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O SIGNIFICADO CLÁSSICO E MODERNO DE POLÍTICA I. O SIGNIFICADO CLÁSSICO E MODERNO DE POLÍTICA. Derivado do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa tudo o que se refere à cidade e, conseqüentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social, o termo Política se expandiu graças à influência da grande obra de Aristóteles, intitulada Política, que deve ser considerada como o primeiro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de Governo, com a significação mais comum de arte ou ciência do Governo, isto é, de reflexão, não importa se com intenções meramente descritivas ou também normativas, dois aspectos dificilmente discrimináveis, sobre as coisas da cidade. Ocorreu assim desde a origem uma transposição de significado, do conjunto das coisas qualificadas de um certo modo pelo adjetivo "político", para a forma de saber mais ou menos organizado sobre esse mesmo conjunto de coisas: uma transposição não diversa daquela que deu origem a termos como física, estética, ética e, por último, cibernética. O termo Política foi usado durante séculos para designar principalmente obras dedicadas ao estudo daquela esfera de atividades humanas que se refere de algum modo às coisas do Estado: Politica methodice digesta, para apresentar um exemplo célebre, é o título da obra com que Johannes Althusius (1603) expôs uma das teorias da consociatio publica (o Estado no sentido moderno da palavra), abrangente em seu seio várias formas de consociationes menores. Na época moderna, o termo perdeu seu significado original, substituído pouco a pouco por outras expressões como "ciência do Estado", "doutrina do Estado", "ciência política", "filosofia política", etc., passando a ser comumente usado para indicar a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma maneira, têm como termo de referência a  pólis, ou seja, o Estado. Dessa atividade a  pólis é, por vezes, o sujeito, quando referidos à esfera da Política atos como o ordenar ou proibir alguma coisa com efeitos vinculadores para todos os membros de um determinado grupo social, o exercício de um domínio exclusivo sobre um determinado território, o legislar através de normas válidas erga omnes, o tirar e transferir recursos de um setor da sociedade para outros, etc.; outras vezes ela é objeto, quando são referidas à esfera da Política ações como a conquista, a manutenção, a defesa, a ampliação, o robustecimento, a derrubada, a destruição do poder estatal, etc. Prova disso é que obras que continuam a tradição do tratado aristotélico se intitulam no século XIX Filosofia do direito (Hegel, 1821), Sistema da ciência do Estado (Lorenz von Stein, 1852-1856), Elementos de ciência política (Mosca, 1896), Doutrina geral do Estado (Georg Jellinek, 1900). Conserva parcialmente a significação tradicional a pequena obra de Croce, Elementos de política (1925), onde Política mantém o significado de reflexão sobre a atividade política, equivalendo, por isso, a "elementos de filosofia política". Uma prova mais recente é a que se pode deduzir do uso enraizado nas línguas mais difundidas de chamar história das doutrinas ou das idéias políticas ou, mais genericamente, história do pensamento político à história que, se houvesse permanecido invariável o significado transmitido pelos clássicos, teria de se chamar história da Política, por analogia com outras expressões, como história da física, ou da estética, ou da ética: uso também aceito por Croce que, na pequena obra citada, intitula Para a história da filosofia da política o capítulo dedicado a um breve excursus histórico pelas políticas modernas. II. A TIPOLOGIA CLÁSSICA DAS FORMAS DE PODER. O conceito de Política, entendida como forma de atividade ou de práxis

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O SIGNIFICADO CLÁSSICO EMODERNO DE POLÍTICA

I. O SIGNIFICADO CLÁSSICO EMODERNO DE POLÍTICA.

Derivado do adjetivo originado de pólis(politikós), que significa tudo o que serefere à cidade e, conseqüentemente, oque é urbano, civil, público, e atémesmo sociável e social, o termoPolítica se expandiu graças à influênciada grande obra de Aristóteles, intituladaPolítica, que deve ser considerada comoo primeiro tratado sobre a natureza,funções e divisão do Estado, e sobre asvárias formas de Governo, com asignificação mais comum de arte ouciência do Governo, isto é, de reflexão,

não importa se com intençõesmeramente descritivas ou tambémnormativas, dois aspectos dificilmentediscrimináveis, sobre as coisas dacidade. Ocorreu assim desde a origemuma transposição de significado, doconjunto das coisas qualificadas de umcerto modo pelo adjetivo "político", paraa forma de saber mais ou menosorganizado sobre esse mesmo conjuntode coisas: uma transposição não

diversa daquela que deu origem atermos como física, estética, ética e,por último, cibernética. O termo Políticafoi usado durante séculos para designarprincipalmente obras dedicadas aoestudo daquela esfera de atividadeshumanas que se refere de algum modoàs coisas do Estado: Politica methodicedigesta, só para apresentar umexemplo célebre, é o título da obra com

que Johannes Althusius (1603) expôsuma das teorias da consociatio publica(o Estado no sentido moderno dapalavra), abrangente em seu seio váriasformas de consociationes menores.

Na época moderna, o termo perdeu seusignificado original, substituído pouco apouco por outras expressões como"ciência do Estado", "doutrina doEstado", "ciência política", "filosofiapolítica", etc., passando a sercomumente usado para indicar aatividade ou conjunto de atividadesque, de alguma maneira, têm como

termo de referência a  pólis, ou seja, oEstado.

