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3 entre si. Suponhamos que a distância entre eles é 300.000 km, e que os seus relógios foram sincronizados antes da experiência. A envia um sinal luminoso para B num instante previamente combinado, e um segundo depois B observa o clarão correspondente à chegada do sinal. Esta foi a técnica utilizada em 1675 por O. Roemer, para medir a velocidade da luz a partir da duração da sua viagem através do sistema solar, desde Júpiter à Terra, a qual dura cerca de uma hora. Não dispondo de um companheiro para lhe enviar um sinal luminoso, Roemer recorreu ao movi- mento de um dos satélites de Júpiter, cujas posições podia calcular an- tecipadamente. As "luas" de Júpiter, quando observadas da Terra, chegam ora atrasadas ora adiantadas às posições calculadas, pois o tempo que a luz demora a percorrer a distância entre Júpiter e a Terra varia consoante esta se afasta ou se aproxima do planeta. A medida do atraso permitiu a Roemer calcular muito aproximadamente a velocidade da luz, a partir do conhe- cimento das posições relativas entre Júpiter e a Terra. Esta foi uma das descobertas científicas famosas do século XVII, não tanto pelo rigor do valor obtido mas por ter estabelecido um valor finito para a velocidade da luz. Imaginemos agora uma experiência um pouco mais complicada. Os observadores A e B desejam verificar se a velocidade da luz varia de lugar para lugar. Para isso, cada um deles mede não só o tempo que a luz leva a percorrer a distância entre eles, mas também o tempo que a luz leva a atravessar um tubo de um metro, junto de cada um dos observadores. É claro que esta última medida exige uma ponto de partida será a teoria da relatividade restrita, publicada por Einstein no annus mirabilis de 1905 num artigo intitulado "Sobre a Electro- dinâmica dos Corpos em Movimento". Esta teoria baseia-se em dois postulados fundamentais. (1) As leis da física tomam a mesma forma para todos os observadores que se movem uns em relação aos outros com velocidade constante e segundo uma linha recta (movimento uniforme). (2) Todos os observadores medem o mesmo valor para a velocidade da luz quer esta tenha sido emitida por um corpo em repouso ou por um corpo em movimento uniforme. Notemos os seguintes pontos. Estes postulados não dizem nada sobre quais são as leis da Natureza. Referem-se exclusivamente a movimentos (uniformes) mas aplicam- se a todas as leis físicas. Têm portanto uma natureza cinemática e não dinâmica. Os observadores definidos no primeiro postulado designam-se observadores inerciais. Concluímos que as leis físicas são as mesmas para todos os observadores inerciais. Dito de outro modo, os observadores inerciais são totalmente equivalentes do ponto de vista das leis físicas. Este primeiro postulado é conhecido por Princípio da Relatividade de Einstein. Quando no segundo postulado falamos em velocidade da luz referimo- nos obviamente à velocidade da luz no vácuo que é aproximadamente 300.000 km/s. Para compreendermos o compor- tamento dos sinais luminosos, imagine- mos dois observadores, A e B, separados por uma grande distância. A e B deci- dem medir a velocidade da luz a partir do intervalo de tempo que medeia a passagem de sinais luminosos trocados Quando se comemoram os setenta e cinco anos da primeira comprovação experimental da teoria da relatividade geral, publicada em 1915 por Albert Einstein, é altura de fazer um balanço para avaliar os sucessos e os fracassos desta teoria, qualificada por muitos como a mais bela teoria física. O SIGNIFICADO DA RELATIVIDADE NO FINAL DO SÉCULO PAULO CRAWFORD Paulo Crawford é doutorado em Física pela Universidade de Lisboa e professor auxiliar da Faculdade de Ciências da mesma Universidade, onde rege entre outras a disciplina de Relatividade e Cosmologia. É actualmente membro do Centro de Física Nuclear do Complexo Interdisciplinar II, onde dirige um grupo de investigação em Gravitação e Cosmologia. Fez investigação no King's College da Universidade de Londres e no Grupo Teórico de Relatividade da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Nos últimos quatro anos tem desenvolvido pesquisa sobre a cosmologia do Universo primitivo, em colaboração com físicos de partículas, no âmbito de projectos de investigação financiados pelo Fundo CERN (Centro Europeu de Física de Altas Energias). O

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entre si. Suponhamos que a distância entre eles é 300.000 km,e que os seus relógios foram sincronizados antes daexperiência. A envia um sinal luminoso para B num instantepreviamente combinado, e um segundo depois B observao clarão correspondente à chegada do sinal. Esta foi a técnicautilizada em 1675 por O. Roemer, para medir a velocidadeda luz a partir da duração da sua viagem através do sistemasolar, desde Júpiter à Terra, a qual dura cerca de uma hora.Não dispondo de um companheiro para lhe enviar um sinal

luminoso, Roemer recorreu ao movi-mento de um dos satélites de Júpiter,cujas posições podia calcular an-tecipadamente. As "luas" de Júpiter,quando observadas da Terra, chegamora atrasadas ora adiantadas às posiçõescalculadas, pois o tempo que a luzdemora a percorrer a distância entreJúpiter e a Terra varia consoante estase afasta ou se aproxima do planeta. Amedida do atraso permitiu a Roemercalcular muito aproximadamente avelocidade da luz, a partir do conhe-cimento das posições relativas entreJúpiter e a Terra. Esta foi uma dasdescobertas científicas famosas doséculo XVII, não tanto pelo rigor dovalor obtido mas por ter estabelecidoum valor finito para a velocidade da luz.

Imaginemos agora uma experiênciaum pouco mais complicada. Osobservadores A e B desejam verificar sea velocidade da luz varia de lugar paralugar. Para isso, cada um deles medenão só o tempo que a luz leva apercorrer a distância entre eles, mastambém o tempo que a luz leva aatravessar um tubo de um metro, juntode cada um dos observadores. É claroque esta última medida exige uma

ponto de partida será a teoria da relatividaderestrita, publicada por Einstein no annus mirabilisde 1905 num artigo intitulado "Sobre a Electro-

dinâmica dos Corpos em Movimento". Esta teoria baseia-seem dois postulados fundamentais. (1) As leis da física tomama mesma forma para todos os observadores que se movemuns em relação aos outros com velocidade constante esegundo uma linha recta (movimento uniforme). (2) Todosos observadores medem o mesmo valor para a velocidadeda luz quer esta tenha sido emitida porum corpo em repouso ou por um corpoem movimento uniforme. Notemos osseguintes pontos. Estes postulados nãodizem nada sobre quais são as leis daNatureza. Referem-se exclusivamente amovimentos (uniformes) mas aplicam-se a todas as leis físicas. Têm portantouma natureza cinemática e nãodinâmica. Os observadores definidosno primeiro postulado designam-seobservadores inerciais. Concluímosque as leis físicas são as mesmas paratodos os observadores inerciais. Dito deoutro modo, os observadores inerciaissão totalmente equivalentes do pontode vista das leis físicas. Este primeiropostulado é conhecido por Princípio daRelatividade de Einstein.

Quando no segundo postuladofalamos em velocidade da luz referimo-nos obviamente à velocidade da luz novácuo que é aproximadamente 300.000km/s. Para compreendermos o compor-tamento dos sinais luminosos, imagine-mos dois observadores, A e B, separadospor uma grande distância. A e B deci-dem medir a velocidade da luz a partirdo intervalo de tempo que medeia apassagem de sinais luminosos trocados

Quando se comemoram os setenta e cinco anos da primeiracomprovação experimental da teoria da relatividade geral,

publicada em 1915 por Albert Einstein, é altura de fazer um balançopara avaliar os sucessos e os fracassos desta teoria,qualificada por muitos como a mais bela teoria física.

O SIGNIFICADO DA RELATIVIDADENO FINAL DO SÉCULO

PAULO CRAWFORD

Paulo Crawford é doutorado em Física pela Universidade

de Lisboa e professor auxiliar da Faculdade de Ciências

da mesma Universidade, onde rege entre outras a

disciplina de Relatividade e Cosmologia. É actualmente

membro do Centro de Física Nuclear do Complexo

Interdisciplinar II, onde dirige um grupo de investigação

em Gravitação e Cosmologia. Fez investigação no King's

College da Universidade de Londres e no Grupo Teórico

de Relatividade da Universidade de Maryland, nos Estados

Unidos. Nos últimos quatro anos tem desenvolvido

pesquisa sobre a cosmologia do Universo primitivo, em

colaboração com físicos de partículas, no âmbito de

projectos de investigação financiados pelo Fundo CERN

(Centro Europeu de Física de Altas Energias).

O

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electrónica sofisticada, pois queo tempo que a luz leva a atra-vessar um tal tubo é menor quea centésima milionésima parte deum segundo (∆t < 10-8 s). Ao fimde algum tempo e depois derepetirem esta experiência váriasvezes, A e B concluem que avelocidade da luz é a mesma aolongo dos seus respectivos tubose que este valor coincide com avelocidade média tomada entreas suas posições.

Vamos alterar ligeiramente aexperiência. Em vez de A e de Bpermanecerem em repouso, Bmove-se agora com velocidadeconstante na direcção de A. Àmedida que B se aproxima de A,B espera que os sinais luminosos,enviados por A, atravessem o seutubo a uma velocidade superiorà da experiência anterior, quandoa velocidade entre eles era nula.Não é isso que acontece nonosso quotidiano? Se um obser-vador parado na plataformaduma estação de caminho deferro vê passar um comboio a100 km/h, e no comboio há umpassageiro a deslocar-se a umavelocidade de 5 km/h em relaçãoao comboio, então a velocidaderelativa entre o passageiro e oobservador da plataforma é 105km/h ou 95 km/h consoante opassageiro se afasta ou se apro-xima da estação? Não deviaacontecer o mesmo com a luz?Porém, para grande surpresa dosobservadores A e B, a velocidadeda luz permanece inalterada aoatravessar os respectivos tubos.E além disso, a velocidademedida a partir dos intervalos detempo que a luz leva a percorrera distância entre A e B continuaa ser a mesma. Consternado com este resultado, B supõeque a sua velocidade em relação a A é ainda muito pequenae recorre a um foguetão para aumentá-la. B aproxima-se deA cada vez mais depressa, na esperança de receber maisrapidamente os sinais luminosos enviados por A, mas é emvão, a velocidade medida localmente continua a ser a mesma.Ao fim de algum tempo, B atinge uma velocidade em relaçãoa A igual a 99% da velocidade da luz e nota que os sinaisluminosos chegam agora muito azulados. Trata-se de umfenómeno familiar, B sabe que a luz azul significa luz de alta

frequência e recorda-se que asondas sonoras também sedeslocam para as altas frequên-cias quando a fonte e o obser-vador se aproximam um dooutro. O efeito designa-se pordeslocamento de Döppler eobserva-se, por exemplo, quandodois carros se cruzam: a buzinatorna-se mais aguda se os carrosse aproximam e mais grave seeles se afastam. Voltando à nossaexperiência, apesar do deslo-camento de Döppler, B nãoobserva nenhuma variação navelocidade da luz, isto é, Bcontinua a medir a mesma velo-cidade para os sinais enviadospor A.

B decide-se então a utilizarum outro foguetão para invertero sentido do movimento e, assim,afastar-se de A a toda a velo-cidade. Verifica agora que ossinais luminosos enviados por Achegam bastante avermelhados,como se as ondas luminosastivessem sido alongadas, pro-vocando o aumento do seucomprimento de onda, tal comoas ondas sonoras da buzina deum carro que se afasta. Ao fim dealgum tempo B afasta-se de A auma velocidade igual a 99% davelocidade da luz. B esperavaque a luz enviada por A viajasseao seu encontro a 3000 km/s (1%da velocidade habitual), mas nadadisso acontece. A luz continua achegar à mesma velocidade de300 000 km/s, independente-mente da velocidade a que B sedesloca em relação a A.

Numa última tentativa, e jádesesperado por esta contradiçãoentre o comportamento da luz ea experiência quotidiana, B

resolve utilizar ainda um outro foguetão com o fim deultrapassar a velocidade dos sinais luminosos na esperançaque, ao viajar a uma velocidade superior à da luzrelativamente a A, os sinais luminosos enviados por A nãoo atinjam. Enquanto decorre esta fase da experiência, Averifica que B está a fazer um esforço desesperado paraatingir a velocidade da luz, mas quanto mais perto se encontradessa velocidade, maior é a energia que necessita paraacelerar. A necessidade de combustível cresce sem limite.Mesmo com toda a energia disponível no mundo, B não é

Foto 1 - Albert Einstein (Berlin, 1916).

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capaz de vencer a barreira que o impede de atingir avelocidade a luz. Parece que à medida que B se aproximada velocidade da luz, maior é a sua inércia: toda a novaenergia consumida parece ser dispendida para criar maismassa e não para aumentar a velocidade. Entretanto, ossinais luminosos emitidos por A continuam a atravessar otubo de um metro, transportado por B, a uma velocidadede 300 000 km/s.

