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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO MESTRADO EM TEATRO MORGANA FERNANDES MARTINS O SOM OUVIDO, VISTO E SENTIDO O repertório sonoro da cena teatral e a dramaturgia sonora dos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi FLORIANÓPOLIS 2011

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

MESTRADO EM TEATRO

MORGANA FERNANDES MARTINS

O SOM OUVIDO, VISTO E SENTIDO

O repertório sonoro da cena teatral e a dramaturgi a sonora dos espetáculos

do Circo Teatro Udi Grudi

FLORIANÓPOLIS

2011

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MORGANA FERNANDES MARTINS

O SOM OUVIDO, VISTO E SENTIDO

O repertório sonoro da cena teatral e a dramaturgia sonora dos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi

Projeto apresentado como requisito para o Exame de Defesa da Dissertação de Mestre em Teatro, Curso de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica. Orientadora: Profa. Vera Regina Martins Collaço, Dra.

FLORIANÓPOLIS 2011

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MORGANA FERNANDES MARTINS

O SOM OUVIDO, VISTO E SENTIDO

O repertório sonoro da cena teatral e a dramaturgia sonora dos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi

Este projeto foi julgado

, em 19 de agosto de

2011.

Profa Vera Regina Martins Collaço, Dra. Coordenador do Mestrado

Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:

Profª Vera Regina Martins Collaço, Dra. Orientadora

Prof. Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de Souza, Dr. Membro

Profa. Maria Brígida de Miranda, Dra. Membro

Profa. Fátima Costa de Lima Dra. Suplente

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Aos que sentem o que ouvem

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha orientadora, Professora Vera Collaço,

pela infinita dedicação e confiança que depositou em mim e na realização desta

dissertação.

Agradeço, com muita honra, aos professores residentes e membros da

banca: Professora Maria Brígida Miranda, que desde o início de minha pesquisa,

ainda na graduação, acompanhou-me lado a lado; a Professora Fátima Costa de

Lima, que, mais do que aulas, me proporcionou inspirações em todos os âmbitos

do meu trabalho.

Agradeço ao membro convidado da banca, Professor Luiz Otávio Carvalho

Gonçalves de Souza, por ter aceitado com grande receptividade a tarefa de

avaliar esta dissertação.

Agradeço ao Professor José Ronaldo Faleiro, um grande mestre para mim.

Agradecimentos especiais a todos os integrantes do Circo Teatro Udi

Grudi, Leo, Beré, Luciano, Marció e Joana, pois novamente me receberam muito

bem em Brasília, e colaboraram generosamente com a realização desta

dissertação.

Agradeço, com muito carinho, à minha companheira Lisa Brito, por estar ao

meu lado em todos os instantes deste processo, desde os mais difíceis

momentos, às mais gratificantes realizações.

Agradeço infinitamente aos meus pais, Maria Salete Fernandes Martins e

Luiz Roberto Martins, por acreditarem sempre em todos os meus trabalhos e pela

ajuda e confiança que depositam em mim.

Agradeço à secretaria do PPGT, especialmente à Mila e à Sandrinha, pela

prestatividade e apoio.

Agradeço à carinhosa Tatiana por ter me recebido em São Paulo durante a

pesquisa de campo, e ao admirável casal, Iremar e Maria Cristina Brito, por terem

me recebido no Rio de Janeiro durante a pesquisa de campo.

Agradeço aos meus amigos, em especial à Claudia Salomoni e a todos que

colaboraram, direta e indiretamente, com a realização deste projeto.

Agradeço a todos que enfrentam o desafio de estudar o som.

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RESUMO

A presente pesquisa tem como principais focos a análise do repertório sonoro no âmbito teatral e como este elemento cênico pode se tornar o condutor da dramaturgia da cena. Essa análise explora diversas vertentes do tema, partindo da importância e das funções do repertório sonoro em meio ao contexto cênico. A explanação dos assuntos levantados é discutida e refletida por meio do estudo realizado sobre o trabalho do Circo Teatro Udi Grudi de Brasília. Esse grupo dedica grande destaque e diversidade aos repertórios sonoros de seus espetáculos teatrais. São três os trabalhos do grupo analisados nesta dissertação: O Cano, O Ovo e A Devolução Industrial. Nos três espetáculos é possível perceber, cada um a sua maneira, que o repertório sonoro é o condutor da dramaturgia da cena. Como sustentação da base teórica deste estudo recorri aos autores Lívio Tragtenberg, Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de Souza e Roberto Gill Camargo, pesquisadores práticos e teóricos a respeito do tema. E para aprofundar a discussão utilizei também as teorias de José Miguel Wisnik e Murray Schafer, autores que discorrem de maneira reflexiva a respeito do som. Palavras-Chave: repertório sonoro, dramaturgia sonora, sonoplastia, composição sonora para teatro.

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ABSTRACT

This dissertation presents an analysis regarding the sonorous repertoire within the theater ambit and how it can become the conductor in a dramaturgy. This analysis runs through the importance and functions of the sound repertoire in the theatrical ambit as well as other aspects of the subject. The explanation on the subject is discussed from a study about the Circo Teatro Udi Grudi from Brasilia. This group is known for its eminence on the sound repertoire as diversity. For this dissertation three plays were analyzed: O Cano, O Ovo e A Devolução Industrial. In all three plays it’s possible to realize that the sound repertoire is the conductor of the scene´s dramaturgy, each one in it´s own way. The following authors were used as reference for the theoretical basis support: Lívio Tragtenberg, Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de Souza e Roberto Gill Camargo. They are theoretical and in practice researchers. The following authors were taken to deepen the discussion: José Miguel Wisnik and Murray Schafer, who write about sound in a reflective matter.

Key words : sound repertoire, sound playwriting, sound design, sonorous composition for theater.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 Planta baixa mapa som Retrato de Augustine p.66

Imagem 2 Marimbau ou Jirimum p. 79

Imagem 3 Beré em O Cano

p. 80

Imagem 4 Beré em O Cano

p. 80

Imagem 5 Beré em O Ovo

p. 81

Imagem 6 Marció, Porto e Beré em O Ovo p. 82

Imagem 7

Beré em A Devolução Industrial

p. 82

Imagem 8

O Panzão

p. 86

Imagem 9

O Panzinho

p. 86

Imagem 10

O Ladrilhê, o Baron e o Gira Sino

p. 87

Imagem 11

As Latas

p. 89

Imagem 12

Polly ou Pet, Blowzão e Reco-Rex

p. 90

Imagem 13

O Original

p. 91

Imagem 14

O Microtônio

p. 91

Imagem 15

O Trombone

p. 92

Imagem 16

O Negão, ou Negão que fugiu do julgo português

p. 93

Imagem 17

Desenho frontal do cenário de O Cano

p. 94

Imagem 18

Mini tambores

p. 95

Imagem 19

Marció com mini corneta de copinho de café

p. 96

Imagem 20

Placas de alumínio com ladrilhos

p. 96

Imagem 21

Apresentação do espetáculo Udi Grudi em ComSerto

p. 97

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Imagem 22

Beré com seu figurino do Lixaranga

p. 98

Imagem 23

Porto com seu figurino do Lixaranga

p. 98

Imagem 24 Marció com seu figurino do Lixaranga p. 99

Imagem 25 Porto, Beré e Marció em O Cano p. 107

Imagem 26 Cenário de O Cano p. 108

Imagem 27 Beré, Marció e Porto em O Ovo p. 118

Imagem 28 Beré, Marció e Porto em O Ovo p. 120

Imagem 29 Beré, Marció e Porto em O Ovo p. 122

Imagem 30 Beré em A Devolução Industrial p. 128

Imagem 31 Joana, Beré e Porto em A Devolução Industrial p. 130

Imagem 32 O elenco e crianças em A Devolução Industrial p. 132

Imagem 33 O elenco e crianças em A Devolução Industrial p. 134

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SUMÁRIO

RESUMO _______________________________________________________06

LISTA DE IMAGENS ______________________________________________08

INTRODUÇÃO ___________________________________________________13

CAPÍTULO 1 – UM POUCO DE TEORIA PARA OUVIR/VER MELH OR O SOM

DA CENA_______________________________________________________18

1.1 CONCEITUANDO REGISTROS E FRAGMENTOS SONOROS __________19

1.2 DIÁLOGO ENTRE ELEMENTOS CÊNICOS E REPERTÓRIO SONORO___21

1.2.1 “Repertório sonoro na cena teatral”: importân cia ________________23

1.3 UMA BREVE PASSAGEM PELOS QUATRO FORMATOS DO ELEMENTO

SONORO: A MÚSICA, O SOM, O RUÍDO E O SILÊNCIO _________________28

1.3.1 O escorregadio conceito de paisagem sonora _________________31

1.3.2 A voz – o som e a palavra __________________________________35

1.3.3 As qualidades do elemento sonoro ____________ _____________36

1.4 FUNÇÕES E POSSIBILIDADES DO REPERTÓRIO SONORO DA CENA__37

1.4.1 A expressividade do som e suas funções na cen a_____________43

1.5 O COMPOSITOR E OS RECURSOS TÉCNICOS_____________________48

1.6 RELATO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO REPERTÓRIO SONORO

DO ESPETÁCULO RETRATO DE AUGUSTINE_________________________52

1.6.1 Descrição da concepção do repertório sonoro d a peça teatral

Retrato de Augustine _____________________________________________53

1.6.2 Repertório sonoro do espetáculo Retrato de Augustine _________63

1.6.3 Informações técnicas a respeito da realização da emissão do

repertório sonoro do espetáculo Retrato de Augustine _________________65

CAPÍTULO 2 – O CONCEITO DE “DRAMATURGIA SONORA” A P ARTIR DOS

ESPETÁCULOS DO CIRCO TEATRO UDI GRUDI _______________________67

2.1 O PONTO DE PARTIDA_________________________________________70

2.2 CIRCO TEATRO UDI GRUDI: UM BREVE RELATO DE UMA LONGA

HISTÓRIA_______________________________________________________72

2.2.1 A segunda visita __________________________________________76

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2.3 OS ATORES / MÚSICOS: UMA SOMATÓRIA DE CONHECIMENTOS ____78

2.4 OS INSTRUMENTOS MUSICAIS QUE COMPÕEM AS CENAS__________84

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS ESPETÁCULOS DO CIRCO TEATR O UDI

GRUDI_________________________________________________________101

3.1 ANÁLISE DESCRITIVA DE O CANO: O SOM COMO PRINCIPAL

CONDUTOR____________________________________________________102

3.1.1 O desenrolar das intrincadas sonoras e cômicas cena s ________102

3.1.2 As ações cênicas em função da construção dos instrumentos

musicais _______________________________________________________106

3.1.3 Os instrumentos musicais como cenário ____________________107

3.1.4 O som cômico __________________________________________109

3.1.5 Parcas palavras e seus efeitos fonéticos sono ros ____________110

3.1.6 As músicas e suas proposições cênicas ____________________111

3.1.7 A paisagem sonora _______________________________________113

3.1.8 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ou vem ____________114

3.1.9 Som de todas as direções espaciais ________________________115

3.2 ANÁLISE DESCRITIVA DE O OVO: O SOM SOBRE AS AÇÕES________116

3.2.1 A produção da galinha dos ovos de garrafas de plástico _______116

3.2.2 Os instrumentos musicais animados de O Ovo_______________121

3.2.3 Os pequenos objetos sonoros que compõe a ceno grafia _______122

3.2.4 A temática social das ruas para a cena ______________________123

3.2.5 Texto não: diálogos fonéticos ______________________________124

3.2.6 As músicas _____________________________________________125

3.2.7 O clima: os efeitos dos sons e das músicas so b auxilio

indispensável da iluminação _____________________________________126

3.2.8 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ou vem ____________127

3.3 DESCRIÇÃO DE A DEVOLUÇÃO INDUSTRIAL: O SOM CRIADOR DE

ATMOSFERA ___________________________________________________128

3.3.1 A evolução devolvida em músicas e palhaçadas ______________128

3.3.2 A construção evolutiva dos instrumentos music ais em meio à

cena__________________________________________________________133

3.3.3 O cenário móvel: os instrumentos musicais em movimento _____134

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3.3.4 Os grandes e os pequenos instrumentos musicai s____________136

3.3.5 Texto não: palavras cantadas ______________________________136

3.3.6 As músicas / o canto _____________________________________137

3.3.7 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ou vem ____________138

3.3.8 Som como diálogo entre os atores __________________________139

3.4 O SOM CONDUZ A DRAMATURGIA?_____________________________140

CONSIDERAÇÕES FINAIS________________________________________142

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _________________________________147

ANEXO: DVD’S DOS ESPETÁCULOS O CANO, O OVO E A DEVOLUÇÃO

INDUSTRIAL

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INTRODUÇÃO

Nenhum som teme o silêncio que o extingue

John Cage

Permita-me, caro leitor, que as primeiras palavras que venho a discorrer

sejam a descrição de uma sensação. Particularmente o ato de escrever o início

de um trabalho acadêmico é algo que sempre enfrento com certa dificuldade

(especialmente neste caso com o peso de uma dissertação). Pelos caminhos das

possibilidades desse início deparei-me com a introdução do meu Trabalho de

Conclusão de Curso (TCC) que desenvolvi no ano de 2007.1 No período em que

desenvolvi o projeto da dissertação tinha total clareza de que recorreria ao meu

TCC em alguns momentos, afinal esta presente pesquisa é continuação não

apenas da monografia e sim de toda a pesquisa que venho desenvolvendo sobre

repertório sonoro na cena2 teatral desde o ano de 2001.

O meu interesse em estudar o som na cena teatral começou em 2001

quando realizei a criação do repertório sonoro do espetáculo 2 da O’ctus Cia. de

Atos3. Porém, meu empenho por esta área esteve presente desde muito cedo. Na

adolescência iniciei o estudo de violão e, a partir daí, o interesse por conhecer

diferentes estilos musicais acarretou em um aprendizado de reconhecimento das

diversas vertentes dessa área.

Para a composição do repertório sonoro do espetáculo 2, período paralelo

ao início de minha graduação em artes cênicas na UDESC, parti do ato de

1 Trabalho defendido sob a orientação da Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda, com o título Música para ver, teatro para ouvir: quando o repertório sonoro se torna a dramaturgia da cena. Como etapa conclusiva do Curso de Licenciatura em Educação Artística - Habilitação em Artes Cênicas, do Centro de Artes, da Universidade do Estado de Santa Catarina. 2 Por uma questão de terminologia justifico a utilização do termo “repertório sonoro na cena”, ao invés do comumente utilizado “sonoplastia”, não apenas por acreditar ser o mais adequado, como também para criar uma identidade própria do tema que adapto à pesquisa que desenvolvo. Maiores detalhes da justificativa dessa terminologia podem ser encontrados ao longo desta pesquisa, como também na minha monografia Música para ver, teatro para ouvir: quando o repertório sonoro se torna a dramaturgia da cena por meio do endereço eletrônico: www.pergamumweb.udesc.br 3 A O’ctus Cia. de Atos é uma companhia de dança contemporânea. Na época, além de bailarina eu era também a responsável pela criação do repertório sonoro dos espetáculos do grupo. Meu período como integrante da O’ctus Cia. de Atos foi de novembro de 2001 a outubro de 2003.

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selecionar músicas que correspondessem com a estética do espetáculo. Durante

este processo percebi que a composição de um repertório sonoro vai muito além

da seleção de músicas para a cena. A partir desta percepção nasceu o desejo de

estudar, na prática e na teoria, as funções e possibilidades do som na cena

teatral.

O meu contato com um trabalho cênico em específico atuou como agente

desencadeador de meus futuros estudos. Em 2005 presenciei em Florianópolis o

espetáculo O Cano, do Circo Teatro Udi Grudi de Brasília, reconheci neste

trabalho uma proposta sonora bastante peculiar e detalhado em meio à cena

teatral. Com o interesse por esta estética, optei pelo Circo Teatro Udi Grudi e pelo

espetáculo O Cano como objetos de pesquisa de minha monografia de Conclusão

de Curso da graduação. Em abril de 2007, de 19 a 22, tive a oportunidade de

participar em Brasília do evento de comemoração relativo aos vinte e cinco anos

de existência do Circo Teatro Udi Grudi. Deste encontro extraí a concepção da

minha monografia e levantei também discussões a respeito do tema repertório

sonoro na cena teatral e suas ramificações.

Três anos se passaram e a aspiração de pesquisar o Circo Teatro Udi

Grudi se manteve por causa da proposta sonora que este grupo incorpora em

seus espetáculos teatrais. Como o objetivo central deste estudo trata da

possibilidade do elemento sonoro se tornar o condutor da dramaturgia da cena,

reconheço nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi que o som em sua cena

carrega essa função. Por meio, então, da cena do Circo Teatro Udi Grudi,

desenvolvo o termo “dramaturgia sonora”. Este termo está apenas citado, porém

não elaborado, pelo músico e pesquisador Lívio Tragtenberg4 em seu livro Música

de cena (2008).

Trabalhei o termo “dramaturgia sonora” na minha monografia de TCC,

porém não o aprofundei enquanto conceito. Nesta dissertação pretendo discuti-lo

com maior profundidade. Além de refletir sobre as teorias de Tragtenberg e

4 Livio Tragtenberg nasceu em São Paulo. Recebeu bolsas de composição de Vitae e Guggenheim Foundation. Escreve música para orquestras, grupos instrumentais e vocais, cinema, teatro, dança, vídeo e instalação sonora. Já recebeu três vezes o Premio de Melhor Trilha Sonora no Festival de Cinema de Brasília, entre outros prêmios. Em 2007 lançou o CD NEUROPOLIS pelo selo SESC com a Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo. Criou a Blind Sound Orchestra. Foi professor de composição musical do Departamento de Música da UNICAMP, na ULM e PUC-SP. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Livio_tragtenberg em 23-05-2007 às 16:35h.

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demais pesquisadores sobre o assunto, pretendo exemplificar as possibilidades

da dramaturgia sonora por meio de descrições e discussões a respeito do

repertório sonoro desenvolvido pelo Circo Teatro Udi Grudi em seus espetáculos.

Para o desenvolvimento dos conceitos teóricos sobre repertório sonoro na

cena teatral, além das teorias elaboradas por Tragtenberg, apóio-me nas

pesquisas de Roberto Gill Camargo5. O autor publicou dois importantes livros

sobre o elemento sonoro no teatro: Sonoplastia no teatro (1986) e Som e cena

(2001). Além de Tragtenberg e Gill Camargo, o professor da UFMG, Luiz Otávio

Carvalho Gonçalves de Souza6 também desenvolveu sua tese pela ECA-USP, em

1999, direcionada ao tema repertório sonoro na cena teatral. Outros materiais

teóricos como dissertações, monografias e artigos também foram analisados para

dar suporte à este estudo. Para reforçar o conteúdo teórico da pesquisa contei

também com publicações de autores como José Miguel Wisnik que, em sua obra

O som e o sentido (2009), reflete sobre a questão sonora presente no quotidiano.

Murray Schafer foi outro teórico de suma importância neste estudo. Este autor

teorizou a respeito do conceito “paisagem sonora” na obra A afinação do mundo

(2001), e pesquisou sobre a diversidade sonora no espaço contemporâneo em

seu livro O ouvido pensante (1991).

O material de análise dessa dissertação foi coletado em pesquisa de

campo que realizei no período de 21 a 24 maio de 2010, em Brasília/DF e em

Jataí/GO. Fui convidada pelo próprio grupo a acompanhá-los em um evento

proposto por funcionários da Receita Federal de Jataí. Os integrantes que

participaram da viagem, Luciano Porto, Marcelo Beré e Márcio Vieira, realizaram

uma apresentação sobre seu trabalho, e não um espetáculo específico. Esta

apresentação, assim como o novo encontro com o grupo, rendeu materiais para a

elaboração do relato e pesquisa de campo dessa dissertação, somado ainda ao

conteúdo que possuo sobre o grupo desde 2007.

5 Roberto Gill Camargo pesquisa sobre iluminação e sonoplastia teatral. É doutor em Comunicação e Semiótica, foi professor de Lighting Design na ESMAE/Instituto Politécnico do Porto em 2004, leciona iluminação no curso de Graduação em Teatro da Universidade de Sorocaba-SP e nos cursos de treinamento aos iluminadores de teatros do SESI-SP. Fonte: www.seminaluz.com/pal_vis.aspx?id=26 em 15 jun 2010. 6 Diretor e pesquisador teatral, doutor em Artes Cênicas pela USP-SP (2000), com estudos sobre direção teatral e sonoplastia. Professor nos cursos de graduação e pós-graduação da Escola de Belas Artes da UFMG, na área de Artes Cênicas. Fonte: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=P68 7359 em 15 maio 2010.

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Entre 24 de maio e 06 de junho de 2010 também realizei pesquisas de

campo. Neste período realizei coleta de material teórico sobre repertório sonoro

na cena teatral em bibliotecas de universidades e instituições públicas de São

Paulo e Rio de Janeiro, especificamente na PUC-SP, UNESP, Centro Cultural

São Paulo e UNIRIO. Houve a tentativa de pesquisar nas bibliotecas

universitárias da ECA-USP e UnB-Brasília, porém ambas encontravam-se em

greve.

Para a escrita desta dissertação divido o trabalho em três capítulos. No

primeiro capítulo elaboro a questão teórica do tema repertório sonoro na cena

teatral. Discuto a importância e as funções do repertório sonoro na cena teatral,

bem como o trabalho do compositor do repertório sonoro e as possíveis etapas do

seu processo de composição. Neste capítulo abordo ainda as possibilidades do

repertório sonoro na cena, focando tanto o sentido estético quanto técnico dessas

possibilidades. Em um subitem desse capítulo, descrevo, como exemplificação, o

processo de construção do repertório sonoro que compus para o espetáculo

Retrato de Augustine (2010).

No segundo capítulo desenvolvo o conceito de “dramaturgia sonora”, a

partir dos trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi. Analiso o termo “dramaturgia

sonora” com relação ao contexto de trabalho do grupo em questão. Aqui exponho

a história do grupo, os processos de criação de seus espetáculos, o trabalho da

diretora Leo Sykes e dos atores de seu elenco e, por fim, a construção e

utilização dos instrumentos musicais do grupo em suas montagens.

No terceiro capítulo desenvolvo uma análise detalhada dos três

espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi selecionados para este trabalho: O Cano

(1998), O Ovo (2003) e A Devolução Industrial (2010). Nesta análise procuro

apontar as possibilidades de exploração e confecção do som na cena a partir dos

focos de análise levantados no primeiro capítulo, e relacionar os três espetáculos

ao termo “dramaturgia sonora”, trabalhado no segundo capítulo.

Dentre diversas funções do som na cena teatral, discuto nesta dissertação

que, quando o repertório sonoro é responsável pela condução da dramaturgia da

cena, várias funções e possibilidades sonoras são exploradas para a cena teatral.

E para apoiar essa afirmativa é que desenvolvo os estudos a respeito dos

espetáculos O Cano, O Ovo e A Devolução Industrial do Circo Teatro Udi Grudi,

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uma vez que a elaboração do repertório sonoro como condutor da dramaturgia da

cena é uma das principais características presentes nos trabalhos deste grupo.

O ato de pesquisar a respeito do repertório sonoro da cena teatral é

relevante pela carência de publicações e bibliografias no Brasil sobre este

assunto. Muitas vezes, o compositor de repertório sonoro encontra-se sem

materiais que possam servir como apoio e base de seu trabalho. São inúmeras as

possibilidades de exploração e criação do repertório sonoro em um espetáculo

cênico, e quanto maior o acesso do compositor ao material teórico que contribua

com sua prática, maior será a diversidade de sua experimentação. Como

compositora de repertório sonoro para a cena teatral deparo-me com a

necessidade de estudar as teorias sobre o tema. Dada a escassez de estudos

sobre o som e a cena, espero que esta dissertação contribua não apenas com o

trabalho prático de compositores de repertório sonoro para a cena teatral, como

estimule pesquisadores a produzirem outros materiais teóricos a respeito deste

tema.

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CAPÍTULO 1 – UM POUCO DE TEORIA PARA OUVIR/VER MELH OR O SOM

DA CENA

A arte, independente de sua vertente, pode atingir seu público por diversas

direções, provocar variadas emoções por meio de qualquer um dos cinco

sentidos. Essa dissertação, produzida no âmbito da pesquisa artística teatral, foca

na questão sonora e o que esta vertente é capaz de oferecer. Para o conteúdo

deste primeiro capítulo desenvolvo a questão do repertório sonoro da cena teatral

como conceito, funções e possibilidades de sua criação. Neste capítulo

estabeleço um arcabouço de pressupostos teóricos e reflexivos que são

fundamentais para a percepção e articulação de meu objeto de estudo, o som e a

cena teatral. Observo, portanto, que a estrutura teórica aqui desenvolvida é

subsidiária para melhor explanação de meu objetivo central de análise, qual seja,

o estudo da dramaturgia sonora nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi.

Num primeiro momento desenvolvo o tema em contexto com os demais

elementos cênicos de uma montagem teatral e o diálogo que esses elementos

podem estabelecer entre si. Em seguida discuto a importância que o repertório

sonoro pode ter em meio à cena teatral. Com o objetivo de esclarecer a respeito

do conteúdo do elemento sonoro, sequencio a dissertação apontando os formatos

sonoros que este elemento compõe. Proponho em seguida o apanhado de

algumas possibilidades sonoras para a cena, assim como funções e

expressividades que o som pode estabelecer quando se coloca em meio à

encenação teatral. A questão do compositor do repertório sonoro e seus recursos

técnicos também é um tema que discuto neste capítulo e, para finalizá-lo,

desenvolvo um relato a respeito do processo de criação do repertório sonoro do

espetáculo Retrato de Augustine, do qual fui compositora.

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1.1 CONCEITUANDO REGISTROS E FRAGMENTOS SONOROS

Ao estudar o elemento sonoro teatral deparei-me com a necessidade de

criar um nome específico para ele, uma vez que percebi que termos como

sonoplastia, trilha sonora, música de cena, dentre outros, não correspondiam

exatamente com o que eu pensava em relação a toda a diversidade e ao universo

sonoro que um espetáculo cênico é capaz de comportar. O termo não tardou a

aparecer, sua origem vem do subtítulo de um capítulo do livro Som e cena (2001)

de Roberto Gill Camargo, intitulado como “Repertório sonoro” (p. 67). Em 2007,

ano em que comecei a teorizar sobre o tema, passei a utilizar o termo “repertório

sonoro da cena teatral”. Acredito que o termo “repertório sonoro” abrange todo e

qualquer tipo de sonoridade executada em cena.

A reflexão de Camargo (2001) a respeito deste termo não condiz com a

denominação do elemento sonoro na cena teatral propriamente dito. No entanto

ele sugere, por meio do subtítulo "Repertório Sonoro", uma reflexão a respeito do

repertório sonoro que cada pessoa carrega consigo, como um registro, uma

memória sonora.

Durante a leitura deste trecho da obra, percebi que a teoria de Camargo

poderia solucionar a questão da denominação e justificativa do termo do elemento

cênico sonoro como “repertório sonoro da cena teatral”. Neste fragmento do livro

o autor reflete sobre a quantidade de registros sonoros que possuímos e que

vamos adquirindo ao longo de nossas vidas por meio de nossas experiências, e

que a junção deles forma o “repertório sonoro” que cada um carrega consigo.

Assim, de acordo com a teoria de Camargo, todos nós possuímos uma série de

registros sonoros ao longo da vida. Ao analisarmos a obra do autor torna-se

possível perceber que estes registros são elaborados a partir de dois aspectos

principais: o lugar onde vivemos (bastante distintos são os registros sonoros de

alguém que vive na cidade, ou de alguém que vive no campo) e o tempo em que

vivemos em num determinado espaço. Evidentemente não registramos

exatamente todos os sons em nosso cérebro como um catálogo e tão pouco

conseguimos imitá-los exatamente como foram registrados em nossa memória

auditiva, porém, há a possibilidade de reconhecê-los quando novamente em

contato com eles (isso depende também da familiaridade com o som ouvido).

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Quando nos colocamos em lugares ainda não vivenciados a nossa audição

parece estar mais atenta para perceber o registro sonoro desse novo lugar,

ampliando desse modo o nosso repertório sonoro. O músico experimental

Giuliano Obici, em seu livro intitulado Condição da escuta (2008), discute a

questão do registro sonoro como o som enquanto um objeto externo que, a partir

do momento que estabelecemos contato, ele se instaura em nossa consciência.

“Quando ouvimos um som ‘externo’, ele se faz ‘interno’, existindo em nossa

consciência, a partir de quando o percebemos. Ele existe simultaneamente fora e

dentro de nossa consciência” (Obici, 2008, p.28). Nessa colocação o autor propõe

uma incorporação do som, unindo o mundo externo ao interno.

A cena teatral, por sua vez, é sempre um novo lugar para o público e cada

espetáculo possui seus registros sonoros. Esses registros são estudados,

concebidos e colocados em cena como fragmentos sonoros, sejam esses

fragmentos música, paisagem sonora ou efeitos sonoros, sejam eles ao vivo ou

por recurso de aparelhagem eletrônica. Essa junção de registros e fragmentos

sonoros é que formam o repertório sonoro da cena. Portanto, assim como nós

temos o repertório sonoro da nossa vida, a obra cênica possui o repertório sonoro

de sua existência. Este repertório é constituído pelos registros sonoros que foram

atribuídos e dedicados a ele desde a sua concepção (processo), passando pelo

seu “nascimento” (estréia) e aquisição de novos registros (manutenção do

elemento sonoro no espetáculo enquanto ele existir). Esses registros são

construídos, aglomerados (no caso da junção e sobreposição de registros na

mesma faixa) e organizados em fragmentos sonoros. Porém, esses fragmentos

não têm padrão de tempo de duração e tampouco tem a obrigação de serem

executados um de cada vez. Existe a possibilidade de executar um fragmento

sonoro em formato de música sendo apresentada por músicos em cena, sobre

outro fragmento sonoro no formato de “paisagem sonora” (Schafer, 2001),

transmitido por aparelhagem eletrônica, ou ainda ambos executados sobre a voz

do ator numa mesma cena. Assim, como não ouvimos um som em cada momento

do nosso dia, não sabemos qual fragmento sonoro desse nosso dia pode durar

segundos (uma buzina de carro), minutos (a música que toca na rádio), ou horas

(uma chuva que dura o dia inteiro). Podemos ouvir todos eles em momentos

distintos, ou num mesmo momento. Neste segundo caso podemos ainda

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direcionar nosso foco de atenção para apenas um desses sons, tornando os

demais secundários, ou ainda ouvir a todos sem atender a um som específico e

sentirmos certo desconforto auditivo. É dessa maneira, sem muitas ordens a

serem respeitadas, que se forma o repertório sonoro da cena, uma série de

registros, organizados e divididos em fragmentos, em que o seu todo forma o

repertório sonoro da cena teatral.

1.2 DIÁLOGOS ENTRE ELEMENTOS CÊNICOS E REPERTÓRIO SONORO

A inter-relação dos elementos cênicos7 numa montagem teatral se

desenvolve numa espécie de diálogo, como se pudessem compartilhar algo uns

com os outros. Dessa maneira, determinado elemento cênico pode contribuir para

a criação dos demais elementos da cena. O artista responsável por um desses

elementos, geralmente absorve influências de outros durante a concepção de seu

trabalho. A partir deste procedimento, a equipe criadora passa a perceber uma

comunicação geral entre os elementos cênicos em meio à concretização da obra.

Com relação a esse contexto, Luiz Otávio Carvalho Gonçalves de Souza afirma

que: “todos esses elementos são significativa e igualmente responsáveis pela

eficácia da articulação geral da interação comunicativa da representação teatral”

(1999, p. 114). E ainda alerta para o risco que a falha ou a falta de um elemento

cênico pode provocar na leitura/compreensão de uma obra:

[...] por falta da existência ou da articulação adequada de um dos signos, uma cena teatral pode ser lida ou interpretada muito diferente da forma planejada, induzindo o espectador [...] a conclusões nefastas àquelas pretendidas pela equipe artística (Souza, 1999, p. 114).

7 Utilizo o termo “elemento cênico” nesta dissertação como parte ou ferramenta cênica que compõe a obra teatral. Optei pela utilização do termo a partir da definição da palavra “elemento” que consiste em: “Cada uma das partes integrantes e fundamentais de uma coisa.” Fonte: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=elemento. Acesso: 15 nov 2010. Ou ainda: “s.m. Cada objeto, cada coisa que concorre com outras para a formação de um todo: os elementos de uma obra”. Fonte: http://www.dicionariodoaurelio.com/Elemento. Acesso: 15 nov 2010.

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Outra característica que podemos visualizar com relação à comunicação

entre os elementos cênicos é a sua conexão, bem como os pontos onde eles se

cruzam e se apóiam. Um elemento cênico pode tanto indicar a inserção de outro

elemento na cena, como também, com relação ao seu propósito, pode reforçar ou

contrapor o que o outro elemento pretende comunicar. No espetáculo Retrado de

Augustine8, por exemplo – que estreou em 2010 em Florianópolis / SC –, do qual

compus o repertório sonoro, a primeira imagem do espetáculo (após a projeção e

música de abertura) corresponde a uma imagem de um olho de um homem

projetada num grande tecido que atravessa o palco numa linha horizontal. O início

da projeção dessa imagem indica a mudança do fragmento sonoro de abertura

para o fragmento da primeira cena, a música escolhida para essa projeção reforça

o propósito da imagem. Este fragmento sonoro, por sua vez indica a intensidade

gradativa do acionamento do foco de luz direcionado ao palco. A saída da

projeção e do som em fade out indica a primeira ação do ator, que corresponde

num estalar de dedos para avisar que neste momento estará tirando um retrato,

junto com o dizer da palavra “Agora!”. Este gesto de estalar os dedos indica ao

iluminador para fazer com que o refletor pisque em forte intensidade,

simbolizando o flash de sua câmera fotográfica, fazendo assim com que o recurso

da iluminação não apenas reforce a contextualização da cena como também

complemente a ação do ator.

O exemplo acima permite perceber o cruzamento entre os elementos

cênicos a partir da atenção de um integrante da equipe com relação aos demais

integrantes, para saber o exato momento da inserção de sua criação na obra.

