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Roberto Schwarz A flor da moita, em cujo encanto não entram artifício e linhagem, é uma figu- ra cara às Luzes, ao Romantismo e ao sentimento democrático da vida. A ex- pressão serve de título a um passo capi- tal das Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde todavia ela traz um segun- do sentido, contrário ao primeiro. De- signa com desprezo a moça nascida fora do casamento, concebida atrás do arbus- to, por assim dizer no matinho. O con- flito das acepções resume o teor ideo- lógico do episódio, ao passo que a gros- seria do trocadilho anuncia os extremos, em matéria de baixeza, a que a narrati- va irá. Eugênia e Brás vivem um curto idílio campestre, ela filha natural de Dona Eu- sébia, uma solteirona que freqüentava a casa dos Cubas em condição inferior, ele o moço abastado e família que conhece- mos. O episódio se passa na Tijuca, onde o rapaz fora buscar retiro. As circunstân- cias, os protagonistas e o obstáculo social fazem esperar uma complicação românti- ca, a qual desponta, mas é encerrada por um desfecho de outro caráter. Para receber o rapaz, a moça desveste os enfeites costumados, e aparece sem brincos, broche ou pulseira. É uma so- lução poética e exigente, ditada pela suscetibilidade. Ao marcar as diferenças materiais, Eugênia corta as fantasias de paridade social e mostra conhecer o seu lugar; entretanto, é claro que o gesto tem mais outro sentido, pois prescindir da quinquilharia externa é também lem- brar a igualdade essencial entre os indi- víduos e proibir ao moço tratá-la como inferior. São cálculos severos, a que ain- da assim não falta um pensamento de sedução: para uma sensibilidade esclare- cida, o despojamento e a graça natural são ornatos máximos, superiores às cir- cunstâncias de fortuna. O doutor Cubas, veterano de alguns anos de "romantismo prático e libera- lismo teórico" no Velho Continente, não permanece insensível. Aprecia a digni- dade da menina, superior ao nascimento irregular e à situação precária, e corre o risco de "amar deveras", quer dizer, de igual para igual, e casar. Ao mesmo tempo sente cócegas de fazer um filho natural à rapariga mal-nascida. Na pri- meira hipótese, o amor o levaria a su- perar as prevenções de família e classe, e a reconhecer o direito igual das pes- soas (ao menos das pessoas livres). Na segunda, cujo clima abjeto é determi- nado pelo prévio reconhecimento da dig- nidade da moça, trata-se de desrespeitar esta igualdade e gozar as vantagens da própria riqueza e posição, complemen- tares, naturalmente, da pobreza e falta de situação de Eugênia. Note-se, na vacilação de Brás, o reve- zamento de respeito e escárnio pela con- duta esclarecida. Comentando a reserva de Eugênia, havíamos observado uma alternância correlata, pois a moça tanto aceita a inferioridade de sua situação (que deixa o moço em posição superior), como sustenta, ainda que mais discre- tamente, a sua absoluta dignidade pes- soal (que exige respeito e não exclui o amor e um casamento em sociedade). Assim, entre a conduta de Brás e a si- tuação de Eugênia existe correspondên- cia estrita, e as respectivas dubiedades se engrenam e realimentam como partes de um sistema prático. Esta relação — real e ficcional ao mesmo tempo — im- plica um jogo de virtualidades objeti- 38 NOVOS ESTUDOS N.º 17

O Sentido Histórico Da Crueldade Em Machado de Assis - Roberto Schwarz

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Roberto Schwarz sobre Machado de Assis

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  • Roberto Schwarz A flor da moita, em cujo encanto no

    entram artifcio e linhagem, uma figu- ra cara s Luzes, ao Romantismo e ao sentimento democrtico da vida. A ex- presso serve de ttulo a um passo capi- tal das Memrias Pstumas de Brs Cubas, onde todavia ela traz um segun- do sentido, contrrio ao primeiro. De- signa com desprezo a moa nascida fora do casamento, concebida atrs do arbus- to, por assim dizer no matinho. O con- flito das acepes resume o teor ideo- lgico do episdio, ao passo que a gros- seria do trocadilho anuncia os extremos, em matria de baixeza, a que a narrati- va ir.

    Eugnia e Brs vivem um curto idlio campestre, ela filha natural de Dona Eu- sbia, uma solteirona que freqentava a casa dos Cubas em condio inferior, ele o moo abastado e famlia que conhece- mos. O episdio se passa na Tijuca, onde o rapaz fora buscar retiro. As circunstn- cias, os protagonistas e o obstculo social fazem esperar uma complicao romnti- ca, a qual desponta, mas encerrada por um desfecho de outro carter.