O quadro descrito na experiência anterior está emcontradição com a nossa rotina diária, fundamentada namecânica de Newton. A relatividade restrita ensina-nos a sermais cautelosos. Sempre que os objectos se movam comvelocidades próximas da velocidade da luz devemos ignorara nossa experiência quotidiana, e levar a sério os postuladosdesta teoria.

Como consequência da invariância da velocidade daluz, Einstein foi levado a concluir que o espaço e o tempovariam com o estado de movimento do observador. Porexemplo, quando B se aproxima vertiginosamente de A, adistância entre A e B, medida por B, contrai-se. Além destapeculiar contracção do espaço, o movimento de B temtambém um efeito muito estranho sobre o tempo. QuandoB compara o seu relógio com dois relógios iguais, localizadosem sítios diferentes, previamente sincronizados e em repousoem relação a A, constata que o seu relógio se atrasa emrelação a estes relógios "solidários" com A. E vice-versa, orelógio de A atrasa-se em relação a dois relógiosespacialmente separados e solidários com B (previamentesincronizados). A conclusão óbvia a retirar destes factos é: asincronização dos relógios é um conceito relativo ao

observador. Não existe uma sincronização universal,simultâneamente válida para todos os observadores(inerciais). Relógios parados e sincronizados do ponto devista de um observador A, não estão sincronizados para umobservador B que se move com velocidade próxima davelocidade da luz em relação a A. Por outras palavras, se Bse aproxima de A a grande velocidade e, pelo caminho.acerta o seu relógio por um relógio que está parado emrelação a A, mas a uma certa distância de A, quando B secruza com A verifica que o relógio de A está adiantado emrelação ao seu relógio. Do ponto de vista de B, os doisrelógios que estão em repouso relativamente a A, não forampreviamente sincronizados, ainda que o tenham sido doponto de vista de A. Esta situação traduz a impossibilidadede definir o conceito de simultaneidade de modo absoluto.Além disso, constatamos que o intervalo de tempo entredois acontecimentos é mais curto para o observador que vêos dois acontecimentos ocorrerem no mesmo ponto deespaço. Designa-se o tempo medido por esse observadortempo próprio.

Dois acontecimentos físicos, que ocorrem em diferentespontos de espaço (isto é, espacialmente separados) esimultâneos para um observador A, não serão simultâneospara outro observador B que se desloca a grande velocidadeem relação a A. Este carácter relativo do conceito desimultaneidade é uma consequência do valor finito(constante) da velocidade da luz. Este é o conceitofundamental da teoria da relatividade restrita. Se as acçõesfísicas pudessem propagar-se a uma velocidade infinita asimultaneidade teria um carácter absoluto: dois

Foto 2 - Notas autobiográficas, do punho de Einstein (tradução: “As datas das minhas contribuições científicas mais importantes são: 1905 - Teoria daRelatividade Restrita. Inércia da Energia. Lei do movimento Browniano. Leis quânticas da Emissão e Absorção da Luz. 1907 - Ideias base da Teoria daRelatividade Geral. 1912 - Reconhecimento do carácter não-euclidiano da métrica e sua relação física com a gravitação. 1915 - Equações de campo daGravitaçâo. Explicação do movimento do periélio de Mercúrio”)

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acontecimentos simultâneos para um dado observador,seriam simultâneos para qualquer outro observador, qualquerque fosse o seu estado de movimento.

Vejamos este aspecto com o auxílio de mais umaexperiência de pensamento, à boa maneira de Einstein.Imaginemos desta feita uma nave espacial que se afasta daTerra a uma velocidade igual a 90% da velocidade da luz. Nocentro da nave existe uma fonte de sinais luminosos. Para umastronauta que se encontre no centro da nave espacial, ossinais chegam às duas extremidades da navesimultaneamente, visto que as ondas luminosas se propagamem todas as direcções com a mesma velocidade – avelocidade da luz, c. Contudo um observador terrestretestemunharia uma situação bem diferente. É certo que avelocidade da luz é a mesma, de acordo com a teoria darelatividade restrita, para o observador terrestre e para oastronauta que se afasta da Terra. Mas como o observadorterrestre vê a nave a afastar-se com uma velocidade igual a90% da velocidade da luz, é claro que, do ponto de vistadeste observador, os sinais luminosos não podem chegarsimultaneamente às duas extremidades da nave. Oobservador terrestre vê a cauda da nave a aproximar-serapidamente da origem do sinal luminoso, enquanto adianteira da nave se afasta dessa origem. Durante o intervalode tempo que a luz leva a atravessar a nave, esta afasta-se daTerra e, por isso, o sinal enviado para trás atinge a cauda danave antes do outro sinal atingir a extremidade dianteira.Assim, dois acontecimentos que são simultâneos para oastronauta ocorrerão em instantes diferentes para oobservador terrestre.

Vimos, com este último exemplo, como a simultaneidadedepende do estado de movimento do observador. Não existeum acordo universal sobre o que é o "mesmo instante" paradois acontecimentos que ocorrem em lugares diferentes, ouseja, não existe uma definição absoluta de "instantâneo". Umsinal que viajasse "instantaneamente" da frente para a caudada nave espacial, do ponto de vista do astronauta, seria vistopor um observador terrestre como um sinal propagando-se"para trás" no tempo. Como o observador terrestre vê o sinalatingir a dianteira depois de atingir a cauda, o sinalaparentemente "instantâneo" seria visto da Terra como umsinal enviado do acontecimento posterior para oacontecimento anterior, destruindo assim qualquer relaçãocausal.

São conhecidos os paradoxos que resultam de admitirque é possível enviar sinais "para trás" no tempo. Imaginemos,por exemplo, uma máquina ligada a um computador coma seguinte instrução programada: "Às 4 horas enviar um sinalpara o passado". Este sinal pode reflectir-se num local distantea atingir de novo a máquina, digamos, às 2 horas. O programapode conter uma instrução para a máquina se auto-destruiruma hora após a chegada do sinal. É claro, uma tal sequênciade acontecimentos é totalmente inconsistente: auto-destruiçãoàs 3 horas anteciparia a transmissão do sinal às 4 horas,impedindo a recepção do sinal às 2 horas e, portanto,anulando a accionamento do mecanismo de auto-destruição,em contradição com a hipótese original. A inconsistênciatraduz-se numa quebra da relação causa-efeito. Assim, parapreservar a estrutura causal dos fenómenos físicos adoptamosa regra: não é possível enviar sinais a velocidadessuperiores à da luz.

No que se refere ao conteúdo, a relatividade restritabaseia-se inteiramente nos dois postulados acima enunciados.Quanto à forma, é de enorme conveniência reconhecer que,neste novo quadro da relatividade restrita, os conceitos deespaço e de tempo passam a estar indissoluvelmenteinterligados, tal como o notou Hermann Minkowski em 1908:

"Daqui em adiante o espaço só por si e o tempo só porsi estão condenados a tornarem-se meras sombras, e só umaunião dos dois preservará uma realidade independente".

O mundo físico da nossa experiência, é agorarepresentado por um espaço a quatro dimensões, o espaço-tempo. Cada ponto do espaço-tempo é um acontecimentofísico, representado por quatro coordenadas (t, x, y, z): trepresenta o instante e (x, y, z) dá-nos a localização doacontecimento. Diferentes observadores (inerciais) usamcoordenadas diferentes para o mesmo acontecimento. Oconjunto de todos os acontecimentos da vida de umobservador (ou de uma partícula) formam uma trajectóriado espaço-tempo a que se dá o nome de linha do Universo.Para os observadores inerciais as linhas do Universo sãogeodésicas (i.e., linhas rectas) deste espaço. Se doisobservadores se cruzam e tomam esse acontecimento comoa origem das respectivas coordenadas de espaço e de tempo,

Fig. 1 - Diagrama do espaço-tempo: cada ponto deste diagrama representaum acontecimento físico, aqui identificado por três coordenadas, duas deespaço e uma de tempo. O cone é uma fronteira que separa osacontecimentos que têm uma relação causal com o acontecimento O,daqueles que não podem influenciar O nem ser influenciados por O.

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a invariância da velocidade da luz no vácuo exige que

x2+y2+z2 - c2t2 = x ’2+y ’2+z ’2 - c2t ’2

onde (t, x, y, z) e (t', x', y', z') são as coordenadas dum mesmoacontecimento para cada um dos observadores.

À semelhança do que acontece com a geometriaeuclideana, onde a generalização do teorema de Pitágorasnos diz que

∆s2 = ∆x2+∆y2+∆z2

é um comprimento invariante numa rotação, também ageometria do espaço-tempo da relatividade restrita pode sercaracterizada pelo invariante fundamental,

∆s2 = - c2∆t2+∆x2+∆y2+∆z2,

que traduz a invariância da velocidade da luz no vácuo, etambém é habitualmente interpretado como uma“distância”entre dois pontos (acontecimentos) deste espaço-tempo a quatro dimensões e, por isso, designado intervalodo Universo. Porém, devido à existência de três sinaispositivos e um negativo (na linguagem matemática diz-seque se trata de uma forma quadrática indefinida) esta distâncianem sempre é positiva como na geometria euclideana. Dadosdois acontecimentos cuja separação espacial é r = √ x2+y2+z2

e cuja separação temporal é t, três situações diferentes podemocorrer:

(1) r2 - c2t2 = 0 ,

os dois acontecimentos formam um par do tipo-luz;

(2) r2 - c2t2 < 0 ,

os dois acontecimentos formam um par do tipo-tempo;

(3 ) r2 - c2 t2 > 0 ,

os dois acontecimentos formam um par do tipo-espaço.

Todos os pares de acontecimentos que estão numarelação de causa-efeito pertencem às categorias 1 ou 2.Nenhuma informação pode ser transmitida com velocidademaior do que a da luz. Logo, dois acontecimentos quepertençam à categoria 3 não podem estar causalmenterelacionados. Como as partículas materiais viajam semprecom uma velocidade inferior à da luz, dois quaisqueracontecimentos da vida de uma partícula material formam umpar do tipo-tempo, isto é, a sua separação temporal é maiordo que a sua separação espacial, para todos os observadoresinerciais. O conjunto dos acontecimentos que formam coma origem do espaço e do tempo um par tipo-luz geram umahipersuperfície a três dimensões conhecida por cone de luz.As linhas do Universo das partículas materiais que passam

pela origem estão necessariamente contidas no interior dorespectivo cone de luz (Fig. 1). No espaço-tempo darelatividade restrita, a estrutura de cones de luz é rígida, ouseja, é a mesma em todos os pontos.

É fácil verificar que a transformação de coordenadasque satisfaz a invariância do intervalo do Universo é aconhecida transformação de Lorentz (ver o artigo de E. Lagena Colóquio/Ciências), donde se deduz a fórmula da adiçãode velocidades que está de acordo com as experiências depensamento descritas atrás,

u' + vu =

1 + u' v/c2

Se, por exemplo, u' = 100 km/h é a velocidade dopassageiro em relação ao comboio, e v = 5 km/h é avelocidade do comboio em relação à estação o valor de ué uma décima milésima da bilionésima parte de1% menorque 105 km/h. E se u' = c vem u = c, qualquer que seja o valorde v<c , em acordo com o postulado de Einstein: avelocidade da luz (no vácuo) é a mesma para todos osobservadores. A luz de uma estrela que se aproxima da Terraviaja com velocidade c, tal como a luz de uma estrela que seafasta. Usando estrelas duplas os astrónomos verificarameste facto com grande precisão.

O ESPAÇO-TEMPO CURVO DA RELATIVIDADE GERAL

Tanto o espaço euclideano como o espaço-tempo darelatividade restrita são espaços planos. Ao procurarcompatibilizar a interacção gravitacional com as ideias darelatividade restrita, onde sobressai a noção da velocidade daluz como velocidade limite para a transmissão das acçõesfísicas, Einstein é levado, ao fim de uma luta intelectualintensa, a renunciar ao espaço-tempo plano. Na presençade um campo gravítico é necessário incluir todos os tiposde movimentos relativos e não só os movimentos uniformes.Será possível generalizar o Postulado (1) de modo a aplicá-lo a todos os observadores de um campo gravítico? Vejamos,numa linguagem simples, quais as considerações queorientaram o pensamento de Einstein. Começo pelo carácteruniversal da gravitação. A interacção gravitacional tem umanatureza única entre todas as forças: todos os corpos caemao longo da mesma trajectória espacial independentementeda sua massa e da sua constituição. Este facto sugere que agravidade não é realmente uma força mas uma propriedadegeométrica do espaço ou, no contexto da relatividade, doespaço-tempo. Neste ponto surge a ideia revolucionária deEinstein: os observadores em queda livre num campogravítico identificam-se com os observadores inerciais darelatividade restrita no que diz respeito às suas observaçõeslocais (Princípio da Equivalência). Mas, ao contrário darelatividade restrita, dois observadores em queda livre nãomantêm uma velocidade uniforme entre si devido aos efeitosnão locais do campo gravítico. Realmente, dois corpos emqueda livre à superfície da Terra não descrevem trajectórias

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exactamente paralelas pois, sendo o campo central, astrajectórias convergem para o centro de massa, embora, auma escala local, as trajectórias sejam quase paralelas (Fig. 2).Para justificar estas diferenças face à relatividade restrita,Einstein identifica a gravidade com uma modificação emrelação à geometria euclideana: a gravitação produz umacurvatura do espaço-tempo. As linhas do Universo dosobservadores em queda livre serão as geodésicas desteespaço-tempo curvo. Claro que agora as geodésicas já nãosão linhas rectas, como no espaço plano, mas sim as linhas"mais direitas" que o espaço-tempo curvo admite.

