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O Segundo Travesseiro Moa Sipriano

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O Segundo Travesseiro

Moa Sipriano

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Capa

Moa Sipriano

Imagem da Capa

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Primeira edição

Jundiaí / Novembro de 2015

Todos os direitos reservados a

Moa Sipriano

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INFERNO

Véspera de Natal.Na penumbra, o relógio caquético da sala indicava

exatamente cinco da tarde.Dominado pelo tédio, com a ponta enluvada de um dedo

dorminhoco, eu rabiscava um sol dono de um sorrisoestúpido, gaivotas raquíticas e casinhas meigas suportandoo peso de imensas chaminés no vapor formado pelo meuhálito sabor “chocolate quente com dez quilos de açúcar”,que havia tingido um dos vidros translúcidos da única janeladecadente da minha sala isenta de cor, só contrastes.

Lá fora, a chuva não dava uma trégua sequer desde asprimeiras horas da manhã, desabando sem piedade sobre ascasas de madeira.

Um frio sorrateiro congelava meus instintos maisprimitivos.

Dezembro de festas. Nosso verão estava atrasado. Quetempo louco!

Eu me sentia como se estivesse numa Nova Iorque desonhos, imaginando a neve cobrindo todas as mazelas dohomem rico, enquanto branquelos flocos esparsos tentavamreanimar as esperanças daqueles que ainda acreditavam noEspírito do Natal.

Chegávamos praticamente ao fim de 2001. Eu meesforçava para acreditar que era o começo de uma nova era.O mundo realmente havia mudado. Climas estranhos.Pessoas confusas e cada vez mais egoístas. Países destroçadoslambendo suas desconfortáveis feridas reabertas.

Impossível não relembrar a todo o momento que uma

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nação poderosa havia sido esfaqueada pela frente e pelascostas. Tum, tum... lanças flamejantes encravadas no coraçãodo mundo.

Naquele dia fatídico, chorei até perder o controle demim-eu-mesmo, enquanto permanecia estacado com os olhosgrudados na tela cansada, por horas a fio, zapeando entretodos os noticiários a fim de arrecadar o máximo deinformações possíveis a respeito do Absurdo.

Rememoro os silvos de incredulidade das pessoas quetentavam compreender o que estava acontecendo no Dia deTrevas. Acuado e apalermando, eu travava uma batalhaintensa contra minha mente e meu coração, procurandodescobrir o porquê de uma ausência sem sentido.

Evoco Gut, meu marido, e deságuo minha saudade aopressentir suas sombras ainda pairando atrás do meu espíritoachamboado.

Após dias de inquietação, ele abandonou nosso lar semdar maiores explicações.

Tudo terminou com um “vou sair e volto no final da tarde”e um beijo úmido na minha face esquerda, adormentada, àscinco da manhã do último dia de setembro.

Ou seria o primeiro raiar de outubro?Não houve um adeus.Já era outra noite quando me peguei caminhando de um

cômodo a outro da casa, preocupado, insistindo em avaliarquem eu julgava ter sido meu homem, meu companheiro,meu mais memorável amante. Eu queria respostas. Ou, pelomenos, compreender os meandros da ausência de lógica.

Entrei em desespero. Eu não encontrava uma razão paraaquela “fuga”. Cinco anos inúteis? Onde ele estava? Perdi a

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conta dos inúmeros e repetidos telefonemas que dispareicontra os nossos conhecidos. Tontificados, ninguém sabiade nada.

Gut partiu para uma dimensão paralela, amparado nosbraços da Senhora Aventura.

Foi a minha primeira morte.Em seguidas madrugadas, atônito, eu rodava pela casa

num rastejar aleatório, apreciando diversas coisas conquistadasem conjunto… simplesmente… deixadas para trás.

Roupas, sapatos, joias, relógios… objetos que trouxeramefêmeras alegrias e profundas emoções, resultado direto dasvitórias e sucessos de uma vida em comum.

Até a bendita roupa de mergulho e os caros trambolhossubmarinos ainda permaneciam espalhados pela garagem, àespera do seu legítimo dono.

Net e Web, nossos gordos ursos de pelúcia canadenses,amanheceram desnudos, jogados e ignorados num canto dosofá no primeiro de outubro. Eu dormi no chão.

Resumindo a ópera-bufa: Da nossa trincheira partiu meuhomem carregando somente a pochete com os documentosessenciais, um cartão de crédito vencido, nossa única fotoabraçados e sorridentes comemorando cinco anos de “casados”num badalado restaurante na Cidade Cinzenta; o capacetevermelho esfolado na altura da nuca e a indefectível jaquetade couro “exterminador do futuro… incerto”. Nada mais.