Levando em consideração que o teatro propõe a possibilidade de aguçar

os cinco sentidos do espectador, dependendo da sua proposta, direciono a

atenção neste momento ao estímulo dos dois sentidos que o púbico

primordialmente experencia: a visão e a audição. Em uma montagem cênica a

fusão entre som e imagem, quando bem planejados e executados, sugere infinitas

combinações e, consequentemente, diversas informações para quem a presencia.

Há uma estreita relação entre o que se vê e o que se ouve, como se não

8 Retrato de Augustine é um espetáculo teatral, vencedor do prêmio FUNART Mirian Muniz / 2008, sob direção de Brígida Miranda que estreou em abril de 2010 em Florianópolis / SC. A dramaturgia corresponde à tradução do texto dramático Mesmerized (1990) de Peta Tait e Matra Robertson, autoras australianas.

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houvesse possibilidade de separar um do outro. O pesquisador teatral Roberto

Gill Camargo afirma haver uma dependência entre som e imagem num

espetáculo cênico: “Essa inter-relação entre o que se vê e o que se ouve

estabelece no palco um tal jogo de dependência, que é quase impossível falar de

um elemento isoladamente, sem citar o outro” (2001, p. 55). O autor reflete

também sobre a sustentação que um elemento possibilita oferecer ao outro.

O ver e o ouvir são processos que se complementam e se explicam entre si. Onde um gesto não consegue ir mais além, há sempre uma nota musical que vem completar o sentido, onde uma palavra não consegue chegar, há um corpo no espaço que é capaz de dizer tudo [...]. É como se fosse um processo de cooperação entre dois códigos, o visual e o sonoro e a conseqüente inter-relação entre seus subcódigos, se é que podemos chamá-los assim (cenário, luz, música, ruído, palavra, etc.) (Camargo, 2001, p. 55).

Podemos perceber que em uma montagem cênica os elementos sonoros e

visuais dispõem de vários recursos que possibilitam a proposta de sua exibição

ao público. Quantos aos recursos que se destinam à imagem podemos pensar,

dentre os recorrentes, em cenário, figurino, iluminação, gestual dos atores; no

caso dos recursos que sugerem som numa peça teatral, de imediato podemos

pensar em música, efeitos sonoros (ruídos, por exemplo), vozes dos atores (tanto

texto falado, quanto músicas cantadas), movimentação dos atores (gestos que

proporcionam sons). Nesta dissertação pesquiso o elemento sonoro inserido no

teatro, que o denomino como “repertório sonoro da cena teatral”.

1.2.1 “Repertório sonoro na cena teatral”: importân cia

O músico e pesquisador de repertório sonoro, Lívio Tragtenberg, inicia sua

obra Música de cena (2008), apontando a seguinte questão: “a boa trilha sonora é

aquela que não se percebe. Será?” e na sequência ele responde: “Sim e não.” A

resposta, no seu caráter afirmativo, é justificada pelo motivo de que se o

repertório sonoro não chama a atenção do espectador, isolado dos demais

elementos de cena, é porque este elemento está coerentemente imerso e

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camuflado em meio à narrativa do espetáculo. Porém, em seguida, Tragtenberg

atenta que o repertório sonoro inserido desta maneira não possibilita ao

espectador a oportunidade de se colocar com uma postura crítica em relação ao

que ele vê, a partir do que ouve. Tragtenberg aponta a superficialidade do

elemento sonoro quando este contribui apenas com o fluxo narrativo do

espetáculo, desperdiçando assim, a oportunidade de se mostrar autônomo e

contrastante na cena.

Tornar o fenômeno sonoro imperceptível [...] objetiva com isso uma concentração da atenção do espectador na narrativa cênica, verbal ou visual, para estabelecer um maior controle no desenrolar do fluxo narrativo [...]. Mas essa desejada “neutralidade”, na maioria das vezes, é resultante de um filtro estreito na incorporação do som na textura e na narrativa geral, que procura evitar uma intervenção dispersiva ou bloqueadora, onde a linguagem sonora possa apresentar-se como um elemento autônomo, independente (Tragtenberg, 2008, p.13 e 14).

Nesta dissertação o objetivo é refletir como o repertório sonoro pode

intervir diretamente em variados aspectos, sobre diversos formatos na cena.

Apontar como este elemento, quando bem estudado, pode contribuir com

tamanho efeito na montagem, onde só este – assim como cada elemento cênico

tem suas particularidades – é capaz de causar determinadas reações e

sensações no público.

O repertório sonoro pode interferir de maneira qualitativa na cena desde

seu formato mais simples, até mesmo sobre a possibilidade de ele próprio ser o

condutor da dramaturgia9 do espetáculo. Este elemento pode assumir uma

postura com voz própria dentro da narrativa, e ser colocado como um elemento

revelador, crítico, contrapontístico ou reflexivo perante a narrativa cênica. A

inserção do som na cena suscita uma capacidade significativa e correspondente

aos demais elementos de cena, mesmo que se apresente como um contraponto

9 O termo “dramaturgia” nesta dissertação é pautado a partir da teoria de Patrice Pavis. Em sua obra Dicionário de Teatro (1999, p. 114), o autor define o verbete “dramaturgia” como algo que deixou de ser o estudo da composição e representação de um texto dramático, e sim amplia o termo como a concepção da obra teatral como um todo. A respeito dessa afirmativa o autor discute: “A dramaturgia, no seu sentido mais recente, tende portanto a ultrapassar o âmbito de um estudo do texto dramático para englobar texto e realização cênica”.

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com relação a determinado elemento cênico. Dessa maneira o elemento sonoro

apresenta-se disponível a dialogar com a iluminação, espaço, atuação do elenco,

dentre outras possibilidades cênicas. Com relação ao elemento sonoro e sua

possibilidade de comunicação, Souza (1999, p. 78) reflete sobre como é "[...]

necessário que a trilha sonora planejada seja fruto de uma pesquisa significativa

para a compreensão total do espetáculo, é preciso que ela esteja integrada à

peça de acordo com os propósitos estéticos da concepção de encenação da

mesma.”

A partir do estudo geral da concepção da encenação, torna-se possível a

visualização de como – enquanto formato ao vivo, ou gravado – e quando –

enquanto inserção na cena – o som irá interagir com os demais elementos de

cena e, acima de tudo, qual o propósito dessa interação. Tragtenberg discute a

respeito da interação do repertório sonoro na cena e os trajetos que este

elemento pode explorar.

É preciso que ela [a sonoplastia] explore os diferentes ângulos e que interfira com suas qualidades específicas na encenação como um todo [...]. De forma que sejam identificadas e exploradas de maneira diagonal as diversas camadas que compõe o fenômeno cênico (2008, p. 22 e 23).

Nessas palavras podemos perceber que autor sugere uma atenção a todas

as direções pelas quais o repertório sonoro, definido pelo autor neste fragmento

como sonoplastia, tem a possibilidade de interagir na cena. O que não significa,

evidentemente, que o compositor do repertório sonoro encare essa atenção como

uma missão de, a qualquer momento, colocar um fragmento sonoro na cena,

correndo assim, o risco de super-nutrir o espetáculo de músicas e efeitos sonoros

dos quais poderia tê-los deixado de lado. Por vezes optar pelo som que a própria

cena produz é uma escolha sensata, uma vez que também faz parte do repertório

sonoro a produção destes sons da cena – a voz do ator representando o texto

dramático, o som dos passos dos sapatos no chão de madeira, o som produzido

no manuseio do cenário e objetos de cena, todos estes, por exemplo, também

compõem o repertório sonoro.

A partir do momento em que o compositor do repertório sonoro identifica os

demais elementos da montagem cênica e reconhece seus significados, se dispõe

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a ele a oportunidade de explorar os sons que irão interagir com os demais

elementos de cena. Essa interação, quando colocada em cena, poderá

desencadear ao som, mesmo a um simples efeito sonoro, uma série de

interpretações de seu significado em meio ao contexto que se insere. Um ruído,

uma música, ou um instante de silêncio, podem representar uma informação

bastante significativa para o espectador. Essa informação pode interferir na

compreensão total do espetáculo para esse espectador.

A música, em princípio, comunica alguma coisa que não pode ser dita por palavras nem por outro meio que não seja ela mesma. Os demais sons, uma vez colocados em cena, também têm algo a comunicar. Não são como os sons da vida real, que podem ocorrer independentemente de nossa vontade e, muitas vezes, se colocam em posição secundária ou terciária em relação a nossa atenção perceptiva (Camargo, 2001, p. 64).

Com relação aos sons inseridos na cena, quando não em formato de

música, Camargo propõe uma importante reflexão a respeito de determinadas

características desses sons, ou no caso, efeitos sonoros, e como eles podem

atingir de maneira significativa a compreensão do público que presencia o

espetáculo teatral.

As palavras, por mais poderosas que sejam, não conseguem descrever, por exemplo, os detalhes que caracterizam os sons de uma enxurrada, de uma correnteza, ou de um crepitar de arbustos secos pegando fogo. Com apoio nas comparações, correspondências, associações e sinestesias, as palavras conseguiriam, quando muito, dar uma idéia de como seriam esses sons, porém nada que se compare a sensação de ouvi-los, com a mesma intensidade, suavidade, peso, colorido, ritmo e outras qualidades que são próprias do som. Percebemos daí, a diferença que há em lermos uma rubrica de texto teatral, com respeito a determinado som que deve entrar em cena e o efeito sonoro por ele mesmo, percutido na sonoplastia (Camargo, 2001, p.68).

A um fragmento sonoro, por vezes, se permite a capacidade de esclarecer

determinadas informações relevantes ao desfecho compreensivo da cena. Esta

clareza e compreensão não, necessariamente, têm a ver com a estética de um

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som limpo, compassado e suave, ou de uma compreensão auditiva codificada do

espectador, como as palavras. O som pode apresentar um aspecto sujo,

distorcido, sobreposto de ruídos, descompassado, com intensidade muito forte ou

muito fraca de volume; contudo, independente da forma de como o som se

apresenta, sua existência, geralmente, aspira por um propósito perante a

narrativa da cena. Tragtenberg discute o tema referindo-se a essa função como

“transparência” sonora na cena.

[A] transparência na informação sonora é essencial para a música de cena, para que ela crie um espaço aberto de diálogo com os outros elementos. Para que não se isole, concebendo totalmente o seu espaço no tempo. [...] sua textura deve estar ligada estreitamente à função na cena teatral, de forma clara e imediata (2008, p. 54).

Essa característica que corresponde às possibilidades de diálogos entre os

elementos cênicos, oferece ao repertório sonoro um amplo formato de

construção. Ao mesmo tempo em que o repertório se corresponde com os demais

elementos cênicos, a sua composição está livre para ser realizada num flexível

campo de criação. O compositor pode variar as faixas, ou fragmentos sonoros,

em tempo de duração, ritmo, timbres. Ele tem a possibilidade de realizar sua

criação livre de seguir uma linearidade sonora correspondente entre um

fragmento e outro, ou permanecer submisso ao tempo da cena, ou somente às

referências que esta propõe. Diversas fontes podem servir de estímulo como

sustentação de seu trabalho, atribuindo a este destacada capacidade de

informação, enriquecedora para a obra cênica.

Uma das possibilidades do repertório sonoro é explorar articulações de

suas próprias virtudes, permitindo um jogo de combinações que levam a uma

imensa variedade de formatos sonoros. Como afirma Tragtenberg (2008, p. 120-

121): “Essa heterogeneidade [do repertório sonoro] deve, no entanto, constituir-se

numa malha de relações sonoras que valorize e privilegie justamente essa

diversidade, caso contrário, a variedade trabalha a favor da dispersão, da

indiferenciação”. Um fragmento sonoro não precisa obedecer a compassos,

escalas em arranjos harmônicos e melódicos, combinação tonal entre vozes e

timbres correspondentes. Nem mesmo o tempo de duração um fragmento sonoro

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é obrigado a respeitar. O importante mesmo é que o elemento sonoro contribua e

faça diferença no desempenho dramatúrgico da cena. Partindo deste fato, fica

clara a necessidade de conhecimento e experimentação das diferentes e

inúmeras possibilidades que os fragmentos de um repertório sonoro podem

propor à cena.

1.3 UMA BREVE PASSAGEM PELOS QUATRO FORMATOS DO ELEMENTO

SONORO: A MÚSICA, O SOM, O RUÍDO E O SILÊNCIO

Para essa dissertação, foi possível realizar um levantamento a respeito dos

formatos que compõem o elemento sonoro. As bases teóricas que serviram de

suporte para analisar este tema encontram-se essencialmente nos estudos de

José Miguel Wisnik e R. Murray Schafer. Este estudo propõe que o elemento

sonoro, quando voltado para a cena teatral, é composto por quatro formatos que

servem de base de composição do repertório sonoro. Estes formatos distinguem-

se em: música, som, ruído e silêncio.

A música é a capacidade de reproduzir sons num formato organizado,

mesmo que algumas pareçam apresentar certa desordem em sua organização.

Até a música, no caso uma gravação, chegar aos nossos ouvidos, por meio de

qualquer aparelho eletrônico, ela foi escrita, arranjada em cada instrumento

musical que a compõe, gravada ao vivo ou em estúdio, processada em estúdio

até atingir seu formato sonoro ideal, para daí sim, ser lançada da forma que o

artista escolher. As pessoas, a partir daí, escolhem as músicas que querem ouvir

e as apreciam, e é possível perceber nessa apreciação um grande envolvimento

social da utilização desse recurso sonoro, assim como a intensidade de sua

presença na sociedade em geral. Wisnik elaborou profunda reflexão a respeito da

música na sociedade.

As sociedades existem na medida em que possam fazer música, ou seja, travar um acordo mínimo sobre a comunicação de uma ordem entre as violências que possam atingi-las do exterior e as violências que as dividem a partir do seu interior. Assim, a música se oferece tradicionalmente como o mais intenso modelo utópico da sociedade

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harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a mais bem acabada representação ideológica (simulação interessada) de que ela não tem conflitos (1989, p 33 e 34).

A música está presente em representações sagradas, em rituais; a música

é adorada, é vivida, é sentida. A música se permite transitar por entre espaços,

frestas, tomar conta de todo um ambiente e, ainda assim, atravessa a quem se

coloca diante dela. É o membro virtuoso do quarteto que compõe o elemento

sonoro – som, silêncio, música e ruído – que permeiam e predominam no mundo

sonoro baseado entre barulho e silêncio.

A música extrai som do ruído num sacrifício cruento, para poder articular o barulho e o silêncio do mundo. Pois articular significa também sacrificar, romper o continuum da natureza, que é, ao mesmo tempo, silêncio ruidoso. (como o mar, que é, nas suas ondulações e no seu rumor branco, frequência difusa de todas as frequências) (Wisnik, 1989, p. 35).

As palavras de Wisnik a respeito da música são importantes por proporem

uma reflexão sobre como a música é um elemento presente e significativo nas

sociedades. Em torno desse pensamento, proponho neste momento refletir,

brevemente, sobre a questão do som, do silêncio e do ruído, pelo viés de Wisnik,

apoiada nas teorias de Schafer. Considero esses três termos, junto com a música,

importantes de serem mencionados. Uma vez que o tema sugere a reflexão do

elemento sonoro no teatro, logo é significativa a discussão, sobre características

de base da sua formação.

Refletirei sobre som e silêncio simultaneamente, uma vez que não consigo

perceber a existência de um com a ausência de outro. O som, por sua vez, é o

termo mais amplo dos quatro mencionados. Todo registro sonoro parte de um

som. Mesmo parecendo redundante esse raciocínio, é por meio dele que

podemos concluir que qualquer manifestação sonora é um acontecimento por

vezes involuntário. O som é o fenômeno que rompe o silêncio, e ele não prepara,

antecipa ou avisa esse acontecimento, ele simplesmente surge e invade o

espaço. É possível até pensarmos, dependendo da lógica adotada, que o silêncio

em si não existe. O som é algo com tamanha predominância e ocupação do

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espaço, que parece impossível nos depararmos num momento de silêncio

absoluto. O músico John Cage (1912-1992), vivenciou a experiência, nos Estados

Unidos em 1973, de se fechar em uma cabine à prova de qualquer som com o

objetivo de perceber a legítima presença do silêncio, porém neste espaço, sem

nenhuma interferência sonora externa, pode ouvir o som grave de sua pulsação

sanguínea e o agudo de seu sistema nervoso.

Na reflexão de Wisnik sobre som e silêncio, o autor comenta que um

encontra-se envolto no outro. Além de nos oferecer um raciocínio sobre a

estrutura espacial que interfere nessas duas qualidades sonoras, se pensarmos

que só existe silêncio porque existe som, logo podemos concluir que o silêncio é

tanto uma qualidade do evento sonoro quanto o próprio som.

O som é presença e ausência, e está, por menos que isso pareça, permeado de silêncio. [...] O mundo se apresenta suficientemente espaçado (quanto mais nos aproximamos de suas texturas mínimas) para estar sempre vazado de vazios, e concreto de sobra para nunca deixar de provocar barulho (Wisnik, 1989, p. 18 e 19).

Com relação a uma explanação que diferencia brevemente, por meio

metafórico, a questão do som, exemplificando este como música, ruído e silêncio,

Wisnik nos propõe uma imagem bastante clara para compreendermos melhor as

relações e características peculiares de cada uma dessas qualidades sonoras.

O rádio é uma boa metáfora para que se entendam as relações entre som, ruído e silêncio, em seus muitos níveis de ocorrência. Como no rádio, o silêncio é um espaçador que permite que um sinal entre no canal. O ruído é uma interferência sobre esse sinal (e esse canal): mais de um sinal (ou mais de um pulso) atuam sobre a faixa, disputando-a (o ruído é a mistura de faixas e de estações). O som é um traço entre o silêncio e o ruído (nesse limiar acontecem as músicas) (Wisnik, 1989, p.33).

O ruído, como a quarta qualidade sonora aqui mencionada, apresenta-se

como uma espécie de momento de equívoco sonoro. Teoricamente ele acontece

por causa da sobreposição e desorganização de sons que causa a falha da

comunicação da mensagem sonora que antecedia a ele. O ruído geralmente se

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apresenta de forma desagradável aos ouvidos, pode feri-los se for muito forte a

intensidade de seu volume, ou muito aguda a tonalidade que carrega.

A reflexão de Schafer (1991, p. 68 e 69) com relação ao ruído, nos mostra

o seguinte:

Ruído é o som indesejável. [...] é a estática no telefone ou o desembrulhar balas do celofane durante Beethoven. [...] é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos ouvir. Schopenhauer disse que a sensibilidade do homem para a música varia inversamente de acordo com a quantidade de ruídos com a qual é capaz de conviver. Ele quis dizer que, quanto mais selecionamos os sons para ouvir, mais somos progressivamente perturbados pelos sinais sonoros que interferem (por exemplo, o comportamento de um auditório barulhento num concerto).

Todos nós sabemos o quanto um ruído pode ser indesejável aos ouvidos,

porém se o analisarmos inserido num contexto artístico, especificamente

contextualizado como um fragmento de um repertório sonoro, ele pode se tornar

uma comunicação muito útil à cena. No espetáculo Retrato de Augustine, como

exemplo, compus um fragmento sonoro para uma das cenas em que todo ele foi

registrado e organizado a partir de uma série de ruídos. Este fragmento sonoro

serve para dialogar com a personagem central da narrativa que vivencia

momentos de ataques de surtos histéricos. Os ruídos, nessa cena, serviram como

materialização do que esta personagem ouve nos momentos de seus ataques.

1.3.1 O escorregadio conceito de paisagem sonora

Um fragmento sonoro elaborado para uma cena teatral composto por uma

série de ruídos e de sons como efeitos sonoros sugere, geralmente, a noção de

uma “paisagem sonora”. Murray Schafer desenvolve uma série de reflexões e

considerações extremamente relevantes sobre a noção de paisagem sonora, e

afirma ser difícil definir este conceito, uma vez que se trata de um material sonoro

complexo e subjetivo. É possível, ao acompanhar as obras de Schafer, concluir

que paisagem sonora refere-se aos registros sonoros que permeiam o nosso

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cotidiano. O som que acompanha o espaço, ou o som que surge do espaço e nele

se estabelece. Porém, esses são pontos que vão além: descrever, registrar,

denominar e reproduzir uma paisagem sonora são ações bastante complexas de

serem realizadas. Schafer comenta sobre essa complexidade ao discutir o termo

em suas teorias.

Podemos isolar um ambiente acústico como um campo de estudo, do mesmo modo que podemos estudar as características de uma determinada paisagem. Todavia, formular uma impressão exata de uma paisagem sonora é mais difícil do que uma paisagem visual. Não existe nada em sonografia que corresponda à impressão instantânea que a fotografia consegue criar. [...] O microfone não opera dessa maneira. Ele faz uma amostragem de pormenores e nos oferece a impressão semelhante a de um close, mas nada que corresponda a uma fotografia aérea (2001, p.23).

Schafer nos mostra a dificuldade de descrever uma paisagem sonora. Uma

partitura musical, por exemplo, é composta por símbolos dos quais são possíveis

traduzir em sons. Pois trata-se de uma estrutura elaborada a partir de um

determinado número de notas musicais, organizadas em uma pauta, sugerindo o

compasso, a tonalidade, as pausas, dentre demais qualidades. Quando a questão

refere-se à possível leitura de uma paisagem sonora, neste instante percebemos

sua complexidade. É impossível catalogar todos os sons reproduzidos no espaço,

criar uma simbologia visual para cada um deles e organizá-los de maneira que se

possa reproduzi-los a partir de uma leitura. E ainda, desdobrando esta questão,

Schafer reflete sobre a frágil legitimidade de reproduzir uma paisagem sonora

como a original. Mesmo com a tecnologia da gravação de áudio, é muito difícil

encontrarmos registros exatos de todos os sons de um determinado lugar. Mais

difícil ainda se a tentativa for de reconstruir uma paisagem sonora de um tempo e

espaço histórico, onde o compositor tem de se contentar com registros literários

que, certamente, não possuem um relato preciso sobre a sonoridade da época e

do local pesquisado. Podemos refletir por meio das palavras de Schafer sobre o

assunto.

Podemos saber exatamente quantos edifícios foram construídos numa determinada área ao longo de uma

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década, ou qual foi o crescimento da população, mas não sabemos dizer em quantos decibéis o nível de ruído ambiental pode ter aumentado em um período de tempo comparável. Mais que isso: os sons podem ser alterados, ou desaparecer e merecer apenas parcos comentários, mesmo por parte do mais sensível dos historiadores. Assim, embora possamos utilizar modernas técnicas de gravação e análise no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para fundamentar as perspectivas históricas teremos que nos voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura e da mitologia, bem como aos registros antropológicos e históricos (Schafer, 2001, p26).

No âmbito teatral, por exemplo, sabemos que nas representações das

tragédias na Grécia antiga um recurso eficaz de ampliação da potência do volume

da voz era justamente o coro que respondia ao ator utilizando-se de várias vozes

ao mesmo tempo. Máscaras projetadas a fim de atingir maior trajetória auditiva

também era um recurso, além da arquitetura do próprio teatro, construído

pensado também em seu poder acústico. Porém, todos os registros desses

recursos sonoros chegam até nós por meio de publicações teóricas e de imagens,

não temos a menor noção de como esse som era propagado em si. Sabemos,

inclusive, que o elemento sonoro dramático deste período teria de ser ouvido por

um público de milhares de pessoas. Com relação a isso, temos de nos contentar

com as imagens e os superficiais relatos históricos que tocam neste assunto, sem

nunca sabermos ao certo qual o verdadeiro efeito sonoro representado em uma

tragédia na Grécia antiga.

Mesmo sabendo das dificuldades de se encontrar um registro sonoro

preciso de um local onde nunca estivemos, ou de um período histórico, até

mesmo dos insuficientes registros sonoros da contemporaneidade, a paisagem

sonora é um recurso comumente utilizado no teatro. Constantin Stanislaviski

(1863 – 1938), pesquisou e elaborou paisagens sonoras para algumas de suas

montagens, especialmente nas representações de textos do dramaturgo Anton

Tchecov (1860 – 1904), o encenador denominou o termo como “paisagem

auditiva”. O teórico francês Jean-Jacques Roubine, em seu livro A Linguagem da

Encenação Teatral (1982), relatou a respeito do som na cena de Stanislaviski, e

discutiu sobre o termo “paisagem sonora” a partir das cartas de Stanislaviski à

Tchecov.

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[Paisagem auditiva trata-se] não apenas de reconstruir um meio ambiente ou uma atmosfera característica, mas sobretudo, de revelar a relação, o acordo ou a discordância, que liga a personagem ao que está em torno dela. Numa carta a Tchecov, datada de 10 de Setembro de 1898, Stanislavski explica que está utilizando em A Gaivota o coaxar dos sapos "exclusivamente para dar a impressão de um silêncio completo" (Roubine, 1982, p. 134).

Tragtenberg analisa o termo paisagem sonora como um recurso não-verbal

que possibilita a compreensão de uma informação sem necessariamente recorrer

ao uso da palavra. O autor ainda relaciona o termo com textura e timbre (cor) do

som, dando ideia de sua densidade e postura em meio à cena teatral.

A ideia de paisagem sonora [...] utilizada amplamente no cinema e na música para a dança, é cada vez mais frequente na cena teatral, influenciada pelas linguagens não-verbais na busca de um descondicionamento do tempo da palavra. [...] A paisagem sonora é uma forma de textura sonora que embute a ideia de que o sentido de totalidade vai se construindo passo a passo, cena a cena, pelo espectador, [...] a estrutura básica da paisagem sonora baseia-se numa estabilidade de textura, seja através do uso de um número restrito de timbres (cores), seja pela pontuação por eventos que se repetem em ciclos regulares (2008, p. 55 e 56).

A paisagem sonora, no teatro, tem a função, como primeira impressão,

situar a cena no espaço onde essa está sendo representada. Tornando-se

permitida por meio de ruídos e/ou sons como efeitos sonoros, possibilitando

também utilizar a música e o silêncio como reforço. Porém, após as análises de

Schafer e Tragtenberg, juntamente com o exemplo de Stanislavisk, podemos

perceber que a ela pode exercer uma função mais complexa, e ser um recurso

que auxilia na assimilação de toda a contextualização das inter-relações dos

elementos dramáticos do espetáculo.

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1.3.2 A voz – o som e a palavra

O elemento sonoro, seja ele apresentado em qualquer um dos seus quatro

possíveis formatos: ruído, som (efeito sonoro10), silêncio ou música, apresenta em

si várias características exclusivas que possibilitam serem organizadas e

cadenciadas afins de atingirem determinadas sensações e emoções em quem os

ouve. E saber como manuseá-las e explorá-las, quando se trata da construção de

um repertório sonoro de cena, é possível transformar esse elemento em uma

série de disposições que podem contribuir em todos os aspectos dentro da

construção do processo de uma montagem teatral.

No caso da voz humana, volto à atenção não somente ao signo verbal que

este recurso pode transmitir, como também ao som emitido pela palavra dita.

Além da palavra em si, a voz também pode se apresentar em caráter de ruído

(por exemplo, se o emissor pretende imitar o som de um rádio mal sintonizado),

ou em caráter de efeito sonoro (quando o emissor da voz espirra, boceja, ou até

mesmo emite um som desconhecido de decodificação).

Para esta pesquisa o som transmitido pela voz por vezes acarreta maior

destaque do que seu significado enquanto palavra. Nos textos falados dos

espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi, por exemplo, podemos perceber que os

sons das palavras ditas pelos atores muitas vezes tem maior destaque do que

seus próprios significados.

Evidentemente, porém, não desconsidero ou subestimo a importância das

palavras ditas nos espetáculos do grupo em questão, pelo contrário, reconheço o

valor dos significados das frases emitidas e dos versos cantados pelos atores nas

cenas. Para este estudo, no entanto, em alguns fragmentos direciono o foco para

a relevância do som da palavra em meio ao contexto da dramaturgia sonora nos

espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi.

10 Passarei a referir-me a esse formato sonoro (som) como efeito sonoro a partir desse momento, para auxiliar na compreensão quando contextualizá-lo no tema repertório sonoro da cena teatral.

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1.3.3 As qualidades do elemento sonoro

Há quatro características do elemento sonoro que permitem transformar a

estrutura de seus formatos: duração, altura, intensidade e timbre. Me apoiarei na

pesquisa de Luiz Otávio C. G. de Souza, e suas fontes, para ajudar a definir estas

característica, uma vez que se tratam de termos difíceis de exemplificar, ou

associar imagens a eles.

Comecemos pela duração. A ela corresponde o tempo em que o som é

emitido, ou como observa Souza, a partir da teoria de Sérgio Magnani: “o período

de tempo do qual o som é captado pelo nosso ouvido” (Magnani apud, Souza

1999, p.60). Seu efeito pode proporcionar “sensações temporais virtuais,

diferenciadas do tempo do relógio” (Souza, 1999, p. 60). A altura corresponde às

tonalidades que um som pode alcançar, variando da qualidade sonora do grave

ao agudo. O efeito da variação sonora correspondente à altura pode sugerir peso

como referência de imagem: “pode desencadear impressões associadas, desde o

peso da matéria, até levezas de almas mais sublimes” (Souza, 1999, p. 60). A

intensidade é relacionada à variação de volume que corresponde à potência de

um som, podendo diferenciá-la entre forte e fraco. Esta variação pode sugerir,

enquanto intensidades fracas “impressões de suavidade e/ou profundidade”

(Souza, 1999, p. 60) e quando fortes “um jorro de explosão proteínica e vital [...]

ou a explosão mortífera do ruído como destruição” (Wisnik apud Souza, 1999, p.

60). E, por último o timbre, a ele se referem as cores do som, “dependem da

forma das vibrações, mais ou menos regular, e consequentemente, da quantidade

de sons harmônicos que convibram com o som fundamental e que nele

contribuem com o acréscimo de sons complementares” (Magnani apud Souza, p.

60).

O elemento sonoro atinge-nos em um dos cinco sentidos sensoriais

correspondentes em nosso corpo e, diante desse fato, é uma importante

referência equivalente à diversas experimentações diárias em nossas vidas.

Durante a construção da composição de um repertório sonoro de cena, os quatro

formatos - silêncio, efeito sonoro, música e ruído - podem sofrer diversas

alterações em suas configurações por meio das quatro características do

elemento sonoro. A análise sobre esse raciocínio estende-se até o momento em

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como pensar o elemento sonoro em cena, quais são suas possibilidades e de que

maneira podem ser explorados. Algumas sugestões técnicas e espaciais de como

esses fragmentos sonoros podem ser trabalhados e inseridos em cena serão

analisadas a seguir, ao serem discutidas algumas funções e possibilidades de

repertório sonoro da cena teatral. E na sequência será exibido um relatório

detalhado do processo de composição do repertório sonoro da peça Retrato de

Augustine, como uma sugestão e possibilidade de construção de repertório

sonoro da cena teatral.

1.4 FUNÇÕES E POSSIBILIDADES DO REPERTÓRIO SONORO DA CENA

A diversidade do elemento sonoro teatral sugere um enriquecimento à

cena em todos os formatos que esta se apresenta. Um repertório sonoro,

profundamente estudado e elaborado, ultrapassa os limites de uma simples

ilustração auditiva inserida na cena, assim como assume maior responsabilidade

do que servir de costura de transições de uma cena para outra. O elemento

sonoro pode estar diretamente interligado aos demais elementos cênicos, e ao

compositor do repertório cabe conhecer o objetivo de cada um deles na cena.

Assim, ele encontra meios claros de como construir seu trabalho, ao mesmo

tempo em que consegue visualizar o objetivo de sua produção artística na

montagem. Souza salienta a importância de um dedicado estudo no processo de

construção do repertório sonoro:

[...] músicas e efeitos sonoros não devem ser utilizados para mostrar recursos musicais de uma determinada montagem, nem para agradar a determinados espectadores e nem por simples gosto pessoal dos artistas envolvidos no espetáculo. É necessário que a trilha sonora planejada seja fruto de uma pesquisa significativa para a comunicação total do espetáculo, é preciso que ela esteja integrada a peça de acordo com os propósitos estéticos da concepção de encenação da mesma (1999, p. 77 e 78).

O repertório sonoro pode comportar diversas funções durante a cena. Ele

tanto pode ter o objetivo de provocar determinadas emoções no público, como

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também sugerir uma reflexão crítica do espectador diante a dramaturgia que

presencia. Se o objetivo é provocar alguma emoção, o elemento sonoro

geralmente está de acordo com as ações dos atores e com o texto que estes

estão representando. Em Retrato de Augustine, por exemplo, quando a

personagem Bernadete entra em cena chorando querendo compartilhar sua dor

com a personagem Augustine, inseri como fragmento sonoro um melancólico e

agudo som de violino, a fim de reforçar a emoção de tristeza trazida pela

personagem Bernadete. Quando o objetivo do fragmento sonoro é contrastar com

a cena, geralmente há uma quebra entre o ritmo do fragmento sonoro com

relação ao ritmo da cena, ou a letra dos versos da canção contrapõe o texto

falado pelos atores – se o fragmento sonoro, neste caso, for uma música que

contem na sua estrutura versos cantados.

O encenador alemão, Bertolt Brecht (1898-1956), demonstrou profunda

preocupação crítica nos versos cantados em canções relacionadas às cenas que

apresentava em suas montagens cênicas. A partir da parceria com Kurt Weill

(1900-1950), músico que compôs grande parte das canções das montagens de

Brecht, o encenador dedicou às suas músicas a responsabilidade de propor ao

público uma leitura crítica diante à cena assistida. Brecht intitulou as canções de

suas encenações como “Musica Gestus” (1967)11, referenciando, a partir deste

termo, o caráter crítico-político das músicas com relação à cena de suas

encenações. As músicas compostas por Weill para a obra A ópera dos três

vinténs (1928), são representantes de destaque da “Música Gestus”. Suas

estruturas foram construídas a partir de músicas de caráter popular12, o que

proporcionou a elas tamanha autonomia ao ponto de serem reconhecidas mesmo

fora do contexto da obra.

Um exemplo contemporâneo que se assemelha à “Música Gestus” de

Brecht, pode ser presenciado no espetáculo Vinegar Tom, criado na disciplina de

Montagem Teatral I e II da UDESC em 2007 e 2008 – também sob a direção de

Brígida Miranda, que na época era professora da disciplina. O repertório sonoro

11 No livro Teatro Dialético: ensaios, edição de 1967, Brecht dedica um capítulo desta obra a refletir sobre a música em suas encenações. Neste capítulo ele explica o termo “Música Gestus”, referindo-se à música da cena como uma das ferramentas de reflexão do conteúdo te seu teatro político. 12 Estilo musical denominado como songs (1967, p.83): músicas populares compostas para apresentações de cabaré. Esta estética musical se tornou predominante nas obras de Brecht.

