o Sequestro Das Santas

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MESTRADO EM CULTURA MEMRIA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS CAMPUS V

UNIVERSIDADE ESTADUAL DA BAHIA - UNEB

O SEQESTRO DAS SANTAS: A Irmandade da Boa Morte e a Igreja Catlica em Cachoeira, Bahia - 1989

Santo Antnio de Jesus Bahia Junho de 2007

WILTRCIA SILVA DE SOUZA

O SEQESTRO DAS SANTAS: A Irmandade da Boa Morte e a Igreja Catlica em Cachoeira, Bahia - 1989

Dissertao de Mestrado apresentada ao Curso de Mestrado em Cultura, Memria e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia sob orientao do Prof. Dr. Walter Fraga Filho.

Santo Antnio de Jesus Bahia Junho de 2007

Elaborao: Biblioteca Central / UNEB Bibliotecria: Maria Ednalva Lima Meyer CRB-5/544 Souza, Wiltrcia Silva de O seqestro das santas : a Irmandade da Boa Morte e a igreja catlica em Cachoeira, Bahia 1989 / Wiltrcia Silva de Souza. Santo Antonio de Jesus, BA [s.n.], 2007. 154 f. Orientador Walter Fraga Filho Dissertao (Mestrado). Universidade do Estado da Bahia. Campus V. Departamento de Cincias Humanas Inclui referncias 1. Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte Cachoeira (BA). 2. Negros Religio Cachoeira (BA). 3. Festas religiosas Cachoeira (BA). I. Fraga Filho, Walter. II. Universidade do Estado da Bahia. Campus V. Departamento de Cincias Humanas. III. Titulo. CDD 299.683

FICHA CATALOGRAFICA

AGRADECIMENTOS

Agradeo s diversas pessoas que me ajudaram na realizao dessa dissertao, ela no minha, nossa. Meu muito obrigado: Ao meu orientador Prof. Dr. Walter Fraga Filho pelas sabias orientaes e apela serenidade e pacincia. s colegas Andra e Silene e ao colega Hamilton pela amizade, prestatividade e palavras de apoio. amiga Maria Rita e ao meu cunhado Antnio pela ajuda essencial. Ao historiador Luiz Cludio Nascimento pelos textos, imagens, dicas, apoio e prestatividade. Aos amigos Kdima e Nailton pelo primeiro incentivo, a primeira idia e a as constantes palavras de conforto. Aos meus queridos irmos Eunice, Eugnia e Francisco parceiros e conselheiros constantes. Ao meu pai pelo carinho e disponibilidade constante. A minha me, agradeo por tudo, tudo que tenho e sou foi voc que proporcionou. Eu te amo. Marcelo pelo amor, carinho, apoio, pacincia, palavras de apoio e companhia constante. Foi voc que me apoio nos momentos mais difceis. Obrigada. Eu te amo. Por fim quero agradecer a Deus pela sabedoria, pela proteo e por me cercar de pessoas to queridas, prestativos e pacientes.

RESUMO

A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte se encontra em atividade na cidade de Cachoeira, Recncavo da Bahia, desde o final do sculo XIX. Suas integrantes so mulheres negras, idosas e vinculadas a religies de matriz africana. No final da dcada de 1980, desentendimentos entre a Irmandade e a Igreja Catlica evoluram para um enfrentamento que girou em torno do episdio apelidado o seqestro das santas. A questo chegou aos tribunais e dividiu a opinio pblica baiana. Este conflito religioso oferece a oportunidade de flagrar os sujeitos histricos em suas negociaes, apreendendo os diversos sentidos que um evento pode ter. Ao longo dos anos, a Irmandade da Boa Morte tem reinventado e negociado espaos, (re)construindo sua identidade. Uma parcela desta trajetria discutida a partir de documentos escritos e relatos orais.

Palavras-chave: Irmandades negras, Mulheres negras, Festas religiosas, Conflitos religiosos.

ABSTRACT

A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte (The Sisterhood of Our Lady of the Good Death) is based in Cachoeira do Paragua, Bahia hinterlands, since the end of the XIX century. Its members are old black women linked to African root religions. At the end of the 1980s, divergences between the Sisterhood and the Catholic Church evolved to conflicts due to an episode called O Sequestro das Santas (The Saints kidnap). The matter got to the trials dividing the public opinion in Bahia. This religious conflict provides us the opportunity to observe historical agents in their negotiations, grabbing the various meanings an event can have. Year by year The Sisterhood of the Good death has been reinventing and negotiating spaces, building and/or rebuilding its own identity. Part of this history is discussed based on oral and written reports. Keywords: black sisterhoods, black women, religious celebrations, religious conflicts.

SUMRIO

Introduo................................................................................................................................ 6 Captulo 1 A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte..............................................18 Irmandades catlicas e identidade tnica...............................................................................19 O santo patrono e as festas em sua devoo..........................................................................27 A Irmandade da Boa Morte em Cachoeira............................................................................32 Presena feminina..................................................................................................................40 Negociaes entre a Irmandade e a Igreja Catlica...............................................................47 Captulo 2 Conflitos entre a Irmandade da Boa Morte e a Igreja Catlica ..................53 Conflitos na Parquia de Nossa Senhora do Rosrio.............................................................54 Postura do arcebispo..............................................................................................................64 A Irmandade, suas finanas e a poltica local........................................................................70 A turistizao da festa da Boa Morte.....................................................................................80 Um novo estatuto...................................................................................................................85 Captulo 3 A guerra entre a Irmandade da Boa Morte e a Igreja Catlica...............95 A festa de Nossa Senhora da Boa Morte em 1989................................................................95 O seqestro das santas ..........................................................................................................99 A guerra entre a irmandade e a igreja na imprensa..............................................................103 A guerra travada nos tribunais de justia.........................................................................114 A procisso de desagravo. ..................................................................................................122 Os desdobramentos do conflito na comunidade..................................................................129 A festa da Boa Morte sem a Igreja Romana........................................................................134 Feliz aniversrio arcebispo..................................................................................................142 Consideraes finais..............................................................................................................147 Fontes e referncias.................................................................................................................149

INTRODUONas ruas da histrica cidade de Cachoeira, Recncavo da Bahia, um grupo de senhoras negras cumpre anualmente detalhados rituais religiosos. Esses rituais so caracterizados por elementos e smbolos da religiosidade e culturas africanas, mas realizados em torno da tradio catlica, segundo a qual Nossa Senhora ao morrer teve seu corpo preservado da corrupo e ascendeu ao cu. A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira constituda exclusivamente por mulheres negras com idades superiores a 40 anos e ligadas s religies de cultos de matriz africana. Essa instituio est localizada no municpio de Cachoeira1, na regio conhecida como Recncavo da Bahia, a 109 km da capital do Estado. Atualmente, a Irmandade constituda por um grupo de vinte e uma irms e continua executando atividades que se prolongam por todo o ano, culminando numa festa anual que acontece sempre no ms de agosto. Esta festa mobiliza parcela considervel da populao local, entidades relacionadas com os interesses dos negros e mulheres e ainda atrai turistas nacionais e estrangeiros, dinamizando o comrcio local. Buscou-se nessa dissertao identificar e analisar as invenes e negociaes que permitiram a sobrevivncia da Irmandade no final da dcada de 1980. Nesse perodo, ocorreu um enfrentamento entre a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e a Parquia de Nossa Senhora do Rosrio, localizada no municpio de Cachoeira, o que resultou na separao formal entre as duas durante alguns anos. MOTIVOS Trabalhando como professora de Histria na cidade de Cachoeira desde 1996 e sendo mulher negra, tive minha ateno despertada pela singularidade da Irmandade da Boa Morte. Como nutria o desejo de pesquisar temas relacionados populao negra baiana, aps feliz sugesto dada por uma amiga, direcionei esse interesse para a Irmandade. No entanto,

O municpio de Cachoeira ocupou papel relevante na economia escravista baiana e mantm alta proporo de no brancos em sua populao total. No Censo 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica, mais de 85% da populao local se auto declarou de cor preta ou parda. Disponvel em , acesso em 15 jul. 2007. Em janeiro de 1971, a cidade foi transformada em Cidade Monumento Nacional, inscrita no Livro de Tombo do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Armando Alexandre Costa de Castro, Irmandade da Boa Morte: Memria, Interveno e Turistizao da Festa em Cachoeira, Bahia, Universidade Estadual de Santa Cruz, 2005, Dissertao (Mestrado em Cultura & Turismo), p. 93.

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existiam diversas possibilidades temticas relacionadas com esta confraria2. Desde a musicalidade, a culinria, os rituais, a turistizao e a presena de elementos da religiosidade e culturas africanas, at a prpria trajetria histrica da confraria. Entre tantas opes, a minha curiosidade foi despertada pela trajetria da Irmandade no final da dcada de 1980. Nesse perodo, ocorreu um enfrentamento cheio de significados e no mnimo curioso - entre a confraria e a parquia local. Ademais, o estudo de um aspecto da histria recente da instituio abria a possibilidade de contar com o testemunho oral de diversos sujeitos que participaram desse processo. O conflito entre as duas instituies terminou sendo levado aos tribunais e foi fartamente noticiado na imprensa, que tratou o tema utilizando expresses como guerra santa e seqestro das santas.3 Foram disputados, desde o espao para realizar os rituais da Irmandade, at as jias e imagens utilizadas nas procisses. A polmica manteve a confraria e a parquia separadas durante alguns anos e envolveu pessoas de relevncia pblica como o Cardeal D. Lucas Moreira Neves, o cantor e vereador Gilberto Gil, a reverenda norte-americana Brbara King e outros intelectuais e artistas, alm de entidades ligadas defesa dos interesses dos negros. Diante do exposto, esta dissertao teve como objetivo primordial identificar e analisar as negociaes e conflitos envolvendo a Irmandade e a parquia no final da dcada de 1980. Nosso desafio foi procurar entender como estes eventos colaboraram para uma possvel reinveno da identidade e imagem pblica da agremiao. Alm disso, buscou-se entender os sentidos conflitantes dos dilogos entre os diversos sujeitos envolvidos, interpretando os diferentes significados que um mesmo evento pode ter. Entre esses sujeitos destacamos as prprias integrantes da Irmandade com seus agregados e colaboradores; os eclesisticos ligados parquia local e seus fiis; o bispo da Igreja Catlica Brasileira e seus fiis; os representantes do poder pblico, ligados prefeitura local, a Bahiatursa e aos tribunais de justia do Estado; a imprensa escrita e seus leitores; militantes do movimento negro e intelectuais engajados nas questes locais.