    Para receber o rapaz, a moa desveste os enfeites costumados, e aparece sem brincos, broche ou pulseira. uma so- luo potica e exigente, ditada pela suscetibilidade. Ao marcar as diferenas materiais, Eugnia corta as fantasias de paridade social e mostra conhecer o seu lugar; entretanto, claro que o gesto tem mais outro sentido, pois prescindir da quinquilharia externa tambm lem- brar a igualdade essencial entre os indi- vduos e proibir ao moo trat-la como inferior. So clculos severos, a que ain- da assim no falta um pensamento de seduo: para uma sensibilidade esclare-

    cida, o despojamento e a graa natural so ornatos mximos, superiores s cir- cunstncias de fortuna.

    O doutor Cubas, veterano de alguns anos de "romantismo prtico e libera- lismo terico" no Velho Continente, no permanece insensvel. Aprecia a digni- dade da menina, superior ao nascimento irregular e situao precria, e corre o risco de "amar deveras", quer dizer, de igual para igual, e casar. Ao mesmo tempo sente ccegas de fazer um filho natural rapariga mal-nascida. Na pri- meira hiptese, o amor o levaria a su- perar as prevenes de famlia e classe, e a reconhecer o direito igual das pes- soas (ao menos das pessoas livres). Na segunda, cujo clima abjeto determi- nado pelo prvio reconhecimento da dig- nidade da moa, trata-se de desrespeitar esta igualdade e gozar as vantagens da prpria riqueza e posio, complemen- tares, naturalmente, da pobreza e falta de situao de Eugnia.

    Note-se, na vacilao de Brs, o reve- zamento de respeito e escrnio pela con- duta esclarecida. Comentando a reserva de Eugnia, havamos observado uma alternncia correlata, pois a moa tanto aceita a inferioridade de sua situao (que deixa o moo em posio superior), como sustenta, ainda que mais discre- tamente, a sua absoluta dignidade pes- soal (que exige respeito e no exclui o amor e um casamento em sociedade). Assim, entre a conduta de Brs e a si- tuao de Eugnia existe correspondn- cia estrita, e as respectivas dubiedades se engrenam e realimentam como partes de um sistema prtico. Esta relao real e ficcional ao mesmo tempo im- plica um jogo de virtualidades objeti-

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  • vas, exploradas por Brs, a quem, reci- procamente, elas conformam o modo de ser. Este por sua vez est formalizado no estilo literrio do livro, de que o prprio Brs narrador: um narrador acintosamente volvel, empenhado a to- do instante em desrespeitar a cronolo- gia, a verossimilhana, a boa-f do lei- tor, o decoro do estilo ou, em suma, a regra de convvio nas letras. Eis a a so- lidariedade entre observao social, es- quema dramtico, organizao das per- sonagens e padro bem como ponto de vista de classe da prosa.

    Forma literria e relao social injus- ta respondem uma outra com rigor, fazendo que a explorao de um plo implique a fixao de dimenses do ou- tro. A discriminao histrica da ma- tria tratada um requisito, no caso, da apreciao crtica. Tudo est em dife- renar ao mximo e no dissolver no arqutipo da moa pobre e do moo ri- co a particularidade sociolgica do idlio.

    Eugnia alis no propriamente po- bre. Educada na proximidade da camada proprietria, ela pode at fazer um bom casamento e vir a ser uma senhora. Mas pode tambm terminar, como termina, pedindo esmola num cortio. Do que depende o desfecho? Da simpatia de um moo ou de uma famlia de posses. Nou- tras palavras, depende de um capricho de classe dominante. A o ponto nevrl- gico, para quem, como quase todo mun- do, tivesse notcia dos Direitos do Ho- mem ponto agravado ainda pelos ter- mos extremados da alternativa entre se- nhora e pedinte. Faltando fundamento prtico autonomia do indivduo sem meios em conseqncia da escravido o mercado de trabalho incipiente o valor da pessoa depende do reconheci- mento arbitrrio (e humilhante, em caso de vaivm) de algum afortunado. Neste sentido, penso no forar a nota dizendo que Eugnia, entre outras figuras de ti- po semelhante, encerra a generalidade da situao do homem livre e pobre no Brasil escravista.

