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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA TEORIA LITERÁRIA MARCO AURELIO REIS O SUBÚRBIO FEITO LETRA O COTIDIANO DA PERIFERIA EM CRÔNICAS ÁCIDAS E CARNAVALIZADAS Rio de Janeiro 2015

O SUBÚRBIO FEITO LETRA · RESUMO REIS, Marco Aurelio. O subúrbio feito letra: o cotidiano da periferia em crônicas ácidas e carnavalizadas. Rio de Janeiro, 2015. Tese de Doutorado

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Page 1: O SUBÚRBIO FEITO LETRA · RESUMO REIS, Marco Aurelio. O subúrbio feito letra: o cotidiano da periferia em crônicas ácidas e carnavalizadas. Rio de Janeiro, 2015. Tese de Doutorado

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA LITERATURA TEORIA LITERÁRIA

MARCO AURELIO REIS

O SUBÚRBIO FEITO LETRA

O COTIDIANO DA PERIFERIA EM CRÔNICAS ÁCIDAS E CARNAVALIZADAS

Rio de Janeiro

2015

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MARCO AURELIO REIS

O SUBÚRBIO FEITO LETRA

O COTIDIANO DA PERIFERIA EM CRÔNICAS ÁCIDAS E CARNAVALIZADAS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura da Universidade

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do Título de

Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária)

Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de

Góes

Rio de Janeiro

2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

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Marco Aurelio Reis

O SUBÚRBIO FEITO LETRA: O cotidiano da periferia em crônicas ácidas e carnavalizadas

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária). Examinada por: _________________________________________________ Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Góes - orientador Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Profª. Drª Flora de Paoli Faria Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Prof.ª Drª Martha Alkimin de Araújo Vieira Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Profª. Drª Ieda Maria Magri Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Profª. Drª Teresa Cristina da Costa Neves Faculdade de Comunicação / UFJF Suplentes: _________________________________________________ Prof. Dr Marcelo Diniz Martins Faculdade de Letras / UFRJ _________________________________________________ Profª. Drª. Cláudia Fátima Morais Martins Faculdade de Letras / UFRJ

Rio de Janeiro 2015

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Dedico este trabalho à minha companheira Cláudia e

aos frutos de nosso amor Clara, Felipe e Arthur

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador Fred Góes, por compartilhar a alegria de pesquisar.

Aos professores e funcionários da Faculdade de Letras da UFRJ que, direta ou indiretamente,

contribuíram para a produção da tese.

Aos diretores de redação do jornal O DIA, Eucimar de Oliveira, Alexandre Freeland e Ramiro

Alves, pela contribuição a esta pesquisa.

Aos alunos dos cursos de Comunicação da Universidade Estácio de Sá e da UERJ, pelo

estimulante retorno durante nossas aulas.

À dona Lídia Montenegro pela confiança depositada nesta pesquisa.

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“Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade

de 'dar voz', de mostrar em pé de igualdade os

indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem

o teor da sua humanidade, que de outro modo não poderia

ser verificada”

(CANDIDO, 2004)

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RESUMO

REIS, Marco Aurelio. O subúrbio feito letra: o cotidiano da periferia em crônicas ácidas e carnavalizadas. Rio de Janeiro, 2015. Tese de Doutorado - Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015

A presente pesquisa de tese tem como tema principal o estudo de uma tradição nas

crônicas ambientadas no subúrbio do Rio de Janeiro. Nas obras de Lima Barreto, João

Antônio e Léo Montenegro verificou-se que é grande a recorrência à crítica contra as

condições de vida dessa região da cidade, merecendo, portanto, um estudo aprofundado.

Foram feitas análises de crônicas dos três autores, nas quais se verificou que, em algumas

delas, os elementos intertextuais, como referência e alusão, contribuem para crítica que os

cronistas, ora de forma ácida e até brutal e ora de forma carnavalizada, imprimem em suas

obras. Menos conhecido dos três, Léo Montenegro tem parte de sua obra resgatada.

Palavras-chave: crônica, cidade, subúrbio, jornalismo, literatura

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ABSTRACT

REIS, Marco Aurelio. O subúrbio feito letra: o cotidiano da periferia em crônicas ácidas e carnavalizadas. Rio de Janeiro, 2015. Tese de Doutorado - Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015

This thesis research has as main theme the study of a chronicle tradition set in the

suburb of Rio de Janeiro. In the work of Lima Barreto, João Antônio and Léo Montenegro

was noticed the recurrence of critical texts about living conditions of this region, deserving,

therefore, a thorough study. Analyzed chronicles of the three authors show that the presence

of intertextual elements such as reference and allusion, contribute to the critical, acid and even

brutal and sometimes carnivalized way. Least known of the three, Léo Montenegro had part

of his work rescued.

Keywords: chronicle, city, suburb, journalism, literature

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RIASSUNTO

REIS, Marco Aurelio. O subúrbio feito letra: o cotidiano da periferia em crônicas ácidas e carnavalizadas. Rio de Janeiro, 2015. Tese de Doutorado - Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015

La ricerca di tesi di dottorato qui presentata ha per tema principale lo studio di una

tradizione nei racconti ambientati alla periferia di Rio de Janeiro. Nelle opere di Lima

Barreto, João Antônio e Léo Montenegro si è verificato che la ricorrenza alla critica contro le

condizioni di vita di questa parte della città è grande, meritando, quindi, uno studio

approfondito. Sono state fatte analisi di alcuni dei racconti dei tre autori, in cui è stato rilevato

che gli elementi intertestuali, come riferimento e allusione , contribuiscono alla critica che gli

autori, a volte sotto forma aspra e persino brutale e a volte in modo carnevalesco, stampano

sulle loro opere. Meno conosciuto tra i tre autori, Léo Montenegro ha parte della propria opera

riscattata.

Parole chiave: cronica, città , provincia, giornalismo , letteratura

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Cartaz convocando para Bienal da UNE, colocado em tapume de obra no bairro da Lapa em janeiro de 2015

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................13

2 O CRONISTA LÉO MONTENEGRO E O JORNAL O DIA .......................................19

3 CRÔNICA E OS TEÓRICOS ...........................................................................................35

3.1 Crônica desde a origem .........................................................................................37

3.2 A relação com os meios de comunicação...............................................................39

3.2.1 “Literatura de ouvido” ............................................................................43

3.2.2 “Cotidiano encadernado”, na telinha e nas nuvens.................................46

3.3 Crônica pelos autores.............................................................................................48

4 FORMAÇÃO E OPINIÃO ...............................................................................................53

4.1 Efêmero, mas profundo.........................................................................................55

4.1.1 Vingança contra o racismo......................................................................56

4.1.2 Nas entrelinhas........................................................................................59

4.1.3 A crítica carnavalizada............................................................................60

4.2 Samba em prosa.....................................................................................................63

5 A CIDADE COMO TEMA................................................................................................70

5.1 O subúrbio feito letra..............................................................................................76

5.1.1 Carnavalizar, inverter e criticar...............................................................93

6 CONCLUSÃO .................................................................................................................105

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................107

ANEXOS ...............................................................................................................................112

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1 INTRODUÇÃO

Conheci Léo Montenegro quando comecei a trabalhar como repórter no jornal carioca

O DIA (isso mesmo, escrito em maiúsculas, ou caixa-alta como se diz na redação, por

determinação editorial). Era o ano de 1997 e Léo não frequentava mais a redação diariamente.

Já estava aposentado do jornalismo e se dedicava apenas à sua crônica diária, marcada pelo

texto curto, abusando dos diálogos, dos personagens com nomes insólitos e, sobretudo, do

tom carnavalizado, cômico e divertido, para realçar sua crítica feroz a situações sociais

precárias presentes no subúrbio do Rio como, por exemplo, o abandono da administração

pública e a falta de segurança presentes nos bairros dessa região.

Três anos mais tarde fui promovido a redator e, em plantões, fazia a primeira leitura

das crônicas de Léo enviadas por e-mail. Essa nova atividade marcou minha carreira como

jornalista. O texto limpo do cronista não necessitava de revisão nem de ajustes do redator.

Enxuto em palavras e denso no conteúdo, o autor apresentava como desafio encontrar algo

para ser cortado quando o espaço previsto na página do jornal impedia a publicação na

íntegra. Interessante foi notar que quando esse desafio se apresentava, o editor da página

preferia trocar a crônica de lugar de modo a caber sem corte. Promovido a editor, adotei a

mesma estratégia. Léo Montenegro saía sem cortes.

Em 2003, quando Léo morreu, eram sete anos de convivência. Posteriormente suas

crônicas seriam publicadas no Jornal do Brasil, quando ele ainda saía impresso e era vendido

em bancas. Leitores do tradicional JB logo mandavam para a redação elogios para os textos

aparentemente despretensiosos do cronista que, por 38 anos, escrevera crônicas diárias no

jornal O DIA.

Admirador do Carnaval, eu notara nos textos de Léo a forma como ele aproveitava seu

espaço para manter a festa de momo nas páginas do jornal ao longo de todo o ano. Ora o

cronista fazia referência direta ao Carnaval, aos desfiles e a seus personagens, como ritmistas

e passistas. Ora carnavalizava histórias cotidianas. Essa observação resultou em uma pesquisa

aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da

UFRJ e em uma dissertação de mestrado defendida nessa mesma instituição em 2010. Ao

longo dessa primeira pesquisa, uma inquietação e uma constatação deram origem à presente

tese de doutorado.

A inquietação diz respeito ao acervo de 11 mil crônicas de Léo Montenegro,

arquivadas em empresa privada e com risco de se perder, e ao esquecimento do autor mesmo

entre os colegas de redação de O DIA. Muitos não conheceram Léo nem suas crônicas. São

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jovens e toda a obra do cronista foi veiculada em jornal popular, voltado para um público-alvo

específico (aposentados do INSS, servidores públicos de setores intermediários da

administração e moradores em bairros suburbanos ou áreas periféricas, notadamente da

Baixada Fluminense). Muitos desses jovens jornalistas não tinham, em suas casas, exemplares

de O DIA e não leram Léo Montenegro, nem mesmo quando, no ano de 1999, o matutino

chegou a vender um milhão de exemplares em banca.

A constatação é que Léo ambientou suas crônicas no subúrbio do Rio e não em toda a

cidade do Rio de Janeiro. Com isso, integrou uma tradição iniciada pelo cronista Lima

Barreto e continuada pelo também cronista João Antônio. Mesmo com texto tão diferente

desses dois autores, como eles Léo, em tom cômico, carnavalizado1, destacou o abandono dos

bairros e dos moradores suburbanos, suas características e seu cotidiano. A presente tese

busca evidenciar essa ligação e essa tradição.

A crônica como é concebida hoje no Brasil é um gênero literário urbano, que tem

como ambiente mais fértil e explorado o Rio de Janeiro, cidade que abriga muitas cidades,

entre elas os bairros do subúrbio. É neste cenário carioca, refletido nas crônicas de Léo

Montenegro, João Antônio e Lima Barreto que a presente tese vai flanar. A proposta é

caminhar de modo ocioso em direção ao Rio de Janeiro dos subúrbios, da Estrada de Ferro da

Central do Brasil, aquele eternizado em versos pelo mestre Silas de Oliveira, da suburbana

Escola de Samba Império Serrano, o Rio “de sambas e batucadas, de malandros e mulatas, de

requebros febris”.

O primeiro desafio é, portanto, unir a definição sobre o chamado cronismo2 em textos

teóricos complexos e densos, como os de Eduardo Portella e Beatriz Resende, com a imagem

de um Rio de Janeiro tão bem descrito por crônicas leves e despretensiosas, como as do

carioca Marques Rebelo.

Desde primeira metade do século passado, o gênero conhecido como crônica no Brasil

é provocação para a fértil discussão de críticos literários, teóricos da comunicação e

jornalistas, que neste início de século já pacificaram alguns entendimentos, como os que

1 A partir do conceito defendido por Baktin (2010), em sua obra “Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais”, de desestabilização do poder oficial vigente, de nivelamento das pessoas simples com as nobres, apagando distinções hierárquicas, suspendendo certas normas estatais e religiosas, e promovendo a experiência de liberdade e de igualdade entre os sujeitos. “Durante a realização da festa, só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é, as leis da liberdade [...] é a própria vida que representa e interpreta (sem cenário, sem palco, sem atores, sem espectadores, ou seja, sem atributos específicos de todo espetáculo teatral)”(p. 6-7) 2 Termo cunhado por Tristão de Athayde, o professor Alceu Amoroso Lima, para definição do gênero segundo o teórico Afrânio Coutinho (COUTINHO, 1999, v. 6, p. 135).

