para lembrar o contundente ensaio do professor Nilton Mario Fiório, “Ser ou estar, eis a questão?”, em que reflete sobre o aluno histórico e o aluno geográfico.

Como no ensaio, pude conviver com tantos indivíduos que não sabiam por que estavam ali, não liam, mal escreviam e, ainda por cima, se davam ao luxo de querer boas notas. Triste, muito triste. Tristíssimo! Principalmente se pensarmos que eles conseguiram legalmente ingres-sar na universidade – via “vestibular” – e ali se descobriram incapazes, despreparados, enganados,  mas aí já era tarde, tarde da noite, uma noite sem perspectiva de amanhecimento.

O caso da criança, transformada em gênio no primeiro momento

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pela imprensa, para depois ser motivo de chacota, de execração pública, como é costume por estas plagas, nos leva a uma retrospectiva e nos faz lembrar o caso Avestruz Máster tão disputada pela mídia, por políticos e empresários, até descobrirem a farsa, o rombo, os arranhões na imagem de quem dela esteve próxima.

Com a criança não foi diferente, apesar de o pai querê-lo como um gênio e lutar para isso, em nenhum momento pensou na exposição do filho, muito pelo contrário, fez questão de apresentá-lo a todos, mas tudo começou a desmoronar, quando a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o Conselho Estadual da Educação se mostraram preocupados e cobraram providências, para que, posteriormente, o MEC prometesse fazer uma devassa nos métodos utilizados pelas universidades particu-lares  - nos seus propalados “vestibulares agendados”. Paralelo a isso, o jornal Diário da Manhã publicou um texto escrito pelo futuro “acadê-mico” de Direito, o que demonstrou algumas deficiências gramaticais do garoto, natural para sua idade, porém relevantes para um universi-tário e, ao mesmo tempo, revelou a aberração de algumas faculdades e/ou universidade para cooptar alunos, não se importando se eles usam fraldas ou não.

Antes tarde do que nunca, diz o ditado. Eu também penso assim. Mesmo tarde este caso vem reforçar aquilo que vínhamos dizendo ao longo desses últimos anos, a irresponsabilidade de alguns empresários que tratam a educação como um produto qualquer, movido pela ga-nância, pela possibilidade do lucro fácil, quando não encontram algo mais rentável para investirem os seus milhões. Educação é coisa séria, feita de erros e acertos e envolve uma parcela grandiosa de humildade de quem ensina e de quem aprende, e sensatez de quem nela investe. (14/03/2008)

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DEFORMIDADES

Goiânia, vira e mexe, sempre tem se destacado como notícia na-cional. No passado, foi o Césio; há pouco, a febre amarela, que levou a população ao desespero, todos em busca da vacina, inclusive eu, que, um mês após receber a dose, contraí dengue, passei maus bocados, pelo menos estava tranqüilo com relação à febre amarela, caso contrário, te-ria enlouquecido, porquanto alguns sintomas são muito parecidos.

Passado o surto da febre, um caso inusitado aconteceu:  um casal que se dizia “fugindo das FARC” chamou a atenção da mídia nacional, o casal relatou que havia percorrido - a pé - milhares de quilômetros, da Colômbia ao Brasil, passando pela Venezuela, pela Amazônia, até chegar a Goiânia, depois de ter perdido um filho para aquela organiza-ção terrorista. Mais tarde, veio-se a descobrir, após a morte da esposa (que morrera de malária) a verdade: o casal fugia não das FARC, mas da pobreza do seu país. Procuravam melhores condições de vida. Mas como mentira tem pernas curtas, o rapaz será deportado, ficando ape-nas a imagem de um casal sonhador, abrigado no Hospital de Doenças Tropicais, guarnecido pela força policial goiana.

Mas as más notícias não param por aí, principalmente quando envolve o erário, como aconteceu recentemente, o desvio de mais de 900 mil reais dos cofres do Ibama, supostamente desviados por uma fun-cionária que cuidava das finanças - segundo declarações do Procurador da República em Goiás - e que teria gastado boa parte desse montante numa clínica de estética. Tudo muito bem maquiado, bem urdido, um atentado à flora e à fauna brasileiras. E haja beleza! Quase um milhão de reais, dividido entre filhos e outras laranjas, laranjas da terra, que agora, depois de despencarem do talo, amargarão por longos anos.

Agressão à fauna, à flora, desvio de conduta, tudo tem marcado

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o nosso País e, claro nossa grande Goiânia, como a trágica história de uma senhora, de 48 anos, que teve o útero retirado, após ser confundida com uma outra paciente. Segundo relato da própria vítima, ela fora in-ternada para fazer uma reconstituição do períneo, mas começou a achar tudo muito estranho:  “Eu senti que algo estava repuxando, perguntei ao médico o que ele estava fazendo e ele respondeu: estou retirando o seu útero.” O mais grave de tudo isso, a mulher que teve o útero retirado fazia tratamento para engravidar, estava na  fila de espera do Hospital das Clínicas, para se submeter a inseminação artificial. Trágico, não?

Mas as notícias não param, às vezes trágicas, como o caso da re-tirada do útero da senhora acima; às vezes hilária, como a história do padre de uma paróquia em Goiânia que proibiu às mulheres, principal-mente nas cerimônias matrimoniais, de comparecerem à igreja trajando vestidos decotados, costas nuas, para evitar, segundo o pároco, um mal estar entre os fieis. Pois, segundo ele, as beldades não se vestem decen-temente, não usam sutiã, deixando os seios eriçados, à mostra. O padre deve ter lá suas razões, talvez seja preferível proibir a se autoflagelar, principalmente quando se tem uma visão tão apurada.  Às mulheres, uma saída: mudar de igreja ou de vestido. (27/02/2008)

“Mulher presa com maconha na vagina”, O Popular, 1º/2/2012

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A DROGA DA VAGINA

O título acima parece pejorativo e, numa primeira leitura, mui-tos ficarão indignados, dirão que é falta de respeito, que eu não gosto da coisa, que isso tudo não passa de complexo, de machismo e outras coisitas mais.

Não é nada disso, eu só estou reproduzindo uma notícia veiculada num jornal de Goiânia, a história de uma jovem senhora que, para sa-tisfazer o seu marido, que cumpre pena no CEPAIGO, foi pega com 360 gramas de haxixe, muito bem guardados, sabe aonde? Na vagina! Isso mesmo, ou como diriam os antigos, na bainha.

Até o ano de 1700, o termo “vagina” era empregado para falar de tudo o que era “bainha”, “invólucro”, “casca”, e que os soldados, portanto, a usavam a tiracolo, para guardar (enfiar) suas espadas. Só bem mais tarde, na Renascença, é que o termo vagina passou a denominar o tubo ou bainha na qual se encaixava a espada masculina, o pênis. [1]

Pensemos, se sexo vicia, causa dependência, imagine sexo com droga, em altas doses. Droga comprimida, pronta para causar desatinos, droga sob a saia, paliativo para uma droga de vida, entre grades e desilu-sões. Dessa forma, sexo torna-se perigoso, além do vício, dá cadeia. Daí o título desta crônica:

A Droga da Vagina, para sintetizar o dilema de uma jovem senho-ra compenetrada, que, com um simples abrir e fechar de pernas, pariu um rio de angústia.

Angústia que se repete em várias partes desse nosso país, quan-do mulheres desconsiderando o amor-próprio, submissas, exploradas e maltratadas se veem abandonadas de toda sorte: os filhos sucumbiram ao crime, o marido, há muito encarcerado, rumina os poucos momen-tos de uma liberdade fugidia, porque esperança não há, como pudemos

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constatar no Fantástico, há algum tempo, o documentário Falcão, os Meninos do Tráfico, a história da história de uma falta de perspectiva, crianças perdidas no tráfico, natimortos, pois o único sonho que lhes resta é o de vir a ser bandido. Matar ou morrer não importa, outros sem-pre virão. São autômatos de uma guerra urbana, e as suas histórias são escritas com metralhadoras, fuzis AR-15 e pistolas, não aprenderam, como muitos homens da política, a cultuar belas palavras e encantado-ras mentiras, com as quais se escondem e, como mágicos, sobrevivem ilesos aos trovões madrugadores.

[1] PEREIRA J., Luiz Costa. Com a Língua de Fora, São Paulo:Angra, 2002,p.53

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Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração. 

Carlos Drummond de Andrade 

UM CANTO NO CANTO DO MURO PODE SOAR TURVO COMO PODE SOAR

MÚSICA

Numa passagem do livro “Ensaio sobre a cegueira” de José Sara-mago, o médico que acabara de cegar comunica ao seu superior, diretor clínico do hospital onde trabalhava que estava cego e que precisavam alertar ao Ministério da Saúde sobre a epidemia de cegueira: “Não lhe parece que deveríamos comunicar ao ministério o que está a passar”, “por enquanto acho prematuro, pense no alarme público que iria causar uma notícia destas”, “com mil diabos, a cegueira não pega”, “A morte também não pega, e apesar disso todos morremos”. “Todos morremos”, esta é a sentença. Morremos, e grande parte de nós cegou; não há remé-dio que nos traga de volta à luz.