    No sendo proprietrios nem escra- vos, estas personagens no formam en- tre os elementos bsicos da sociedade, que lhes prepara uma situao ideolgi- ca desconcertante1. O seu acesso aos bens da civilizao, dada a dimenso mar- ginal do trabalho livre, se efetiva somen- te atravs da benevolncia eventual e dis- cricionria de indivduos da classe abo- nada. Assim, se no alcanam alguma

    espcie de proteo, os homens pobres vivem ao deus-dar, sobretudo cortados da esfera material e institucional do mundo contemporneo. Este, por sua vez, padronizado nos pases clssicos da Revoluo burguesa, programaticamen- te contrrio quela mesma proteo que, no Brasil, o bilhete de ingresso em seu recinto. Noutras palavras, a partici- pao do homem pobre na cultura mo- derna dava-se ao preo de uma conces- so ideolgico-moral de monta, que ele pode elaborar de muitos modos, mas sem lhe escapar.

    No h exagero portanto em afirmar que o favor pessoal, com sua parte ine- vitvel e j ento imperdovel de capri- cho, vem colocado em primeiro plano pela estrutura social do pas ela mesma. Foi natural que o emaranhado singular de humilhaes e esperanas ligado a este quadro se tornasse matria central no romance brasileiro, que em boa par- te se pode estudar como apresentao e aprofundamento dos dilemas correspon- dentes. Seja como for, na relao com esta forma especfica de desvalimento que a volubilidade cobra relevo pleno. Isto porque percebida e se percebe como poder social, que reserva ao outro, enquanto possibilidades reais, tanto a sorte grande da cooptao (aqui, o casa- mento desigual) como a humilhao do dependente ou a indiferena moderna em face do concidado (que entretanto no cidado deveras e no tem meios de sobreviver). O leque dos destinos dis- ponveis, de amplitude vertiginosa e ca- tastrfica para a parte pobre, , para a parte proprietria, o campo das opes oferecidas ao exerccio do capricho. An- te tamanha desproporo claro que este ltimo desenvolve um sentido exal- tado de si e da prpria relevncia, que o faz brilhar em toda linha. Reciproca- mente, na relao com a procura de- sordenada de supremacias imaginrias, e com o seu poder efetivo, que a des- proteo dos pobres aparece na sua di- menso exata.

    Alguns dias depois de colher o pri- meiro beijo de Eugnia, o rapaz lembra do pai, das obrigaes de carreira, da constituio, do cavalo etc, e resolve descer da Tijuca para o Rio. O sinal dado por uma voz interior, que lhe co- chicha palavras da Escritura ("Levanta- te e entra na cidade", Act. IX, 7). Brs entende o conselho divino a seu modo, concluindo que cidade no caso seria a

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    1. Antonio Candido fixou a importncia deste quadro pa-ra a compreenso do roman-ce brasileiro (cf. "Dialtica da Malandragem", Revista do instituto de Estudos Bra-sileiros, n. 8, So Paulo, 1970). Para anlise sociol-gica da situao, ver Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata, So Paulo, IEB, 1969.

  • O SENTIDO HISTRICO DA CRUELDADE EM MACHADO DE ASSIS

    capital e que era tempo de escapar moa. Onde o Paulo bblico se conver- tera de flagelo em apstolo dos cristos, o seu mulo brasileiro se desconvertia da tentao esclarecida, para fazer fin- ca-p na iniqidade oligrquica. Lem- brava os preceitos ouvidos do pai: " preciso continuar o nosso nome, con- tinu-lo e ilustr-lo ainda mais. ( . . . ) Teme a obscuridade, Brs; foge do que nfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais se- guro de todos valer pela opinio dos outros homens. No estragues as vanta- gens de tua posio, os teus meios. . . " (cap. XXVIII).

    Qual o sentido desta conduta? No que tange intriga, o episdio termina sem maiores desdobramentos ou revela- es, com a partida do rapaz. Um final rigorosamente comum, que no podia ser mais apagado, nem mais caractersti- co. O efeito crtico est na frustrao do desejo romanesco do leitor ( j que Eugnia, conhecendo o quadro, abafa o sentimento e sai de cena em silncio). Dada a assimetria destas relaes, em que, pela razo exposta, a parte pobre no ningum, tudo est na deciso da parte proprietria, a que no h nada que acrescentar. Deste ponto de vista, a fabulao reduzida expressa uma cor- relao de foras, e reitera a face taci- turna do poder. Contudo, nem por isso os Direitos do Homem e o sculo XIX deixam de existir. As possibilidades que Brs recusa na prtica e portanto exclui do enredo esto vivas em seu esprito de indivduo moderno, onde se recompem segundo a situao. Basta juntar ao epi- sdio, em si corriqueiro, porm com fei- o de classe bem definida, as repercus- ses morais que logicamente lhe corres- pondem no mbito do homem superior aquele que se encontra no plo do- minante da relao e veremos surgir um retrato social de eloqncia sem pa- ralelo na literatura brasileira.