Mas o que é a curvatura do espaço? E como se determinaessa curvatura? Todos os que imaginam o espaço como umvazio de coisas materiais, o que resta quando abstraímos osobjectos e os seres presentes, ficam perplexos com a noçãode um espaço curvo. Para a maioria das pessoas, o espaçodestina-se a ser ocupado pelos corpos nos seus movimentosrelativos, o espaço é o palco onde se desenrolam os diferentesacontecimentos. Para o matemático, um espaço é umacolecção de "pontos", cuja natureza pode variar consoanteas aplicações matemáticas e/ou físicas. Assim, o espaço vazio

pode ser entendido como um espaço sem matéria, mas nãocomo um espaço sem propriedades definidas entre os seuselementos (pontos). Por exemplo, os pontos do espaço--tempo da teoria da relatividade são acontecimentos físicos,isto é, algo que ocorreu num certo local e num certo instante.Vimos já que o conjunto de todos os acontecimentos físicosforma um espaço contínuo a quatro dimensões. Na ausênciade campos gravíticos, ou seja, quando estamossuficientemente afastados das distribuições de matéria eenergia, este contínuo é o espaço-tempo da relatividaderestrita. Neste espaço-tempo os sistemas de coordenadasinerciais são análogos aos sistemas cartesianos decoordenadas rectilíneas da geometria euclideana. Tomandosó duas dimensões, é possível representar estes sistemas decoordenadas num plano (numa folha de papel, por exemplo).Mas já não é tão fácil usar um sistema de coordenadasrectilíneas numa superfície esférica. Sobre a folha de papelposso traçar um reticulado de segmentos de rectaperpendiculares entre si e, com estas coordenadas, possodeterminar a posição de qualquer ponto do papel (bastandoum único sistema de coordenadas para determinar todos os

Fig. 2 a) - Duas partículas em queda livre vão lentamente aproximando-se uma da outra à medida que se deslocam segundo trajectórias espaciais queconvergem para o centro de massa da Terra. b) Coloquemos 4 partículas nos vértices de um quadrado e suficientemente afastadas para que o campogravítico apresente uma variação significativa com a distancia. Se este sistema entrar em movimento de queda livre o quadrado inicial sofre uma distorçãoe transforma-se num losango por acção das chamadas forças de maré que traduzem a presença intrínseca de um campo gravítico. Estas forças de marépermitem distinguir a situação de imponderabilidade, característica duma queda livre, da situação de ausência de forças. Não é possível eliminar totalmentea presença de um campo gravítico, colocando um corpo em queda livre, embora as acelerações de maré possam ser despresáveis localmente. c) Nestecaso substítuiram-se as 4 partículas por um anel circular. A deformação do anel é equivalente à distorção do quadrado, podendo ser interpretada comodevida ao aparecimento de duas acelerações: uma que afasta as partículas na vertical e outra que as aproxima segundo a horizontal.

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pontos do papel). Envolvendo a esfera com a folha de papel,verifico que não é possível ajustar o papel à esfera semdobrá-lo. Deste modo, sou obrigado a sobrepor diferentesporções do reticulado com as mesmas porções da esfera.Nestas condições, não é possível estabelecer umacorrespondência unívoca entre os pontos da esfera e ospontos do papel. É necessário que o papel tenha uma áreamaior do que a área da esfera para que seja possível envolvê--la completamente com a folha de papel. Em contrapartida,no caso de um cilindro não existe qualquer dificuldade emenvolvê-lo com uma única folha de papel, e sem necessidadede a dobrar. Existe, portanto, uma correspondência(aplicação) bem definida entre os pontos do papel e ospontos da superfície do cilindro. A folha de papel e o cilindrosão espaços (bi-dimensionais) intrinsecamente planos e aesfera é um espaço (bi-dimensional) intrinsecamente curvo(Fig. 3). Como estender esta noção de curvatura a espaçoscom mais dimensões sem os "mergulhar" em espaços planosde dimensão superior? Para isso teremos de olhar para assuas características intrínsecas.

Entre os axiomas da geometria euclideana existe umque foi sempre uma fonte de grande controvérsia até meadosdo século XIX. Refiro-me ao axioma das paralelas queestabelece o seguinte: por um ponto do espaço só passauma paralela a uma recta dada. Duas linhas rectascomplanares dizem-se paralelas se não se intersectam. Háalgo de incómodo nesta definição que, segundo consta, davaque pensar ao próprio Euclides. Na vida real só encontramossegmentos de recta, nunca linhas rectas (cujo comprimentoé infinito). Põe-se, pois, a seguinte questão: como podemoster a certeza que dois segmentos de recta se mantêm à mesmadistância quando prolongados indefinidamente?

Ao longo dos tempos, várias pessoas tentaram encontrar

um axioma mais básico do qual se pudesse deduzir o axiomadas paralelas. Foi o caso de John Wallis no século XVII etambém o de Geralamo Sacherri no século seguinte. Esteúltimo, na sua obra A Prova de Euclides, publicada em 1733,pensou erradamente que tinha finalmente estabelecido oaxioma das paralelas como uma verdade transparente. Nestaobra, Sacherri derivou e discutiu muitos teoremas não-euclideanos mas sem se aperceber que a geometria não-euclideana podia ter uma validade teórica igual à geometriade Euclides. Para Emanuel Kant, que partilhava neste campoda crença dominante, a geometria de Euclides era umaverdade cristalina, sem alternativa. Na sua Crítica da RazãoPura Kant tentou colocar a geometria euclideana numa basesólida argumentando para isso que os seus axiomas erama priori, isto é, anteriores à experiência e, portanto, uma"necessidade inevitável do pensamento".

Hoje sabemos que o axioma das paralelas não pode serreduzido a outro axioma mais básico, e é fundamental paradistinguir o espaço euclideano de todos os outros espaçospossíveis. No espaço euclideano o perímetro de umacircunferência é igual a π vezes o seu diâmetro: C = π × D,e a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a doisângulos rectos: α+β+γ = π. Noutros espaços estas relações sãodiferentes, como veremos. De todo os espaços não-euclideanos só há dois que são também uniformes nomesmo sentido do espaço euclideano, ou seja, sãohomogéneos e isotrópicos, pois todos os seus pontos e todasas suas direcções são equivalentes. O primeiro destes espaçostem uma geometria hiperbólica e foi descobertoindependentemente por Johann Gauss, Nikolai Lobachevskye Janos Bolyai; o segundo tem uma geometria esférica efoi descoberto por Georg Riemann. Estes espaços têm umaescala intrínseca de comprimento que vamos representar

Fig. 3 a) - Curvatura do cilindro: são necessários dois números para especificar a curvatura do cilindro no ponto P. Na direcção paralela ao eixo do cilindro(D), a curvatura é nula; na direcção perpendicular, é igual à da circunferência (C). b) Comparação entre o cilindro e a esfera: a curvatura intrínseca do cilindroé igual ao produto das curvaturas referidas em a) e, portando, é nula; podemos cortar o cilindro segundo o eixo e colocá-lo sobre uma folha de papel. Acurvatura de uma esfera é estritamente positiva; se cortarmos a região indicada e tentarmos planificá-la, a superfície rasga-se pois que a sua área é menorque a de um círculo plano com o mesmo raio.

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por R . Se considerarmos regiões de um espaço uniformecujas dimensões sejam muito pequenas em relação a R, entãoas suas geometrias assemelham-se localmente à geometriaeuclideana. Portanto, quando R é muito grande não é fácildistinguir entre os três espaços uniformes. Observadores quevivam em espaços com geometria esférica ou hiperbólica,mas que só tenham acesso ao que se passa na sua vizinhançaimediata, pelo estudo de fenómenos locais, terão tendênciaa pensar em termos da geometria de Euclides.

Os três espaços uniformes distinguem-se pelos seguintespostulados: (1) No espaço hiperbólico, por um dado pontopassam muitas geodésicas paralelas a uma geodésica dada;(2) no espaço euclideano só passa uma geodésica paralelanas mesmas condições, como sabemos; (3) no espaço comgeometria esférica, não existe nenhuma geodésica paralelaa uma geodésica dada. Por outro lado, no espaço hiperbólicoo perímetro de uma circunferência é maior que π vezes oseu diâmetro: C>π×D, e a soma dos ângulos internos de umtriângulo é menor que dois ângulos rectos: α+β+γ <π; e, noespaço esférico, o perímetro de uma circunferência é menorque π vezes o seu diâmetro: C<π×D, e a soma dos ângulosinternos de um triângulo é maior que dois ângulos rectos:α+β+γ >π.

Para ilustrar um espaço esférico dispomos obviamenteda superfície de uma bola. Mas é mais difícil dar um exemplode um espaço hiperbólico bi-dimensional (Fig.4). DavidHilbert, um dos mais célebres matemáticos do príncipio doséculo, mostrou que não é possível construír uma superfíciebi-dimensional imersa1 num espaço euclidiano, querepresente a geometria de um espaço hiperbólico, uniformepor toda a parte. A superfície de uma pseudo-esfera temuma geometria hiperbólica mas não é uniforme, pois os seuspontos não são todos equivalentes. A superfície em forma de“sela” é homogénea e isotrópica apenas numa pequenaregião central; no entanto, tem virtude de ilustrar que o

espaço hiperbólico é aberto e de extensão infinita (tal comoo espaço euclidiano). Por sua vez uma superfície esféricapõe em evidência como a geometria esférica é fechada ede extensão finita. Estes espaços curvos têm a designaçãocomum de espaços riemannianos.

Do ponto de vista da curvatura, os três espaços uniformesdistingem-se porque:

• 1. o espaço esférico tem curvatura positiva (K>0);• 2. o espaço euclideano tem curvatura nula (K = 0);• 3. e o espaço hiperbólico tem curvatura negativa (K<0).

No caso dos espaços bi-dimensionais uniformes acurvatura é dada por K = ±1/R 2, onde R é o raio decurvatura, a escala intrínseca de comprimento já mencionada.No caso geral, uma superfície bi-dimensional tem dois raiosde curvatura, R

1e R

2, medidos, em cada ponto, em

direcções perpendiculares entre si; mas se a superfície éuniforme R

1= R

2, existe um único raio de curvatura, com

o mesmo valor em todos os pontos da superfície. Quandoos raios de curvatura são medidos para o mesmo lado dasuperície, a curvatura diz-se positiva: K>0; quando os raiosde curvatura são medidos em lados opostos da superfície, acurvatura diz-se negativa: K<0. Uma superfície plana temum raio de curvatura infinito e a curvatura é, portanto, nula:K = 0. Num espaço homogéneo e isotrópico, a soma dostrês ângulos internos de um triângulo menos dois ângulosrectos é igual à curvatura vezes a área do triângulo:

K × área do triângulo = soma dos ângulos internos – π.

Com esta fórmula podemos determinar a curvatura deum modo intrínseco, sem necessidade de recorrer a espaçosde dimensão superior.

Até aqui temos considerado apenas superfícies bi-dimensionais imersas num espaço euclideano tri-dimensionalpara mais facilmente ilustrar o conceito de curvatura. Mas épossível estender este conceito a espaços de dimensão

1A “imersão” e o “mergulho” de um espaço noutro de dimensão superior

são noções matemáticas precisas e distintas. Aqui, porém, contentamo-noscom a noção intuitiva subjacente e usamos indiferentemente os dois termos.

Fig. 4 - Geometria dos espaços uniformes: as propriedades das superfícies uniformes estão aqui exemplificadas pelo plano, pela esfera e pela superfície emforma de sela. Esta última é um exemplo imperfeito porque tem centro e, por isso, não pode representar um espaço homogéneo de curvatura negativa. Amelhor representação deste espaço é uma superfície infinita chamada pseudoesfera que não pode ser construida num espaço tri-dimensional.