Saramago na sua literatura nos coloca a par da nossa alienação, da nossa cegueira para as coisas do mundo. Talvez esteja aí a grande charada da dita pós-modernidade: o homem transformado na própria tecnologia, só a ela rende tributos: há muito que se esquecera do mundo real, há muito que perdera a autonomia, há muito que não mais sabe de si. Dito assim, soa como generalidade, parece que tudo se perdeu, mas não! Cito Saramago como contraponto para falar da poesia de Sinésio Dioliveira, mineiro de Belo Horizonte, que ainda cedo veio para Goiâ-nia, formou-se em Letras Vernáculas – UCG, foi professor de Língua Portuguesa, até ingressar no jornalismo, quando demonstrou o seu ta-lento como editor de cultura e como cronista, o que lhe rendeu o Tro-féu Goiás — categoria crônica - da Academia Goiana de Letras. Sinésio Dioliveira, que desde muito tempo conheço e respeito como poeta, só

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agora resolveu dividir com o goianiense sua percepção de mundo, a na-tureza filtrada pelas lentes de sua máquina e pelas belas imagens de sua poesia.

Sinésio tem vocação para palavra, tem tino para notícia, conhece bem o seu ofício, o que o deixa muito tranqüilo para ensaiar novas lin-guagens, como é o caso da fotografia, já que, como editor, sabe que uma boa imagem torna-se fundamental na composição de uma notícia. Acho que aí nasceu a idéia de fundir imagem fotográfica à imagem poética.

O poeta e sua câmera captando os melhores ângulos de uma vida dedicada à perscrutação do substrato do homem simples, da nature-za pujante. De captar com maestria o instante, o silêncio, a verdadeira performance de quem assesta a sua lente para compreensão do homem inserto no tempo, incerto na vida, a percorrer os desvão de uma cidade medonha, como um flâneur baudelariano.

Sinésio é desses seres preocupados com a humanidade, tudo no mundo tem o seu valor; aprendeu muito cedo a valorizar a natureza, o respeito ao próximo. O poeta tem um olhar muito apurado para per-ceber o simples, justamente no momento que vivemos o supérfluo, o efêmero, sem nos darmos conta de estamos fora da realidade das coi-sas; vagamos como autômatos; somos diluídos na miséria assustadora dos que não podem ver porque lhes falta a compreensão do simples, ou na decrepitude daqueles que só enxergam os seus pares, a despeito de qualquer contato com as diferenças do mundo. A incapacidade humana para a percepção daquilo que lhe foge à compreensão, aquilo que dele diverge.

É aí que entra o homem, o poeta, o fotógrafo, chamando para uma nova forma de olhar: “Os pássaros são notas musicais duma canção celeste. Eles poesiam o céu”. assim se manifesta Sinésio Dioliveira num dos seus fotopoemas. Dessa forma Sinésio nos brinda com seu canto, um canto de beleza e sensibilidade, nos chamando para um aprendizado de chão, assim como também o faz Manoel de Barros.(30/09/2008)

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A ILUSÃO DIGITALPara o professor Marcos Palacios

Mediado por interfaces várias, o homem se apropria da tecnolo-gia e referenda o seu desejo de potência. O que antes era desconhecido, hermético, passa a ser natural, quando, conectado, brinca de deus ao ensaiar, com cores, formas e sons, o grande texto “mundo”. Com um simples toque, é capaz de viajar para as mais longínquas paragens e in-teragir – na ilusão de sua virtualidade – com outros mundos tão “reais” quanto os seu.

Cada mundo comporta suas peculiaridades, é preciso desvendar--lhe os códigos, as várias linguagens com as quais opera, para sentir-se inserto e dele apropriar-se. Qualquer descuido pode ser fatal, é preciso atenção total para não se deixar contaminar pelas pestes que rondam o ciberespaço, os monstros escondidos nos becos digitais, prontos para atacar o incauto navegador aventureiro.

Assim como o espaço real, o espaço digital também tem seus limi-tes, qualquer desatenção pode custar caro ao transgressor, fazê-lo refém da própria astúcia, mas aí a pena deixa de ser virtual e passa a ser real. Cada um deve saber onde pisar, para não ser tragado pelos movediços links, ali postos, e embarcar num mar textual de mentiras e ciberilusão.

Para qualquer viagem é preciso precaução; as provisões devem ser suficientes para o embate da jornada; é preciso ter pleno conheci-mento das vias a serem percorridas, para isso o viajante deve munir--se de bússola e mapas, é preciso não confundir as sinalizações, pois como disse o poeta: “Navegar é preciso, viver não é preciso”, mas essa precisão pode ser relativa, caso o navegante desconheça os códigos.

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Depois de assegurar-se das dificuldades da viagem, de conhecer o per-curso a ser seguido, e dominando aquilo que é básico a qualquer inter-nauta/cidadão, colocamo-nos nos nossos assentos, na cadeira de nossa escrivaninha, e ali viajamos por mundos, até então inimaginados, à pro-cura de novidades, notícias, inventos e/ou por simples curiosidades.

Basta um cabo, ou um sistema que nos permita uma conexão, para mergulharmos hipertextualmente nessa vastidão digital de convi-vências nem sempre amistosas, mas necessárias, como podemos pre-senciar, cada vez mais, a proximidade entre a blogosfera e a midiasfera, uma se alimentando da outra, ou quem sabe, uma contribuindo com a outra:  pautando ou repercutindo fatos de uma humanidade há muito esquecida.

O que antes era espaço privilegiado da mídia, de quem detinha o poder econômico, passa a ser de todos, ou de pelo menos de quem quer e tem o que dizer como o são as revistas eletrônicas, como é o caso da Revista Bula, ou dos blogs, que vem crescendo no grau de importância e passam a ter status de formadores de opinião, ganhando espaço nas páginas virtuais de grandes jornais do país, como é o caso do Blog do Noblat, só para citar um exemplo, no jornal O Globo.

Não sei o que nos aguarda, o que vem por aí, só sei de uma coisa, os saltos são grandiosos, como o que estou dando agora: da virtualidade do meu desktop, ao apropriar-me desses ícones todos,  componho este metatexto, iluminado pelas luzes de uma tecnologia que cada vez mais me seduz e que dela sou refém. Passamos a computar horas e mais ho-ras de navegação, “sem lenço e sem documento”, tendo como bússola apenas a nossa vontade, o desejo de romper rumo, quebrar barreiras, superar limites. Iluminados pela seqüêncianúmerica de “zeros” e “uns”, no limite dos sem limite, na finitude do infinito, um olhar sempre atento buscando na ilusão do que vemos a linguagem mais apropriada para acalentar as nossas horas de “solidão” e “tédio”, na sala de estar do nosso mundo real. (23/09/2008)

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DA NECESSIDADEDE ENVELHECERMOS

Quando nos damos conta, constatamos que o tempo passou tão depressa, que nós envelhecemos, pois já não somos mais aquela joviali-dade que nos supúnhamos. Perdidos, às vezes, ficamos impossibilitados de não podermos mais fazer muito daquilo que fazíamos; as nossas for-ças, há muito, se esvaíram. Não há mais tempo para buscar o perdido, recuperar o irrecuperável.

Envelhecer poderia ser sinônimo de amadurecimento, de respon-sabilidade, de paz e tranqüilidade, no entanto, temos constatado que não é bem assim, já que muitas pessoas, às vezes pela própria sorte, ou-tras pela inconsciência, terminam por desvirtuar o verdadeiro sentido do que venha a ser envelhecer.

Amadurecer requer tomada de consciência, reflexão constan-te, aceitação; apesar de existirem os que envelhecem e não se dão conta disso, em si, permanecem como verdadeiros mocinhos, à reve-lia de tudo e de todos, ridiculamente expõem-se em trajes e atavios de uma idade que há muito se foi. Outros, por medo de envelhecer, unem bocas e orelhas, peitos e costas, virilhas e bundas, nas inúme-ras plásticas que fazem, adquirindo deformidades que só aumentam o descontentamento, a baixa auto-estima e as crises existenciais, que levam à depressão.

Envelhecer traz responsabilidades, atitude, muitas vezes, não al-cançada por algumas pessoas, já que, apesar dos anos, muitos indivíduos persistem na falta de compromisso, em não honrar acordos, buscando uma vida fácil à custa da boa vontade dos outros. São pessoas que des-perdiçam o tempo, não querem progredir, não vislumbram melhoras,

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não têm expectativas. Tudo é momentâneo, não existe amanhã, até que o amanhã chegue e lhes mostre, outra vez, a necessidade.

Apesar de a velhice ser um momento de tranqüilidade e paz, quan-tos indivíduos envelhecem com fel, falando mal da vida e do mundo, culpando a Deus pelas desgraças e desacertos, sempre perseguindo os seus semelhantes. Este tipo de gente insiste em destilar o seu veneno, a maledicência, a continuar explorar o próximo, a ordenar destruição e assassinatos. A sua bandeira é a prepotência e a arrogância. Quantos não estão por aí a ocupar cargos representativos: presidentes, governadores, juízes, só para citar algumas categorias, sem falar no simples escriturá-rio, no estelionatário, no ladrão de galinhas. São seres que contribuem, e muito, para o caos social, já que não estão preocupados nem com o bem-estar das pessoas e nem com a harmonia planetária.