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Segundo o historiador Joo Reis, a denominao confraria refere-se tanto a irmandades como a ordens terceiras, mas neste trabalho o termo confraria foi utilizado como sinnimo de irmandades. As ordens terceiras, embora guardem muitas semelhanas com as irmandades e tambm sejam organizadas por leigos, so instituies que se associavam a ordens religiosas conventuais (franciscana, dominicana, carmelita), da se originando seu maior prestgio. Joo Jos Reis, A Morte uma Festa: Ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo XIX, So Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 49. 3 Elcy Castor, Padre briga com Irmandade e retm duas imagens, Jornal A Tarde, p. s/n, 9 nov. 1989.

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A TRAJETRIA E AS FONTES Por questes prticas e metodolgicas ficaram estabelecidos como limites para este estudo os anos de 1989 e 1990, pois esses foram os anos em que o conflito entre a irmandade e a parquia se acirrou. Nos dois anos o conflito foi levado aos tribunais de justia e ocorreu um rompimento formal entre as duas instituies. Ademais, nesse perodo, o enfrentamento foi exaustivamente divulgado pela imprensa, que foi considerada uma fonte e ao mesmo tempo um objeto de pesquisa privilegiado. O trabalho de pesquisa comeou com levantamento das notcias veiculadas no jornal de maior circulao do Estado A Tarde. A pesquisa faz perceber que sempre nos meses de agosto, ms da festa de Nossa Senhora da Boa Morte, havia repetidas menes Irmandade _ muitas vezes com textos que pareciam repetidos de um ano anterior, falando sempre sobre a origem da Irmandade e relacionando-a com elementos dos cultos de matriz africana. Foi possvel encontrar tambm vrios comentrios sobre como a festa atraa turistas, inclusive estrangeiros. Possivelmente, essas notcias reiteradas eram parte do esforo das autoridades locais e dos rgos de turismo para inserir a festa no circuito turstico do Estado. Um esforo que teve resultados, pois no final da dcada de 1980 a festa estava no roteiro turstico das grandes manifestaes religiosas da Bahia. No entanto, nos anos de 1989 e 1990 esse padro mudou repentinamente. Em novembro de 1989, diversas reportagens falavam sobre guerra santa, seqestro de santas, mandato judicial, polcia, roubo de jias e declaraes racistas, tudo num tom de denncia e acusao contra o proco local Hlio Czar Vilas-Boas.4 Entre julho e agosto de 1990, a polmica foi retomada e novas reportagens anunciaram o rompimento entre a Irmandade e a parquia. A partir da, entretanto, as publicaes sobre a Irmandade retomaram aquele mesmo padro de textos repetitivos, falando sobre sua origem, turismo rompido vez ou outra por alguma notcia diferente. Esses artigos serviram para estabelecer uma cronologia de eventos e suscitar muitas perguntas no respondidas. Diante disso, a pesquisa foi direcionada para a busca de outras fontes documentais e orais, uma vez que elas poderiam esclarecer o que a imprensa escrita ocultou.

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Elcy Castor, Padre briga com Irmandade e retm duas imagens, Jornal A Tarde, p. s/n, 9 nov. 1989; Igreja vai entrar com liminar na guerra contra Irmandade, Jornal A Tarde, p. s/n, 10 nov. 1989; Comunidade entra na guerra santa entre Igreja e Irmandade, Jornal A Tarde, p. s/n, 13 nov. 1989; Dom Lucas vai exigir que Irmandade devolva imagens, Jornal A Tarde, p. s/n, 11 nov. 1989.

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Alm das reportagens j citadas, foram resgatadas reportagens sobre a Irmandade publicadas em outros jornais de circulao estadual, como Correio da Bahia e Jornal da Bahia, e peridicos de alcance municipal, como o Jornal A Cachoeira. No arquivo do Jornal A Tarde, em Salvador, e nos arquivos particulares de diversos colaboradores da Irmandade foram identificados outros documentos da poca. Entre eles, o novo estatuto da Irmandade, abaixo-assinados, notas e manifestos de apoio confraria ou parquia e alguns panfletos divulgados pela Irmandade. No arquivo da Parquia de Nossa Senhora do Rosrio, foi encontrado material importantssimo que incluam todas as correspondncias entre a parquia e a confraria nos anos do conflito: recibos, manifestos, trs propostas de estatuto e partes dos trs processos judiciais relacionados com o conflito. Estes documentos foram de grande utilidade para a pesquisa apontando detalhes, pessoas e marcos cronolgicos. Eles ofereceram uma viso panormica da situao para usar a expresso de Raphael Samuel. Em seguida, coube s fontes orais esclarecer quem eram os sujeitos envolvidos, quais as suas relaes e motivos. 5 Esse carter subjetivo da pesquisa e a necessidade de identificar significados direcionaram a pesquisa para o uso de fontes orais. Essa opo justificou-se porque, nas palavras do historiador italiano Alessandro Portelli, fontes orais contam-nos no apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez, esclarecendo assim os multifacetados significados de um evento.6 A investigao e anlise das histrias e silncios dos testemunhos orais podem revelar a natureza e os significados da experincia dos vrios grupos envolvidos no enfrentamento entre a Irmandade e a parquia.7 As fontes orais possibilitaram identificar eventos importantes que quase no deixaram testemunho escrito. Vale destacar a importncia da j citada entrevista concedida por Luiz Cludio Nascimento, que possibilitou identificar diversos outros depoentes em potencial e ainda sinalizou para a importncia de alguns eventos desconhecidos at aquele

Segundo este autor os documentos escritos possuem muitas limitaes, apesar de mostrar acmulo de detalhes, muitas vezes deixam as pessoas envolvidas relativamente escondidas. Segundo ele s as fontes orais poderiam recuperar a textura do passado e iluminar a dinmica das relaes pessoais. Raphael Samuel, Histria Local e Histria Oral, In: Revista Brasileira de Histria, So Paulo, set 89/fev 90, v.9, n. 19, p. 225. 6 Alessandro Portelli, O que faz a histria oral diferente, PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP, So Paulo, 1981, p. 31. 7 Thomson enfatiza essa qualidade da historia oral ao afirmar que o afloramento de lembranas pode ser a chave para explorar os significados subjetivos das experincias vividas. Alistair Thomson, Recompondo a memria: questes sobre a relao entre a Histria Oral e as memrias, PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP, So Paulo, (15), abr. 1997.

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ponto da investigao, como por exemplo, os acontecimentos relacionados com o aniversrio do arcebispo D. Lucas Moreira Neves no ano de 1990. Usando as palavras de Raphael Samuel, podemos afirmar que a evidncia oral torna possvel no apenas o preenchimento de vazios deixados pela documentao escrita, como tambm a redefinio do objeto de que se trata. A nossa inteno foi estabelecer uma interao entre fontes orais e escritas: A evidncia oral deve deixar o historiador mais faminto por documentos, e no menos; e quando ele os achar, poder us-los de uma maneira mais ampla e mais variada (...). Ele precisar dos documentos para as indicaes de coisas que esto alm do alcance da memria, para datas onde possa haver erros e para precises que no poder ou no ir conseguir com evidncia oral. 8 Um trabalho que se utiliza de fontes orais suscita, porm, alguns questionamentos. Qual a validade do que dito e, em que medida o depoimento expressa o que realmente ocorreu? Qual a influncia do passar dos anos, do presente e ainda do entrevistador na construo das reminiscncias? As reflexes de Alistair Thomson foram essenciais para responder a essas demandas. Este autor defende que o relato oral na verdade uma composio uma reconstruo do passado com o objetivo de revelar ao entrevistador algo que o depoente sabe que se tornar pblico. 9 Nessa recriao do passado esto presentes, alm das experincias do passado, as do presente e ainda o que dizem os relatos pblicos ou o senso comum sobre o assunto: Experincias novas ampliam constantemente as imagens antigas e no final exigem e geram novas formas de compreenso. A memria gira em torno da relao passado-presente, e envolve um processo contnuo de reconstruo e transformao das experincias relembradas, em funo das mudanas nos relatos pblicos sobre o passado. Que memrias escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas so coisas que mudam com o passar do tempo. (...) Sendo assim, as histrias que relembramos no so representaes exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem s nossas identidades e aspiraes atuais. (...) quem acreditamos que somos no momento e o que queremos ser afetam o que julgamos ter sido.10Raphael Samuel, Histria Local e Histria Oral, Revista Brasileira de Histria, So Paulo, set 89/fev 90, v.9, n. 19, p. 236 e 237. 9 Alistair Thomson, Recompondo a memria: questes sobre a relao entre a Histria Oral e as memrias, PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP, p. 57. 10 Alistair Thomson, Recompondo a memria: questes sobre a relao entre a Histria Oral e as memrias, PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP, p. 57.8

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Isto fica claro, por exemplo, quando D. Estelita Souza Santana _ senhora de 100 anos que ocupa o cargo de juza perptua da Irmandade da Boa Morte desde a dcada de 1989 _ cuidadosa ao falar sobre o padre Hlio Vilas-Boas, evitando tecer crticas autoridade eclesistica que ela atacava ferozmente em reportagens na imprensa em 1989. Essas constataes anulam, portanto, o valor do relato oral? No. Primeiro, o documento escrito, originariamente foi tambm a composio de algum sobre um fato. Logo, documento escrito e relato oral so recriaes de experincias passadas e possuem validade semelhante. Segundo, se por um lado essa construo da memria uma limitao, por outro um objeto para ser entendido e interpretado. At o silncio do entrevistado sobre determinados aspectos da sua experincia pode ser um eloqente sinal da importncia ou desconforto provocado por aquela situao. Terceiro, a distncia cronolgica entre o evento e o depoimento oral pode ser compensada pelo envolvimento pessoal mais ntimo que o entrevistado teve com o acontecimento. Tambm foi considerado que as fontes orais pareciam muito adequadas para o estudo de uma instituio que foi formada por descendentes de escravos, organizada atravs da oralidade e cujas integrantes eram, em sua maioria, analfabetas ou semi-analfabetas. E, por fim, o processo ativo de criao de significados (...) revela o esforo dos narradores em buscar sentido no passado e dar forma s suas vidas, e colocar a entrevista e a narrao em seu contexto histrico.11 Nesse sentido, o relacionamento que o pesquisador estabelece com as pessoas entrevistadas, o grau de confiana estabelecido, pode ter importante influncia sobre o tipo de reminiscncias trazidas tona e a capacidade do entrevistador de entender e interpretar o relato oral.12 Foi o que aconteceu por exemplo nas entrevistas irm D. Maria da Glria dos Santos, de 82 anos de idade uma senhora sem filhos, que mora sozinha e que pertence Irmandade desde a dcada de 1970. No primeiro contato, ela no s assumiu o papel de entrevistadora, como s aceitou responder s perguntas com o gravador desligado. A partir do segundo encontro, ela falou mais sobre a Irmandade, porm ainda manteve silncio sobre diversas questes. D. Estelita Souza Santana tambm optou por no responder a nenhuma pergunta sobre os enfrentamentos entre a Irmandade e a Igreja no primeiro encontro, somente a partir da segunda entrevista, ela comeou a falar sobre o conflito.Portelli ainda afirma que no h falsas fontes orais, mesmo afirmativas erradas so ainda psicologicamente corretas: Alessandro Portelli, O que faz a histria oral diferente, PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP, p. 32 e 33. 12 Alistair Thomson, Recompondo a memria: questes sobre a relao entre a Histria Oral e as memrias, PROJETO HISTRIA: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do Departamento de Histria da PUC-SP, p. 57.11