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composto por Renata Swoboda e Claudia Mussi13 foi construído sobre duas

bases, paisagem sonora e músicas executadas por uma banda de mulheres em

cena. A fábula do texto de Caryl Churchill, de 1976, “conta a história da caça às

bruxas na Essex (Inglaterra) do século XVII sob uma ótica feminista” (Miranda &

Mussi, 2008, p2). As músicas tocadas pela banda tinham o objetivo de se

contrapor a dramaturgia da cena. Na montagem havia personagens femininas

que, em cena, sofriam vários tipos de discriminação colocada de maneira

cotidiana. O contraponto crítico era sugerido pela banda, a partir de uma estética

musical inspirada no contexto brechtiniano, porém contextualizada num formato

atual no ritmo de Rock. As sete músicas tocadas em Vinegar Tom sugeriam uma

reflexão sobre os problemas enfrentados pelas mulheres no período do texto,

possibilitando relacionar com os mesmos problemas enfrentados pelas mulheres

no século XX, sendo ainda possível percebê-los em vários aspectos na

atualidade.

O espetáculo Vinegar Tom é um dos diversos exemplos de como o

elemento sonoro pode interferir de maneira qualitativa numa montagem cênica.

Seja essa contribuição de caráter emocional, crítica reflexiva, que dialogue a favor

ou contra a cena representada pelos atores, o importante é que ele tenha uma

postura ímpar no espetáculo e que transmita algo que somente o elemento

sonoro pode representar.

O elemento sonoro na cena teatral por vezes pode ter o poder de

intensificar tensões no público que a palavra e seus significados nem sempre

atingem com a mesma precisão. Por meio desse pensamento é possível refletir

sobre uma primordial função do repertório sonoro da cena teatral: transmitir ao

espectador uma compreensão sensorial e/ou reflexiva na cena, de maneira em

que apenas o formato sonoro possa comunicar. A música, como um dos formatos

que compõe o elemento sonoro, por exemplo, carrega grande poder de sugestão,

de variação emocional e sensorial em que a ouve. Este efeito depende das

variações do ritmo e do andamento no qual a música desempenha durante sua

execução. É comum a música de orquestra, por exemplo, possuir diferentes

andamentos numa mesma obra, isso sugere, muitas vezes, diferentes maneiras

13 Renata Swoboda foi graduada pelo curso de Música da UDESC em 2009 e Claudia Mussi obteve graduação em Artes Cênicas pela UDESC no mesmo ano.

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de recebê-la, possibilitando provocar emoções e sensações distintas, variadas

conforme o andamento da música.

Na cena teatral, o elemento sonoro pode adotar a função de provocar

diferentes emoções e sensações no público. Uma vez que o repertório sonoro não

tem a obrigação de manter linearidade em seu estilo e andamento, a quebra

dessas características pode ocorrer de um instante a outro durante uma cena,

permitindo assim aguçar a experiência de diversas sensações e emoções no

espectador. Sobre este assunto, Souza comenta: “dentre todas as características

[da cena] responsáveis pelos vários reflexos emocionais e psicológicos, o jogo de

tensões musicais parece ser o aspecto que mais se sobressai nas relações da

música sem letra com a cena teatral.” (Souza, 1999, p.75)

Outra função bastante característica e eficaz que o repertório sonoro pode

exercer na cena é a possibilidade de substituir ou prolongar algumas referências

visuais por fragmentos sonoros. Contextualizar localizações cenográficas, inserir

vozes de uma multidão de pessoas sem que estas estejam necessariamente

presentes, são algumas das situações que podem ser resolvidas por meio do

elemento sonoro. Camargo comenta como o elemento sonoro pode substituir, em

alguns momentos, determinados elementos visuais.

O poder de representar elementos visuais e sonoros como objetos, lugares e seres, apenas por intermédio de sua contraparte sonora, chega a ser tão suficiente que, muitas vezes, o som vale pelo próprio cenário, a ponto de substituí-lo. [...] O teatro contemporâneo, aliás, apóia-se bastante nos recursos de luz e som como contraparte referencial, caminhando no sentido da síntese dos recursos cênicos e dos elementos significativos, muitas vezes conseguindo extrair dessa síntese mínima, um universo muito amplo de significação” (2001, p.87).

A eficiência da execução de um repertório sonoro depende também da

viabilidade do projeto sonoro planejado para a montagem cênica. A questão

técnica apresenta-se como um fator tão importante a ser pensado como a

construção estética do repertório sonoro da cena. Mesmo que o mapa de um

plano sonoro de um espetáculo solicite apenas os equipamentos comumente

adotados pelos espaços teatrais, o conhecimento prévio da parte técnica sonora

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desses espaços pode garantir a boa execução do elemento sonoro da montagem.

Por vezes, optar por estruturas sonoras simples podem render soluções bastante

apropriadas. Pequenos detalhes técnicos sonoros são capazes de produzir efeitos

precisos para a compreensão da cena.

Variações em dimensões e profundidades sonoras podem ser planejadas a

partir do posicionamento das caixas de som, assim como na alternação da

potência do volume dos fragmentos sonoros. Podemos perceber este efeito

sonoro em uma cena, por exemplo, em que o ator representa a ação de estar

caindo em um precipício, onde o público não consegue ver o chão, e este emite

um longo grito que, gradativamente perde seu volume, proporcionando a

sensação de grande profundidade da queda. Esse tipo de efeito também pode ser

explorado por meio de aparelhagem sonora eletrônica e, além do volume, a

variação gradativa da tonalidade sonora pode proporcionar sensação semelhante.

Como o exemplo de um ator que acompanha com o olhar o lançamento de um

míssil desde sua origem até a explosão do alvo, porém toda a trajetória deste

objeto é representada sonoramente. O som do lançamento começa com uma

tonalidade bastante aguda e gradativamente fica mais grave até o apocalíptico

som da explosão.

Além da exploração sonora a fim de variar diversos pontos referenciais no

espaço, assim como a experimentação de diferentes dimensões e profundidades

do som na cena, o elemento sonoro também pode propor a variação da dimensão

do tempo do espetáculo. Essa variação sugere um ritmo temporal diferente do

cronológico. Um fragmento sonoro em formato de música, com um andamento

muito lento, composto por timbres graves e prolongados, podem sugerir a

sensação de que a cena durou mais tempo do que o cronológico em que esta foi

executada. Assim como a sucessão de fragmentos sonoros que quebram o ritmo

frequentemente, geralmente executados num andamento acelerado, alternando

trechos de músicas com efeitos sonoros, essa composição sonora pode sugerir

uma sensação de que o tempo passou mais rápido do que o tempo cronológico

real.

Diversas são as possibilidades de variar as dimensões espaciais e

temporais sugeridas pelo elemento sonoro. E não necessariamente essas

estruturas podem ser exploradas separadamente, o elemento sonoro permite

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mover espaço e tempo num mesmo fragmento. Isso depende como este

fragmento é estudado e como ele será recebido e processado por meio da

compreensão do espectador. Souza afirma que a música é um formato sonoro

bastante eficaz para produzir o efeito de variação da dimensão espacial e

temporal, quando essa está interligada à proposta dramatúrgica da cena.

A música pode, ainda, ser um grande auxílio sugestionador de sensações nos dimensionamentos temporal e espacial da cena teatral. Com a música, podem ser sugeridas dilatações ou contrações tanto temporais quanto espaciais. Estes aspectos psicológicos da percepção temporal e espacial tendem a tornar-se mais acentuados quando da integração das relações estruturais de tempo e espaço da obra musical com as características cênico-dramatúrgicas (Souza, 1999, p.68).

Tragtenberg também comenta a respeito da variação nas dimensões do

espaço e tempo cênico por meio do elemento sonoro, exemplificando um

espetáculo que utiliza também o formato sonoro da música para tentar atingir este

efeito.

[...] a essência do material musical reside em relações internas muito complexas, como imitações melódica, inversões contrapontísticas ou desenvolvimento de vários temas simultâneos. [...] Tecnicamente trata-se também de uma questão de construção de tempo/espaço sonoro. Uma música que opera com muitos planos de sobreposição espacial, como fundo, zonas intermediárias, frente, etc., concorre na percepção do espectador com a própria arquitetura espacial do cenário e da movimentação cênica dos atores, tornado mais complexo o reconhecimento e a localização espacial da ação (Tragtenberg, 2008, p.53).

Um fragmento sonoro comporta em si diversas possibilidades mutáveis. A

flexibilidade de explorar as variáveis deste fragmento sugere à cena a

possibilidade de percebermos relevos e nuances, oferecendo a ela um

preenchimento mais consistente em sua forma.

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1.4.1 A expressividade do som e suas funções na cen a14

O repertório sonoro da cena teatral pode desempenhar diversas funções

com o objetivo de interferir de maneira qualitativa na dramaturgia de um

espetáculo. Camargo (2001) escreveu um capítulo intitulado Som e expressão, no

qual levanta vinte e quatro diferentes maneiras de como o som pode se expressar

na cena e qual o objetivo de cada expressão. Num primeiro momento optei por

selecionar algumas dessas expressões e comentá-las, porém é impossível deixar

de lado tantas outras, pois é perceptível que cada uma carrega sua igual

importância no contexto teatral. Decidi, então, citar brevemente todas as

expressões sonoras levantadas por Camargo, uma vez que se trata de um

levantamento importante e condizente com o tema estudado.

A forma que escolhi para discorrer sobre o assunto foi desenvolver um

alfabeto de possibilidades de expressividade sonora na cena, de fácil visualização

para o leitor. Ao todo somam-se vinte e quatro maneiras de como o som pode se

materializar em expressão. Esses itens propõem sugestões simples e claras de

pensar na sonoridade da cena como algo que auxilia na compreensão e dialoga

com os demais elementos de cena.

Mesmo ciente que se trata de um procedimento pouco usual dentro de uma

escrita de dissertação, os motivos que me levaram a realizar o levantamento do

som como expressão na cena, a partir da teoria de Camargo, podem ser de

grande utilidade para o compositor. Primeiramente o livro Som e cena é uma obra

de difícil acesso. O autor, no ano de 1986, escreveu o livro Sonoplastia no teatro,

este é mais acessível em bibliotecas acadêmicas, porém seu conteúdo é menos

abrangente que o Som e cena. Já esta obra aqui referenciada, além de não tê-la

encontrado em nenhuma biblioteca universitária, igualmente sua aquisição por

meio de livrarias é bastante rara. Por esse motivo, acredito que levantar este

conteúdo a partir da teoria de Camargo, pode suscitar num maior interesse e,

14 Neste item proponho levantar vinte e quatro formas (de a a z) de como o som pode se expressar na cena, a partir da teoria de Camargo, contida em sua obra Som e cena. O conteúdo na íntegra que sustenta este item encontra-se da página 101 a 127 da obra do autor. Evitei inserir o número das páginas citadas em meio ao desenvolvimento dos tópicos pelo simples motivo de não tornar a leitura cansativa. Porém, permanecerei com o artifício das aspas ao citar o autor para diferenciar suas palavras das minhas. A opção pelo leve recuo do parágrafo, assim como o espaçamento entre linhas dos tópicos como simples, também tem o objetivo de facilitar a leitura do conteúdo.

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consequentemente, procura à obra, uma vez que a tenho como primordial em

acervos de bibliotecas universitárias. Outro motivo que me induziu a levantar este

estudo, é o simples fato deste fragmento do tema ser indispensável em meio ao

conteúdo desta dissertação. De uma maneira ou outra iria realizar apontamentos

de características sonoras expressivas na cena, sabendo que em determinado

momento a própria pesquisa exigiria isto. Acredito que a forma escolhida de

confeccionar este fragmento é a mais honesta, acima de tudo com o autor do

tema em questão, e com o estudo que desenvolvo, dedicando a este o conteúdo

de um fragmento necessário para a dissertação.

Camargo inicia este capítulo justificando que “o som não é apenas um

elemento que traz informações sobre tempo, espaço e ação, mas é também um

elemento expressivo” (2001, p.101). Em seguida o autor reflete sobre os motivos

pelos quais esses sons podem carregar essa expressividade.

*Na maneira como o som é emitido, revelando uma necessidade que o emissor tem em se expressar; *No modo como o som chega ao ouvinte, querendo provocar-lhe algum tipo especial de reação; *Na representação sonora de si mesma, buscando expressar o referente da melhor maneira possível, enfatizando-o, reforçando-o, destacando-o à percepção do ouvinte; *Na realização do som como expressão plástica, resultante de um elevado grau de elaboração estética. (Camargo, 2001, p.101)

Após essa reflexão, Camargo inicia o levantamento dos pontos que

indicam expressões sonoras na cena. Mencionarei estes pontos de maneira

sucinta, possibilitando esclarecer todos eles.

a. “O som como expressão do emissor”: essa característica sonora revela “as intenções e emoções do emissor”, neste caso, Camargo relaciona o emissor ao compositor do repertório sonoro da cena;

b. “O efeito do som sobre o ouvinte”: quando este fragmento sonoro pretende despertar determinada impressão no espectador. “Um som pode ser expressivo na medida em que visa atingir, envolver, persuadir, conduzir, advertir, enfim, provocar uma certa reação no ouvinte”;

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c. “A expressão do referente”: trata-se de uma releitura sonora a partir de uma referência sonora concreta. Camargo exemplifica o som de um trem. Afirma que há vários registros sonoros que o represente tal qual como ele é, porém esses registros sonoros não são tão criativos como a recriação desse som. Utilizando, por exemplo, instrumentos musicais, criando um som que o represente na sua estrutura característica, porém sem ilustrá-lo literalmente;

d. “O som como expressão de si mesmo”: quando o som se explica por si.

“[...] não exatamente uma reprodução ou uma demonstração convencional, mas uma verdadeira invenção sonora, que parece estar nascendo naquele instante”;

e. “A expressão como um todo”: quando o som não necessita de nenhuma

outra referência que o apóie, este transmite sozinho a informação desejada;

f. “Plano de ficção e plano da encenação”: os sons no plano de ficção são

àqueles que condizem diretamente com a cena, como, por exemplo, um ator que entra correndo todo molhado em cena sob um som de tempestade; os sons no plano da encenação não ilustram a cena em si, e sim propõem transmitir determinada postura, emocional ou reflexiva, sobre ela;

g. “O som como elemento de suspense”: quando o som sugere uma

expectativa sobre o público. “[o som que] cria uma expectativa em torno de algo que poderá acontecer, sublinhando as intenções das personagens e os movimentos motivados pela ação”;

h. “O som como intensificador”: o som com a função de evidenciar a

intenção da cena. “Serve para reforçar um diálogo, uma situação ou cena, como se a intenção fosse mesmo ‘sublinhar’, realçar ou dar ênfase àquilo que está sendo dito ou mostrado”;

i. “O som como multiplicador”: o som que sugere uma quantidade de referências visuais que não se encontram em cena. Camargo exemplifica o efeito sonoro que indica diversas vozes de multidão e o que se vê em cenas é um número de pessoas bruscamente inferior ao sugerido pelo som;

j. “O som com a função de amenizar”: o som que alivia a tensão da cena.

“[...] uma música, ou algum outro tipo de som é usado para amenizar o conflito ou o grau de intensidade da cena, por um processo de desdramatização.”;

k. “O som com a finalidade de resumir”: quando o som tem a finalidade de

abreviar a informação da cena. “[...] uma pequena intervenção musical pode explicar e resumir o que se pretende com a cena, dado poder de

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envolvimento da música e a rapidez com que ela expressa emoções, sentimentos, estados e climas”;

l. “Prolongamento através de som”: quando o som pretende estender a

informação transmitida na cena. “Quando termina o conflito e cessam as palavras, o som pode entrar como recurso de prolongamento, preenchendo o silêncio das expressões, dos confrontos e olhares”;

m. “O som com a finalidade de comentar”: geralmente este som carrega

um caráter crítico, ele comenta a cena após seu acontecimento. Como, por exemplo, uma cena em que um político discursa sobre o trabalho que fará por seu povo se for eleito e, no término de sua fala, ouve-se o som característico do abrir de uma caixa registradora antiga, sugerindo o dinheiro que o político irá ganhar em seu mandato.

n. “O som como contraste”: o som que sugere uma leitura oposta a da

cena apresentada. “Sua função passa a ser crítica, na medida em que acrescenta um elemento novo, não esperado, através do qual o espectador reformula seu o conceito a respeito daquilo que está vendo”;

o. “O som como citação”: quando é colocado em cena um som conhecido,

que sugere uma lembrança, um registro que não se origina da cena, porém, em seu contexto, esse som acaba propondo uma nova leitura para si;

p. “O som para expressar os estados da mente”: o som que, geralmente,

transmite a ideia de transtorno, transe, sonho, alucinação. “O som é um ótimo recurso de ilusionismo (em muitos casos superando o visual) e, imediatamente, é capaz de evocar imagens reais e também, distorcê-las, se for preciso”;

q. “O som indicando mudança de tempo e espaço”: o som que indica uma

evolução, ou mudança direta na narrativa do espetáculo. “[...] tiros de fuzil e metralhadora, em ‘Piquenique no Front’, de Arrabal, zunidos, passos e patadas e cavalo em ‘Equus’, de Peter Shaffer”;

r. “Som, humor e aspecto lúdico”: sons que auxiliam a provocar o efeito de

comicidade do espetáculo. Comumente utilizados em cenas de clown, esses sons desenham os movimentos da personagem, criando imagens. “A comicidade não poupa o exagero das associações entre visual e sonoro, às vezes lembrando desenhos animados e histórias em quadrinhos”;

s. “Som para criar clima”: geralmente é utilizado música para causar tal

efeito. É quando o som estende-se em seu formato, sem bruscas rupturas, a fim de auxiliar na permanência da atmosfera criada na cena;

t. “Som e emoção”: também recorrente no formato de música, é o som

que pretende atingir determinada emoção no espectador. Camargo

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chama a atenção que a música com objetivo de causar emoção pode às vezes, se sobressair à cena, transformando-a em um melodrama, ou até mesmo em uma paródia, muito eficaz se esse for o objetivo;

u. “Som para reconhecimento”: o som que referencia uma personagem ou

algo na cena que o tenha como característico. “[...] uma espécie de convenção sonora no decorrer do espetáculo: toda vez que ouve um determinado som, sabe-se que tal personagem irá entrar, ou uma tal situação será retomada, por antecipação sonora”;

v. “Som e personificação”: é o som independente, onde ele dialoga

diretamente com a personagem ou com determinada situação, como se fosse mais uma personagem em cena. “São as personificações sonoras, [...] contracenando com aqueles que estão no palco; ou então apresentando-se sozinhos, deixando transparecer sentimentos e reações humanas”;

x. “Som e silêncio”: o silêncio preenchido por conteúdos e significados na

cena. “O silêncio é sonoro. [...] não é uma simples pausa para o que vem a seguir, mas um signo da espera, da recusa, da inexistência, da renúncia, da resignação, da impossibilidade ou da morte”;

z. “Som e narração”: o som que narra a ação, como condutor da

dramaturgia, que explica a trajetória da cena.

Camargo propõe, com sua obra, pontuar importantes exemplos de como o

repertório sonoro pode desempenhar funções bastante convincentes na cena

teatral. Possibilitando experimentar e criar recursos sonoros que permitam

esclarecer a dramaturgia do espetáculo, tanto no sentido racional de sua

narração, quanto no sentido sensorial proposto pela cena.

O desenvolvimento deste item da dissertação possibilita uma reflexão a

respeito da diversidade do elemento sonoro e as propostas que podem ser

atribuídas a ele na cena. O som é algo que se permite ser criado, manipulado,

moldado, concebido para um fim específico. Numa montagem teatral, o som é

capaz de traduzir ou confundir imagens, suscitar emoções ou críticas a respeito

da cena, sugerir espaço, tempo, profundidade e dimensão. Infinitas são as

possibilidades de criar um repertório sonoro para a cena teatral. O compositor do

repertório pode criar diversos caminhos para conceber sua arte, e explorar

inúmeras maneiras de como chegar a eles. A respeito deste assunto, sobre o

compositor do repertório sonoro e sua criação, darei continuidade no subitem

abaixo.

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1.5 O COMPOSITOR E OS RECURSOS TÉCNICOS

Nem sempre uma equipe de uma montagem teatral conta com a presença

de um membro que cuida, do início ao fim do processo, do elemento sonoro que

será utilizado em cena. Há ocasiões em que é comum o diretor se dedicar

primeiramente em criar parte das cenas do espetáculo e, somente depois, solicitar

um músico ou um sonoplasta para sobrepor o elemento sonoro nas cenas. Esta

situação pode se originar de diversos e relevantes motivos e ocasiões, pelo

simples desconhecimento da área. A impossibilidade por questões financeiras de

contratar um membro da equipe destinado a trabalhar exclusivamente com o

elemento sonoro durante todo o processo da montagem; a falta de profissionais

qualificados que trabalham especificamente com a construção de repertório

sonoro para cena teatral; a opinião do diretor ou da equipe em acreditar que não

há a necessidade de o elemento sonoro ser desenvolvido durante todo o

processo de sua montagem; ou até mesmo a simples opção da direção ou da

equipe em favorecer o desenvolvimento de determinados elementos cênicos, sem

dedicar a mesma atenção ao elemento sonoro e a demais elementos cênicos. Em

montagens realizadas por grupos teatrais – em que os membros da equipe são

sempre os mesmos integrantes que realizam, geralmente, um repertório de

espetáculos – é comum que um desses integrantes destine seu trabalho voltado

ao elemento sonoro desde o início do processo, mesmo se este integrante seja

responsável por outra função em outro trabalho do grupo.

Particularmente, acredito que o trabalho total da montagem é valorizado

quando o integrante responsável pelo som participa desde o início do processo do

espetáculo junto de toda a equipe, e de todos os níveis de procedimento. Assim

ele pode reconhecer desde o início todas as indicações cênicas que oferecem

referências e aberturas para o elemento sonoro. Ao final do processo, o

compositor, como também a equipe da montagem, possivelmente percebem que

o elemento sonoro se inter-relacionou e dialogou com os demais, e não apenas

foi encaixado em meio a eles.

Um compositor de repertório sonoro não necessariamente tem de ser um

músico. Afinal, são diversas as possibilidades de como o formato do som pode

ser inserido na cena, sem ser preciso compor uma música em si. O som não é

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propriedade da música, logo, nem dos músicos. O som em si permite-se ser

apropriado por quem o aprecia. Independente do fator que o contextualiza, aquele

que ouve um determinado som se apropria dele, voluntaria ou involuntariamente.

A partir desse fato, qualquer pessoa pode desenvolver sensibilidade sonora, se

por isso optar, sem, necessariamente, tornar-se um músico. Voltado ao âmbito

teatral, o compositor de repertório sonoro dedica sua sensibilidade auditiva, junto

com os estudos a respeito de seu trabalho, à criação do elemento sonoro para a

cena.

Os estudos a respeito da criação do repertório sonoro da cena giram em

torno de alguns pólos inerentes: da própria prática desta atividade, e todos os

pontos desenvolvidos dentro dela; do conhecimento artístico teatral, mesmo que

uma base teórica ou prática a respeito desta vertente artística; do conhecimento

do elemento sonoro em si a partir das teorias elaboradas a seu respeito; e do

conhecimento técnico dos equipamentos e espaços dos quais se confecciona um

repertório sonoro, e se realiza a execução deste em uma apresentação cênica.

Com relação a estes pontos mencionados, Tragtenberg sugere que: “Na música

de cena, o conceito técnico e estético devem conceber e participar de uma

mesma solução encontrada, promovendo assim, uma maior visibilidade das

intenções objetivas” (2008, p.34). Nada adianta se o compositor criar fragmentos

sonoros belíssimos e não tiver uma noção técnica clara de como aproveitar da

melhor maneira sua criação no espaço cênico.

O compositor do repertório sonoro da cena depara-se com alguns

caminhos de possibilidades para a elaboração de sua criação. Souza nos indica

claramente esses caminhos:

A produção dos efeitos sonoros e da música pode se realizar através da voz humana, de objetos, do corpo humano, de equipamentos eletrônicos e de instrumentos musicais. Suas formas de apresentação podem ser ao vivo ou por reprodução através de aparelhagens eletrônicas (1999, p. 98).

O compositor pode escolher trabalhar com um, alguns, ou todos esses

caminhos numa montagem teatral. A maneira de como ele desenvolve e organiza

suas escolhas proporcionará ao repertório sonoro sua disposição na cena. As

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escolhas pelos meios de criação do repertório sonoro, assim como o conteúdo

que será inserido neste, poderão oferecer à cena diferentes leituras a respeito

dela. Uma vez que cada registro sonoro carrega consigo a possibilidade de

determinada, ou, determinadas interpretações.

Quando a escolha for trabalhar com ruídos e efeitos sonoros ao vivo, ou

por meio de aparelhagem eletrônica, por exemplo, este recurso pode ser bastante

eficaz, assim como podem também, ao mesmo tempo, soar de maneira confusa

ao espectador. Ruídos e efeitos sonoros sugerem, geralmente, uma transmissão

instantânea e objetiva da ideia de representação da cena, por geralmente estar

apoiando seu aspecto ficcional, como refletimos anteriormente com as teorias de

Camargo. Porém, se a intenção for criar uma paisagem sonora por meio desse

recurso para uma cena realista, por exemplo, a capitação do som por aparelhos

de gravação sonora – quando for o caso de transmissão por aparelhagem

eletrônica na cena – nem sempre consegue atingir a exata informação desejada.

Neste caso talvez seja válido optar pela sugestão de Camargo citada

anteriormente, de que a releitura e recriação de efeitos sonoros que representam

sons reais podem ser mais interessantes em cena do que a sonoridade original

desses efeitos.

No caso da música ao vivo na cena, comumente a presenciamos de duas

formas: quando há a presença dos músicos, na grande maioria das vezes visíveis

no palco ou em qualquer outro espaço da arquitetura cênica, ou quando a música

é executada pelos próprios atores.

No primeiro caso, são propostos em cena dois focos distintos e, por vezes,

simultâneos. Tanto os músicos quanto os atores encontram-se no campo de visão

do público. A partir dessa situação o diretor, ou o responsável pela criação

artística do espetáculo, opta pela interação músicos-atores, ou dependendo da

proposta, não estabelece nenhuma relação entre eles.

Quando a música é executada pelos atores o ato da reprodução musical

está diretamente ligado com a partitura corporal dramática do ator. Souza analisa

esta proposta, acrescentando como a música pode influenciar na compreensão a

respeito da personagem.

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[...] se o executante [da música] for um ator, [...] o significado da relação executante-cena tenderá a se fundir, de alguma maneira, compondo, assim, uma única realidade cênica. Além disso tanto a execução quanto a música em si e o instrumento tocado podem acrescentar informações à personagem, como o tipo de temperamento, sua condição sócio-cultural e seus sentimentos (Souza, 1999, p.99 e 100).

No caso da música executada por meio de aparelhagem eletrônica, os

recursos técnicos e espaciais onde esta será inserida, interferirão diretamente na

qualidade de seu funcionamento. Um conhecimento prévio da arquitetura da sala

de teatro, bem como da aparelhagem técnica que este dispõe, pode contribuir

profundamente na qualidade da execução do repertório sonoro. Esta qualidade

sonora também pode oferecer uma leitura mais clara do significado do elemento

sonoro inserido no contexto da montagem cênica.

Quando a música é mecanicamente veiculada, é necessário observar a disposição das caixas acústicas, no espaço em geral; os pontos de onde se deseja que a sonoridade proceda e o nível de volume que se pretende atingir com a reprodução das músicas. Essas observações irão contribuir para a fruição do espectador seja tanto diferenciada e eficiente de cena para cena, quanto de acordo com as intenções da estrutura estética da encenação (Souza, 1999, p. 101).

Caixas acústicas com potência insuficiente ou mal posicionadas, por

exemplo, podem prejudicar o instante da música na cena, não atingindo o efeito

sonoro almejado, por mais sublime e apropriada que essa música possa ser para

a cena. O levantamento dessa questão nos faz pensar que detalhes técnicos

sonoros não planejados, podem tanto desvaler a precisão da criação do repertório

sonoro, como podem também por em risco a compreensão de determinadas

informações fundamentais da montagem cênica.

Este apontamento de estudos técnicos da disponibilidade sonora no

espaço cênico serve para analisarmos quanto importante é o aparato que

sustentará o repertório sonoro criado para a cena teatral. Uma vez que a

qualidade de sua emissão revelará todo o conteúdo destinado única e

especialmente para o momento da encenação junto da apreciação de seu público.

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Durante o processo da criação cênica, o acompanhamento da construção

de cada elemento de cena indicará ao compositor sugestões e apontamentos a

respeito do conteúdo sonoro que ele desenvolverá em seu repertório. Cada som é

passível de revelar determinadas leituras de seu significado para quem a ouve. A

partir desse ponto, o compositor do repertório sonoro da cena pode voltar a

concepção de sua criação atento às leituras que cada instante sonoro pode

oferecer em meio ao contexto cênico. Pois, como foi analisado anteriormente, por

meio das teorias de Camargo, todo o som revelado em cena carrega em si o

propósito de sua existência.

1.6 RELATO SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DO REPERTÓRIO SONORO

DO ESPETÁCULO RETRATO DE AUGUSTINE

Neste item dedico-me em apresentar o relato do processo de criação de

repertório sonoro do espetáculo Retrato de Augustine, a fim de reconhecer nele

alguns pontos levantados neste primeiro capítulo, e debater como os resolvi na

prática. Pretendo, com este relato, mostrar uma das diversas possibilidades de

composição de um repertório sonoro para a cena teatral, porém, não aprofundarei

neste o conceito de “dramaturgia sonora”.

Neste relato é possível perceber as fragilidades desse processo, onde me

deparei com as dificuldades dessa criação e como tentei resolvê-las. Descrevo

nele desde as primeiras impressões sonoras que tive ao entrar em contato com

os eventos iniciais da montagem, as relações de trabalho com a equipe,

especialmente o acompanhamento da direção, até os últimos feitos sonoros do

repertório. Proponho neste relato também, uma análise descritiva de alguns

fragmentos sonoros e seus objetivos na cena. Realizo um levantamento das

bases sonoras das quais me apoiei para criar o repertório e quais os caminhos

construí para cada uma delas. E, por fim, analiso o resultado da criação. Reflito

sobre os aspectos dos quais acredito ter funcionado no espetáculo, porém ainda

passíveis de transformação, e os quais ainda tenho de continuar estudando e

experimentando para aprimorá-los.

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1.6.1 Descrição da concepção do repertório sonoro d o espetáculo Retrato

de Augustine

O Primeiro contato

No ano de 2008, em Florianópolis/SC, a diretora do projeto Retrato de

Augustine Brígida Miranda, juntamente com o produtor Fabiano Lodi, convocaram

uma reunião com todos os membros que formariam a equipe para assumir este

trabalho. Num espaço informal, um café, cheguei na data e hora marcada sem

saber do que se tratava. Tanto Brígida quanto Fabiano são pessoas bastante

próximas a mim, Fabiano foi meu colega na graduação e Brígida, minha

professora na graduação (e posteriormente no mestrado), além de orientadora de

estágio e Trabalho de Conclusão de Curso. Portanto ambos não apenas tinham

conhecimento que eu trabalhava com repertório sonoro na cena teatral, como já

eram bastante familiarizados com minha pesquisa. Ao iniciar a reunião Brígida e

Fabiano contextualizaram o projeto e revelaram qual era a proposta de trabalho

para cada pessoa que lá estava (naquele momento estavam presentes em torno

de quinze pessoas dentre elenco, preparadores de elenco e técnicos, além dos

proponentes). Foi perceptível a grandiosidade do projeto primeiramente pelo

número de convidados presentes numa primeira reunião e confirmada esta

percepção quando o produtor informou que este projeto estava concorrendo à

premiação de maior valor oferecido pela FUNARTE para teatro naquele ano.

Todos receberam muito bem a proposta e logo em seguida fizemos a leitura de

duas cenas do texto – intitulado Mesmerized.

Praticamente não há referências ligadas à sonoplastia propostas pelo texto,

porém foi possível perceber que na narrativa há várias possibilidades sonoras. A

primeira, e a mais direta, foram as músicas que poderiam ser escolhidas para as

cenas, uma vez que a peça encara uma estética realista representando a França

num período correspondente ao final do século XIX. Paralelamente a esta

primeira referência, ainda na leitura do texto, foi possível perceber que a

construção de uma paisagem sonora também seria bastante aceita dentro da

proposta, uma vez que as cenas se passam em um hospital – precisamente o

Hospital La Salpêtrière. Porém, foram vagas conclusões sonoras, afinal não

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conhecia o texto e minha atenção se voltava prioritariamente em assimilá-lo para

assim, posteriormente, pensar nos elementos sonoros que poderia inserir.

Divulgados os resultados do prêmio FUNARTE Mirian Muniz 2008, Fabiano

novamente entrou em contato informando a boa notícia e marcando uma nova

reunião com a equipe, que desta vez superava o número de vinte pessoas

envolvidas. Dentre informações burocráticas, também tivemos um novo contato

com o texto além da organização de um cronograma de ensaios que começaram

dias posteriores.

Como se trata de um elenco relativamente numeroso, além de haver

personagens que necessitaram de um maior tempo de preparação (como o caso

da personagem central, Augustine, interpretada pela atriz Juliana Riechel, que

está em cena praticamente todo o tempo), a direção estipulou núcleos de ensaio,

e ensaios gerais aconteciam esporadicamente durante o início do processo.

Minha primeira conversa com a diretora Brígida Miranda a respeito do repertório

sonoro do projeto ocorreu em meio essas primeiras semanas de ensaio. Brígida

expôs suas idéias sonoras e sua proposta se aproximou muito do que havia

pensado com relação à paisagem sonora do hospital. A diretora ainda colocou

idéias relacionadas às vozes e efeitos sobre elas como distorções, sobreposições

e demais explorações sonoras, efeitos sonoros como chuva e sons variados com

água e também a captação de uma voz masculina, específica, que ela ainda não

sabia de quem seria, mas que eu também pensasse em uma voz.