Gut evaporou-se nas brumas de outubro, montado emsua moto ano 1975, recentemente restaurada a um custoexorbitante, minando boa parte de nossas economias.

Eu nunca mais fui o mesmo. Seguiram-se meses deanulação suprema. Eu precisava de respostas concretas para

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diversas perguntas que ficaram pairando no entorno da brisaloveana.

* * *

Vinte e quatro. Onze e meia.As crianças aproveitavam a trégua dos céus para

aporrinhar os adultos em busca de guloseimas e pequenaslembranças natalinas. Era a nossa tradição, copiadadescaradamente da grande festa americana em homenagemàs bruxas fofas ou más.

Pouco antes da meia-noite, a turba mirim saía emdisparada, batendo de porta em porta, entoando trechosde canções santaclausianas num dialeto parte em alemãoperfeito, parte em português capenga, enquanto o donoda casa visitada procurava dividir entre as crianças (ealguns marmanjos) balas e doces e fatias de bolosconfeitados delicadamente, envoltos num tecido dealgodão branquíssimo.

A algazarra ganhava espaço quando os pimpolhos erampresenteados, além dos doces, com carrinhos de madeira ebonecas de pano, tudo multicolorido, produzidos comesmero, técnica milenar e paciência infinita pelos grandesartesãos da ilha.

Eu também fazia a minha parte, preparando ao longodo ano pequenos livretos com poesias e figuras para colorir.As frases poéticas eram de minha autoria. Os desenhos detraços simples e deliciosamente infantis eram frutos dotalento de Gut, um maravilhoso ilustrador incompreendido.

Felizmente, antes da abdução, meu ex-marido havia

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deixado imagens suficientes para alegrar uma infinidade dedezembros adiantes.

Eu acomodava os livretos no centro de latas individuaisdecoradas com carinho, onde lápis coloridos e borrachasperfumadas completavam o presente educativo.

Quanta alegria e orgulho sentir que minhas latasliterárias eram disputadas “à tapa” (risos)… não só pelospequenos!

Os sinos da igreja de São Crabedean destilaram seusgritos agudos, porém harmoniosos, nove segundos antes dameia-noite oficial.

Uma saraivada de “boas-festas” e “feliz natal” entoadaora em alemão, ora em português, algumas vezes em inglês,tentava sufocar, em vão, as badaladas sagradas de uma festaprofana.

Sorrisos e abraços sociais eram compartilhados comsinceridade. Boa parte dos nativos da ilha ainda mantém oegoísmo trancado à sete chaves.

Eu ouvia toda a alegria à distância, soterrado debaixodo edredom, enquanto meus sentimentos destroçados e minhasolidão esmagadora eram asfixiados no último grau do vaporetílico que rodopiava nas veias do meu corpo decadente.

As garrafas vazias de Budweiser rolavam sobre o pisode madeira, acarinhadas ao som dançante dos sinos de belém-bein-bein misturados com The Beloved, segundo minhaaudição difusa.

Bêbado, sempre bêbado em ocasiões especiais. Eu souum bicho antissocial.

Desde que Gut partiu, eu vivia como um ermitãotrancafiado conscientemente dentro de casa. Eu só me

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ausentava do labirinto por uma hora – no máximo hora emeia! – nas assustadoras quartas-feiras, quando precisavaentregar textos datilografados ao meu editor estressado,afundado em seu escritório nicotinoso no centro de Lovland,duzentos e trinta e sete passos além da minha caverna.

Por intervenção da Santa Ironia, meu sustento vinha dapublicação semanal de um prolongado artigo de autoajudana segunda página em preto e branco do nosso jornal local.Meus criativos e afamados parágrafos “pra cima” mimavama esperança do meu povo.

Cheguei a distinguir insistentes batidas na porta da sala.Imaginei meu sobrenome (McBee, McBeeeee!) sendoproferido por vozes masculinas e femininas em uníssono.

A casa apagada e melancólica espantou os espíritosalegres e festeiros, que foram gozar seus momentos mágicosem outras bandas.

Net e Web recuperaram o direito de permanecer enfiadose aquecidos no meio das minhas pernas finas, desprovidasde pelos, que tiritavam sem cessar embaixo do edredom.

Adormeci. Trêpado e comatoso.Acordei aos pulos por volta das dez da manhã de um

Natal gelado e distante.Clara, minha vizinha-fofoqueira-de-plantão, fã número

dois dos meus artigos, quase destruiu a janela do meu quarto,implorando aos berros para que eu acordasse, levantasse omais rápido possível e ligasse a televisão.

Entre insistentes gemidos e doloridos sussurros,confirmei minha presença na casa e arrastei meu cinzentocorpo estropiado para minha sala descolorida.