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dizem respeito à brasilidade dos textos breves, inicialmente escritos para efemeridade dos

jornais e emissões no rádio e na TV e, posteriormente, reunidos em livros e, mais

recentemente, postados nas midiáticas páginas hospedadas na internet.

A essa altura, pode-se dizer que está consolidada também a ideia entre os cronistas e

seus leitores de que o Brasil se confunde com Rio, praça onde mais se publicaram crônicas e

que mais serviu de tema para textos de autores de diferentes matizes, como Machado de

Assis, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, João Antônio e

Rubem Braga, sem falar em João Paulo Barreto, autor que adotou “do Rio” como sobrenome.

Intrigante é observar como podem ser identificadas as “cidades” dentro do Rio

descritas por Marques Rebelo. Ora é o visitante que sempre está nas ruas que figura nas

crônicas. Neste caso, vem à mente o Rio dos turistas do estrangeiro e de outras cidades e

estados brasileiros. Ora é o noticiário que gera um mote para uma crônica, seja ele um relato

de um acidente ou a confusão causada por obras da administração pública. É a cidade

reportada nas páginas dos jornais e eternizada em crônicas.

Como já dito, é sobre uma dessas “cidades” dentro da metrópole mulher (para citar o

poeta gaúcho Álvaro Moreyra) que trata a presente tese. Buscou-se a “cidade”, ou melhor, as

“cidades” dentro do subúrbio carioca, uma representação que emerge das crônicas uma vez

que a área geográfica subúrbio surge exatamente no auge do cronismo crítico contra o

afrancesamento do Centro do Rio, o “bota abaixo” do ex-prefeito Pereira Passos. Ao falarem

do emergente subúrbio, cronistas do peso de Olavo Bilac e Lima Barreto ajudaram a criar

uma imagem nacional sobre ruas, bairros, pessoas e suas culturas suburbanas cariocas, uma

representação bastante conhecida em todo o Brasil.

A proposta almejada na pesquisa foi definir uma tradição no cronismo que tem o

subúrbio carioca como ambiente e como ela se construiu nas crônicas veiculadas pela

imprensa do Rio ao longo do século passado e primeiros anos deste. Esse período é aquele em

que os jornais (por longo tempo desde a virada do século), emissoras de rádios (a partir de

1942) e canais de TV (da década de 1950 em diante), cada um a seu modo, contribuíram por

meio do cronismo para as variadas representações que se tem dessa área geográfica da cidade.

Os cronistas aqui citados vão de Olavo Bilac a Carlos Drummond de Andrade, de José

de Alencar a Luís Fernando Veríssimo, de Machado de Assis a Nelson Rodrigues. Eles aqui

aparecerão para acompanhar três cronistas que a tese destaca como fundamentais na formação

da ideia que se tem de subúrbio carioca e na formação de uma tradição que reúne textos

críticos publicados em épocas diferentes: os suburbanos Lima Barreto e Léo Montenegro e o

paulista João Antônio.

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Lima Barreto, nascido em 1881 e precocemente morto aos 41 anos de idade em 1922,

é bastante estudado e tem vasta fortuna crítica e ricas coletâneas que muito colaboraram com

a pesquisa. João Antônio (1937-1996) conta com acervo conservado pelo Centro de

Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da Faculdade de Ciências e Letras de Assis –

Unesp desde 1998, na cidade de Assis, tendo ele próprio sido cuidadoso com a preservação de

sua obra, como destaca a professora Ieda Magri em sua tese de doutorado defendida em 2010

no programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da UFRJ. A Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro, que guarda periódicos brasileiros, tem em seu acervo edições do jornal carioca

Última Hora (UH), onde foi publicada a coluna Corpo-a-Corpo com crônicas de João Antônio

entre março e setembro de 1976.

Léo Montenegro (1938-2003), ainda pouco estudado, conta apenas com a dissertação

de mestrado que antecedeu a presente tese (REIS, 2010). Em função disso, parte fundamental

da pesquisa visou resgatar crônicas de Léo hoje disponíveis apenas no acervo da Biblioteca

Nacional, no arquivo privado do jornal O DIA do Rio de Janeiro, marca controlada

atualmente pela Empresa Jornalística SA (Ejesa), e em seu acervo pessoal, guardado pela

viúva do cronista, dona Lídia Montenegro. São textos que saíram de circulação e estão longe

das vistas de seu público alvo, sem possibilidade de leitura por aqueles que ali foram

representados.

Como já dito aqui, as crônicas de Léo trazem marcas das histórias do subúrbio do Rio,

seu cotidiano, a rotina de seus moradores, hábitos, polêmicas que mostram problemas também

da cidade. Pode-se dizer que nessas crônicas há rastros da memória do Rio de Janeiro, ou

melhor, de um Rio que não é dos turistas, de uma cidade, entre as muitas de mesmo nome,

que “desbanca a outra, a tal que abusa de ser tão maravilhosa”, como define o dramaturgo,

escritor e compositor Chico Buarque, na música “Subúrbio”.

Ante ao desafio de abarcar obra tão ampla (Léo escreveu diariamente entre os anos de

1965 e 2003, só não era publicado ás segundas-feiras), foi necessário para esta pesquisa

delimitar o universo de crônicas a serem consideradas. Assim, a tese tratará prioritariamente

de crônicas em perfeito estado de conservação, o que é facilmente identificável nos dez

últimos anos de produção de Léo, mais especificamente dos textos publicados após 1993,

quando o autor deixou de dividir a atividade de cronista com as de repórter e de redator. A

tese observa nesta amostragem o cronismo de Léo de forma amadurecida e bem definida.

O recorte contribui com a discussão sobre a ideia que se tem dos bairros do subúrbio

do Rio na contemporaneidade e sobre a tradição dos cronistas que têm o subúrbio como

ambiente e de como esses autores, de forma ácida ou cômica, apontam os problemas e os

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dilemas dos moradores dessa região, destacando personagens que não encontram mesmo

espaço em obras de outros cronistas.

Para atingir esse recorte foi necessário um passeio por toda a obra de Léo Montenegro

e o resgate de textos considerados perdidos. De Lima Barreto, despontam crônicas das

coletâneas publicadas em 2004, pelas pesquisadoras Beatriz Resende e Rachel Valença, e em

2009, pela estudiosa Lilia Moritz Schwarcz. De João Antônio, obras publicadas com o autor

ainda em vida, notadamente nas décadas de 70 e 80, quando abertamente o autor se declara

admirador de Lima Barreto e opta por seguir seus passos literários.

Sempre que possível, em cada capítulo foram agrupados trechos de crônicas, reunidas

por temáticas e não em ordem cronológica. A escolha de trechos do maior número possível de

crônicas tem o claro propósito de oferecer ampla degustação contemporânea dos textos de

Léo Montenegro, contrariando alguns críticos do gênero crônica, como o estudioso inglês da

cultura brasileira John Gledson que, em análise detalhada da primeira crônica de Machado de

Assis da série “A semana”, defende o olhar minucioso sobre apenas uma crônica na íntegra,

abrindo mão de fragmentos de grande número de textos. Seguindo em parte essa orientação, a

presente tese, em determinados momentos, se debruça sobre conteúdo integral de uma ou

outra crônica exemplar, acrescentando não só o estilo e o conteúdo, mas também a relação do

texto com reportagem publicada na mesma página ou mesma editoria.

A pesquisa reúne quase uma centena de crônicas de Léo Montenegro, resgatadas e

disponibilizadas nos anexos desta tese, quase todas inseridas nas páginas dos jornais em que

foram primeiramente publicadas, servindo de material rico para futuras pesquisas que também

olhem para os textos jornalísticos e para os anúncios publicitários que circundaram tais

crônicas. Ante o recorte da tese, a pesquisa renunciou a esse tentador olhar. Traz ainda

depoimentos, concedidos especialmente para esta pesquisa, por jornalistas que conviveram

diretamente com o cronista Léo Montenegro no cotidiano da redação do jornal O DIA em

diferentes momentos de sua carreira e com o cronista João Antônio, na fase “carioca” de sua

carreira.

A tese resgata ainda a única coletânea de crônicas de Léo Montenegro, publicada em

1976. O livro esgotado traz 31 crônicas que já haviam sido publicadas em O DIA em anos

anteriores. Como a seleção foi feita pelo próprio autor, resgatá-las na íntegra pareceu

relevante para esta pesquisa, mesmo sendo que um ou outro texto não dialogue abertamente

com a tradição aqui investigada.

Diante dos argumentos expostos, o trabalho se divide em revisão da fortuna crítica do

cronismo sob a angulação da presente pesquisa, reunindo conceitos de crônica traçados por

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teóricos e cronistas e a influência dos meios de comunicação na produção dos textos. No

momento seguinte, o desafio passou a ser relacionar a produção dos autores aqui estudados à

formação de uma tradição que permite falar em cronismo de subúrbio, mostrando que

efêmeras crônicas podem trazer questionamentos profundos, contribuindo para formação de

ideias consolidadas no imaginário nacional, como as de Carnaval e Rio cidade-musa e, por

ponto de chegada, do subúrbio dessa metrópole e suas características e problemas. Em

seguida, a proposta foi se espraiar pelos textos em torno do subúrbio carioca consolidadas em

crônicas de Lima Barreto, João Antônio e Léo Montenegro.

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2 O CRONISTA LÉO MONTENEGRO E O JORNAL O DIA

Conforme relatado na dissertação de mestrado que antecedeu a presente pesquisa, Léo

Montenegro Maia de Castro foi o principal autor da coluna de crônicas chamada “Avesso da

Vida”, no matutino carioca O DIA (aqui grafado dessa forma por ser assim que o jornal se

autodenomina em suas páginas). Com publicação diária desde 1965, o cronista marcou seu

estilo retratando situações ambientadas no subúrbio do Rio. Muitas dessas situações eram

contatas a ele como verdadeiras por moradores do subúrbio. Outras eram inspiradas em

registros policiais. Ao cronista cabia resumi-las no restrito espaço que lhe estava reservado no

jornal. Para isso, imaginava diálogos e dava a seus textos tom coloquial e com profunda

marca de oralidade, na totalidade das vezes usando nomes insólitos no lugar dos relatados

pelos moradores do subúrbio ou escritos nos registros policiais. Assim escapava de

complicações com personagens reais ou com aqueles que, por ventura, se identificassem com

as histórias das crônicas e se sentissem invadidos em sua privacidade. Ora identificava

personagens pela representação do corpo (careca, gordo, magrinha e afins), dissolvendo

identidades, elementos característicos do estilo carnavalizado.

Ainda de acordo com a pesquisa originária, a primeira crônica de Léo foi publicada

numa edição que circulou no feriado de 1º de maio de 1965, um sábado. Neste período, os

jornais não circulavam em dias seguintes a feriados nem às segundas-feiras porque os

jornalistas folgavam nos feriados e domingos. Com isso, a estreia de Léo Montenegro no

“Avesso da Vida” circulou durante três dias, edições números 4.764, 4.765 e 4.766. Seus

últimos textos foram publicados no dia 13 de julho de 2003, na edição dominical seguinte ao

seu sepultamento, no Cemitério do Pechincha, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro.

Entre uma e outra edição, há 13.885 edições. Os publicados nos feriados e aos

domingos valiam por dois dias até a década de 1990, quando o jornal passou a circular

também nos dias seguintes a feriados e às segundas-feiras, dias em que, dependendo do

espaço, era publicada ou não uma crônica inédita de Léo. Ao todo foram aproximadamente 11

mil crônicas.

Jornalista profissional, Léo Montenegro morreu aos 65 anos de idade, em 5 de julho de

2003, deixando vasta obra, que até hoje não obteve reconhecimento fora do grupo de leitores

do jornal O DIA e, posteriormente, do extinto na forma impressa Jornal do Brasil (que

republicou alguns textos do cronista após a morte dele). Foram 38 anos de atividade

ininterrupta. Nas férias, antecipava o trabalho e deixava crônicas para serem editadas em sua

ausência.

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É nos arquivos do jornal O DIA, no bairro de Benfica, Zona Norte do Rio, que está

guardado todo o seu acervo – a maior parte em microfilme em cópias de difícil leitura. É no

mesmo matutino popular que se encontra a memória de sua trajetória como cronista, seja em

textos a seu respeito por ocasião do aniversário do jornal ou por ocasião da morte do autor,

seja nas entrevistas que concedeu ao próprio veículo.