Além de todas essas referências, Brígida enfatizou uma referência sonora

que foi minha principal busca de pesquisa neste projeto: o som durante os

ataques histéricos de Augustine. A narrativa central do texto Mesmerized é

baseada em uma história real de uma adolescente, Augustine, que é internada no

Hospital La Salpêtrière por ter o diagnóstico de histeria, num período em que esta

doença estava começando a ser estudada por Dr. Charcot na França. Durante

seu período de internação Augustine teve um grande número de ataques

histéricos, alguns deles representados na peça. Brígida propôs para que eu

pensasse então, no som desses surtos partindo da audição de Augustine,

questionando como e quais os sons que esta menina ouvia durante seus ataques.

A partir daí, a diretora sugeriu que eu acompanhasse os ensaios de Juliana

juntamente com Kerrie Sinclair, que além de ministrar o treinamento corporal de

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Juliana (junto com o ator e preparador físico Pedro Coimbra), coreografou as

partituras corporais da atriz que representam os ataques da personagem

Augustine.

Primeira base: Os sons do surto

Com uma boa quantidade de referencias sonoras diretas e indiretas

partindo da diretora e com os ensaios de Juliana e Kerrie como um ponto de

partida bem definido, comecei a construir a primeira das três bases do repertório

sonoro que denominei como “os sons do surto”.

Comecei acompanhando os ensaios de Juliana e Kerrie, observando as

partituras corporais da atriz percebi as referências sonoras que as imagens

sugeriam, além do tempo de duração de cada partitura corporal. Meu próximo

passo foi pedir ajuda. Sabia que minha amiga e colega de pesquisa Renata

Swoboda tem conhecimento a respeito de programas de edição sonora, além de,

na época, Renata trabalhar em um estúdio de rádio, onde seria o lugar ideal para

realizar captações de áudio. Estipulada a parceria, começamos a mão-de-obra,

instalei um programa adequado para o trabalho em meu computador, chamado

Sony Vegas 5.0. Realizamos algumas captações sonoras de vozes dos atores no

estúdio da rádio UDESC, e também por meio do programa citado, sugeridas por

Brígida, e construímos edições. Porém faltava ainda um preenchimento que

desse a característica do surto, o transe, a indefinição sonora causada por fortes

contrapontos. A partir dessa idéia fui à busca de uma importante referência que

auxiliou na construção destes fragmentos sonoros relacionados aos surtos: a

música eletroacústica.

A estética sonora da música eletro acústica caracteriza-se (como o próprio

nome sugere) a uma sucessão de sons eletrônicos sem registro de uma

padronizada cadência harmônica ou tempo de marcação em compassos. Os

timbres comportam uma enfática variação entre graves agudos e o tempo de

duração de cada timbre também variam entre estendidos, sobrepostos e

estacados. Esse jogo sonoro resulta em contrapontos bem definidos o que sugere

a sensação de um som “fora do real”, como um transe.

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Construí, inicialmente, três fragmentos para “os sons de surto” dos quais

um se encaixou perfeitamente com a partitura corporal da atriz e pouco tive que

mudar até a estréia, outro não se adequou com a partitura para qual havia

planejado, porém guardei o fragmento e o encaixei tempos depois em outra cena

e o terceiro fragmento foi descartado completamente, pois nele havia sons de

piano e a diretora achava que o som do piano não era adequado para se

relacionar com a personagem Augustine, pois, para ela, segundo suas memórias,

este som adquire um caráter elitista que a personagem não comporta. Achei

completamente coerente o argumento e descartei o fragmento.

Quando se trabalha com construção de repertório sonoro para teatro, dois

acontecimentos são muito comuns: o primeiro é coletar mais material do que será

colocado por fim na cena, o que implica em deixar guardado para outro momento

muito do que foi pesquisado. No caso de Retrato de Augustine foram construídos

mais de cinqüenta arquivos de áudio dentre gravações de vozes, captações de

ruídos, músicas e diversos experimentos, para resultar em dezoito faixas de

fragmentos sonoros. E o segundo é negociar com a direção o que tira e o que

permanece no repertório, geralmente decidido pelo argumento mais coerente com

relação à proposta do trabalho. Poucos foram os experimentos sonoros que

Brígida sugeriu modificar ou tirar do repertório, na maioria das vezes ela achava

adequado o que eu apresentava e quando ficava em dúvida eu colocava a minha

visão a respeito do fragmento sonoro de determinada cena. Se a diretora

considerasse coerente eu permanecia com o mesmo, porém se ela sugerisse

alguma modificação, a sugestão era acatada, afinal era ela quem estava

idealizando o projeto num todo, sabia melhor do que eu a respeito da harmonia

entre todos os elementos da cena.

Após horas de gravações, edições e uma série de experimentos e

adaptações para a cena, ao todo foram construídos sete fragmentos sonoros

relacionados aos momentos de surto da personagem Augustine, dentre eles

quatro que representavam os momentos de ataques histéricos da personagem.

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Segunda base: A paisagem e a profundidade sonora

Inicialmente a idéia de construir a paisagem sonora que representasse o

ambiente do hospital, era que este som acompanhasse a cena durante todo o

tempo do espetáculo, exceto em momentos em que não estivessem em destaque

outros fragmentos sonoros. Como se fosse um total preenchimento do silêncio,

porém já de início essa idéia foi quebrada. O fato de sempre ter algum som sendo

emitido pelas caixas de som no espaço causava certo cansaço sonoro, uma

repetição auditiva desnecessária (mesmo que a ordem desses sons fosse sempre

diferente a cada cena, a repetição da mesma atmosfera sonora transbordava a

partir de algum momento). Logo me dei conta de que seria mais coerente curtir o

som natural da cena, os diferentes timbres de voz dos atores, os passos, os

assovios e cantarolar de Paul (personagem do ator Guilherme Rosário Rotulo) e

acima de tudo o tempo do silêncio, onde muitas vezes é a melhor opção sonora.

O espaço cênico de Retrato de Augustine divide-se em dois por uma

grande tela de tecido branca posicionada geralmente na metade do palco, onde

nela são projetadas imagens referentes principalmente aos surtos de Augustine.

Em frente a esta tela é representado o quarto de hospital de Augustine, onde

acontece a maior parte das cenas. Atrás da tela, que forma um filtro a partir do

jogo de luz, é representado o consultório de Dr. Charcot (José Ronaldo Faleiro),

que sugere uma dimensão na imagem diferente das cenas que acontecem à

frente, sugerindo distância e profundidade. Foi a partir desta sensação (que devo

esclarecer ser bastante pessoal, porém acredito ser recorrente ao público em

geral) que idealizei uma construção de paisagem sonora apenas nas cenas que

acontecessem atrás da tela de projeção e que referenciassem justamente o

espaço deste consultório. O objetivo era confluir os sons reais dessas cenas com

os sons mecanicamente emitidos, para isso foi necessário realizar uma série de

captações sonoras como passos de sapatos em assoalho, o som do lápis de Dr.

Charcot escrevendo em uma folha de papel, o som do folhar destes papéis, além

da captação sonora das rodinhas de uma maca de hospital, sobreposta a esta o

gemer, sussurrar e tossir das internas.

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Para proporcionar a sensação de profundidade que a imagem da cena já

carregava, emitir esses sons das mesmas caixas de saídas dos demais

fragmentos seria insuficiente, a idéia então foi posicionar outras duas caixas de

som auxiliares no fundo do teatro.

Foi necessário também editar esta faixa sonora com um delicado jogo de

volume, não deixando que o som do lápis no papel fosse mais alto que as

rodinhas da maca, e tanto essas rodinhas quanto os passos, regular num volume

que começasse baixo, fossem aumentando o e terminasse baixo (efeito de fade in

e fade out) para sugerir a sensação de algo que vem chegando, se aproxima e vai

embora.

Com o volume da faixa da paisagem sonora bem distribuído no programa

do computador, o problema seguinte era resolver qual o volume ideal a ser

emitido pelas caixas de som auxiliares. Pelo fato delas estarem posicionadas ao

fundo do teatro, sem o suporte do tripé, pois o teatro não dispunha desse aparato,

é evidente que os espectadores que sentassem nas últimas fileiras ouviriam o

som da paisagem sonora mais alto que os espectadores das primeiras. Por esse

motivo tive de optar entre deixar o volume da faixa um pouco mais alto

possibilitando um excesso sonoro para os espectadores das últimas fileiras, mas

garantindo que os das primeiras pudessem ouvir, ou deixar o volume mais baixo,

sutil aos ouvidos dos espectadores das últimas fileiras, porém sendo quase certo

que os da primeira não escutariam este fragmento sonoro. Considerei coerente a

segunda opção, uma vez que se tratando de profundidade e realismo é possível

que pessoas num determinado espaço ouçam barulhos que outras não ouvem

dependendo da proximidade. Porém, sabia que este tipo de “problema” só

aconteceria em teatros maiores. A peça estreou no Teatro Álvaro de Carvalho, em

Florianópolis, um teatro relativamente grande (cerca de quatrocentos lugares),

onde me deparei com a situação de optar pelo volume do fragmento, porém os

outros dois teatros dessa primeira temporada eram menores (cem lugares

aproximadamente) e a audição da paisagem sonora contemplou todo o espaço.

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Terceira base: As músicas

Uma música, erudita, sutil, sem muitos contrastes de timbres ou variações

rítmicas, era o que “ouvizualizava” (permitindo-me o neologismo) durante a

primeira leitura do texto realizada naquela primeira reunião. Um piano suave, não

tão romântico quanto intimista acompanhando os tensos, porém delicados passos

daquela menina naquele quarto de hospital, ou até mesmo uma música tocada ao

som de piano de um período clássico, comportando a magistral presença de Dr.

Charcot. Permaneci com esta sensação sonora até dar início ao período de

acompanhar os ensaios. Na primeira edição que construí, da qual se tratava de

uma cena onde ocorria o delírio de Augustine, que via e ouvia um homem

mandando-lhe lavar suas costas até desencadear em um ataque histérico, utilizei

como base um fragmento de piano de Chopin sobrepondo neste alguns ruídos

distorcidos de uma nota contínua de violino e pequenas frases soadas pela voz

de um homem (o ator e cenógrafo Fernando Marés). Aparentemente houve o

diálogo entre a partitura corporal da atriz Juliana com o fragmento sonoro que a

acompanhava. Ao final da cena, eu satisfeita com o resultado, Brígida permanece

por alguns segundos olhando fixamente para o local onde ocorreu a cena, em

seguida volta seu rosto para seu lado esquerdo, na minha direção e ao olhar para

mim diz “eu não gosto do piano”, depois de um rápido flash back em minha mente

visualizando toda a peça pautada em piano, respondi “sério?”.

Após uma busca por entre maravilhosas músicas ao som de violino e

violoncelo de consagrados compositores que, para minha sorte, já haviam

concebido obras-primas correspondentes ao período que pesquisara, escolhi

músicas de Johan Sebastian Bach e Franz Schubert para compor a mais

requintada base da pesquisa do repertório sonoro de Retrato de Augustine.

Para Brígida, como já colocado, este som lhe remetia a perspectivas

elitistas, que lhe pareciam distantes da realidade socioeconômica da personagem

da jovem Augustine. Sons de violino e violoncelo foram sugeridos por Brígida

naquele ensaio, por uma questão de contraste entre suavidade e tensão que o

som destes instrumentos pode sugerir. A partir deste momento direcionei a busca

da terceira base da pesquisa deste repertório.

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Atenta em respeitar o período do qual se transmite a narrativa da peça,

pesquisei autores e obras contemporâneas ou antecedentes a ela. De maneira

natural, também por corresponder muito bem à cena e até mesmo por maior

acessibilidade, acabei inserindo um número maior de músicas com base em

violino do que em violoncelo. Brígida, ensaio ou outro, sugeria “nesta cena eu

queria um cello”, e no ensaio seguinte lá estava eu sugerindo mais um som em

violino. Eu realmente acreditava que o som do violino estava fluindo perfeitamente

com a cena que, cogitava sim a ideia do cello, mas acabava acatando o violino. A

última música que selecionei, um ensaio antes da pré-estréia, foi uma cavernosa

e maravilhosa obra de Bach executada por apenas um violoncelo. A música

comporta o som de uma cena apresentada por meio de projeção da qual mostra a

personagem de Augustine poeticamente esfregando as costas de sua mãe

acomodada dentro de uma banheira. Ao mostrar esta música no ensaio, Brígida

se mostrou satisfeita com o que ouviu “lindo este cello, (pausa) eu não gosto de

violino!”. Naquele momento achei muito engraçada sua colocação e ao mesmo

tempo me senti muito bem em saber, mesmo que o som em si do violino não a

agradasse, ela respeitou meu trabalho, minha escolha e, percebendo a coerência

que o som do violino tem com as cenas, não interferiu no repertório sonoro por

uma questão de gosto pessoal.

O todo da obra

Qualquer seja o elemento teatral escolhido para ser estudado e trabalhado,

não há como ser concebido sem estar em sintonia e dialogar com os demais

elementos da obra (a não ser que esta seja a proposta do trabalho, lembro-me já

ter feito o repertório sonoro para uma coreografia de dança contemporânea em

que a única referência que foi dada a mim era o tempo de duração da coreografia,

no dia da apresentação fizemos o encontro entre som e dança). No caso do

processo de construção de Retrato de Augustine, o acompanhamento de todos os

elementos de cena resultou em um diálogo em que o cruzamento entre eles

ocorre durante o tempo todo do espetáculo. É possível perceber, enquanto

membro da equipe, que o trabalho é cadenciado como uma teia de aranha e suas

conexões, cada elemento de cena depende do outro.

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Há cenas em que a projeção indica o fragmento sonoro, que indica a

abertura do foco de luz, que indica o início das ações dos atores. Um trabalho

harmonioso e, mesmo sendo narrativamente centrado na personagem de

Augustine, cada elemento cênico, em algum momento, tem seu destaque, não

isolado e sim cadenciado.

Refletindo sobre este estudo sonoro percebo que foi um trabalho do qual

tive de estar sempre atenta a todos os elementos de cena, em especial a relação

do som com os atores e do som com as cenas de projeção. Na primeira era

necessário ficar atenta às ações dos atores, bem como o tempo de duração das

cenas, além de tentar sintonizar com o som a intenção (o “clima”) que a cena

propõe, por causa desse processo, geralmente o som era colocado em cena

depois da criação dos atores.

Com relação ao som e cenas de projeção o processo aconteceu na via

inversa, o elemento sonoro geralmente chegara antes do que as cenas de

projeção aos ensaios, porém no momento de sincronizar som e projeção alguns

ajustes sonoros foram realizados. Nestes casos, mesmo que as projeções

dialoguem com a personagem Augustine na cena, construí fragmentos sonoros

que correspondessem em primeiro plano às imagens projetadas. Passei então,

nessas cenas, a transferir o pensamento de construir fragmentos sonoros da

linguagem de teatro para a linguagem do vídeo, mesmo sabendo que estes

vídeos seriam pensados para teatro. Como foi minha primeira experiência com

construção de fragmento sonoro para vídeo, percebi que o diálogo entre esses

dois elementos (som e projeção), é um pouco mais distante que som e atuação

em cena. Como se o som adotasse uma postura subserviente à imagem no caso

da projeção (acredito que por causa do impacto que uma imagem projetada em

uma grande tela em meio a uma peça de teatro possa ter).

O processo da relação entre som e atores em cena, traçou um diálogo

mais estreito, passível de maiores intervenções entre ambos os elementos.

Possível também foi perceber os momentos em que o repertório sonoro se torna o

condutor da dramaturgia da cena, mesmo sabendo que esta estética de

concepção não era o foco do elemento sonoro. Porém, é esse um dos objetivos

que pretendo alcançar quando construo um repertório sonoro.

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Fazer do elemento sonoro uma ferramenta de diálogo com os demais

elementos de cena e extrair dele várias possibilidades, essa é a minha busca

enquanto compositora de cena. Ora reforçando a imagem proposta pela cena, ora

contrapondo a ela; concordando com alguns elementos e contrapondo com outros

ao mesmo tempo; sugerindo o ambiente da cena; causar sensações no público e,

quando coerente, conduzir a dramaturgia do espetáculo.

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1.6.2 Repertório sonoro do espetáculo Retrato de Augustine Faixa 01 – ABERTURA: Alegro I, BWV 1041 – Bach Violin Concertos – de Johan Sebastian Bach – Interprete: Lara St. John – Duração 3’30”. Faixa 02 – PRÓLOGO: Continuo Sonata in e, Adágio I, BWV 1023 – de Johan Sebastian Bach – sem informação de intérprete – Duração: 1’00”. Faixa 03 – ESCRITÓRIO HOSPITAL: Fragmento sonoro em formato de paisagem sonora – de Morgana Martins – Duração: 5’00”. Faixa 04 – VENTO HOMEM ATAQUE CIRCO VENTO: Fragmento sonoro em formato de colagens de efeitos sonoros e voz – de Morgana Martins – Duração: 5’16” Faixa 05 – SANTA TEREZA: Fragmento sonoro com trecho de Allegro ma non tropo de Franz Schubert pelo Royal Philharmonic Orchestra e gravação de voz. – de Morgana Martins – Duração: 3’30” Faixa 06 – HOMEM SANTA ESTUPRO: Fragmento sonoro em formato de colagens de efeitos sonoros e voz – de Morgana Martins e Renata Swoboda – Duração: 4’20”. Faixa 07 – TERCEIRO SURTO COM O HOMEM: Fragmento sonoro em formato de colagens de efeitos sonoros e voz – de Morgana Martins – Duração: 3’08” Faixa 08 – MÃE NA BANHEIRA: Fragmento sonoro – Sarabande, Cello Suíte n° 1 in G, BWV 1007 de Johan Sebastian Bach por Jaqueline du Pré – junto com áudio de projeção – Duração: 3’30” Faixa 09 – TEMPESTADE: Fragmento sonoro em formato de paisagem sonora – de Morgana Martins – Duração: 4’34” Faixa 10 – SEGUNDO ATO: Fragmento sonoro – trecho de Andantino-Allegretto de Franz Schubert pela Royal Philharmonic Orchestra – Duração: 0’36”. Faixa 11 – LOUVRE: Fragmento sonoro – trecho de Allegro Moderato – de Franz Schubert pela Royal Philarmonic Orchestra – Duração: 0’40” Faixa 12 – ATAQUE MME. CHARCOT: Fragmento sonoro em formato de colagens de efeitos sonoros – de Morgana Martins – Duração: 2’32” Faixa 13 – PRISIONEIRAS DO DOGMA: Fragmento sonoro – trecho de Romanza no. 2 in Fmajor de Ludwig Van Beethoven pela Orquestra Philharmonia Slavonia – Duração: 2’57”

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Faixa 14 – ENFERMEIRA CABARÉ: Fragmento sonoro – de Morgana Martins – trecho de Largo de Andy Carlson junto com trecho de Alegro de Andy Carlson – Duração: 1’10”. Faixa 15 – BERNADETE TERREZE HOSPITAL – Fragmento sonoro junto com paisagem sonora – de Morgana Martins – trecho de Adágio I, BWV 1001 de Johan Sebastian Bach por Lara St. John sobreposto por paisagem sonora de hospital de Morgana Martins – Duração: 5’10” Faixa 16 – ANTE FINAL: Fragmento sonoro em formato de colagens de efeitos sonoros – de Morgana Martins – Duração: 5’56” Faixa 17 – FINAL: Fragmento sonoro – Invention # 7 de Johan Sebastian Bach por Andy Carlson – Duração: 6’42”

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1.6.3 Informações técnicas a respeito da realização da emissão do repertório

sonoro do espetáculo Retrato de Augustine

Aparelhagem necessária para a reprodução do repertó rio sonoro do espetáculo Retrato de Augustine Equipamentos detalhados Fonte:

• Um computador notebook contendo dois programas de emissão de áudio que reproduza o fragmento sonoro em formato de faixas musicais, como o Windows Media Player, ou o BS Player, por exemplo.

Processador:

• Mesa de som com, no mínimo, oito canais balanceados com Phanton Power;

• Cinco cabos para conexão das caixas à mesa de som com 30m cada.

• Um cabo para conexão da fonte à mesa com 5m e saída p2 em uma das extremidades;

• Cinco cabos de extensão com 20m cada para conexão das caixas de som à eletricidade: saída para três conexões elétricas em uma das extremidades e saída macho em outra extremidade;

• Um cabo de extensão de 10m para conectar a fonte à eletricidade: saída para duas conexões elétricas em uma das extremidades e saída macho em outra extremidade.

Emissor:

• Duas caixas de som P.A. Stereo balanceado frontal para som do palco em direção à plateia;

• Duas caixas de som auxiliares stereo, posicionadas ao fundo da plateia para emissão de paisagem sonora;

• Uma caixa de som ativa com potência embutida posicionada ao fundo do palco para emissão sonora da projeção.

OBS: A potência das caixas é de 300w rms cada.

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Planta baixa do posicionamento das caixas de som pa ra emissão do repertório sonoro de R etrato de Augustine

Imagem n˚ 1

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CAPÍTULO 2 – O CONCEITO DE “DRAMATURGIA SONORA” A P ARTIR DOS

ESPETÁCULOS DO CIRCO TEATRO UDI GRUDI

O termo “Dramaturgia Sonora”, tal como já observei na Introdução desta

dissertação, aparece como subtítulo do livro Música de Cena (2008) de Lívio

Tragtenberg, porém o autor não o define como um conceito específico. Neta obra,

Tragtenberg aponta e discute aspectos do repertório sonoro da cena, em que, no

caso, o autor denomina o elemento sonoro teatral como “música de cena”. No

conteúdo de suas páginas é possível encontrar material de apoio para o

desenvolvimento do termo “dramaturgia sonora” usado nesta dissertação, porém

a definição deste termo enquanto conceito ainda é algo a ser pesquisado e

elaborado. Em páginas da internet também é possível encontrar o termo

“dramaturgia sonora”, sobretudo com a função de ser mais uma definição de

sonoplastia, trilha sonora, repertório sonoro, ou qualquer outra denominação para

o elemento sonoro na cena. Porém, na web, também não foi possível descobrir

uma definição científica desta nomenclatura enquanto conceito. Eu mesma

trabalhei com este termo, como colocado na Introdução, em meu TCC, e não o

aprofundei na ocasião. Com este capítulo espero contribuir para o

aprofundamento deste termo.

A importância da explanação a respeito do termo em questão se faz

necessária a partir do momento em que este torna-se apropriado para elucidar o

trabalho sonoro do objeto de pesquisa dessa dissertação. As três montagens

cênicas do Circo Teatro Udi Grudi, O Cano (1998), O Ovo (2003) e A Devolução

Industrial (2010), abordadas neste estudo, nos mostraram que seu elemento

sonoro é destaque especial na cena. Essa particularidade sonora, característica

marcante nos trabalhos do grupo, nos faz perceber que ao repertório sonoro

compreende-se a função de condutor da dramaturgia da cena.

Para problematizar o termo “dramaturgia sonora” levanto a questão a

respeito do termo “dramaturgia”. O conceito de dramaturgia que avalio como mais

apropriado para o desenvolvimento desta dissertação é o elaborado por Patrice

Pavis em sua obra Dicionário de Teatro (1999). Pavis discute o termo dramaturgia

como algo que se refere ao todo da obra teatral e não apenas uma referência ao

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texto dramático tal como era entendido nas primeiras décadas do século XX. Em

seu verbete sobre dramaturgia, Pavis aponta que foi a partir do teatro épico de

Brecht que se ampliou a noção sobre dramaturgia.

A partir de BRECHT e de sua teorização sobre o teatro dramático e épico, parece ter-se ampliado a noção de dramaturgia [...]. Nesta acepção, a dramaturgia abrange tanto o texto de origem quanto os meios cênicos empregados pela encenação. Estudar a dramaturgia de um espetáculo é, portanto, descrever a sua fábula “em relevo”, isto é, na sua representação concreta, especificar o modo teatral de mostrar e narrar um acontecimento (1999, p. 113).

A recente visão sobre o termo dramaturgia a partir da teoria de Pavis nos

mostra também que a ideia de cronologia e homogenia cederam espaço à

dramaturgia fragmentada. E ainda, no mesmo fragmento de seu livro, Pavis

discute que, mesmo depois de Brecht, a dramaturgia abrange fundamentos que

vão além da identificação ou distanciamento do público perante a obra. Assim

como se diluiu também a busca por princípios estético-ideológicos de

dramaturgia, dando espaço à própria visão de realidade.

Não se fundamenta mais o espetáculo apenas na identificação ou distanciamento. Alguns espetáculos tentam mesmo retalhar a dramaturgia utilizada, delegando a cada ator o poder de organizar seu texto de acordo com sua própria visão de realidade. Portanto, a noção de opções dramatúrgicas está mais adequada às tendências atuais do que aquela de uma dramaturgia considerada como conjunto global e estruturado de princípios estético-ideológicos homogêneos (Pavis, 1999, p.114 e 115).

A formulação do conceito de dramaturgia de Pavis pode ser percebida na

estética apresentada pelos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi. A opção pelo

texto dramático como apenas mais uma ferramenta e não como um condutor

central da dramaturgia é uma das características mais identificáveis nos trabalhos

do grupo. Assim, como a narrativa não cronológica na sequência das cenas,

ponto também discutido por Pavis, é uma característica do trabalho de Circo

Teatro Udi Grudi.

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A inserção da palavra “sonora”, que complementa o termo em questão,

“dramaturgia sonora”, foi adotada ao perceber que a dramaturgia dos espetáculos

do Circo Teatro Udi Grudi era conduzida pelo repertório sonoro da cena. Nas

montagens do Circo Teatro Udi Grudi há o emprego do signo verbal, porém a

palavra, quando colocada em cena, não carrega consigo a responsabilidade de

oferecer ao público uma noção narrativa da obra. A palavra, em seus espetáculos,

é inserida como mais uma exploração sonora de timbres e intensidade de

volumes, como os demais instrumentos musicais das cenas, do que a significação

do que essa palavra pode representar. A prova disso é que, quando o grupo

apresenta seus espetáculos em outros países, os integrantes geralmente

permanecem com o idioma em português para suas falas, e a reação do público,

segundo Beré em entrevista de 2007, é de achar graça da maneira como as falas

são colocadas em cena, sem ser interrompida por certo abismo linguístico entre

ator e público.

Assim como a fala, ou o texto dito pelos atores nos espetáculos do Circo

Teatro Udi Grudi, está muito mais ligada à sonoridade que ela pode produzir do

que seu próprio significado, é possível também identificar nos demais elementos

de cena essa ligação com o elemento sonoro. As ações dos atores praticamente

giram em torno da produção de um fragmento sonoro, que desencadeiam na

construção de instrumentos musicais, e acaba com a utilização desses

instrumentos na execução das músicas das cenas. O cenário ora serve como

instrumento musical ora o instrumento musical comporta também a finalidade de

cenário. Há cenas em que os figurinos se transformam em instrumentos musicais,

ou todo ele é uma série de instrumentos, como é o caso de Lixaranga. A própria

direção de cena de Sykes é pensada na ação e no som simultaneamente.

Dentre os fatores estéticos sonoros da produção de trabalho do Circo

Teatro Udi Grudi voltados aos seus espetáculos, juntamente com o conceito de

dramaturgia de Pavis, é que encontro as bases para formular o conceito de

“dramaturgia sonora”. O espetáculo cênico que tem por finalidade conceder ao

repertório sonoro a função de ser o elemento condutor da dramaturgia da cena,

apresenta uma “dramaturgia sonora” em seu desencadeamento. A montagem

cênica em que é perceptível a inserção de demais elementos de cena

correspondentes ao repertório sonoro, também mostra o emprego da

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“dramaturgia sonora” em meio ao trabalho. Essas são características

predominantes nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi. E foi a partir de seus

trabalhos que despertou em mim o interesse de estudar e pesquisar o repertório

sonoro como condutor da dramaturgia da cena, elaborando assim, o conceito de

“dramaturgia sonora”.

2.1 O PONTO DE PARTIDA

Ao presenciar pela primeira vez um espetáculo do Circo Teatro Udi Grudi,

especificamente o espetáculo O Cano, em 26 de setembro de 2005, no Teatro

Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, tal como coloquei na Introdução deste

trabalho, percebi que, de um modo muito intenso e significante, o elemento

sonoro era o condutor da dramaturgia da cena. Foi a partir dessa experiência

cênica que passei a ter o interesse de estudar e desenvolver o termo “dramaturgia

sonora”.

Durante o processo de apreciação deste espetáculo, concluía, a cada

minuto do desenrolar da cena, que seu elemento sonoro era cuidado e

organizado de maneira que era possível comparar a evolução sonora da

encenação como uma obra musical. Naquele momento nascia uma paixão e

admiração sonora pelo trabalho do Circo Teatro Udi Grudi. A temática de meu

Trabalho de Conclusão de Curso explodiu dentro de mim, num desejo de

conhecer e entender profundamente os processos e os procedimentos desse

corpo cênico/musical. Esta necessidade não completou-se com a monografia de

graduação, por isso o desejo de verticalidade adentraram-se com esta

dissertação.

Compreendi, depois de conhecer outros trabalhos e ter encontrado com os

membros deste grupo ao entrevistá-los, que a linguagem sonora nos espetáculos

do Circo Teatro Udi Grudi propõe uma compreensão a respeito da idéia do enredo

das cenas da qual o texto verbal parece não atingir. Souza discute a respeito da

dimensão que o elemento sonoro é capaz de alcançar na cena, sem ter de

recorrer essencialmente ao elemento verbal: “Há momentos em que só a prosódia

propriamente dita parece não conseguir atingir dimensões como aquelas que são

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proporcionadas por circunstâncias em que o fio musical atua como condutor”

(1999, p.136). Esclareço, referente a este fragmento, que Souza cita o termo “fio

musical”, ou música propriamente, como repertório sonoro da cena. Souza

acrescenta ainda como o elemento sonoro pode contribuir na questão

informacional ou sensorial da cena. Sua afirmação ajuda também a esclarecer a

respeito do trabalho sonoro do Circo Teatro Udi Grudi:

[...] a música, através de seus elementos e de suas vias de sugestões, de naturezas diferenciadas, pode enriquecer ou traduzir o nível informacional, bem como incrementar ou dimensionar o nível sensorial da comunicação teatral em processo (Souza, 1999, p.136).

Uma montagem teatral pode ter como ponto de partida qualquer um dos

elementos cênicos, ou até mesmo mais de um deles. É comum presenciarmos

processos teatrais em que o ponto de partida é o texto dramático ou o resultado

de determinado treinamento de ator. Geralmente o elemento cênico escolhido

como ponto de partida pode acabar conduzindo a dramaturgia da montagem

teatral, seja de maneira clara ou subjetiva, independente se esta dramaturgia se

apresenta de forma cronológica ou fragmentada. O Circo Teatro Udi Grudi opta

pelo elemento sonoro como condutor da dramaturgia de seus espetáculos. O

espetáculo O Cano é o trabalho que melhor esclarece essa concepção. Os

espetáculos O Ovo e A Devolução Industrial, outros dois espetáculos objetos de

pesquisa dessa dissertação, também têm o repertório sonoro como condutor da

dramaturgia da cena, e mesmo que nestes dois casos essa característica não

seja tão evidente como em O Cano, é possível discutir e concluir esta análise.

Levantarei um paralelo entre os três espetáculos estudados do Circo Teatro Udi

Grudi a fim de comparar como estes, mesmo referenciando diferentes

abordagens de enredo e evolução de cena, apóiam-se no repertório sonoro como

condutor da dramaturgia de seus espetáculos. Porém, anterior a esta análise,

discorrerei sobre os contextos que envolvem o Circo Teatro Udi Grudi, com o

objetivo de esclarecer a respeito do grupo para melhor facilitar a análise de seus

trabalhos.

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2.2 CIRCO TEATRO UDI GRUDI: UM BREVE RELATO DE UMA LONGA

HISTÓRIA15

Nariz vermelho e maquiagem branca no rosto, músicas tocadas por

acordeom e violão, palhaçadas em plenas ruas de Brasília e brincadeiras com o

público que transitava. Desta maneira tradicional e improvisada foram surgindo os

primeiros passos do Circo Teatro Udi Grudi em 1982. O primeiro espetáculo foi

realizado na rua, tinha por cenário uma caixa de onde saiam palhaços que faziam

suas acrobacias, malabarismos e tocavam música. O nome do espetáculo: Gran

Circo U de Grude, “porque foi criado no porão de um antigo casarão em Belém do

Pará [...] e o nome vinha do termo underground” (Villar, artigo não publicado).16

Este primeiro trabalho contou com a participação de sete pessoas, dos quais

permanecem até os dia atuais apenas Luciano Porto e Márcio Vieira (Marció). Em

1983 ingressou no grupo outro elemento que se mantém na sua formação atual,

Marcelo Beré, que tomou parte do novo espetáculo do grupo Gambira, em 1983.

Em 1985 o grupo adquiriu sua primeira lona, e nela Beré, Porto e Luciano

Astiko, integrante da época, começaram os dedicados estudos em trapézio e

equilibrismo com Fernando Gama, e a arte clownesca com o experiente palhaço

Antônio Alves, o Sacarrolha.

No final da década de 1980 o grupo adotou uma nova característica em

seus trabalhos. O espetáculo A Greve do Circo foi criado a partir de um contexto

teatralizado. A montagem apresentava um enredo cronológico e incorporava as

acrobacias e malabarismos em meio à fábula. Essa característica predominou nos

trabalhos seguintes do grupo, e as relações entre circo e teatro foram ficando

cada vez mais estreitas. Em 1989 o Circo Teatro Udi Grudi montou o espetáculo

A Menina dos Olhos, sob a direção de Hugo Rodas e vencedor do edital nacional

15 Neste item da dissertação optei por relatar de maneira resumida a história do Circo Teatro Udi Grudi, uma vez que já escrevi uma versão detalhada de sua história em meu Trabalho de Conclusão de Curso (2007). Acredito, porém, ser relevante da mesma forma mencionar a história do grupo nesta dissertação, pois nem sempre o leitor se interessará em ler, ou se deparará com ambas as obras. Outro fator relevante é que diante do contexto desta dissertação julgo fundamental um fragmento que contextualize a história do Circo Teatro Udi Grudi para melhor compreender a concepção da discussão e análise do tema deste trabalho. 16 Fernando Pinheiro Villar. Abrindo o Dossiê Udi Grudi: 25 anos insistencialistas. Artigo não publicado, cedido a mim pela diretora Leo Sykes via e-mail, em 2007.