Viver não é fácil, é uma experiência muito dolorosa, mas gratifi-cante. O que falta ao ser humano é uma tomada de consciência de que a alegria que brota na casa ao lado pode ser a ilusão de felicidade que trazemos. Não se constrói uma vida sem dor, e é da natureza humana envelhecer, Graças a Deus!. Envelhecemos para nos darmos conta de que o tempo não para, da possibilidade majestosa de outros seres virem ao mundo, da necessidade de nos vermos como pais, tios, avós. Tudo isso é muito belo e nos conforta. A natureza é sábia e nos cobra muito caro pelos nossos atos, tendo em conta que nos foi confiada a vida, que nos foi confiado um corpo, com o qual haveremos de enfrentar muitas dificuldades, muitas intempéries e percalços; difíceis caminhos teremos de percorrer.

Sendo assim, o sentimento de potência que trazemos é a primei-ra prova de que somos perecíveis, de que caminhamos com as nossas pernas, mas que uma força grandiosa nos conduz, apesar de pensarmos diferente, é assim que as coisas acontecem. Iludimo-nos com a eternida-de, com a nossa juventude, com a perenidade, perdemo-nos nas nossas vontades e vaidades, nos nossos desejos e imposições. Quando Iludidos estamos pela eternidade, humanamente envelhecemos, humanamente partimos.(08/09/2008)

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O PÓ DA PÓS-MODERNIDADEPara Flávio Paranhos,

Por que o artista quase sempre se revela um incompreendido na expressão que adota ou manifesta? Esta é uma das interrogações que ou-vimos e que, muitas vezes, nos fazemos. A arte, como manifestação do espírito, tem um fim que é atingir os sentidos na pretensão de suscitar sentimentos, despertar para a contemplação do belo. Sendo assim, de onde advém o gosto? da subjetividade imediata ou puramente do conta-to exterior com objeto que, por sua vez, torna-se sensível?

O que é ter gosto? Por que gostamos? Qual é a natureza do artís-tico? O que é arte? Para que ela serve? A arte deve possuir um caráter de universalidade e objetividade, já que o sentimento é subjetivo? E não sendo o gosto advindo do sentimento, mas forjado, incutido, criado por elementos artificiais e massificantes, teria ele valor no julgamento de uma obra para qualificá-la como artística, como obra de arte?

Como é próprio ao ser humano voltar-se para as coisas e tirar, pelas suas impressões, o que é bom ou o que é ruim, também ao ser humano é dado, irrefletidamente, buscar referências várias de “es-pecialistas” sobre o valor que deve ser dado a determinadas obras, o que as caracterizariam como arte ou não, como tem acontecido em salões de arte, espalhados pelo mundo, quando privilegiam insta-lações absurdas, experiências bizarras, em nome de uma “arte pós--moderna”, que de tão pós, reflete a acéfala conceituação dos seus curadores.

Não que os salões não tenham valor, claro que têm, é uma opor-tunidade para que novos artistas sejam revelados, para que a socieda-de tenha contato com a produção do seu tempo, inteirando-se das mais

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variadas técnicas e expressões, educando o olhar para as diferenças:o belo, o feio, o cômico e o trágico.

Os salões precisam buscar uma identidade, refletir o seu tempo, sair da mesmice, voltar à atenção para outros valores, mas que não ve-nham com a malfadada desculpa da desconstrução. Desconstruir o quê? Por quê? Se Duchamp[1] o fizera, assim como Picasso, é porque detinha o domínio da técnica do desenho e da pintura, para só depois chegar aos objetos, como o Grande Vidro, e a instalação La Mariéemise a nu par sescelibateires, même. Elementos metatextuais, caracterizadores de um olhar crítico para com as artes daquele tempo, já que havia a intenção de provocar, de causar apreensão e indignação. Coisas que os “artistas” de agora não fazem, já que as ditas instalações de hoje mais parecem gambiarras: não dizem nada, nada provocam, apenas nos roubam ener-gia e tempo.

Talvez a incompreensão perene não seja do artista, como foi fala-do no início deste texto, mas do espectador que, apesar do desconheci-mento de técnicas e expressões, é dotado de senso crítico para julgar o que agrada ou não, mas vê-se encurralado ao se deparar com opiniões tão formadas por parte dos mermitões que nada dizem, nada lêem, nada criticam, apenas seguem e servem. Seguem o crítico, tão técnico quanto o técnico de geladeiras. Servem à mídia, que de tão rasa não se toma pé. Assim, o espectador, sem voz, perde a identidade e o rumo, e passa a andar em círculos entre os vidrinhos de penicilina e ampolas de vidro, para dormir o sono nas redes entrelaçadas de um sono personalizado, fotografado em sonhos pelas máquinas digitais, e revelado no envelope de madeira que, por sua vez será guardado no cofrinho inflável da pos-teridade.

(20/08/2008)

[1]Marcel Duchamp (1887-1968). Para saber mais sobre o artista, recomenda-se O Pe-queno Prefácio a Duchamp: ainda sobre o grande vidro, por Jorge Lúcio de Campos.

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QUEM VENDE O SEU VOTO, VOTA CONTRA SI MESMO

Como se já não bastasse todo tipo de mazela social: crimes he-diondos, sequestros, estupros, corrupção de toda monta, ainda temos de conviver, em período eleitoral, com uma das mais abomináveis práti-cas: o comércio do voto. Comércio, porque há mais de um agente nesse negócio, quem compra, compra de alguém; quem vende, vende para al-guém; pode ocorrer que alguém compre de algumas pessoas (interme-diário ou atravessador) e venda para outra pessoa (candidato). Portanto, não se pode dizer que comprar voto é uma prática de mão única, não, muitos são os envolvidos; muitos são os corrompidos; muitos são os corruptores; muitos são os corruptos, esse bichinho inofensivo, como bem diria aquele personagem do Jô Soares.

Quando se fala em compra de votos, o que nos vem à cabeça é alguém pagando uns trocados para aquele ser (eleitor) que se propõe a vender o seu voto. Pode ser assim, mas não é essa a regra, os candida-tos são muito criativos e, se valendo das carências e necessidades dos eleitores, inventam mil e uma maneiras de burlar a justiça eleitoral. São alimentos diversos: sal, açúcar, óleo, tíquetes de leite, bebidas , dentadu-ras, óculos, sapatos, roupas, ajuda para obter documentos, pagamento de fiança de presos, cimento, areia, pedra, tijolos e outros materiais de construção; ferramentas, insumos agrícolas, uniformes para clubes es-portivos, bolas e redes, enxovais, cobertores, berços e tantas outras coi-sas, que chegam a estarrecer qualquer cidadão de bem.

O negócio tem proporções tais que, segundo dados do IBGE, ci-tados pelo Movimento pelo Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), lançada no dia 19 de novembro de 2007, na sede da Ordem dos Advoga-

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dos do Brasil (OAB), em Brasília, desde as eleições de 2000, até a data do lançamento dessa campanha, mais de 600 políticos foram cassados, por corrupção eleitoral, pela Justiça. O Movimento pelo combate à Corrup-ção Eleitoral, no sentido de coibir tal Prática tão nefasta, criou o lema “Voto Não Tem Preço, Tem Consequência”.

Tudo isso só foi possível, graças às mobilizações populares, ao em-penho da imprensa em não camuflar nada, à atitude de políticos hones-tos, comprometidos com as melhorias em todos os setores da socieda-de, com os avanços sociais. Graças a essas mobilizações, conseguiu-se a aprovação da Lei 9.840, que proíbe a compra de votos e o uso eleitoral da máquina administrativa, como podemos ler no seu Art. 41-A:  “Ressal-vado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o regis-tro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de 1.000 a 50.000 UFIRs, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64/90.»

Muita coisa vem mudando para melhor, ao longo desses anos, como a Lei 9.840. Por conta dela, os malversadores do erário foram cas-sados; os abusos econômicos vêm sendo combatidos, como podemos confirmar nos dados da Agência Brasil de Comunicação, com o número de políticos cassados até o ano de 2007: Minas Gerais 71; Rio Grande do Norte 60; São Paulo 55; Bahia 54; Rio Grande do Sul 49; Ceará 37; Paraíba 36; Goiás 33; Santa Catarina 25; Piauí 22; Mato Grosso 20; Mato Grosso do Sul 18; Rio de Janeiro 18; Roraima 17; Paraná 16; Maranhão 14; Pará 14; Pernambuco 14; Rondônia 13; Sergipe 10; Amazonas 2; Acre 1; Distrito Federal 1. 

Combater práticas tão perversas - como a do poderio econômi-co de vencer a qualquer preço, sem se preocupar com quer que seja, matando, apezinhando, alijando do processo, perseguindo, o que nos faz lembrar a fábula do lobo e do cordeiro, de Jean de La Fontaine (La Fontaine) - é de fundamental importância para todos nós, pois só as-sim teremos de fato um país democrático, igualitário, comprometido com o bem-estar de sua população. Cada um precisa despertar para

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sua responsabilidade como cidadão, capaz de banir práticas tão obtusas como essa da compra de votos. Precisamos ter consciência de que o voto vendido são vidas que estão sendo roubadas, são recursos que deixarão de ser aplicados na saúde, na educação e na cultura. Não podemos nos calar, temos de alardear para que todos sejam fiscais da moralidade na política, para que cada indivíduo saiba que quem vende o seu voto, vota contra si mesmo.(20/08/2008)

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ENRIQUECIMENTO DE URÂNIOPara Helverton Baiano

Urânio, até os 12 anos, era um menino retraído, raquítico, sem perspectiva nenhuma. Vivia numa casinha velha, de pau-a-pique, e não conhecia cidade grande. Cresceu ouvindo história de trancoso, supers-tições e outras inculcacões. Sempre dormiu em rede e criou-se andando a cavalo, correndo pelas quintas do seu avô, e nadando nu pelos riachos das cercanias.