Conforme apresentado no pioneiro trabalho sobre sua obra que deu origem a presente

pesquisa, foi durante uma dessas entrevistas ao jornal O DIA, publicada na edição de 14 de

janeiro de 2001, que Léo Montenegro contou que sua estreia na crônica ficcional aconteceu

por acaso. Atuava como repórter policial quando o secretário de redação do jornal em 1965,

Carlos Vinhais, o chamou para cobrir o espaço da coluna “Avesso da Vida”, cuja

característica era entreter o leitor com um bem humorado texto de ficção sobre a rotina

suburbana carioca.

Vinhais, segundo depoimento concedido em 26 de agosto de 2009 pelo jornalista

Lúcio Natalício (morto em 2013 após 39 anos de profissão, sendo 35 trabalhando como

repórter policial em O DIA), era um homem de voz firme que dava suas ordens aos berros

sem levantar de sua cadeira na chefia de reportagem do matutino carioca. “Todo mundo

contava que o Vinhais berrou para o Léo ir escrevendo o Avesso da Vida porque o cara que

escrevia não estava indo para a redação há alguns dias e não havia mais gaveta (sobras) da

coluna”, contou Natal (como era conhecido no mercado jornalístico), em 2009, na entrevista

ao presente pesquisador. “Léo escreveu quatro laudas (algo em torno de 120 linhas

datilografadas) e entregou. O Vinhais leu, foi cortando para caber no espaço e gostou. No dia

seguinte Léo continuou a escrever, e no outro também, até que o titular voltou, acho que

estava doente, e o Vinhais disse que ele ia retornar para reportagem e a coluna ia ficar com o

Léo”, completou Natal. Em entrevista a O DIA em 2001, Léo Montenegro revela como

encarou aquele momento:

O cara que escrevia a coluna fazia dramalhões que sempre terminavam em morte. Certo dia, ele não enviou a coluna e o Carlos Vinhais me escalou para fazer qualquer bobagem. E foi o que fiz. Algo engraçado e completamente diferente. O pior é que

gostaram, e a coluna passou a ser assinada por mim.3.

O “cara”, a que Léo Montenegro se refere, foi identificado por Nylson Guimarães

Peixoto, repórter e redator contemporâneo de Léo, pelo nome de Bouças, jornalista que não

foi lembrado por mais nenhum dos ouvidos na pesquisa. Bouças não teria enviado seu

3 Léo Montenegro em entrevista ao jornal O DIA publicada na edição de 14 de janeiro de 2001

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“Avesso da Vida” para “emendar” o feriado com folgas a que tinha direito. Cabe salientar o

caráter boêmio dessa fase do jornalismo, quando era comum, como frisa Nylson Guimarães

em seu depoimento à essa pesquisa, redatores tomarem uns “tragos” no meio do expediente

no botequim em frente à redação ou mesmo durante o trabalho na mesa de revisão de textos

(copy desk, no antigo jargão jornalístico).

Essa primeira crônica foi publicada em 2 de maio de 1965. Nela (ANEXO I), em três

parágrafos, Léo narra a prisão de um vigarista, viciado em jogo e caloteiro. O picareta é preso

ao tentar molestar uma moça que batera à sua porta para cobrar prestações atrasadas. Prisão

que não ocorre sem que antes o personagem central sofra uma surra de seus vizinhos. O

desfecho carnavaliza o machismo suburbano. Esse final antecipa o que viria a ser uma

característica marcante de suas crônicas. O estilo coloquial, jornalístico e econômico que se

repetirá nas aproximadamente 11 mil crônicas seguintes também já pode ser percebido.

Durante cinco anos, Léo Montenegro dividiu a função de repórter policial com a de

cronista. Em 1970, ele passou a acumular a crônica diária com a função de redator, como

recorda o professor universitário e ex-redator de O DIA José Argolo (1999), em texto sobre o

jornalista Ricardo Galeno, com quem trabalhou em O DIA entre 1983 e 1988.

Léo Montenegro, Loren Falcão Armindo, Moysés Meohas, Nylson Guimarães Peixoto, José Luíz Tavares, Arhur Oscar, Paulo Schnoll, Jorge Costa Nascimento (Ricardo Galeno) e - muito modestamente - o jornalista que assina o presente trabalho, compunham a “espinha dorsal” do copy, posteriormente reforçada por Cid de Albuquerque Kling (remanescente da equipe da Última Hora de Samuel Wainer) e Mário Ribeiro (ex-correspondente do Diário Carioca durante a Guerra de Libertação da Argélia). Esses profissionais de imprensa integravam a seleção responsável por um enorme quantitativo de notícias impregnadas de bom humor, mistério e aventuras. (ARGOLO, 2008, p. 1)

Léo Montenegro não perdia o humor nem mesmo quando atuava no copy desk do

jornal O DIA, com a árdua obrigação de rever os textos antes da publicação para observar a

sintaxe, a ortografia e mesmo melhorar o estilo. Em O DIA, a mesa dos copy, hoje mais

identificados como redatores, tinha o nome de “filtro”, termo usado para designar a função

deles: depuradores de impurezas dos textos, como um filtro de água. Nessa tarefa, Léo não

deixava de lado as referências críticas a termos e situações naturalizadas no subúrbio do Rio e

que marcariam suas crônicas no “Avesso da Vida”. É o que revelam seus contemporâneos no

matutino carioca, como o jornalista João Antônio Barros. Em depoimento concedido a esta

pesquisa em 2009, João Antônio recorda como Léo “melhorou muito” a cobertura que o

jornal estava fazendo das eleições municipais de 1992.

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Naquele ano, o então deputado estadual Manoel Rosa, o Neca (PDT) derrotou Miguel Abrão (PFL), candidato do clã do bicheiro Anísio Abraão David, patrono da escola de samba Beija-Flor, nas eleições para prefeitura de Nilópolis. Por si só isso já era notícia. Mas quando cheguei à redação e entreguei o texto, o Léo pediu os números dos candidatos e cravou no título “Deu zebra”!, um animal que não tem no jogo do bicho. Para justificar colocou no pé da matéria [reportagem] todos os números da eleição, com seus bichos correspondentes. O texto ficou bem leve e foi o maior comentário em todo o estado no dia seguinte.4

O texto carnavalizado, a partir da criatividade de Léo, merece ser reproduzido aqui

porque, de forma cômica e divertida, apontava a tentativa frustrada de infiltração de

contraventores do Jogo do Bicho nos cargos públicos do Rio de Janeiro nas eleições daquele

ano, como pode ser observado no trecho a seguir, da referida reportagem:

Para quem gosta de números, eis algumas curiosidades: Neca teve 43.264 votos, dezena que corresponde ao leão, Miguel Abraão ficou nos 14.409, numa infeliz coincidência, a dezena do burro. O mais irônico: a diferença foi de 1.855 votos, a dezena do gato, ou o pulo do gato, como queiram..5

O texto leve, mas carregado de informação, passou a ser a marca do redator e também

do cronista. Com a assinatura de Léo Montenegro, o “Avesso da Vida” foi ganhando neste

período outros temas não policiais, como fatos corriqueiros do dia a dia do subúrbio do Rio,

mantendo, porém, o estilo de ficção inspirada em fatos reais. Seu método de trabalho, recorda

o jornalista Lúcio Natalício, consistia em ler todo o noticiário e buscar nele inspiração para

uma crônica. Às vezes, vinha de casa já com um tema que alguém havia lhe contado ou

conversava com os repórteres e tirava do bate-papo uma história que ia escrever. “Certa vez

olhou da mesa dele para a minha e bolou uma crônica inspirado na minha cara. O personagem

foi batizado com nome inusitado, para ninguém me ‘sacanear’ (sic) na redação”, recorda

Lúcio Natalício, então morador do subúrbio do Rio, em depoimento concedido em 26 de

agosto de 2009 6.

As crônicas de Léo Montenegro só deixaram de ser publicadas no jornal O DIA por

ocasião da morte do cronista. A coluna “Avesso da Vida” sobreviveu até mesmo às reformas

gráficas e de conteúdo do jornal iniciadas no fim dos anos 1980 e consolidadas na década

seguinte. O objetivo dessas mudanças era qualificar o jornal para que pudesse disputar os

leitores da classe média do Rio de Janeiro com o jornal O Globo. Nesse novo cenário, a

coluna passou a dar destaque às ficções ligadas à rotina da cidade, tendo personagens

4Depoimento do jornalista João Antônio Barros ao autor desta pesquisa em 2009 5 Jornal O DIA, 11 de outubro de 1992, Caderno Grande Rio, página 6 6 Depoimento do jornalista Lúcio Natalício, conhecido como Natal, ao autor desta pesquisa em 2009

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alegóricos do subúrbio ocupando mais e mais espaço. Passaram a predominar nos textos as

situações pitorescas, engraçadas, vistas com olhar crítico, mas sempre carnavalizado,

mostrando um lado curioso do cotidiano suburbano de forma crítica.

Nessas crônicas há, ainda, outra característica dessa fase da obra de Léo Montenegro:

os personagens com nomes insólitos aparecem ora enganados por seus pares ora os

ludibriando seus pares, apesar do verniz de malandro comum aos dois lados. Em entrevista ao

jornal O DIA, publicada na edição de 14 de janeiro de 2001, o próprio Léo Montenegro

explica a escolha dos nomes dos personagens:

“Passei a usar nomes estapafúrdios em meus personagens quando alguns leitores chamados Paulo, José, Antônio, enfim, gente de nome comum, passaram a reclamar por acharem ter sido postos em situações vexatórias”, explicou Léo na entrevista de 14 de janeiro de 2001. A estratégia não se mostrou, porém, infalível. Ainda nos anos 70, um personagem batizado com o nome Trinitário iria causar o maior rebuliço: um homem também chamado Trinitário invadiu a Redação de O DIA e foi preciso muita

conversa para convencê-lo de que era uma coincidência.7

Nesta mesma entrevista, publicada em janeiro de 2001, o cronista lembrou de uma

outra situação inusitada vivida por ele na redação do jornal, relato que aponta para o

reconhecimento que tinha entre seus leitores. Na década de 70, contou ele, uma leitora que

escrevia cartas diárias para o jornalista de uma hora para outra parou de dar notícias de vida.

Até que um advogado procurou o cronista na redação do jornal para informá-lo que fora

incluído no testamento dessa senhora, que falecera exatamente no mesmo período em que

suas cartas pararam de chegar à caixa postal do jornalista.

A partir de 1993, Léo Montenegro passou a se dedicar exclusivamente às narrativas

ficcionais vividas por personagens identificáveis pelos leitores suburbanos do matutino. Estas

crônicas fariam do “Avesso da Vida” não mais uma seção do jornal carioca, mas um espaço

que não poderia mais ser desassociado do nome de seu autor. Ocupando coluna diária em

veículo de boa circulação nos bairros cariocas, foi natural que Léo conquistasse ainda mais

leitores fiéis.

Apesar de o foco desse estudo ser suas crônicas e ser pressuposto desta pesquisa que a

trajetória pessoal do autor é pouco relevante para crítica de sua obra, cabe sublinhar um relato

a respeito de Léo para destacar a proximidade do cronista com os temas retratados em seus

textos. Narrando um dos aspectos relevantes da vida de Léo e que o aproxima dos chamados

cronistas suburbanos pela intimidade que mantinha com os bastidores da região do Rio e do

7 Entrevista de Léo Montenegro publicada no jornal O DIA, edição de 14 de janeiro de 2001, página 12

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samba que se consolidou, sobretudo, nos bairros da Grande Madureira, o jornalista Cláudio

Vieira8 revela que um verso de Léo pode ser encontrado no samba de enredo do histórico e

vitorioso desfile da Escola de Samba Portela no Carnaval de 1970 (“Lendas e Mistérios da

Amazônia”).

VIEIRA (2009) conta neste depoimento que os três autores do samba (Sebastião

Vitorino Teixeira dos Santos, o Catoni, Waltenir e Dinckel Martins, o Jabolô, trio vencedor de

mais dois concursos de sambas-enredos na Portela - em 1967, com “Tal dia é o batizado”; e,

em 1977, com “Festa da Aclamação”), após colocarem a mão na sinopse do enredo, de autoria

de Clóvis Bornay e Arnaldo Pederneiras, fizeram alguns encontros na casa de Jabolô, que era

taxista, em Irajá. Ainda segundo Vieira, outros encontros ocorreram no bar Salada Tropical,

em frente à estação de Madureira, e outros no Aero Willys táxi com o qual Jabolô trabalhava

na praça. Catoni morava em Jacarepaguá, era quase vizinho de Léo Montenegro. O cronista

Cláudio Vieira, amigo dos autores do samba, testemunhou diversos encontros deles.