Dessa atividade a  pólis é, por vezes, osujeito, quando referidos à esfera daPolítica atos como o ordenar ou proibiralguma coisa com efeitos vinculadorespara todos os membros de um

determinado grupo social, o exercíciode um domínio exclusivo sobre umdeterminado território, o legislaratravés de normas válidas erga omnes,o tirar e transferir recursos de um setorda sociedade para outros, etc.; outrasvezes ela é objeto, quando são referidasà esfera da Política ações como aconquista, a manutenção, a defesa, aampliação, o robustecimento, aderrubada, a destruição do poderestatal, etc. Prova disso é que obrasque continuam a tradição do tratadoaristotélico se intitulam no século XIXFilosofia do direito (Hegel, 1821),Sistema da ciência do Estado (Lorenzvon Stein, 1852-1856), Elementos deciência política (Mosca, 1896), Doutrinageral do Estado (Georg Jellinek, 1900).Conserva parcialmente a significaçãotradicional a pequena obra de Croce,

Elementos de política (1925), ondePolítica mantém o significado dereflexão sobre a atividade política,equivalendo, por isso, a "elementos defilosofia política". Uma prova maisrecente é a que se pode deduzir do usoenraizado nas línguas mais difundidasde chamar história das doutrinas ou dasidéias políticas ou, mais genericamente,história do pensamento político àhistória que, se houvesse permanecido

invariável o significado transmitidopelos clássicos, teria de se chamarhistória da Política, por analogia comoutras expressões, como história dafísica, ou da estética, ou da ética: usotambém aceito por Croce que, napequena obra citada, intitula Para ahistória da filosofia da política o capítulodedicado a um breve excursus históricopelas políticas modernas.

II. A TIPOLOGIA CLÁSSICA DASFORMAS DE PODER.

O conceito de Política, entendida comoforma de atividade ou de práxis

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humana, está estreitamente ligado aode poder. Este tem sidotradicionalmente definido como"consistente nos meios adequados àobtenção de qualquer vantagem"(Hobbes) ou, analogamente, como"conjunto dos meios que permitemalcançar os efeitos desejados" (Russell).Sendo um destes meios, além dodomínio da natureza, o domínio sobreos outros homens, o poder é definidopor vezes como uma relação entre doissujeitos, dos quais um impõe ao outro aprópria vontade e lhe determina,malgrado seu, o comportamento. Mas,como o domínio sobre os homens não égeralmente fim em si mesmo, mas ummeio para obter "qualquer vantagem"

ou, mais exatamente, "os efeitosdesejados", como acontece com odomínio da natureza, a definição dopoder como tipo de relação entresujeitos tem de ser completada com adefinição do poder como posse dosmeios (entre os quais se contam comoprincipais o domínio sobre os outros esobre a natureza) que permitemalcançar justamente uma "vantagemqualquer" ou os "efeitos desejados".

O poder político pertence à categoria dopoder do homem sobre outro homem,não à do poder do homem sobre anatureza. Esta relação de poder éexpressa de mil maneiras, onde sereconhecem fórmulas típicas dalinguagem política: como relação entregovernantes e governados, entresoberano e súditos, entre Estado ecidadãos, entre autoridade e

obediência, etc.Há várias formas de poder do homemsobre o homem; o poder político éapenas uma delas. Na tradição clássicaque remonta especificamente aAristóteles, eram consideradas trêsformas principais de poder: o poderpaterno, o poder despótico e o poderpolítico. Os critérios de distinção têmsido vários com o variar dos tempos.

Em Aristóteles se entrevê a distinçãobaseada no interesse daquele embenefício de quem se exerce o poder: opaterno se exerce pelo interesse dosfilhos; o despótico, pelo interesse do

senhor; o político, pelo interesse dequem governa e de quem é governado,o que ocorre apenas nas formascorretas de Governo, pois, nas viciadas,o característico é que o poder sejaexercido em benefício dos governantes.Mas o critério que acabou porprevalecer nos tratados jusnaturalistasfoi o do fundamento ou do princípio delegitimação, que encontramosclaramente formulado no cap. XV doSegundo tratado sobre o governo deLocke: o fundamento do poder paternoé a natureza, do poder despótico ocastigo por um delito cometido (a únicahipótese neste caso é a do prisioneirode guerra que perdeu uma guerrainjusta), do poder civil o consenso. A

estes três motivos de justificação dopoder correspondem as três fórmulasclássicas do fundamento da obrigação:ex natura, ex delicto, ex contractu.Nenhum dos dois critérios permite, nãoobstante, distinguir o caráter específicodo poder político. Na verdade, o fato deo poder político se diferenciar do poderpaterno e do poder despótico por estarvoltado para o interesse dosgovernantes ou por se basear noconsenso, não constitui caráterdistintivo de qualquer Governo, mas sódo bom Governo: não é uma conotaçãoda relação política como tal, mas darelação política referente ao Governotal qual deveria ser. Na realidade, osescritores políticos não cessaram nuncade identificar seja Governospaternalistas, seja Governos despóticos,ou então Governos em que a relação

entre Governo e súditos seassemelhava ora à relação entre pai efilhos, ora à entre senhor e escravos, osquais nem por isso deixavam de serGovernos tanto quanto os que agiampelo bem público e se fundavam noconsenso.

 

III. A TIPOLOGIA MODERNA DASFORMAS DE PODER.

Para acharmos o elemento específicodo poder político, parece maisapropriado o critério de classificaçãodas várias formas de poder que se

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baseia nos meios de que se serve osujeito ativo da relação para determinaro comportamento do sujeito passivo.Com base neste critério, podemosdistinguir três grandes classes noâmbito de um conceito amplíssimo dopoder. Estas classes são: o podereconômico, o poder ideológico e opoder político. O primeiro é o que sevale da posse de certos bens,necessários ou considerados como tais,numa situação de escassez, parainduzir aqueles que não os possuem amanter um certo comportamento,consistente sobretudo na realização deum certo tipo de trabalho. Na posse dosmeios de produção reside uma enormefonte de poder para aqueles que os têm

em relação àqueles que os não têm: opoder do chefe de uma empresa derivada possibilidade que a posse oudisponibilidade dos meios de produçãolhe oferece de poder vender a força detrabalho a troco de um salário. Emgeral, todo aquele que possuiabundância de bens é capaz dedeterminar o comportamento de quemse encontra em condições de penúria,mediante a promessa e concessão devantagens. O poder ideológico sebaseia na influência que as idéiasformuladas de um certo modo,expressas em certas circunstâncias, poruma pessoa investida de certaautoridade e difundidas mediantecertos processos, exercem sobre aconduta dos consociados: deste tipo decondicionamento nasce a importânciasocial que atinge, nos grupos