Mal eu havia destravado a pesada porta, Clara entrou

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esbaforida, olhando-me de cima a baixo com cara de nojo,ao perceber meu estado deplorável acompanhado do meuhálito afasta-bofe.

Sentei-me de qualquer jeito no grande sofá, enquantoPôcaltura tentava descobrir qual botão quebrado do controleremoto ligaria a ancestral televisão.

Mesmo antes de a imagem ganhar nitidez na tela devinte polegadas, o som grave e assustador de sirenes etumultos generalizados atinou de vez meu nono sentido.

A grande ponte que liga Lovland ao mundo do lado delá era palco de uma tragédia.

Luzes vermelhas e azuis tentavam quebrar as sombrasdaquele dia de Natal agora sem festas. O velho ônibus do Sr.Raasch praticamente havia se partido ao meio!

Malas, bolsas, presentes e enfeites chamuscados, ferrosretorcidos e corpos desfocados pululavam na tela,quadriculados.

A voz emocionada da repórter da TV Cidade Cinzenta– o primeiro caos do continente ligado à minha ilha tranquila,através daquela ponte – ruminava com imperfeita precisãoas dimensões do impossível.

De acordo com algumas testemunhas, algo havia sesoltado da traseira do veículo, fazendo com que o mesmoganhasse uma velocidade descontrolada. Segundos depois,as rodas dianteiras travaram, provocando o inevitávelcapotamento.

O ônibus bateu violentamente numa mureta de concretolocalizada quase no final da ponte, logo na entrada da ilha,pouco antes do pórtico de boas-vindas, rodopiando sobreseu próprio carma, até se desmanchar num canto do asfalto

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molhado, do outro lado da pista.Dos trinta e oito passageiros, nove terminaram aquela

manhã de Natal ao lado de Deus.Pedi para Clara me deixar sozinho. Eu não estava

disposto a dividir comentários e adivinhações conspiratóriassobre uma nova tragédia coletiva.

Minha vizinha perguntou pelo menos trinta vezes se euia ficar bem, ao observar meu estado crítico em francadecomposição, preocupada com meus olhos inchadosgotejando tristeza e cansaço.

Meu falso sorriso abatido envolto num hálito fétidodespachou de vez minha caridosa visita insistente.

Preparei uma dose cavalar de café e açúcar e mais umavez permaneci aturdido diante das imagens ao vivo projetadaspelo grande reprodutor de mundos disformes.

Eu sorvia goles fumegantes que feriam o céu da minhaboca e minha garganta atrofiada. O vapor que fugia galopanteda minha caneca de ágata turvava meu olhar castanho-mareado. Dezenas de lágrimas deslizavam torrencialmentena devassidão do meu rosto contorcido.

No final daquela outra manhã macabra, todos na ilha jásabiam as identidades dos seus mortos.

O tempo corria fora de compasso.Eu pressentia lapsos de movimento além do meu reino

das portas seladas. Idas e vindas de pessoas boquiabertas,atarantadas, buscando o alívio num ombro amigo disposto aaguentar um fardo deveras insuportável.

E eu ali, o Senhor das Consolações, impotente, sem umaúnica palavra de amparo aos meus fiéis leitores. Um poltrão.Era isso o que eu era.

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Felizmente, na confusão, todos esqueceram SvenMcBee.

Eu também havia morrido para os amigos.Eram oito e treze de outra noite desoladora. O último

gole de um chá frio sambava no interior das minhasbochechas murchas. Deixei a televisão sem som durante umtempo não mensurado.

Eu não suportava ouvir o sofrimento dos meusconhecidos estampado na tela. Sons excruciantes de almasalemãs que perderam seus filhos, amigos, conhecidos ouamantes… todos tão amados!

Eu sempre sonhei em ver Lovland na TV. Mas nãodaquela maneira.

Tentei tomar um banho, curar-me da ressaca e do abalopsicológico a que havia me submetido. Não conseguipermanecer mais do que alguns segundos debaixo das águasquentes. As violentas gotas despencadas do chuveiro feriamminha pele, atingindo em cheio meu espírito derrotado.

Voltei para a sala envolto no velho roupão felpudo queum dia fora do meu último marido, o palerma abduzido pelasua própria ignorância.

Respostas. Eu exigia as respostas de um ato baixo einsensato. Gut, cadê ocê meubranco? De onde estiver, será quevocê está acompanhando o nosso sofrimento agora, ao vivo?

Uma imagem despertou meu coração assim que ele surgiudiante dos meus olhos, roubando imediatamente minha atenção.

O corpanzil róseo, deturpado por uma desfiguradafonte de luz branca, estava retesado num canto da grandepilastra de concreto que sustentava a estrutura da nossarodoviária modernosa.