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Os depoimentos dos sujeitos envolvidos direta ou indiretamente no enfrentamento foram essenciais para este estudo, utilizou-se para tal um roteiro de entrevista semiestruturada. Foram entrevistadas oito, das dez irms que j pertenciam Irmandade em 1989. Alguns colaboradores da Irmandade, como um funcionrio da Bahiatursa e um ex-secretrio da prefeitura de Cachoeira tambm foram entrevistados. Alm desses, foi colhido o depoimento do bispo da Igreja Catlica Brasileira, D. Roque Nonato e foi feita uma conversa informal com proco Hlio Vilas-Boas, piv dos conflitos aqui analisados. Tambm foram entrevistadas pessoas da comunidade catlica local. A Irmandade da Boa Morte em Cachoeira sempre se organizou sobre bases orais e so poucos os trabalhos que tem como tema central a sua histria. Os livros clssicos de Raul Lody, Devoo e Culto a Nossa Senhora da Boa Morte, e do historiador cachoeirano Lus Cludio Nascimento, A Boa Morte, publicados na dcada de 1980, sistematizavam caractersticas gerais da Irmandade a partir da histria oral. Ambos enfatizavam a estreita ligao entre os rituais da Irmandade e as prticas e crenas dos cultos de matriz africana. Em 1999, Nascimento publicou outro trabalho nessa mesma linha, interpretando a confraria como um espao de resistncia e preservao de tradies ligadas ao candombl. Esse trabalho j mencionava de forma breve o enfrentamento entre a Irmandade e a Parquia de Nossa Senhora do Rosrio.13 Em artigo publicado pela primeira vez em 1996, Lucilene Reginaldo e Accio Santos fizeram uma caracterizao da Irmandade destacando o sigilo e o tabu em torno de seus rituais. Os autores enfatizaram os vnculos entre a Boa Morte e os terreiros de candombl, identificando diversas ligaes entre os rituais da Irmandade e o culto aos orixs. Os autores tambm mencionaram de forma breve o conflito entre a confraria e a parquia.14 No ano de 2002, o padre e doutor em antropologia, Sebastio Heber Vieira Costa fez o caminho inverso, no livro A Festa da Irmandade da Boa Morte e o cone ortodoxo da Dormio de Maria ele redescobriu e enfatizou a tradio catlica por trs da devoo Boa Morte. Segundo sua interpretao, a Irmandade preservou uma tradio catlica milenar, iniciada no Oriente Ortodoxo.15Raul Lody, Devoo e Culto a Nossa Senhora da Boa Morte, Cachoeira, Altiva Grfica e Editora, 1981; Luiz Cludio Nascimento e Cristiana Isidoro, A Boa Morte em Cachoeira, Cachoeira, CEPASC, 1988; Cludio Nascimento, Candombl e Irmandade da Boa Morte, Cachoeira, Fundao Maria Amrica da Cruz, 1999. 14 Lucilene Reginaldo e Accio Sidinei Almeida Santos, Irms da Boa Morte, Senhoras do Segredo, in: Anais do IV Congresso Afro Brasileiro Sincretismo Religioso: O ritual afro, Recife, FUNDAJ, Ed. Massangana, 1996, pp. 98-112; Lucilene Reginaldo e Accio Sidinei Almeida Santos, Irms da Boa Morte, Senhoras do Segredo, Elisabete Aparecida Pinto e Ivan Antnio de Almeida, Religies: tolerncia e igualdade no espao da diversidade, So Paulo, Fala Preta! Organizao das Mulheres Negras, 2004, V. 2. 15 Sebastio Costa, A Festa da Irmandade da Boa Morte: e o cone Ortodoxo da Dominao de Maria, Salvador, Zuk, 2002.13

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No ano 2004, a gegrafa Aureanice de Mello Corra defendeu tese sobre a Irmandade da Boa Morte em Cachoeira. Sob orientao da geografia cultural, a autora interpretou que, no final da dcada de 1980, a imagem da confraria passou a estar mais relacionada com um produto turstico e cultural, do que com uma festa religiosa. Essa nova configurao teria sido fruto da campanha contra a Igreja Catlica, da projeo na imprensa e dos promotores da atividade turstica. A autora baseou suas concluses em uma srie de entrevistas formais e questionrios aplicados comunidade local, turistas e comerciantes entre os anos de 1996 e 1999. Corra concluiu a tese afirmando que novos trabalhos necessitam ser realizados para verificar mudanas nessa configurao.16 Ainda no ano de 2004, Joanice Santos Conceio defendeu dissertao privilegiando a discusso sobre a exclusividade de gnero na Boa Morte e a atuao feminina nas confrarias negras.17 Por fim, em 2005, Armando Alexandre Costa de Castro discutiu em dissertao a turistizao da festa da Boa Morte. O autor realizou entrevistas ou questionrios com 325 pessoas, entre elas integrantes da confraria, turistas no perodo de festa e comunidade local, traando o perfil do freqentador dessas celebraes. Segundo Castro, a festa da Boa Morte foi transformada em produto turstico a partir da dcada de 1970, mas ainda carece de uma melhor explorao do seu potencial turstico por parte dos rgos responsveis.18 Percebe-se que tem crescido o interesse por analisar diversos aspectos da Irmandade da Boa Morte. Embora todos os trabalhos citados sejam relevantes para as discusses sobre a Irmandade, nessa dissertao busca-se outra abordagem: interpretar o conflito entre as duas instituies como um espao onde possvel flagrar os sujeitos histricos em suas negociaes, apreender os diferentes significados sociais em torno de um evento e identificar os arranjos e as alianas criativas forjadas pela Irmandade na busca por espao e autonomia. Vale ressaltar que, propor uma pesquisa sobre um conflito de data to recente traz em si vantagens e desafios. Se por um lado, facilita o acesso a pessoas e documentos relacionados com a temtica, por outro, implica o cuidado de interpretar acontecimentos sem trazer desconforto para pessoas e instituies que se encontram ainda no cenrio pblico. OS PONTOS DE PARTIDAAureanice de Mello Corra, Irmandade da Boa Morte como manifestao cultural afro-brasileira: de cultura alternativa insero global, Rio de Janeiro, UFRJ, 2004, Tese (Doutorado em Geografia). 17 Joanice S. Conceio, Mulheres do partido alto - elegncia, f e poder. Um estudo de caso sobre a irmandade da Boa Morte, So Paulo, PUC/SP, 2004. Dissertao (Mestrado em Cincias Sociais). 18 Armando Alexandre Costa de Castro, Irmandade da Boa Morte: Memria, Interveno e Turistizao da Festa em Cachoeira, Bahia, Universidade Estadual de Santa Cruz, 2005, Dissertao (Mestrado em Cultura & Turismo).16

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Este um trabalho de histria local, onde se tomam como limites espaciais e temporais as relaes entre a Irmandade da Boa Morte e a Parquia de Nossa Senhora do Rosrio em Cachoeira entre os entre os anos de 1989 e 1990. Este recorte tomado como ponto de partida para abrir discusses sobre relaes sociais e culturais. Os enfrentamentos entre as duas instituies oferecem a oportunidade de flagrar os sujeitos histricos em suas negociaes e apreender os diferentes sentidos de um evento para os diversos atores sociais nele envolvidos e de identificar, inclusive, importantes pontos de tenso. A inteno pensar em um campo de lutas e conflitos sociais em torno de questes culturais, tendo em perspectiva a existncia de diferentes significados sociais em torno de manifestaes culturais coletivas, como as festas religiosas. No deixando de considerar a relao complexa, dinmica, criativa e poltica mantida com os diferentes segmentos da sociedade em momentos de embates entre valores/comportamentos e polticas de controle.19 A percepo de que, em pequenos momentos de conflito no campo religioso, podemos ver refletidos conflitos maiores, justifica estudos como este. Segundo o historiador Joo Reis, que estudou a sociedade escravista do sculo XIX _ perodo em que se originou a Irmandade da Boa Morte _, os negros no enfrentavam os senhores somente atravs da fora. Eles tambm rompiam a dominao cotidiana por meio de pequenos atos de desobedincia, manipulao pessoal e autonomia cultural.20 A histria das irmandades abre uma porta melhor compreenso da experincia negra no Brasil da escravido. Para penetr-la preciso admitir, como temos feito, que elas espelhavam tenses e alianas sociais que permeavam a sociedade escravocrata em geral e o setor negro em particular.21 Optamos por estudar a Irmandade num perodo recente, mas, segundo Maria Salete Joaquim, se o negro encontrou condies desfavorveis para sobreviver num pas escravista, tambm as encontrou para permanecer como cidado oprimido na sociedade brasileira ps-repblica.22 Desde o sculo XIX at a atualidade, a Confraria da Boa Morte tem se mantido, mas no sem ter que reinventar e negociar espaos, reconstruindo sua identidade. Segundo o ingls Stuart Hall, um dos fundadores dos Estudos Culturais, no existe nas manifestaes culturais um contedo essencial fixo, geralmente caricaturado como resistncia da tradio Martha Abreu, O imprio do Divino, Rio de Janeiro, Nova Fronteira; So Paulo, Fapesp, 1999, p. 28. Eduardo Silva e Joo Jos Reis, Negociao e Conflito: a resistncia negra no Brasil escravista, So Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 32. 21 Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, Rio de Janeiro, UFF, vol. 2, n. 3, 1996, p. 7-33, disponvel em , acesso em 9/05/2007, p.18. 22 Maria Salete Joaquim, O papel da Liderana religiosa feminina na construo da identidade negra, Rio de Janeiro. Pallas, So Paulo, Educ., 2001.20 19