organizados, aqueles que sabem, ossábios, sejam eles os sacerdotes dassociedades arcaicas, sejam osintelectuais ou cientistas dassociedades evoluídas, pois é por eles,pelos valores que difundem ou pelosconhecimentos que comunicam, que seconsuma o processo de socializaçãonecessário à coesão e integração dogrupo. Finalmente, o poder político sebaseia na posse dos instrumentos

mediante os quais se exerce a forçafísica (as armas de toda a espécie epotência): é o poder coator no sentidomais estrito da palavra. Todas estas

três formas de poder fundamentam emantêm uma sociedade de desiguais,isto é, dividida em ricos e pobres combase no primeiro, em sábios eignorantes com base no segundo, emfortes e fracos, com base no terceiro:genericamente, em superiores einferiores.

Como poder cujo meio específico é aforça, de longe o meio mais eficaz paracondicionar os comportamentos, opoder político é, em toda a sociedadede desiguais, o poder supremo, ou seja,o poder ao qual todos os demais estãode algum modo subordinados: o podercoativo é, de fato, aquele a querecorrem todos os grupos sociais (aclasse dominante), em última instância,ou como extrema ratio, para sedefenderem dos ataques externos, oupara impedirem, com a desagregaçãodo grupo, de ser eliminados. Nasrelações entre os membros de ummesmo grupo social, não obstante oestado de subordinação que aexpropriação dos meios de produçãocria nos expropriados para com osexpropriadores, não obstante a adesão

passiva aos valores do grupo por parteda maioria dos destinatários dasmensagens ideológicas emitidas pelaclasse dominante, só o uso da forçafísica serve, pelo menos em casosextremos, para impedir ainsubordinação ou a desobediência dossubordinados, como o demonstra àsaciedade a experiência histórica. Nasrelações entre grupos sociais diversos,malgrado a importância que possam ter

a ameaça ou a execução de sançõeseconômicas para levar o grupo hostil adesistir de um determinadocomportamento (nas relações entregrupos é de somenos importância ocondicionamento de naturezaideológica), o instrumento decisivo paraimpor a própria vontade é o uso daforça, a guerra.

Esta distinção entre três tipos principais

de poder social se encontra, se bemque expressa de diferentes maneiras,na maior parte das teorias sociaiscontemporâneas, onde o sistema socialglobal aparece direta ou indiretamente

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articulado em três subsistemasfundamentais, que são a organizaçãodas forças produtivas, a organização doconsenso e a organização da coação. Ateoria marxista também pode serinterpretada do mesmo modo: a basereal, ou estrutura, compreende osistema econômico; a supra-estrutura,cindindo-se em dois momentosdistintos, compreende o sistemaideológico e aquele que é maispropriamente jurídico-político. Gramscidistingue claramente na esfera supra-estrutural o momento do consenso (quechama sociedade civil) e o momento dodomínio (que chama sociedade políticaou Estado). Os escritores políticosdistinguiram durante séculos o poder

espiritual (que hoje chamaríamosideológico) do poder temporal, havendosempre interpretado este como uniãodo dominium (que hoje chamaríamospoder econômico) e do imperium (quehoje designaríamos mais propriamentecomo poder político). Tanto nadicotomia tradicional (poder espiritual epoder temporal) quanto na marxista(estrutura e supra-estrutura), seencontram as três formas de poder,desde que se entenda corretamente osegundo termo em um e outro casocomo composto de dois momentos. Adiferença está no fato de que, na teoriatradicional, o momento principal é oideológico, já que o econômico-políticoé concebido como direta ouindiretamente dependente do espiritual,enquanto que, na teoria marxista, omomento principal é o econômico, pois

o poder ideológico e o político refletem,mais ou menos imediatamente, aestrutura das relações de produção.

 

IV. O PODER POLÍTICO.

Embora a possibilidade de recorrer àforça seja o elemento que distingue opoder político das outras formas depoder, isso não significa que ele seresolva no uso da força; tal uso é umacondição necessária, mas não suficientepara a existência do poder político. Nãoé qualquer grupo social, em condiçõesde usar a força, mesmo com certa

continuidade (uma associação dedelinqüência, uma chusma de piratas,um grupo subversivo, etc.), que exerceum poder político. O que caracteriza opoder político é a exclusividade do usoda força em relação à totalidade dosgrupos que atuam num determinadocontexto social, exclusividade que é oresultado de um processo que sedesenvolve em toda a sociedadeorganizada, no sentido damonopolização da posse e uso dosmeios com que se pode exercer acoação física. Este processo demonopolização acompanha pari passu oprocesso de incriminação e punição detodos os atos de violência que nãosejam executados por pessoas

autorizadas pelos detentores ebeneficiários de tal monopólio.

Na hipótese hobbesiana que serve defundamento à teoria moderna doEstado, a passagem do Estado denatureza ao Estado civil, ou da anarchíaà archía, do Estado apolítico ao Estadopolítico, ocorre quando os indivíduosrenunciam ao direito de usar cada um aprópria força, que os tornava iguais no

estado de natureza, para o confiar auma única pessoa, ou a um único corpo,que doravante será o único autorizado ausar a força contra eles. Esta hipóteseabstrata adquire profundidade históricana teoria do Estado de Marx e deEngels, segundo a qual, numasociedade dividida em classesantagônicas, as instituições políticastêm a função primordial de permitir àclasse dominante manter seu domínio,

alvo que não pode ser alcançado, porvia do antagonismo de classes, senãomediante a organização sistemática eeficaz do monopólio da força; é por issoque cada Estado é, e não pode deixarde ser, uma ditadura. Neste sentidotornou-se já clássica a definição de MaxWeber: "Por Estado se há de entenderuma empresa institucional de caráterpolítico onde o aparelho administrativo

leva avante, em certa medida e comêxito, a pretensão do monopólio dalegítima coerção física, com vistas aocumprimento das leis" (1, 53). Estadefinição tornou-se quase um lugar-

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comum da ciência políticacontemporânea.