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qualquer. Porém, num espaço tri-dimensional a curvatura éum objecto bem mais complicado, contendo seiscomponentes que, em geral, têm diferentes valores. Se oespaço é uniforme, três das componentes são nulas e asoutras três são constantes por toda a parte e iguais entre si;quando o espaço é plano todas as componentes se anulam.Num espaço (-tempo) com quatro dimensões, como narelatividade, a curvatura tem vinte componentes, que sãotodas nulas na relatividade restrita.

Se quisermos pensar na curvatura como uma"deformação" de um espaço que está imerso num espaçoplano de dimensão superior, já sabemos que para um espaçocurvo bi-dimensional necessitamos de um espaço plano tri-dimensional; mas para um espaço curvo tri-dimensionalnecessitamos, em geral, de um espaço plano com seisdimensões: e para um espaço curvo quadri-dimensionalteremos de recorrer, em geral, a um espaço plano com dezdimensões. A teoria da relatividade geral de Einstein descreveo nosso Universo como um espaço-tempo curvo com quatrodimensões. Mas quando falamos aqui de curvatura nãoprocuramos visualizar o espaço-tempo como estando imersonum espaço-tempo plano com dez dimensões. A curvaturadeve ser aqui entendida como uma propriedade geométricaintrínseca. Aliás, um espaço plano não é em nada maisfundamental do que um espaço curvo, e é bem mais difícilimaginar um espaço com dez dimensões, embora plano, doque um espaço quadri-dimensional curvo.

Desde Kepler que os físicos empregavam a geometriaeuclideana no espaço vazio do sistema solar para determinaras trajectórias dos planetas em torno do Sol. A geometriaeuclideana parecia funcionar bem nestas paragens remotascom uma excepção: o avanço do periélio do Mercúrio (oponto da órbita elíptica do planeta mais próximo do Sol) de43 segundos de arco por século representava uma"deformação" da órbita que não era possível explicar comosendo devida apenas às perturbações provocadas pelos

outros planetas. Embora essa deformação seja pequena, asua origem permaneceu misteriosa até ao princípio do século,quando Einstein completou a sua teoria da relatividade geral.A proposta revolucionária de Einstein, tal como se explicouacima, foi identificar a gravidade com o desvio em relaçãoà geometria euclideana, ou seja, com a curvatura do espaço.Deste ponto de vista os planetas não se movem numatrajectória elíptica em torno do Sol, como supunha Newton,com o Sol a exercer uma força gravítica sobre eles para osafastar das suas trajectórias rectilíneas naturais. Em vez disso,a gravidade do Sol é interpretada como uma deformaçãodo espaço (e do tempo) na sua vizinhança, e os planetaslimitam-se a seguir as trajectórias mais "fáceis" – os caminhosque minimizam as suas acções mecânicas através do espaçocurvo. Estes caminhos mais fáceis (as geodésicas) são afinalmuito próximos dos caminhos "forçados" tomados pelosplanetas segundo a teoria da força gravítica de Newton. Masnão são exactamente iguais. A órbita de Mercúrio, porexemplo, avança 43 segundos de arco por século. Um efeitosemelhante ocorre com todos os outros planetas mas, dadaa proximidade do Sol, o efeito é mais significativo no casodo Mercúrio. Este foi o grande triunfo de Einstein.

Se o espaço à roda do Sol não é exactamente euclideano,também é natural que as imagens das estrelas que seencontram na direcção do Sol cheguem até nós algodeformadas, como foi observado por Sir Arthur Eddingtonem 1919 na Ilha do Princípe, durante um eclipse solar. Esteefeito ocorre sempre que a luz passa na proximidade dequalquer objecto celeste e é tanto mais importante quantomaior for a curvatura do espaço (-tempo), isto é, quantomais intenso for o campo gravítico do objecto junto do qualpassam os raios luminosos (Fig. 5).

A outra maneira do campo gravítico influenciar ocomportamento da luz tem a ver com a mudança de

Fig. 5 - Encurvamento dos raios luminosos no campo gravítico do Sol:para um raio luminoso rasando a superfície solar a teoria da relatividadegeral prevê um ângulo de desvio ∆ ϕ = 1,75”. Devido às dificuldadesexperimentais (quando se faz o registo em chapa fotográfica há que atenderà distorção do filme durante a revelação) os valores medidos estãocompreendidos entre 1,43” e 2,7”.

Foto 3 - Roça “Suni”, na Ilha do Príncipe, onde foi feita a primeiracomprovação experimental da teoria da Relatividade Geral de Einstein,durante o eclipse total que se verificou em 29 de Maio de 1929

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frequência. Num linguagem newtoniana, é fácil entenderque a luz emitida por uma estrela dispende uma certa energiapara vencer a barreira de potencial que a separa doobservador. Este dispêndio de energia traduz-se numdeslocamento das riscas do espectro da radiação emitidapara a zona do vermelho. Einstein previu teoricamente estedeslocamento gravitacional das frequências pela primeiravez em 1911, antes de completar a teoria da relatividadegeral, por meio de um raciocínio heurístico. Vejamos comodescrever quantitativamente este efeito.

Consideremos dois átomos idênticos, A e B, que seencontram em repouso a distâncias diferentes num certocampo gravítico. O átomo A emite luz cuja frequênciaapresenta um deslocamento para o vermelho, dado por

(υe

– υo) /υ

o= ∆υ /υ

o= ∆U/c2

para um observador colocado junto do átomo B, e sendo∆U a diferença de potencial gravítico entre B e A. Podemosidentificar os átomos com relógios atómicos e a frequênciada luz emitida com a frequência de referência desses relógios.Sempre que o relógio A avança um segundo, A envia umsinal luminoso para B. De acordo com a equação anterior ossinais luminosos emitidos por A chegarão a B com umafrequência υ

o= υ

e– ∆υ que é menor que a frequência de B.

Como não se perde nenhuma informação de A para Bdevemos concluir que o relógio A avança mais lentamenteque o relógio B. Enquanto o relógio B mede um segundo,emite durante o mesmo tempo υ

eondas mas recebe somente

υo

= υe

– ∆υ ondas de A. Por outras palavras, durante ointervalo de tempo ∆T

B, o relógio A mede

∆TA

= (1 – ∆υ /υο

) ∆TB

= (1 – ∆U/c2) ∆TB

Na mecânica newtoniana, o potencial gravítico à superfície

duma estrela de raio R e massa M é dado por

U(R ) = – GM/R ,

onde G é a constante de gravitação de Newton. Se o relógioB se encontra muito afastado da massa responsável pelocampo gravítico, podemos fazer U ~0 e se A está à superfícieda estrela, vem

∆TA

= (1 – GM / RC2 ) ∆T

B

Em resumo: os relógios movem-se mais lentamente navizinhança dos campos gravitacionais intensos (Fig. 6). Nocaso do Sol GM

S/R

Sc2 ~10-6; logo, um relógio situado à

superfície do Sol atrasar-se-ia por um factor de ~10-6 emrelação a um relógio idêntico colocado na Terra, onde sefaz U~0, pois GM

T/R

T c 2 ~10-9 à superfície da Terra. Mas

à superfície de uma estrela de neutrões (GM/Rc2 ~ 10-3)o efeito é mais significativo! A equação anterior foi obtidasem a intervenção das equações de Einstein da relatividadegeral. A expressão exacta, para um campo gravítico comsimetria esférica, toma a forma

∆TA

= (1 - 2 GM/Rc2)1/2∆T

B

com base numa solução das equações de Einstein obtidapor Karl Schwarzschild em 1916. ∆T

Amede o intervalo de

tempo próprio de um relógio colocado a uma distância2 da

2Numa geometria curva as distâncias, tal como os tempos, não se medem

como num espaço plano, e o valor da coordenada radial não forneceimediatamente a distância ao centro de massa.

Fig. 6 - Comportamento dos relógios num campo gravítico: num campoestático com simetria esférica a teoria prevê que os relógios colocados maisperto da superfície do corpo, onde a curvatura é mais intensa, andam maislentamente. Este efeito foi verificado na Terra por Pound e Rebka em 1960.

Fig. 7 - Comportamento dos cones de luz na presença de um campogravítico: os cones de luz são arrastados e inclinados pelo campo gravíticoda estrela. Esta inclinação traduz a distorção provocada pela curvatura doespaço-tempo.

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estrela cuja coordenada radial é R e ∆TB

é o intervalo detempo próprio medido por um relógio que se encontraafastado da estrela, fora da influência do campo gravítico.

Em termos das frequências, e supondo que o relógio Atem a coordenada radial R

Ae o relógio B a coordenada radial

RB

, obtemos a seguinte expressão para o deslocamentoespectral

∆υ=

υo

-υe ~

GM (

1 -

1 )υ

e υ

e c2 R

o R

e

no caso em que RAc 2 >> 2GM e R

Bc 2 >> 2GM. Se A

(emissor) está mais perto do objecto que cria o campogravítico do que B (receptor), então 1/R

B< 1/R

A, e o

deslocamento é para o vermelho, mas para um sinal enviadode B para A o deslocamento é para o azul. Esta fórmula foiverificada em 1960 por Robert V. Pound e Glenn A. Rebka,usando a torre de 22,6 m de altura do Laboratório de Físicade Jefferson, na Universidade de Harvard.

Para finalizar esta introdução à teoria de Einstein, vamosdestacar as aspectos essenciais que distinguem a relatividaderestrita da relatividade geral. Na relatividade restrita o espaço-tempo é plano e pode ser visto como um palco onde sedesenrolam os acontecimentos físicos. A estrutura de conesde luz que nos dá a relação causal entre os acontecimentosé rígida, isto é, é a mesma em todos os pontos do espaço-tempo e para todos os observadores, sejam estes inerciaisou acelerados. Note-se que os observadores aceleradospodem não ter acesso a todos os acontecimentos físicos. Na

relatividade geral o espaço-tempo é geralmente curvo,adquirindo um carácter dinâmico que lhe permite descrevero comportamento das partículas materiais e da luz napresença de uma dada distribuição de matéria. Comoconsequência, a estrutura de cones de luz varia de pontopara ponto (Fig.7). A curvatura do espaço-tempodesempenha nesta teoria um papel equivalente ao da forçagravítica na teoria de Newton, adquirindo o carácter dinâmicode interacção com a matéria. Nas palavras do físico americanoJohn Wheeler, a matéria diz ao espaço como deve curvar ea geometria (curvatura) diz á matéria como se deve deslocar.O espaço-tempo da relatividade geral reduz-se, obviamente,ao espaço-tempo plano da relatividade restrita nas regiõessuficientemente afastadas das distribuições de matéria eenergia.

UMA TEORIA MÁGICA

"É tal a magia desta teoria que quase ninguém que acompreenda adequadamente lhe consegue escapar".

Albert Einstein

Enquanto preparava um longo artigo de revisão em1907, sobre a sua teoria da relatividade restrita, Einsteincomeçou a interrogar-se sobre a forma de modificar a teorianewtoniana da gravitação de modo que as suas leis pudessemconciliar-se com a nova teoria. Nos anos que se seguiramEinstein continuou esta pesquisa sózinho até que em 1913beneficiou da colaboração de Marcel Grossmann que oajudou a desvendar os mistérios da geometria riemanniana.Juntos produziram dois artigos, o último dos quais foipublicado em 1915. Na sua forma final a teoria foi construidaunicamente por Einstein e publicada na revista BerlinerBerichte num conjunto de quatro artigos com datas de 4,11,18 e 25 de Novembro de 1915.

Os dez anos seguintes foram anos de recepção,afirmação e sucesso da teoria. Em 1918 surgiram os primeirosdois livros devotados à relatividade geral, um em Londrespor Eddington, e outro em Berlim por Herman Weyl. A 29de Maio de 1919 o encurvamento dos raios luminososrasando o Sol foi medido na Ilha do Príncipe e no Sobral(Brasil) durante um eclipse solar, graças ao zelo de Eddingtone do Astrónomo Real britânico Frank Dyson. As previsões dateoria de Einstein foram publicamente confirmadas no famosoencontro da Royal Society em Londres a 6 de Novembro de1919. No dia seguinte, no cabeçalho do jornal londrino Timespodia ler-se: "Revolução na Ciência/Nova Teoria doUniverso/Ideias Newtonianas Abandonadas".

A Primeira Guerra Mundial tinha terminado. O mundoestava cansado e desiludido, e à procura de novos ideais. Ateoria de Einstein com as suas ideias bizarras sobre a curvaturado espaço (- tempo) captou a imaginação da opinião pública,embora muito poucas pessoas a compreendessem.Apareceram então inúmeros artigos de divulgação em jornaise em revistas filosóficas que entusiasmaram o público cultoe tornaram a relatividade num tema de conversação

Foto 4- Primeira página do artigo de Einstein no vol. 49 (1916) de Annalender Physik; a tradução portuguesa faz parte da colectânea “O Princípio daRelatividade”, editada pela Fundação Gulbenkian.