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modernidade. A cultura local no possui um carter estvel e transhistrico, embora ela resista ao fluxo homogeneizante do universalismo, ela o faz com caractersticas e temporalidades distintas e conjunturais. A tradio funciona, em geral, menos como doutrina do que como repertrio de significados para lidar com situaes sempre novas. Assim, estamos sempre em negociao, no com um nico conjunto de oposies dicotmicas que nos situe sempre na mesma relao com os outros, mas com uma srie de posies diferentes. E esse um processo agonstico, uma vez que nunca se completa, permanecendo sempre em sua indecidibilidade.23 Hall aponta a cultura como um terreno de luta pelo poder, de consentimentos e resistncias populares, abarcando, assim, elementos da cultura de massa, da cultura tradicional e das prticas contemporneas de produo e consumo culturais, entre outros elementos. Nesse sentido, ... no existem formas puras. (...) so sempre o produto de sincronizaes parciais, de engajamentos que atravessam fronteiras culturais, de confluncia de mais de uma tradio cultural, de negociaes entre posies dominantes e subalternas, de estratgias subterrneas de recodificao e transcodificao, de significao crtica e do ato de significar a partir de materiais preexistentes. Essas formas so sempre impuras, at certo ponto hibridizadas.24 Nesse sentido, no existe uma identidade racial essencializada, nem um sujeito negro essencial, o que seria no mnimo uma noo ingnua25. nesse mesmo sentido que o historiador Walter Mignolo afirma que a identidade seja de uma pessoa ou instituio _ no um esprito intrnseco, algo em dilogo conflituoso com outras foras atuantes. Esse um processo tenso que possui mo dupla, influencia e influenciado. 26 A partir das reflexes de Fredrik Barth, podemos acrescentar que a identidade relacional, ou seja, construda e transformada na interao de grupos sociais e por meio das mudanas sociais, polticas e culturais de sua histria, os grupos tnicos conseguem manter os limites que os distinguem dos outros.27Stuart Hall, Da Dispora: identidades e mediaes culturais, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003, pp. 61 e 74. Stuart Hall, Da Dispora: identidades e mediaes culturais, p. 343. 25 Stuart Hall, Da Dispora: identidades e mediaes culturais, p. 347. 26 Mignolo, utilizando o termo transculturao (Ortiz), afirma que as mudanas culturais resultantes do contato cultural, devem ser entendidas como processos complexos e multidirecionais (mo dupla) da transformao cultural. Walter D. Mignolo, Histrias Locais / Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003, pp. 200 e 233. 27 Fredrik Barth, Grupos tnicos e suas fronteiras, in: Philippe Poutignat, Teorias da etnicidade, So Paulo, UNESP, 1998, pp. 11-12.24 23

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E essas relaes e negociaes ocorrem em um lugar, um espao especfico. Segundo Muniz Sodr, necessrio atentar para a importncia de considerar o espao em que o fato est acontecendo. Segundo esse autor, a territorializao de fato dotada de fora ativa, contribuindo para heterogeneidade quanto percepo do real. Para Sodr, embora o espao no surja como um dado autnomo estritamente determinante, ele surge como um vetor com efeitos prprios, capaz de afetar as condies para eficcia de algumas aes humanas. E tanto um terreiro de candombl como uma Irmandade, como a estudada aqui, terminam constituindo exemplo notvel de suporte. Assim essas comunidades litrgicas podem continuar se constituindo em espaos originrios de fora ou potencial social para uma etnia que experimenta a cidadania em condies desiguais. Logo no faria sentido estudar os acontecimentos do final do sculo passado, sem entender a prpria Irmandade enquanto espao com caractersticas peculiares.28 Nesse sentido, o primeiro captulo da dissertao trata da histria da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Inicialmente feita uma pequena caracterizao das irmandades negras no Brasil dos sculos XVIII e XIX, seus papis sociais, santos de devoo, festividades, critrios de pertena e as negociaes de identidades tnicas no seio dessas agremiaes. Fica claro que, embora a Irmandade da Boa Morte de Cachoeira no tenha se legalizado enquanto confraria, assumiu na prtica essa condio. Em seguida, discute-se a ainda obscura origem da Irmandade da Boa Morte em Cachoeira e sua possvel vinculao com o Candombl da Barroquinha. Por fim, discutem-se algumas das caractersticas singulares da Irmandade da Boa Morte, como a presena exclusiva feminina e a estreita relao entre as integrantes da confraria e os cultos de matriz africana. No segundo captulo, so apresentadas algumas das questes que tensionaram as relaes entre a Irmandade e a Parquia de Cachoeira, contribuindo para o conflito. As atitudes adotadas pelo clero catlico em relao confraria na dcada de 1980 so interpretadas como parte de um projeto reformador. Alm disso, analisa-se como elementos de ordem poltica e financeira tambm contriburam para os enfrentamentos. A anlise de trs propostas de estatuto elaboradas para a Irmandade permite confirmar o desejo dos eclesisticos catlicos de reformar a Irmandade. Por outro lado, so destacadas as alianas criativas e as lutas travadas pelas irms na busca por garantir a autonomia da confraria.Sodr enfatiza a importncia de se identificar e analisar o territrio onde o jogo social - o relacionamento do homem com o mundo acontece: conhecer um grupo [...] implica tambm localiz-lo territorialmente. O territrio traa limites, especifica o lugar e cria caractersticas que iro dar corpo ao do sujeito. Sodr, baseando-se em Heidegger, ressalta que o lugar prprio do objeto que lhe determina a natureza e a funo - por exemplo, um volante s volante encaixado no automvel. Muniz Sodr, O Terreiro e a Cidade. A forma social negro-brasileira, Petrpolis, Vozes, 1988, pp. 15, 17 e 23.28

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No terceiro e ltimo captulo, apresentado o episdio apelidado como o seqestro das santas e seus desdobramentos; as repercusses do episdio na imprensa e nos tribunais de justia do Estado, discutindo como o enfrentamento dividiu opinies na cidade de Cachoeira e em Salvador. A anlise de tais acontecimentos d testemunho dos arranjos e negociaes que permitiram a sobrevivncia da Irmandade mesmo aps o rompimento de relaes com a Parquia de Nossa Senhora do Rosrio. Este trabalho tenta demonstrar as diversas interpretaes de um evento e as negociaes da comunidade local com as instituies em conflito. ainda destacado o sentido do enfrentamento para o clero da Igreja Catlica Brasileira, que abrigou a Irmandade na festa de 1990. As fontes principais para os captulos dois e trs foram os documentos depositados no Arquivo da Parquia, no Arquivo do Jornal A Tarde, em arquivos de particulares na cidade de Cachoeira, diversos artigos de jornais da dcada de 1980, alm de depoimentos orais.

Captulo 1 A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTEA Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte no municpio de Cachoeira, Bahia, integrada exclusivamente por mulheres negras, com idades superiores a 40 anos e, em sua maioria, ligadas s religies de matriz africana. O auge de suas atividades ocorre a cada ms de agosto, quando as irms realizam as festividades dedicadas a Nossa Senhora da Boa Morte e a Nossa Senhora da Glria. Na Irmandade, os rituais de devoo s santas catlicas so matizados por elementos da cultura e religiosidade africanas. Atualmente, a confraria composta por 21 irms e realiza suas missas e outras cerimnias em sede prpria. Tais celebraes possuem grande visibilidade, atraindo significativo nmero de pessoas, inclusive estrangeiros, e se constituindo no segundo maior atrativo turstico da cidade.29 Segundo a tradio, ainda no comprovada documentalmente, e exaustivamente repetida na mdia baiana, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte teria surgido primeiro em Salvador, na Igreja da Barroquinha, por volta de 1820, sendo, quase que simultaneamente, levada para Cachoeira. Alguns aspectos dessa informao tradicional e outras questes que consideramos relevantes para caracterizao da Irmandade so discutidos neste primeiro captulo. Longe de uma pretenso totalizante, busca-se oferecer ao leitor informaes gerais sobre a confraria que permita entender os conflitos do ano de 1989. Inicialmente, parece relevante questionar o perodo de surgimento da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. No existe acordo entre os estudiosos sobre a data da sua fundao nem ao local, se em Salvador ou em Cachoeira. O folclorista Joo da Silva Campos afirmou que a procisso da Boa Morte em Salvador j existia no ano de 1851. Segundo a interpretao de Renato da Silveira, as informaes dadas pelo folclorista Campos so privilegiadas, pois ele teve acesso ao arquivo da Igreja da Barroquinha antes que ela fosse destruda por um incndio em 1984. Logo, entende-se que 1851 foi a referncia mais antiga

Apenas a festa de So Joo, realizada no ms de junho, atrai mais turistas para a cidade. O municpio de Cachoeira localiza-se no Recncavo baiano, s margens do Rio Paraguau, a 109 km de Salvador. Em 2000, o municpio possua uma populao total de 30.416 habitantes, mantendo alta proporo de no brancos em sua populao total, 85%, segundo o Censo 2000 do IBGE. Informaes da Superintendncia de Estudos Sociais da Bahia, disponvel em , acesso em 15 jul. 2007.

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em relao confraria encontrada nesses arquivos. Talvez isto signifique que, em Salvador, a Boa Morte s passou a ter visibilidade nesse momento. Campos tambm afirma que a ltima procisso da Boa Morte, no grande estilo tradicional, saiu em Salvador no ano de 1930, entrando em decadncia depois, entre outros motivos, por causa da morte de seus lderes.30 No se sabe ao certo se essa irmandade migrou para o Recncavo da Bahia ou se a Irmandade surgiu em Cachoeira sem influncia da sua congnere soteropolitana. Segundo o historiador cachoeirano Luiz Cludio Nascimento, possivelmente por volta de 1820 a irmandade chegou a Cachoeira.31 A data de 1820 (...) foi estabelecida porque se perdeu na memria o tempo real da sua vinda, e que o mais seguro que, se a organizao foi fundada antes, s se afirmou na dcada de 1850, quando ganhou visibilidade.32 Embora no exista uma data precisa para o incio da devoo em Cachoeira, acreditase que ela aconteceu na primeira metade do sculo XIX. IRMANDADES CATLICAS E IDENTIDADE TNICA Apesar da denominao tradicional, alguns fatores indicam que a Boa Morte no era uma irmandade, e sim uma devoo. Essas eram duas organizaes catlicas muito diferentes entre si no sculo XIX. Segundo Caio Boschi a devoo era uma organizao informal, tendo como base o direito natural, enquanto a irmandade teria como fundamento o direito positivo. Assim, uma devoo era um culto aberto, menor, promovido por amigos e vizinhos, que, muitas vezes, podia vir a originar uma irmandade. Esta, porm, alm de organizar um culto pblico e oficial, possua um estatuto jurdico definido nas leis portuguesas, no direito cannico e aprovado por uma autoridade eclesistica ou secular. 33 Esse estatuto ou compromisso especfico, estabelecia a condio profissional, social ou racial exigida dos scios, seus deveres e direitos.34

Joo Silva Campos, Procisses Tradicionais da Bahia, Salvador, Publicao do Museu da Bahia / Secretaria de Educao e Sade, 1941, p. 239-243; Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, Salvador, Maianga, 2006, p. 446. 31 Luiz Cludio Dias do Nascimento, Candombl e Irmandade da Boa Morte, Cachoeira, Fundao Maria Amrica da Cruz, 1999, p. 14. 32 Pesquisa de Nascimento ainda no publicada, apud Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, p. 447. 33 Caio Csar Boschi, Os leigos e o poder: Irmandades leigas e poltica colonizadora em Minas Gerais, So Paulo, tica, 1986; Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, pp. 144, 150, 445-448. 34 Joo Jos Reis, A Morte uma Festa: Ritos fnebres e revolta popular no Brasil do sculo XIX, So Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 50.