Aos oito anos, ganhou da sua avó um pente de chifre e um es-pelhinho, daqueles ovalados, com a foto de uma mulher pelada. De-pois disso, precipitava-se pelos córregos, matas, banheiros, buracos de portas, fechaduras, rachaduras nas paredes, debaixo das camas, sempre querendo roubar, nem que fosse por pequeno espaço de tempo, algum seio, bunda ou, simplesmente, a ligeira visão de uma comportada ou esvoaçada penugem.

Contava as horas para o banho das suas vizinhas, sempre com um olhar ligeiro, galopante nas suas fantasias. Inclinou-se, desde logo, para aquilo que ele viria, mais tarde, a chamar de predestinação: um em-presário de corpos. Passou observar o sexo das éguas, cadelas e porcas, tentava fazer comparações com os de suas vizinhas, analisava tudo.

Descobriu algumas revistas de conteúdo explícito sobre sexo no armário do seu pai, roubando-as para folheá-las, quando ficava sozinho em casa. Passou a taramelar a porta do quarto e ficar horas trancado, chegando, muitas vezes, a causar preocupação à sua mãe, que, ao passar pelo quarto, ouvia o rangido das molas da cama, uns gemidos esquisitos e, logo após, um breve silêncio.

Passou a observá-lo mais, até descobrir que as meias do filho esta-vam desaparecendo, sem que ela soubesse como, só vindo a saber mais

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tarde, quando, por displicência de Urânio, que deixara a porta aberta, surpreendera-se com o filho deitado na cama, com o pênis vestido pela meia, cavalgando nas fantasias dele. Tentou voltar, mas já era tarde.

Urânio, aos 15 anos, invocou-se com a bailarina de um circo, que passava pela sua cidade, ficando preso a ela por um longo tempo, en-clausurado, só saia à noite, quando ela precisava trabalhar. Apesar de a sua mãe implorar para que ele voltasse para casa, Urânio, contrariando os ensinamentos maternos, começou a dividir a amada com os colegas de rua, em troca de uns míseros reais. Não demorou muito, e toda a cidade passou a freqüentar a “Rua de Baixo”, e os fartos trechos de Ema, alcunhada de senhora dos aflitos.

Os negócios progrediam, e a notícia de Urânio se espalhou pelas cidades vizinhas, atraindo jovens, adolescentes, senhores, trabalhado-res do campo, empresários; todos querendo alguns instantes de prazer e carinho; outros, atraídos pela curiosidade, do que para muitos não passava de especulação: bandinha, a “moça” que só tinha uma banda do sexo, que, por muitas noites tirou o sono de Urânio. Como ela, tam-bém tinha Pichula, uma anã de bunda farta, atração à parte, pela forma peculiar de olhar, seus olhos eram diferentes: um verde e o outro azul. Carmem, ou “cara quadrada”, era bastante gorda e fogosa, destacando--se pela forma do rosto e pelos sons que produzia quando fazia “amor”. Maria Angolista, uma sublimidade na cama, poço de lirismo e libido, que, ao chegar ao orgasmo, cantava: Tô fraca! Tô fraca! Tô fraca!. Tonha Vaga-lume, diziam, quando abria as pernas, uma luzinha acendia lá no fundo. Também tinha “Jurema Olho-de-porco”, umas das mais procura-das, pela peculiaridade do seu serviço; sem falar na descomunal “Lupé-ria Taturana-Bezerra”.

Urânio viveu dias de glória e reconhecimento, apesar da ingenui-dade para certos assuntos, conseguia se sair muito bem com o negócio ao qual se propusera, chegando a ser cotado para prefeito da sua cidade, mesmo contrariando o padre, o pastor e alguns moralistas, que, mais tarde, também passaram a usufruir dos serviços da “Casa da Rua de baixo”.

Urânio tornou-se um poço de alegria e poder, cada vez mais soli-citado e influente, ditava os dias de silêncio e as noites de gritos e desco-

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bertas, principalmente por ter a seu favor as molas do mundo: dinheiro e sexo. Viu-se convidado para tudo, inclusive, para apadrinhar crianças e noivos; já não distinguia as amizades do interesses. A todos tratava bem, quando era destratado, encarregava a Pau-de-Goiaba, um bruta-monte maneta, de cabeça chata, e sem um fio de cabelo na cabeça, umas três sessões de descarrego no Lago da Piabinha.

Os tempos foram mudando, e Urânio sentiu necessidade de ex-pandir os negócios, passou a importar travestis, transexuais e drag-que-ens, apaixonou-se, assim que viu “Olga Tamanduá Bandeira”, uma rari-dade na fauna daquela região. Por conta disso, descobriu-se bi, bitolado, amarrado, chegando a ponto de ser padrinho, em São Paulo, da Para-da Gay. Foi quando se viu indignado ao ler numa manchete de Jornal: “Bush se diz contra o enriquecimento de urânio para fins bélicos”. Quase explodiu, queria saber o porquê daquele despeite, será que as pessoas não podiam ganhar dinheiro honestamente? Foram precisos dias para que ele pudesse entender que a manchete não se referia a ele.

Passado o constrangimento, Urânio viu-se envolvido num dos mais enigmáticos episódios de sua vida: numa sexta feira treze, quando cavalgava tranqüilo pela partes de Olga, sentiu-se como uma formiga, comprimido pelas garras e sugado pela tromba da sua amada, literal-mente transformada em um tamanduá. Foi um “deus-nos-acuda”, uma verdadeira gritaria, até que alguém que já sabia da transformação, Zé Lambu, chegar com uma espingarda e desferir, com bala de prata, um tiro mortal na testa de Olga, que logo voltou à aparência humana, só que sem vida.

Depois daquele episódio, Urânio nunca mais foi o mesmo, foi ou-tro. Envolvera-se em vários episódios não convencionais como seguir formigas em correição para devorá-las, abraçar por longas horas árvores e animais, e, de vez em quando, ficava de quatro para transportar folhas no seu dorso: do quintal para sentina, quando ali as depositava, voltado à forma ereta. 

Sempre que se sentia só, ele saia pelas ruas enviesadas da imagi-nação, parava na velha igreja, no final da cidade, um olhar para além do que compreendia. Naquela tarde, ele parecia determinado a se ausentar de vez, cumpriu o que prometera, fincou os dedos na terra e, mortifi-

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cado, ficou ali por toda noite, armazenando uma claridade intensa em todo o seu corpo. Já não se lembrava de mais nada, somente fitava o horizonte, o céu de um azul cobalto, até explodir em série, em risos, em Césio.(05/08/2008)

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OLHANDO O HOMEM,O PEIXE SE RECONHECE

Há dias em que estamos mais leves, longe dos problemas comuns, libertos de toda preocupação, quando movidos pela busca da paz, da tranquilidade,  buscamos nos acomodar à beira de um riacho, de um lago; à sombra de uma árvore ou guarda-sol, para deleitar as horas de harmonia com o universo.

Pois foi assim neste final de semana, quando, ciceroneado pelo amigo, poeta e jornalista, Sinésio Dioliveira, conheci um pesque-pague dos mais aprazíveis, aqui em Goiânia, mais precisamente ao lado da Vila Muitirão. Foi uma surpresa, pelo fato de antes ele haver me convidado e eu nunca ter aceitado, ou melhor, nunca ter dado certo para que eu fosse conhecer aquele lugar tranquilo, de paz e muitas surpresas, a começar pela pescaria em si, atividade que o meu amigo Sinésio, segundo ele mesmo, é um expert.

Pois bem, chegamos ao local, ao pesque-pague, logo na entrada estava escrito: “Tambaquis e Tucunarés, só para pesca esportiva”. Entra-mos, o Sinésio pediu uma isca, algumas cervejas e fomos para a labuta; e que labuta! Armamos a tralha toda: anzol, chumbada, vara de pescar, carretilha e isca, tudo o que era preciso para uma boa tarde de pescaria, segundo os entendidos.

O meu amigo atirou a isca aos peixes, um silêncio apoderou-se da tarde, fez-nos contemplativos e esperançosos: dois homens e a vastidão do mundo, assombrados com o encantamento do lago, com a solidão da espera, prestes a refletir o peixe no seu morredouro: “morrer pela boca”, como diriam os nossos pais.

Estávamos ali, numa expectativa de águas, espectadores serenos

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da longa espera do peixe que não vinha; da linha frouxa a deslizar pela água fria, quando virei-me para ele, para dizer que talvez fosse eu o em-pecilho, talvez a minha energia o estivesse impedido de pegar muitos peixes, como era de costume,já que não sou afeito a jogos e pescarias, esta última só praticava quando criança, no Rio Tocantins. No que ele me tranquilizou: “fique calmo, sempre que eu venho aqui pesco um bo-cado, logo vamos fisgar um”.

Após ser tranqüilizado pelo amigo, continuamos nossa peleja: o homem, a linha, o lago e os peixes. Mais uma vez a isca fora atirada a esmo. Enquanto isso, a menos de duzentos metros, um senhor fazia a festa na pesca esportiva: pescava e soltava os pescados, ou melhor, os grandalhões, principalmente as Caranhas. E nós? nada! Continuávamos na longa espera, fisgados pelos peixes que tentávamos pescar, já que  al-guns deles, à nossa frente, alegres e saltitantes pareciam saber do nosso intento e, por isso, ironizavam a nossa labuta.