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Concorrência FIAT. Neste trabalho, segundo os integrantes, é possível

reconhecer traços dos trabalhos atuais do grupo.

Os integrantes Beré e Porto viajaram à Inglaterra em 1991 e 1992, por

meio de uma bolsa do Conselho Britânico, para o ISTA.17 Neste evento Beré

conhece Leo Sykes, atual diretora do Circo Teatro Udi Grudi. Sykes, nesta época,

era assistente de direção de Eugênio Barba e apresentou no ISTA um trabalho

onde os integrantes do evento poderiam participar. Beré participou do trabalho,

“Marcelo [Beré] fez algo com perna-de-pau e pandeiro, era um brasileiro maluco

lá no meio da coisa que se virou muito bem”, relembra Sykes18. Ao retornarem ao

Brasil, Beré e Porto viram que a produção de trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi

caminhava em passos lentos, nenhum grande trabalho foi realizado pelo grupo

neste período. Em 1994, Porto e Sykes se conheceram no ISTA de Londrina. E

em 1996 Beré, Porto e Astiko participam do ISTA de Copenhage por meio de uma

simbólica e importante ajuda de Sykes, “eles caíram de para-quedas e me

pediram para entrar” (Sykes, entrevista, 2007). Villar escreve em seu artigo, por

meio das palavras de Porto, que no ISTA de 1996, os três palhaços brasilienses

tiveram a oportunidade de ver e conviver com mestres do teatro como Dario Fo,

Franca Rame, Jerzy Grotowski e outros grandes nomes da arte teatral.

Em 1996 Sykes e Beré começaram a namorar, resultando, posteriormente,

em casamento. No final de 1996 Sykes veio morar no Brasil, e Porto a convidou

para dirigir um trabalho que explore a linguagem do clown, utilizando os

instrumentos de Marció, convidando-o também para atuar na montagem. Desta

ideia inicial surgiu o espetáculo O Cano.

O convite foi aceito por Sykes e Marció. No início a diretora se deparou

com um grande choque profissional e estético. Ela, inglesa, há cinco anos

trabalhando como assistente de direção de Eugênio Barba veio morar no Brasil e

começa a dirigir um grupo que, segundo ela nem parecia um grupo. Sykes

percebia que os integrantes eram portadores de grandes talentos teatrais, porém

não era acostumada a trabalhar com as habilidades que eles ofereciam. A saída

encontrada por Sykes foi a “troca”, os atores ofereciam seus números de clown, 17 International School of Theatre Anthropology, fundada em 1979 pelo diretor da companhia teatral Odin Theatre Eugênio Barba. 18 Leo Sykes, entrevista realizada por Morgana Fernandes Martins, em 22 de abril de 2007, na sede do Circo Teatro Udi Grudi, em Brasília.

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suas músicas e instrumentos musicais e ela, então passou a propor a disciplina

conforme sabia trabalhar. Esse cruzamento de experiências gerou um trabalho de

grande visão profissional. Sua estética chamou atenção para além das fronteiras

nacionais.

O espetáculo O Cano foi composto por três atores, Luciano Porto, Marcelo

Beré e Marcio Vieira, sob a direção de Leo Sykes. Este trabalho estreou em

Brasília, no Teatro Dulcina em março de 1998, com excelente recepção do

público. No mesmo ano o grupo levou o espetáculo para Belenzinho, São Paulo,

pelo SESC e lá um produtor suíço conseguiu um convite para o grupo se

apresentar em Edimburgo em 2000. Na apresentação, em que tudo levava a crer

que o Circo Teatro Udi Grudi seriam só uns brasileiros sem muito destaque,

resultou em uma verdadeira conquista entre espetáculo e espectador, incluindo

repórteres e organizadores do evento. Atualmente O Cano continua a ser

apresentado pelo mundo, o espetáculo já foi apresentado em treze países e em

quase todos os estados do Brasil. Em 2007, quando perguntei ao grupo qual seria

o tempo de vida do espetáculo O Cano, os integrantes responderam: “Enquanto o

Marció couber no barril!”19

Durante o período de amadurecimento do espetáculo O Cano, início da

primeira década do século XXI, os integrantes do Circo Teatro Udi Grudi

começaram a construir um novo trabalho, o espetáculo O Ovo, e também neste

período surgiu a proposta de Lixaranga. Ambos os espetáculos tem como

integrantes a mesma equipe de trabalho, Leo Sykes na direção, e Porto, Beré e

Marció no elenco. A proposta estética de O Ovo é bastante semelhante a d’O

Cano, a estrutura do palco italiano, o cenário que ocupa toda a área do fundo

palco, os instrumentos musicais de materiais alternativos, canções populares em

meio às cenas, todas essas característica encontram-se em ambos os trabalhos.

Contudo, a abordagem do conteúdo das duas encenações se difere, ainda que

ambas possuam forte atrativo para o público infantil. Em O Cano há o jogo do

palhaço em meio a todos os materiais que compõem os instrumentos do

espetáculo, em O Ovo, mesmo que se percebam essas mesmas características

em algumas cenas, há uma abordagem social que O Cano não tem. O grupo teve 19 Luciano Porto, Marcelo Beré, Marcio Vieira e Leo Sykes, entrevista realizada por Morgana Fernandes Martins em 22 de abril de 2007, na sede do Circo Teatro Udi Grudi, em Brasília.

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bastante dificuldade para construir o novo espetáculo. Em 2007 O Ovo já existia

há quatro anos e lembro-me de Sykes (entrevista, 2007) colocando questões a

respeito do trabalho as quais ela ainda não sabia responder. Na entrevista

realizada em 2007, o grupo seriamente brincava com o nome do espetáculo: “O

problema é o título, O Ovo! Ovo é uma coisa que está sempre pra nascer e não

nasce!”

O espetáculo Lixaranga apresenta uma proposta que difere em maiores

aspectos dos outros dois mencionados. É um trabalho de rua, os integrantes se

relacionam diretamente com o público e seu maior atrativo são os figurinos. Todos

os materiais que vestem os atores possuem a capacidade de emitir sons. Placas

de metal no peito, cano de fiação elétrica que se estende do chapéu de tampo de

chuveiro à boca, também emitindo som ao soprá-lo, além dos próprios

instrumentos musicais de materiais alternativos que os atores carregam

acoplados a esses figurinos. Atualmente o espetáculo Lixaranga não está mais

incluso como um dos espetáculos do repertório do Circo Teatro Udi Grudi.

Entre o início dos ensaios de O Cano, em 1998, até 2007, eram esses os

três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi: O Cano, O Ovo e Lixaranga. Em abril

de 2007, o grupo estreou um novo trabalho: Udi Grudi em ConSerto. Este trabalho

foi realizado para estrear justamente no aniversário de vinte e cinco anos do

grupo, durante o evento Udi Prata, comemorando as bodas de prata do Circo

Teatro Udi Grudi. Foi neste evento que tive a oportunidade de presenciar todos os

trabalhos do grupo, entrar em contato com sua história, entrevistar, conhecer seus

integrantes, as demais pessoas que acompanham e apóiam o trabalho da equipe.

O espetáculo Udi Grudi em ConSerto apresenta algumas das músicas executadas

em O Cano e O Ovo em uma espécie de concerto musical. Naquela ocasião,

além dos instrumentos já utilizados originalmente nos espetáculos, houve o

acompanhamento primoroso de músicos tocando violinos e violoncelos, além de

um coral de crianças que cantavam as canções da apresentação junto com a

execução sonora dos três atores.

Três anos após a primeira visita à Brasília, em maio de 2010 tive

novamente um encontro com o Circo Teatro Udi Grudi. Após a minha chegada à

cidade fui me encontrar com Sykes, em sua casa, para realizar uma entrevista.

Inicialmente perguntei a ela “O que aconteceu com o Udi Grudi nestes três anos,

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2007 a 2010?” Sykes respondeu que após o ano de 2007 o grupo foi contemplado

com o edital da Petrobrás, o que gerou uma série intensiva de turnês pelo Brasil,

a contratação de um produtor exclusivo para o gerenciamento dos trabalhos, fato

inédito para o grupo, e o início do processo do espetáculo A Devolução Industrial,

que estreou em março de 2010. Neste novo espetáculo, após doze anos

trabalhando com a mesma equipe, Marció não está em cena, mas ainda assim

confeccionou os instrumentos musicais da encenação. Entrou em cena Joana

Abreu. Joana é cantora de música popular brasileira, este fator enriqueceu ainda

mais o trabalho sonoro do Circo Teatro Udi Grudi.

Desde março de 2010 o grupo está promovendo seu mais recente

espetáculo A Devolução Industrial, porém ainda mantém em seu repertório O

Cano, O Ovo e Udi Grudi em ConSerto, compondo o repertório representativo do

trabalho do Circo Teatro Udi Grudi.

2.2.1 A segunda visita

Ao ingressar no mestrado, em março de 2009, formulei o projeto de

dissertação tendo como base aprofundar questões a respeito do repertório sonoro

da cena teatral que foram levantadas em minha monografia, realizada em 2007.

Uma dessas questões refere-se às possibilidades do repertório sonoro como

dramaturgia da cena. Para avançar nesta questão optei por continuar

pesquisando o Circo Teatro Udi Grudi. Desta vez, ao invés de abordar apenas um

de seus espetáculos como objeto de estudo, escolhi três trabalhos, com o intuito

de realizar estudos paralelos, e consequentemente analisar novas possibilidades

de repertório sonoro como dramaturgia da cena. Diante desta questão deparei-me

com a necessidade de realizar um novo encontro com o grupo, a fim de saber de

suas realizações depois de 2007, assim como colocar para eles meus novos

questionamentos.

Entre os dias 20 e 23 de maio de 2010 encontrei-me novamente com

Sykes, Porto, Beré e Marció. Pousei em solo brasiliense às 13h, às 14:30h

cheguei na pousada em que havia feito reserva e às 15h estava na casa de

Sykes e Beré, conforme combinei com Sykes, pois às 17h ela teria outro

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compromisso. Por coincidência, ou sorte, a pousada onde me hospedei ficava há

duas quadras da casa de Sykes e Beré. Realizei a entrevista apenas com a

diretora do grupo, pois ela não iria acompanhar-nos no dia seguinte na viagem à

Jataí, interior de Goiás, da qual fui convidada a participar pela própria equipe.

Dia 21 de maio, saímos de Brasília às 15h, e o que seria um trajeto de seis

horas, teve fim às 1h da manhã com a chegada em Jataí. Engarrafamento devido

a acidentes na estrada dentre outros imprevistos nos fizeram sofrer este atraso de

quatro horas. Mesmo cansada, o atraso não me atingiu como um fator negativo,

afinal essa foi a primeira vez em que entrei em contato com Beré, Porto e Marció

sem ser num contexto de entrevista, ou assistindo a um ensaio ou apresentação.

Esta foi uma grande oportunidade de conhecê-los além da condição de objeto de

pesquisa. No dia seguinte os acompanhei desde o descarregamento de

instrumentos musicais e cenários até a montagem dos mesmos para a

apresentação. Esta apresentação encontrava-se ligeiramente fora dos padrões

habituais em que Circo Teatro Udi Grudi costuma se apresentar. Tratava-se de

um evento em um hotel proposto pela Receita Federal de Jataí para seus

funcionários. O coordenador do evento, ao esclarecer sua ideia a Beré, tinha a

intenção de propor a apresentação de um espetáculo teatral que, além de servir

de entretenimento aos seus funcionários, os fizessem perceber também o quanto

é valioso e produtivo o trabalho realizado por si mesmo. O que os três integrantes

realizaram diante desta proposta, foi uma apresentação na qual eles se

comunicavam diretamente com a platéia, conversando com eles. Entre essas

rápidas conversas, das quais também mostravam os instrumentos musicais e

contavam como foram construídos, tocavam algumas músicas de seus

espetáculos. Ao final da apresentação os integrantes convidavam parte do público

e os ensinavam a tocar alguns instrumentos, realizando uma grande interação

com a platéia. O público ficou encantado com o trabalho de Beré, Porto e Marció,

e o coordenador do evento extremamente satisfeito com o resultado. Mesmo

sendo uma apresentação fora dos moldes do Circo Teatro Udi Grudi foi possível

novamente entrar em contato com seu trabalho, e poder tocar e analisar todos os

instrumentos musicais construídos por Marció. Pude ver e experimentar

instrumentos que ainda não existiam em 2007, além de ter a possibilidade de

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perguntar a Marció sobre qualquer dúvida que tivesse a respeito desses

instrumentos musicais.

No período da noite, ainda antes do jantar, realizei uma entrevista com os

três atores. No dia seguinte, após o almoço, retornamos a Brasília e desta vez

tivemos três horas de atraso na estrada. Imprevistos sempre acontecem, o

importante é que consegui concluir meu trabalho em Brasília. Ainda, como

desfecho desta pesquisa de campo, de Brasília fui para São Paulo pesquisar

material teórico em bibliotecas universitárias e mais uma vez contei com a sorte.

O Circo Teatro Udi Grudi apresentou no dia 07 de junho o espetáculo A

Devolução Industrial em São Paulo, na sala Crisantempo na Vila Madalena,

sendo este o único trabalho que eu ainda não havia visto do grupo. No último dia

que passei em São Paulo, nessa viagem, pude assistir o mais recente trabalho do

Udi Grudi. A oportunidade possibilitou não apenas a inclusão deste espetáculo

como análise na dissertação, como também, e acima de tudo, a apreciação de

mais um trabalho realizado por este grupo.

2.3 OS ATORES/MÚSICOS: uma somatória de conhecimentos

Os espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi, mesmo sem adotar a

classificação de teatro para o público infantil, são trabalhos que atraem fortemente

a atenção deste público. Nas apresentações de seus trabalhos as crianças

geralmente estão presentes, ainda que sem ser esta a faixa etária de maior parte

do seu público. Um dos fatores atrativos do Udi Grudi ao público infantil é a

exploração da técnica de clown como trabalho de ator. Esta linguagem atraia os

seus integrantes antes mesmo da criação do grupo, como foi o caso de Beré e

Porto. Os atores praticaram a arte do circo, estudando diversas vertentes que

esta arte pode oferecer, desde o malabarismo, o equilibrismo e, presente até os

dias atuais, a técnica de interpretação do palhaço.

Gorgônio e Rapadura foram dois palhaços criados por Beré e Porto,

respectivamente, no início da década de oitenta, e se apresentavam nas ruas de

Brasília antes da formação do Circo Teatro Udi Grudi. Estes palhaços adotavam o

uso de suspensórios, calças largas e terno xadrez. Eles também tocavam

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instrumentos convencionais em cenas de palhaço como acordeom, violão e

cavaquinho. Enquanto Beré e Proto atuavam como palhaços, durante a década

de oitenta Marció construía sua carreira como músico, em Brasília, em grupos

como o Liga-Tripa e o Músicas-à-Tentativa.

O estudo e construção de instrumentos musicais com materiais alternativos

de Marció tiveram início quase duas décadas antes da estréia de O Cano. Em

1980 Marció, que tem formação em engenharia elétrica pela UnB e é autodidata

em engenharia acústica, construiu seu primeiro instrumento musical, o Marimbau.

Este instrumento é utilizado ainda nos dias de hoje em O Ovo. Originalmente o

Marimbau era uma estrutura feita com quatro pernas de finas varas de ferro que

apoiavam uma bacia de alumínio e um berimbau na posição horizontal. Sua

estrutura permaneceu a mesma, porém a aquisição de uma garrafa de plástico

azul em uma das pontas do berimbau atribuiu ao instrumento certo formato de

bode, assim, em O Ovo, o instrumento ganhou também um novo nome, o Burrito.

Imagem n˚ 2 – Marimbau ou Jirimum. Foto de Marcelo Dischinger em O Ovo. Fonte: http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html

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Marció relatou20 que tanto o Marimbau, quanto os diversos outros

instrumentos musicais que ele criou posteriormente são variações do instrumental

musical kalimba.21 No ano de 1998, quando estreou o espetáculo O Cano, Marció

já havia desenvolvido uma série de instrumentos musicais, e alguns deles foram

criados especialmente para este trabalho. Marció já havia experienciado a arte

teatral como ator em trabalhos de curta existência em Brasília, durante a década

de oitenta, porém sempre como ator-músico. Foi por meio do espetáculo O Cano

que Marció experimentou, pela primeira vez, a arte teatral como ator num caráter

profissional, sem deixar, neste trabalho também, de exercer seu ofício como

músico.

A figura do palhaço dos atores do Circo Teatro Udi Grudi passou por uma

metamorfose após a entrada de Sykes no grupo, em 1996. A diretora trouxe para

os membros do grupo outra proposição clownesca. Marcelo Beré, por exemplo,

em O Cano, apresenta um clown aparentemente sério, o que contrasta com a

comicidade provocada pelo exagero de seu figurino. Neste espetáculo Beré veste

um terno branco, com uma gravata borboleta preta em seu pescoço, uma calça

preta e um tênis branco bastante grande e volumoso. Seu cabelo é que dá o

toque final na composição de sua figura, de cor originalmente loira, Beré arma

todo seu cabelo para cima como se tivesse levado um choque elétrico.

Imagens n˚ 3 e 4 – Beré em O Cano.

Fotos de acervo do grupo. Fonte:

http://www.circoudigrudi.com.br/fotosc

ano.html

20 Marcio Vieira, entrevista realizada por Morgana Fernandes Martins em maio de 2010, no hotel que sediou a apresentação do Circo Teatro Udi Grudi, em Jataí / GO. 21 A Kalimba é um instrumento musical de origem africana. Sua estrutura corresponde a uma caixa de madeira com um buraco circular no centro, no topo da caixa são fixadas teclas de metal das quais, com o toque de empurrar para baixo essas teclas, elas emitem a sonoridade do instrumento. Cada tecla emite uma nota musical e todas são organizadas em escala musical. Seus formatos e tamanhos podem ser diversamente variados.

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Como podemos ver nas imagens, seu rosto forma uma máscara bastante

expressiva, com seus olhos azuis arregalados atrás dos óculos com armação

preta. É perceptível que a expressão de seu rosto é uma mistura de sisudez com

curiosidade. Este clown nos remete a uma dubiedade, se estamos diante de um

cientista maluco ou um garçom maluco. No trabalho de Sykes se percebe que ela

procurou englobar inúmeras possibilidades de clowns, pois mesmo que esta

técnica predomine em todos os espetáculos do grupo, em cada um deles é

perceptível a exploração de diferentes figuras clownescas.

No espetáculo O Ovo, Beré veste uma capa feita de uma longa manta

coberta por pequenos retalhos pendurados, por baixo da capa usa uma velha

camiseta branca e uma calça azul bastante surrada. Como chapéu usa uma

espécie de velha cartola branca, sem aba e com duas garrafas de plástico verde

presas horizontalmente, uma em cada lado do chapéu.

Imagem n˚ 5 – Beré em O Ovo. Foto de Marcelo Dischinger em O Ovo. Fonte: http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html

Inicialmente sua figura aparece de joelhos, como suas pernas não estão à

vista do público, sua imagem causa a impressão de ser um anão. Em uma cena

do espetáculo, Beré levanta-se e atinge sua estatura original. Independente da

estatura do clown de Beré na cena de O Ovo, sua figura nos remete a um

mendigo, ou um morador de rua. Diante o contexto da narrativa do espetáculo,

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visualizando também o cenário e figurinos, as três personagens sugerem serem

moradores de rua.

Imagem n˚ 6 – Marció, Porto e Beré em O Ovo. Foto de Marcelo Dischinger. Fonte:

http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html

Em A Devolução Industrial, Beré adota a figura de uma espécie de ser

místico, seu figurino é composto por vários tecidos sobrepostos, formando uma

espécie de vestido. Neste espetáculo Beré usa uma longa máscara feita com

palha que cobre todo seu rosto e envolve a esfera de sua cabeça.

Imagem n˚7 – Beré em A Devolução Industrial. Foto de Débora Amorim. Fonte: http://www.circoudigrudi.com.br/fotosdevo.html

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Estes exemplos das figuras de Beré, nos três espetáculos estudados para

esta dissertação, nos mostra que há um clown para cada um deles. Essa é uma

característica perceptível na direção de Sykes. A diretora aproveita a bagagem de

palhaço que seu elenco possui, mas ao invés de mantê-los com a figura do

palhaço tradicional de circo, ela explora diferentes indumentárias e,

conseqüentemente, diferentes ações para cada um desses clowns.

Cada um dos trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi apresenta um universo

narrativo, mesmo sem haver uma história cronológica contada durante as cenas.

As ações das personagens são estabelecidas por meio de situações criadas por

esses clowns diante do contexto da narrativa dos espetáculos. As situações são

exploradas durante o processo de ensaios por meio de jogos e improvisações do

atores propostos por Sykes. Ao observar o material oferecido por seu elenco, a

diretora seleciona e organiza esse material e os coloca como cenas de seus

espetáculos.

A mais nova integrante do grupo, Joana Abreu, cuja carreira também se

pautou pela música, mais especificamente pelo canto, explora atualmente, em A

Devolução Industrial, a linguagem do clown no teatro. A cantora e atriz teve

passagem por diversos projetos cênicos nas duas últimas décadas em Brasília,

porém Sykes revela na entrevista deste ano, o quanto a linguagem do clown

ainda é algo novo para ela.

Devido às práticas artísticas dos integrantes do grupo, a música está tão

presente no seu trabalho quanto o teatro. E até mesmo Sykes, que nunca estudou

música, soube administrar perfeitamente a qualidade musical de seu elenco nos

espetáculos. Durante a primeira entrevista que realizei com o grupo, em 2007,

perguntei a Sykes se o fato de ela não ter estudado música alguma vez a

atrapalhou em seu processo de direção. A diretora afirmou que nunca lhe faltou

sensibilidade sonora para poder lidar com o material musical e teatral do grupo. E

acrescentou que os únicos momentos em que a música atrapalhava ocorriam

apenas no tempo gasto por Marció para afinar os instrumentos.

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2.4 OS INSTRUMENTOS MUSICAIS QUE COMPÕEM AS CENAS

Canos de PVC, latas de tinta, garrafas de plástico, ladrilhos e qualquer

material que a primeira vista pareceria sucata, transforma-se em instrumentos

musicais nas mãos de Marció. O engenheiro sonoro possui seu ateliê de

fabricação em Pirinópolis (GO), uma hora de distância de Brasília. Em seu ateliê,

Marció constrói todos os instrumentos musicais tocados nos espetáculos do Circo

Teatro Udi Grudi e é lá onde ele experimenta também novas possibilidades

sonoras com diversos materiais, às vezes utilizados apenas em oficinas

ministradas pelo grupo.

Em 2005 tive a oportunidade de participar como ouvinte de uma oficina

oferecida pelo grupo a crianças de uma escola municipal de Florianópolis.

Durante essa oficina entrei em contato com instrumentos musicais que não faziam

parte dos espetáculos, eram apenas explorados em oficinas. Estes instrumentos

carregavam a função de um primeiro contato com determinadas sonoridades e

notas musicais, mais como um instrumento de educação musical do que um

instrumento musical em si. Porém, da mesma forma como os demais, estes

instrumentos eram construídos dos mais diversos materiais que se possa

imaginar.

Pela preocupação com uma pedagogia sonora os integrantes do Circo

Teatro Udi Grudi, em suas oficinas, elaboram instrumentos musicais que

percorrem vários níveis de complexibilidade. Há instrumentos sonoros compostos

por um canudo e um copinho de café apenas, e há instrumentos que necessitam

de diversos materiais e manuseios para serem explorados. Os instrumentos

musicais complexos são utilizados nos espetáculos, a maioria deles não chega a

ser exibido e experimentado em oficinas, até mesmo pela questão de seu

tamanho e a, conseqüente, dificuldade de montá-los e transportá-los.

No ano de 2007 o Circo Teatro Udi Grudi lançou seu primeiro DVD

intitulado A Casa do Mestre André como um dos eventos de comemoração dos

vinte e cinco anos do grupo. O DVD conta a história de dois palhaços, Gorgônio e

Rapadura, novamente interpretados por Beré e Porto respectivamente, que

querem ganhar um dinheirinho tocando suas músicas na rua. Porém, um guarda

os impede de tocar, e toma os instrumentos dos dois palhaços, que são um

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acordeom, outro acordeom um pouco menor, um violão e um cavaquinho. As

crianças que estavam ouvindo os palhaços tocar os levam à casa do Mestre

André, um cientista maluco interpretado por Marció. Na casa do Mestre André,

Gorgônio e Rapadura conhecem todos os instrumentos criados por esse cientista.

O reconhecimento desses instrumentos é executado por uma música onde os

cinco integrantes da cena, Marció, Porto, Beré e as duas crianças, tocam e

apresentam cada um dos instrumentos. Na cena, os integrantes falam o nome de

cada instrumento musical, o som que eles emitem e demonstram como são

tocados. Neste DVD de quatorze minutos é possível ver boa parte dos

instrumentos musicais construídos por Marció, saber o nome de cada um deles,

conhecer o som que eles emitem, bem como saber sobre o material de que foram

construídos.

Durante a primeira visita ao grupo, que realizei em 2007, em Brasília, tive a

oportunidade de experimentar e fotografar alguns dos instrumentos musicais que

são utilizados tanto nos espetáculos O Cano e O Ovo, quanto no vídeo A Casa do

Mestre André22. Abaixo descrevo alguns desses instrumentos, bem como

exponho imagens dos mesmos para podermos visualizar e compreender melhor

os objetos-chave dos trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi que são seus

instrumentos musicais.

O Panzão e o Panzinho

O Panzão é um instrumento musical composto por canos de PVC que

possui em média dez centímetros de diâmetro cada cano. Sua altura atinge

quatro metros e meio de altura e um metro de largura. Este instrumento tem como

estrutura duas fileiras decrescentes de canos, a primeira fileira contém quatro

canos e abaixo desta, a segunda contem cinco canos. Cada cano tem o tamanho

específico de uma nota musical, a organização do posicionamento desses canos

permite soar uma escala de notas musicais. Seu som é grave e sua estrutura se

assemelha aos tubos por onde é emitido o som de um antigo órgão de igreja.

22 Infelizmente neste ano não tive a oportunidade de fotografar os instrumentos musicais que compõem A Devolução Industrial, todas as imagens deste espetáculo foram extraídas de fotos da internet.

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Imagem n˚ 8 – Panzão de Morgana Martins, Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

O Panzão é tocado em O

Cano, e é Beré seu instrumentista. O

ator toca o instrumento com duas

baquetas que parecem raquetes de

ping-pong, porém sua haste é um

longo e fino pedaço de ferro e a parte

que toca na boca do cano é feito por

um material emborrachado

semelhante a um E.V.A.. O Panzão é

responsável pela base das músicas

A Rosa Amarela e O Trenzinho

Caipira.

O Panzinho possui exatamente a

mesma estrutura do Panzão, porém ele

é mais baixo, em torno de dois metros

de altura e pouco mais largo, em torno

de um metro e trinta de largura. Seu

som é semelhante ao do Panzão e na

sua estrutura a primeira fileira é

composta por seis canos e a fileira de

baixo composta por sete canos. O

Panzinho é tocado por Porto em O

Cano, que acompanha Beré e Marció

no Ladrilhê em O Trenzinho Caipira.

Imagem n˚ 9 – Panzão de Morgan Martins, Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

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O Ladrilhê , o Baron e o Gira Sino

O Ladrilhê é um instrumento musical construído com canos de PVC de em

torno cinco centímetros de diâmetro, como base que sustenta os pedaços de

ladrilho por onde é emitido seu som. Seu tamanho é de dois metros de altura e

um metro e trinta centímetros de largura. O Ladrilhê emite um som agudo e cada

pedaço de ladrilho é cortado para soar uma nota musical específica. Todos os

ladrilhos são posicionados em uma fileira e seu conjunto forma uma escala

cromática de notas musicais. O som e a estrutura do Ladrilhê se assemelham a

um xilofone, Marció é seu instrumentista em O Cano e nele são tocadas as

melodias das músicas A Rosa Amarela e O Trenzinho Caipira. Como baquetas,

Marció utiliza duas varinhas de ferro com uma bolinha de borracha na ponta de

cada uma.

Imagem no 10 – Ladrilhê, Baron e Gira Sino – Foto de Morgana Martins, Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

O Baron, visto na imagem a cima, está pendurado no alto do Ladrilhê. Este

é um instrumento musical composto basicamente por garrafas de plástico de

refrigerante de dois litros. Essas garrafas são presas a uma corda, algumas delas

presas com a base para baixo e outras presas com a base para cima. Cada uma

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dessas garrafas é afinada por determinada quantidade de ar comprimido e cada

uma delas emite uma nota musical, o conjunto das garrafas possibilita a

sonoridade de uma escala musical. O Baron é tocado no espetáculo O Ovo por

Marció, e uma das músicas tocadas é Aquarela do Brasil, na qual o Baron é

responsável pela melodia da música. Seu som agudo também é semelhante a um

xilofone, porém, por causa do ar comprimido, a sua sonoridade permite maior

tempo de vibração e ondulação.

O Gira Sino aparece na imagem número 10, no canto esquerdo do alto do

Ladrilhê . Seu tamanho é de cinqüenta centímetros de altura e vinte centímetros

de largura. O Gira Sino é um instrumento composto por um arco de ferro revestido

por uma capa de cor verde. Amarrado nas bases do arco há um arame bastante

tencionado e no decorrer desse arame estão penduradas quatro barras cilíndricas

de ferro. Essas barras emitem o som do Gira Sino, tocadas com a mesma

baqueta do Ladrilhê. Cada barra emite o som de uma nota musical e, assim como

os demais instrumentos relatados, sua organização é definida por uma escala

musical. O Gira Sino aparece no espetáculo O Cano, tocado por Marció ao final

da música O Trenzinho Caipira. Seu som se assemelha a um sino dos ventos.

As Latas

Composto por vinte e quatro latas de tinta vazias, as Latas é um

instrumento musical percussivo, como os demais relatados, afinadas e

organizadas uma a uma em ordem de escala de nota musical. A base que

comporta as latas é feita de madeira e em cima dela há quatro fileiras de latas

com seis latas cada fileira, embaixo da base há uma estrutura feita de finas barras

de ferro cruzadas. Encaixada às barras de ferro há duas rodas feitas de lata em

formato cilíndrico, esse esquema permite locomover o instrumento de lugar. Seu

som é seco e agudo, semelhante a uma caixa de bateria. Seu tamanho é de um

metro e vinte centímetros de largura e profundidade e altura de oitenta

centímetros. Duas baquetas finas de madeira tocam o fundo das latas que está

virado para cima. As Latas são tocadas por Porto em O Ovo, esse instrumento

acompanha Marció e Beré na execução de Aquarela do Brasil, dentre outras

cenas.

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Imagem n˚ 11 – As Latas. Foto de Morgana Martins, Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

Polly ou Pet, Blowzão e Reco-Rex

Polly é composto de dois instrumentos musicais num mesmo objeto. Em

formato de cachorro, o Polly é formado por garrafa de plástico, mangueira de

látex, mangueira de plástico, sacola plástica, esteira de borracha e cano de fiação

elétrica. As garrafas plásticas servem para compor a cabeça e as patas do

cachorro, seu corpo é estendido por uma esteira de borracha. Em meio a essa

esteira há um pedaço de cano de fiação elétrica, a mangueira de látex serve para

amarrar as partes do instrumento-animal e a sacola plástica faz o acabamento da

cabeça modelando as orelhas do cachorro. A mangueira de plástico serve como

a guia do cachorro. Dois instrumentos musicais compõem o corpo de Polly o

cano de fiação ao longo de seu corpo é tocado como um reco-reco, deslizando

uma fina baqueta de madeira sobre suas ondulações. A pata traseira direita de

Polly é composta por uma garrafa de plástico de refrigerante de três litros e

dentro dela há ar comprimido. Esse é o outro instrumento musical composto em

Polly, seu nome é Blowzão.

Seu princípio é o mesmo que o do Baron e seu som é semelhante ao deste

instrumento. Porém, há no Blowzão uma variação de timbre, no bico de sua

garrafa emenda-se um pedaço de cano de fiação elétrica amarelo. Ao soprar

nesse cano a variação da quantidade de ar de dentro da garrafa faz com que seu

som varie entre mais grave ou mais agudo. Ao assoprar no cano é necessário,

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simultaneamente, bater na garrafa com uma baqueta para emitir seu som. O Polly

aparece em várias cenas de O Ovo e é tocado por Beré.

O Original

É um instrumento de percussão composto por dezoito garrafas de plástico

de refrigerante de dois litros, dezoito pedaços de cano de PVC de dez centímetros

de diâmetro que se conectam as garrafas e a base é composta por duas caixas

de plástico de engradado de bebidas. Cada cano de PVC é cortado em um

tamanho específico dependendo da nota musical que este irá soar. Na ponta de

cada cano está conectada a garrafa de plástico que tem seu fundo cortado para

poder se juntar ao cano. Todos os canos atravessam o corpo de uma das caixas

de plástico, a segunda caixa serve de apoio para a que está em cima forrada

pelos canos. Este instrumento possui um metro e vinte de altura, sua largura é de

oitenta centímetros e um metro e meio de profundidade. Seu som grave

assemelha-se a um surdo, porém a variação de tamanho dos canos faz com que

cada garrafa-cano soe num tom diferente. A organização dos canos se encontra

em três fileiras com seis destes em cada fileira e seu conjunto permite a emissão

sonora de uma escala musical. O som é emitido por uma fina baqueta de madeira

Imagem no 12 – Polly. Foto de Morgana Martins no Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

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em que, ao tocar a parte da garrafa o som é emitido pelo cano que se estende

nela. O Original aparece como um dos instrumentos do espetáculo O Ovo.

Imagem nº13 – Original. Foto de Morgana Martins no Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

O Microtônio

Centenas de pequenas placas de alumínio compõem e emitem o

encantador som do Microtônio. Sua altura é de um metro e meio e a largura

corresponde a um metro e vinte centímetros. A estrutura deste instrumento é

composta por finas barras de cano de PVC, que armam a base onde comportam

três fileiras de diversas pequenas placas de alumínio posicionadas uma ao lado

da outra, quase que uma em frente à outra. Marció cortou e lixou uma a uma

dessas placas e as afinou cada uma em seu micro tom.

Imagem nº 14 – Microtônio. Foto de Morgana Martins no Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007.