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Em Cachoeira, assim como em Salvador, a Irmandade da Boa Morte no possua estatuto escrito, o que sugere que ela era uma Devoo da Boa Morte. Essa devoo evoluiu de tal forma que o culto informal ganhou ares de irmandade sem legalmente o ser. Em Salvador, esse culto particular era organizado durante o sculo XIX e incio do sculo XX, pela ala feminina da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios. Esta sim, uma irmandade mista com estatuto aprovado em 1788, sediada na Igreja da Barroquinha desde 1764. A devoo cresceu de tal forma que o folclorista Silva Campos afirmou que a mais concorrida, de mais extenso percurso e mais aparatosa apresentao das procisses em estudo, que j se fez na Bahia, veio a ser a da capela da Barroquinha, promovida por uma devoo composta de irmos e irms do Senhor dos Martrios, sodalcio a que pertence o templo. (grifo original)35 Segundo Renato da Silveira, o equvoco se originou da interpretao que o conceituado etnlogo Pierre Verger fez, na dcada de 1980, do livro Procisses Tradicionais da Bahia, escrito pelo folclorista Joo da Silva Campos. O livro de Campos falava sobre a devoo da Boa Morte, mas Pierre Verger escreveu sobre a Irmandade, causando um engano que foi perpetuado durante muito tempo na academia e at hoje na mdia. 36 A Boa Morte de Salvador desapareceu na primeira metade do sculo XX sem nunca ter sido instituda legalmente. Em Cachoeira, a devoo se perpetuou, desde o sculo XIX, sem estatuto formalizado. Segundo o historiador Lus Cludio Nascimento, a Devoo da Boa Morte em Cachoeira jamais possuiu um compromisso nem se vinculou a nenhuma igreja, sua base sempre foi a tradio oral. Ela, no entanto, adotou uma direo colegiada semelhante de uma irmandade, na constituio da mesa administrativa, no sistema eleitoral e na promoo de missas e procisses. Ou seja, a Devoo da Boa Morte assumiu a forma da irmandade sem precisar se submeter fiscalizao das autoridades. Somente no ano de 1989,

A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios dos Crioulos Naturais da cidade da Bahia provavelmente foi fundada na dcada de 1740, tendo seu compromisso aprovado em 1788. Ela ser melhor analisada ainda neste captulo. Joo Silva Campos, Procisses Tradicionais da Bahia, p. 240. 36 Silveira ainda argumenta que as pesquisas de historiadoras como Maria Ins Crtes de Oliveira e Ktia Mattoso no identificaram entre as confrarias negras de Salvador no sculo XIX, a presena de uma Irmandade da Boa Morte. Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, pp. 150, 445-448; Pierre Fatumbi Verger, Primeiros Terreiros de Candombl, disponvel em , acesso em 6 jun. 2007; Joo Silva Campos, Procisses Tradicionais da Bahia, p. 240.

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em meio aos conflitos que so objeto dessa dissertao, a Boa Morte de Cachoeira buscou formalizar um estatuto prprio. 37 Apesar de no estar submetida a um estatuto ou compromisso formal durante boa parte da sua histria, percebemos que a Boa Morte foi gradativamente se constituindo na prtica como uma irmandade. Mas o que era uma irmandade catlica na Bahia durante, por exemplo, os sculos XVIII e XIX? As Irmandades eram associaes de catlicos leigos que se uniam em torno da devoo a um santo patrono, sendo de grande importncia para a dinmica da vida religiosa e social. O historiador baiano, Joo Reis, afirma que as irmandades promoviam celebraes religiosas, dedicavam-se ajuda mtua e faziam obras de caridade voltadas para seus prprios membros ou para pessoas carentes no associadas. Alm disso, elas podiam exercer outros papis de acordo com as demandas do momento histrico, localidade ou grupo que lhe integrava. As irmandades eram instituies muito comuns em Portugal, sendo introduzidas com sucesso no seu imprio colonial. Elas estavam organizadas por profisso, condio social, etnia e outras categorizaes.38 Em Portugal, ainda no XVI, surgiram as primeiras irmandades especificamente para negros, a classificao de cor, como quesito importante na organizao das confrarias leigas, surgiu com o crescimento do nmero de africanos no Reino e sua entrada na cristandade. At ento, nas irmandades lusitanas, eram diversos os critrios de pertena. Podiam estar baseados na hierarquia do antigo regime, em vnculos corporativos ou de afinidade profissional, no gnero, ou ainda, na origem nacional.39 Segundo Lucilene Reginaldo, as duas primeiras irmandades de negros em Portugal nasceram sob a invocao de Nossa Senhora do Rosrio, uma em Lisboa e outra em vora. Nos sculos XVII e XVIII, o pas assistiu ao nascimento de outras em todas as localidades que concentraram populaes de origem africana. No incio do sculo XVIII, a populao negra em Lisboa possua pelo menos nove confrarias exclusivas.40Trabalho ainda no publicado de Nascimento apud Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, pp. 447448. Apenas no ano de 1989, durante os conflitos que sero discutidos neste trabalho, que a devoo/irmandade em Cachoeira elabora e registra seu Estatuto. Vale ressaltar que optamos por continuar chamando a instituio de Irmandade da Boa Morte ao longo deste trabalho, mesmo quando nos referimos a ela no perodo anterior a 1989. 38 Joo Jos Reis, A morte uma festa, pp. 53-54. 39 Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, Campinas, SP, Universidade Estadual de Campinas, 2005, (Tese de Doutorado), p. 48. 40 Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, pp. 47-51.37

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No Brasil, as irmandades tambm foram muito numerosas e importantes, especialmente nos sculos XVII e XVIII. Roger Bastide defende que a urbanizao contribuiu para a proliferao de um catolicismo organizado em confrarias, confrarias extremamente numerosas, ciumentas umas das outras, em concorrncia mtua, para ver qual ornaria melhor sua capela, qual teria mais poder, qual seria a mais rica.41 A grande concentrao de negros na sociedade colonial brasileira explica o surgimento tambm de numerosas confrarias integradas por essa parcela da populao. 42 Na Bahia, por exemplo, ainda no sc. XVII so identificadas as primeiras irmandades de negros sediadas em Salvador.43 Segundo Bastide, entre as irmandades o conflito racial vai se dissimular sob o manto da religio e a oposio tnica vai tomar aspecto de uma luta de sociedades religiosas, As confrarias de brancos estabeleciam estatutos que proibiam o acesso, em suas associaes, aos negros, aos mulatos e mesmo s pessoas casadas com indivdios de cor. (...) As pessoas de cor eram, portanto, obrigadas a pertencer a confrarias prprias a sua cor.44 Essas irmandades de cor eram mais numerosas e se dividiam entre as de crioulos (pretos nascidos no Brasil), mulatos e africanos. Entre os africanos tambm existiam diferentes critrios de pertena de acordo com as etnias de origem - angolanos, jejes, nags e outras. Mas, para alm das divises e lutas, as irmandades negras eram tambm espaos de solidariedade tnica ou pelo menos de administrao dessas diferenas na comunidade negra.45 Assim, na verdade, os arranjos criativos e as recriaes dessas identidades tnicas que deram sustentabilidade a essas instituies.46 Falando sobre irmandades negras na BahiaRoger Bastide, As religies africanas no Brasil, So Paulo, Pioneira, 1971, v.1, p. 163. Joo Reis cita os trabalhos de Ktia Mattoso e Ins Oliveira para afirmar que entre 1790 e 1830, apenas 21,6% dos libertos e 18,5% das libertas que deixaram testamento no pertenciam a irmandades. Elas eram to importantes na vida do liberto do sculo XVIII que muitos eram membros de vrias irmandades ao mesmo tempo. Joo Jos Reis, A morte uma festa, p. 54. 43 Essas irmandades negras foram erigidas principalmente em torno da devoo a Nossa Senhora do Rosrio e em segundo lugar, a So Benedito. No sculo XVII, a pesquisa de Lucilene Reginaldo identificou, entre outras, a fundao das Irmandades negras de Nossa Senhora do Rosrio em Salvador: na Igreja Matriz da Vitria (sem data precisa de fundao), na S Catedral (compromisso em 1685), e na matriz da Conceio da Praia (com compromisso de 1686); e tambm a fundao de uma irmandade dedicada a So Benedito de Palermo na Igreja do Corpo Santo, ento matriz da parquia da Conceio da Praia (com compromisso de 1684). Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, pp. 75-77. 44 Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, v. 1, pp. 163-165. 45 Roger Bastide, As Religies africanas no Brasil, v. 1, pp. 163-164; Joo Jos Reis, A Morte uma Festa, pp. 49, 54-55. 46 Consideramos aqui a noo de Walter Mignolo de que no existe identidade racial essencializada, nem um sujeito negro essencial, a identidade seja de uma pessoa ou instituio - no um esprito intrnseco, algo42 41

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do sculo XVIII, Lucilene Reginaldo ressalta que as experincias identitrias no eram constitudas a priori, mas se definiam no cotidiano das relaes entre os africanos de vrias procedncias e entre eles e os outros personagens do cenrio social para o qual foram transpostos.47 Nesse mesmo sentido Joo Reis afirma, Podemos sugerir que essas alianas se faziam ao sabor das condies locais, da histria especfica da comunidade africana e seus conflitos em cada regio, em cada cidade, vila ou vizinhana. justamente neste sentido que as irmandades servem como um bom termmetro das tenses no interior da comunidade negra no tempo da escravido e do trfico atlntico de escravos.48 Apesar da importncia das marcas identitrias de cada confraria, o exclusivismo tnico era quase impossvel. Tomemos como exemplo a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios da Igreja da Barroquinha, confraria que esteve estreitamente ligada Devoo a Nossa Senhora da Boa Morte em Salvador e ao surgimento do Candombl da Barroquinha. Segundo Renato da Silveira, a historiografia brasileira assumiu que a Irmandade dos Martrios foi fundada por nags da nao Ketu, porm a documentao que poderia esclarecer esta pendncia foi engolida pelo fogo. Como os terreiros descendentes do Candombl da Barroquinha consideram-se oriundos do Reino de Ketu, muitos autores tm concludo precipitadamente que os confrades dos Martrios tambm o eram.49 A documentao foi engolida pelo fogo no incndio que destruiu a Igreja da Barroquinha no ano de 1984, mas o folclorista Silva Campos foi um dos poucos que teve acesso aos arquivos antes do sinistro. Segundo Renato da Silveira, quando Campos se refere Irmandade dos Martrios, ele acrescenta: dos Crioulos Naturais da cidade da Bahia, sem mencionar presena africana. E pelo menos um documento relaciona a Irmandade dos Martrios com os crioulos: em 1775, a Irmandade do Corpo Santo, fundada por um grupo de africanos da Costa da Mina, pede autorizao oficial para excluir os crioulos da agremiao. Uma das justificativas para obter tal autorizao mencionar o exemplo da Irmandade dosem dilogo conflituoso com outras foras atuantes. Um processo tenso que possui mo dupla, influencia e influenciado. Walter D. Mignolo, Histrias Locais / Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003. 47 Durante muito tempo os estudos sobre irmandades negras privilegiaram as questes relacionadas a resistncia ou cooptao. No entanto, estudos recentes tm enfatizado as negociaes e reinvenes da identidade tnica dentro das confrarias negras, o caso do trabalho de Lucilene Reginaldo sobre as Irmandades do Rosrio na Bahia do sculo XVIII. Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, p. 95. 48 Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, Rio de Janeiro, UFF, vol. 2, n. 3, 1996, p. 7-33, disponvel em http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg31.pdf, acesso em 9/05/2007, p. 8. 49 Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, p. 283.