O amigo Sinésio, na sua paz e calma interior, tranquilizou-me di-zendo que era assim mesmo, logo fisgaríamos um grande. Tentamos, fisgamos dois, mas eram fortes e escaparam, um deles levou o anzol. Ficamos boquiabertos, mas tudo era festa, confraternização. O amigo saiu, foi ao bar e pediu para fritarem um peixe do estoque deles, por si-nal, muito saboroso. Continuamos na lida: isca aos peixes, cerveja como refresco; peixe na linha, só no pensamento.

Já escurecia, quando a linha ficou tesa, sentiu-se um puxão, e ali estava o bruto, o gigante, o inominado prêmio das águas, um peixe pe-sando   “meio quilo”, uma Caranha de dar água na boca, para alegria do meu amigo, que já se tinha como um grande contador de histórias, história de pescador.(29/07/2008).

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OS DEMÔNIOS SÃO MAIS NOBRES

Persignar-se, é esse o termo, ante o desconhecido. A evocação do sagrado para o socorro das nossas aflições terrenas, dos nossos temores,da precisão nossa de cada dia. Um olhar que se volta para os céus, um andar que caminha para adiante, um sentir-se que projeta a proteção. A vida transformada pela prece, tão necessária nesses contur-bados dias em que vivemos.

A miséria humana, o clamor dos pobres da América, o silenciar dos poderosos. Tempos difíceis em céu de brigadeiro. O progresso ma-terial que se propala, fragiliza o espírito do homem bom, escarnece a nobreza dos atos, matando no ser a esperança e a fé no sagrado.

Se a fé, a evocação do sagrado, a busca da proteção divina, são alentos para o ser que enxerga o enredo do mal. O que será do ser que sofre os “infortúnios da sorte”, as tramas desse mal e insiste em desco-nhecê-las? Pior ainda, o indivíduo que tudo sabe, que tudo conhece, e vale-se do sagrado, do nome de Deus para amealhar bens e poder, para tramar e beneficiar os seus, para perseguir e castigar, maquiado na sua bondade, passando-se por bom na “profissão” que exerce, na religião que prega, na reunião que conduz.

O Ser que assim age, esquece-se do verdadeiro significado de ser cristão, impelido pela ganância, apropria-se da “verdade”, do poder, para escravizar, humilhar, perseguir, sempre na pele de cordeiro, sempre bom aos olhos dos que olham de fora e nada veem. Um sorriso sempre aberto, um brilho no olhar que cega, já que tudo isso faz parte do jogo, da trama, da maledicência. Ao se julgar inteligente demais, desconhece a própria incompetência, o ridículo que representa, porquanto os seus séquitos sempre estão a bajulá-lo, a fazê-lo acreditar que é importante e potente, que age sensatamente. Que, ao humilhar, perseguir, alijar do

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processo, nada mais faz do que castigar o indivíduo que contra ele se rebelou, ou por tão somente não ter com ele simpatizado.

Os demônios são mais nobres, se nos apresentam como tal: ruins, perversos, demoníacos. Não querem camuflar nada, vivem das artima-nhas que inventam. O objetivo que buscam é tão somente o mal. Contra eles, temos a prece, a cruz, o “pelo sinal”, água benta (lustral), os bons pensamentos. Contra os outros, os da pele de cordeiro, o que temos é a sorte de não cair nas suas teias, de não fazermos parte do seu ódio, de termos, acima deles, a quem possamos recorrer. Alguém que nos possa proteger. (2004)

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MEDO, UM ATO DE HUMANIDADE                                                                                               

O medo que carregamos é a memória que trazemos das coisas, sem a experiência, não há evocação, por isso é que as crianças são destemidas, carregam apenas o não revelado e obscuro soluço dos deuses. Amedontrar-se é, pois, sentir-se humano e requer coragem para tal.

Há pouco, senti-me totalmente tomado por uma vontade de fa-lar sobre este tema: o medo das coisas, o que buscamos e tememos, o que tememos e não conseguimos buscar, o que, a duras penas, levamos adiante. A necessidade que temos de chegar sempre em primeiro lugar, amedrontando aqueles que nos seguem, que nos acompanham, aqueles a quem dirigimos, aos nossos in-subordinados.

O medo que nos cerca  é, de todo, a arma que temos contra os corajosos, os ousados, os usados. Por que estamos sempre com um pé atrás, prontos para recuar, para dar o grito de alarme e sair correndo e, às vezes, é isso que nos salva, que nos determina como vencedores, como duradouros. O medo é a égide do historiador, ele não participa das guerras, das lutas; não se envolve nas diatribes, por que ele precisa contar os fatos. Alguém tem de contar a história.

O que move os críticos de todas as áreas é, justamente, o medo. Falo daqueles que temem e não se arriscam, jamais, a ousar nas áreas que criticam, preferem ficar na espreita, com um olhar carregado de te-oria a mover-se de um lado para outro apenas a falar do que desconhece. Falo empresário que patenteia o invento alheio e, por “medo”, não revela o autor, morre de ganhar dinheiro em cima dele. Do jornalista que se es-conde atrás dos fatos, por pura incompetência, valendo-se das agências de notícias e das cópias do alheio. Do professor de Língua Portuguesa, principalmente das universidades, que ensina regras e mais regras do

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bom falar e escrever e, por medo, fica escondido nas teorias sem nunca se revelar na escrita.

Sentir medo é sentir-se preso e liberto, alegre e triste, fecha-do e aberto. Sentir medo é ser dúbio, é ser  inconsciente, às vezes in-consequente, porque viver requer pressa e determinação. Uns, ace-leram demais e vão-se embora, sem medo, sem ressentimento: “vida louca,vida,vida breve, se eu não posso te levar, quero que você me leve”. Outros, petrificados que estão nas suas prepotências, não enxergam o amanhã, só o agora, o presente que são, para esses, o medo é a força do apego, o delírio da perpetuação.

Quem não tem medo, que atire a primeira bala, o primeiro olhar, como o fazem os pistoleiros que, por medo, atraiçoam; os mandantes que, por covardia, pagam. Os políticos, que seduzem, prometem, e abandonam. Todos medrosos e covardes, revelando o lado pútrido do medo.

Sentir medo é o que nos mantêm calados, é que nos mantêm no emprego, é o que nos faz “ingênuos”, precisamos sentir medo para pros-seguir, criar os nossos filhos, conhecer os nossos netos e, se possível protegê-los quando alguém tentar amedrontá-los, como acontece com a minha filhinha, todas as vezes que ela escuta esse grito: oooooolha a  pamonnnnnnnnha!! e corre para os meus braços. É o primeiro exercí-cio de humanidade: sentir medo, um medo instantâneo, infantil, até o próximo e ousado ato. As crianças pertencem aos deuses, nós, ao medo, humanamente ao medo. Até que digam o contrário.(2006).

Em 1º de setembro de 2004, primeiro dia de aula, um comando que reclamava em particular o fim da guerra na Chechênia manteve mais de mil pessoas no ginásio da escola durante três dias, até quando o exército lançou um assalto. Trezentas e trinta pessoas, entre as quais 186 crianças, morreram na operação. (Fote: Portal Terra)

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UMA TEMPORADA NO INFERNO*

Todas as guerras são abomináveis, traços de bestialidade e incer-teza; transgressoras da liberdade e da razão, retalhos de humanidade. Todas as guerras são martírios, segregadoras da alma humana; violento atentado ao espírito; disseminadoras de um ódio gratuito.

Por mais lógica que se possa imaginar ao se declarar uma guerra, ela nos soará sempre paradoxal: não há violência que nos conserte; não há martírio que nos redima.

Toda guerra é imposta, autoritária, ditatorial. Toda ditadura é de-primente, olhar deturpado da realidade, sentimento ameaçador e covar-de. Discurso ideológico e sectário; monólogo opressor.

Toda guerra é violenta, e a violência não é local, municipal, esta-dual ou globalizada. Não é assunto jurisdicional, é ontológica. Alguns a manifestam mais branda, perseguindo, retaliando, alijando; outros, dela são membros, como um braço, uma perna. A ela pertencem e, para es-ses, a vida é um risco feito a lápis na mão de um deus pagão. Ninguém se salva.

De todas as formas de violência, a infantil é inaceitável, é irreme-diável, deixa marcas na alma, é ferida que não se cura, transtorna o ser e, quase sempre, dele não se desprega. É na infância que apuramos o olhar para as coisas do mundo. Que definimos as cores do nosso por vir: muitas vezes quente, muitas vezes frias, outras tantas matizadas, quan-tas sem luz. A violência que pare a violência, como um espelhamento. Lembremos de Mohammed, o prematuro, nascido sob os “auspícios” da Guerra do Iraque; de Intizar, criança que perdeu os braços, também no Iraque, após ser atingido por uma bomba americana, fruto da bes-tialidade de Bush. Lembremos de Hiroshima, seis de agosto de 1945, às 08:15 da manhã, o piloto de um avião B-29, Paul Tibbets lança a pri-

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meira bomba atômica, deixando um lastro de destruição; a cena é repe-tida em Nagasaki, nove de agosto, com a bomba “Fatman”. Lembremos a cena daquela criança nua, desesperada. Lembremos do Kosovo, uma outra criança chorando, sobre os escombros, a morte dos pais; e agora, numa foto comovente de Segei Dalzhenko, vimos uma criança ensan-guentada, desesperada, fugindo dos sequestradores da Escola de Beslan, na Ossélia do Norte, Rússia.