Escreveram G. A. Almond e G. B. Powellnum dos manuais de ciência políticamais acreditados: "Estamos de acordocom Max Weber em que é a força físicalegítima que constitui o fio condutor da

ação do sistema político, ou seja, lheconfere sua particular qualidade eimportância, assim como sua coerênciacomo sistema. As autoridades políticas,e somente elas, possuem o direito, tidocomo predominante, de usar a coerçãoe de impor a obediência apoiados nela.

Quando falamos de sistema político,referimo-nos também a todas asinterações respeitantes ao uso ou à

ameaça de uso de coerção físicalegítima". A supremacia da força físicacomo instrumento de poder em relaçãoa todas as outras formas (das quais asmais importantes, afora a força física,são o domínio dos bens, que dá lugarao poder econômico, e o domínio dasidéias, que dá lugar ao poderideológico) fica demonstrada aoconsiderarmos que, embora na maiorparte dos Estados históricos o

monopólio do poder coativo tenhabuscado e encontrado seu apoio naimposição das idéias ("as idéiasdominantes", segundo a bem conhecidaafirmação de Marx, "são as idéias daclasse dominante"), dos deuses pátriosà religião civil, do Estado confessional àreligião de Estado, e na concentração ena direção das atividades econômicasprincipais, há todavia grupos políticos

organizados que consentiram adesmonopolização do poder ideológicoe do poder econômico; um exemplodisso está no Estado liberal-democrático, caracterizado pelaliberdade de opinião, se bem quedentro de certos limites, e pelapluralidade dos centros de podereconômico. Não há grupo socialorganizado que tenha podido até hojeconsentir a desmonopolização do poder

coativo, o que significaria nada maisnada menos que o fim do Estado e que,como tal, constituiria um verdadeiro eautêntico salto qualitativo, à margem

da história, para o reino sem tempo dautopia.

Conseqüência direta da monopolizaçãoda força no âmbito de um determinadoterritório e relativas a um determinadogrupo social, assim hão de serconsideradas algumas características

comumente atribuídas ao poder políticoe que o diferenciam de toda e qualqueroutra forma de poder: a exclusividade,a universalidade e a inclusividade. Porexclusividade se entende a tendênciarevelada pelos detentores do poderpolítico ao não permitirem, no âmbitode seu domínio, a formação de gruposarmados independentes e aodebelarem ou dispersarem os queporventura se vierem formando, assimcomo ao iludirem as infiltrações, asingerências ou as agressões de grupospolíticos do exterior. Esta característicadistingue um grupo político organizadoda "societas" de "latrones" (o"latrocinium" de que falava Agostinho).Por universalidade se entende acapacidade que têm os detentores dopoder político, e eles sós, de tomardecisões legítimas e verdadeiramente

eficazes para toda a coletividade, noconcernente à distribuição e destinaçãodos recursos (não apenas econômicos).Por inclusividade se entende apossibilidade de intervir, de modoimperativo, em todas as esferaspossíveis da atividade dos membros dogrupo e de encaminhar tal atividade aofim desejado ou de a desviar de um fimnão desejado, por meio de instrumentosde ordenamento jurídico, isto é, de um

conjunto de normas primáriasdestinadas aos membros do grupo e denormas secundárias destinadas afuncionários especializados, comautoridade para intervir em caso deviolação daquelas. Isto não quer dizerque o poder político não se imponhalimites. Mas são limites que variam deuma formação política para outra: umEstado autocrático estende o seu poder

até à própria esfera religiosa, enquantoque o Estado laico pára diante dela; umEstado coletivista estenderá o própriopoder à esfera econômica, enquantoque o Estado liberal clássico dela se

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retrairá. O Estado todo-abrangente, ouseja, o Estado a que nenhuma esfera daatividade humana escapa, é o Estadototalitário, que constitui, na suanatureza de caso-limite, a sublimaçãoda Política, a politização integral dasrelações sociais.

 V. O FIM DA POLÍTICA.

Uma vez identificado o elementoespecífico da Política no meio de que seserve, caem as definições teleológicastradicionais que tentam definir aPolítica pelo fim ou fins que elapersegue. A respeito do fim da Política,a única coisa que se pode dizer é que,se o poder político, justamente em

virtude do monopólio da força, constituio poder supremo num determinadogrupo social, os fins que se pretendealcançar pela ação dos políticos sãoaqueles que, em cada situação, sãoconsiderados prioritários para o grupo(ou para a classe nele dominante): emépocas de lutas sociais e civis, porexemplo, será a unidade do Estado, aconcórdia, a paz, a ordem pública, etc.;

em tempos de paz interna e externa,será o bem-estar, a prosperidade ou apotência; em tempos de opressão porparte de um Governo despótico, será aconquista dos direitos civis e políticos;em tempos de dependência de umapotência estrangeira, a independêncianacional. Isto quer dizer que a Políticanão tem fins perpetuamenteestabelecidos, e muito menos um fimque os compreenda a todos e que possa

ser considerado como o seu verdadeirofim: os fins da Política são tantosquantas são as metas que um grupoorganizado se propõe, de acordo comos tempos e circunstâncias. Estainsistência sobre o meio, e não sobre ofim, corresponde, aliás, à communisopinio dos teóricos do Estado, queexcluem o fim dos chamados elementosconstitutivos do mesmo. Fala mais umavez por todos Max Weber: "Não épossível definir um grupo político, nemtampouco o Estado, indicando o alvo dasua ação de grupo. Não há nenhumescopo que os grupos políticos não se

hajam alguma vez proposto... Só sepode, portanto, definir o caráter políticode um grupo social pelo meio... que nãolhe é certamente exclusivo, mas é, emtodo o caso, específico e indispensávelà sua essência: o uso da força" (1, 54).