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Entre uma nota musical e outra podemos encontrar o meio tom entre as

duas, ou um quarto do tom entre as duas, ou um oitavo do tom, e assim

sucessivamente até o som entre uma nota musical e outra poder se dividir em

micro tons. Foi por meio dessa divisão de micro tonalidades que Marció criou o

Microtônio. Seu som agudo e suave emite uma sonoridade semelhante a do Gira

Sino. Porém, como o Microtônio é composto por centenas de pequenas placas de

alumínio, a variação de tonalidades e a sequência sonora entre uma nota e outra

é tão evidente, que é possível ouvir nitidamente o caminho percorrido do grave ao

agudo. O Microtônio pode ser tocado por uma fina baqueta de madeira, ou até

mesmo com as mãos, deslizando os dedos pelas placas ou tocando nelas como

se fossem teclas de um piano, porém na posição vertical. O Microtônio posiciona-

se num discreto local em meio ao cenário de O Cano, quase que escondido e é

apresentado como um dos instrumentos de A Casa do Mestre André.

O Trombone

Composto por finas barras de cano de PVC, contendo em sua extremidade

a parte inferior de um chuveiro elétrico, o Trombone emite exatamente o mesmo

som de um trombone de vara feito de metal. Seu comprimento varia

aproximadamente entre noventa centímetros e um metro de trinta centímetros de

abertura. Para tocá-lo é necessário emitir sopro no bocal localizado em uma de

suas extremidades. As tonalidades variam conforme a abertura da vara. Seu som

enquadra-se na casa dos graves, porém pode emitir sons agudos dentro desse

enquadramento. O Trombone aparece em O Cano tocado por Porto durante

algumas cenas, especialmente na execução da música A Rosa Amarela.

Imagem n˚15 – Trombone. Foto de Fred Brasiliense e editada por Morgana Martins no Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

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Negão , ou Negão que Fugiu do Julgo Português

Este instrumento musical não é de criação de Marció, porém foi adaptado

por ele. Com o som perfeito de um contrabaixo, o Negão é composto por uma

corda de quase um centímetro de diâmetro e sua extensão percorre em torno de

um metro e oitenta centímetros. A ponta de cima da corda está amarrada na

ponta de um bastão de madeira de aproximadamente um metro e setenta

centímetros de altura e cinco centímetros de diâmetro.

A outra ponta da corda está fixada na parte interna de um barril de plástico

de aproximadamente um metro de altura e cinquenta centímetros de diâmetro.

Para tocar este instrumento é necessário se posicionar em cima do barril, com

sua abertura virada para o chão, segurar o bastão em cima do barril e com

movimentos de aproximar e afastar o braço do corpo, variar a distância do bastão

do corpo. Este movimento fará com que a tensão que será provocada na corda

amarrada ao bastão varie sua tonalidade sendo soada pela outra mão do músico

puxando e soltando a corda. O Negão aparece em O Cano e é tocado por Marció,

junto com Beré que o acompanha emitindo o som de um prato de bateria por meio

de uma baqueta batendo em um saco plástico cheio de ar. Os dois atores-

músicos realizam nesta cena a execução de uma base musical de jazz.

Imagem n˚16 – Negão e

Marció em O Cano. Foto de

Fred Brasiliense e

editada por Morgana

Martins no Teatro

Dulcina. Brasília. Abril

de 2007.

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Instrumentos sonoros a partir da estrutura do cenár io

O cenário de O Cano, como o próprio título sugere, é composto por uma

estrutura de canos de PVC de diversos tamanhos e espessuras. Alguns desses

canos servem unicamente como composição de cenário, outros são os

instrumentos musicais que acabam por compor o cenário e há ainda canos que

são cenários, mas tornam-se instrumentos sonoros em determinado momento do

espetáculo. Durante uma cena do espetáculo, Beré, Porto e Marció constroem

uma estrutura alta e larga composta por finas e longas barras de cano de PVC.

Essa estrutura mede em torno de cinco metros de altura e três metros e meio de

largura e profundidade. Há três barras altas e finas de cano posicionadas em

pontos específicos do cenário que formam um triângulo, essas barras servem

como sustentação de base da estrutura. Nas pontas de cima das barras são

conectadas outras três longas e finas barras de cano na posição horizontal

interligando a extremidade de uma barra de cano vertical a outra, formando assim

exatamente um triângulo de canos no alto do cenário.

Exatamente no meio dessa estrutura triangular de canos os atores montam

uma escada de três bases que sobe até o alto da estrutura de canos. No topo

dessa escada Porto conecta um novo cano, mais largo que os da estrutura, no

centro desta, em uma das extremidades deste novo cano há conectado a metade

de uma garrafa de plástico de dois litros cheio d’água, e nesta uma mangueira em

Imagem n˚17 – Desenho confeccionado pelo próprio grupo como plano frontal do cenário de O Cano.

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que Porto a interliga à estrutura de canos. Após conectar a mangueira na

estrutura é possível começar a ouvir o gotejar da água por meio da base superior

da estrutura de canos. E aos poucos é possível perceber que cada goteira pinga

água em diferentes tempos rítmicos. As gotas caem exatamente em cima de mini

tambores posicionados estrategicamente no chão do palco. Cada tamborzinho

soa em um tempo de marcação de gotas diferentes uns dos outros e, contudo,

percebemos que toda essa estrutura foi armada para marcar o ritmo do som na

cena. Essas gotas caem e soam até pouco antes do final do espetáculo.

Imagem n˚18 – Mini tambores. Foto de Morgana Martins no Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007.

Mini corneta de copinho de café

A complexibilidade dos instrumentos musicais de Marció pode variar desde

uma detalhada e engenhosa estrutura de canos de PVC, até um simples

instrumento feito com um canudo de refrigerante e um copinho plástico de café.

Durante uma cena do espetáculo O Cano, Marció entre em cena com um copinho

de café em uma mão e um canudo de refrigerante na outra. Representando um

jeito de não saber ao certo o que fazer com esses objetos e acaba montando uma

espécie de mini corneta desse material.

O som é bastante semelhante a uma corneta comum, evidentemente com

um som não tão potente quanto ao de uma corneta real, porém sonoramente

curioso se pensarmos a partir dos objetos que ela foi criada. Marció ensina como

confeccioná-lo aos participantes da oficina do Circo Teatro Udi Grudi. Basta

apenas cortar uma das extremidades do canudo em formato de V, a outra

extremidade é encaixada num pequeno furo feito no fundo do copinho de café.

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Para emitir o som, basta assoprar como se fosse um apito na extremidade

cortada em V do canudo.

Placas de alumínio com ladrilhos

Outro instrumento, muito simples, criado por Marció são as placas de

alumínio onde nelas são fixados pedaços de ladrinhos de diferentes tonalidades

musicais. Cada ladrilho foi cortado e lixado, a variação de seus tamanhos

determina as notas musicais que cada ladrilho irá ressoar. O conjunto dos

ladrilhos possibilita a emissão sonora de notas musicais organizadas em escalas.

Imagem n˚19 – Marció em O Cano

tocando a mini corneta de copinho

de café. Foto de Fred Brasiliense e editada por Morgana Martins

no Teatro Dulcina. Brasília. Abril de

2007

Imagem n˚20 – Placas de alumínio com ladrilhos. Da esquerda para a direita: Porto, Marció e Beré. Foto de Morgana Martins. Ensaio do grupo. Jataí / GO.

Maio de 2010

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O som é idêntico ao do Ladrilhê, porém as placas oferecem a possibilidade

de serem ajustadas no próprio figurino dos atores. Essas placas fazem parte do

espetáculo O Cano, em que os atores Beré e Marció as colocam nas costas como

se fossem mochilas.

Dessa maneira, em fila, Marció toca os ladrilhos nas costas de Beré e

Porto toca os ladrilhos nas costas de Marció, com baquetas finas e

emborrachadas nas pontas. Durante a execução desses instrumentos os atores

cantam, tocam e dançam a música La Cucaracha, Beré ainda acompanha o ritmo

da música tocando um chocalho feito com garrafas de plástico.

Os figurinos sonoros de Lixaranga

O espetáculo Lixaranga é um trabalho de rua, que carrega um caráter de

intervenção artística e adequação em meio ao espaço onde se insere. O grande

destaque de Lixaranga são os figurinos, compostos por instrumentos musicais

que cobrem os atores literalmente dos pés à cabeça. Os instrumentos-figurinos

são ricos em detalhes, há grande variedade em forma, som e tamanho dos

instrumentos que vestem os atores. Destes figurinos é possível ouvir desde

batidas de surdo, a som de corneta de garrafa de plástico, pequenos pratos de

pandeiro forrando os pés, repique de latas e caixa de bateria, prato de bateria em

cima da cabeça, e diversas outras possibilidades sonoras. O espetáculo

Lixaranga atualmente não consta mais no repertório do Circo Teatro Udi Grudi,

mas certamente as possibilidades sonoras daqueles figurinos ainda são

aproveitadas pelo grupo.

Imagem no 21 – Apresentação do espetáculo Udi Grudi em ComSerto. Foto de Morgana Martins.

No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007.

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Imagem no 22 – Beré com seu figurino do Lixaranga. Foto de Morgana Martins. No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

Imagem no 23 – Porto com seu figurino do Lixaranga. Foto de Morgana Martins. No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007.

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Imagem no 24 – Marció com seu figurino do Lixaranga. Foto de Morgana Martins. No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007

A elaboração desse estudo a respeito da contextualização do trabalho do

Circo Teatro Udi Grudi – desde sua história, passando pela estética e processos

de seus trabalhos, até a descrição da confecção e utilização dos instrumentos

musicais do grupo – nos promove a noção de como teatro e música são vertentes

artísticas que se confluem em meio ao trabalho do grupo. Essa noção se

transforma em total clareza ao visualizar os espetáculos do Circo Teatro Udi

Grudi. Nas apresentações de suas montagens é possível perceber uma narrativa

fragmentada no desenrolar das cenas, entrelaçadas por subsequentes instantes

sonoros responsáveis pela evolução da dramaturgia dos espetáculos.

A diretora do Circo Teatro Udi Grudi, Sykes, finalizou a entrevista deste

ano revelando a seguinte afirmação: “A vida é música e teatro é ritmo”. A partir

desta fala, em meio a todo contexto da entrevista, é possível perceber que para

ela não há a possibilidade de criar e dirigir uma cena sem oferecer um ritmo a ela.

Este ritmo está diretamente relacionado, segundo a diretora, a uma cadência

musical. O movimento corporal dos atores em meio à manipulação dos objetos

sonoros propõe uma música que se vê. Quando comentei com Sykes que tive a

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100

sensação de parecer estar ouvindo o ritmo da movimentação dos atores em seus

espetáculos, a diretora complementou: “sim, e eu vejo a música”.

O cuidado com o som da imagem proposta nos trabalhos do Circo Teatro

Udi Grudi é o mesmo cuidado que o grupo tem com a imagem do som proposto.

Por meio das palavras de Sykes é possível perceber que não há como pensar na

criação de um sem estar ao mesmo tempo pensando na criação do outro. E, ao

perceber o desencadeamento desse processo, é possível ouvir e ver cada

movimento e som produzido na cena do Circo Teatro Udi Grudi.

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101

CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS ESPETÁCULOS DO CIRCO TEATR O UDI

GRUDI

Os repertórios sonoros dos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi não dão

intervalos ou tréguas. A diversidade dos acontecimentos sonoros, independente

de seu formato (música, efeito sonoro, ruído e até mesmo o silêncio), faz com que

os ouvidos não descansem. Em todo o momento de cena há um som, ora

virtuoso, ora engraçado; ora falado, ora musical, que preenche a atenção do

espectador. Essa atenção toma os olhos para entendermos como aquele som tão

peculiar está sendo emitido de simples objetos inusitados, e toma os ouvidos, pois

destes simples objetos inusitados soam verdadeiras virtuoses sonoras.

Neste terceiro capítulo desenvolvo uma análise detalhada da diversidade

sonora produzida nos três espetáculos investigados do Circo Teatro Udi Grudi - O

Cano, O Ovo e A Devolução Industrial. Apresento as trajetórias sonoras

realizadas pelos atores, que se utilizam deste elemento para conduzir a

dramaturgia de seus trabalhos.

Trabalho as semelhanças e divergências entre os três espetáculos que são

meus objetos de análise nesta dissertação. O estudo pretende revelar que,

mesmo o Udi Grudi utilizando técnicas de atuação do palhaço, e números

musicais executados com instrumentos alternativos nos três trabalhos, o grupo

apresenta peculiar forma de abordagem em cada um deles. Nos três espetáculos

é possível perceber o destaque da utilização do repertório sonoro e como este

elemento é capaz de ser o fio condutor da dramaturgia da cena.

No processo de abordagem realizo primeiro, nas três análises, uma

descrição resumida de cada um. Para na seqüência trabalhar as bases sonoras

dos espetáculos, suas principais características e destaques. Por meio dessa

análise abordo os pontos em comum e as diferenças entre as três montagens

com relação aos seu trabalho cênico e sonoro. Por fim, reflito a respeito das três

obras com o objetivo de compreender como os espetáculos analisados se utilizam

do repertório sonoro com a função de ser o condutor da dramaturgia da cena.

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3.1 ANÁLISE DESCRITIVA DE O CANO: O SOM COMO PRINCIPAL

CONDUTOR23

De modo muito sintético podemos dizer que O Cano é um espetáculo

cômico que brinca com a relação entre música, feita com instrumentos musicais

alternativos, e o clown. No seu repertório musical temos músicas que vão do jazz

instrumental a músicas históricas da MPB, em um trabalho desenvolvido através

de técnicas circenses como: malabares com fogo, acrobacias e palhaçadas.

3.1.1 O desenrolar das intrincadas sonoras e cômica s cenas

Antes de qualquer ator aparecer em cena, o espetáculo O Cano começa

com um som. Semelhantes ao som de sino, batidas agudas são soadas em meio

à penumbra que revela parcialmente o palco coberto por lonas azuis.

Pedaços de canos de PVC são lançados de um lado para outro, no fundo

do palco, sem ainda vermos ninguém. Cada lançamento de cano é acompanhado

por um som dado ao movimento aéreo do objeto. Os atores Beré, Porto e Marció

aparecem de passagem em cena carregando uma comprida barra de cano,

aparentemente sem fim, de um lado para o outro do palco.

No centro do palco os atores batem com pedaços grandes de cano no

chão (de aproximadamente 60 cm de comprimento), e o que, em princípio,

parecia uma "bateção" de canos, logo percebemos o ritmo compassado desses

objetos por meio do som de seus impactos. Esses objetos também são usados

como megafones, onde os atores discutem entre si num gramelô improvisado,

além de cantarem com os canos.

Mais pedaços de canos de PVC entram em cena. Além dos que já se

encontravam no palco os três atores aparecem carregando consigo canos de

variados tamanhos e formas. No típico estilo clown, Beré, Porto e Marció realizam

diversas ações cômicas com seus objetos: prendem os braços dentro dos canos,

desequilibram-se por não conseguirem carregá-los, jogam os canos entre si numa

23 O espetáculo O Cano é composto por três atores: Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio Vieira, com direção de Leo Sykes. Estreou em 1998, em Brasília.

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divertida correria. Em meio a essas ações os atores constroem o Panzão (ver

imagem no 8), um imponente instrumento musical de 4,5 m de altura feito com

canos de PVC.

Outro material entra em cena e ganha seu destaque sonoro. Beré trás

consigo uma caixa de madeira com vários pedaços de ladrilho dentro. Os três

atores testam o som de cada pedaço com uma baqueta e encaixam os ladrilhos

numa placa de alumínio pendurada nas costas de Beré e outra nas costas de

Marció (ver imagem no 20). Em fila os atores começam a cantar, tocar e dançar a

famosa música folclórica mexicana La Cucaracha. Como em uma rumba, Beré é o

primeiro da fila tocando chocalhos feitos de garrafas de plástico, seguido por

Marció e Porto que acompanham o ritmo cantando e tocando os ladrilhos

pendurados nas costas de seus colegas da frente.

Do som agudo dos pequenos ladrilhos os atores passam a explorar em

cena as possibilidades sonoras de um barril de plástico. A palhaçada sonora

começa quando Marció e Beré batucam um ritmo de samba no barril que está

deitado no chão. De repente este barril sai rolando pelo palco. Os atores que

batucavam, neste instante assustados, pensam em fugir do barril, mas este acaba

rolando novamente em direção aos dois e a batucada recomeça até o barril fugir

rolando novamente. O objeto é deixado sozinho em cena e um novo jogo cômico

acontece. Marció entra em cena com um copinho de plástico (ver imagem no 19)

de café e um canudinho em cena. O ator faz deste objeto uma mini corneta, seu

som atrai a saída de um braço de dentro do barril, como se fosse uma cobra

encantada pelo som da flauta. O braço acaba agarrando Marció e o empurra para

dentro do barril de onde sai Porto simultaneamente. A partir deste instante é a vez

de Porto interagir com o barril. O ator deita o objeto no chão e senta em cima

dele, do fundo do barril, que está virado para o público, um canudo bem do centro

do objeto, por meio de um pequeno furo, começa a aparecer. Porto tenta de

diversas maneiras arrancar aquele teimoso canudo que insiste em recuar e sumir

para dentro do barril quando Porto tenta pegá-lo. Até que o ator tem a idéia de

explodir o barril e acende uma vela que solta faíscas e a coloca no furo por onde

sai o canudo. A vela apaga e nada acontece, até que o inesperado som de um

rojão explode, provocando um grande susto em toda a platéia.

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104

Após o grande susto do estouro, o som de uma paisagem sonora de

tempestade é realizado em cena. Conseguimos ver apenas os objetos sonoros

sendo batidos e chacoalhados para produzir o efeito, mas não quem os toca.

Neste instante o grandioso Panzão é deslocado de sua posição vertical para

horizontal. O som desse movimento é semelhante ao do abrir de uma grande

porta velha e pesada de madeira, o que ajuda a compor o clima de suspense

instaurado pela paisagem sonora de tempestade. Beré toca as primeiras notas do

instrumento: uma grave introdução da 5˚ Sinfonia de Beethoven. Dessa sinistra

introdução sonora, Beré transforma o ritmo de seu grave instrumento em um

baião, imediatamente acompanhado por Marció que toca o agudo e suave

Ladrilhê (ver imagem no 10), posicionado do outro lado do palco. Porto entra em

cena com um girassol de plástico nas mãos e os três cantam a popular cantiga

brasileira Rosa Amarela. Ao final da música Porto toma para si o trombone de

vara e acompanha sonoramente seus colegas na cena. Em seguida, Porto

também canta o popular samba A Jardineira, de Benedito Lacerda e Humberto

Porto, algumas estrofes têm as palavras trocadas, o que deixa a música mais

cômica. Esta canção é acompanhada por Marció no Ladrilhê.

Os três atores iniciam a construção do Pingador. Este instrumento pode

chegar até cinco metros de altura, dependendo da altura do teatro, sua forma

consiste em um grande triângulo de finos e compridos canos de PVC que fica na

parte superior do instrumento, sua largura consta em torno de quatro metros. Este

triângulo é sustentado por três compridas varas, também de cano, cada uma

posicionada em uma ponta do triângulo. Essas barras de sustentação, fixadas em

cena por um esquema de encaixe, é que determinam a altura do instrumento. Sua

finalidade é gotejar água compassada sobre mini tambores (ver imagem no 18)

que serão posicionados no chão. Cada goteira pinga em um tempo rítmico sobre

os tamborzinhos. Seu som acompanhará os instantes finais do espetáculo. A

construção desse instrumento estimula o riso do espectador devido às ações

típicas de clown. O jogo cômico que se destaca nesta cena são as palavras ditas

pelos atores “Tá alto!” e “Tá Baixo!” para definir a altura do instrumento. Na

conclusão da construção, os atores percebem que começa a pingar água no

palco e logo aproveitam a oportunidade para cantar a famosa canção americana

Singing In The Rain de Arthur Freed e Nacio Herb Brown.

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O barril de plástico volta a aparecer em cena. Trazido por Marció, o ator faz

deste objeto um perfeito contrabaixo anexando a ele uma corda e um bastão de

madeira. Acompanhado por um gotejar sincronizado do Pingador sobre uma

espécie de atabaque de cano, Marció toca um ritmo de jazz em seu instrumento

que se chama Negão (ver imagem no 16). Beré entra em cena emitindo o som de

um saco plástico cheio de ar, que se assemelha perfeitamente ao som do chimbal

de uma bateria, proporcionando um acompanhamento incrível ao grave som de

contrabaixo realizado por Marció.

Em meio a esse ritmo, Porto entra em cena e posiciona o Panzinho (ver

imagem n˚ 9) no centro do palco. Marció desloca-se até o Ladrilhê e Beré

direciona-se ao Panzão, neste instante os três atores começam a execução

poética e hipnotizante de O Trenzinho Caipira de Vila Lobos. Além da música

executada, o que até então na grande maioria das cenas ouviam-se risos,

aplausos e comentários de crianças, o som que acompanha os atores neste

instante é o mais absoluto silêncio.

Marció e Beré, ainda embalados pelo delicado e sublime ambiente

instaurado por causa da execução de Trenzinho Caipira, posicionam os mini

tambores debaixo das goteiras do Pingador. Porto entra em cena com tochas

acesas e faz um número de malabarismo com as tochas, onde apenas essas

emitem luz no especo. O ator deixa o palco e coloca as tochas dentro de um

recipiente de alumínio. O calor do fogo das tochas faz com que gire a Engenheira,

um instrumento que consiste em uma bacia de alumínio com várias pequenas

placas de ferro penduradas em sua borda. A bacia fica virada com a abertura para

baixo a mais ou menos meio metro do chão, o calor do fogo faz com que ela gire,

provocando assim atrito entre as plaquinhas de ferro, emitindo um som suave e

agudo, semelhante a um sino dos ventos. E dessa maneira os atores finalizam o

espetáculo O Cano, assim como em seu início, apenas o som ostentando seu

espaço na cena.

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3.1.2 As ações cênicas em função da construção dos instrumentos musicais

Dos três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi analisados nesta

dissertação é possível afirmar que O Cano é o trabalho em que a supremacia do

repertório sonoro prevalece aos demais elementos de cena. Em todas as cenas

deste espetáculo é possível perceber uma cadência rítmica sonora organizada.

Essa estrutura rítmica define o tempo e as ações dos três atores da cena. As

ações dos três atores de O Cano são exemplos de como elementos cênicos de

destaque, como a atuação, giram em torno da produção sonora da cena. Nos dez

primeiros minutos do espetáculo os atores realizam os jogos cômicos, como

colocado acima, de lançar pedaços de canos uns para os outros, carregá-los

desajeitadamente, disputar os canos, e outras diversas ações com a função de

construir o instrumento Panzão, utilizado posteriormente em execuções musicais.

Dentre essas ações os atores ritmizam o som do impacto que os canos provocam

ao caírem no chão, ou cantam utilizando os canos como alto falante, ou ainda se

comunicam verbalmente em gramelô.

Todas as ações dos atores em O Cano são sonoramente planejadas,

sejam elas para emitir seus próprios sons na cena, ou para preparar ações

sonoras que antecedem um momento sonoro mais destacável. Um exemplo

bastante claro é a cena que antecede a execução da música La Cucaracha. Os

três testam a sonoridade dos ladrilhos com baquetas, em seguida encaixam os

ladrilhos nos figurinos, para posteriormente iniciar a música cantando e tocando

com os instrumentos que acabar m de construir. A cena em que Marció entra com

um copo plástico de café também é outro exemplo da ação cênica a serviço da

sonoridade. O ator representa que está tomando algo contido em um pequeno

copo de plástico com um canudo. Ao realizar o som do fim dos últimos goles, o

ator encaixa o canudo no fundo do copo e faz destes objetos uma pequena

corneta. O som desta corneta atrai a atenção de um braço que sai de dentro do

barril como uma cobra encantada pelo som da flauta.

A comicidade é um eficaz recurso que transforma o som em ação e vice-

versa. Por meio dos jogos de palhaço é que os atores constroem em cena os

instrumentos musicais e as sonoridades que compõem o espetáculo, fazendo

desses elementos o condutor da dramaturgia de O Cano.

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3.1.3 Os instrumentos musicais como cenário

O cenário do espetáculo O Cano é composto por diversos instrumentos

musicais de grande, médio e pequeno porte. Estes instrumentos estão expostos

desde o início, ou "aparecem" - são construídos no decorrer das cenas.

A imagem inicial do espetáculo é composta por lonas azuis, visíveis na

imagem acima, que cobrem do chão até as paredes laterais e o fundo do palco,

essas lonas são suspensas e suportadas por canos de PVC brancos.

Nas laterais deste cenário é possível perceber duas cabines também feitas

de lonas azuis e canos de PVC. E no interior da cabine à esquerda do palco são

visíveis alguns materiais alternativos pendurados, como panelas, placas de

alumínio, dentre outros objetos. Ao lado dessas cabines posicionam duas

estruturas de canos de PVC. A estrutura do lado esquerdo parece concluída,

porém não se identifica, de imediato, o que esta estrutura significa.

Posteriormente, com a finalidade de tocar a música Rosa Amarela, é que Marció

nos revela que tal estrutura é um instrumento musical: o Ladrilhê. O mesmo

acontece com o Panzão, que é a estrutura de canos posicionada do lado direito

do palco. No início do espetáculo o Panzão nada mais é que uma estrutura de

canos inacabada, onde percebemos apenas sua base e alguns longos canos

anexados a esta. No decorrer das cenas é que o Panzão é concluído, e assim

como o Ladrilhê, sua sonoridade se revela na música Rosa Amarela. O Panzão

Imagem no 25 - Fonte: http://joaramos.blogspot.com/2009/01/circo-teatro-udigrudi-25-anos-na.html. Acesso: 17 jul 2011. Na imagem ao lado temos uma cena em que aparece lindamente o jogo circense dos três atores de O Cano. Podemos, também, ver como os instrumentos musicais são colocadas na cena, nesta imagem vemos do lado direito o trompete próximo á parede, e do lado esquerdo uma placa com ladrilhos, compondo o cenário do espetáculo.

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por sua imponência não apenas compõe o cenário do espetáculo, ele é um dos

grandes destaques da cenografia de O Cano.

Imagem no 26 - O Ladrilhê,, à esquerda, e o Panzão, à direita, compondo a cenografia

de O Cano24

Destacável também é a construção e instalação do instrumento Pingador

com relação à cenografia de O Cano. Não há nenhum sinal deste instrumento até

determinado momento do espetáculo. Sua estrutura também é construída em

cena pelos atores, e concluída como parte destacável do cenário até a última

cena. Apesar de sua magnitude e grandiosidade com seus quatro metros de

altura, o Pingador é um instrumento que emite um som sutil. O som das gotas que

caem de seus canos superiores sobre pequenos tambores são compassados,

cada canal, ou goteira, pinga num tempo rítmico.

O Ladrilhê, o Panzão e o Pingador são os grandes instrumentos que

compõe a estrutura cenográfica de O Cano. Outros instrumentos não tão

encorpados como estes, também, compõe o cenário deste espetáculo, entre

estes destacam-se o Negão, construído com o barril de plástico que aparece em

diversos momentos do espetáculo. Aparece também a Engenheira, instrumento

24Fonte: http://www.flickr.com/photos/wesleisoares/sets/72157623564622963.Acesso: 17 jul 2011.

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musical feito de bacia e placas de alumínio instalado na escada telescópica

posicionada no centro do palco durante as cenas finais do trabalho.

O cenário de O Cano é também um elemento cênico voltado quase que

integralmente à execução do repertório sonoro do espetáculo. Porém, a

cenografia não se destaca apenas pela produção sonora que emite como também

pela grandiosidade e complexidade de sua estrutura.

3.1.4 O som cômico

No espetáculo O Cano a comicidade é fundamental para a execução da

sonoridade. Pequenos gestos como bater com uma baqueta em um ladrilho, ou

emitir som através de um canudo plástico, se tornam muito mais atraentes

quando uma carga de comicidade é empregada sobre eles. Porém, aquele

pequeno detalhe sonoro que tem por finalidade comentar a cena, ou torná-la

engraçada, é executado com grande habilidade e sensibilidade pelos atores de O

Cano. A cena em que Porto quer explodir o barril, por exemplo. O ator mostra

uma vela para o público e, quase sem sonoridade, emite vocalmente a

onomatopéia "Bum". O sutil som emitido praticamente apenas pela separação de

seus lábios para sonorizar o fonema "B", seguido do nasalado "m", é suficiente

para fazer o público perceber que sua intenção é querer botar aquele espaço de

pernas pro ar. O contraste entre a maneira sutil como Porto fala "Bum" e o

significado desta palavra é que provoca o efeito cômico desse rico detalhe sonoro

na cena.

Os detalhes sonoros do espetáculo O Cano se encaixam perfeitamente na

reflexão de Camargo a respeito do som como recurso humorístico, no item "som,

humor e aspecto lúdico", referenciado no primeiro capítulo desta pesquisa. Neste

item o pesquisador afirma que o som pode servir como expressão da comicidade,

dialogando muitas vezes com as ações dos atores, enriquecendo a imagem de

seu gesto, o tornando exagerado, típico da estética do ator palhaço.

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3.1.5 Parcas palavras e seus efeitos fonéticos sono ros

O texto dramático é um elemento dispensável no trabalho do Circo Teatro

Udi Grudi. Em seus espetáculos a palavra aparece como um apoio rápido para a

conclusão de uma idéia, ou como um comentário da cena, porém ela surge

essencialmente como mais um recurso sonoro. O espetáculo O Cano, dentre os

três analisados nesta pesquisa, é o que menos se utiliza do recurso da palavra

enquanto transmissão de um significado. A importância da palavra se apresenta

primordialmente no aspecto sonoro de como é emitida. O som da palavra falada

em O Cano é mais relevante para a cena do que seu próprio significado.

A palavra não demora a aparecer no espetáculo, pelo contrário, antes

mesmo de aparecer um ator em cena, o som de uma palavra é ouvido: “Vem!”. O

som da voz é reconhecível como masculina, um pouco aguda e nasalada, surge

em cena, então, o ator Porto carregando um cano ao fundo do cenário, por uma

abertura de mais ou menos um metro de visibilidade. O ator some de cena, mas o

cano continua passando ao fundo, como se fosse exageradamente comprido. E o

ator continua a falar, “Vem!” com a mesma sonoridade aguda e nasalada de

anteriormente. De repente, ainda com o cano atravessando o fundo palco,

ouvimos uma voz dizer “To indo!”. Dessa vez uma voz bastante grave, bastante

contrastante com o som da voz anterior. Surge, então, Beré em cena também

carregando o interminável cano. Ouvimos então outra voz: “Vai!”, tão aguda

quanto a primeira, porém um pouco mais esganiçada, assim aparece Marció em

cena, na mesma situação que seus colegas, carregando o exagerado longo cano.

As palavras “Vem!”, “To indo!” e “Vai!” seriam dispensáveis na cena

enquanto significado, pois a ação resulta apenas em apresentar a imagem inicial

dos três atores carregando de um lado para outro do cenário um cano que parece

não ter fim. O grande destaque dessas palavras é a sonoridade com que são

ditas. O contraste entre o fonema nasalado de Porto e o grave de Beré, mais a

oscilação vocal de Marció, transformam essas palavras numa sonoridade

carregada de comicidade, o que apóia a ideia caricata da aparição inicial dos

atores.

O mesmo acontece com o jogo de palavras “Tá alto!” e “Tá Baixo!”

enquanto os atores constroem o Pingador. O contraste sonoro das vozes e o

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tempo em que elas são ditas é que tornam essas palavras interessantes na cena,

e não seu significado em si. Outro recurso vocal utilizados pelos atores de O

Cano é o diálogo em gramelô. Os atores transmitem perfeitamente a

compreensão do diálogo entre eles sem dizer nenhuma palavra carregada de

significado verbal. No espetáculo O Cano os atores deixam claro que a palavra é

apenas mais um recurso sonoro e a voz é somente mais um instrumento de

emissão sonora, como qualquer outro instrumento que compõe o cenário na obra.

3.1.6 As músicas e suas proposições cênicas

Alguns pequenos trechos de músicas são cantarolados durante o

espetáculo O Cano, porém quatro musicas são executas como cenas de grande

destaque: La Cucaracha, Rosa Amarela seguida de A Jardineira e Trenzinho

Caipira. As músicas são apresentadas com propostas bastantes diferentes umas

das outras. A música La Cucaracha tem o propósito de ser apresentado sob

intenso aspecto cômico. Os atores realizam uma espécie de fila de rumba para

tocar, dançar e cantar a música e no momento em que a estrofe acaba os três

pulam em 180˚ e a ordem da fila é alterada. Portanto, os atores que até então

tocavam os ladrilhos das costas dos colegas, ao virarem agridem uns aos outros,

pois não há mais a placa de alumínio com os ladrilhos nas costas para serem

tocados. Porem, eles continuam dançando em fila e cantando a melodia da

música só que ao som da palavra “ai!”. Após uma estrofe inteira de “ai, ai, ai” na

melodia de La Cucaracha, os atores novamente pulam 180˚ e executam a música

normalmente. Toda essa transição resulta em uma cena bastante cômica.

As cenas em que são executadas as músicas Rosa Amarela e A Jardineira

também carregam um aspecto cômico, porém com uma leveza bastante infantil

que acaba resultando em um jogo do ator Porto com a platéia. O ator entra em

cena com uma rosa amarela de plástico em um vaso enquanto Marció e Beré

cantam e tocam o Ladrilhê e o Panzão. Porto repousa a rosa amarela de plástico

sobre uma bancada ao seu lado e continua a cantar a música. Num determinado

instante a rosa começa a murchar, Porto então, canta A Jardineira para a rosa de

plástico com o fim das estrofes trocadas: “Ó jardintriste porque estais tão neira /

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mas o que ceu que te acontefoi...” O ator canta ao mesmo tempo em que rega a

flor, quando esta volta a ficar em pé, Porto volta a cantar a música para o público

que imediatamente o avisa a respeito da flor que murchou novamente. As

crianças são as responsáveis por avisar o murchar da flor para Porto que repete a

ação de regá-la algumas vezes, transformando assim a cena num divertido jogo

entre ator e público.