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obrigatório. O próprio Einstein escreveu um longo artigo noTimes em finais de 1919, procurando explicar a teoria aosleigos. Na capa da revista noticiosa Berliner Illustrirte de 14de Dezembro de 1919 a sua fotografia é publicada com alegenda: "Uma nova grande figura da história mundial".Einstein torna-se então um pensador célebre em todo omundo e a sua opinião é solicitada para os mais variadosassuntos. Os Estados Unidos recebem-no com pompa ecircunstância e o seu nome passa a ser pronunciado comreverência, acabando por adquirir o significado do génio.Nem todos, porém, aplaudiram o triunfo de Einstein. Algunsmembros da comunidade científica e outras pessoas movidaspor razões mais políticas do que científicas moveram-lheuma guerra sem quartel, afirmando que a sua teoria eratotalmente incompreensível e inútil.

Ironicamente, enquanto a lenda de Einstein e da suateoria crescia, a investigação em relatividade geral tornava-se estéril e estagnava. Na opinião da maioria dos físicos, noperíodo entre 1925 e 1955 - grosso modo - a teoria marcoupasso.

"Lembro-me que durante a minha lua demel em 1913, levava na minha bagagem algunsexemplares dos artigos de Einstein que meabsorveram durante horas, para grandeconsternação da minha mulher. Essesartigos pareceram-me fascinantes, masdifíceis e quase assustadores. Quando reen-contrei Einstein em Berlim em 1915 a teoria tinhasido aperfeiçoada e coroada com a explicaçãoda anomalia do periélio do Mercúrio, descobertapor Leverrier. Compreendi-a então, não só graçasàs publicações mas também através dasnumerosas discussões com Einstein - o que tevecomo efeito que eu decidisse nunca mais em-preender qualquer trabalho nesse campo. Osfundamentos da relatividade geral pareceram-me então, e ainda hoje, o maior feito do pen-samento humano sobre a Natureza, a mais

espantosa associação de penetração filosófica, deintuição física e de habilidade Matemática. Masos seus laços com a experiência eram ténues.Isso seduziu-me tal como uma grande obra dearte que se deve apreciar e admirar à distância".

Esta foi a forma como o físico alemão Max Born, duranteo primeiro congresso de relatividade geral realizado emBerna em 1955, evocou as suas relações com a teoria deEinstein. Este texto, melhor que qualquer longo preâmbulo,descreve em grossas pinceladas o verdadeiro lugar darelatividade geral enquanto teoria física na instituição científicaentre o princípio dos anos vinte, altura em que a teoria éreconhecida, e o início do seu renascimento que se podesituar, simbolicamente, em 1955 - ano da morte de Einstein.Das palavras de Born ressaltam três aspectos que gostariade analisar mais permenorizadamente: a beleza, a dificuldadee a fraca ligação com a experiência.

"A teoria da relatividade exerce uma atracção singularpor causa da sua consistência interna e da simplicidade dosseus axiomas" escreve Einstein no prefácio do livro do seucolaborador P. G. Bergmann - Introduction to the Theory ofRelativity. Simplicidade lógica , tal é uma das palavras chaveda questão relacionada com a escassez de parâmetros, oque segundo Karl Popper implica a alta improbabilidade apriori duma teoria científica ou ainda a sua granderefutabilidade. Na verdade, a relatividade geral, como nãopossui parâmetros livres - com excepção da constantecosmológica Λ, que não é um parâmetro essencial da teoria- tem pouca elasticidade para fazer face a numerosos testesexperimentais ou observacionais. É uma teoria extra-ordinariamente rígida e altamente refutável, ao contrário daschamadas "teorias alternativas" do campo gravítico, quedispõem de parâmetros "ajustáveis" aos resultados deobservação. Neste sentido, a relatividade geral é uma boateoria segundo Popper.

Parte da magia desta teoria reside precisamente na belezada sua consistência interna, o que leva muitos relativistas aconsiderá-la como o modelo por excelência de teoria física.Assim será ela considerada por Bergmann "o mais perfeitoexemplo de teoria do campo até agora conhecido", paraHermann Weyl é "um dos mais belos exemplos do poderdo pensamento especulativo" e, segundo Paul Langevin,"não temos actualmente nada que se lhe possa comparardo ponto de vista [físico], e menos ainda do ponto de vistada beleza interior, da necessidade lógica e da fidelidade aoque a física deve ser, uma construção lógica sobre uma baseexclusivamente experimental".

Mas alguns relativistas não esquecem o essencial. Porexemplo, Lanczos recorda-nos que: "Nem a harmonia interna,nem a satisfação que uma tal teoria oferece podem servirde critérios da sua validade. Trata-se só de saber quais sãoas consequências que se podem tirar para a observação ecomo estas consequências podem ser verificadas pelaexperiência. A teoria da relatividade geral não desempenhaaqui um papel diferente de qualquer outra teoria". É, portanto,conveniente distinguir entre a validade da teoria e a satisfação

Foto 5- Nova York, 1921: “Pior do que se poderia imaginar. Enxames dereporteres... além de um exército de fotógrafos, que se precipitavam sobremim como lobos esfaimados”.

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lógica que a sua harmonia interna produz nos seuspraticantes. Porém, isso nem sempre aconteceu. Por exemplo,Bergmann ao introduzir no seu livro o capítulo sobre os"testes experimentais" escreve, "os argumentos maisconvincentes a favor da teoria da relatividade geralpermanecem, contudo, até ao presente teóricos". E o próprioEinstein escreve em 1930, "Não considero que o principalsignificado da teoria da relatividade geral seja a previsão dealguns pequeníssimos efeitos observáveis, mas antes asimplicidade dos seus fundamentos e a sua consistência"Como se podem compreender estas posições? Tratar-se-áde um entusiasmo mal controlado dos defensores da teoria?É possível encontrar uma explicação plausível. Assim, é maisrazoável pensar que as afirmações anteriores foramproduzidas numa atitude defensiva que procuraimplicitamente compensar a falta de argumentos da teoria darelatividade geral no plano empírico, e que embora não dêà estrutura interna um papel prioritário, tende a fazer ressaltaros aspectos teóricos. Einstein estava aparentementeconvencido da validade da relatividade geral e acreditavaque as experiências confirmariam o que ele já conhecia.

Por vezes o tema da estrutura lógica da teoria de Einsteindesliza para uma discussão sobre a estética da relatividadegeral. Elegância, harmonia, beleza interior, todas juntas oucada uma de per si, é a expressão da sedução que a teoriaexerce sobre os seus praticantes que não escondem o prazerque encontram numa teoria bem estruturada. Efectivamente,se os relativistas retornam tão frequentemente a este temada estética, é sem dúvida porque a relatividade geral éverdadeiramente bela e eles são tão sensíveis à sua beleza.Porém, Einstein nunca gostou que se falasse da elegânciada teoria nem recorreu a conceitos estéticos para a classificar.Os aspectos que lhe eram caros eram a simplicidade e aconsistência interna. Embora se possa interpretar esta atitudedos relativistas de valorizar os aspectos teóricos como umacompensação para a escassez de resultados experimentais,deve reconhecer-se que o prazer estético é a justo título umarazão suplementar para trabalhar em relatividade, tanto maisque esta é uma área onde a magreza dos resultados concretosdificilmente justifica por si só o empenhamento dos seuspraticantes.

Deve reconhecer-se que o argumento estético é umaarma de dois gumes e algumas vezes foi usado sob umaforma pejorativa. Como dizia o astrofísico relativistaSubrahmanyan Chandrasekhar num artigo sobre a história dadisciplina, "a descrição do trabalho de Einstein como umaobra de arte é muitas vezes a máscara sob a qual os físicosse escondem enquanto negam a pertinência da relatividadegeral para o avanço da fisíca". É uma constatação que seapoia por exemplo na frase de Rutherford: "Para além dasua validade, a teoria da relatividade geral só pode serconsiderada como uma magnífica obra de arte". Assim, é aonível da sua fecundidade, e "para além da sua validade", quea relatividade geral é condenada. Pois se a relatividade geralnão passa de "uma obra de arte", é porque os seus praticantessão artistas que produzem ideias, talvez magníficas, masmuito pouco úteis. Uma acusação mais moderada feita por

alguns físicos aos seus colegas relativistas é a de osconsiderarem matemáticos pois nenhuns outros cientistassão sensíveis à estética.

A teoria de Einstein foi considerada por vários cientistascomo sendo de muito difícil acesso. É conhecida a bazófiade Eddington, contada por Chandrasekhar, a propósito domito que se criou em torno da dificuldade da teoria. À saidade um encontro onde foi apresentar os resultados daexpedição que tinha ido observar o eclipse de 1919, umcolega comentou "Professor Eddington, você deve ser umadas três pessoas no mundo que compreende a relatividadegeral!", Eddington fez um ar pensativo mas manteve-se calado.O colega insistiu, dizendo, "Não seja modesto, Eddington."Eddington replicou, "Pelo contrário, estou a tentar descobrirquem é a terceira pessoa". Em geral, foram físicos muitorespeitáveis que se referiram explicitamente a esta questão.Podemos citar os nomes de Born, Paul Ehrenfest, Max vonLaue e J. J. Thompson entre os que fizeram declarações quecontribuiram para a reputação de incompreensibilidade destateoria. Note-se a este propósito que, como dizia Born, setrata "de uma teoria nova, revolucionária. É necessário umesforço para assimilá-la". Acrescente-se que é uma teoriaque utiliza uma maquinaria matemática que até aquela datanunca tinha sido usada em física e que, portanto, exigia uminvestimento particular que nem todos estavam preparadospara fazer.

Este facto explica em parte o isolamento da relatividadegeral que nos anos até ao seu renascimento desenvolverálaços infinitamente ténues com as restantes teorias físicas.Falta acrescentar que na vanguarda dos seus desen-volvimentos a relatividade geral porá - como qualquer outrateoria - aos seus especialistas problemas bastante difíceis esão muitos os relativistas que se lamentam deste facto. Esteaspecto deve relacionar-se com a questão da fecundidadeda teoria. Deve também ter-se em conta nesta apreciaçãoas dificuldades conhecidas no campo observacional bemcomo as desvantagens desta teoria face às outras.Efectivamente, ao contrário da teoria newtoniana que tevepela frente um campo de acção quase virgem, ou darelatividade restrita e da mecânica quântica que encontraramsituações bem mais simples, o quadro em que se desenvolveua relatividade geral foi mais limitado e complexo. Mas é claroque as dificuldades que a teoria afrontou não têm muito aver com a sua pretensa incompreensibilidade.

Pode concluir-se que a suposta incompreensibilidadeda teoria de Einstein não é mais que o reverso da sua fracafertilidade, o golpe baixo dos que não tendo o desejo deinvestir nela, não tendo nela nenhum interesse próprio, ecomplexados por não a compreender realmente acusam-nade ser uma teoria incompreensível. É uma acusaçãoenvenenada que visa a clausura da teoria e dos seus espe-cialistas fechados numa linguagem hermética. O tema dadificuldade é, portanto, utilizado de uma maneira análogaao da estética. Assim, a fraca ligação que a relatividade geralmantém com os "verdadeiros" problemas da física colocam-na por algum tempo, do lado da arte pela arte. Mas convémsalientar que, ao longo da sua história, a relatividade geral

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nunca foi seriamente posta em causa e acabou sempre porse revelar mais respeitável e melhor no campo dasobservações que todas as outras concorrentes. Mesmo assimos relativistas são unânimes em deplorar as dificuldadesassociadas à observação - e não experimentação - dos efeitosprevistos pela teoria, que limitam seriamente a repetição eo controle dos testes que a permitem verificar. Este é umtema recorrente na literatura relativista e uma preocupaçãolancinante do próprio Einstein. Entre o eclipse de 1919 e aexperiência de Pound e Rebka em 1960, que marca o iníciodo renascimento da teoria, apesar das numerosas tentativasque foram feitas para aplicar a relatividade geral a outrosproblemas, como a aceleração da Lua, o deslocamento daórbita de Marte, os efeitos de lente gravitacional, o movimentodo periélio da Terra, sem falar do campo cosmológico, oestatuto empírico da teoria manteve-se limitado aos três testesclássicos: o avanço do periélio do Mercúrio, o encurvamentodos raios luminosos e o deslocamento das riscas espectrais.Para isso contribuiram as limitações tecnológicas da época,por um lado, e por outro a enorme proximidade da teoria deNewton, que após dois séculos de hegemonia, só deixa àssuas concorrentes uma margem ínfima para se afirmaremempiricamente. Neste sentido, pode dizer-se que arelatividade geral reformulou a física clássica e, em particular,revolucionou a gravitação sem dispor de um verdadeirocampo próprio acessível. Isto colocou-a numa posiçãodesconfortável, pois isolou-a do resto da física ao mesmotempo que a tornou uma referência obrigatória dos filósofosda ciência e a afastou do centro de interesse dos físicos.