Num desses convescotes, regados a cerveja, é claro, o portelense Léo também teve a oportunidade de dar a sua contribuição. Conta que os autores estavam aflitos com um buraco que havia entre as primeira e segunda estrofes. O intervalo poderia gerar o atravessamento do samba. O jornalista, então, recorreu a um macete de redação, sugerindo que fizessem um encadeamento entre as duas partes, usando a expressão “E dizem mais...” O intervalo foi preenchido sem que a poesia da letra perdesse a fluência. Era o toque que faltava. 9

Registros como esse são pistas da atuação de Léo Montenegro no universo do

subúrbio do Rio como cronista e de sua intimidade com temas relevantes para a população

dessa parte da cidade, refletindo na diversidade de situações narradas em sua intensa

produção.

A trajetória de O DIA também é relevante para este estudo sobre as crônicas de Léo

Montenegro, afinal foi o jornal que primeiro e mais publicou seus textos. Trata-se de um

jornal recente, se comparado a seu concorrente contemporâneo, O Globo. Fundado em 5 de

junho de 1951 — 26 anos após o Globo —, O DIA foi idealizado por Antônio de Pádua

Chagas Freitas, que posteriormente seria nomeado pela Ditadura Militar governador biônico

do Estado da Guanabara (de 1971 a 1975) e do Rio de Janeiro (de 1979 a 1983). Chagas

Freitas fundou o jornal para servir, na década de 1950, de palanque no Rio para o então

governador de São Paulo Adhemar de Barros. Chagas Freitas era correligionário de Adhemar

8 Depoimento do jornalista Cláudio Vieira, em 2009, ao autor desta pesquisa 9 In http://sambaonline.blogspot.com/ acessado em 23 de julho de 2009

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e dirigente de seu partido político, o PSP, no Rio.

Para chegar ao eleitor cobiçado pelos dois políticos populistas, O DIA enveredou pelo

chamado jornalismo sensacionalista, marcado pela predominância do noticiário policial e

títulos maliciosos, como destaca SANDRONI (2001).

Com manchetes marcadas pelo impacto extraído do conteúdo dramático da notícia, ressaltando o sensacionalismo dos fatos, com tipos (letras gráficas) enormes, conhecidos com zincos, assim chamados porque recortados em zinco, como se fossem clichês, para compor os títulos que se destacavam na primeira página, anunciando escândalos, crimes e desastres. Mancheteiros especialistas em jornalismo popular, daqueles que muitas vezes inventavam o título e depois iam perguntar ao repórter o que acontecera, empenhavam-se na tarefa de atrair o leitor com o mínimo de palavras, na exploração do duplo sentido, do humor macabro, da metáfora brega ou até de ironia grosseira. (SANDRONI, 2001, p. 21)

Estreando nas bancas do Rio uma semana antes do jornal Última Hora (UH) – de

Samuel Wainer, correligionário de Getúlio Vargas, à época aliado ocasional de Adhemar – O

DIA já traria fotos e diagramação nos padrões copiados da imprensa norte-americana do pós-

Guerra. Viria com conteúdo diverso de UH – lançado para fazer frente ao oposicionista

Tribuna da Imprensa, que Carlos Lacerda levara às bancas em 1949.

UH, com mais páginas que a Tribuna da Imprensa, faria frente a Lacerda e a seus

ataques a Vargas. O DIA, com apenas oito páginas, atingiria público não alcançado por UH e

pela Tribuna, mas muito cobiçado por Adhemar e seu PSP no Rio. Léo Montenegro, como

dito acima, seria o repórter policial deste O DIA antes de assinar o “Avesso da Vida”.

De 1965 a 2003, ano de sua morte, Léo Montenegro acompanharia as transformações

editorais e gráficas do jornal mantendo o mesmo modelo de inspiração para suas crônicas —

baseado em fatos reais e histórias ouvidas ou vividas por ele — e estilo — textos breves,

recheados de crítica carnavalizada, tendo o subúrbio do Rio e seus habitantes como cenário e

personagens centrais.

Em 1967, Léo ainda repórter e cronista, passaria a ser chefiado por Tássilo Mitke, que

trabalhara com secretário de redação em O DIA de 1958 a 1961 e retornaria naquele ano para

ficar lá por mais exatos 20 anos. É relevante destacar esta longa convivência entre Léo e

Mitke, em função da ideia que o secretário de redação tinha de jornalismo popular e que nas

duas décadas seguintes impôs como orientação para sua equipe de repórteres, redatores,

colunistas, cronistas e editores. Segundo SANDRONI (2001, p. 37) jornal popular como O

DIA se propunha a ser “tem de trazer informações relevantes que garantam a fidelidade do

leitor. Tem que apresentar textos e títulos, principalmente manchetes, que extraíam da

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realidade aspectos incomuns com a finalidade de conquistar e comover”.

Nos dois períodos sob o comando de Mitke, o jornal destinou mais espaço para

notícias sobre sindicatos, funcionalismo público e futebol. Criou seções fixas com orientações

e respostas para queixas de inquilinos de imóveis residenciais e consumidores, espaços fixos

com informações sobre horóscopo, palavras cruzadas e registro de santos do dia e colunas

sobre rádio e televisão. E foi ele quem criou também o “Avesso da Vida”, cuja fórmula foi

inspirada no jornal irmão Última Hora, que de 1950 a 1961 publicou a coluna “A vida como

ela é”, de Nelson Rodrigues. Natural, portanto, que Mitke destinasse atenção especial à coluna

de crônicas do subúrbio carioca e determinasse que sua temática e estilo seguissem a

orientação editorial que ele dava para todo O DIA, para que o matutino se consolidasse e não

perdesse sua característica de jornal popular.

Analisando este período de O DIA, em particular, e do jornalismo dito policial, como

um todo, Serra (1986, p. 17 e 18) destaca que o jornal de então se presta como ampliação dos

“órgãos sensórios, perceptivos e experienciais do leitor, o qual, através dele, alcança uma

realidade afastada e por seus próprios meios individuais, inalcançável.” Para Serra, o jornal

apresentava fatos e situações de interesse do leitor que passariam despercebidos por ele. Neste

aspecto, a verossimilhança ou mesmo a inspiração em fatos ocorridos noticiados na imprensa

emprestam às crônicas do “Avesso da Vida” poder de elo entre o fato e o leitor, importância

que fideliza o público, como defendia Mitke. Aí estaria a explicação para que os textos de Léo

fossem tão críticos em relação ao subúrbio e ao mesmo tempo carnavalizados, de modo a

embutir a crítica em crônicas divertidas e de fácil leitura.

Cabe inferir que a consolidação do estilo de Léo no “Avesso da Vida” se deu no que

pode-se classificar, para efeitos teóricos, como primeira fase de sua obra, que vai de 1965 a

1987, quando Mitke deixa o jornal. A leitura de crônicas desse período colabora com essa

inferência. A título de exemplo cabe observar duas. Uma de 5 de junho de 1968, no

aniversário de 17 anos de O DIA e com Mitke de volta há pouco menos de um ano, com outra

de 5 de junho de 1986, no aniversário de 35 anos do jornal e um ano antes da despedida do

referido secretário de redação.

Em ambas, o texto econômico marcado pela oralidade da linguagem serve de

instrumento para descrever uma situação inusitada. São dois “causos” com a localização

definida pelo antetítulo dado à coluna nesta primeira fase: “Aconteceu no Rio/Avesso da

Vida”. Na primeira crônica, intitulada “Os dentes do defunto” (ANEXO II), um claro diálogo

com a obra de Nelson Rodrigues (que escrevera entre 1950 e 1961, no jornal Última Hora a

coluna “A vida como ela é”, cuja proposta de criar histórias a partir de fatos jornalísticos

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inspirou as crônicas do “Avesso da Vida” de O DIA). O personagem central da crônica de

1968, um bandido morto, é Boca de Ouro, em uma clara referência ao bicheiro consagrado na

peça de teatro homônima de Nelson Rodrigues, escrita nove anos antes.

Na histórica crônica de Léo (disponível em O DIA em microfilmagem com pequenos

trechos de difícil leitura), Boca de Ouro está sendo velado por 800 bandidos. O texto expõe a

violência presente na área suburbana. Dois desses comparsas do morto declaradamente

cobiçam furtar seus dentes de ouro, chamados uma vez no texto de “brodoegas”. O desfecho

carnavalizado consiste em uma inusitada “falta” de luz em pleno momento entediante do

velório (com a cachaça acabando e nenhum boteco aberto). Na escuridão furtam não só a

dentadura dourada do bandido (cujo tipo de crime não é identificado na crônica de Léo), mas

também carteiras, relógio, paletó e até um dos pés de um par de sapatos, não sem antes

alguém ter gritado no meio da confusão: “a cueca, não! A cueca, não!”

Cabe destacar, neste texto de 1968, a citação ao sambista Almirante (Henrique Foréis

Domingues - 1908-1980), então radialista de sucesso, primeiro biógrafo de Noel Rosa e

colunista do jornal A Notícia. Almirante convivia com os jornalistas de O DIA na década de

1960 e, como lembra Nylson Guimarães Peixoto, no depoimento para esta pesquisa, adorava

contar pelos cantos histórias de assombrações, algumas publicadas em sua coluna em “A

Notícia”, outro jornal de Adhemar de Barros no Rio e que funcionava no mesmo prédio de O

DIA, tendo sido fundado em 1950 pelo político paulista também em parceria com Chagas

Freitas.10

Na segunda crônica a ser analisada, 18 anos mais tarde, o texto ainda mais econômico

aparece mais amadurecido, sem perder as características centrais do seu precursor de 1968.

Nela (ANEXO III) um delegado é surpreendido num dia de pouco movimento na delegacia

por seu auxiliar que tenta alertá-lo para o que ia acontecer: três senhoras iam tirar mais de um

mil cruzados de seu chefe. Na hora do alerta, em se pensando tratar de bandidos, o delegado

puxa a arma. Quando sabe que são três senhoras, inicia um diálogo cujo desfecho é também

inusitado: as mulheres iam apresentar para o delegado um livro de ouro (aquele que arrecada

dinheiro mediante assinatura de comerciantes e autoridades em torno de uma igreja, escola ou

entidade afim) que financiaria uma festa no domingo seguinte na paróquia católica local. Vão

logo avisando: quem deu menos, deu um mil cruzados. O delegado assina e depois vai pedir

desculpas ao auxiliar, afirmando que a visita das senhoras foi “pior que oitocentas quadrilhas

juntas”, numa referência à criminalidade no subúrbio que já era bem maior que a de 1968.

10 In: http://www.alerj.rj.gov.br/memoria/historia/govgb/ cfreitas.html, acesso em 10 de janeiro de 2015.

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Nos dois textos, o relato de situações do contexto policial (nos casos analisados

bandidos e delegacia) que marcariam toda a primeira fase da obra de Léo. Em ambos, ainda, a

posição das crônicas no pé da página, a propósito, a mesma quarta página. Cabe ainda

sublinhar que, com o “Avesso da Vida”, vinham diagramadas logo acima as seções fixas

criadas por Mitke com horóscopo e palavras cruzadas e comentários sobre a programação da

TV. Na de 1968, o registro de santos do dia e, na de 1986, o Cantinho das Canções (seção

também idealizada por Mitke) que traria pagodes e sambinhas de compositores admirados

pelos moradores do subúrbio do Rio, tendo no elenco nomes consagrados por este público,

como Oswaldinho da Cuíca, e outros ainda pouco conhecidos fora de seus bairros.

Cabe ainda destacar que, em 1986, O DIA já havia mudado de mãos. Três anos antes,

o jornalista Ary Carvalho comprara o jornal de Chagas Freitas. No ano do negócio, assinado

em 14 de outubro e consolidado dois dias depois, Ary, que também era dono do jornal Última

Hora, afirmou que em um primeiro momento em nada mudaria na linha editorial de O DIA. O

empresário tornou pública sua posição assim que assumiu a presidência do matutino em

comunicado publicado na primeira página:

Ary Carvalho na presidência de O DIA: O jornalista Ary Carvalho assume, a partir de hoje, o controle acionário e a presidência de O DIA. O novo proprietário manterá a mesma linha editorial do jornal fundado há 32 anos pelo jornalista (sic) Chagas Freitas. (Primeira página de O DIA, “O jornal de maior circulação no país”, 16 de outubro de 1983).