    O idlio transcorre sob o signo de quatro borboletas. A primeira, um smi- le das imaginaes vadias do rapaz, anuncia o tema. A segunda, toda em ou- ro e diamantes (insinuao?), foi posta no pensamento de Eugnia pelas corte- sias do moo rico. A terceira grande e preta, e entra na varanda em que esto reunidos Dona Eusbia e o par de jo- vens. A boa senhora e a filha ficam as- sustadas, talvez por superstio, propor- cionando ao doutor o prazer de se sen-

    tir forte e filsofo, enquanto espanta o inseto com um leno. Na mesma tarde, cruzando com a moa, Brs nota que ela o cumprimenta de igual para igual. Ele supe que alguns passos adiante ela vol- tar a cabea para olh-lo, coisa que no sucede. A decepo no deixa de irritar e forma o contexto em que se compre- ende a quarta borboleta, tambm ela grande e negra, aparecida no quarto do rapaz no dia seguinte. Inicialmente o bichinho bem recebido, pois recorda a cena da manh anterior, com os modos bonitos da menina, que tratava de es- conder o susto, e sobretudo com o papel superior que tocara ao cavalheiro. Em seguida a borboleta muda de significa- do, talvez porque se deixa ficar e conti- nua a mover as asas de modo brando. Para Brs ela agora representa a persis- tncia da mocinha na lembrana, alm da falta do gesto subalterno, que j on- tem causara aborrecimento. Brs sente "um repelo dos nervos" forma agu- da de volubilidade e mediante uma toalhada acaba com o assunto.

    A brutalidade da concluso prefigura o desenlace do idlio, que naquela altu- ra mal comeava. Aplicada a um ser ino- fensivo, a pancada mortal desnuda um as- pecto metodicamente aleatrio da dominao de classe. O contedo da re- lao social estendido relao com a natureza: a dignidade natural (ou cidad) de Eugnia, que no traz o vinco da su- bordinao oligarquia, torna odiosa a espontaneidade em qualquer plano, inclu- sive o das borboletas. E como a natureza existe tambm dentro de ns, certo que alm do inseto e da moa a pancada visa- va, no interior do prprio Brs, o respei- to espontneo pelo valor do prximo.

    Nesta altura, o leitor das Memrias no deixou de notar que omitimos uma particularidade decisiva do episdio, aquela em que vai se fixar o principal das reaes de Brs: o defeito fsico de Eugnia. Com efeito, alm de bastarda e sem posses, a menina coxa. Obser- ve-se todavia que o rapaz no se d con- ta do defeito seno tarde, quando a dig- nidade da criatura pobre j o havia inco- modado ao ponto de fazer que ele a aba- tesse em efgie. Noutras palavras, a lgi- ca e o desfecho do episdio fixaram-se em funo de inferioridades sociais, e a im- perfeio natural superveniente no afe- ta a marcha da situao. No obstante, ser ela, a inferioridade fsica, o piv das cogitaes do moo. Este despejar

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  • sobre a deformidade natural os maus sentimentos que lhe inspira o desnvel de classe, e, mais importante, ver a ini- qidade social pelo prisma sem culpa e sem remdio dos desacertos da natureza.

    Como entender esta substituio? Genericamente, a naturalizao de rela- es histricas serve ao conservadoris- mo. A sua oportunidade no caso pa- tente, j que a situao social da moa um problema de conscincia para o rapaz, ao passo que o defeito fsico um dado definitivo e, neste sentido, confortador. As coisas porm so mais enredadas, pois claro que a perna de- feituosa tampouco impediria Eugnia de ser uma esposa perfeita. Assim, alm de no ser a verdadeira, a razo alegada no convence, e firma o clima de des- conversa e desculpa esfarrapada, no li- mite do acinte, que central para a grosseria estudada ao extremo destes captulos. A explicao escarni- nha, que no pretende justificar nada e antes quer significar a realidade da for- a, aqui um elemento de baixeza entre outros. De fato, a dezena de pginas em que figura Eugnia, a nica personagem direita do livro, constitui um minucioso exerccio de conspurcao. A crueldade tanta, to deliberada e detalhista, que dificilmente o leitor a assimila em toda a sua extenso. como se o carter ex- tremado destas passagens impedisse a sua estranheza de ser percebida. Trate- mos de no reduzi-la ao caso psicolgi- co a parte de sadismo clara e vejamos nela um desdobramento veros- smil da ordem social que procuramos caracterizar. So as coordenadas do con- flito social que do transparncia e in- tegridade artstica aos desmandos do protagonista narrador.