 

Esta rejeição do critério teleológico nãoimpede, contudo, que se possa falarcorretamente, quando menos, de umfim mínimo na Política: a ordem públicanas relações internas e a defesa daintegridade nacional nas relações deum Estado com os outros Estados. Estefim é o mínimo, porque é a conditio sinequa non para a consecução de todos osdemais fins, conciliável, portanto, com

eles. Até mesmo o partido que quer adesordem, a deseja, não como objetivofinal, mas como fator necessário para amudança da ordem existente e criaçãode uma nova ordem. Além disso, é lícitofalar da ordem como fim mínimo daPolítica, porque ela é, ou deveria ser, oresultado imediato da organização dopoder coativo, porque, por outraspalavras, esse fim, a ordem, estátotalmente unido ao meio, o monopólio

da força: numa sociedade complexa,fundamentada na divisão do trabalho,na estratificação de categorias eclasses, e em alguns casos também na  justaposição de gentes e raçasdiversas, só o recurso à força impede,em última instância, a desagregação dogrupo, o regresso, como diriam osantigos, ao Estado de natureza. Tanto éassim que, no dia em que fosse possível

uma ordem espontânea, como aimaginaram várias escolas econômicase políticas, dos fisiocratas aosanarquistas, ou os próprios Marx eEngels na fase do comunismoplenamente realizado, não haveria maispolítica propriamente falando.

Quem examinar as definiçõesteleológicas tradicionais de Política, nãotardará a observar que algumas delasnão são definições descritivas, masprescritivas, pois não definem o que éconcreta e normalmente a Política, masindicam como é que ela deveria serpara ser uma boa Política; outras

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diferem apenas nas palavras (aspalavras da linguagem filosófica sãonão raro intencionadamente obscuras)da definição aqui apresentada. Todahistória da filosofia política está repletade definições normativas, a começarpela aristotélica: como é bemconhecido, Aristóteles afirma que o fimda Política não é viver, mas viver bem(Política, l278b). Mas em que consisteuma vida boa? Como é que ela sedistingue de uma vida má? E, se umaclasse política oprime os seus súditos,condenando-os a uma vida sofrida einfeliz, será que não faz Política, seráque o poder que ela exerce não é umpoder político? O próprio Aristótelesdistingue as formas puras de Governo

das formas deturpadas, coisa que jáantes dele fizera Platão e haviam defazer, durante vinte séculos, muitosoutros escritores políticos: conquanto oque distingue as formas deturpadas dasformas puras, seja que nestas a vidanão é boa, nem Aristóteles, nem todosos escritores que lhe sucederam, lhesnegaram nunca o caráter deconstituições políticas. Não nos iludamoutras teorias tradicionais que atribuemà Política fins diversos do da ordem,como o bem comum (o mesmoAristóteles e, depois dele, oaristotelismo medieval) ou a justiça(Platão): um conceito como o de bemcomum, quando o quisermosdesembaraçar da sua extremageneralidade, pela qual pode significartudo ou nada, e lhe quisermos atribuirum significado plausível, ele nada mais

poderá designar senão aquele bem quetodos os membros de um grupopartilham e que não é mais que aconvivência ordenada, numa palavra, aordem; pelo que toca à justiçaplatônica, se a entendermos,desvanecidos todos os fumos retóricos,como o princípio segundo o qual é bomque cada um faça o que lhe incumbedentro da sociedade como um todo(República, 433a), justiça e ordem são a

mesma coisa. Outras noções de fim,como felicidade, liberdade, igualdade,são demasiado controversas einterpretáveis dos modos mais

díspares, para delas se poderem tirarindicações úteis para a identificação dofim específico da política.

Outro modo de fugir às dificuldades deuma definição teleológica de Política é ode a definir como uma forma de poderque não tem outro fim senão o próprio

poder (onde o poder é, ao mesmotempo, meio e fim, ou, como se diz, fimem si mesmo). "O caráter político daação humana", escreve Mário Albertini,"torna-se patente, quando o poder seconverte em fim, é buscado, em certosentido, por si mesmo, e constitui oobjeto de uma atividade específica" (p.9), diversamente do que acontece como médico, que exerce o próprio podersobre o doente para o curar, ou com orapaz que impõe seu jogo preferido aoscompanheiros, não pelo prazer deexercer o poder, mas de jogar. A estemodo de definir a Política se poderáobjetar que ele não define tanto umaforma específica de poder quanto umamaneira específica de o exercer,ajustando-se, por isso, igualmente bema qualquer forma de poder, seja o podereconômico, seja o poder ideológico,

seja qualquer outro poder. O poder pelopoder é um modo deturpado doexercício de qualquer forma de poder,que pode ter como sujeito tanto quemexerce o grande poder, qual o político,quanto quem exerce o pequeno, comoo do pai de família ou o do chefe deseção que supervisiona uma dezena deoperários. A razão pela qual podeparecer que o poder como fim em simesmo seja característico da Política

(mas seria mais exato dizer de um certohomem político, do homemmaquiavélico), reside no fato de quenão existe um fim tão específico naPolítica como o que existe no poder queo médico exerce sobre o doente ou nodo rapaz que impõe o jogo aos seuscompanheiros. Se o fim da Política, enão do homem político maquiavélico,fosse realmente o poder pelo poder, a

Política não serviria para nada. Eprovável que a definição da Políticacomo poder pelo poder derive daconfusão entre o conceito de poder e ode potência: não há dúvida de que

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entre os fins da Política está também oda potência do Estado, quando seconsidera a relação do próprio Estadocom os outros Estados. Mas uma coisaé uma Política de potência e outra opoder pelo poder. Além disso, apotência não é senão um dos finspossíveis da Política, um fim que sóalguns Estados podem razoavelmenteperseguir.