Importante frisar que, fundado em 1951 por Samuel Wainer, vinte anos depois o jornal

Última Hora foi vendido por Wainer a um grupo que já havia arrendado o jornal Correio da

Manhã e era liderado por Maurício Nunes de Alencar. Dois anos depois, o jornal passou a ser

arrendado pelo jornalista Ary Carvalho (ex-repórter do próprio UH e então dono da empresa

de sociedade anônima Ary Carvalho Editora, ou simplesmente Arca Editora S.A.). Em 1987,

já à frente do jornal O DIA, Ary Carvalho vendeu o UH ao empresário José Nunes Filho, que

o comandaria até o ano de 1991, quando teve a falência decretada pela Justiça em função de

dívidas com fornecedores e ex-funcionários, conforme é relatado no Dicionário Histórico-

Biográfico Brasileiro da Fundação Getúlio Vargas.

Ao manter a linha editorial do jornal O DIA, a presença de Ary consequentemente em

nada alteraria, nesta fase do matutino carioca, o estilo das crônicas de Léo Montenegro, como

pode ser notado na crônica de 14 de maio de 1987, três anos e meio após Ary comprar O DIA

e no mesmo momento que o empresário se desligaria do jornal Última Hora para começar a

empreender mudanças no matutino popular que comprara de Chagas Freitas.

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Nesta crônica de 1987 (ANEXO IV), os elementos característicos da primeira fase da

obra de Léo Montenegro: o desfecho com personagens presos no “xadrez”, a referência a

bairros do subúrbio do Rio (Cordovil e Jacarepaguá) e a predominância de diálogos servem

para contar como terminaria em confusão a festa que o personagem de nome insólito,

Gersonildo, pretendia dar em família após ganhar no (jogo do) bicho e com o dinheiro

comprar um peru. No breve texto, referências ao preço “camarada” do prato, classificado pelo

cronista como acepipe, que o filho de cinco anos nunca havia comido e que os vizinhos e seus

agregados também iriam cobiçar. Com particular fluência, a crônica insinua diálogo de baixo

calão (“Então você pega esse seu peru e ...”) que resultaria na confusão entre Gersonildo e sua

mulher com os vizinhos e agregados, sendo que alguns terminariam não comendo o cobiçado

peru, mas sim a “canja miserável” de um hospital. No texto, a referência ao jogo proibido do

bicho, a um crime, chamado contravenção, e ao baixo poder aquisitivo dos moradores do

subúrbio, temas críticos devidamente carnavalizados pelo autor.

As mudanças que Ary Carvalho empreenderia em O DIA seriam graduais, de modo a

não perder leitores fiéis e a conquistar outros. Esse cuidado garantiria a Léo o espaço do

“Avesso da Vida” mesmo quando O DIA se transformava, ganhando novos cronistas e

colunistas. Uns de prestígio intelectual e político, como Arthur da Távola (começou a escrever

crônicas de terça-feira a domingo na edição de 16 de dezembro de 1987) e Millôr Fernandes

(escreveu entre 10 de setembro de 1995 e 3 de agosto de 2000) e outros de forte apelo

popular, como a crítica de programação televisiva e shows Maria Helena Dutra (sua seção

estreou em 18 de dezembro de 1987), como a personalidade do mundo do samba carioca Ruça

(sua coluna foi publicada pela primeira vez em 4 de julho de 1988, quando ela presidia a

Escola de Samba Vila Isabel) e como o ator e diretor de teatro e televisão Miguel Falabella

(suas crônicas sobre o Rio começam a ser publicadas em 26 de janeiro de 1991).

Ary também inauguraria seções novas no matutino, como o Caderno Grande Rio,

voltado para noticiário da Baixada Fluminense (foi às bancas pela primeira vez em 2 de

outubro de 1988), a edição dominical do Caderno D (suplemento de cultura que estreou aos

domingos em 20 de maio de 1990), o Caderno de Automóveis (publicado às quintas-feiras

desde 12 de setembro de 1990 e que ganhou o nome Automania em 27 de janeiro de 2000), o

Caderno Esportivo (com forte cobertura dos clubes cariocas de futebol, tendo sido lançado em

6 de julho de 1992 e mudado para o nome Ataque em 17 de agosto de 1997) e o Caderno de

Empregos (suplemento dominical com oferta de vagas que circula desde 17 de janeiro de

1993).

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Ary também modernizaria a produção do jornal, inaugurando novo parque gráfico (em

3 de julho de 1992), o que permitiu a publicação de fotos coloridas (estreia em 5 de julho do

mesmo ano) e de cadernos regionais com circulação restrita em algumas regiões do estado do

Rio, como Serrana (estreia em 17 de agosto de 1993), Norte e Noroeste (em 31 de agosto de

1993), Grande Niterói (a partir de 27 de agosto 1995) e Baixada Fluminense (em substituição

ao Caderno Grande Rio, a partir de 1º de outubro de 1995).

Com essas modificações o jornal O DIA passou a atingir públicos distintos e a liderar

as vendas de exemplares em banca em todo o estado (em 1998 bateu a marca de 1 milhão de

exemplares vendidos em banca aos domingos)11. Não perdeu, porém, seu foco em grupos de

leitores específicos, notadamente aposentados do INSS, servidores públicos da área meio

(atendentes de repartições, agentes administrativos e secretárias) e moradores do subúrbio do

Rio e da Baixada Fluminense.

Léo Montenegro acompanhou essas mudanças em suas crônicas, tornando mais gerais

as referências aos subúrbios da cidade do Rio e aumentando as citações indiretas sobre o que

o público via na televisão e acompanhava no noticiário político e cotidiano não-policial.

Mostrou uma versatilidade que já exercitara antes mesmo de Ary assumir o jornal O DIA,

quando sua coluna começou a circular no suplemento dominical Jornal da Televisão e de

Mulheres, que passou a ser publicado em 9 de setembro de 1979 e ainda estava na bancas

quando da morte de Léo.

Em uma de suas crônicas no Jornal da Televisão e de Mulheres, a de 14 de outubro de

1984, uma demonstração do que seria o estilo de Léo nessa segunda fase de sua obra (que

começa em 1987, quando Mitke deixa o jornal, passa pelas transformações empreendidas por

Ary e termina com a morte do autor em 2003). Nessa crônica (ANEXO V), inserida em um

suplemento voltado para o público feminino e publicada no alto de página e não no rodapé, a

protagonista com seu nome insólito seria uma mulher, sua temática, a busca por um marido, e

a referência a assuntos econômicos, tão comuns ao longo dos anos 1980 e a seus sucessivos

programas de controle da inflação. Ironicamente, o cronista vai falar da poupança, forma

popular de juntar economias, comum ao subúrbio, carnavalizando até este aspecto da vida

suburbana ao mostrar que o dinheiro guardado rendera mais, servindo de “dote” para a

protagonista. Tais aspectos, impensáveis nos primórdios do “Avesso da Vida”, marcariam a

segunda fase da coluna, quando as crônicas passaram a dedicar especial atenção ao Carnaval

11 Informações de relatórios internos do jornal O DIA

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de rua do subúrbio, então mergulhado no ostracismo diante da ampla cobertura televisiva que

ganharia o Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial na Avenida Marques de Sapucaí.

É isso que pode ser percebido na crônica “Programa de Carnaval” (ANEXO VI), de 1º

de março de 2003. Nela, o personagem Escanildo é o esperto carioca que tenta driblar toda a

família para brincar os dias de folia sozinho no coreto do bairro, onde a Prefeitura do Rio

promoveria um baile popular. Desde os anos 90 a Riotur promove bailes ao ar livre, de sábado

à terça-feira de Carnaval, em pontos espalhados pela cidade. Na Zona Norte, muitos desses

bailes têm as bandas instaladas em coretos. Escanildo diz querer levar toda a família ao

coreto, disfarçando não saber que o filho desejava ver pela TV o desfile das escolas de samba

do Grupo Especial do Carnaval do Rio, que a sogra sonhava aproveitar a folia e o sol para se

banhar no Piscinão de Ramos e que a mulher pensava em passar a festa de Momo em um

retiro espiritual sem coloração religiosa evidente. Por fim, ele é desmascarado pela esposa,

que dá uma surra no personagem. Escanildo passa o Carnaval sambando deitado na maca no

“Hospital Souza Aguiar, que fica bem pertinho do Sambódromo”.

Interessante observar como Léo Montenegro ambienta suas crônicas, com ganchos na

contemporaneidade, desenhando a geografia e carnavalizando as poucas opções de lazer. O

Piscinão de Ramos foi idealizado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, em parceria com

a Petrobras, como Projeto de Requalificação Urbana da Praia de Ramos. Foi inaugurado em

dezembro de 2001 e, em abril de 2002, sua denominação foi alterada para Parque Ambiental

da Praia de Ramos. A sua criação teve como objetivo principal recuperar o espaço urbano

local (através de infraestrutura de lazer, esporte e cultura) e devolver a Praia de Ramos à

população, melhorando a qualidade de vida da mesma. O lago (piscinão) é abastecido com

água da Baía de Guanabara, tratada por uma estação de tratamento de água — ETA

implantada no parque.12

Cabe nessa reapresentação do cronista Léo Montenegro um olhar sobre o

entendimento dele a respeito de seus textos. Léo Montenegro não chamava seu espaço

literário no matutino O DIA de crônica. Chamava-o de coluna, como pode se comprovado na

entrevista concedida por ele em 2001 ao jornal e já mencionada nesta pesquisa. Coluna é uma

referência mais jornalística que crônica e diz respeito à divisão dos jornais, em colunagens

separadas por pequenos espaços. O titular da coluna é o colunista, indivíduo inserido na

redação, que redige seus textos dentro dela em meio aos repórteres, redatores, fotojornalistas e

editores. Para Léo e seus contemporâneos, como Nylson Guimarães Peixoto, cronista é

12 In www.terranova.org.br/proj_piscinao2.htm, consultado em 11 de outubro de 2014

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alguém que redige seus textos fora da redação e os encaminha para redatores e editores os

colocarem nas páginas do jornal. Sendo assim, “Avesso da Vida”, para eles, era uma coluna;

já os textos de Arthur da Távola eram chamados de crônicas.

Na classificação de Léo e seus contemporâneos, pesava mais o fato de, em seus 38

anos de “Avesso da Vida”, Léo ter redigido suas crônicas dentro da redação durante 27 anos e

as ter escrito de casa apenas nos últimos 11 anos, exatamente quando se aposentou do

“jornalismo”. Já em seus últimos anos de vida, com a redação de O DIA renovada e Léo em

casa, “Avesso da Vida” passou a ser tratado internamente pela nova geração de jornalistas

como crônica, afinal o texto vinha de fora para ser editado na redação.

Com a permissão que o distanciamento temporal permite, cabe afirmar que as colunas

de Léo são crônicas e que o conjunto de textos do “Avesso da Vida” é uma obra completa em

forma de cronismo diário que segue uma tradição ao ser ambientada no subúrbio, exatamente

como já haviam feito Lima Barreto e João Antônio. Seu direcionamento a uma classe que tem

preferência pelo popular O DIA, um público-alvo bem definido pelos interesses conjunturais

dos dois proprietários que comandaram a empresa nos 38 anos do cronismo diário de Léo

Montenegro, é uma explicação possível para a escolha dos personagens do “Avesso da Vida”.

São moradores suburbanos com nomes insólitos, como já dito aqui, sendo eles e seus pares

tipos humanos identificados nas crônicas por características físicas de forma politicamente

incorreta (careca, gordão, baixinho, caolho etc), por sua ocupação ou fonte de renda

(aposentado, bicheiro, dona de casa, delegado etc) ou por seu grau de parentesco (sogra, filho,

mulher etc).

Outro aspecto comum às crônicas é que seus personagens são integrantes de blocos

carnavalescos, nunca das festejadas e pomposas escolas de samba cariocas do Grupo Especial

do Carnaval do Rio. Seus blocos não são os grandes e bem organizados, que promovem

ensaios regulares e desfilam nos dias de Carnaval no Centro do Rio de Janeiro. São blocos de

subúrbio ou “da comunidade”, como gostava de caracterizar o autor, que ensaiam em ruas

esburacadas e mal cuidadas.

Tendo em vista o que já se falou da obra de Léo até aqui, cabe reforçar a adequação de

seus textos à classificação proposta pelo professor Jorge de Sá (2005), segundo a qual a

crônica é a soma de jornalismo e literatura, destina-se a uma classe a quem o veículo é

direcionado (o público-alvo), e tem como uma de suas marcas um texto econômico, em

função da produção industrial. Todas essas características poderiam apontar para um texto

com pouco apelo literário, mas Sá argumenta que é dessa economia que nasce sua riqueza

estrutural (SÁ, 2005, p. 8).