    J mencionamos a leitura pejorativa de uma expresso to cndida como "a flor da moita". Um captulo vizinho chama-se "coxa de nascena". Outra fal- ta de caridade. Quando jura, "pela coxa de Diana", que no pensava fazer mal a Eugnia, Brs evidentemente procura ser excessivo, e at inexcedvel. Em to- dos os casos est em jogo o direito da moa, e, atravs dele, o respeito viso ilustrado-romntico-liberal do indivduo, que o protagonista vai ofender com exasperada deliberao. No por sata- nismo (ainda que estas pginas depen- dam de Baudelaire), e sim por ser um membro comum da camada dominante brasileira, que tinha naquela viso a sua

    referncia obrigatria, conhecendo em- bora a sua irrealidade local e vivendo esta contradio como um destino e uma permanente irritao. O desplante chega ao paroxismo no captulo dirigido "A uma alma sensvel", onde o cinismo de Brs abruptamente se volta contra o lei- tor e passa agresso direta, mandando que limpe os culos "que isto s ve- zes dos culos" presumivelmente embaciados de lgrimas inteis, derra- madas sobre o destino da boa Eugnia. Assim, a exorcizao do sentimentalis- mo liberal e o chamado realidade do privilgio completam-se na passagem s vias de fato contra o leitor, obrigado a sentir na prpria pele o aspecto ultra- jante da volubilidade narrativa e da for- ma de poder que lhe serve de mola.

    "Palavra que o olhar de Eugnia no era coxo, mas direito, perfeitamente so" (cap. XXXII). A malcia da frase est na jura inicial, que faz supor o lei- tor acanalhado (mon semblable, mon fr- re), avesso a imaginar que um defeito na perna no se acompanhe de uma di- minuio da pessoa. Esta suposio de cumplicidade tem propsito insultuoso, em que alis se explicita o carter agres- sivo das inmeras familiaridades toma- das com o pblico ao longo do livro. Contudo, atentando bem, notaremos que a jura no se destina somente a persua- dir a platia. Ela dita tambm para dentro, quando ento expressa mais embarao que surpresa, e funciona como uma interjeio interior. Por que seria importuno o esprito de Eugnia no se mostrar inferiorizado? O pargrafo se- guinte comea por uma exclamao an- loga, desenvolvendo a outra: "O peor que era coxa". Peor designa um in- conveniente maior que os demais enumerado logo a seguir: "Uns olhos to lcidos, uma boca to fresca, uma compostura to senhoril" (XXXIII). Estas prendas, que so o que retm o rapaz, transformaram-se em negativo na- turalmente por pertencerem a uma cria- tura pobre e por criarem um impasse moral e sentimental para o filho-fam- lia. Retenhamos trs pontos: a) o fundo da questo mesmo de classe, e o de- feito fsico no passa de um acrscimo, que lhe serve de libi; b) no contexto da dominao de classe, os trunfos hu- manos dos inferiores so vistos como outros tantos infortnios; c) a conve- nincia momentnea da personagem vo- lvel ideologicamente produtiva e en-

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    gendra modos de ver e dizer que a ex- pressam com preciso, sendo embora dis- parates luz de um critrio esclarecido. Este terceiro ponto exemplifica-se uma frase depois: "Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita?" Noutras pa- lavras, se o universo fosse ordenado ra- zoavelmente, moas coxas (pobres) no seriam bonitas, e moas bonitas no se- riam coxas (pobres). Trata-se de harmo- nia universal, mas concebida a partir da mais imediata convenincia particular, com supresso dos demais pontos de vista, e, sobretudo, sem supresso da dominao de classe.