No congresso de Berna de 1955, das trinta e quatroconferências só uma será reservada aos resultados

observacionais. Na homenagem que J. R. Oppenheimerescreve na revista Reviews of Modern Physics por altura damorte de Einstein lê-se:

" Nos quarenta anos que decorreram [estes trêstestes] permanecem a principal e, com umaexcepção, a única ligação entre a relatividadegeral e a experiência. A excepção reside no campocosmológico".

É já no final dos anos cinquenta que este quadro começaa sofrer uma inversão e entre aqueles que para issocontribuiram avulta o nome do físico americano RobertDicke. Dicke chega à relatividade com a firme intenção deremeter a teoria de Einstein ao campo experimental edenuncia com vigor "a indigência da prova experimental" ecomo "uma coisa aflitiva [...] a falta de contacto com aobservação e com os factos experimentais". É neste quadroque se pode compreender o entusiasmo e a esperançaprovocados pela experiência de Pound e Rebka que, graçasao efeito de Mossbauer recentemente descoberto, vemverificar - a 1%! - o terceiro teste. No ambiente de euforiaque rodeou esta boa nova A. Schild dirá no American Journalof Physics:

"Eis que se aproximam dias excitantes: ateoria da gravitação de Einstein, a sua teoria darelatividade geral de 1915, passou do reino damatemática ao da física. Após 40 anos dereduzidos resultados astronómicos, novasexperiências terrestres se revelam possíveis e estãoa ser projectadas".

O RENASCIMENTO DA RELATIVIDADE GERAL

Depois de ter sido considerada durante muito tempouma teoria difícil e esotérica, sem aplicação aos restantesdomínios da física, limitada a descrever pequenas correcçõesà teoria da gravitação de Newton, a relatividade geral tornou-se finalmente uma teoria popular, tendo ganho hoje umlugar seguro entre os curricula dos cursos de física e dematemática da maioria das universidades.

Este êxito retumbante foi naturalmente suscitado pelosimportantes desenvolvimentos teóricos iniciados nos anos60, bem como pelas retumbantes observações astronómicasque se verificaram no mesmo período. Foi a combinaçãodestes dois tipos de contribuições que provocou umverdadeiro renascimento da relatividade geral, ao mesmotempo que se reforçou a sua aplicação à Astrofísica e àCosmologia.

Vejamos quais os desenvolvimentos experimentais eteóricos que mais contribuiram para o renascimento darelatividade geral.

A 9 de Março de 1960, o corpo editorial do periódicocientífico Physical Review Letters recebe o artigo de Pound eRebka, intitulado "O Peso Aparente dos Fotões". O artigodescreve a primeira medida laboratorial bem sucedida da

Foto 6 - Primeira página do artigo de R. V. Pound e G. A. Rebka, emPhysical Review Letters (1960).

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mudança de frequência ou do comprimentos de onda daluz por influência do campo gravítico da Terra.

Alguns meses mais tarde, no número de Junho de 1960da revista científica Annals of Physics surge um artigoassinado pelo físico-matemático inglês Roger Penroseintitulado "Tratamento Spinorial da Relatividade Geral".Embora se tratasse de um artigo com um formalismomatemático pesado, delineava uma técnica de cálculoextremamente elegante para resolver alguns problemas derelatividade geral. Este foi um dos primeiros passos dados nosentido de tornar mais simples muitos dos morosos ecomplexos cálculos relativistas.

Ainda no ano de 1960 têm início as observações levadasa cabo pelos astrónomos americanos Thomas Mathews eAllan Sandage, com o telescópio de 200 polegadas de MontePalomar na Califórnia, da fonte de rádio 3C48 (objectonúmero quarenta e oito do terceiro catálogo de Cambridgede fontes de rádio). Estavam interessados em estudar aradiação visível emitida por esta fonte e, para isso, tiraramuma chapa fotográfica da zona do céu à roda da 3C48.Esperavam encontrar um enxame de galáxias com alocalização da fonte de rádio, mas não foi isso que observam.A análise da chapa fotográfica parecia indicar que o objectoafinal tinha as dimensões de uma estrela, mas não era umaestrela vulgar, pelo menos nada comparável a qualquerestrela conhecida. O seu espectro tinha cores bastanteinvulgares, e apresentava grandes e rápidas variações debrilho. Era pois uma fonte de rádio, que parecia do tipo"estelar" (apesar das estrelas ordinárias não serem fontesintensas de rádio) mas que pelo tipo e variabilidade do seuespectro não parecia ser exactamente uma estrela. Daí quefosse designada fonte de rádio quase estelar ou quasar.

A descoberta dos quasares catapultou a relatividade geralimediatamente para a fronteira da astronomia. Foramentretanto descobertos objectos semelhantes, como o 3C273.E em 1963 Martin Schmidt do Observatório de Monte Wilsondescobriu que as riscas do espectro de emissão do 3C273apresentavam um deslocamento de 16 por cento no sentidodos comprimentos de onda mais altos. Para o 3C48 foimedido posteriormente um deslocamento para vermelhoainda maior, da ordem dos 30%, Em 1929, Edwin Hubbletinha anunciado que as galáxias distantes se afastam comvelocidades proporcionais às suas distâncias. Este sistemáticodeslocamento para o vermelho no espectro das galáxiasdistantes é ainda hoje interpretado como uma expansão doUniverso. Os grandes deslocamentos para o vermelho dosespectros dos quasares mostram que eles se afastam de nóscom grandes velocidades, cerca de 30 por cento davelocidade da luz no caso do 3C48, a que corresponde umadistância da ordem de 6 biliões de anos-luz. Estando osquasares tão distantes seria de esperar que fossem objectoscom fraco brilho. Mas, pelo contrário, os quasares sãoobjectos extremamente brilhantes, tanto na parte visível comona das ondas de rádio do espectro. Portanto, a sualuminosidade intrínseca deve ser enorme. O 3C48 é cercade 100 vezes mais luminoso que a nossa galáxia.

Qual a origem de uma fonte tão poderosa? Como se

explicam as suas rápidas variações de brilho? À escalacósmica, a gravidade é a interacção dominante, por isso éprovável que a resposta a estas perguntas esteja na existênciade campos gravitacionais extraordinariamente intensos, oque pode implicar concentrações imensas de massa, talvezcom milhões de vezes a massa solar, confinadas a uma regiãodo espaço que não deve ultrapassar uma hora-luz(aproximadamente igual ao diâmetro da órbita de Júpiter).

A descoberta dos quasares deu origem à criação de umanova área da física. Em Dezembro de 1963, em Dallas , Texas,teve lugar o primeiro simpósio sobre esta nova disciplinadesignada Astrofísica Relativista. Para esta conferência foramconvidados astrónomos, físicos e matemáticos, de modo aproporcionar um debate alargado, capaz de reunir asexperiências e os conhecimentos diversificados destas trêsáreas do saber. Segundo o testemunho de alguns dos seusparticipantes, a atmosfera reinante era de grande nervosismoe excitação. Em parte pelo recente assassinato do presidenteJohn Kennedy, mas em boa medida porque se tratava deuma experiência nova de comunicação entre cientistas deáreas diferentes e porque se vivia então um período degrande euforia científica.

Alguns tempo mais tarde, no final do ano de 1967, osastrónomos da Universidade de Cambridge Jocelyn Bell eAnthony Hewish descobriram um novo tipo de estrela,chamada pulsar devido à emissão regular de impulsos derádio. Pensa-se que os pulsares são estrelas imensamentecompactas, tão densas que os seus diâmetros não ultrapassampoucas dezenas de quilómetros, e que podem rodar muitasvezes num segundo. A compactificação nestas estrelas é tãogrande que destroi os seus núcleos e os reduz a um mar deneutrões. Daquilo que se conhece da matéria nuclear, estasestrelas de neutrões parecem encontrar-se à beira de umespectacular acidente catastrófico. A gravidade à superfícieda estrela é tão intensa, que se uma estrela de neutrões tiveruma massa maior que três massas solares será incapaz deencontrar uma estrutura de equilíbrio, colapsando numafracção de segundo e desaparecendo totalmente do Universo.

A explicação deste intrigante fenómeno reside na violentacurvatura do espaço que traduz a crescente intensidade dagravidade numa estrela em colapso. À medida que o raioda estrela se reduz , a curvatura do espaço à superfície daestrela rapidamente se torna suficientemente forte paraencurvar os raios luminosos e retê-los em torno da estrela.Quando nem a própria luz consegue escapar ao campogravítico da estrela esta transforma-se num verdadeiro buraconegro no espaço. No interior do buraco negro, a matériacontinua a ser inexoravelmente atraída para o centro doburaco: nenhuma força do Universo parece ser capaz deparar este processo de colapso.

Os buracos negros são sem dúvida objectos de estudofascinantes. Mas foram muito mal compreendidos durantemuito tempo. Quando Chandrasekhar desenvolveu em 1931a sua teoria das "anãs brancas", mostrando que estas estrelasnão poderiam ter uma massa superior a 1,4 massas solares,encontrou muita oposição por parte de Eddington. Emboraa teoria das anãs brancas não se baseie na relatividade geral,

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depende com certeza da interacção gravitacional. Eddingtonpercebeu claramente que uma consequência dessa teoriapara as estrelas com massa suficiente era a inevitabilidadedo colapso. com formação de uma singularidade do espaço-tempo, isto é, um ponto onde a curvatura se torna infinita etodas as leis são violadas. Eddington considerava isto umabsurdo e portanto atrasou muito a aceitação da teoria dasanãs brancas entre astrónomos e astrofísicos.

Em 1933 J. R. Oppenheimer e H. Snyder calcularam ocolapso de um fluido esfericamente simétrico e sem pressãousando as equações de Einstein da relatividade geral.Mostraram que não há nada nas equações de Einstein quepossa evitar o colapso e a formação do buraco negroassociado. Mas, mesmo depois deste resultado, o conceitode buraco negro permaneceu adormecido durante os trintaanos seguintes até à descoberta dos quasares. Há realmentedois factos que contribuiram para a retoma destas ideias. Oprimeiro, relaciona-se com os quasares e com a necessidadede compreender as enormes quantidades de energia emitidapor estes objectos. Para explicar os intensos camposgravitacionais responsáveis pela produção de energia, EdwinSalpeter da Universidade de Cornell recorreu aos objectosestudados por Oppenheimer e Snyder. O segundo facto foia descoberta em 1963 de uma solução das equações deEinstein por Roy P. Kerr. Kerr recorreu a um conjunto desofisticadas técnicas matemáticas que exploram os princípiosde simetria na pesquisa de novas soluções das equações de

Einstein. Quando Kerr apresentou a sua comunicação noprimeiro simpósio do Texas em Astrofísica Relativista, poucospuderam acompanhá-lo devido à complexidade dos cálculosenvolvidos. Mas hoje sabe-se que a solução de Kerr é a únicasolução para um buraco negro em rotação e a solução obtidapor Schwarzschild em 1916, dois meses após a publicaçãoda teoria de Einstein, é simplesmente um caso particular dasolução de Kerr quando não há rotação.

Envolvidos com o problema dos quasares, os astrofísicosrelativistas consumiram os dez anos seguintes provando estae muitas outras características das soluções de Schwarzschilde de Kerr. Por exemplo, sabia-se que a geometria deSchwarzschild apresentava um comportamento patológicojunto do chamado raio gravitacional, R = 2GM/c 2,correspondente às dimensões do buraco negro. E umasituação semelhante ocorria com a geometria de Kerr. Ficouentão provado que estes problemas eram causados por umamá escolha de coordenadas. Contudo, isso não alterou ofacto da superfície correspondente ao raio gravitacional,também conhecido por raio de Schwarzschild, possuir umapropriedade especial. Foi-lhe dado o nome de "horizontede acontecimentos" porque essa superfície funciona comouma membrana que deixa passar a informação num sósentido: para um observador exterior, todos osacontecimentos com R < 2GM/c2 são completamenteinacessíveis. Foi esta característica do horizonte deacontecimentos que levou John Wheeler a introduzir o termo

Foto 7- Flutuações de temperatura na radiação cósmica de fundo - Dados obtidos nos três comprimentos de onda (3,3, 5,7, e 9,6 milimetros) pelo COBEdurante o primeiro ano de observação foram combinados na produção deste mapa de temperatura do céu. O mapa está em coordenadas galácticas, nasquais o plano da Via Láctea seria na horizontal central (embora todos os dados da Via Láctea tenham sido retirados). O centro da nossa galáxia estaria nocentro da fotografia. As regiões em rosa e em vermelho estão a temperaturas ligeiramente mais altas, e as regiões a azul claro estão a temperaturas ligeiramentemais baixas do que as regiões a azul escuro que estão à temperatura média da radiação cósmica de fundo. As variações de temperatura são da ordem dosmicrokelvin (30 milionésimos do grau) e a radiação de fundo tem uma temperatura média característica de 2,73 kelvin. As regiões mais quentes correspondema áreas onde a densidade do gás é ligeiramente menor, e as regiões mais frias têm densidade ligeiramente maior.