A última música executada é Trenzinho Caipira. O momento para essa

música é todo preparado. Um ambiente sonoro introspectivo sob pouca luz é

preparado pelos atores. As primeiras notas do grave Panzão são soadas por Beré

que executa a base da música junto com Porto que toca o Panzinho. De repente

ouvimos os primeiros tilintares suaves e agudos do Ladrilhê tocado por Marció

que executa a melodia da música. Começa, então, a cena mais emocionante do

espetáculo.

A música Trenzinho Caipira é tocante por natureza, e ouvi-la sendo tocada

pelos concentrados atores por meio daqueles instrumentos cenicamente e

sonoramente magníficos, é algo que provoca bastante emoção. Desde a primeira

vez que presenciei O Cano, e até mesmo quando vejo o espetáculo gravado,

sempre sou tomada pela mesma emoção. Acredito não ser a única, pois mesmo

com uma platéia repleta de crianças que participaram ativamente do espetáculo,

no momento de Trenzinho Caipira não se ouve um ranger de cadeiras da platéia,

e após a execução, os aplausos duradouros e calorosos aparecem logo em

seguida como que expulsos das mãos do público.

A música é um recurso bastante eficaz para provocar o efeito de emoção

sobre o espectador, como foi colocado no item “Som e emoção” no primeiro

capítulo desta pesquisa. Camargo chama a atenção a respeito da facilidade

desse recurso se sobressair à cena e transformar o momento que seria

emocionante em um melodrama ou em algo não planejado. Porém, no caso da

cena da música Trenzinho Caipira, isso não acontece. Os atores nesta cena

conseguem instaurar uma atmosfera bastante sensível por meio de todos os

recursos utilizados: a música em si, o som e forma dos instrumentos, o arranjo

musical de cada instrumento, a postura dos atores, a baixa iluminação e a perfeita

execução sonora. As músicas em O Cano são os grandes destaques do

espetáculo, é como se elas fossem a conclusão de todo o “esforço” anterior à sua

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execução, pois todas as ações são realizadas e os instrumentos construídos para

os atores realizarem as músicas do espetáculo.

3.1.7 A paisagem sonora

A paisagem sonora é um recurso utilizado pelo Circo Teatro Udi Grudi, mas

suas aparições são breves e geralmente acontecem para anteceder ou preparar a

cena seguinte, que na maioria das vezes é a execução de uma música. No

espetáculo O Cano a paisagem sonora acontece duas vezes, antes da execução

da música Rosa Amarela e antes da execução da música Trenzinho Caipira. Na

primeira, a paisagem sonora tem por finalidade instaurar um clima de suspense

na cena, pois é o momento dos atores apresentarem para o público o imponente

Panzão. O Panzão, antes da cena da Rosa Amarela, se encontra na posição

vertical, assim o público não tem a noção da dimensão deste instrumento. Antes

de Beré colocar o instrumento na posição horizontal, Marció emite vários sons de

dentro da cabine esquerda do palco, onde se encontram diversos materiais

alternativos sonoros. Marció produz a paisagem sonora de uma tempestade com

placas de alumínio, canos de fiação elétrica, atinge um objeto de metal no outro;

enquanto isso Beré começa a descer o Panzão. A mudança de posição do

instrumento já emite um som sinistro, como uma grande, pesada e velha porta de

madeira abrindo vagarosamente. Este som compõe perfeitamente com os sons

produzidos por Marció. Em seguida Beré soa as primeiras quatro notas da famosa

5˚ Sinfonia de Beethoven, que por meio do seu cavernoso instrumento o clima de

suspense ainda é maior. O suspense aqui é quebrado quando Beré transforma

essa aparentemente assustadora introdução num ritmo de baião para introduzir a

música Rosa Amarela.

O mesmo instante de paisagem sonora acontece antes da execução da

música Trenzinho Caipira, porem o suspense cede espaço ao lúdico. Esta

paisagem não atinge o mesmo nível de realidade da anterior, apesar das fontes

sonoras serem as mesmas. Este momento é embalado por uma espécie de

viagem sonora que conduz o público a receber a cena seguinte, a performance da

música de Vila Lobos sob um aspecto sonoramente onírico.

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3.1.8 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ou vem

Se existe algo encantador nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi a

grande magia está na imagem de como o som é produzido junto com a própria

sonoridade realizada em cena. Os instrumentos musicais produzidos e tocados

nos trabalhos do Udi Grudi, sejam eles gigantescos ou minúsculos, ultrapassam a

estética do incomum, alcançando o limite do admirável e, por pouco, não atingem

o inacreditável.

O trio Ladrilhê, Panzão e Panzinho, em O Cano, por exemplo, são dotados

de magnitude e beleza tanto no que correspondem às suas estruturas estéticas,

quanto aos sons que emitem. O timbre agudo do Ladrilhê contrapõe com o grave

Panzão, ambos dialogam em um delicado entrosamento sonoro, complementado

ainda pelo indispensável Panzinho na execução de Trenzinho Caipira. Os três

instrumentos são de grande porte, portanto, além da sua riqueza sonora, são

componentes de imenso destaque cenográfico.

O contraponto encantador entre imagem e som também se encontra no

instrumento Pingador. Este gigante sonoro que ocupa mais de quatro metros de

altura e largura, posicionado no centro do palco, emite um som daqueles que

temos de projetar o ouvido na direção do instrumento para capturar a delicadeza

de seu som. Dos canos da superfície do Pingador gotejam pingos d’água sobre

pequenos tambores no chão do palco. Cada goteira pinga suas gotas numa

marcação temporal específica, e esses compassos gotejantes acompanham os

atores em outras execuções sonoras. A surpreendente engenhosidade do

Pingador chega a ser quase inacreditável, pois de uma estrutura de canos de

PVC incidem goteiras que pingam ritmicamente.

O grande momento mágico entre som e imagem em O Cano é guardado

para o final. Porto entra em cena com seus malabares de fogo e executa seu

número circense visível apenas pela luz da chama, enquanto Marció e Beré

finalizam os detalhes da instalação da Engenheira. Após seu número, Porto

repousa seus malabares ainda acesos sobre um recipiente. O calor do fogo faz

com que a bacia de alumínio da Engenheira gire, provocando assim o atrito de

dezenas de pequenas placas de alumínio penduradas em sua borda. Portanto a

última imagem que presenciamos em O Cano são os reflexos de diversas

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plaquinhas de alumínio em movimento circular sobre a chama de uma pequena

fogueira, única fonte de luz da cena. Para acompanhar essa admirável

contemplação ouvimos o suave tilintar das plaquinhas como se fossem centenas

de pequeninos sinos soados ao mesmo tempo, parecendo uma chuva de

sininhos.

Diversos outros momentos em O Cano são dignos de admiração no

quesito som e imagem. Não há dúvidas do cuidado tanto da direção quanto da

atuação a respeito da qualidade do som que produzem em cena, junto com a

maneira e aparatos por onde esses sons são realizados.

3.1.9 Som de todas as direções espaciais

Quando em um espetáculo cênico o repertório sonoro é executado por

meio de equipamentos eletrônicos, todos os fragmentos sonoros são emitidos de

um mesmo ponto, no caso, por meio de caixas de som eletrônicas, as P.A.’s. Isso

faz com que o som não varie sua dimensão no espaço. Evidentemente, neste

caso, não me refiro aos sons produzidos em cena através da movimentação dos

atores, dos objetos de cena, ou da voz. Já em um espetáculo onde o repertório

sonoro é produzido ao vivo cada instrumento musical ou sonoro tem seu ponto

específico de emissão, variado pelo posicionamento espacial desses objetos.

Essa distribuição provoca variações na dimensão sonora do espetáculo.

A distribuição sonora espacial em O Cano também é um fator de destaque

para reconhecermos ainda mais a diversidade da exploração do som no

espetáculo. Como neste trabalho os instrumentos sonoros e musicais variam de

tamanho e posicionamento espacial, além de haver grande quantidade de objetos

de emissão sonora em cena, a variação da dimensão sonora de O Cano é

bastante detalhada.

A variação de intensidade do volume sonoro dos instrumentos, somado à

sua distribuição pelo espaço cênico são os fatores responsáveis por um repertório

sonoro multidirecional. A cena em que Porto pretende explodir o barril é um

exemplo preciso das várias trajetórias do som: primeiramente o ator concentra

toda a audição da cena na palavra “Bum!” falada num volume bastante fraco. Em

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seguida acende a vela que produz pequenas faíscas e corre pela platéia aos

gritos, seus gritos e correria também provocam os gritos do público. O ponto

sonoro até então concentrado na palavra “Bum!” neste momento se espalha por

todo o espaço físico do teatro. A vela se apaga e o silêncio aparece, o ator volta a

falar com um volume fraco de voz as palavras “Não fez bum!”. Em seguida o

inesperado estardalhaço sonoro de um rojão explodido sem ninguém ter visto

provoca um grande susto em todos. Podemos perceber então, por meio desta

cena as diversas variações de volume e trajetória do som, estes são recursos

bastante explorados em todos os trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi.

3.2 ANÁLISE DESCRITIVA DE O OVO: O SOM SOBRE AS AÇÕES25

O espetáculo O Ovo é um trabalho que foca no jogo entre música e ações

cômicas sob uma temática que reflete as dificuldades sociais de três moradores

de rua. O repertório musical conta músicas populares brasileiras históricas, além

de ritmos variados. E, como uma marca registrada do grupo, todos os sons e

ritmos são executados por meio de instrumentos sonoros e musicais feitos com

materiais alternativos.

3.2.1 A produção da galinha dos ovos de garrafas de plástico

Os estalos de uma garrafa de plástico amassada dilatando e se

preenchendo de ar sob um estreito foco de luz, esse é o primeiro som e a primeira

imagem de O Ovo. Logo aparece a figura de Beré, como um anão, roupas

esfarrapadas, que se depara com um copo de plástico e o come. O ator olha para

aquela garrafa de plástico e a testa como um microfone que,

surpreendentemente, se afina junto com sua voz. Isso porque, a cada batida com

os dedos que Beré atinge na garrafa, esta soa cada vez mais aguda por meio de

uma mangueira encaixada em seu bico que a enche de ar, crescendo a

25 O espetáculo O Ovo está composto por três atores: Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio Vieira, com direção de Leo Sykes. Estreou em 2003, em Brasília.

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tonalidade de seu som. Logo surge a primeira canção, Luar do Sertão, de Catulo

e João Pernambuco. E o cenário vai sendo revelado junto com a canção do ator.

Braços aparecem através de uma assimétrica cortina no fundo do palco feita de

sacolas plásticas brancas, parecendo uma grande galinha. As mãos incógnitas

desses braços tocam em algumas das sacolas que soam a base da canção de

Beré, um som agudo e suave, como sino dos ventos. Literalmente uma coisa

também feita com sacolas de plástico brancas, cilíndrica e com mais de dois

metros de altura, começa a dançar com Beré.

Marció e Porto entram em cena, também com roupas aparentemente

desgastadas, mas assim como Beré, fora do comum. Marció, com uma saia de

borracha e um capacete de alumínio na cabeça, parece um soldado com seu arco

e flecha de ponta de borracha nas mãos. Porto veste um comprido macacão azul

marinho, onde o tecido em suas pernas e braços contém vários círculos dando

volume e comprimento à sua roupa, além de um chapéu de couro como de um

cangaceiro, e sapatos feitos com pedaços de pneu de carro. Em princípio os três

parecem se estranhar, mas logo se mostram entrosados realizando um grande

banquete imaginário, fazendo dos objetos de cenas pratos finos como refeição.

Marció parece querer encontrar algo e Beré o ajuda, logo os dois realizam

uma chuva de latinhas de alumínio amassadas pelo cenário. O som é

incrivelmente semelhante ao de uma chuva de verdade, porém o chão fica repleto

de latas. Marció encontra um rolo de fita adesiva branca e Porto briga por ela

arrancando um grande pedaço de fita das mãos de Marció. Porto faz de seu

pedaço uma bolinha que, na verdade parece um ovo. Os três atores começam a

divagar sobre aquele ovo imaginando pratos de comida que poderiam deliciar.

Não há um texto marcado e decorado dito pelos atores, apenas frases chave que

ajudam a ilustrar suas ações.

A fita adesiva rende vários jogos cômicos, e os atores fazem dela mais

pratos imaginários de comida, colam pequenos pedaços em seus rostos como

bigodes e sobrancelhas, realizando caricaturas de tipos étnicos como um francês,

um russo, e disputam quem cola o maior pedaço de fita entre as pernas. Todas

essas ações são acompanhadas por diálogos improvisados e incompreendidos,

como um gramelô, onde apenas uma frase ou outra é dita com palavras

reconhecíveis.

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Com objetos recicláveis variados nas mãos, os atores introduzem um ritmo

de samba e cantam uma música chamada La gamine: sim ou não, música que

fala sobre um pedido de casamento, cantada em português, francês e alemão

pelos atores. Beré faz de um aro largo de alumínio com algumas latinhas

amassadas em cima o som de pandeiro. Marció tem em mãos uma lata de tinta

cheia de latinhas amassadas dentro dela, o ator a chacoalha no ritmo da música.

E Porto bate com uma baqueta naquela garrafa de plástico que aparece desde o

início do espetáculo. Ao longo da música os atores exploram diferentes maneiras

de extrair som de seus objetos, mas sem perder o ritmo e acompanhamento da

música.

Imagem n˚ 27. Cena da música La Gamine: sim ou não. Foto de Marcelo Dischinger. Fonte:

http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html

Marció e Beré deixam Porto sozinho em cena cantando o final da música,

de repente o ator é engolido pela grande cortina-galinha que, em seguida, o

expele para o centro do palco com algumas latas de tinta penduradas em seus

braços, sapatos e cabeça. A cortina toma maior proporção e é esticada, tomando

conta de todo o fundo do palco.

Beré entra em cena com uma espécie de uma pequena mesa feita de

garrafa de plástico como suas pernas e um pedaço de espuma branca e densa

como seu tampo. Junto com Marció, os dois anexam mais alguns materiais nesse

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objeto como sacola plástica e um cano largo de fiação elétrica. Moldam o objeto

dando forma a seus materiais e de repente, desse emaranhado de coisas, surge

Polly, ou Pet, um simpático cachorrinho feito de material reciclado.

O cachorrinho é um boneco manipulado por Beré, e acompanhá-lo, eis que

entra em cena Jirimum, ou Marimbal, um instrumento musical na forma de um

bode. Sua cabeça é feita de garrafa de plástico, seu corpo de bacia de alumínio

entre um berimbau na posição horizontal, e suas pernas são feitas de longas e

finas varas de ferro, que parecem antenas. Marció puxa Marimbau para o centro

do cenário e anexado ao instrumento há um suporte de ferro e madeira sobre

rodas feitas com latas de tinta e em cima deste suporte há várias outras latas do

mesmo tamanho.

As Latas, Marimbau e Polly são os instrumentos que acompanham os

atores que cantam a música Acorda, Maria Bonita de Antônio dos Santos. As

Latas é um instrumento composto por vinte e quatro latas de tinta, cada uma

afinada em um tom formando uma escala crescente. O som do Marimbau é

emitido pelo berimbau que compõe o instrumento, podendo variar sua tonalidade

conforme o deslizamento de um pequeno objeto metálico sobre seu arame. O

Polly é um instrumento que varia entre um reco-reco, por causa do cano de fiação

ao longo do seu corpo; e um pequeno bumbo por meio de sua pata traseira que é

composta por uma garrafa de plástico que varia sua tonalidade conforme a

quantidade de ar que é comprimido dentro dela.

Em meio à execução da música Marció permanece tocando o Marimbau e

Porto, as Latas. Porém, Beré deixa Polly de lado e começa a dançar com um

grande saco plástico em formato humanóide, pois tem em seu corpo

alongamentos como braços e cabeça. Esse corpo plástico, preenchido de ar,

flutua pelo espaço com Beré.

As luzes se apagam e Marció acende uma chama de fogo no centro do

palco em uma bacia de alumínio que está no chão. Os atores e Polly se

posicionam ao redor dessa chama como querendo se aquecer. Marció gira uma

garrafa de plástico sobre o fogo, ao mesmo tempo em que bate com uma baqueta

sobre o objeto. A garrafa emite um som gradativamente mais agudo conforme o

calor do fogo sobre ela.

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Sob a luz do fogo ouvem-se as primeiras notas de uma canção familiar.

Uma sutil luz azul, vinda de trás da grande cortina de sacolas branca, revela um

objeto cheio de garrafas de plástico penduradas nela. Aos pouco percebemos que

as notas são emitidas dessas garrafas de plástico, o nome do instrumento é

Baron, e seu som é agudo e suave como sinos. O som das Latas passa a

acompanhar o Baron como base, logo é possível identificar que a música tocada

é Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Quem toca o Baron é Marció e as Latas é

Porto. Beré desmembra uma das patas de Polly, que é uma garrafa de plástico, e

conforme o ator assopra dentro dela através de uma mangueira conectada em

seu bico, sua tonalidade varia e ouvimos seu som por meio das baquetadas de

Beré na garrafa. Em meio ao andamento da música, Beré troca a garrafa de

plástico de dois litros por uma de vinte litros, o que torna seu som muito mais

grave, muito semelhante a um surdo. Os três atores executam a bela Aquarela do

Brasil de maneira surpreendente e emocionante.

Imagem n˚ 28. Cena de O Ovo. Foto de Marcelo Dischinger. Fonte:

http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html

Ao final da música os três atores abandonam seus instrumentos e

novamente se posicionam ao redor do fogo ainda aceso no palco. De alguma

maneira Porto toma a chama em suas mãos, e é apenas essa a fonte de

iluminação da cena. Beré tempera a chama com sal e os três, como se fossem

comê-la, ameaçam abocanhar a chama que se apaga. Assim termina o

espetáculo O Ovo.

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3.2.2 Os instrumentos musicais animados de O Ovo

Alguns instrumentos musicais deste espetáculo remetem a formas de

animais, e além da forma alguns ainda ganham nome e são manipulados tais

quais as características de suas espécies.

Os instrumentos Polly e Jirimum são os que carregam com maior evidência

essas características. Polly (ver imagem n˚12) é um simpático cachorrinho, ele é

montado em cena e se transforma no animal de estimação de Beré e inimigo de

Porto que implica com ele por causa da comida. Além de Beré realizar várias

demonstrações adestradas do cãozinho, Polly também é um instrumento de

percussão. O seu corpo é um reco-reco feito de cano de fiação elétrica e uma de

suas patas traseiras soa como um tambor, pois é feita de garrafa de plástica

preenchida de ar comprimido.

O pacato e expressivo Jirimum se parece com um bode (ver imagem n˚2).

Marció é quem o introduz em cena, e o faz se deslocar com suas compridas e

finas pernas de varas de alumínio. Sua aparência é um pouco tristonha, pois sua

cabeça feita de garrafa de plástico direciona seu olhar para o chão, mas ao

mesmo tempo certo ar carismático é transmitido pelo animal instrumento. A

disposição sonora se encontra ao longo do corpo de Jirimum, seu tronco é

composto por um berimbau na posição horizontal e entre o arco e o arame do

instrumento há uma bacia de alumínio que faz com que ressoe o som emitido pelo

berimbau. Marció desliza um pequeno objeto metálico sobre o arame do

berimbau, ao mesmo tempo em que bate com uma vareta no mesmo arame,

provocando assim variações de tonalidade do instrumento.

Ao fundo do cenário de O Ovo há um grande manto branco feito de

diversas sacolas plásticas brancas. Sua forma é alongada na horizontal, porém há

uma extensão que aponta para cima no centro da borda superior desse manto. O

formato deste manto, junto com as incontáveis sacolas, remetem as

características de uma galinha, no caso, uma gigantesca galinha.

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Imagem n˚ 29. Ao fundo o manto de sacolas de plástico brancas que remete a uma galinha. Foto

de Marcelo Dischinger. Fonte: http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html

A sonoridade deste grande adereço cenográfico se encontra em pontos

bastante específicos. Em algumas das sacolas é possível ouvir a emissão de

sons agudos e metálicos, porém em cada sacola os sons possuem tonalidades

diferentes. É possível ver esse instrumento ser tocado na cena em que dois

braços atravessam o manto por meio de duas frestas invisíveis e as mãos

encostam nas sacolas que têm os objetos metálicos sonoros dentro delas.

Os instrumentos musicais de O Ovo carregam características de animais e

enriquecem, não apenas a sonoridade do espetáculo, como também, o seu

aspecto cômico e lúdico, pois são diversas as cenas em que esses instrumentos

interagem com os atores como figuras vivas na cena.

3.2.3 Os pequenos objetos sonoros que compõe a ceno grafia

O espetáculo O Ovo é repleto de pequenos objetos de sucata em que

auxiliam na composição cenográfica da cena. Esses objetos muitas vezes são

utilizados como instrumentos sonoros na realização algumas músicas da cena, e

quando não utilizados para este fim, eles se encontram sobre o palco apenas

como objeto cenográfico. Garrafas de plástico, latas de tinta, latinhas de alumínio,

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sacolas plásticas, pano de chão e até mesmo um pinico são objetos que podemos

visualizar no espetáculo.

Muitos desses detalhes sonoros cenográficos surgem ao longo do

espetáculo. Na cena em que Marció procura um rolo de fita adesiva, por exemplo,

até encontrá-la Marció e Beré lançam dezenas de latinhas de alumínio pelo palco

até encontrar o objeto desejado. E espalhadas pelo cenário essas latinhas

permanecem até o final do espetáculo.

Os instrumentos musicais de maior porte acabam por atrair mais a atenção

do público, porém os detalhes sonoros emitidos por pequenos e diversos objetos

também carregam seu importante destaque tanto pela contribuição sonora,

quanto pela composição cenográfica do espetáculo.

3.2.4 A temática social das ruas para a cena

Dos três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi analisados nesta

dissertação é possível afirmar que em O Ovo o aspecto crítico social se apresenta

com maior contundência.

Os atores Beré, Porto e Marció remetem suas personificações cênicas à

moradores de rua, não tanto pelos seus figurinos quanto pelas ações que

realizam em cena. Diversos são os momentos em que os atores revelam essa

faceta social: quando dão a entender que um invadiu o espaço onde vive o outro,

ou quando disputam por objetos de sucata que fingem ser comida, ou ainda

quando se sentam ao redor de uma fogueira improvisada para driblar o frio.

Essa estética carregada de critica social tem grande influência sobre o

repertório sonoro. Em O Ovo os instrumentos musicais e sonoros permanecem

com sua aparência de sucata, por mais complexos que sejam. O cachorrinho

Polly é um exemplo, sua cabeça e patas de garrafa de plástico e seu corpo de

espuma branca sob um cano de fiação nos mostra o quanto elaborado é Polly,

mas nenhum polimento estético foi dado a seus materiais, deixando em evidência

seu aspecto de sucata.

As diversas latinhas de alumínio espalhadas pelo palco, junto com as

garrafas de plástico, tampinhas de garrafa e latas de tinta aparentemente

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enferrujadas também a mostra, ajudam a compor o espaço em seu parâmetro

social onde os ficcionais moradores de rua vivem.

A crítica social em O Ovo se consolida por meio da última musica tocada

pelos atores, Aquarela do Brasil, em que sua letra revela um Brasil tão belo,

porém o que vemos em cena é um país com sérios problemas sociais. As estrofes

de Aquarela do Brasil em O Ovo não são cantadas, a melodia da canção é

executada por Marció instrumentalmente por meio do Baron. Esse é um exemplo

bastante evidente de uma releitura sonora de algo já conhecido, que quando

reelaborado por outro viés, nos oferece possibilidades de novas interpretações.

3.2.5 Texto não: diálogos fonéticos

Em O Ovo, como nos dois outros espetáculos do Udi Grudi aqui

analisados, não há um texto dramático pré-estabelecido e recitado pelos atores,

contudo é neste espetáculo que a palavra tem maior espaço.

Durante o destrinchar das cenas de O Ovo os atores revelam sua fome e,

consequentemente, sua necessidade por comida. As disputas entre os atores

para obterem comida, que no caso são objetos de sucata dos quais referenciam

como alimento, geralmente são travadas por meio de intensas e cômicas

discussões verborrágicas. Essas discussões, ora aparecem em forma de gramelô,

ora em forma de palavras soltas, ou palavras chaves que indicam com precisão a

ideia transmitida pelos atores. Como na cena em que os três atores fazem de um

rolo de fita adesiva diversos alimentos como macarrão, batata frita, ovo, toda essa

cena é falada, mas nenhuma ideia de raciocínio contínuo é transmitido por meio

das palavras. As ações nos fazem chegar muito mais rápido à conclusão da ideia

da cena do que as palavras ditas.

A sonoridade empregada nas palavras, junto com as ações que vêm com

elas chamam muito mais a atenção do que seu significado. Cada ator soa suas

palavras chaves com timbres e tempos fonéticos distintos, e essa distinção

fonética sonora se sobressai perante a atenção auditiva do público.

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3.2.6 As músicas

As músicas tocadas na íntegra em O Ovo são: Luar do sertão, La Gamine:

sim ou não e Aquarela do Brasil. Assim como em O Cano, cada música tocada

em O Ovo tem uma proposta cênica distinta.

A música Luar do sertão aparece logo no início do espetáculo, cantada à

capela apenas por Beré. Essa canção parece ter como finalidade apresentar a

figura solitária deste homem no palco. O ator adota um humor melancólico para

essa música, pois apesar de ser engraçado ver Beré como um anão (ele está de

joelhos e uma capa cobre suas pernas), cantando com garrafas encaixadas em

seu chapéu, ao mesmo tempo sua canção remete à saudade que tem por sua

terra.

Um humor mais escrachado é apresentado pelos atores na execução da

música La Gamine: sim ou não. Cada ator canta uma estrofe da música em um

idioma diferente, primeiramente Porto canta em português, em seguida Beré em

francês e, na sequência, Marció em alemão. Ao mesmo tempo em que cada ator

possui um objeto sonoro que acompanha o ritmo da música. Na medida em que a

canção se desenvolve os atores Marció e Beré trocam os objetos que têm em

mãos por outros, mas sem perder o ritmo, revezando assim os instrumentos

sonoros, consequentemente mudando a sonoridade da música. Ao final da

canção a cena se transforma numa divertida disputa pela atenção da platéia, um

ator quer cantar na frente do outro, o outro interfere no instrumento do outro, um

empurra o outro, enfim, uma grande confusão põe fim à música.

A música Aquarela do Brasil é apresentada em O Ovo com propósito

similar de fechamento do espetáculo como o Trenzinho Caipira tem em O Cano.

Além da mesma atmosfera encantadora da música de Vila Lobos, a execução de

Aquarela do Brasil ainda vem carregada da crítica social que permeia todo o

espetáculo. As Latas e o galão de d’água realizam a marcação rítmica da música,

tocados por Porto e Beré, e o agudo e suave Baron executa a melodia da canção,

tocado por Marció. Este é, sem dúvida, mais um momento mágico realizado pelos

atores do Udi Grudi, o público presencia atento a performance de uma música tão

bela, e ainda tocada pelos excêntricos e poéticos instrumentos musicais do grupo.

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3.2.7 O clima: os efeitos dos sons e das músicas so b auxilio indispensável

da iluminação

Iluminação cênica e repertório sonoro dialogam com grande entrosamento

no espetáculo O Ovo, a união desses dois elementos é um dos grandes

responsáveis, junto com a atuação, por provocar varações na atmosfera e no

clima do espetáculo.

Analisei no primeiro capítulo desta dissertação a respeito da eficaz

capacidade que o repertório sonoro tem em transformar o tempo e o espaço real

do espetáculo em tempos e espaços ficcionais. No espetáculo O Ovo essas

variações de tempo e espaço ficcionais são bastantes presentes e, utilizando-se

também do recurso da iluminação cênica, este trabalho apresenta um acidentado

gráfico das nuances de uma cena para outra.

O final da descontraída performance dos atores na cena da música La

Gamine, por exemplo, é seguida por uma lúdica atmosfera cênica. Porto é

engolido pelo manto de sacolas brancas e uma variação de cores é realizada por

meio da iluminação, acompanhada por uma paisagem sonora de sons distorcidos,

agudos e contínuos. Esse contraste de uma cena para outra provoca uma quebra

na observação do espectador. Primeiramente acompanhamos uma cena cômica,

a execução de uma canção descontraída, repleta de ações dinâmicas e variações

de instrumentos sonoros por parte dos atores. Logo na sequência vemos a

movimentação do grande manto branco engolindo um ator, fortes variações de

cores e um som repleto de subjetividade e ludicidade.

Nessa cena, como de maneira geral no espetáculo O Ovo, a transição de

atmosferas cênicas provoca sensações variadas de mudanças de tempo e

espaço. Em alguns momentos presenciamos cenas dinâmicas, rápidas, de

espaço e tempo aparentemente reais e palpáveis. Já em outras cenas

presenciamos algo que se aproxima da estética do sonho, do subjetivo e do

inatingível. Essa variação de sensações é resultado da união e entrosamento de

todos os elementos de cena, em especial da iluminação cênica e do repertório

sonoro.

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3.2.8 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ou vem

Como foi analisado no item anterior a estética lúdica e fantasiosa, deste

espetáculo, é recorrente. Esta característica torna o recurso do "ver & ouvir" ainda

mais atrativos, pois através da imagem produzida na cena percebemos a riqueza

do som que a acompanha e, por meio do som emitido, o encanto da imagem se

sobressai.

A união da animação e manipulação dos objetos de cena com o som que

esses emitem, também aguça a curiosidade que nos provoca a questionar como

tais sons são emitidos de tais objetos. Me refiro aos objetos/animais que

compõem as cenas de O Ovo. O bode Jirimum, junto com o cachorrinho Polly e a

gigantesca galinha branca ao fundo do cenário, são, além de belos adereços de

cena, instrumentos musicais. Esses adereços, ao serem observados inicialmente,

não levantam suspeitas de que dali soarão notas musicais com tamanha precisão

e variedade sonora.

Outro grande destaque da relação entre som e imagem de O Ovo se

encontra nos mínimos e fundamentais detalhes sonoros. Na cena em que os

atores Porto, Beré e Marció realizam a cena da canção La Gamine, o trio utiliza

diversos e pequenos objetos sonoros que se transformam em instrumentos

musicais ao longo da execução da música. Várias tampinhas de garrafa sobre

uma forma de alumínio se transformam em um pandeiro nas mãos de Beré. O

atrito entre quatro copos de plástico marcam o tempo da música tocados por

Marció. E Porto também assume a cadência rítmica da canção batendo com uma

baqueta em uma garrafa de plástico preenchida de ar comprido, o que torna o

som da garrafa mais grave, semelhante à marcação de um tambor. Os

instrumentos musicais Baron, feitos de garrafas de plástico preenchidas com ar

comprimido, e as Latas, feito com vinte e quatro latas de tinta, também se tornam

admiráveis quando vemos que de simples matérias recicláveis podem sair

instrumentos musicais de extrema precisão.

No espetáculo O Ovo, assim como em todos os trabalhos do Udi Grudi, o

destaque do som emitido a partir dos materiais utilizados para esse fim é tão

impressionante que provavelmente, no mínimo, aguça a curiosidade de quem

observa. Afinal, a fusão do som que se vê e a imagem que se ouve é uma

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característica tão rica que, sem dúvida, é um dos grandes destaques e diferencial

do trabalho do Udi Grudi.

3.3 DESCRIÇÃO DE A DEVOLUÇÃO INDUSTRIAL: O SOM CRIADOR DE

ATMOSFERA26

A construção de grandes e móveis instrumentos musicais é um destaque

que se sobressai nas cenas de A Devolução Industrial. O trabalho também conta

com a linha de atuação do palhaço e o repertório musical varia entre músicas

regionalistas brasileiras, além de músicas populares de origem norte americanas.

O canto também é um grande destaque neste trabalho, pois o elenco conta, pela

primeira vez, com uma atriz que também é cantora, aprimorando ainda mais o

repertório sonoro do grupo.

3.3.1 A evolução devolvida em músicas e palhaçadas

O espetáculo A Devolução Industrial começa com o ator Marcelo Beré no

centro, ao fundo do palco, sentado sobre uma espécie de banco coberto por

tecidos brancos. Seu figurino, composto pelo mesmo tecido, parece uma túnica, e

compõe uma figura aparentemente mística, reforçada essa impressão por um

comprido cocar de palha que cobre todo o seu rosto e ao redor de sua cabeça.

26 O espetáculo A Devolução Industrial está composto por: Joana Abreu, Luciano Porto e Marcelo Beré, com direção de Leo Sykes. Estreou em 2010, em Brasília.

Imagem n˚ 30. Cena de A Devolução Industrial. Fonte: http://www.teatrando.com.br/2010/09/critica-devolucao-industrial.html

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Uma paisagem sonora é criada, sons de galinha, cavalo, cachorro e chuva

são produzidos com pequenos instrumentos como um reco-reco, um agogô de

coco e até um grande instrumento popularmente conhecido como trovão: parecido

com uma cuíca, porém seu cordão de mola pendurado no corpo do instrumento,

ao ser chacoalhado ou em atrito com o chão, produz um perfeito som de

tempestade.

Neste instante é possível visualizar o cenário por completo, ao chão um

grande tapete verde como a grama e no centro um pequeno lago em formato de

círculo. Ao fundo os caixotes de madeira onde Beré se encontrava sentado

sobrepondo-os com seus tecidos brancos, agora descobertos e camuflados entre

outros objetos do mesmo material que parecem ser instrumentos sonoros. Ao

fundo uma grande roda d’água de madeira e pelos cantos alguns vasos e cestos

de palha, cubos vazados de ferro e uma estrutura de metal com rodas a direita.

Porto e Joana representam cuidar desse ambiente como uma fazenda,

uma casa de campo, e a cada ação que desempenham com este propósito o

embalo rítmico produzido por Beré com os objetos de cena acompanha a

trajetória do casal. Em meio à cadência sonora, Joana acende o fogareiro que se

encontra na estrutura de metal com rodas, coloca uma panela em cima e despeja

água dentro do recipiente, enquanto Porto prepara alguns legumes em uma tabua

de madeira.

Uma grande sopa está sendo preparada. Os três cantam uma música

popular regionalista falando a respeito do preparo da comida. Porto toca a base

batendo o cabo da faca na tábua em que cortava os legumes, Beré o acompanha

em um objeto circular branco pendurado ao fundo do palco que representa a lua e

Joana faz de uma cesta com grãos o seu chocalho. A partir desse momento a

sopa fica cozinhando durante o desvendar do espetáculo.