Não há como se calar, fechar os olhos, diante de tanta barbárie, de tanto medo que nos oprime, da insegurança que invadiu os nossos lares, já que as ruas há muito foram tomadas, brutalizadas, esquecidas.

Há muita dor nos nossos corações, transtornados que estão pela impotência ante o espetáculo a que assistimos: nas ruas de São Paulo, quando mendigos são brutalmente assassinados; no Rio de Janeiro, as balas que se encontram com os seus alvos, porquanto os homens é que estão perdidos. Em Brasília, a violência pública em muitos setores, e a privada? quem não se lembra do índio Galdino “ludicamente” quei-mado? Uma repetição bárbara e inquisitorial, como em Joana D’Arc. Em Goiânia, quanto crimes insolúveis. Não há mais distinção de classes; não se respeita mais autoridade constituída, todos sentem a mesma dor. Todos pela morte tornam-se iguais.

É uma imensa tristeza que nos massacra, a impotência que nos dói no fundo da alma, um grito desesperado de socorro, sem ter para onde correr, fugir. Quanto mais nos afastamos, mais nos vemos refleti-dos nessas cenas de barbárie, mais temerosos ficamos, ao protagonizar espetáculos tão brutais.

O que nos resta? Talvez a imagem desesperada das crianças de Beslan, em pânico, tentando sobreviver de rosas, como relataram após serem libertas dos seus algozes. As flores que brotam do caos, como em de Ferreira Gullar, Poema Sujo: Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas (como pode o perfume nascer assim?). Talvez nos restem os livros, a educação pela palavra, a poesia como motor de toda transformação.(2004)

* Título tomado de empréstimo a Jean Arthur Nicolas Rimbaud, poeta francês (1859-1891).

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DO MEU CAMINHAR

Para meu Pai, quando da sua partida

Os pais são sempre os filhos refletidos, se não na aparência, ao menos na vontade na doce vontade de perpetuação. Os pais nun-ca morrem, partem para uma outra dimensão que não conhecemos, apenas imaginamos e torcemos para que o voo seja pleno de encan-tamento.

Quem poderá dizer mais de mim do que os traços que trago da minha ancestralidade? Cada passo, cada olhar, um semblante às vezes esmaecido pelo sentimento do mundo, tudo comporta um traço de quem a mim deu o muito do meu caminhar.

O meu pai é puro fluxo das longínquas corridas deste rio Tocan-tins, parte também dos meus antepassados. Do grito de tantos outros gritos da minha descendência. Meu pai foi o responsável por parte da minha ousadia, da minha predileção pelas letras, do meu entusiasmo pelo mundo e pela coragem que tenho trazido para romper difíceis dias de abandono.

“O homem precisa ser ousado” Era assim que ele dizia, mas a sua ousadia não poderia prescindir do caráter, da ética, do respeito ao pró-ximo, da sabedoria que só os mais velhos e o tempo trazem. Ele me ensinou que o trabalho dignifica, a solidariedade fortalece, o amor nos encoraja e nos conduz.

Meu pai está escrito nos portais de cada casa, de cada árvore, de cada rua desta nossa Miracema. Ele está no correntinho, na Vitamina, no banho do rio, na Caridade, no Ouro Verde, na feira, no bolo de arroz, no vinho de caju, no licor de casca de laranja, nas missas de domingo,

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nos remédios caseiros, nos carnavais. No meu pai está a nossa indelével alegria. Nele estamos nós.

Com ele se vão o nosso imenso amor e nossa eterna gratidão, co-nosco fica a sua perpetuação na grandeza de espírito e o imenso azul dos seus olhos.

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QUA ME STULTITIA INSANIRE PUTAS?

Natural é ser diferente, poder dizer o que se sente, o que se pensa; fugir dos lugares comuns, sondar o próprio abismo existencial e comun-gar com os seus pares, com a aflição do mundo, com o dilúvio de ausên-cias e não responder ao chamado dos manipuladores. Eis um traço de insanidade que muitos carregam, mas poucos conseguem alimentar o seu desconserto diante do mundo.

Os loucos atendem aos chamados interiores, dizem não à exte-rioridade. Não refletem o tempo, ousam; não alimentam esperanças, vi-vem; não se prendem a nada, celebram. São defensores da vida libertária e plena. As suas mentes são as suas sentenças. O medo não existe, a dis-tância é inócua. O vício não tem cabresto. Eles, os loucos, avolumam-se como caixas empilhadas, são muitos, são múltiplos, apesar de tudo isso, ou por serem assim, são ternos, mesmo que não saibam.

A loucura está mais presente no mundo do que se pensa, manifes-ta-se no mais recôndito dos seres, na hora imprecisa, não tem cerimô-nia, não se atrela a nada, basta que algo que desconhecemos a motive e, deliberadamente, ela nos chega, toma conta, desconserta, desestabiliza e, por ser assim, muitos não conseguem divisá-la, não compreendem a sua linguagem, o seu discurso.

Somente os loucos, os leves de espírito, os pensadores, os poetas, os artistas e, lógico, os psiquiatras e psicólogos (nem todos, claro!)con-seguem conviver com ela. Erasmo de Rotterdã lhe dedicou um belo en-saio: Elogio da Loucura; Michel Foucault escreveu A História da loucura; Cervantes, magistralmente, criou um dos personagens mais maravilho-sos e insanos da literatura universal: Don Quixote, O cavaleiro da triste figura; Machado de Assis, em O Alienista, nos brinda com Simão Baca-marte e a sua Casa Verde; Fernando Sabino, seguindo a modalidade pi-

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caresca, também aborda o tema, em O Grande mentecapto, Sem falar na genialidade, inexplicável, de Fernando Pessoa, com seus heterônimos, com sua loucura literária e o seu desassossego:“toda a sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais.”

Todos eles, pensadores e artistas, especularmente refletem o seu tempo, os seus pares, os seus anseios. Traduzem a natureza humana e o abissal caminho que percorrem. Convivem com a fúria humana, com a aparência das coisas e as suas manifestações.

Se ser louco é rebelar-se, ser são é mover-se socialmente. É buscar o equilíbrio, é apascentar os lobos da discórdia, analisando os possíveis passos que se vai dar. Ser paciente e ser compreensivo, é olhar com pro-fundidade os acontecimentos. É ser paciente e obediente e adaptar-se às mais variadas situações do dia-a-dia, aos absurdos presenciados nas ruas, nas repartições públicas, em todo tipo de descaso para com o cida-dão, na relação diária com os seus pares.

Ser são é deixar-se governar por incompetentes, é acreditar que a justiça é cega, que esses ruídos veiculados em algumas emissoras de rá-dio são música, que o conceitual, nas instalações absurdas, é arte, que as grandes redes de supermercado vendem barato, e que as universidades públicas são para pobre.

Ser são ou não, eis a questão! A “rima” é pobre, mas a questão é séria: de que lado estamos? De que lado você está? Nada melhor do que se olhar no espelho: se você for diferente... (26/04/2012)

* “De que loucura julgas tu que eu sofra?”

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PLENILÚNIO

Uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda e, rodopiante, acom-panhou os mesmos movimentos de Natinho em volta da fogueira de São João, por um momento, pareceu coalhada no firmamento, todos a observavam, ao passo que se voltavam para o menino, que também inerte se perdia no pesadelo do esquecimento. A bola saiu do seu des-canso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito de Natinho, que se desfez em cinzas. Naquela noite.

Um menino, um rádio e a ilusão do futebol. Foi assim que muitos disseram, anos depois, quando Natinho já não estava mais entre nós. Era Copa do Mundo de Futebol, México, 1970, estávamos reunidos em volta de uma mesinha de centro, no alpendre da minha casa, ouvindo um rádio à válvula, quando ele chegou. Tinha os olhos tristes e distantes e uma palidez de ausências. Viera com a sua mãe e dela não se desgru-dara por nenhum instante até o apito final, quando oBrasil venceu a Itáliapor 4 a 1 no estádio Azteca.

Durante a narração do jogo, num dado momento, começou a gi-rar em torno de si mesmo, até cair desfalecido. Foi um alvoroço. Trou-xeram álcool, esfregaram nos seus pulsos. Jogaram água na sua cabeça, e nada. Quando já pensavam em chamar o médico, ele começou a se mexer e, como se nada tivesse acontecido, abriu os olhos e levantou-se tranqüilamente. A mãe, sem se pronunciar, o pegou pelo braço e o levou para fora da casa. O jogo já estava no fim. Ouviu-se uma gritaria, fogue-tes e muito riso. O Brasil sagrara-se tricampeão do Mundo.

Alguns dias se passaram, e eu, ao voltar do trabalho, deparei-me com o menino, com os olhos arregalados, um cabo de vassoura na mão, e o rádio à válvula todo destruído. Sem saber o que fazer, pedi que cha-massem a mãe dele, na casa ao lado. Quando ela veio, o menino come-

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çou a berrar e a pular repetidas vezes. Ela o pegou pela orelha, pediu-me desculpas, prometendo arcar com o prejuízo, e o levou embora. Mais tarde vim a saber o porquê daquela destruição. Por insistência de um garoto, filho da dona da casa na qual ele estava hospedado, resolvera procurar, por entre as válvulas, os homens que narravam o jogo com a promessa de ganhar - deles - uma bola.