    Que pensar deste festival de malda- des? Ele prossegue no plano da lingua- gem, cuja finalidade narrativa e exposi- tiva periodicamente cede o passo in- teno primria de humilhar. Aqui e ali, sem razo de ser precisa e como pura contribuio escarninha ao clima geral, encaixam-se a. palavra "p" e noes conexas. Assim, Brs est ao p de Eu- gnia, que est ao p dele, alm de ha- ver uma coxa de Diana e uma Vnus Manca, bem como um sem nmero de ps propriamente ditos, botas, sapatei- ros, calos, pernas que manquejam e, por fim, uma tragdia humana que pode ser pateada. Ao todo, em poucas pginas, so mais de trinta aluses desta espcie duvidosa, dezessete concentradas no cur- to captulo XXXVI, intitulado "A pro- psito de botas". O procedimento abrutalhado e simplrio, sem prejuzo da sutileza extrema do contexto: digamos que Machado tentava a sublimao da chalaa. De fato, como conseqncia da repetio, o desejo de tripudiar vai ex- pondo novos perfis. Inicialmente trata- va-se de soterrar, embaixo de remoques, a moa e o que ela significa. Por outro lado, a baixeza ostensiva das aluses tambm um modo de vexar o leitor e realar a prpria impunidade. Enfim, o encarniamento em que o processo cul- mina, com acintes quase a cada linha, deixa ver a necessidade em que se en- contra Brs de aniquilar a "alma sens- vel" dentro dele mesmo. Tudo somado, a tendncia para espezinhar as formas de espontaneidade que fujam ordem da oligarquia, isto nas personagens, no leitor e no prprio narrador, quer dizer em toda parte.

    "Pois um golpe de toalha rematou a aventura" (XXXI). Com esta frase cor- tante, Brs recorda o episdio da bor- boleta preta, cujo contedo social pro-

    curamos analisar. Pouco adiante, o ca- ptulo dedicado "A uma alma sensvel" conclui de forma comparvel: " e acabemos de uma vez com esta flor da moita". Noutros passos do livro, ante- riores ou posteriores, onde o assunto e clima so diferentes, encontraremos sob inmeras formas o mesmo gesto termi- nante, pondo fim ao pargrafo ou cap- tulo, ou dando um basta a uma aspira- o ou veleidade qualquer. Lembrando os escrpulos da necessitada Dona Pl- cida, vencidos por uma quantia que ele mesmo providenciara, considera o Cubas: "Foi assim que lhe acabou o nojo" (LXX). s folhas das rvores, que, co- mo tudo neste mundo, no so eternas: "Heis de cair" (LXXI). Encerrando as reflexes sobre a morte de sua me: "Triste captulo; passemos a outro mais alegre" (XXIII). Em todos esses finais h um eco ou prenncio, atenuado ou no, da pancada assestada em Eugnia. Virtualidades e direitos do indivduo, so- bretudo na figura da espontaneidade que levanta vo, vm exaltados pelo esprito do tempo. Atalh-los requer um instan- te de determinao nefasta o "repe- lo dos nervos" que permite ao namora- do abater o inseto. A recorrncia subje- tiva da barbrie o preo da reassero do arbtrio escravista e clientelista em pleno sculo liberal, reassero por ou- tro lado que nada tem de extraordinrio, e faz parte da necessidade e rotina da vida brasileira. O gosto pelo truncamen- to dos direitos e das aspiraes indivi- duais, visto como frioleiras, o que nas circunstncias no deixava tambm de ser verdade, uma constante cclica da prosa e est transformado em vezo de linguagem, um tique de irritao e im- pacincia diante de veleidades que no podem ser. Este encontra-se dissemina- do pelo romance, generalizando em for- ma de clima narrativo o resultado ideo- lgico de uma estruturao social, trans- posta igualmente no diagrama dramti- co dos episdios. A outro fator da unidade to poderosa do livro, a que en- tretanto no cabe, salvo por sarcasmo machadiano, dar o nome de harmonia. Brs encerrava um primeiro ciclo de vida e lhe dava o balano, quando en- contra Eugnia donde o relevo espe- cial da passagem. A tnica de infncia e juventude havia estado nas tropelias de menino rico a quem tudo permitido. A estada europia, sob o signo igualmente da inconseqncia, fez dele um homem

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  • educado: "Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentao". A morte da me o traz de volta ao Rio e, sobretudo, "fragilidade das cousas". O doutor refugia-se na Tijuca, para medi- tar a vida, a morte e a vacuidade de sua existncia anterior. Em face do nada, como ficam os caprichos da vontade e a procura exterior apenas das novas aparncias europias? Sobre fundo de crise, a simpatia por Eugnia ser uma hiptese de transformao. Para apre- ci-la devidamente preciso detalhar as alternativas que a precedem.