 

VI. A POLÍTICA COMO RELAÇÃOAMIGO-INIMIGO.

Entre as mais conhecidas e discutidasdefinições de Política, conta-se a deCarl Schmitt (retomada e desenvolvidapor Julien Freund), segundo a qual a

esfera da Política coincide com a darelação amigo-inimigo. Com base nestadefinição, o campo de origem e deaplicação da Política seria oantagonismo e a sua função consistiriana atividade de associar e defender osamigos e de desagregar e combater osinimigos. Para dar maior força à suadefinição, baseada numa oposiçãofundamental, amigo-inimigo, Schmitt a

compara às definições de moral, dearte, etc., fundadas também emoposições fundamentais, como bom-mau, belo-feio, etc. "A distinção políticaespecífica a que é possível referir asações e os motivos políticos, é adistinção de amigo e inimigo... Namedida em que não for derivável deoutros critérios, ela corresponderá, paraa Política, aos critérios relativamenteautônomos das demais oposições: bom

e mau para a moral, belo e feio para aestética, e por aí afora" (p. 105). Freundse expressa enfaticamente nestestermos: "Enquanto houver política, eladividirá a coletividade em amigos einimigos" (p. 448). E explica: "Quantomais uma oposição se desenvolver nosentido da distinção amigo-inimigo,tanto mais ela se tornará política. Écaracterístico do Estado eliminar,dentro dos limites da sua competência,a divisão dos seus membros ou gruposinternos em amigos e inimigos, nãotolerando senão as simples rivalidadesagonísticas ou as lutas dos partidos, e

reservando ao Governo o direito deindicar o inimigo externo... É, pois, claroque a oposição amigo-inimigo époliticamente fundamental" (p. 445).

Não obstante pretender servir dedefinição global do fenômeno político, adefinição de Schmitt considera a

Política de uma perspectiva unilateral,se bem que importante, que é adaquele tipo particular de conflito quecaracterizaria a esfera das açõespolíticas. Por outras palavras, Schmitt eFreund parecem estar de acordo nestespontos: a Política tem que avir-se comos conflitos humanos; há vários tipos deconflitos, há principalmente conflitosagonísticos e antagonísticos; a Políticacobre a área em que se desenrolam osconflitos antagonísticos. Que esta seja aperspectiva dos autores citados parecenão caber dúvida. Escreve Schmitt: "Aoposição política é a mais intensa eextrema de todas e qualquer outraoposição concreta será tanto maispolítica quanto mais se aproximar doponto extremo, o do agrupamentobaseado nos conceitos amigo-inimigo"(p. 112). De igual modo Freund: "Todo o

desencontro de interesses. . . pode, emqualquer momento, transformar-se emrivalidade ou em conflito, e tal conflito,desde o momento que assuma oaspecto de uma prova de força entre osgrupos que representam essesinteresses, ou seja, desde o momentoque se afirme como uma luta de poder,tornar-se-á político" (p. 479). Como sevê pelas passagens citadas, o que têmem mente estes autores, quando

definem a Política baseados nadicotomia amigo-inimigo, é que existemconflitos entre os homens e entre osgrupos sociais, e que entre essesconflitos há alguns diferentes de todosos outros pela sua particularintensidade; é a esses que eles dão onome de conflitos políticos. Mas,quando se procura compreender emque é que consiste essa particular

intensidade e, por conseguinte, em queé que a relação amigo-inimigo sedistingue de todas as outras relaçõesconflitantes de intensidade não igual,logo se nota que o elemento distintivo

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está em que se trata de conflitos que,em última instância, só podem serresolvidos pela força ou justificam, pelomenos, o uso da força peloscontendores para pôr fim à luta. Oconflito por excelência de que tantoSchmitt como Freund extrapolaram suadefinição de Política, é a guerra, cujoconceito compreende tanto a guerraexterna quanto a interna. Ora, se umacoisa é certa, é que a guerra constituiuma espécie de conflito eminentementecaracterizado pelo uso da força. Mas, seisso é verdade, a definição de Políticaem termos de amigo-inimigo não é demodo algum incompatível com adefinição antes apresentada, que serefere ao monopólio da força. Não só

não é incompatível, como é umaespecificação da mesma e, em últimaanálise, sua confirmação. É justamentena medida em que o poder político sedistingue do instrumento de que seserve para atingir os próprios fins e emque tal instrumento é a força física, queele é o poder a que se recorre pararesolver os conflitos cuja não soluçãoacarretaria a decomposição do Estado eda ordem internacional: são os conflitosem que, confrontados os contendorescomo inimigos, a vita mea é a mors tua.

 

VII. O POLÍTICO E O SOCIAL.

Contrastando com a tradição clássica,segundo a qual a esfera da Política,entendida como esfera do que dizrespeito à vida da pólis, compreendetoda a sorte de relações sociais, tanto

que o "político" vem a coincidir com o"social", a doutrina exposta sobre acategoria da Política é certamentelimitativa: reduzir, como se fez, acategoria da Política à atividade diretaou indiretamente relacionada com aorganização do poder coativo érestringir o âmbito do "político" quantoao "social", é rejeitar a plenacoincidência de um com o outro. Estalimitação baseia-se numa razãohistórica bem-definida. De um lado, ocristianismo subtraiu à esfera daPolítica o domínio da vida religiosa,dando origem à contraposição do poder

espiritual ao poder temporal, o que eradesconhecido do mundo antigo. Deoutro, com o surgir da economiamercantil burguesa, foi subtraído àesfera da Política o domínio dasrelações econômicas, originando-se acontraposição (para usarmos aterminologia hegeliana, herdada deMarx e hoje de uso comum) dasociedade civil à sociedade política, daesfera privada ou do burguês à esferapública ou do cidadão, coisa quetambém era ignorada do mundo antigo.Enquanto a filosofia política clássica sebaseia no estudo da estrutura da pólis edas suas variadas formas históricas ouideais, a filosofia política pós-clássica secaracteriza pela contínua busca de uma

delimitação do que é político (o reino deCésar) do que não é político (quer sejao reino de Deus, quer seja o deMammona), por uma contínua reflexãosobre o que distingue a esfera daPolítica da esfera da não-Política, oEstado do não-Estado, onde por esferada não-Política ou do não-Estado seentende, conforme as circunstâncias,ora a sociedade religiosa (a ecclesiacontraposta à civitas), ora a sociedadenatural (o mercado como lugar em queos indivíduos se encontramindependentemente de qualquerimposição, contraposto ao ordenamentocoativo do Estado). O temafundamental da filosofia políticamoderna é o tema dos limites, umasvezes mais restritos, outras vezes maisamplos conforme os autores e asescolas, do Estado como organização

da esfera política, seja em relação àsociedade religiosa, seja em relação àsociedade civil (entendida comosociedade burguesa ou dos privados).