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buraco negro, durante uma conferência realizada em NovaIorque em 1967.

Para um observador que se encontre bastante afastadodo horizonte, a única característica detectável do buraconegro é o seu campo gravítico. Este não se distingue docampo produzido por qualquer outro objecto com a mesmamassa e momento angular. Porém, para um observadorpróximo do horizonte surgem fenómenos muito estranhos.O encurvamento dos raios luminosos pode ser tão grandeque a luz pode ficar retida em torno do buraco seguindouma órbita circular, com um raio R = 3GM/c2 no caso doburaco negro de Schwarzschild. Nos buracos negros de Kerr,a rotação dá origem a um arrastamento dos observadoresem queda livre em torno do buraco tal que, se estes seencontram próximo do horizonte e seguindo uma órbitaequatorial, o arrastamento em torno do buraco torna-se tãoforte que nada poderá evitá-lo. Estas e muitas outrascaracterísticas dos buracos negros foram estabelecidas duranteum período de intensa pesquisa, entre 1963 e 1974, por umconjunto de relativistas famosos que assim muito contribuirampara o renascimento da teoria. Para terminar esta exposiçãonão podemos deixar de referir duas áreas de investigaçãomuito actuais em relatividade: a cosmologia relativista e adetecção de ondas gravitacionais.

A FRONTEIRA ACTUAL DA TEORIA

Há 45 anos atrás, como se percebe pelo que ficou dito,os físicos na sua quase totalidade manifestavam muito poucointeresse pela relatividade geral ou pela interacçãogravitacional. Esta situação começou a sofrer uma suaveinflexão com os acontecimentos dos anos 60.

Nos anos 70 e 80 assistimos por sua vez ao ressurgimentodo paradigma da unificação da física, tão querido a Einsteinnos últimos anos da sua vida, e que dominou muitos dosdesenvolvimentos teóricos verificados nestes vinte anos.Embora esse esforço renovado não se tenha ainda saldadopor um verdadeiro sucesso, deu alguns frutos visíveis entreos quais se destaca a aliança da relatividade geral com afísica das partículas elementares na construção de modeloscosmológicos para o universo primordial.

Os nossos conhecimentos de astronomia não sugeriam,antes dos anos 60, situações no Universo onde a gravidadefosse suficientemente intensa para produzir espaços-tempofortemente curvos. Mas apesar da actual densidade de matériano Universo ser muito pequena (cerca de uma massa solarpor bilião cúbico de ano-luz3) o Universo é muito grande(os actuais telescópios permitem observar distâncias da ordemdo bilião de ano-luz) e toda a matéria nele existente contribuicumulativamente para a curvatura do espaço-tempo.

Desde 1915 que Einstein se deu conta que, a uma escalacosmológica, o efeito cumulativo da curvatura do espaçopodia tornar-se tão grande que alteraria a sua topologia. Vol-temos por um instante aos exemplos bi-dimensionais dados

atrás. Se a curvatura de uma superfície é sempre para omesmo lado e aproximadamente igual por toda a parte, oespaço acaba por se fechar sobre si próprio, como no casoda superfície esférica. Embora numa região suficientementepequena as propriedades geométricas da superfície esféricanão sejam muito diferentes das do plano, a estrutura globalé claramente diferente – a esfera é, como sabemos, umasuperfície com uma área finita, embora não possua qualquerfronteira. Como consequência, é possível tomar o caminhomais curto entre dois pontos (geodésica) e seguir sempreem frente até regressar ao ponto de partida pelo sentidooposto. O modelo de Einstein para o Universo era o análogotri-dimensional da superfície esférica. Contudo, vimos já queexistem outros espaços uniformes tri-dimensionais como oespaço hiperbólico, de curvatura negativa, e o espaçoeuclideano sem curvatura. A determinação da natureza globaldo espaço é uma das tarefas mais importantes da cosmologiamoderna. Porém, a porção do Universo acessível aos maiorestelescópios fixos na Terra, ou aos telescópios espaciais, comoé o caso do Hubble, é demasiado pequena para revelar aestrutura global directamente. Para esclarecer este enigmaé necessário usar uma combinação de teoria e de observação.

Ao medir pequenas variações da temperatura da radiaçãocósmica de fundo, da ordem dos 30 milionésimos do graucentígrado, o satélite americano COBE registou recentementeos sinais deixados nessa radiação por pequenas flutuaçõesde densidade do plasma cósmico, formadas cerca de 300 000anos após o big bang, que se situam nos confins do espaço,a cerca de 15 mil milhões de anos-luz. É presumível queessas flutuações de densidade correspondam a concentraçõesde matéria aglutinadas pela gravidade para formar as galáxiase os aglomerados de galáxias que hoje observamos. Trata-se da maior e da mais antiga das estruturas alguma vezobservadas. Essas manchas de "anisotropia" no brilho daradiação de fundo estendem-se ao longo de uma tira dedimensões colossais, ao pé da qual a "Grande Muralha" degaláxias, descoberta por Margaret Geller e John Huchra em1989, com cerca de 500 milhões de anos-luz, é uma estruturaquase insignificante. A maior das manchas agora descobertacobre um terço do Universo conhecido, ou seja mais de 3biliões de anos-luz.

Para dar uma ideia da enormidade destas distâncias valea pena comparar com a distância da Terra à Lua (cerca de1,25 segundo-luz, ou seja, cerca de 375 mil quilómetros) oucom a distância média da Terra ao Sol (cerca de 8 minutose 20 segundos-luz, aproximadamente 150 milhões dequilómetros). A distância à estrela mais próxima (PróximaCentauro) é cerca de 4,2 anos-luz e a distância do Sol aocentro da Via Láctea é aproximadamente 30 000 anos-luz.

Recordemos brevemente algumas das observaçõesastronómicas que foram determinantes para oestabelecimento do modelo do big bang. A primeira e maisrelevante observação é com certeza a chamada lei de Hubbleque descreve o afastamento das galáxias distantes comvelocidades proporcionais às suas distâncias: v = H(t)d .Nesta fórmula v é a velocidade de recessão da galáxia, d éa distância, e H é a "constante" de Hubble no instante em

3O ano-luz é, como sabemos, a distância percorrida pela luz durante um

ano. Num espaço-tempo plano essa distância é igual a 9,46 × 1015 m.

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que fazemos a obser-vação. É esta lei quepermite atribuir umadinâmica ao Uni-verso e nos leva aafirmar que o Uni-verso actual está emexpansão. É uma leiempírica, mas que sepode deduzir teori-camente no âmbitoda cosmologia relati -vista saída da teoriade Einstein da rela-tividade geral. A par-tir do valor actual daconstante de Hubblepodemos estimar aidade aproximada doUniverso, admitindouma taxa de expansão constante, t

H= 1/H, a que chamamos

"tempo de Hubble". Infelizmente não conhecemos o valorde H com exactidão. As medidas actuais de H fornecem re-sultados compreendidos entre 50 e 100 km por segundo epor megparsec - o megaparsec (Mpc) equivale a 3,26 milmilhões de anos-luz. Por outras palavras, isto significa queuma galáxia que se encontre à distância de 1 Mpc se afastade nós com uma velocidade que pode estar compreendidaentre 50 e 100 km por segundo, consoante o valor de Hque tomarmos.4 Mais precisamente, devemos entender queé o próprio espaço que se expande com essa velocidade nomomento de observação. E quanto maior for a distânciaentre as galáxias maior será a velocidade, sendo estaindependente da direcção de observação. A estes valoresda constante de Hubble corresponde uma idade para oUniverso que se situa entre10 e 20 mil milhões de anos.Assim, é normal adoptar o valor intermédio de 15 mil milhõesde anos para dar uma ordem de grandeza da idade doUniverso. Com base neste cálculo aproximado, podemosafirmar que as manchas de anisotropia agora descobertas sesituam a uma distância de 15 mil milhões de anos-luz. Deve-se notar que o valor de H varia no tempo, e a idade doUniverso não só depende de H mas também do modeloteórico utilizado. Os 15 mil milhões de anos representam,como não podia deixar de ser, um valor grosseiro que dáuma ordem de grandeza da idade do Universo. Acrescente-se que há determinações independentes para a idade dasestrelas mais antigas que fornecem valores compreendidosentre os 13 e os 18 mil milhões de anos.

A descoberta deE. Hubble em 1929— um Universodinâmico em ex-pansão — foi semdúvida uma dasmaiores descobertasdo século. Na altura,já a teoria da rela-tividade geral deEinstein tinha pro-duzido os modelosteóricos capazes dedescrever um Uni-verso em expansão.Mas só nos finais dosanos 40 foram essasideias levadas até àssuas últimas conse-quências por George

Gamow e seus colegas Ralph Alpher e Robert Herman, osquais previram a existência de uma radiação cósmica emequilíbrio térmico, banhando uniformemente o Univer-so com uma temperatura de aproximadamente 5 kelvin (cercade -268 graus centígrados), relíquia de uma época em queo Universo era muito quente e denso. Nasceu assim omodelo hoje conhecido por big bang quente. Aradiação electromagnética de origem cósmica, no domíniodas microondas, previstas pelo big bang seria descobertaem 1964 quase acidentalmente por Arno Penzias e RobertWilson e identificada um ano mais tarde por Robert Dickee James Peebles. Desde então têm sido realizadas inúmerasobservações para determinar rigorosamente o espectro daradiação cósmica de fundo (RCF), para saber se se trata deuma radiação isotrópica (ideal) tipo corpo negro, e obtercom precisão a sua temperatura característica. Essasobservações confirmaram os resultados iniciais de Penzias eWilson: fixaram o valor da temperatura efectiva em 2,7 kelvine mostraram que a radiação era extraordinariamenteisotrópica (quando se observa a radiação em diferentesdirecções concluimos que as variações de temperatura sãoinferiores a 0,0001 do grau centígrado). Este resultadoconstituiu a prova mais sólida a favor do modelo do bigbang. A outra previsão notável deste modelo é a relaçãoentre o hélio e o hidrogénio existentes no Universo.

A missão do COBE foi cuidadosamente planeada emfunção da nossa compreensão actual do Universo. Em Janeirode 1990, dois meses após o início da sua missão, o COBEtinha já coberto 75% do céu e obtido um valor bastantepreciso para a temperatura efectiva da RCF (T = 2,735 kelvin),mas não tinha anda detectado quaisquer sinais de anisotropia.Sabia-se que a sensibilidade do COBE aumentaria de umfactor 10 perto do fim da missão e finalmente chegaram osresultados surpreendentes recentemente noticiados, queconfirmam grosso modo as ideias chave do modelo do bigbang. Em particular, a existência dessas manchas deanisotropia, devidas a flutuações de temperatura, era um

4Muito recentemente foi determinada a distância à galáxia M100, no

aglomerado da Virgem, a partir do Telescópio Espacial Hubble, obtendo-se um valor de cerca de 80 Km/s por Mpc para o valor correspondente daconstante de Hubble. Um valor tão alto dessa constante implica uma idadede 12 biliões de anos para um Universo com uma baixa densidade, e 8biliões de anos para um Universo com uma densidade elevada, no quadrodos modelos de big bang.

Foto 8 - Joseph Taylor e Russel Hulse, físicos distinguidos com o Prémio Nobel de Física de 1993, pelosseus trabalhos sobre pulsares binários.

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requisito indispensável para explicar a formação de estruturasnum Universo espacialmente homogéneo e isotrópico, comoé o modelo do big bang. Um dos maiores obstáculos àaceitação deste modelo era precisamente a sua incapacidadepara produzir as condições necessárias para a formação degaláxias. Concretamente, parecia difícil conciliar a hipóteseteórica de uma grande uniformidade a uma larga escala e anecessidade de concentrações de matéria suficientes pararesistir à expansão do Universo e dar lugar à formação deestruturas. Ultrapassado este obstáculo, foi possível assegurara predominância deste modelo no quadro das teorias queprocuram explicar a origem e evolução do cosmo. O COBEfoi construído para observar as estruturas maiores, mas faltaagora pesquisar as estruturas mais pequenas, correspondentesaos aglomerados e superaglomerados de galáxias. Para issoos astrofísicos e cosmólogos contam com detectorescolocados no Polo Sul e instrumentos lançados em balões-sonda na estratosfera. Espera-se receber em breve o resultadodessas observações, que serão cruciais para testar o chamadoestado inflacionário ocorrido no Universo mais primitivo(cerca de t = 10-35s após o big bang). Uma das previsões dainflação cosmológica relaciona-se com as flutuações dedensidade para pequenas e grandes estruturas. As manchasobservadas pelo COBE estão de acordo com essas previsões.Espera-se que as mais pequenas estruturas também estejam.