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Por ter essas características de forma, as crônicas do “Avesso da Vida” podem até ser

consideradas distantes do cânone literário. Mas este aspecto, visto na contemporaneidade e

em outro momento histórico, acaba por valorizar a obra de Léo. Valoriza porque mostra que a

obra hoje encerrada pela morte do cronista tem estilo com marcas autorais e características

que a inserem na tradição cronista e literária nacional apesar de seus limites espaciais (o

“Avesso da Vida” tem no máximo uma lauda, o que equivale a 30 linhas em folha de papel

A4, com espaço 1,5), da necessária adequação vocabular e temática voltada para o público-

alvo do jornal popular e dos direcionamentos editoriais do veículo.

Últimos editores de Léo Montenegro, os jornalistas Fernanda Portugal e Humberto

Tziolas relatam em entrevista para esta pesquisa suas experiências com tais crônicas.

Fernanda editou os textos de Léo de julho de 2002 a abril de 2007. Segundo ela, as crônicas

entravam sempre em alguma página do noticiário da editoria de Polícia. O formato mais

comum para o “Avesso da Vida” era em uma coluna de jornal, do alto da página até quase o

final (geralmente ainda entrava uma notinha noticiando um fato jornalístico embaixo). Mas

era variável: moldava-se ao noticiário e à publicidade. Às vezes era publicado em duas

colunas, com menos de meia página de altura. Fernanda conta que a crônica de Léo também

já chegou a ocupar o alto da página, em seis colunas, mas com pouca altura, adequando-se aos

anúncios de página central. “Quando a publicidade era muita (que bom!) e a violência

também (que pena...), o Léo encolhia bastante. As histórias eram deliciosas e, às vezes, nós da

edição tínhamos pena de sacrificá-las”, disse Fernanda, revelando a rotina jornalística a qual

se submetia o autor13.

Já Humberto Tziolas, então editor assistente de Fernanda, no jornal O DIA, classificou

Léo Montenegro como brilhante. O depoimento dele reforça a importância das crônicas nas

páginas jornalísticas.

Fechar a coluna do brilhante Léo Montenegro sempre foi um prazer. Era como um "oásis" em meio ao tumultuadíssimo fechamento da editoria de Polícia do jornal O Dia, onde o texto era publicado. Como Léo dominava o português, o trabalho era bem simplificado. Tínhamos apenas que deixar a história no tamanho destinado à coluna. A preocupação era, nessa operação, sempre respeitar o estilo dele. Uma vez, cortamos demais, e ele reclamou. Com toda razão. Além de escrever bem, Léo era organizado. Mandava vários textos com antecedência. Quando chegou a notícia de sua morte, eu já tinha toda a semana seguinte em meu e-mail. No domingo, fizemos uma página especial, com as últimas colunas do "mestre".14

13 Depoimento da jornalista Fernanda Portugal para esta pesquisa, em janeiro de 2015 14 Depoimento do jornalista Humberto Tziolas para esta pesquisa, em janeiro de 2015

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Tziolas, no mesmo depoimento para esta pesquisa, recorda o impacto da morte do

cronista entre os leitores do matutino.

Sua morte deixou os leitores "órfãos". Lembro que muitos escreveram para o jornal lamentando. Afinal, estavam acostumados a "refrescar" o violento e triste noticiário daquelas páginas com as aventuras do Osbrevanildo, do Velocuprédio, da Sinvalina, da gordinha, da magrinha, do baixinho etc, etc. As histórias sempre acabavam do mesmo jeito: em porrada. Mas ainda assim era impossível não ler até o fim. Como seria bom ter um Léo Montenegro hoje, nos jornais ou até mesmo na internet. Suas histórias, que retratam o cotidiano do Rio, continuam atualíssimas.

Os dois jornalistas destacaram a simplicidade dos textos e a falta de perenidade das

crônicas publicadas em jornal diário. É preciso frisar, mais uma vez, que tais características

não fazem da obra de Léo Montenegro algo menor, ainda mais quando se leva em

consideração que autores consagrados da tradição literária nacional, como Lima Barreto,

experimentaram em crônicas de jornais personagens e temas que posteriormente iriam

reaparecer em seus romances. São eles que consolidam o gênero crônica exatamente nos

primórdios do jornalismo industrial diário no Brasil.

Mesmo com tão pouca pretensão, Léo ainda viu seus textos efêmeros serem

eternizados em livro no ano de 1976, conforme já mencionado na introdução deste trabalho. O

livro reuniu, como dizia a amigos, suas melhores histórias. Teria vendido mais de 100 mil

exemplares em poucos dias. Brochura para ser comercializada em banca, o livro em questão

encontra-se esgotado, mas está inteiramente resgatado nesta pesquisa (ANEXO VII). A

coletânea tem 31 crônicas que já haviam sido publicadas em O DIA em anos anteriores. Sua

edição serviu para antecipar ao cronista que sua obra teria durabilidade maior que as edições

diárias do matutino carioca. O livro inteiro pode ser conferido nos anexos da presente

pesquisa, resgate que só foi possível após contribuição generosa da viúva do autor, dona Lídia

Montenegro.

A brochura esgotada agora pode ser revista, servindo também de rico material para a

análise da representação de subúrbio carioca presente na obra de Léo Montenegro e de como

ela dialoga com a tradição dos cronistas Lima Barreto e João Antônio. Mas cabe uma reflexão

sobre o que se entende como crônica nesta pesquisa e como o gênero circula livremente entre

o jornalismo e a literatura, com certa despretensão artística e tendo a cidade do Rio de Janeiro

como ambiente preferido.

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3 CRÔNICA E OS TEÓRICOS

Não é de hoje que a crônica é uma questão sobre a qual têm se debruçado críticos

literários e teóricos do Jornalismo. Autores consagrados como Eduardo Portella, Antonio

Candido e Afrânio Coutinho dedicaram estudos ao gênero durante sua consolidação na

imprensa brasileira e, posteriormente, ante as coletâneas publicadas em livros reunindo textos

veiculados em jornais ou vocalizados no rádio. Em análise publicada primeiramente em 1958,

Portella sublinha de forma pioneira a cidade como elemento comum às crônicas brasileiras

que, segundo ele, privilegiam a temática urbana, o “registro dos acontecimentos da cidade, a

história da vida da cidade, a cidade feita letra” (PORTELLA, 1958, p. 86). Foi essa reflexão

que inspirou o título da presente tese.

Compartilhando do pensamento de Portella, a professora Beatriz Resende, na

introdução que escreveu para o livro de artigos “Cronistas do Rio” (RESENDE, 1995),

acrescenta que é o sentido provisório da crônica que vai lhe dar uma leveza e um “aparente

descompromisso” que lhe garantem autenticidade e muitas vezes uma “coragem” que a escrita

mais lenta não liberaria. Tal fato, diz, liga a crônica à cidade que a inspirou: “nela a cidade se

escreve” (RESENDE, 1995, p. 9).

Com essa síntese, Beatriz Resende remete ao texto do professor Portella, que define

crônica como um registro do cotidiano da cidade, de suas expressões, suas falas, algo que faz

dos despretensiosos textos, obras ricas de um significado linguístico. Portella sintetizará esse

pensamento explicando que a “língua da crônica é a língua da cidade”. O teórico vai além ao

destacar que essa chamada língua da cidade é a que mais se aproxima do que entende como

“língua brasileira”. (PORTELLA, 1958, p. 86)

Tais características, reflete o teórico, fazem do gênero um dos mais cosmopolitas que,

nem por isso, perde suas características nacionais. Portella vai analisar que nos cronistas, a

maioria escrevendo a partir e sobre o Rio, há um “apego provinciano pela sua metrópole”.

Com esse arroubo é que o cronista vai protestar diante das deformações do progresso e

aplaudir o que a cidade tem de autêntico. (PORTELLA, 1958, p. 85)

Pioneiramente, Portella vai reconhecer a crônica como o que chamou de “gênero

literário específico, autônomo”. Faz essa consideração ao constatar, já no fim da década de

50, a frequência com que vinham sendo publicadas naqueles anos coletâneas de crônicas.

Esses volumes, constata, fazem os textos publicados em jornal transcenderem a “condição

puramente jornalística para se constituir em obra de arte literária”. (PORTELLA, 1958, p.

111)

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Em texto primeiramente publicado em 1980, como prefácio do livro “Crônicas”,

volume 5 da série “Para Gostar de Ler”, da Editora Ática, Antonio Candido dialoga com

Portella e vê nas ruas da cidade o habitat do cronista. Fala da crônica como registro de “coisas

miúdas”, rotineiras, captadas por quem anda pelas ruas, que “pega o miúdo e mostra nele sua

grandeza em forma de crônica” e, assim, transcende a perenidade dos jornais, conquistando

espaço no que classifica como sistema literário nacional.

Ela (a crônica) não foi feita originariamente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em ‘ficar’ [...]. Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. (CANDIDO, 1992, p. 14-15)

Esse texto referencial de Candido, muitas vezes citado em trabalhos acadêmicos e

reeditado em coletânea de teóricos em torno da crônica, não tem a intenção aparente de

mostrar crônica como gênero menor, como insinuaria o título, “A Vida ao Rés-do-Chão”.

Bem ao contrário disso. O raciocínio é complexo. Fala da despreocupação do cronista de

produzir um texto de valor literário reconhecido.

Candido destaca a liberdade que o cronista tem para “conversar com seu leitor, de

forma coloquial, sobre fatos ocorridos ou sobre algo que pensou ou sentiu”. O cronista sai da

perspectiva, analisa o teórico, de quem está no “alto da montanha”, e assume o olhar de quem

está no “simples rés-do-chão”. Ao fazer desse ofício algo tão novo no meio literário nacional,

ganha peso no sistema literário. O teórico vai sublinhar que em meio a essa despretensão, o

cronista humaniza; o que lhe permite, como certa compensação, recuperar com a outra mão

profundidade de significado e acabamento de forma que podem fazer da crônica “uma

inesperada, embora discreta, candidata à perfeição.” (CANDIDO, 1992, p. 13-14)

O ensaísta Davi Arrigucci Jr segue o mesmo raciocínio ao falar do potencial literário

de algumas das aparentemente despretensiosas crônicas publicadas na imprensa.

À primeira vista, como parte de um veículo como o jornal, ela (a crônica) parece destinada à pura contingência, mas acaba travando com esta um arriscado duelo, de que, às vezes, por mérito literário intrínseco, sai vitoriosa. (ARRIGUCCI, 1987, p. 53).

Também nesse mesmo sentido, o teórico Afrânio Coutinho, em clássico ensaio, afirma

que a crônica se insere na história da literatura nacional por ter atingido desenvolvimento,

categoria e popularidade que fazem dela “uma forma literária de requintado valor estético”.

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Coutinho defenderá que a crônica é um gênero específico e autônomo, “a ponto de ter

induzido Tristão de Athayde a criar o termo ‘cronismo’ para a sua designação geral”

(COUTINHO, 1999, v. 6, p. 135).

Em estudo detalhado, Coutinho vai sublinhar que crônica é um gênero literário de

prosa, em que o que mais importa são as “qualidades de estilo, a variedade, a finura e argúcia

na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância” e não no assunto, em

geral, efêmero (COUTINHO, 1999, v. 6, p. 121). É de Coutinho, também, um outro ensaio

sobre as especificidades do gênero, ora baseado no noticiário, ora de forte tom poético, ora

divertido texto imaginativo. Tal ensaio será retomado mais à frente.

3.1 Crônica desde a origem

Hoje, após tantos estudos, já é possível traçar uma trajetória do gênero crônica, o que,

nesta tese, servirá para embasar a defesa do pensamento segundo o qual esses aparentemente

despretensiosos textos, sobretudo os de Lima Barreto, João Antônio e Léo Montenegro, na

sua produção publicada em jornais, têm relevante papel na formação de uma tradição que se

tem quando as crônicas tratam do subúrbio do Rio de Janeiro, olhando a região sempre de

forma crítica, em textos ácidos ou mesmo carnavalizados. Papel semelhante ao que os três e

outros ilustres cronistas desempenharam na formação das ideias que se têm no país, por

exemplo, em torno do Carnaval, do malandro carioca, do chamado jeitinho brasileiro e do

próprio Brasil.

Antes de mais nada, é fundamental destacar que se atribui aos autores a contribuição

para formação de representações porque as crônicas são textos assinados. Esse fato

singulariza o trabalho deles no contexto das páginas diárias dos periódicos. As observações,

os comentários, as críticas dos autores são de sua total responsabilidade, como é explicitado

nos jornais. Isso permite atribuir aos cronistas papel preponderante na formação das ideias

citadas acima.