    Aos sete dias Brs est farto de "so- lido" e ansioso por voltar ao "bulcio". O passo alude aos trechos pascalinos so- bre a necessidade que tem o homem de se distrair de si mesmo. No caso do bra- sileiro, contudo, os termos do dilema so cristos, e sua substncia define uma alternativa interior ao privilgio de clas- se. Do lado do bulcio, as vantagens sociais visveis a que uma famlia impor- tante d acesso: figurao poltica, brilho mundano, vida civilizada e novidadeira. Do lado da solido, assentada tambm so- bre a riqueza, "viver como um urso, que sou": caar, dormir, ler e no fazer nada, auxiliado por um moleque. L falta o m- rito, aqui o trabalho. Aqui como l falta o valor do indivduo, nica justificao para a diferena social (do ponto de vista da norma burguesa, cuja vigncia est atestada no carter satrico do retrato).

    O pai Cubas, partidrio da vida bri- lhante, procura atrair o filho a um bom casamento e a um lugar na Cmara dos Deputados, benefcios que vinham jun- tos, dada a influncia poltica do futuro sogro. A frivolidade do arranjo ressalta duas vezes: uma pelo contraste com a morte ainda prxima (ngulo metafsi- co); a outra pelo esvaziamento da di- menso individual, isto , moderna, de casamento e poltica, subordinados ao sistema de patrocnio e troca de favores (ngulo histrico). Assim, a vida carece de sentido porque no horizonte est o nada, ou tambm porque o seu horizonte a organizao social brasileira. As duas razes esto presentes na tendncia mi- santrpica de Brs, onde se acompanham de uma terceira. "Apertava ao peito a minha dor taciturna, com uma sensao nica, uma cousa a que se poderia cha- mar volpia do aborrecimento." Des- crena e renncia no caso incluem uma parte de desdm pelos papis ridculos a que a sociedade forava um moo atua-

    lizado. Num lance de muita audcia, ca- racterstico de sua capacidade de adap- tao inventiva, Machado formulava com palavras do tdio baudelairiano a melancolia e satisfao do ricao brasi- leiro em face de suas perspectivas: "Vo- lpia do aborrecimento ( . . . ) uma das sensaes mais subtis desse mundo e da- quele tempo". claro porm que o Cubas spleentico no menos arbitr- rio nem menos proprietrio que o Cubas desejoso de ser ministro. O vaivm en- tre "hipocondria" e "amor da nomea- da", entre apatia e bulcio, faces com- plementares da mesma experincia de classe, aponta para a equivalncia da- queles opostos e um dos movimentos capitais do livro. Participar ou no do brilho sem sentido da Corte, ou, mais genericamente, do setor europeizante da sociedade ("a fraseologia, a casca"), eis a questo, em que naturalmente no se inclui o ser-ou-no-ser da prerrogativa social. Acresce que o relativo retiro e a recusa da comdia pblica podem no significar escrpulo ideolgico, mas gozo mais desimpedido das vantagens da pro- priedade, liberta do constrangimento das idias liberais. Em suma, na expresso do pai: "No te deixes ficar a intil, obscuro e triste; no gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te no ver bri- lhar, como deves". Assim, quando no intil, Brs desfrutvel, e quando no desfrutvel, intil, empurrado de uma condio outra pelos respectivos inconvenientes.

    A vizinhana da morte sublinha ainda mais a inanidade desta alternativa e fun- ciona como um apelo regenerao. onde entra o idlio com Eugnia, que promete uma transformao completa do protagonista. Valor e espontaneidade in- dividual seriam reconhecidos, ou, genera- lizando, a iniqidade oligrquica abriria uma fresta igualdade entre os huma- nos, particularmente entre proprietrios e pobres com educao. Vimos porm o desplante furioso com que a persona- gem recusa este rumo, onde a latitude de seu capricho ficaria limitada, rumo cujo significado nacional e de classe pro- curamos indicar. Longe de trazer uma viravolta, portanto, o encontro com Eu- gnia consolida o regime do abuso, agra- vado agora pela transformao no-havi- da: uma peripcia em branco, se poss- vel dizer assim, depois da qual fica tudo como antes, e piorado. O perfil abstra- to desta seqncia define o andamento

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  • O SENTIDO HISTRICO DA CRUELDADE EM MACHADO DF. ASSIS

    geral da narrativa: o anticlmax primeiro desnuda a nulidade prtica das fantasias de liberalizao voluntria, e depois ex- pe a insignificncia, devida mesma nulidade, da vida ulterior de Brs Cubas, que a maior parte do livro. A norma liberal tanto expectativa tola como ausncia imperdovel. Esta incon- seqncia tem efeito devastador, e ex- pressa o beco ideolgico em que se en- contrava a frao pensante do pas.