 

É exemplar também sob este aspecto ateoria política de Hobbes, articulada emtorno de três conceitos fundamentaisque constituem as três partes em quese divide a matéria do De Cive. Estas

partes são assim denominadas: libertas,potestas, religio. O problemafundamental do Estado e, porconseguinte, da Política é, para Hobbes,o problema das relações entre a

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potestas simbolizada no grande Leviatã,por um lado, e a libertas e a religio, poroutro: a libertas designa o espaço dasrelações naturais, onde se desenvolve aatividade econômica dos indivíduos,estimulada pela incessante disputa pelaposse dos bens materiais, o Estado denatureza (interpretado recentementecomo prefiguração da sociedade demercado); a religio indica o espaçoreservado à formação e expansão davida espiritual, cuja concretizaçãohistórica se dá na instituição da Igreja,isto é, duma sociedade que, por suanatureza, se distingue da sociedadepolítica e não pode ser com elaconfundida. Relacionados com estadupla delimitação dos confins da

Política, surgem na filosofia políticamoderna dois tipos ideais de Estado: oEstado absoluto e o Estado liberal,aquele com tendência a estender, estecom tendência a limitar a própriaingerência em relação à sociedadeeconômica e à sociedade religiosa. Nafilosofia política do século passado, oprocesso de emancipação da sociedadequanto ao Estado avançou tanto que,por primeira vez, foi por muitosaventada a hipótese da desaparição doEstado num futuro mais ou menosremoto e da conseqüente absorção dopolítico pelo social, ou seja, do fim daPolítica. Conforme o que se disse atéaqui sobre o significado restritivo dePolítica (restritivo em relação aoconceito mais amplo de "social"), fim daPolítica significa exatamente fim deuma sociedade para cuja coesão sejam

indispensáveis as relações de poderpolítico, isto é relações de domíniofundadas, em última instância, no usoda força. Fim da Política não significa,bem entendido, fim de toda a forma deorganização social. Significa, pura esimplesmente, fim daquela forma deorganização social que se rege pelo usoexclusivo do poder coativo.

 

VIII. POLÍTICA E MORAL.Ao problema da relação entre Política enão-Política, está vinculado um dosproblemas fundamentais da filosofia

política, o problema da relação entrePolítica e moral. A Política e a moralestendem-se pelo mesmo domíniocomum, o da ação ou da práxishumana. Pensa-se que se distinguementre si em virtude de um princípio oucritério diverso de justificação eavaliação das respectivas ações, e que,em conseqüência disso, o que éobrigatório em moral, não se pode dizerque o seja em Política, e o que é lícitoem Política, não se pode dizer que oseja em moral; pode haver açõesmorais que são impolíticas (ouapolíticas) e ações políticas que sãoimorais (ou amorais). A descoberta dadistinção que é atribuída, injustificadaou justificadamente a Maquiavel (daí o

nome de maquiavelismo dado a toda ateoria política que sustenta e defende aseparação da Política da moral), égeralmente apresentada comoproblema da autonomia da Política. Esteproblema acompanha pari passu aformação do Estado moderno e suagradual emancipação da Igreja, quechegou até, em casos extremos, àsubordinação desta ao Estado e,conseqüentemente, à absolutasupremacia da Política. Na realidade, oque se chama autonomia da Políticanão é outra coisa senão oreconhecimento de que o critériosegundo o qual se julga boa ou má umaação política (não se esqueça que, poração política, se entende, emconcordância com o que se disse atéaqui, uma ação que tem por sujeito ouobjeto a pólis) é diferente do critério

segundo o qual se considera boa ou máuma ação moral. Enquanto o critériosegundo o qual se julga uma açãomoralmente boa ou má é o do respeitoa uma norma cuja preceituação é tidapor categórica, independentemente doresultado da ação ("faz o que deves,aconteça o que acontecer"), o critériosegundo o qual se julga uma açãopoliticamente boa ou má é pura esimplesmente o do resultado ("faz o

que deves, a fim de que aconteça o quedesejas"). Ambos os critérios sãoincomensuráveis. Estaincomensurabilidade está expressa na

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afirmação de que, em Política, o quevale é a máxima de que "o fim justificaos meios", máxima que encontrou emMaquiavel uma das suas mais fortesexpressões: "... e nas ações de todos oshomens, e máxime dos príncipes,quando não há indicação à qual apelar,se olha ao fim. Faça, pois, o príncipe porvencer e defender o Estado: os meiosserão sempre considerados honrosos epor todos louvados" (Príncipe, XVIII).Mas, em moral, a máxima maquiavélicanão vale, já que uma ação, para ser  julgada moralmente boa, há de serpraticada não com outro fim senão o decumprir o próprio dever.