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Um repórter forasteiro, insensível, tentava sequestrarmais alguma informação daquele homem destruído pelatragédia ocorrida horas atrás. Aumentei o som da TV, naesperança de captar a essência da dor do entrevistado.

Entre soluços angustiantes, o homem relatava suaimpotência diante do acontecido. Pelo que eu entendi,somente por volta das onze da manhã do fatídico Natal éque ele soube que houvera um acidente envolvendo toda suafamília.

Aquele rosto rústico, enevoado numa poça de lágrimas desangue ao voltar da impossível despedida, espargia suainconformidade diante da câmera bisbilhoteira e sensacionalista,que perscrutava seu semblante alterado, tenso, assustado.

Captei no seu olhar o vazio da minha alma, pois foraexatamente aquela dolência que eu havia sentido quandoperdi meu pai, depois minha mãe e, de certa forma, tambémquando perdi Gut para não sei o que, quem ou onde.

Aceitar que uma pessoa que você ama simplesmentenão existe mais por causa de um acontecimento previsto(meus pais morreram de câncer: ele no pulmão; ela na laringe– tudo por causa do maldito cigarro de palha) é algo doloroso,porém compreensível. Ainda me revolto, puteado, aorelembrar que mesmo conscientes dos males do fumo, elesnunca se cuidaram.

Mas perder alguém que um dia simplesmenteresolveu evaporar-se, é muito estranho, pois você se vêcompletamente isento de parâmetros para traçar e avaliaros fatos com acuidade.

Desliguei a velha Panasonic. Corri para o meu quarto.Meu rosto estava encharcado em desalento. Gritei,

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solucei, me debati sobre a cama desfeita… no seu ladoesquerdo.

Encarei o segundo travesseiro no lado direito dodesencantado ninho de amor.

Sentia-me sozinho, derrotado, amaldiçoado.Eu queria aliviar minha dor no abraço apertado de um

amor ausente.O grito do olhar daquele loveano havia sido gravado a

fogo nas minhas retinas dilaceradas. O fogo da compreensãoimutável de quem passou pela nefasta experiência daSenhora Dor a estuprar impiedosamente nossos espíritosimpotentes.

De um só golpe, aquele cidadão havia perdido nãoapenas sua família, mas também qualquer perspectiva defuturo, tornando-se mais uma vítima da solidãoinvoluntária, enfurnado sistematicamente num sofrimentodiabólico que o consumiria por anos e anos e anos a fio.

Em uma débil oração, implorei para que Deus oprotegesse.

Senti em sonhos, por alguns microssegundos, aquelaalma arruinada sendo beatificada pelas minhas mãosexperientes, abençoadas, tranquilizadoras.

Mudar a posição. Colocar-se no lugar do outro.Distribuir carinho e receber um momento de atenção. Eis achave do equilíbrio.

Ah, se eu soubesse volitar… eu queria ser o anjo daguarda daquele Esquecido.

“Eu aniquilaria as fisgadas da sua dor com a passagemdo meu amor canforado, meu amedrontado desconhecido”,viajei, entre sonhos REMnianos.

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Eu conhecia profundamente os meandros daquelesofrimento. Morri dolorosamente entre soluços derreados elágrimas cáusticas.

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PURGATÓRIO

Na primeira sonolenta quarta-feira de abril, sem umpingo de vontade de participar das comemorações de seteanos de existência da Folha da Ilha, eu depositava sobre asmãos macilentas da minha adorada Sra. Köhler, secretáriado meu editor, mais um extenso artigo datilografado, ondeinspirada cadência de recicladas frases de consolo e incentivotentavam dissuadir a lazarenta da Senhorita Angústia, aVirgem, que insistia em mortificar – como uma chaga! – oscorações dos habitantes de Lovland.

A temporada de verão foi um tremendo fiasco. De umahora para outra, o tempo enlouqueceu, chuvas torrenciais eventos indomáveis empaparam nossas praias, afugentandoos tradicionais jovens surfistas endinheirados que,desiludidos, foram se aventurar em outras paragens.

Poucos gatos pingados, basicamente nossos vizinhosargentinos – sempre os mais velhos, falantes e barrigudos –deram as caras nas praias, bares e pousadas de umairreconhecível comunidade quase fantasma.

Num rodopio violento e vicioso, a tristeza pela perdade nove vidas cheias de virtudes e alegrias embotou de vezos ânimos loveanos.

Os pescadores fanfarrões já não relatavam mais suashilariantes inverdades com disposição e vitalidade. Aslavadeiras e fiandeiras velhas, solteiras e fofoqueiras, tambémnão destilavam mais seus sarcásticos venenos sobre tudo oque ocorria nas vidas alheias.

Até as crianças já não sorriam, brincavam ou sedivertiam livremente no colégio ou no parque público como