A máscara de palha de Beré é arrancada por Joana que, com o objeto,

começa a varrer o chão do palco. Porém o rosto de Beré não é revelado e sua

imagem remete ao deus hindu, Ganesh, com um tecido comprido caído sobre sua

face, parecendo o rosto de um elefante.

Enquanto Joana varre e limpa o cenário, tirando inclusive vários objetos de

cena, Porto senta a frente do palco com um serrote e faz dele um instrumento

sonoro de timbre agudo e modulado conforme as batidas que é dada em sua

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lâmina com uma baqueta. Beré o acompanha produzindo um som repicado com

uma tampa de panela. Os dois atores cantam mais uma música regionalista sobre

uma vida mansa na qual não vale à pena trabalhar, enquanto Joana, num ritmo

bastante contrastante aos dois, limpa todo o cenário efusivamente.

A essas alturas do espetáculo a água da sopa está fervendo e o barulho

produzido pelo vapor que sai de um longo bico da panela se propaga aguda e

ruidosamente pelo espaço, num som contínuo e ininterrupto.

Um jogo de ações é realizado por Porto e Joana com cinco estruturas

cúbicas de ferro enquanto Beré propõe o ambiente sonoro em cima das ações do

casal. Com esses cubos Joana e Porto simulam uma guerra pela posse desses

objetos, os empilham, constroem uma espécie de edifício. Todas as ações desse

jogo cênico são acompanhadas sonoramente por palavras chaves e

onomatopéias expressadas pelo casal, junto da execução sonora emitida por

Beré e seus instrumentos alternativos.

Um aro de alumínio é introduzido em cena por Beré, e deste objeto é

representado o surgimento da roda. A disputa pela nova invenção gera uma

discussão entre Joana e Porto que saem de cena brigando pelo objeto. Beré está

só em cena e, com uma cumbuca apanha e despeja água no pequeno lago do

centro do palco, começa então a cair um filete d’água do alto do teatro na direção

do lago onde Beré se encontra. Uma palavra chave é soada por ele: “milagre”.

Esta palavra é repetida por Beré em vários momentos do espetáculo, como uma

marca da figura que representa.

Do filete de água que despenca do alto, Joana e Porto têm a brilhante idéia

de construir uma invenção. Os atores deslocam a roda de madeira do fundo do

palco, este objeto mede em torno de três a quatro metros de diâmetro, e a

colocam debaixo da queda d’água.

Imagem n˚ 31. Os atores construindo o moinho d’água. Foto

de Marcelo Dischinger. Fonte: http://fotoetal.blogspot.com/2010/03

/udi-grudi-devolucao-industrial-28-03-10.html

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Com mais alguns objetos os atores montam um moinho d’água que nada

mais é do que um instrumento musical movido a água. A grande roda de madeira

gira com a força da água, este movimento, conectado por uma correia, impulsiona

outro objeto a frente da roda, que consiste em um grande carretel de garrafas de

plástico, este objeto mede em torno de cinqüenta centímetros de altura e um

metro de largura. Cada garrafa soa uma tonalidade por causa da diferente

quantidade de ar comprimido que há em cada uma delas. Ao girarem as garrafas,

baquetas encaixadas acima delas as tocam e cada toque das baquetas nas

garrafas produz o som de uma nota musical. É como se fosse a engenhoca da

caixinha de música, porém com proporções gigantescas e movida a água. Os três

atores deixam o palco para que o público contemple unicamente a magnífica

engenhosidade sonora que acabou de ser construída. E vale lembrar ainda que o

assovio do vapor da sopa fervente neste momento acompanha sonoramente o

instrumento que acontece no centro do palco.

Porto entra em cena e desloca a estrutura com a panela de sopa para trás

do moinho d’água, neste instante é possível perceber que a estrutura é um

triciclo. Porto e Joana se olham e repetem a palavra “inventar”, mesma palavra

que disseram antes de construir o moinho. Enquanto Porto pede ajuda a pessoas

da platéia, que no seu todo são cinco crianças, Joana encaixa atrás da panela

uma roda de bicicleta com várias colheres de sopa fixadas ao redor do aro da

roda e mais uma estrutura plana e baixa atrás do triciclo, como um reboque.

A pilha de cubos de ferro que se encontrava pouco a frente do moinho foi

desfeita por Porto, pelas crianças e por Joana enquanto cantavam Escravos de

Jó. Os cubos foram colocados em cima do reboque engatado no triciclo. Neste

momento é possível perceber a ideia de um trem no todo dessa estrutura. A ideia

é concretizada quando Porto direciona as colheres da roda de bicicleta na direção

do jato de vapor que sai da panela. A roda começa a girar movida pelo vapor e o

que ouvimos é a perfeita reprodução sonora de uma "maria-fumaça".

Beré entra em cena com um instrumento bastante esquisito sobre a

cabeça. Canos compridos de PVC na posição vertical conectados a longas

mangueiras transparentes que alcançam o chão, o som emitido por esse

instrumento é semelhante a um pífano. Joana tira o instrumento da cabeça de

Beré e coloca na cabeça de Porto que está sentado sobre o triciclo como se fosse

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o maquinista. As mangueiras são conectadas na estrutura do triciclo. Atrás de

Porto está a panela, onde a saída de seu vapor faz a roda de colheres girar. Atrás

disso está Joana que empurra para cima e para baixo garrafas de plástico

adaptadas para fazer soar o instrumento sobre a cabeça de Porto. Atrás de

Joana, como fosse cada uma em um vagão, estão sentadas as crianças sobre os

cubos de ferro.

Por último está Beré, em pé atrás do trem manipulando garrafas de plástico

assim como as de Joana, soando o mesmo timbre sonoro que o instrumento dela,

porém com tonalidades diferentes.

O trem dá a partida, Porto conduz a locomotiva, Beré e Joana tocam seus

instrumentos que soam semelhante a um pífano, porém com o compasso da

maria-fumaça e como passageiras, as crianças. Enquanto o trem se desloca

realizando voltas ao redor do palco, os atores cantam One Hundred Miles de

Hedy West, música folk americana dos anos 1960, que conta sobre uma solitária

viagem de trem. Na segunda estrofe os atores repetem o que cantaram na

primeira, porém adaptada para a língua portuguesa.

Após a representação do surgimento do trem, a eletricidade foi

representada no espetáculo por um liquidificador que bate um pouco da sopa que

já está pronta. Liquidificador e Beré realizam um dueto cantando Mosca na Sopa

de Raul Seixas. De alguma maneira a sonoridade das velocidades do

liquidificador acompanha as tonalidades das estrofes da música cantada por Beré.

Ninguém manipula os botões do liquidificador, Beré está sentado há uns três

Imagem n˚ 32. Ao lado vemos o trem puxado por Porto, atrás da roda d’água. Fonte: http://www.flickr.com/photos/lucianafs/with/5088117807/

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metros de distância do objeto com um cálice de vinho nas mãos, o ator desliza os

dedos sobre a borda do cálice, emitindo o som agudo do cristal.

O fim de A Devolução Industrial e genialmente destrinchado pelos três

atores tocando, com o carretel de garrafas e o exótico instrumento de canos de

PVC e mangueiras, a música Águas de Março de Tom Jobim. Após o black out e

os aplausos, o público é convidado pelo elenco a tomar a sopa feita durante o

espetáculo.

3.3.2 A construção evolutiva dos instrumentos music ais em meio à cena

Como uma característica predominante no trabalho do Circo Teatro Udi

Grudi, a construção de instrumentos musicais em cena se apresenta de maneira

poética e contundente no espetáculo A Devolução Industrial. Esse trabalho, assim

como os demais pesquisados, não se baseia necessariamente em um enredo

linear, porém ele conta, de certa maneira, a evolução do ser humano e do mundo

em que vive. A partir dessa ideia é que os instrumentos musicais são construídos

em cena, com o intuito de acompanhar as ações que representam essa tal

evolução.

O instrumento musical que se utiliza da roda d’água, por exemplo, durante

as primeiras cenas do espetáculo, esse grande objeto encontra-se ao fundo do

palco, como um adereço cenográfico. No momento em que Porto e Joana

representam o descobrimento da utilidade da roda, os atores deslocam a grande

roda de madeira para o centro do palco, e ainda sob a ideia da evolução, eles

constroem com este objeto um moinho movido a água que, além disso,

posteriormente, se transformará em um instrumento musical com outro objeto

acoplado a ela.

As ações cênicas que efetivam a construção de uma espécie de trem na

cena também estão relacionadas à evolução da humanidade no momento da

descoberta da maria-fumaça. O trem feito com cubos vazados de ferro, que

representam os vagões, puxados por um triciclo, referente à maria-fumaça,

também é um grande instrumento musical. Por meio de objetos alternativos como

garrafas de plástico e colheres de metal, o som do criativo trem representa

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justamente seu próprio funcionamento. O som característico de locomotiva é

recriado por meio da inventiva engenhosidade do grupo.

É justamente o exemplo da releitura do som de uma locomotiva que

Camargo cita em sua teoria o som como “A expressão do referente”, mencionada

no primeiro capítulo desta dissertação. Segundo Camargo, através dessa

reflexão, determinado efeito sonoro real pode, em muitos casos, se tornar muito

mais interessante para a cena quando este é recriado com instrumentos diversos,

ao invés do compositor tentar reproduzir o som original do efeito em questão.

O destaque da construção dos instrumentos musicais nas cenas de A

Devolução Industrial é justamente o acompanhamento simbólico entre ação

cênica e confecção sonora. Ambos se relacionam propondo ao público a

apreciação estética característica do grupo, junto com o desenvolvimento da

dramaturgia do espetáculo.

3.3.3 O cenário móvel: os instrumentos musicais em movimento

Bastante próximo da estrutura de cenário composto por grandes

instrumentos musicais como em O Cano, o cenário de A Devolução Industrial

também conta com instrumentos musicais de grande porte, porém esses se

deslocam em cena.

Imagem n˚ 33. Cena de A Devolução Industrial. Foto de Marcelo Dischinger. Fonte: http://fotoetal.blogspot.com/2010/03/udi-grudi-devolucao-industrial-28-03-10.html

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Como foi descrito no item anterior, os instrumentos musicais que

representam o moinho d’água e o trem comportam tamanhos tão grandiosos em

meio à cena, que não há como desvincular a ideia de que esses instrumentos

representam boa parte da cenografia do espetáculo. E, além de serem

fascinantes por sua justa forma, esses instrumentos surpreendem ainda mais nos

momentos em que se movimentam pelo palco.

Porto comanda a partida do trem, é ele quem pedala o triciclo e faz com

que toda a estrutura do instrumento se desloque. Além de deslocá-lo, o ator

também é um dos responsáveis pelo som da locomotiva, junto com Joana e Beré.

O deslocamento desse instrumento pelo palco faz com que não apenas sua

estrutura transite pelo espaço, como o próprio som que ele produz, nos fazendo

percebê-lo próximo e distante, relembrando o som real do trem que, distante, se

aproxima, para se afastar novamente.

O ponto atraente da movimentação do instrumento musical feito por uma

roda d’água é justamente a autonomia de seu funcionamento. Após a cena em

que Joana e Porto encaixam todas as peças necessárias para o funcionamento

da engrenagem, os atores saem de cena e deixam a roda d’água, junto com o

carretel de garrafas de plástico, fazerem seus próprios trabalhos. A movimentação

de rotação de ambos os objetos, conectados por uma correia e impulsionados por

uma despretensiosa corrente de água, produz o som suave e surpreendente do

instrumento que se move independente no meio do palco, necessitando apenas

de sua própria força.

A variada quantidade de instrumentos sonoros de menor porte distribuídos

pelo espaço cênico de A Devolução Industrial também ajudam a compor a ideia

de uma cenografia que se desloca. Uma vez que a rotatividade do uso desses

instrumentos é bastante intensa por parte dos atores, e o fato de eles repousarem

esses objetos em locais diferentes de suas origens, remete a impressão de um

cenário em constante movimento.

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3.3.4 Os grandes e os pequenos instrumentos musicai s

Um fator predominante nos trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi é a vasta

quantidade de instrumentos musicais e sonoros utilizados em cena, bem como a

variedade de seus formatos e tamanhos. No espetáculo A Devolução Industrial

esta persistente característica transborda aos olhos e ouvidos do público. Os ao

atores deste espetáculo não medem esforços em revelar a quantidade de

instrumentos e variedade sonora que são capazes de produzir em cena. Colher

de metal, cesta de palha, panela de pressão, roda d’água, serrote, cabo de facão

em tábua de madeira, vassoura de palha, parece que nada escapa na virtuosa

produção sonora deste espetáculo.

O ator Marcelo Beré é um dos principais responsáveis pelas aparições

visuais e sonoras de variados instrumentos percussivos que compõem o

espetáculo. Como sua figura cênica representa aparentemente certo elo entre os

seres humanos e o espaço onde eles se desenvolvem, o ator se mune de

diversos instrumentos sonoros que ajudam a estabelecer a comunicação entre ele

e os mortais daquele espaço mundano.

Os atores Joana e Porto também executam diferentes situações sonoras

com diversos objetos que portam em cena, porém seus instrumentos geralmente

carregam uma função primordial que não a de emitir som. Como, por exemplo, o

facão de Porto e a cesta de palha de Joana que, além de serem utilizados para

seus devidos fins, também servem de instrumentos sonoros para o

acompanhamento da canção que executam durante o preparo da sopa.

Os pequenos instrumentos sonoros do espetáculo A Devolução Industrial

carregam o mesmo destaque dos instrumentos musicais de grande porte na cena,

pelo fato da quantidade e diversidade que esses objetos apresentam, tanto em

sua forma como sua variação sonora.

3.3.5 Texto não: palavras cantadas

Após anos de timbres vocais graves, masculinos, eis que surge na cena do

Udi Grudi uma voz feminina. E mesmo sendo a voz de Joana um timbre inclinado

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para o contralto, categoria de voz feminina grave, sua sonoridade vocal

enriqueceu o contraste das vozes do elenco no espetáculo.

Além de atriz, Joana é cantora, aliás, sua carreira artística declinou-se com

pouco mais de ênfase para o lado da música. E como ela atua neste trabalho com

Beré, portador de um grave cavernoso, e Porto, que tem grande facilidade em

afinação vocal, as vozes de A Devolução Industrial resultaram praticamente em

palavras cantadas em cena.

O jogo de palavras que ocorre nas cenas se sobressai enquanto sua

sonoridade e, assim como há riqueza no entrosamento das vozes dos atores, a

escolha do vocabulário falado também foi bastante ditosa. Essa combinação entre

as vozes dos atores, junto com as palavras escolhidas para as cenas, faz de A

Devolução Industrial o espetáculo de maior destaque sonoro vocal do grupo.

3.3.6 As músicas / o canto

Algumas das músicas tocadas e cantadas no espetáculo A Devolução

Industrial acompanham as ações dos atores conforme as suas representações, os

versos cantados pelos atores correspondem à sua situação cênica. Como na

cena em que Porto e Beré estão sentados, e sossegados cantam os versos de

uma canção que exalta o não trabalho, o ócio, enquanto Joana limpa e arruma o

espaço cênico.

Até mesmo a execução da música One Hundred Miles, que tem grande

destaque por ser a cantada pelos atores no momento em que realizam o

deslocamento do trem, carrega consigo a referência da ação cênica realizada

naquele instante. Já a música Mosca na Sopa, cantada por Beré, parece uma

parceria musical entre o ator e o liquidificador que o acompanha, sendo esta, por

causa deste recurso, uma cena bastante cômica.

A instrumentalização da música Águas de Março surge para fechar o

espetáculo, o que nos faz lembrar imediatamente de O Trenzinho Caipira, em O

Cano, e Aquarela do Brasil, em O Ovo. Esta é a música final, aquela que nos

concentra unicamente na riqueza de seu foco, que nos provoca admiração ao

ouvirmos e vermos que de objetos incomuns possam soar timbres magníficos.

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3.3.7 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ou vem

O espetáculo A Devolução Industrial é um trabalho fascinante por diversos

aspectos devido à combinação sonora e visual. Os ricos detalhes dos objetos

sonoros colaboram efetivamente na construção da dramaturgia do espetáculo. Os

atores transmitem a comunicação de certa narrativa que acompanhamos

visualmente por meio de suas ações cênicas, mas que certamente não atingiriam

seu nível de compreensão sem o som que produzem.

A utilização de objetos comuns e funcionais transformados em

instrumentos sonoros é um destaque na questão ver e ouvir do espetáculo. As

ações em que os atores se utilizam de objetos conforme suas comuns funções

causam um surpreendente e admirável estranhamento quando desses mesmos

objetos são emitidos sons ritmados que acompanham sonoramente a música

executada.

A variedade de instrumentos sonoros introduzidos na cena por Beré nos

faz conhecer um arsenal de instrumentos atípicos que compõem de maneira

indispensável o visual de sua mística figura cênica. Geralmente são objetos de

pequeno e médio porte, porem não há como subestimar o som que emitem

apenas pelo seu tamanho, pois em diversos momentos do espetáculo os sons

destes instrumentos causam forte impacto no espectador.

Os grandes instrumentos, por sua vez, são dignos de admiração seja pela

forma ou pelo som que emitem. Olhos e ouvidos se preenchem de surpresa e

encanto quando os atores Joana e Porto fazem da grande roda d’água, conectado

ao carretel de garrafas de plástico, uma grande engrenagem semelhante à de

uma caixinha de música, por exemplo. O suave som do instrumento se contrapõe

a magnitude de seu tamanho, porém ambos são admiráveis enquanto precisão e

beleza.

O trem construído em cena, além de carregar consigo um universo poético

e nostálgico, produz uma série de sons variados em timbres e tonalidades,

fazendo deste complexo objeto cenográfico, quando soado, quase atingir a

barreira do inacreditável.

Parece que não há limites de superação para a criatividade cênica sonora

no trabalho do Circo Teatro Udi Gruid. Todos os seus espetáculos são ricos não

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apenas nos instrumentos incomuns que constroem e utilizam em cena, tanto na

forma, como no modo que os atores se relacionam com esses instrumentos,

presenteando os espetáculos de humor e poesia.

3.3.8 Som como diálogo entre os atores

A vasta quantidade de instrumentos sonoros na cena de A Devolução

Industrial, assim como a diversidade sonora que provocam, possibilita verdadeiros

diálogos entre os sons em si, como entre os instrumentos e os atores.

O exemplo mais inusitado desse diálogo, e porque não dizer criativo, é o

momento em que Beré canta a música Mosca na Sopa e um liquidificador, há

mais de três metros de distancia do ator, o acompanha na tonalidade das estrofes

conforme a alternância de sua velocidade. Literalmente um dueto é formado em

cena, o liquidificador realmente canta a canção com Beré.

A figura de Beré não tem uma ligação afetiva com as figuras de Joana e

Porto, nem mesmo se relaciona de maneira tão interligada como o casal se

relaciona entre si. Portanto, Beré é a representação de algo impalpável que existe

entre as pessoas e o espaço em que vivem, como um protetor, um guia,

elaborado nos moldes clownescos de Beré. O ator se utiliza de diversos objetos

sonoros para colocar sua comunicação em prática com o casal presente no

espaço em comum. Esses objetos dialogam sonoramente com suas ações, com

as ações de Joana, e Porto e com o desenvolvimento evolutivo da subjetiva

narrativa da cena.

Muitas vezes os sons emitidos por Beré servem como um comentário para

o casal próximo a ele, como uma mensagem, ou mesmo, sem pretensão de

desmerecer seu feito, como um simples som, que acontece e morre quase que no

mesmo instante, sem um sentido aparente. É por meio de seu amplo vocabulário

sonoro que é possível captar grande parte da comunicação que ocorre entre os

três seres que habitam aquele determinado espaço, naquele fragmento de tempo.

O som é um excelente comunicador, sem ter de falar uma palavra, basta

um flash de um registro sonoro para que uma mensagem seja interpretada da

maneira mais clara possível. Esta precisa comunicação entre som e ouvinte é

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realizada com extrema sabedoria pelos integrantes do Udi Grudi no espetáculo A

Devolução Industrial, como em seus demais trabalhos.

3.4 O SOM CONDUZ A DRAMATURGIA?

Através das análises realizadas a respeito do repertório sonoro dos

espetáculos O Cano, O Ovo e A Devolução Industrial, podemos perceber o

quanto este elemento está presente de maneira preponderante no trabalho do

Circo Teatro Udi Grudi.

Dentre os mais diversos formatos sonoros emitidos pelos mais variados

instrumentos sonoros e musicais, o som atinge todos os elementos utilizados nas

cenas, atribuindo e este uma espécie de maestria dentro da estrutura dramática

dos espetáculos.

Ao espetáculo O Cano se atribui maior evidência dessa afirmativa.

Praticamente em todas as suas cenas, e nessas, todas as ações dos atores se

realizam a fim de emitir uma partitura sonora, seja ela expressiva, rítmica, ou

musical, por meio instrumental e/ou vocal. Geralmente as ações, recheadas de

comicidade, implicam em construir instrumentos musicais e, por fim, realizar

números musicais em cena. Atentando ainda ao cenário, em que boa parte da

sua concepção também é voltada ao elemento sonoro, assim como os demais e

menores objetos de cena, é possível afirmar que todo o universo cênico/dramático

de O Cano é voltado ao som. Sendo assim é possível concluir que o repertório

sonoro de O Cano é o condutor da dramaturgia do espetáculo.

O mesmo acontece com os espetáculos O Ovo e A Devolução Industrial. A

única característica de ambos que faz com que a afirmação acima se atribua a

esses trabalhos de maneira pouco mais indireta, é que nem todas as ações dos

atores são diretamente voltadas à emissão específica de uma partitura sonora

dramática. Há cenas em O Ovo que, mesmo que haja as variações de timbre nas

vozes dos atores, fazendo com que seus diálogos sejam sonoramente

destacáveis, o foco está nas ações em si, e o destaque da sonoridade dessas

cenas apresenta-se em segundo plano. No espetáculo A Devolução Industrial

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estas situações também ocorrem, porém as cenas em questão são mais curtas, e

acontecem com pouco mais freqüência durante o espetáculo.

De maneira geral, independente se o som apresenta-se em primeiro plano,

ou momentaneamente não é o foco, este elemento encontra-se presente de

maneira destacável na cena dos três espetáculos. Da mesma forma, a emissão

de todo fragmento sonoro interfere diretamente no rumo da subjetiva e

fragmentada narrativa dos trabalhos analisados. Portanto, após realizada essa

análise, é possível concluir a afirmativa de que o repertório sonoro é o condutor

da dramaturgia da cena dos três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi aqui

analisados.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio dos estudos realizados nesta pesquisa é possível concluir que o

repertório sonoro pode ser um elemento cênico de grande destaque e importância

para um espetáculo teatral. Por acreditar na força dessa afirmação, o grupo

teatral Circo Teatro Udi Grudi foi escolhido como objeto de pesquisa, a fim de

demonstrar o grande valor e espaço que esse grupo atribui ao elemento sonoro.

Seus integrantes utilizam esse recurso como uma ferramenta que molda a cena

de acordo com suas possibilidades, definindo uma trajetória ampla e sinuosa para

o som, de maneira que este atinja todos os demais elementos da cena.

Os diversos formatos do elemento sonoro nos trabalhos do Udi Grudi

mostram o quanto esse recurso cênico pode ser explorado e transformado em

todos os seus aspectos. Com relação às características sonoras os repertórios do

grupo variam em duração de tempo, altura de tonalidades, diferentes timbres e

potência de volume. O Udi Grudi apresenta dilatado vocabulário de exploração

dos quatro métodos possíveis de transformação do som, conforme referenciados

no primeiro capítulo dessa dissertação.

Com relação ao formato estético visual dos instrumentos musicais e

sonoros elaborados e utilizados pelos atores nos espetáculos do Udi Grudi,

percebemos que a variedade desses objetos e adereços cênicos atinge alto grau

de criatividade, virtuosidade e engenhosidade. Os materiais utilizados para a

construção dos instrumentos musicais e sonoros do grupo transitam pelo plástico,

como garrafas, copos, sacolas, pelo alumínio, como latas, placas, bacias, pelos

variados tamanhos de canos de PVC, além de ladrilhos, cordas, madeiras, e todo

e qualquer material alternativo do quais possam ser extraídos sons interessantes

para a cena.

A exploração das trajetórias percorridas pelos repertórios sonoros dos

espetáculos do Udi Grudi também merece atentos apontamentos. O som transita

entre o centro e os quatro cantos do palco, de cima a baixo, e em algumas cenas

se desloca por entre o público. Há momentos em que o som abrange tamanha

potência que parece preencher toda a estrutura física do teatro, em outros

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momentos se concentra em pequenos pontos, exigindo do público grande

atenção para serem ouvidos.

As intenções dramáticas emitidas por meio do repertório sonoro também

carregam bastante responsabilidade com relação à compreensão das narrativas

subjetivas e fragmentadas dos espetáculos estudados. Muitas das

expressividades que o som pode comunicar, refletidas por meio das teorias de

Camargo no primeiro capítulo dessa dissertação, se apresentam nos fragmentos

sonoros das cenas dos trabalhos do Udi Grudi. As músicas, efeitos sonoros, e

mesmo os momentos de silêncio dos espetáculos, muitas vezes são responsáveis

por causar no público diferentes sensações e emoções. Por meio do som os

espectadores dos espetáculos do Udi Grudi podem provar os efeitos da

comicidade, nostalgia, admiração, curiosidade, estranhamento, variadas

experiências sensoriais e emocionais que trabalhos teatrais cômicos, leves e

reflexivos como os do grupo em questão possam provocar.

Os anos de experiência, o alto nível de entrosamento entre os atores e o

domínio dos objetos explorados em cena fazem com que as ações de cena

realizadas por este elenco sejam realizadas com naturalidade e sabedoria. A

diretora Sykes, junto com a atriz Joana e os atores, Beré, Marció e Porto, revela

que a equação entre técnica de palhaço, mais a utilização de instrumentos

musicais alternativos, sob uma direção objetiva, mas poética, resulta em um

trabalho conciso e envolvente. Pois, se o Udi Grudi fosse apenas um grupo que

realizasse apresentações musicais com instrumentos alternativos, ou um grupo

teatral que somente se utilizasse da técnica do palhaço, evidentemente não

acarretaria para si esse caráter particular, de identidade própria.

Dois palhaços experientes que tocam instrumentos musicais, um

engenheiro acústico e também palhaço que constrói instrumentos musicais, uma

cantora atriz e uma perspicaz diretora teatral optam por realizar um teatro

musicado, ou um musical teatralizado. Em seus trabalhos esses inventivos

integrantes optam pela magia do som como elemento central para construírem

espetáculos repletos de expressividade. Trabalhos em que o som e a imagem se

fundem de tal maneira que é certa a riqueza que um é capaz de oferecer ao outro.

O trabalho do Circo Teatro Udi Grudi é um feliz e pertinente exemplo do

que o elemento sonoro é capaz de realizar em um espetáculo cênico. Assim, é a

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partir dos trabalhos desse grupo que sugiro a reflexão a respeito das diversas

possibilidades de se criar um repertório sonoro para a cena teatral. Por meio do

trabalho do Udi Grudi podemos perceber que o repertório sonoro pode enriquecer

o espetáculo cênico por todas as vertentes que este pode percorrer. O som pode

comentar uma cena, pode criticá-la, como pode também reforçar a intensidade de

sua mensagem e de sua emoção.

A música em uma cena teatral, por exemplo, tem o poder de provocar no

espectador os mais diversos sentimentos. Os efeitos sonoros podem esclarecer a

compreensão da cena, assim como os ruídos podem confundir a leitura do

espectador com relação ao que vê, tornando a cena mais subjetiva. Uma

paisagem sonora pode localizar de maneira precisa o espaço em que a cena

ocorre, assim como o silêncio tem o poder de dramatizar ainda mais a tensão

provocada durante o fragmento de um espetáculo.

Os recursos sonoros utilizados pelos atores do Circo Teatro Udi Grudi nos

mostram que em muitos momentos a emissão do som de um simples objeto de

cena pode contribuir de maneira ímpar no espetáculo. Sem ter de, em algumas

situações, elaborar esquemas sonoros complexos que, muitas vezes, não dão

conta do recado de maneira eficaz. Por outro lado, é possível perceber também,

por meio do trabalho do grupo em questão, o quanto um repertório sonoro repleto

de detalhes e variações pode promover um caráter imponente e virtuoso ao

espetáculo.

Os recursos técnicos sonoros, aliás, são ricos em diversidade e,

consequentemente, passíveis de diversas leituras, dependendo da maneira de

como o som é emitido na cena. Sejam esses recursos, acústicos ou eletrônicos,

executados por meio de gravação ou ao vivo, é sugerido ao compositor do

repertório sonoro um detalhado estudo de todas as questões que se irá deparar.

Como vimos no primeiro capítulo dessa dissertação, conhecer previamente os

equipamentos sonoros escolhidos e seus efeitos na cena pode garantir a medida

necessária do som em virtude ao espetáculo. Pois, assim como qualquer outro

elemento cênico, seu excesso ou carência pode prejudicar o desenvolvimento de

qualquer outro recurso utilizado no trabalho.

O som é um elemento invisível, porém, ao mesmo tempo, é matéria. Por

meio das teorias de Wisnik e Schafer, referenciadas nesta pesquisa, podemos

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concluir o quanto o som é subjetivo, impactante e preciso. Inserir qualquer

fragmento sonoro numa cena teatral é inserir uma possível leitura do espetáculo,

dessa maneira, o som pode, muitas vezes, contribuir exatamente na

compreensão da cena, como também desviar o foco da ideia da cena para um

rumo indesejável. Contudo, o elemento sonoro pode oferecer leituras tão

subjetivas que não é necessário exigir do compositor uma exatidão do efeito de

determinado som na cena, mesmo porque é impossível ter essa total ciência. No

entanto, ter noção não apenas dos efeitos físicos do som na cena por meio dos

equipamentos utilizados, é importante também o conhecimento, mesmo que

subjetivo do som e seu efeito em meio à dramaturgia do espetáculo.

Por meio das descrições dos três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi,

assim como a análise de suas principais bases sonoras, apresentados no terceiro

capítulo, pudemos perceber a precisa intenção dramática de cada som na cena.

Cada som exprime uma informação, e essas informações são lançadas a fim de

pescar as diversas reações de seu público. As reações são, geralmente,

homogêneas, por serem sons expressivamente claros, independendo de suas

intenções. Por tanto, ao vasto vocabulário sonoro apresentado nos três trabalhos

do Udi Grudi se atribui a costura da dramaturgia da cena.

As expressivas ações dos atores, comumente em função da sonoridade

emitida na cena, fazem com que o elemento sonoro ganhe um caráter ainda mais

dramático do que sua procedência puramente sonora. O destaque dos

instrumentos musicais e sonoros que compõem o cenário, sua estética visual

incomum e diversificada, também atribui maior riqueza ao som sobre sua

essência. A iluminação cênica também enriquece a beleza do som emitido,

geralmente contribuindo na execução das músicas finais dos espetáculos. Enfim,

todos os elementos cênicos utilizados nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi

oferecem maior vivacidade, contorno e dramaticidade para o som emitido na

cena, independente do seu formato. Podemos assim concluir que o repertório

sonoro, seja evidente como em O Cano, ou de maneira mais indireta como em O

Ovo e A Devolução Industrial, é o condutor da dramaturgia da cena nos

espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi.

O propósito dessa dissertação é essencialmente refletir a respeito da

importância do repertório sonoro, além de sugerir como é possível construir

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repertórios destacáveis, em que estes possam até mesmo ser o condutor da

dramaturgia da cena. E, a partir dessa ideia, estudar um grupo teatral tão rico

quanto o Circo Teatro Udi Grudi como objeto de pesquisa, esclarece de maneira

virtuosa e precisa o tema em questão.

Sei da minha parcialidade com relação à admiração e paixão que tenho

com relação ao trabalho do Circo Teatro Udi Grudi, e sei também que a questão

da parcialidade pode, muitas vezes, distorcer o caminho analítico de uma

pesquisa acadêmica. Contudo, esses sentimentos não cresceriam em mim se não

fosse à necessidade que tenho em ver trabalhos cênicos que se preocupem de

maneira sincera e dedicada com o repertório sonoro da cena teatral.

Percebo também, há quase dez anos, o valor da pesquisa com relação ao

elemento cênico sonoro não somente na prática, como também na teoria. O

quanto é importante encontrarmos materiais sobre esse tema nas prateleiras das

bibliotecas acadêmicas, nos bancos de dados e revistas virtuais ou impressas das

universidades. E, a partir daí, se criar o hábito de discutir e refletir sobre as

infinitas maneiras de se construir um repertório sonoro para a cena. Permito-me

refletir aqui o quanto essa ação pode enriquecer um espetáculo cênico, afinal o

elemento sonoro é um recurso tão rico em sua contribuição quanto qualquer outro

elemento presente no universo teatral. E por fim, desejo, que este trabalho venha,

de alguma forma, contribuir para que os futuros pesquisadores e estudiosos de

nosso teatro busquem na sonoridade/dramaturgia da cena seus futuros objetos de

pesquisa.

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Page 149: O SOM OUVIDO, VISTO E SENTIDO O repertório sonoro da · PDF fileImagem 1 Planta baixa mapa som Retrato de Augustine p.66 ... 3.3.2 A construção evolutiva dos instrumentos musicais

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Entrevistas

Leo Sykes, entrevista realizada por Morgana Fernandes Martins, em 20 de maio de 2010, na casa de Leo Sykes, em Brasília / DF.

Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio Vieira, entrevista realizada por Morgana

Fernandes Martins em 22 de maio 2010, no hotel onde foi realizada parte da pesquisa de campo, em Jataí / GO.

Leo Sykes, Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio Vieira, entrevista realizada por

Morgana Fernandes Martins em 22 de abril de 2007, na sede do Circo Teatro Udi Grudi, em Brasília / DF.

Sites consultados

http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/cenicas/claudia_brigida.pdf. Em 24/08/2010

http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo. Em 14/11/2010

http://www.circoudigrudi.com.br/fotoscano. Em 14/11/2010

http://www.circoudigrudi.com.br/fotosdevo. Em 14/11/2010

http://www.circoudigrudi.com.br/curriculo. Em 14/11/2010

http://www.dicionariodoaurelio.com/Elemento. Em 15/11/2010

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=elemento. Em 15/11/2010

http://primeirosinal.com.br/files/publication/13/94_228.pdf. Em 24/08/2010.