Desde cedo, Natinho demonstrou uma predileção pela forma cir-cular, arredondada. Ainda no meu colo teve a sua primeira experiência com essa forma, quando, na Lua Cheia de Áries, gritou descontrolada-mente e pinoteou, como querendo se soltar dos meus braços, para de-pois adormecer profundamente. E foi assim durante muito tempo, por doze ou treze vezes ao ano, repetia o ritual do plenilúnio, postava-se no batente da porta, que dava para o pátio, e ali, após um longo momento de contemplação, começava falar em uma língua estranha e rodopiar em volta de si mesmo, até cair inconsciente. 

Cresceu contando as luas, e, naqueles dias que antecediam ao es-petáculo celeste, ele se transformava, ficava quieto, silencioso e isolado. Gostava de refugiar-se na Grota, um riacho de água gelada, que passava atrás do sítio da fazenda. Sentava-se na sua ribanceira, e de lá atirava pedras na água. Encantava-se com os círculos que iam se formando, crescendo e indo embora. Entre uma pedra e outra, aproveitava para fazer rolar, ladeira abaixo, as laranjas que trazia consigo, num misto de gozo e felicidade.

Natinho cresceu e, aos dez anos, ficou extasiado ao se deparar com um repolho, sobre a mesa da cozinha, aquela lua verde esbranqui-çada, todo fundido em camadas, como ele viria a chamá-lo. Depois do susto, ficou andando por uma hora em volta da mesa, numa contempla-ção circunferencial, sem saber o porquê daquele sentimento. Durante toda aquela semana pensou no repolho, chegou até sonhar que ele tinha vida e eles eram amigos. Jamais aceitou comê-lo e repreendia, enfureci-do, quem o fizesse na sua frente.

Desde a primeira vez que vira uma bola, nunca mais tivera sosse-go. Foi num exemplar da revista Cruzeiro, esquecida por um visitante na varanda da nossa casa. Naquele dia, algo mágico aconteceu. Ficou transtornado, deu cambalhotas, chorou. Até então só conhecia as boli-

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nhas de meia que eu confeccionava para ele brincar. Depois disso, não quis mais comer, não saia do quarto, sempre trazia consigo a fotografia da bola, comprimida no peito nu e esguio. Uma paixão avassaladora.

O tempo passava e Natinho parecia mais esquisito, mais só, re-dondo nas suas elucubrações, nos seus pensamentos e visões, como a que ele tivera no momento que estava no curral ajudando o pai na ordenha do gado, como ele mesmo me dissera, e uma Lobeira, dessas bem grandes e verdes, desprendeu-se não se sabe de onde e começou a levitar, movendo-se em círculos, depois caiu e quicou inúmeras vezes, até desaparecer por detrás do curral. Seu pai nada percebera, mas ja-mais acreditou que o nosso filho estivesse predestinado ao encantamen-to, como os fatos viriam a se confirmar, anos depois. Na noite em que comemoramos o Pentacampeonato, uma bola de fogo cruzou o céu da fazenda. À primeira vista, pensávamos que fosse fogos de artifício, algo a mais na comemoração da vitória do Brasil sobre a Alemanha, apenas pensamos, porque ela parecia repetir os movimentos do nosso filho. Ao sair do seu descanso aparente, zigzagueou por sete vezes, descendo em disparada de encontro ao peito dele, que se desfez em cinzas. (2005)

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O POETA E A CIDADE – MEMÓRIAS

As cidades sempre me fascinaram, desde muito cedo, eu tenho um certo encantamento com relação a elas, não importa o tamanho, a simplicidade, o povo que nelas vive. Sendo cidade, já está no meu gosto, e como gosto de ser urbano, sem desprezar, é claro, a vida tranquila do campo.

A cidade da nossa infância sempre nos marca, positiva ou negati-vamente, dependendo do que ali foi vivido, conquistado ou perdido, das pessoas com as quais convivemos, como fomos ambientados. A minha cidade foi-me muito significativa: Miracema do Norte, na década de 60, era um lugar de mais ou menos 6.000 habitantes, mas, para mim, era uma metrópole, gigantesca: suas ruas longas, intermináveis, estirões no centro do mundo. Os seus becos, os seus postes de madeira: dois fios esticados e uma lâmpada não muito potente, faziam as noites mais ame-nas e diluíam o olhar brilhante dos vaga-lumes. A luz era gerada num velho motor a óleo dísel que, por horas a fio, mastigava a escuridão, prolongando o ilusório dia das nossas infâncias.

O tempo passou, acostumei-me com os dias longos e tristes: um dia uma festa, noutro, o sino seco da matriz carpia a ausência de mais um que partia, os martelos cadenciados desenhavam os caixões duran-te toda noite, já que não tínhamos funerárias. A cidade atravessava as estações, o Rio Tocantins banhava a cidade, muitas vezes exagerava no banho e a cidade, quase submersa, chorava escombros e doenças, até recompor-se e firmar-se com seus ventos gerais, no mês de julho.

E ali eu cresci, corri descalço pela piçarra que cobria as ruas, brin-quei com barquinhos de papel na enxurrada, colhi frutos silvestres pelo Correntinho e Bica, andei de bicicleta pelas ruas esburacadas, chupei manga e caju no pé, andei por quintas e nadei muitas vezes nas águas

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imensas do Tocantins. Descobri o sexo com as meninas no fundo quin-tal, até ser descoberto e levar uma surra de palmatória, ritos de pas-sagem, como a minha primeira comunhão, tudo por curiosidade para experimentar o sabor de uma hóstia. Sempre a cidade como palco.

Fiz o meu primeiro grau na Escola Paroquial Santa Terezinha, di-rigida pelos Padres Redentoristas, que mais tarde passou a se chamar Escola Estadual Santa Terezinha, e o segundo grau no Colégio Tocan-tins, sob a coordenação das irmãs da Assunção.

II

Na década de oitenta, mudei-me para Goiânia. Cheguei lá, em 1981, e fui morar na Rua 03 com Assis Chateaubriand, no Setor Oeste, vizinho da Praça Tamandaré: a explosão jovem daquele tempo. O Se-tor Oeste era um Bairro Nobre, e continua sendo, mas trazia a doçura de uma cidade pequena, o encanto de suas praças, a tranquilidade de suas ruas, ainda com poucos edifícios. O Fórum e o Palácio da justiça eram apenas armações de concreto, seres do abandono. Bairros como o Jardim América começavam a despontar. Nova Suíça, timidamente se escondia para lá da 85, só depois, com a abertura da T-63, é que ganhou ares de nobreza.

O tempo passou, nasceu o Flamboyant: uma revolução arquitetô-nica e conceitual. A cidade já não era a mesma, começava tomar feição de uma cidade do mundo. Bem mais tarde vieram os outros shoppings, enquanto isso, os bares fervilhavam de gente: D. Quixote, Beb’s, Jotas, Trem Azul, Flor da Pele, na Assis Chateubriand, com o canto de Gilber-to Correia e a voz e o toque preciso dos violões do Valtinho e do João Bolívar. O velho Trem Azul, sem falar na Praça da Cirrose, palco de bo-êmios e paqueras, com destaque para o Bar do Seu Marconi: o Canindé, com seus vendedores de rosas e amendoins, com as curvas modernas das moças e das cervejas, geladas em pé, nos 16 freezers incansáveis. Andando um pouquinho mais, podia-se ouvir a flauta afinada de Gilson Mundin, e, à noite, já bem mais leve, um encontro marcado no Latidude 2000, embalado pela voz do Pádua.

Aquele foi um tempo maravilhoso. De lá para cá, muita coisa mu-

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dou, a cidade tomou um ar de Grande Cidade, foi absorvida pelo pro-gresso, pela cobiça. Perdeu a inocência e deixou-se seduzir pelos que vinham de fora e prometiam transformá-la em um lugar mais aprazível. Prometeram urbanizá-la e, por pouco, não a destruíram.

III

Goiânia me traz belas lembranças, porque lá vivi uma boa parte, ou melhor, a maior parte da minha vida. Quem não se lembra do Hotel Presidente, do seu Cine Presidente, onde assisti pela primeira vez ao filme The Wall , Pink Floyd? Quem não se lembra da Galeria do Beto, no setor oeste, com seus barzinhos e lojas? Do Saloon, na República do Líbano. Do Hotel Bandeirante, com seu Piano Bar, palco de gran-des acontecimentos sociais? Umuarama Hotel, Samambaia Hotel, Hotel Araguaia, Lord Hotel, todos fazendo parte desta bonita história? Mo-mentos de uma vida, olhares vários de um tempo de encantamento, os belos bailes do Jóquei e do Jaó. Talvez pela distância, fato normal nas nossas fantasias de perpetuação do que é bom.

E a Praça Universitária? coisa igual não havia, ali embalei os meus sonhos, meus amores, a minha boêmia, quando comecei o meu curso de Letras na UCG, agosto de 1984, Época de D. Fernando. Vivíamos ainda a efervescência dos movimentos políticos, participei de algumas passeatas do DCE, juntamente com Denise Carvalho, Donizete, Ed-virgens, Claudinho, Sinésio Dioliveira, e tantos outros irmão de luta. Participei do Festival Interno da Universidade Católica – I FIUC, fazen-do parte de um pequeno caderno das músicas classificadas, na Gestão Águas de Março. Vivemos as Diretas, Já! Esta cidade sempre acolhedora e efervescente.