    Anos depois, Brs admite casar com Nh Lol, outra moa de situao infe- rior dele. Como explicar a diferena, uma vez que o protagonista no mudou? Buscando subir, Nh Lol estuda e adi- vinha a vida elegante, e trata de "masca- rar a inferioridade da (sua) famlia". No momento oportuno renega o pai, cujas afinidades populares do vexame. "Este sentimento pareceu-me de grande eleva- o; era uma afinidade mais entre ns", recorda o noivo, decidido a "arrancar es- ta flor a este pntano". O problema por- tanto no estava no casamento desigual, admissvel desde que reafirme o dom- nio dos proprietrios. Inadmissveis so a dignidade e o direito dos pobres, que restringiram o campo arbitrariedade dos homens de bem. Observe-se ainda que a defesa da prerrogativa de classe enrgica, mas no se acompanha de ideo- logia ou convico da prpria superio- ridade. Esta ausncia de justificao con- sistente quase simptica, pela vizinhan- a com a franqueza. De outro ngulo po- rm ela parte de um apego cru e indis- criminado a quaisquer vantagens sociais, muito caracterstico, desembaraado das obrigaes que mal ou bem uma auto- imagem mais elaborada traria consigo.

    Onde h ao, o episdio de Eugnia uma obra-prima de tcnica realista. Fa- bulao enxuta e parcimnia no detalhe, rigorosamente disciplinadas pela contra- dio social, produzem o andamento po- tico do grande romance oitocentista. Entretanto fato que o conflito quase no tem prosseguimento, ou melhor, s tem prosseguimento fora do mbito da intriga, nas clicas morais da persona- gem e nas maldades expositivas do narra- dor. Com isto, subjetividade e escrita roubam o primeiro plano e prevalecem, quantitativamente, sobre a dimenso prtica do antagonismo. claro que esta proliferao permite ver em Machado uma ponta-de-lana da literatura ps-na- turalista. Sem discordar, notemos que a proliferao subjetiva ou seja, a vo-

    lubilidade aqui est enraizada em ter- reno social claro, de que ela uma ex- presso capital. Deste ngulo, as solu- es formais heterodoxas se podem ler como maneiras de aprofundar e radicali- zar a exposio de um quadro prtico definido. Assim, a desproporo entre brevidade e importncia do episdio um fato eloqente de composio. Na verdade, Eugnia a nica figura esti- mvel do livro: tem compreenso ntida das relaes sociais, gosto de viver e fir- meza moral mas seu papel pouco mais que uma ponta. como se o arran- jo da narrativa dissesse que no contexto da vida brasileira as melhores qualidades dos pobres sero truncadas e esperdia- das, o que configura e passa em julgado uma tendncia histrica. Vimos tambm que o conflito pouco se desdobra na pr- tica, e muito na imaginao de Brs, a quem cabe a ltima palavra, alis de in- jria. A unilateralidade do procedimento escandalosa, e tem o mrito de deslo- car a perspectiva moralista. Em lugar da injustia sofrida por Eugnia, que esta- ria no foco de um narrador eqitativo, assistimos a seu reflexo na conscincia do responsvel ele mesmo, um membro conspcuo da classe dominante, cujo pon- to de vista a narrativa adota de maneira maliciosamente incondicional. De entra- da, a parcialidade narrativa pe fora de combate o sentimento moral, que diante da injustia assumida no desaparece pode at tornar-se mais estridente mas perde a presuno de eficcia, e apa- rece como um prisma acanhado. Mais uma vez estamos em campo explorado por Baudelaire, amigo de fintas e misti- ficaes literrias, concebidas como ele- mento de estratgia guerreira. Este gos- tava de tomar o partido do opressor, mas para desmascar-lo atravs do zelo excessivo, e tambm para humilhar/fus- tigar os oprimidos, em sua eventual pas- sividade diante da opresso. Atrs deste narrador faccioso, que primeira vista revoltante, mas para o qual j no h substituto seno de outra faco, abre-se a cena moderna da luta social generali- zada, a que no escapam os procedimen- tos narrativos.

    Roberto Schwarz. Crtico literrio e professor de Lite- ratura na Unicamp.

    Novos Estudos CEBRAP, So Paulo n. 17, pp. 38-44, maio 87

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