 

Uma das mais convincentesinterpretações desta oposição é adistinção weberiana entre ética daconvicção e ética da responsabilidade:"... há uma diferença insuperável entreo agir segundo a máxima da ética daconvicção, que em termos religiosossoa assim: 'O cristão age como justo edeixa o resultado nas mãos de Deus', eo agir segundo a máxima da ética daresponsabilidade, conforme a qual é

preciso responder pelas conseqüênciasprevisíveis das próprias ações" (Lapolitica come professione, in II lavorointellettuale come professione, Torino,1948, p. 142). O universo da moral e oda Política movem-se no âmbito de doissistemas éticos diferentes e até mesmocontrapostos. Mais que de imoralidadeda Política e de impoliticidade da moralse deveria mais corretamente falar de

dois universos éticos que se movemsegundo princípios diversos, de acordocom as diversas situações em que oshomens se encontram e agem. Destesdois universos éticos sãorepresentantes outros tantospersonagens diferentes que atuam nomundo seguindo caminhos quasesempre destinados a não seencontrarem: de um lado está o homemde fé, o profeta, o pedagogo, o sábio

que tem os olhos postos na cidadeceleste, do outro, o homem de Estado,o condutor de homens, o criador dacidade terrena. O que conta para oprimeiro é a pureza de intenções e a

coerência da ação com a intenção; parao segundo o que importa é a certeza efecundidade dos resultados. A chamadaimoralidade da Política assenta, bemvistas as coisas, numa moral diferenteda do dever pelo dever: é a moral pelaqual devemos fazer tudo o que está aonosso alcance para realizar o fim quenos propusemos, pois sabemos, desdeinício, que seremos julgados com baseno sucesso. Entram aqui dois conceitosde virtude, o clássico, para o qual"virtude" significa disposição para obem moral (contraposto ao útil), e omaquiavélico, para o qual a virtude é acapacidade do príncipe forte e sagazque, usando conjuntamente das artesda raposa e do leão, triunfa no intento

de manter e consolidar o própriodomínio.

 

IX. A POLÍTICA COMO ÉTICA DOGRUPO.

Quem não quiser ficar apenas naconstatação da incomensurabilidadedestas duas éticas e queira procurarentender a razão pela qual o que é

 justificado num certo contexto não o éem outro, deve perguntar ainda onde éque reside a diferença entre esses doiscontextos. A resposta é a seguinte: ocritério da ética da convicção égeralmente usado para julgar as açõesindividuais, enquanto o critério da éticada responsabilidade se usaordinariamente para julgar ações degrupo, ou praticadas por um indivíduo,mas em nome e por conta do próprio

grupo, seja ele o povo, a nação, aIgreja, a classe, o partido, etc. Poder-se-á também dizer, por outras palavras,que, à diferença entre moral e Política,ou entre ética da convicção e ética daresponsabilidade, corresponde tambéma diferença entre ética individual e éticade grupo. A proposição de que o que éobrigatório em moral não se pode dizerque o seja em Política, poderá sertraduzida por esta outra fórmula: o queé obrigatório para o indivíduo não sepode dizer que o seja para o grupo deque o indivíduo faz parte. Pensemosquão profunda é a diferença de juízo

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dos filósofos, teólogos e moralistasacerca da violência, quando o atoviolento é praticado só pelo indivíduoou pelo grupo social de que ele fazparte, ou, por outras palavras, quandose trata de violência pessoal que, aforaos casos excepcionais, é geralmentecondenada, e quando se trata deviolência das instituições que, afora oscasos excepcionais, é geralmente  justificada. Esta diferença tem a suaexplicação no fato de que, no caso deviolência individual, não se poderecorrer quase nunca ao critério de  justificação da extrema ratio (salvoquando em legítima defesa), ao passoque, nas relações entre grupos, orecurso à justificação da violência como

extrema ratio é usual. Ora, a razão porque a violência individual não se justifica funda-se precisamente no fatode que ela está, por assim dizer,protegida pela violência coletiva, tantoque é cada vez mais raro, quaseimpossível, que o indivíduo se venha aencontrar na situação de ter de recorrerà violência como extrema ratio. Se istoé verdadeiro, resultará daqui umaconseqüência importante: a não  justificação da violência individualassenta, em última instância, no fato deser aceita, porque justificada, aviolência coletiva. Por outras palavras,não há necessidade da violênciaindividual, porque basta a violênciacoletiva: a moral pode resolver ser tãosevera com a violência individual,porque se fundamenta na aceitação deuma convivência que se rege pela

prática contínua da violência coletiva.O contraste entre moral e Política,entendido como contraste entre éticaindividual e ética de grupo, servetambém para ilustrar e explicar asecular disputa existente em torno à"razão de Estado". Por "razão deEstado" se entende aquele conjunto deprincípios e máximas segundo os quaisações que não seriam justificadas, se

praticadas só pelo indivíduo, são não só  justificadas como também por vezesexaltadas e glorificadas se praticadaspelo príncipe ou por quem quer queexerça o poder em nome do Estado.

Que o Estado tenha razões que oindivíduo não tem ou não pode fazervaler é outro dos modos de evidenciar adiferença entre Política e moral, quandotal diferença se refere aos diversoscritérios segundo os quais seconsideram boas ou más as açõesdesses dois campos. A afirmação deque a Política é a razão do Estadoencontra perfeita correspondência naafirmação de que a moral é a razão doindivíduo. São duas razões que quasenunca se encontram: é até dessecontraste que se tem valido a históriasecular do conflito entre moral ePolítica. O que ainda é necessárioacrescentar é que a razão de Estadonão é senão um aspecto da ética de

grupo, conquanto o mais evidente,quando menos porque o Estado é acoletividade em seu mais alto grau deexpressão e de potência. Sempre queum grupo social age em própria defesacontra outro grupo, se apela a umaética diversa da geralmente válida paraos indivíduos, uma ética que responde àmesma lógica da razão de Estado.Assim, ao lado da razão de Estado, ahistória nos aponta, consoante ascircunstâncias de tempo e lugar, orauma razão de partido, ora uma razão declasse ou de nação, que representam,sob outro nome, mas com a mesmaforça e as mesmas conseqüências, oprincípio da autonomia da Política,entendida como autonomia dosprincípios e regras de ação que valempara o grupo como totalidade, emconfronto com as que valem para o

indivíduo dentro do grupo.