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Martrios na qual se observa o mesmo impedimento com os do Ultra-mar. Logo, naquele momento, os irmos dos Martrios pareciam ser crioulos com fama de no admitir africanos em sua confraria.50 No entanto, Renato da Silveira enumera uma srie de fatores que indicam a presena tambm de africanos e africanas nessa Irmandade. A Devoo da Boa Morte em Salvador, por exemplo, atribuda a uma elite feminina nag-iorub, segundo a descrio do folclorista Silva Campos. Logo, no temos um nico matiz tnico, a prudncia recomenda portanto matizes: a irmandade negra da Barroquinha no era apenas de crioulos naturais da cidade da Bahia, muito menos ainda apenas de nags da nao de Ketu .51 Alm das negociaes entre grupos de diferentes etnias africanas e entre estes e os crioulos, as irmandades de negros admitiam, muitas vezes, pessoas brancas. Esses brancos geralmente exerciam funes que exigiam o domnio da escrita ou ocupavam cargos honorrios. A presena deles podia ter diversos sentidos para a confraria, como por exemplo: representar um controle compulsrio exercido pelo branco sobre a Irmandade; significar a conquista de um aliado influente que poderia favorec-la em caso de necessidade; uma tentativa de receber doaes generosas; ou at a sincera devoo de um homem branco que queria salvar a alma. Joo Reis, entretanto, chama a ateno para o fato de que a presena branca nem sempre foi aceita com tranqilidade, especialmente quando ocupavam certas posies-chave de direo. 52 A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios da Igreja da Barroquinha, por exemplo, teve vrias pessoas ilustres entre seus irmos honorrios, como arcebispos, condes, bares, desembargadores, coronis, entre outros, com destaque para o governador da Capitania da Bahia entre 1810-1818, Conde dos Arcos.53 Sobre critrios de acessibilidade a irmandades, a historiadora Lucilene Reginaldo acrescenta: Jamais me deparei com uma irmandade de pretos ou pardos que estabelecesse mecanismos de excluso baseados apenas na cor ou origem tnica como critrio de admisso de novos scios. As que pretenderam agir deste modo foram obrigadas a mudar. Nesse sentido,50

Mais informaes ver: Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, pp. 281-295; Joo Silva Campos, Procisses Tradicionais da Bahia, pp. 78-79; Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, pp. 93-100. 51 Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, p. 281-295; Joo Silva Campos, Procisses Tradicionais da Bahia, Salvador, p. 239-243; Vale ressaltar que o critrio tnico de pertena podia a depender do sexo do participante e variar ao longo do tempo. Joo Reis cita o exemplo dos jejes da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios, de Cachoeira, que dificultavam a entrada de crioulos em sua agremiao mas aceitam de bom grado as mulheres crioulas e de outras procedncias tnicas. Joo Reis, A morte uma festa, pp. 56-58. 52 Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, p.12. 53 Renato da Silveira, O candombl da Barroquinha, p. 294.

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pode-se afirmar que a excluso era um privilgio reservado aos brancos.54 Assim percebemos que as irmandades negras eram espaos privilegiados para negociao e reinveno de identidades. Quais, porm, eram os outros papis desempenhados por essas irmandades negras na sociedade do Brasil escravista? Segundo a historiadora Mariza Soares, mais do que simples espaos de devoo, as irmandades negras transformaram-se em espaos de sociabilidade.55 Para Joo Reis, elas _ assim como a famlia de santo dos candombls _ substituam importantes funes e significados da famlia consangnea, que havia sido desbaratada pela escravido, A irmandade representava um espao de relativa autonomia negra, no qual seus membros __ em torno das festas, assemblias, eleies, funerais, missas e da assistncia mtua __ construam identidades sociais significativas, no interior de um mundo s vezes sufocante e sempre incerto. A irmandade era uma espcie de famlia ritual, em que africanos desenraizados de suas terras viviam e morriam solidariamente.56 O socilogo Roger Bastide identifica pelo menos trs finalidades das confrarias negras no Brasil escravista: a promoo de alforria e mobilidade social; um espao de status e formao de certo grupo de liderana; e, por fim, assegurar uma sepultura e um enterro adequados para pessoas de origem africana habituados ao culto aos ancestrais. 57 Mas suas funes podiam ser muito maiores do que estas. Segundo Lucilene Reginaldo, a importncia das irmandades negras, para alm do papel de qualquer irmandade, era a possibilidade de criao de um lugar de proteo e apoio jurdico, um espao de exerccio de poder para os grupos sociais menos privilegiados.58

Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, p. 97. 55 Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2000, p. 133. 56 Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, p. 4. 57 Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, 1971, v. 1, p. 167. 58 Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, p. 51.

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Reis tambm refora essa idia ao afirmar que as irmandades tinham, (...) a funo implcita de representar socialmente, se no politicamente, os diversos grupos sociais e ocupacionais da Bahia. Na ausncia de associaes propriamente de classe, elas ajudavam a tecer solidariedades fundamentadas na estrutura econmica (...).59 Assim, essas confrarias podiam acumular funes religiosas, sociais e tambm polticas. Alm disso, elas podiam ser valorizadas tambm enquanto espaos de solidariedade, negociao e reinveno da identidade tnica negra. Em relao administrao, as irmandades negras eram, geralmente, dirigidas por uma mesa composta por cargos executivos e presididas, por juzes, presidentes, provedores ou priores _ a denominao variava _ e composta por escrives, tesoureiros, procuradores, consultores, mordomos, que desenvolviam diversas tarefas: convocao e direo de reunies, arrecadao de fundos, guarda dos livros e bens da confraria, visitas de assistncia aos irmos necessitados, organizao dos funerais, festas, loterias e outras atividades.60 Ainda segundo Joo Reis, os cargos variavam a depender da regio e, geralmente, a mesa era renovada a cada ano por meio de votao. As confrarias eram sustentadas por anuidades, esmolas coletadas periodicamente, loterias, jias doadas como forma de entrada na irmandade e outros meios.61 Para que as irmandades funcionassem, era necessrio encontrar uma igreja que as acolhesse ou construir a sua prpria cada igreja podia acolher muitas dessas agremiaes. Segundo Joo Reis, as igrejas que as confrarias ocupavam representavam seu marco fundamental de identidade, pois existiam irmandades com as mesmas denominaes espalhadas pelo pas _ s vezes, na prpria provncia ou cidade. Por isso era comum, ao tentar identificar uma irmandade se citar seu nome e o do templo a que pertencia. 62 Segundo Bastide, eram comuns os conflitos por templos que pudessem ser utilizados como sede para irmandades negras. Muitas vezes elas no podiam dispor de uma igreja prpria, ou por falta de recursos, ou porque a construo do seu templo no estava acabada, ou ainda por outros fatores. O uso da catedral _ que representa a comunidade urbana total _ era muitas vezes a soluo encontrada para minimizar diferenas sociais ou tendncias segregacionistas.6359 60

Joo Jos Reis. A Morte uma Festa, p. 53. Joo Jos Reis, A Morte uma Festa, p. 50. 61 Joo Jos Reis, A Morte uma Festa, p. 50. 62 Joo Jos Reis, A Morte uma Festa, p. 49. 63 Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, 1971, V. 1, p. 168.

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Mas uma das questes fundamentais na organizao de uma confraria era a escolha de sua denominao: Que critrios os confrades africanos e crioulos utilizavam para escolher o santo de devoo de sua irmandade? O SANTO PATRONO E AS FESTAS EM SUA DEVOO Segundo Roger Bastide, quando homens negros se identificavam com uma devoo catlica havia mais que uma ligao mstica, o sentimento de uma espcie de afinidade tnica. Era comum que confrades negros se identificassem com devoes a santos tambm de cor, a santos com uma trajetria de privaes ou santos ligados a temticas importantes na cultura africana, como a morte. Nesse sentido, entre os santos mais presentes nas devoes feitas por homens de cor, estavam: Nossa Senhora do Rosrio, So Benedito, Santa Efignia e Santo Elesbo. Para a historiadora Lucilene Reginaldo, esse era um campo aberto para reinterpretaes dos smbolos, prticas e mensagens do catolicismo. 64 As devoes associadas morte, como no caso da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, eram muito comuns no Brasil desde o sculo XVIII e eram de especial importncia para a populao negra. O medo de ter o corpo insepulto ou sepultado sem honra pela Santa Casa fazia com que muitos negros quisessem um sepultamento cristo. Filiar-se a uma irmandade era praticamente o nico recurso oferecido aos escravos e pretos forros para que tivessem tal sepultamento. Havia grande preocupao das agremiaes religiosas leigas em relao aos mortos, tanto em fazer oraes pela sua alma como em providenciar os funerais.65 Nesse sentido, negros e portugueses tinham preocupaes semelhantes. Segundo Reis, os negros mantinham uma relao especial com os ancestrais e o mundo dos mortos,

Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, pp. 166 e 168; Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, p. 37-42 e 84. 65 Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: Identidade tnica, religiosidade e escravido no Rio de Janeiro, sculo VXIII, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2000, pp. 144-153 e 174-175 .