Em 1985, estávamos em Brasília ensaiando os primeiros passos de uma Democracia, mas não vimos Tancredo Neves no Poder, voltamos frustrados eu e mais uma centena de colegas da juventude socialista, que, durante dias, no DCE da UFG, nos preparamos para tão magnífico evento: confeccionamos faixas e cartazes. Bons tempos aqueles, apesar da repressão, da covardia e da humilhação.

Não só os ruídos de um belo tempo permanecem, mas a alegria,

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alguns sinais de uma alegria significativa que ainda resiste a todo o pro-gresso material dos nossos dias. Sempre voltei o meu olhar para estas duas cidades: Miracema e Goiânia, um olhar que perscruta o sentido dos acontecimentos, que, além do barulho ensurdecedor das máquinas, consegue ouvir o longínquo assobiar do vento e o rouco latido do cão abandonado. Um ser que se volta para as marcas do tempo e, com elas, redescobre sua ancestralidade, sonhos e percalços, com elas revive as longas conversas e madrugadas que nunca se repetiam, mas que traziam vontades e transformações.

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PONTOS DE FUGA*

Algumas leituras nos são fundamentais, por nos situarem no tem-po e no espaço e contribuírem para a nossa formação, não permitindo que se faça na realidade o imaginário perverso, e nem o bestial na sen-satez. Quantas já nos aliviaram a dor alma e nos livraram do sono letal da ignorância, quando em imensas noites alimentaram as manhãs vin-douras e os seguros passos de novas caminhadas.

Sobre elas, como bem o fez Hélio Pólvora no seu livro de ensaio ‘O Espaço Interior‘ (Editora da Universidade do Mar e da Mata, 1999), de-pois de ensaiar sobre a literatura universal, dedicou um capítulo às suas leituras e as de sua geração: ‘O que a minha geração leu’ – permitindo--nos um passeio saboroso pelo que há de mais diverso e importante na literatura universal: “A minha geração leu muito. Claro, a tevê só chegou quando éramos adultos. Para matar o tempo, que sempre resiste e acaba nos matando, segundo a lição de Machado de Assis, tínhamos apenas a Rádio Nacional, com os seus programas de auditório e dramatização de romances e contos, à base de uma parafernália de efeitos especiais. Sobrava tempo para leituras, devaneios. O livro foi companheiro diário, amigo sem rosto e sobretudo amigo fiel”.

Tal exposição, ao mesmo tempo em que nos fala de um espaço não muito longínquo, também nos dá a dimensão da formação de um dos nossos maiores contistas do Brasil, quando revela as “Leituras ao acaso, sem a ordem cronológica das escolas e dos movimentos literá-rios”, nos mostrando a capacidade que cada indivíduo, pelas suas elei-ções, tem de autoformar-se, bastando apenas um despertar, para que o mundo se faça inteiro e, irrepreensivelmente, nos dê as respostas que tanto buscamos nesses dias tão atribulados.

A literatura universal está cheia de relatos das mais diversas “ex-

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periências iniciáticas” como foi o caso de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac, todos eles, de alguma maneira, trazem lem-branças agradáveis das primeiras leituras, quase sempre adquiridas na infância, ao passo que avaliam o quanto elas foram fundamentais para que eles chegassem onde chegaram.

Todos têm uma história para contar, apoiados que estão nas suas experiência vividas e lidas, como é o caso do Escritor e Jornalista In-glês Graham Greene (Pontos de Fuga, Record, 1980), ao relatar magis-tralmente as suas leituras de mundo: Haiti, Vietnam, Praga, Paraguai, Quênia, África, numa demonstração de que a precisão da vida está em enfrentá-la.

Todos nós temos os nossos pontos de fuga, como no título de Greene, quando incisivamente fixamos os nossos olhos para além do horizonte empobrecido que nos maltrata. Talvez aí esteja a saída para os nossos dramas, sem que precisemos de mártires, como as crianças libanesas, os chorosos massacres da violência urbana, e tantos outros que se perderam pelos Parques do mundo.

Por tudo isso é que eu me pergunto: o que a minha geração leu ou está lendo, nesse exato momento? E os outros? De que motivação pre-cisamos para começar a ler, para ensaiar o primeiro capítulos das nossa experiências? Pode ser que, como muitos dizem, livro no Brasil seja coi-sa para elite, para ricos. Mas eu me pergunto, e as bibliotecas públicas? E o esforço individual? E a experiência dos nossos grandes escritores que, muitas vezes, por situações várias, tiveram de criar alternativas, lendo o que lhes chegava às mãos, tomando emprestado, fazendo cooperativas, criando salas de leitura.

Para quem quer começar, existem inúmeras maneiras e, talvez, este texto seja um começo. Que tal conhecer Hélio Pólvora, Graham Greene, Sartre, Hugo de Carvalho. Que tal fazer um passeio pela Gran-de Goiânia e conhecer as suas bibliotecas. Que tal escrever a sua própria história.

* Título tomado de empréstimo a Graham Greene.

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O QUE SABEMOS A RESPEITODE NÓS MESMOS

A luz, que para muitos pode cegar, torna-se essencial para outros, já que enxergar é ir além do que a vista alcança, quando, ao traduzir o visível, ampliamos o sentido das coisas e, com elas, compomos a alego-ria da existência.

Tudo o que sabemos a respeito de nós, de algum modo, nos foi dado a partir dos outros, a despeito de qualquer vontade nossa. Impres-sões que vão compondo os estereótipos do mundo, apesar de serem, muitas vezes, rasas demais.

É bem certo que não sabemos quase nada, mas algumas respos-tas poderemos encontrar, quando passarmos a observar o mundo mais detidamente, e isso, de certa forma, poderemos aprender com a arte, bendito fruto dos nossos artistas, tributadores da nossa inexperiência, do nosso convívio, das nossas diminutas percepções. São eles redese-nhadores de um mundo que sempre quisemos e queremos, coberto de humanidade.

Talvez jamais saibamos, embora necessitemos de um mínimo de compreensão para suportarmos essa árdua caminhada, arrebatados que estamos pelo mercado que nos segrega pela fúria de um capital que nos diferencia, pelo abismo imposto por todas essas diferenças que a “mo-dernidade” nos impõe.

Quantas obras literárias teremos de ler para que alcancemos uma compreensão do que é humano, para saber que Quixotes são necessá-rios à nossa sobrevivência, que as utopias alimentam a ilusão da nossa perenidade e, que com elas, refazemos, a cada dia, os nossos moinhos de vento?

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De quantos Míchkin necessitaremos para humanizar o mundo? De quantos Riobaldos para nos revelar a profunda geografia das nos-sas obtusas almas? Quantos Lorcas para nos dizer das agruras de uma morte inocente? De Jivagos, laras, Kareninas, Bovarys, para sabermos o quanto dói a perseguição, a calúnia, a ofensa e a maldade que, nos nos-sos dias, têm sido frequentes?

Tudo isso nos leva a refletir sobre o valor da arte, sobre as possi-bilidades que o artista tem para transformar as coisas. Tudo isso nos faz crer na transformação do espírito, nas cores de um novo amanhecer. Só a arte nos livra do tenebroso anoitecer da ignorância, só ela nos faz avançar para além do que nos prende.

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CRÔNICA, UMA TEORIA  

1. O que é crônica? O próprio nome já nos remete para um significado, porquanto crô-

nica vem de Cronus deus do tempo, chegando para nós como uma modalidade narrativa curta, de caráter pessoal e lírica. Primando por recortes de realidade e abordando uma temática variada. Às vezes, pode trabalhar com relatos do cotidiano, mas sempre iluminada pelo toque especial do autor.

2. Existe uma estrutura para escrever uma crônica? A crônica não deve ultrapassar “60 linhas”. Os parágrafos devem ser

curtos e bem estruturados; a linguagem deve ser expressiva e elegan-te.

3. Como se escreve uma crônica? Como se escreve qualquer texto, o autor deve ter um conhecimento

do assunto a ser abordado, dominar o código linguístico e, acima de tudo, primar pela clareza e objetividade.

4. Crônica: jornalismo ou literatura? Pode-se considerar tanto jornalismo quanto literatura. Por ocupar

um espaço no jornal, constituindo material desse veículo e refletindo as características desse espaço, a crônica é matéria jornalística “não referencial”, primando, às vezes, pela coloquialidade e pelo aspecto conotativo da linguagem. Literária por trazer em essência a percep-ção lírica do autor, portanto subjetiva, e a criatividade, de estrutura curta, como o conto, embora desse se distanciando pela simplicidade e fluidez.

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5. Crônica: razão ou emoção? Razão e emoção. Racionaliza-se ao projetar o texto, ao determinar

para que público ele se destina, ao estruturá-lo como feição estilísti-ca. Emoção pelo tema trabalhado, pela subjetividade do autor, pelos elementos conotativos e pela expressividade da linguagem.

6. O que inspira uma crônica? A vida em todos os seus aspectos: a mulher que passa, o olhar per-

dido e distante do oprimido, a desigualdade social, a incompreensão humana, a solidão, a alegria etc.. a própria crônica.

Este livro foi impresso na oficina da Asa Editora Gráfica/ Kelps, no papel: Off-set LD 75g, composto

nas fontes Minion Pro corpo 11,5;agosto, 2012

A revisão final desta obra é de responsabilidade do autor