A ideia essencial de um Universo em expansão, tendopassado por uma fase extremamente quente durante a qualse produziram por fusão nuclear alguns elementos químicosleves (como o hélio, deutério e lítio), é uma ideia adquiridaem cosmologia. Esta ideia conduz-nos quase inevitavelmenteà conclusão que esta expansão começou com um big bangalguns 10 ou 20 biliões de anos atrás. O estado do Universoera então muito semelhante ao interior de um buraco negro,embora invertido no tempo. Neste quadro, o Universoemergiu aparentemente duma singularidade antes da qualnem o espaço nem o tempo existiam. Por outro lado, a ideiade uma fase inflacionária durante a qual o Universo seexpandiu aceleradamente também parece ser uma ideia queviverá connosco ainda por muito tempo. Há muitos"pormenores" ainda por clarificar e há certamente váriasteorias mais ou menos complicadas que podem incorporaresta ideia base de um Universo em expansão.

Dos problemas por esclarecer devemos mencionar queainda não dispomos de uma teoria convincente para aformação das galáxias, e é bem possível que a maior parteda matéria existente no Universo (matéria negra, não visível)não tenha ainda sido detectada. Há bons indícios daexistência dessa matéria negra, que se julga actualmentenecessária para compreender os mecanismos de formaçãodas galáxias e, no caso dos indícios se confirmarem, essamatéria negra será determinante para a evolução futura doUniverso. Permanecem ainda por desvendar inúmerosmistérios e, entre eles, os momentos iniciais do Universo,anteriores às primeiras estruturas agora observadas, são semdúvida um tema apaixonante que continua a ser investigado.

A atribuição do Prémio Nobel da Física de 1993 a JosephTaylor e Russel Hulse da Universidade de Princeton pela

sua descoberta do pulsar binário PSR 1913 + 16 põefinalmente um sinal de aprovação na teoria da relatividadegeral. É caso para citar o aforismo popular: mais vale tardedo que nunca!

A teoria da relatividade de Einstein revolucionou osnossos conceitos de espaço, de tempo e de universo. Noentanto, o prémio Nobel da Física nunca tinha sido antesatribuido a um trabalho tão directamente relacionado coma relatividade geral. Em 1921 Einstein recebeu o prémioNobel da Física pelo seu trabalho sobre o efeito fotoeléctricoe não pela relatividade. Parte do problema ficou a dever-seao facto da teoria ser difícil de testar, e historicamente osJúris do Nobel parecem preferir premiar trabalhos que tenhamtido confirmação experimental.

Até 1974, o sistema solar era o laboratório por excelênciada relatividade geral. Porém, a descoberta do pulsar bináriono Verão de 1974 mostrou como certos tipos de sistemasastronómicos distantes podem fornecer laboratórios deprecisão para testar a relatividade geral. O sistema estudadoé constituido por um pulsar com um período de 59 × 10-3se com um período orbital de cerca de 8 horas em torno deum companheiro que não foi ainda directamente observado,mas que se crê tratar-se de uma estrela de neutrões "morta".A inesperada estabilidade do "relógio" do pulsar e a limpidezda órbita permitiram a Hulse e Taylor e seus colaboradoresdeterminar os parâmetros do sistema com grande precisão.O sistema é altamente relativista, como se deduz das relaçõesv

orbital/c ~10-3 e GM/Rc 2 ~10-3que permitem antever

efeitos cinemáticos (como a dilatação do tempo) e efeitosgravitacionais (como o deslocamento espectral para overmelho) significativos. A observação do avanço do periastro(termo correspondente ao periélio) de 4°.22663 ± 0°.00002por ano, e os efeitos associados aos tempos de chegada dosimpulsos (deslocamento gravitacional para o vermelho,dilatação temporal) podem ser usados, assumindo que arelatividade geral é correcta, para determinar as massas dopulsar e do seu companheiro, sendo o resultado m

p= 1.4411

± 0.0007 MO

e mc= 1.3873 ± 0.0007 M

O, onde M

Oé a massa

do Sol.Uma das previsões mais importantes da teoria de

Einstein, ainda não discutida aqui, é a existência de ondasgravitacionais. Embora Joseph Weber da Universidade deMaryland, nos Estado Unidos, tenha comunicado a detecçãode ondas gravitacionais em 1968, nenhum outro investigadorpode confirmar os seus resultados. A opinião generalizadaentre os relativistas era que as ondas gravitacionais nãotinham ainda sido detectadas. Ora, o pulsar bináriodescoberto em 1974 é o laboratório adequado para testar aexistência dessas ondas. Poderá uma massa acelerada radiarondas gravitacionais, da mesma forma que uma cargaeléctrica acelerada radia ondas electromagnéticas? Tal foi aquestão que Einstein tentou responder. Em 1918 Einsteindescobriu soluções das equações da relatividade geral, querepresentam ondas da curvatura do espaço-tempo apropagar-se com a velocidade da luz. A analogia entre asondas gravitacionais e as ondas electromagnéticas tem algumautilidade mas é insuficiente para dar uma ideia precisa deste

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tipo de ondas (Figs. 8 e 9). Uma primeira diferença a salientar:a gravitação é sempre atractiva; a massa, ou "cargagravitacional", tem sempre o mesmo sinal. Como resultadodisto, um "oscilador" gravitacional elementar, constituido porduas massas vibrantes na extremidade de uma mola, nãoradia o mesmo tipo de ondas que duas cargas eléctricas desinais opostos, pois a radiação electromagnética é "dipolar",e a radiação gravitacional é "quadripolar". Uma complicaçãoadicional é que o gravitão, a partícula associada a uma ondagravitacional, transporta uma "carga gravitacional" associadaà sua energia, enquanto o fotão, a partícula que transporta--se a interacção electromagnética, não tem uma cargaeléctrica. Como resultado uma onda gravitacional produzidapor uma massa acelerada é ela própria fonte de gravitação:o gravitão é um grave ou a gravidade gravita! Em termostécnicos dizemos que a gravidade é "não linear". Esta não-linearidade introduz dificuldades consideráveis mesmo nassiuações aparentemente mais simples, como no cálculo docampo gravítico gerado por duas massas em movimento.Ao contrário do que acontece em electromagnetismo, ocampo produzido pelas duas massas não é a soma doscampos produzidos por cada uma das massasisoladamente;temos de ter em conta a gravitação produzidapela interacção das duas massas, que varia à medida queelas se movem. É por esta razão que o chamado "problemados dois corpos", como no caso de um binário de estrelas,para o qual existe uma solução newtoniana fácil de obter, nãopode ser resolvido rigorosamente em relatividade geral.Porém, no caso dos campos gravitacionais razoavelmentefracos a não-linearidade pode ser ignorada, como acontecequando queremos detectar ondas gravitacionais produzidaspor fontes distantes. Mas as equações simplificadas que assimse obtêm não podem ser usadas na exploração de umasupernova ou na colisão de dois buracos negros. Uma terceiradiferença a notar tem a ver com as intensidades relativas.

Dois protões colocados a um centímetro de distância ficamsujeitos aos dois tipos de interacções: gravitacional eelectromagnética. Mas a gravidade que os atrai é 1037 maisfraca que a força electrostática que os repele. Este é oprincipal obstáculo à detecção de ondas gravitacionais. Umbinário de estrelas de neutrões radia energia gravitacionalsuficiente para que os seus efeitos possam ser detectadosindirectamente através da perda de energia indicada peladiminuição do período de revolução orbital.

A medida da taxa de decrescimento do período orbitaldo pulsar binário PSR 1913 ±16 deu em 1979 a primeiracomprovação dos efeitos de amortecimento devidos àradiação gravitacional. Usando os elementos orbitais medidose dispondo dos valores das massas do sistema, obtidas poraplicação da relatividade geral, a fórmula de Einstein do"momento quadripolar" prevê uma taxa de atenuação doperíodo orbital dada por: dP/dt = -2.40243 ± 0.00005 × 10-12.As observações têm agora um rigor melhor que 0,5%, estandodP/dt (obs) = - (2.408 ± 0.011) × 10-12, completamente deacordo com a previsão teórica. Isto é uma prova (indirecta)da existência de ondas gravitacionais, do seu carácterquadripolar e da validade da fórmula da relatividade geralobtida por Einstein.

Hoje conhecem-se cerca de 40 pulsares bináriosemissores rádio. Dois deles, o PSR 1534 +12 que se encontra

Fig. 8 - Cilindro de alumínio atravessado por uma onda gravitacional. Aonda desloca-se numa direcção perpendicular ao papel. Em primeirolugar, as forças de maré da onda comprimem as extremidades do cilindroao mesmo tempo que expandem a região central. A seguir provocam acompressão da região central e a expansão das extremidades.

Fig. 9 - Ondas gravitacionais produzidas por diferentes fontes. a) Bináriode estrelas: ondas regulares com um período bem definido. b) Colapso deuma Supernova dando origem a um buraco negro: verificam-se uns picosde intensidade seguidos por perturbações amortecidas devidas ao buraconegro em formação. c) Fundo de ondas gravitacionais: ruído de fundoproduzido por variadas fontes ou pelo big bang.

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• HARRISON, EDWARD R., Cosmology: The Science of the Universe, Cambridge

University Press, 1981.

• LAGE, E., Espaço, Tempo e Relatividade, Colóquio/Ciências,no 3 (1988).

• HENRIQUES, A. BARBOSA, Espaço, Tempo e Matéria, Colóquio/Ciências,

no 4 (1989).

• PAIS, A. Subtle is the Lord...: The Science and the Life of Albert Einstein,

Oxford University Press, 1980; Tradução portuguesa: Subtil é o Senhor, Gradiva,

1993.

• WEINBERG, S. The First Three Minutes: A Modern View of the Origin of the

Universe, Basic Books, 1977; Tradução portuguesa: Os Três Primeiros Minutos

do Universo, Gradiva, 1987.

• WILL, CLIFFORD M. Was Einstein Right?, Basic Books, 1986; Tradução

portuguesa: Einstein tinha Razão ?, Gradiva, 1989.

SUGESTÕES DE LEITURA

AGRADECIMENTOS

Por ocasião dos setenta e cinco anos da observação do encurvamento dos raios luminosos por Sir Arthur Eddington na Ilha do Príncipe, durante um eclipse

total do Sol, a Fundação Gulbenkian fez deslocar a S. Tomé e Príncipe uma comitiva que participou nas cerimónias de comemoração. Este artigo é um

desenvolvimento da conferência realizada no Centro Cultural Português de S. Tomé, em 27 de Maio de 1994, a convite da Fundação. Agradeço aos Professores

J. Caraça e J. Moreira Araújo esta dupla oportunidade. Agradeço também ao Professor J. Moreira Araújo a leitura atenta da primeira versão deste texto e as

várias sugestões que muito contribuiram para o melhorar. Finalmente quero agradecer à minha mulher, Ana Isabel Simões, os muitos comentários, críticas, e

sugestões que ajudaram a dar forma ao produto final, cuja responsabilidade é apesar de tudo minha.

na nossa galáxia, e o PSR 2127+11C no enxame globularM15, são laboratórios de relatividade altamente promissores.Atendendo à sua enorme precisão e à sua proximidade daTerra, o PSR 1534+12 pode fornecer uma determinação andamais rigorosa da taxa dP/dt do que o valor proporcionadopelo PSR 1913+16.

Além de verificarem a existência de ondas gravitacionaisos pulsares binários permitem a realização de testes darelatividade geral para campos fortes, em contraste com ostestes para campos fracos realizados no sistema solar. Naverdade, como estes sistemas contêm pelo menos uma, mastalvez duas estrelas de neutrões, dispomos assim de camposgravitacionais fortemente relativistas.

Recordando as palavras de A. Schild diremos que, sem

sombra de dúvidas, a teoria da relatividade geral de Einsteinpassou, nos últimos 34 anos, do reino da matemática ao dafísica. Não é mais possível continuar a fazer astrofísica ecosmologia sem recorrer a esse instrumento teórico preciosoque é a teoria da gravitação de Einstein. Ninguém hoje duvidaque a Gravidade é a "força" organizadora do Universo: ainteracção dominante na formação de estruturas (galáxias,estrelas, pulsares e buracos negros) e na dinâmica do Uni-verso no seu conjunto. Mas a investigação nos próximosvinte anos deverá também revelar maior informação dointerior dessas estruturas, através da detecção de ondasgravitacionais, e poderá provar que a Gravidade é a forçaunificadora de todas as interacções físicas.