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Os negros combatiam pelo direito de celebrar a vida a seu modo. Mas tambm de celebrar a morte. conhecida a preocupao dos africanos em promover funerais elaborados para seus mortos. Essa atitude adaptou-se bem tradio luso-barroca de pompa fnebre. As irmandades acompanhavam e enterravam em suas capelas os seus mortos, e rezavam missas por suas almas, projetando para alm da vida a comunidade tnica terrena.66 Bastide ainda argumenta que entre africanos e crioulos foi conservada a importncia dada ao enterro e aos rituais de separao entre vivos e mortos; a fim de que estes ltimos no se vingassem ou viessem perturbar seus filhos com doenas ou pesadelos. 67 Mas, ao contrrio do que acontece nas civilizaes ocidentais, nas culturas africanas a morte no considerada uma ruptura ou uma contradio, ou seja, apenas uma mudana de estado. As civilizaes africanas so civilizaes simblicas, nas quais os mortos e os vivos constituem uma mesma comunidade e a morte no considerada seno uma passagem para um estgio superior; assim, o ancestral poder voltar ao mundo dos vivos, reencarnando-se no seu bisneto. (...) a comunicao nunca interrompida entre os dois mundos que continuam embora por meios diferentes - a dialogar incessantemente, a ajudar-se mutuamente, a controlar-se para o bem comum de uns e outros.68 Ao discutir a relao dos nags com a morte, Juana Elbein dos Santos afirmou que, (...) O ser que completou com sucesso a totalidade de seu destino est maduro para a morte. Quando passa do aiye [mundo] para o orun [alm/espao sobrenatural], tendo sido celebrados os rituais pertinentes [axex], transforma-se automaticamente em ancestre (...) e poder inclusive ser invocado como Egum. Alm dos descendentes gerados por ele durante a sua vida no aiy, poder por sua vez participar na formao de novos seres, nos quais se encarnar como elemento coletivo.69

Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, pp. 11 e 16. A rebelio barroca conhecida como Cemiterada, ocorrida em 1836, uma prova da importncia dada por negros e brancos portugueses s cerimnias fnebres. Em tal rebelio irmandades brancas e negras baianas protestaram contra a proibio dos enterros no interior dos templos. Segundo Reis, o cemitrio que se havia construdo para o enterro de todos destruiria noes arraigadas de salvao e ancestralidade, eliminando no caso dos negros aquele elemento de comunidade que garantiram um novo sentido de vida num mundo hostil. Joo Jos Reis, A morte uma festa, p. 17. 67 Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, p. 185. 68 Roger Bastide, Religies africanas e estruturas de civilizao, Afro-sia, Salvador, CEAO, edio: 6-7, 1968, disponvel em , acesso em 29/07/2007, p. 5. 69 Juana Elbein apud Francisca Marques, Festa da Boa Morte: Identidade, Sincretismo e Msica na religiosidade brasileira, UFRJ, 2002, disponvel em , acesso em 10/06/2007.

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Nesse sentido, muito significativo que um grupo de mulheres negras, ligadas ao Candombl, tenha organizado uma irmandade dedicada a uma devoo ligada morte.70 Mas quem Nossa Senhora da Boa Morte? Na tradio Catlica, Maria, me de Jesus, ao morrer no passou pela corrupo natural da morte, pois ela teria ascendido ao cu imediatamente. No Oriente, essa festa era denominada Dormio de Maria e j tinha grande prestgio desde o incio do sculo VII, se estendendo por toda a Igreja Bizantina. A escolha da data de 15 de agosto geralmente atribuda ao imperador Maurcio (580-603). No Ocidente, a devoo j era largamente praticada no sculo XI com a denominao de Assuno de Maria. 71 Segundo Strada, A morte de Maria est relacionada ao modelo da morte e ressurreio de Jesus Cristo. No entanto, o momento da passagem de ambos traz interpretaes diferentes ars moriendi. Cristo teve uma morte herica, depois da via crucis, do martrio, com dor e sofrimento. A sua morte para os cristos considerada instrumento de libertao e salvao. Maria teve uma morte gloriosa, ou seja, ela compartilhou do sofrimento e da morte por toda a sua vida mas no sofreu ao morrer, e assim sendo, diz-se que ela, como o Cristo, venceu a morte. Para os telogos a finalizao da vida terrestre de Maria descrita como morte provocada por um "xtase", um "trnsito" ao cu, uma espcie de "adormecimento" (grifo original).72 Assim, segundo a tradio catlica, a Irmandade da Boa Morte festeja a assuno ou dormio de Maria. Nesse sentido, no segundo dia da festa da irmandade cachoeirana, encenada a morte da santa _ com missa de corpo presente, irms com trajes de luto e procisso de enterro com imagem de Nossa Senhora da Boa Morte. No terceiro dia, queima de fogos, roupas coloridas, missa festiva, procisso com a imagem de Nossa Senhora da Glria e banquete anunciam a assuno da santa ao cu.73 Todo esse ritual, porm, est marcado tambm pela presena da religiosidade e culturas africanas. Segundo Joo Reis, as irmandades, sobretudo, mas no exclusivamente as negras, foram pelo menos at o Brasil Imprio, os principais veculos do catolicismo popular. Elas eram organizadas como um gesto de devoo a santos especficos, que em troca da proteo aos devotos recebiam homenagens em exuberantes festas. A data mxima do calendrio dasEntretanto, os depoimentos das irms da Boa Morte de Cachoeira no relacionam a devoo com a religiosidade de matriz africana. Antes, sustentam que o tema Morte tenha relao com o sofrimento do trabalho escravo ou ainda, uma promessa feita a Nossa Senhora pedindo a Abolio. Ver por exemplo: Celebrao da Boa Morte revive luta dos escravos, Jornal A Tarde, p. s/n, 31 julho 1983. 71 Sebastio Costa, A Festa da Irmandade da Boa Morte: e o cone Ortodoxo da Dominao de Maria, Salvador, Zuk, 2002, pp. 12-13; Luiz Cludio Nascimento, Candombl e Irmandade da Boa Morte, p. 7. 72 Strada apud Francisca Marques, Festa da Boa Morte: Identidade, Sincretismo e Msica na religiosidade brasileira. 73 Usei como base a Programao da Festa da Boa Morte, 2005, distribuda durante a festa.70

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irmandades era a festa do santo de devoo, essas festas incluam roupas de gala, procisses, muitas missas, fogos, banquetes, danas entre outras coisas. (...) celebrar bem os santos de devoo representava um investimento ritual no destino aps a morte alm de tornar a vida mais segura e interessante.74 .Nessa viso barroca do catolicismo as festas suntuosas e extravagantes estavam justificadas j que (...) o santo no se contenta com a prece individual. Sua intercesso ser to mais eficaz quanto maior for a capacidade dos indivduos de se unirem para homenage-lo de maneira espetacular. Para receber fora do santo, deve o devoto fortalec-lo com as festas em seu louvor, festas que representam exatamente um ritual de intercambio de energias entre homens e divindades. Enquanto ideologia, a religio era ento coisa dos doutores da Igreja, cabia aos irmos o lado emblemtico e mgico da religio.75 Segundo Bastide, j em Portugal existia o costume de juntar danas mascaradas e cantos profanos s festas religiosas. Nesse sentido, o negro das irmandades, danador de batuques, encarava os santos e a Virgem exatamente como seus deuses e ancestrais: como protetores de sua vida terrestre.76 Joo Reis refora essa tese ao afirmar que essas danas e mascarados em Portugal estavam ligados permanncia de fortes elementos pagos no catolicismo da Pennsula Ibrica. E esse catolicismo ldico favoreceu a adeso dos negros, que por seu lado abriram novos canais para seu desenvolvimento. Nas confrarias negras do Brasil o sagrado e o profano freqentemente se justapunham e, s vezes, se entrelaavam.77 Segundo Reis, nessas cerimnias, carregadas de emoo mais do que de devoo crist, os africanos reviviam simbolicamente suas antigas tradies culturais e consolidavam na prtica novas identidades tnicas.78 O mesmo autor afirma que: No h dvida sobre o compromisso dos baianos com o catolicismo, no o de Roma certamente, mas aquele de feitio mgico, impregnado de paganismo e sensualismo, adotado pelo povo e mesmo membros da elite. Um catolicismo ligado de maneira especial aos santos de devoo.79

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Joo Jos Reis, A morte uma festa, p. 59 a 61. Joo Jos Reis, A morte uma festa, p. 61. 76 . Bastide cita como exemplo fato ocorrido em Portugal 1534, quando certo nmero de altos dignatrios eclesisticos lutaram contra a tradio de juntar danas e cantos profanos a festas religiosas mas o rei as permitiu, o que fez com que elas continuassem. Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, v. 1, pp. 177-178 e 201. 77 Joo Reis, A morte uma festa, pp. 59, 62 e 66. 78 Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, p. 15. 79 Joo Jos Reis, A morte uma festa, pp. 60 e 61.

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Nesse sentido, Bastide identificou um catolicismo especifico que se conservava dentro das confrarias negras e que no obstante a unidade dos dogmas e da f, apresenta caractersticas particulares, um aspecto diferente do dos brancos pela insero de elementos africanos. Assim, O catolicismo negro foi um relicrio precioso que a Igreja ofertou, no obstante ela prpria, aos negros, para a conservar, no como relquias, mas como realidades vivas, certos valores mais altos de suas religies nativas.80 Segundo Bastide, os ensinamentos catlicos dados ao negro foram superficiais ou at inexistentes, um simples verniz superficial, por isso, confrarias frequentemente prolongaram-se em candombl. 81 Na Irmandade da Boa Morte, tanto na antiga instituio em Salvador como em Cachoeira, existia uma clara vinculao das irms, tanto confraria como s famlias de santo. Alm disso, tambm nota-se uma presena de elementos da cultura e religiosidade africanas nas celebraes dedicadas a Nossa Senhora. Mas, como ento interpretar esse catolicismo praticado por essas mulheres negras? Seria simplesmente um verniz ou uma camuflagem para outras devoes de origem africana? Antonia Quinto afirmou, A princpio poderiam ser classificados como pseudocatlicos, porque certo que mantinham crenas heterodoxas. Por outro lado, o fato de praticar as suas crenas no os impedia de ser tambm catlicos fervorosos e convictos dos dogmas da f crist. No se tratava apenas de obrigao, convenincia ou camuflagem. Do ponto de vista do negro no h oposio, incoerncia, ou compartimentao entre o catolicismo e a sua africanidade, pois so capazes de conciliar coisas que para os de fora parecem contraditrias e inconciliveis.82 Como Joo Reis assinala, essas irmandades foram imaginadas pelos portugueses, como um veculo de acomodao e domesticao do esprito africano, contudo, na verdade, funcionavam como meios de afirmao cultural. Atravs de uma africanizao da religio dos senhores, as irmandades impediam uma uniformizao ideolgica, que poderia levar a um controle social mais rgido.83Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, 1971, V. 1, pp. 172 e 178-179. Nina Rodrigues, citado por Bastide, afirma que houve apenas a iluso da catequese. Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, V. 1, pp. 181, 183 e 184. 82 Antnia Aparecida Quinto, L vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (Sculo XVIII), So Paulo, Annablume: Fapesp, 2002, p. 17. 83 Joo Jos Reis, A Morte uma Festa, p. 55; Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, p. 4.81 80