O teórico Massaud Moisés aponta a origem do termo crônica no grego chronikós,

relativo a tempo (chrónos), no latim chronica. Nesse primórdio, que coincide com a origem

da era Cristã, o vocábulo, defende o professor, era usado para designar “lista ou relação de

acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em sequência cronológica”

(MOISÉS, 2003, p. 101). Nessa concepção, a crônica se limitava a relacionar os fatos, sem

interpretá-los. Tal acepção estendeu-se no tempo até a Renascença (entre fins do século XIV e

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meados do século XVI), quando a crônica, como se entendia até então, deu lugar ao termo

história.

A poetisa e professora Ilka Laurito publicou, com a também professora Flora Bender

(BENDER e LAURITO, 1993, p. 10-12), estudo que define o ano de 1434 como uma

referência relevante para o gênero crônica em nossa língua. Foi nesta data que o rei de

Portugal, D. Duarte I (1391-1438), conhecido por sua dedicação à cultura, nomeou Fernão

Lopes como “cronista-mor”, encarregado de narrar de forma cronológica os feitos dos

antecessores e do imperador que o contratara. Tal função se tornaria fixa no Império Colonial

Português durante todo o processo de expansão marítima, iniciado em 1415 e encerrado em

1534. Estava naturalizada, portanto, a exigência de um “cronista do rei” entre os tripulantes da

expedição que chegaria ao Brasil em abril de 1500.

Com base nessa teoria, o também professor Jorge de Sá defende como sendo Pero Vaz

de Caminha o primeiro cronista a atuar em solo brasileiro. Diz isso referindo-se à carta que o

“cronista” da armada de Pedro Álvares Cabral escreveu para o rei D. Manuel (1469-1521),

relatando de forma cronológica e descritiva a paisagem brasileira, notadamente os índios que

aqui viviam. Com a chamada Carta de Caminha, diz Sá, é possível afirmar que “oficialmente,

a Literatura Brasileira nasceu da crônica” (SÁ, 2005, p. 5-7). Como marco, a carta revela o

terreno fértil que encontraria o gênero, na acepção que o termo iria assumir posteriormente,

tratando de assuntos cotidianos. Afinal, em meio à narrativa cronológica sobre o encontro

com os nativos, Caminha chega a pedir um “emprego” para um parente.

A carta do descobrimento é, sem dúvida, uma referência para o gênero, mas ainda não

se trata de uma produção de crônica como concebida hoje, ligada à grande imprensa, com

ritmo de produção e publicação periódica. Tal acepção, ensina o professor Massaud MOISÉS

(2003), se consolidaria apenas no século XIX, trezentos anos após o Renascimento e no auge

da chamada Revolução Industrial, no contexto de inovações tecnológicas que alteraram o

processo produtivo mundial, tanto economica quanto socialmente, e mudaram profundamente

o modo como as populações se informam e, assim, formam suas opiniões. Massaud Moisés

verá, portanto, terreno fértil para o termo crônica consolidar-se como narrativa histórica nos

jornais brasileiros editados ao longo do século XIX. Como se sabe, os primeiros datam de

1808: o Correio Braziliense, editado em Londres em 1º de junho, e a Gazeta do Rio de

Janeiro, em 10 de setembro do mesmo ano.

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3.2 A relação com os meios de comunicação

A consolidação do gênero em território nacional terminaria por afastar a concepção

brasileira de crônica da adotada em outras partes do mundo. Quem aponta essa distinção é o

jornalista e pesquisador José Marques de Melo (MELO, 1985, p. 111). Primeiro doutor em

Jornalismo titulado por universidade brasileira (1973), Melo defende que só no Brasil a

crônica ganhou as feições de texto breve, opinativo, passeando entre a narrativa literária e o

factual publicado nos jornais. Nos demais países, prevaleceu, diz o autor, a crônica como

relato cronológico.

O texto inaugural com essa característica bem brasileira é, segundo Afrânio Coutinho,

a crônica que foi publicada por Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889) no Jornal

do Commércio do Rio de Janeiro, na edição de 2 dezembro 1852. “É o advento dos

românticos”, diz o autor (COUTINHO, 1971, p. 112). O texto de Almeida Rosa é

frequentemente apresentado como folhetim, muito embora trata-se de crônica e não de um

relato ficcional seriado. A confusão se deve ao fato de as crônicas, assim como os folhetins,

serem publicados, nos primeiros anos da imprensa nacional, no rodapé dos periódicos

(PEREIRA, 2004, p.33), a maioria sendo assinada por literatos do peso de José de Alencar,

ele mesmo folhetinista e cronista.

Tal rodapé reunia informações sobre os fatos do dia ou breves artigos com assuntos

variados e até mesmo textos ficcionais. Neste espaço, Almeida Rosa assinaria o ‘folhetim

semanal’, sendo sucedido pelo próprio José de Alencar, e posteriormente por Manuel Antônio

de Almeida (este só folhetinista), e também por Machado de Assis, Raul Pompéia e Coelho

Neto. (MELO, 1985, p.113-114)

Ao descrever em uma de suas crônicas o folhetim como uma “frutinha de nosso

tempo”, Machado de Assis evidencia a confusão que os próprios autores faziam entre

folhetim e o que se consolidaria como crônica no Brasil, como mostra a pesquisadora Marlyse

Meyer (2005).

O folhetinista é originário da França [...] De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal. ‘E Machado tenta “definir a nova entidade literária’, procura esmiuçar ‘a organização do novo animal’. Mas dessa nova entidade só vai circunscrever a variedade que se aproxima do que hoje chamaríamos de crônica. (MEYER, 2005, p.57).

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Em biografia do escritor José de Alencar, o jornalista Lira Neto elucida essa confusão

e esclarece como se deu o parentesco da crônica brasileira com o folhetim. Diz ele que os

jornais da época seguiam todos a mesma fórmula. Nos dias úteis, saíam os folhetins literários,

os romances escritos em capítulos, em sua grande maioria traduções de obras de autores

franceses. Nos fins de semana, notadamente aos domingos, eram publicados nos mesmos

espaços dos folhetins textos em forma de crônica, como aqueles que José de Alencar havia

sido contratado para escrever pelo Diário do Rio de Janeiro. (LIRA, 2006, p. 90).

Tal parentesco dá pistas para elucidar o fato de o cronismo brasileiro voltar seu olhar

para o cotidiano simples e frugal. E muitas vezes levar para as páginas dos jornais e ondas do

rádio histórias de gente simples, do povo, que historicamente ganham pouco espaço no

noticiário que circunda a crônica nas páginas dos jornais. Quem contribui para entendimento

neste sentido é a professora Marlyse Meyer (2005, p. 351), em sua extensa pesquisa acerca

dos folhetins. A contribuição vem com resgate que a professora faz de um texto referencial

sobre romance-folhetim francês do início do Século XX, traçando um paralelo com os

folhetins consumidos por leitores operários (especialmente de origem italiana) do Brasil do

mesmo período.

A pesquisadora vai apontar, citando a escola crítica literária francesa, dois aspectos

nos chamados romances-folhetim sobre a vida do povo. O primeiro, diz, “distraem,

interessam, fazem passar o tempo”. O segundo, pontua ela, discutem as “dificuldades da vida,

suas armadilhas, suas desgraças, seus riscos, o infortúnio e a miséria dos coitados”.

(MARLYSE, 2005, p. 351)

Natural, portanto, que o leitor acostumado com romances-folhetins franceses

traduzidos e publicados em capítulos ao longo da semana, trazendo relatos sobre dificuldades

de operários e a vida de gente simples e humilde, forçassem que as crônicas, aos poucos,

voltassem seus olhares também para essa temática. E que folhetinistas brasileiros seguissem o

mesmo receituário. Nesse rol está Manuel Antônio de Almeida e seu “Memórias de um

Sargento de Milícias”.

Jovem estudante de Medicina que fazia traduções de folhetins para serem publicadas

em jornal para sustentar irmãos menores, Manuel Antônio de Almeida escreveu “Memórias”

aos 21 anos de idade para o Correio Mercantil do Rio de Janeiro (SODRÉ, 1977, p. 218).

Obra divertida publicada em capítulos, no formato de folhetim entre 1852 e 1853,

“Memórias” é um texto que traz para as páginas de jornais, de forma pioneira, a figura do

malandro nacional, personagem que, semelhante às temáticas sociais, também passaria a ser

habitualmente encontrado no cronismo nacional.

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Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis, que fazem (em Memórias) do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas. (CANDIDO, 1970, p. 76).

Esse apoderamento de temas e personagens dos folhetins se deu, sobretudo, porque os

primeiros cronistas eram também folhetinistas. O pesquisador José Marques de Melo cita

historiadores literários para explicar que os escritores dos primórdios do jornalismo industrial

brasileiro, consolidados ao longo dos séculos XIX e XX, não tendo condições de viver

exclusivamente de literatura, recorriam à imprensa para obter sustento. “A imprensa pagava

mal, mas pagava em dia. E era também uma oportunidade para que os homens de letras

conquistassem um público permanente.” (MELO, 1985, p.114).

Como salienta o crítico inglês e professor aposentado de estudos brasileiros da

Universidade de Liverpool, John Gledson (GLEDSON, 2013), o próprio mestre Machado de

Assis escreveu crônicas para diferentes jornais do Rio de Janeiro entre 1859 e 1900 para se

manter. Da atividade obtinha renda, mesmo após se tornar um escritor consagrado, uma vez

que se o autor só se dedicasse à literatura, o dinheiro obtido não lhe garantiria o padrão de

vida que ostentava.

Exemplo clássico de como a literatura rendendo pouco forçava os escritores a buscar

remuneração nas redações dos jornais é dado pelo professor Nelson Werneck Sodré (SODRÉ,

1977, p. 347), quando fala da dificuldade encontrada por Lima Barreto para publicar seu

romance de estreia, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, livro lançado no fim do ano

de 1909 e que tão bem retrata as redações dos jornais do início do período industrial da

imprensa brasileira.

Segundo Werneck Sodré, os originais do romance “Isaías Caminha” foram entregues,

em Lisboa, ao editor A. M. Teixeira, da Livraria Clássica, que iria se revelar apreciador do

“livro de intriga jornalística fluminense” e se mostrar esperançoso de obter um escândalo

publicitário ao publicá-lo. Mas para isso, recorda Sodré, Lima Barreto teria que abrir mão dos

direitos autorais. Barreto, “humilde e modesto”, aceitaria a proposta escrevendo que “sabendo

de que a fortuna de um primeiro livro é arriscada, nada exigiria pela publicação, a não ser

cinquenta exemplares para os oferecimentos de praxe, mesmo assim se o editor achasse

razoável”. (SODRÉ, 1977, p 347-48)

Os literatos cronistas, na maioria das vezes, tinham plena consciência, como Machado

de Assis, que estavam fazendo história e imprimindo um estilo nacional ao cronismo. Um

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outro exemplo é o cronista Paulo Barreto, o famoso João do Rio. Em prefácio com coletâneas

de crônicas do autor, os professores Edmundo Bouças e Fred Góes citam oito outros

pesquisadores para afirmar que João do Rio sabia estar concretizando em seus textos

originalidades e recortes inovadores em um claro projeto de empreender, pelo que chamam de

hibridismo da crônica, o híbrido desdobramento da sociedade carioca.

Intencionalmente polêmicas, as tramas de certas crônicas de João do Rio provocam sempre novos roteiros de leitura, assim como diferentes modalidades de interpretação” [...] João do Rio - no cumprimento de suas tarefas como cronista - testou diferentes miradas a respeito de como retratar as contradições trazidas pelo apontado urbano progressista. De modo singular como visadas de alguns textos, ele flagrou o efêmero, o mutável, o provisório, o sempre outro, permitindo-lhe falar de um mesmo lugar, mas habilidosamente nutrindo-se de variantes recursos do próprio ponto de vista, direcionado inclusive à tentativa de sugerir diferentes eus sobre a própria caricatura, alargando uma originalidade de cruzamento entre o jornalismo e a literatura. (BOUÇAS e GÓES, 2009, p. 8 e 9)

Segundo o professor Jorge de Sá, João do Rio introduz no cronismo a percepção que o

novo centro urbano construído no Rio exigia um também atualizado comportamento por parte

dos jornalistas que escreviam a sua história diária (SÁ, 2005, p. 8-9). Em vez de permanecer

na redação como seus colegas e como era tradição nos jornais, esperando relatos que se

tornariam reportagens, passa a perambular pelas ruas e morros da cidade, pelos bares e

lugares refinados em busca dos fatos. Assim impôs a contemporâneos uma outra maneira de

exercitar o jornalismo. “Mudando o enfoque, mudaria também a linguagem e a própria

estrutura folhetinesca”, diz o pesquisador, relatando o que tanto influenciaria o cronismo

brasileiro. João do Rio, prossegue Sá, daria à crônica roupagem ‘literária’, rica em

personagens inventados, um ar mais ficcional. Era, segundo ele, uma narrativa que se afastava

do relato formal das reportagens e se assemelhava à história contada, “recriando o real, com

ângulo mais subjetivo” (SÁ, 2005, p. 9).