Baseada em Srgio F. Ferretti,

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Na interpretao de Bastide, o homem branco no se interessava pela religio de seu escravo, a no ser na medida em que esta podia ter alguma influncia (...). Os senhores de escravos fechavam os olhos enquanto os cultos no tocavam seus interesses imediatos.84 No entanto, segundo Reis, esse fato, mais que um desdm, demonstrava muitas vezes uma estratgia para dar vlvula de escape s tenses do cotidiano escravo. Na verdade, ao longo da histria do Brasil _ nas negociaes entre a Igreja Catlica e as irmandade negras _ ora prevaleceu a tolerncia, ora a represso.85 Retomando as reflexes de Bastide, podemos afirmar que essa dualidade de atitudes do branco frente s manifestaes religiosas e culturais negras podia variar de acordo diversas demandas e interesses. Alm de apresentar um catolicismo africanizado, como diversas outras irmandades negras, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira ainda possua uma singularidade, suas integrantes mantinham vnculo com terreiros de candombl do Recncavo baiano, em muitos casos, ocupando papel de liderana nessas casas. A IRMANDADE DA BOA MORTE EM CACHOEIRA Apesar de terem se organizado como agremiaes catlicas, as trajetrias da Boa Morte em Cachoeira, de sua congnere em Salvador e da Irmandade dos Martrios da Igreja da Barroquinha, esto tambm estreitamente ligadas histria do Candombl na Bahia.86 Segundo Lucilene Reginaldo, no existe informao exata em relao a sua data de fundao da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios. sabido apenas que em 1760 ela j possua alguma visibilidade, pois nesse ano a Irmandade da Misericrdia encaminhou denncia ao rei de Portugal contra os irmos dos Martrios em razo do costume de visitar todas as sextas-feiras da Quaresma os Santos Passos .87 Na interpretao de Renato da Silveira, a insistncia dos irmos dos Martrios em manter uma procisso quaresmal, proibida naquele momento, mostra que a confraria estava em pleno funcionamento, ainda que no

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Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, 1971, V. 1, p. 184. Joo Jos Reis, Identidade e Diversidade tnicas nas Irmandades Negras no Tempo da Escravido, Tempo, p. 15. 86 Segundo Vivaldo da Costa Lima, o termo candombl designa na Bahia os grupos religiosos caracterizados por um sistema de crenas em divindades chamadas de santosou orixs e associados ao fenmeno da possesso ou transe mstico, que seria a incorporao da divindade no iniciado ritualmente preparado para receb-la. Ademais, o termo tambm pode nomear o referencial espacial desse grupo, sendo sinnimo de terreiro, de casa de santo, de roa. Vivaldo da Costa Lima, A famlia de santo nos candombls jejes-nags da Bahia: um estudo de relaes intragrupais, Salvador, Corrupio, 2003, p. 17. 87 Lucilene Reginaldo, Os rosrios dos angolas: irmandades negras, experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista, p. 98.

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fosse uma instituio com estatuto legalmente aprovado. O autor sugere que a Irmandade provavelmente surgiu entre as dcada de 1740 e 1750.88 Em julho de 1764, os irmos dos Martrios conseguiram transferncia de sua irmandade para a Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, dividindo-a com a confraria que levava o mesmo nome do templo. A Irmandade da Barroquinha era composta por brancos pobres, pessoas que ocupavam funes como marceneiro e alferes. Em 1779, mais de um sculo aps o incio de suas atividades, os irmos dos Martrios redigiram o seu compromisso, passando a ser uma irmandade oficializada em 1788, aps consentimento real.89 No se sabe ao certo porque a Irmandade dos Martrios quis a mudana de igreja, mas, segundo Silveira, nas primeiras dcadas do sculo XIX, a Barroquinha foi se tornando um bairro de populao predominantemente negro-mestia. As terras que ficavam atrs da Igreja da Barroquinha, embora pertencentes Parquia de So Pedro _ que abrigava grande parte da elite intelectual e social da cidade _, eram desvalorizadas, pois no tinham vista para o mar e estavam nas vizinhanas de um pntano. Assim, o lugar foi procurado pela populao mais pobre que constitua a base social das duas irmandades existentes na Capela da Barroquinha, uma pequena irmandade de brancos modestos, a de Nossa Senhora da Barroquinha, e a crescente irmandade negra, a do Senhor Bom Jesus dos Martrios. Segundo Silveira, o bairro abrigou residncias e pequenos negcios de personalidades importantes no universo afrobaiano, transformando-se em um reduto cultural africano dentro da cidade. O bairro teria chegado a abrigar uma pequena mesquita e um clube mal, alm do candombl nag que veio a ser fundado ali.90 Embora seja conhecida como irmandade dos nags91, inicialmente sua composio tnica era predominantemente crioula, conforme discutido anteriormente. Apesar disso, o trabalho de Renato da Silveira aponta, por exemplo, para a presena de diversos africanos e africanas nessa Irmandade, o que parece natural, visto que o exclusivismo e o imobilismo tnico parece no ter sido caracterstica de nenhuma irmandade negra: Em 1775, os confrades crioulos dos Martrios permaneciam majoritrios e ainda deviam controlar a mesa diretora, donde a imagem pblica de uma irmandade de crioulos. Porm, entre o final do sculo XVIII e meados do sculo XIX, a populao africana da cidade da Bahia foi se tornando majoritariamente africana ocidental,88 89

Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 281-282. Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 282-283. 90 Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 279, 417-421. 91 Joo Reis, por exemplo, um dos que afirma que os nags da nao queto reuniam-se na igreja da Barroquinha, essa citao parece baseada no livro Notcias da Bahia de Pierre Verger apud Joo Reis, A Morte uma Festa, p. 55.

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de tal modo que os nags, que j representavam cerca de 29% dos africanos em 1835, pularam para 77% em 1857.92 Com esse crescimento do nmero de nags entre a populao escrava de Salvador, possvel que a proporo de africanos no interior da irmandade tambm tenha aumentado. Segundo Silveira, a composio tnica da confraria pode ter se alterado sutilmente, primeiro em favor dos jejes, depois, pelo incio do sculo XIX, em favor dos nags, mesmo que mantendo publicamente a identidade crioula. Essa alterao pode, inclusive, ter proporcionado aos nags a oportunidade de ascender a postos de comando na agremiao. Isso justificaria o fato dela ter ficado conhecida como nag de ketu, assim como aconteceu com a Devoo da Boa Morte e o Candombl da Barroquinha que se organizaram dela.93 Nas primeiras dcadas do sculo XIX, a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martrios da Barroquinha contava com uma boa capacidade de mobilizao, arrecadao e produo. Em seu rol de membros, figuravam nobres do Reino de Ketu, mals importantes, irmos honorrios brancos ricos e influentes, crioulos e ainda outros africanos. Esse parecia ser o contexto adequado para o surgimento do importante Candombl da Barroquinha.94 Segundo autores como Renato da Silveira, o Candombl da Barroquinha 95 teria sido o primeiro culto de matriz africana organizado como uma associao mais complexa, reunindo numerosas hierarquias religiosas e civis na Bahia. Mas, nem entre os historiadores, nem mesmo na tradio oral do povo-de-santo baiano, existe consenso em relao data de sua fundao e de sua primazia como terreiro. Ao analisar diversas verses, Silveira sugere que existe certa convergncia para as ltimas dcadas do sculo XVIII e as primeiras do sculo XIX, mais precisamente entre os anos de 1788 e 1830. 96

Embora perecessem mais difceis, as alianas entre africanos e crioulos ocorreram em diversos momentos na histria das irmandades baianas. Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 283-295. 93 Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 292-294. 94 Segundo Juana Elbein dos Santos apud Silveira, os ataques daomeanos a Ketu em 1789 facilitaram a chegada de grande contingente de Ketu, vendidos no Brasil como escravos. Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, p. 294. 95 Segundo Silveira, existe um silencio sobre o nome deste candombl, apenas Verger no seu livro Orixs menciona que o nome teria sido y Omi se ir Intil, chamado tambm de Casa Branca, aqui o citaremos apenas como Candombl da Barroquinha, segundo o exemplo de Silveira. Sobre o nome desse candombl e seus possveis significados ver: Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 380-390. 96 Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 373-374 e 421.

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Documentos de 1804, 1807 e 1812, citados por Renato da Silveira, atestam que a Irmandade de Nossa Senhora da Barroquinha arrendou para os irmos dos Martrios a rea anexa Igreja. Foi nesse local que, muito provavelmente, o Candombl foi instalado. No documento de 1804, por exemplo, l-se: O casal Brgida Maria do Esprito Santo e Joo Vaz Silva, brancos filiados Confraria de Nossa Senhora da Barroquinha, encaminharam petio Cria, visando colocar a disposio da instituio a renda anual de 20 mil ris proveniente do arrendamento de uma sorte de terras livres sita por detrs da capela de N. S. da Barroquinha com sua morada de casas grandes de taipa (...)97 A rea arrendada j possua algumas construes, mas, num requerimento do ano de 1812, os irmos dos Martrios pedem autorizao ao Conselho da Cmara de Vereadores de Salvador para construir um novo imvel. Na interpretao de Silveira, o novo prdio, alm de ser um espao oficial para reunies, seria estrategicamente uma barreira para isolar o Candombl da j movimentada Rua da Barroquinha, tornando o espao interno bem mais reservado para a realizao dos rituais.98 Segundo Renato da Silveira, a tradio oral sugere que o Candombl da Barroquinha abrigou um grande acordo poltico reunindo os nags-iorubs da Bahia, sob a liderana dos partidrios do Oxossi de Ketu e do Xang de Oy. Alm do acordo entre homens e mulheres negros de diversas procedncias, a instituio tambm deve ter demonstrado capacidade criativa para negociar sua existncia perante autoridades civis e eclesisticas da cidade. Mesma capacidade demonstrada pelos irmos dos Martrios ao manter nmero significativo de homens brancos ilustres entre seus confrades. O prprio governador da Capitania da Bahia entre 1810 e 1818, Conde dos Arcos, que se filiou aos Martrios em 1811, deve ter sido importante para viabilizar a existncia do Candombl da Barroquinha, naquele momento. Nesses arranjos e alianas tornava-se importante saber aproveitar as contradies do poder.99 O Conde dos Arcos, por exemplo, ao contrrio de seu antecessor, Em lugar de represso, optou pela dissuaso. Ele acreditava que se deveria permitir aos escravos praticar suas religies, tocar e cantar suas msicas e danas trazidas da frica, pois a livre expresso dessas prticas culturais exacerbaria suas diferenas tnicas. Uni-los, mesmo submetendo-os civilizao branca por meio do cristianismo, seria perigoso. Preferia apostar na velha ttica de dividir-para-dominar.97 98

Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, p. 378. Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, p. 379. 99 Segundo Silveira, As duas principais festas do calendrio da Casa Branca comemoram sua fundao: a primeira dedicada a Oxossi, no dia de Corpus Christi, e a segunda dedicada a Xang, em 29 de junho, dia de So Pedro. A aliana foi firmada na prpria organizao espacial do candombl: o terreiro pertence a Oxossi, enquanto o barraco central pertence a Xang. Renato da Silveira, Candombl da Barroquinha, pp. 294 e 457.

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Alm disso, argumentava, o lazer mundano e os rituais religiosos permitiam aos escravos se divertirem para esquecer durante algumas horas a sua triste condio.100 Essa opo do Conde dos Arcos por uma poltica de maior tolerncia deve ter sido capitalizada