Posterior a João do Rio e com produção se estendendo até a década de 1970, Marques

Rebelo é parada obrigatória quando se trata de cruzamento entre Jornalismo e Literatura na

ambiência do cronismo. Como bem observa o estudioso Renato Cordeiro Gomes no prefácio

da coletânea “Melhores Crônicas de Marques Rebelo” (GOMES, 2004, p. 9 e 10), o autor,

nascido Eddy Dias da Cruz, é herdeiro da tradição que remonta Manuel Antônio de Almeida,

Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio e, em seu cronismo, alarga a visão bem ao

compasso da modernização da literatura nacional e dos próprios meios de comunicação que se

dava no país no período anterior à Segunda Grande Guerra.

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Como defende o crítico Antonio Candido, é a década de 30, aquela que consagrou

Marques Rebelo pela crítica e por seus pares escritores, como Humberto de Campos, a que

consolidou o gênero crônica como ele é concebido hoje no país. É o momento histórico em

que o jornal se firma como cotidiano, de tiragem expressiva e conteúdo mais acessível a um

público amplo, encerrando um processo industrial e artístico iniciado no início daquele

século.

Candido diz acreditar que foi na década de 1930 que a crônica moderna se consolidou

no Brasil, como gênero nacional cultivado por um número crescente de escritores e

jornalistas. O crítico vai sublinhar que foi naquela década que se afirmaram Mário de

Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e “apareceu aquele que de certo

modo seria o cronista, voltado de maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem

Braga” (CANDIDO, 1992, p. 14). O autor prossegue destacando que tanto em Drummond

quanto em Braga, ele observa traço em comum, que resultou na configuração contemporânea

da crônica brasileira, marcada pela chamada prosa modernista.

Esta fórmula foi bem manipulada em Minas (onde Rubem Braga viveu alguns anos decisivos); e dela se beneficiaram os que surgiram nos anos 40 e 50, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. É como se (imaginemos) a linguagem seca e límpida de Manuel Bandeira, coloquial e corretíssima, se misturasse com o ritmo falado da de Mário de Andrade, com uma pitada do arcaísmo programado pelos mineiros. (CANDIDO, 1992, p. 14-15)

Foi natural, portanto, que consolidado nas páginas dos jornais, o cronismo brasileiro

conquistasse outros meios de comunicação de acordo com seu surgimento e popularização no

país. Assim, na forma própria brasileira, a crônica ganhou espaço nas ondas do rádio e,

posteriormente, na tela da televisão. Mais recentemente, crônicas conquistaram leitores (os

chamados pageviews) de sites e blogs da Internet. Sucesso tão estrondoso acabaria por

consolidar o gênero também na forma de livro, o que ocorreu em trajetória própria, distinta da

ocorrida no rádio e na TV.

3.2.1 “Literatura de ouvido”

Ao se firmar como atrativo nas páginas dos jornais, assumindo a função de entreter o

leitor, de dar a ele o “recreio do espírito”, de que nos fala o crítico literário Eduardo Coutinho

(COUTINHO, 1971, p. 111), natural que, no rádio, veículo inaugurado no país em 1922 e que

se tornaria popular na década de 40, o cronismo logo conquistasse seu espaço e novas

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características. A oralidade, marca do gênero crônica quando impresso em jornais, ganharia a

força da voz humana e seus recursos linguísticos nas ondas do rádio. Pausas, entonações,

leituras emocionadas ou reflexivas passaram a dar nova cor ao cronismo, um sonoro recreio

para ouvidos, mentes e espíritos, como sublinha a professora Cláudia Thomé, em sua pesquisa

pioneira pela UFRJ sobre crônicas no meio radiofônico, o que chamou de “literatura de

ouvido”.

Os textos para o rádio não eram feitos para serem lidos, mas para serem interpretados. Não é à toa que as crônicas inicialmente tinham radioatores consagrados como intérpretes. O ator Paulo Autran (1922-2007), por exemplo, interpretou, com lapsos de tempo ao longo da carreira, mas até o ano de sua morte, textos escritos por literatos para o rádio, com destaque para o programa “Quadrante”, da Rádio MEC. [...] Na Rádio Nacional, inúmeras crônicas chegaram aos ouvintes nas vozes dos também radioatores Paulo Gracindo (1911-1995), Saint-Clair Lopes (1906-1980) e César Ladeira (1910-1969). Eram vozes masculinas já conhecidas dos ouvintes que acompanhavam todas as noites as radionovelas veiculadas na emissora. (THOMÉ, 2012, p. 32)

Interessante observar ainda que no rádio o cronismo encontra terreno fértil para

autoras. Com textos vocalizados por homens, radioatores e locutores, seus textos foram mais

bem aceitos numa sociedade que ainda olhava com desconfiança mulheres que ingressavam

em carreiras tidas como tipicamente masculinas, como o jornalismo. É assim que no período

entre as décadas de 1930 e 40 se abre esse espaço amplificado no cronismo para autoras,

como Dinah Silveira de Queiroz, segunda mulher a ingressar na Academia Brasileira de

Letras, em 1980, atrás da também cronista Rachel de Queiroz, que ingressara na ABL três

anos antes.

A entrada e consolidação do cronismo no rádio terminariam por evidenciar a

adaptabilidade do gênero literário aos mais diversos meios de comunicação, sublinhando sua

característica de reunir jornalismo e literatura. Tal hibridismo acadêmico leva estudos como

este à interdisciplinaridade, tão bem-vinda no presente momento, o que força a analisar

crônicas e seu desenvolvimento com olhar múltiplo e também atrelado à história da imprensa

nacional. Por esse motivo, é preciso considerar que, paralelamente à entrada da crônica no

meio rádio, entre as décadas de 30 e 40, os jornais brasileiros ingressaram em processo de

reestruturação, com o jornalismo funcionando como indústria, impulsionada por demandas

novas, típicas das sociedades de massa, tais como a produção de roupas em série e o aumento

da oferta de transporte por ônibus e trilhos. Os anúncios publicitários, antes limitados a

classificados, passam a ter maior espaço e ilustrações. A publicidade paga acelera o

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desenvolvimento econômico dos grupos de comunicação, que, enfim, se tornam viáveis como

empresas.

Como explica o pesquisador Luiz Beltrão (BELTRÃO, 1980, p. 67), os jornais

transformaram-se em “big business”, controlados por grupos econômicos comandados por

famílias que se tornariam referência da imprensa nacional até hoje, como os Marinho do

Infloglobo, os Frias da Folha de S. Paulo e Universo On Line e os Mesquita do Grupo Estado

de S. Paulo.

Com mais anúncios nas páginas, menos espaço editorial foi dado aos cronistas, que

então passaram a ser forçados a uma economia de texto que, como não podia deixar de ser,

marcou ainda mais o estilo brasileiríssimo do cronismo: os textos enxutos tornaram as

crônicas ainda mais precisas e próximas do leitor. Essa adaptação tornou as crônicas

impressas em jornais quase que ideais para vocalização no rádio, tanto que algumas delas

migravam das páginas para os estúdios sem precisar de ajuste. Também radiofonizadas entre

anúncios e sob a exigência técnica de não ocuparem tempo demais do ouvinte com um único

assunto, as crônicas ganharam espaço na grade de programação das emissoras, reproduzindo

no rádio o que já haviam conquistado na então nova imprensa industrial brasileira.

Beltrão vai destacar que a preferência do leitor pelas opiniões individuais, aliada a

certa falta de tempo para ler todas as reportagens e artigos publicados, terminou por levar o

público “a procurar aquelas secções que dissessem respeito aos seus interesses profissionais

ou respondessem aos reclamos imediatos do seu espírito” (BELTRÃO, 1980, p. 67). Com

isso, dentro das redações os jornalistas se especializaram e os que acumulavam a atividade da

reportagem com o cronismo diário ficariam cada vez mais escassos. No rádio, o cronismo se

fixa na grade de programação como entretenimento. Os radialistas que se aventuravam no

cronismo eram quase todos ligados ao rádio teatro e a programas de humor.

Com isso, fica clara a distinção do cronismo saído da pena de literatos, como as

imortais da Academia Brasileira de Letras Rachel de Queiroz e Dinah Silveira de Queiroz,

daquele vindo de jornalistas e radialistas que viriam a assumir o cronismo, como Nelson

Rodrigues, Carlos Heitor Cony e Giuseppe Ghiaroni. Por força da fidelização de leitores e

ouvintes e talento dos autores, viria a ser estimulado o lançamento de coletâneas de crônicas

em livros, tenham sido elas publicadas em jornais ou vocalizadas em rádio. Essa migração do

cronismo da efemeridade das páginas dos jornais e ondas do rádio para as páginas

encadernadas dos livros ocorreria, porém, cercada de certa polêmica.

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3.2.2 “Cotidiano encadernado”, na telinha e nas nuvens

Em estudo publicado em 2004, o professor Luiz Carlos Santos Simon criativamente

chama os livros de coletâneas com crônicas de “cotidiano encadernado”. Simon resgata em

seu trabalho a polêmica inicialmente travada contra essas coletâneas na década de 30 pelo

pensador Alceu Amoroso Lima, depois alimentada por críticos do peso de Massaud Moisés.

Ambos, em tempos diferentes (Massaud Moisés na década de 80) e cada um a seu modo,

consideraram o livro meio inadequado para as efêmeras crônicas que, para eles, raras vezes

suportariam a releitura. O professor Simon, no entanto, vê no cronista Rubem Braga e seus

livros de crônicas um marco para refutar tal polêmica.

Simon recorda que, em 1933, quando Amoroso Lima se declarou publicamente

contrário à inclusão de crônicas em livros, Rubem Braga publicava seus primeiros textos em

jornais, e seu primeiro livro surgiria somente três anos depois.

O referencial do crítico, portanto, não poderia ser o cronista capixaba, o que ajuda a compreender melhor aquele posicionamento. Não pretendo aqui desprezar nem condenar a crônica anterior a Rubem Braga, mas é preciso reconhecer o aparecimento desse autor como um marco que redefine traços e caminhos do gênero (SIMON, 2004, p. 57)

Em seu estudo, Simon recorda que, quando o teórico Eduardo Portella parte em defesa

das coletâneas de crônicas em livro, o ano era 1958, Braga já havia publicado nove títulos e

Carlos Drummond de Andrade, Lêdo Ivo e Fernando Sabino colhiam sucesso de suas edições

de textos originalmente publicados em jornais. Simon conclui sua argumentação destacando

os sucessos editorias de cronistas contemporâneos, como o gaúcho Luís Fernando Veríssimo

(que chega a ter seis textos publicados por semana em jornais de todo o país e com mais de 50

coletâneas lançadas desde seu livro de estreia, O Popular, em 1973).

Em trabalho divulgado no IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, em

2004, o professor Renato Cordeiro Gomes, estudioso da obra de João do Rio, acrescenta ao

debate em favor das coletâneas de crônicas que tais textos vencem o tempo, quando passam

da efemeridade do jornal para o livro perene.

Se aí ela (a crônica) perde as relações de contigüidade com a matéria jornalística que a rodeava, ganha, por outro lado, mais autonomia e vale como ponto de referência para se (re)pensar o tempo fixado pelo cronista, que deixa na escrita marcas da subjetividade. As visões parceladas do cotidiano que afeta e mobiliza o cronista permitem recompor um possível painel que rearranja os fragmentos da história miúda recolhida no efêmero da realidade, a que o autor se atrela. O cronista então se liga ao tempo, ao seu tempo. (GOMES, 2004, p.2)

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Cordeiro Gomes acrescenta ainda que, em mais esse suporte, o livro, as crônicas dos

jornais, revistas e suplementos vão se firmar como veículo de representações sociais. Com

isso, ajuda a embasar o pensamento segundo o qual ideias como a do Carnaval carioca, do

malandro e do subúrbio do Rio de Janeiro encontram nas crônicas, sejam elas publicadas em

periódicos ou coletâneas, veículos relevantes para sua divulgação, publicidade e consolidação.

Caberia ainda destacar aqui que as crônicas ganharam mais suportes de acordo com a

evolução dos meios de comunicação. Foram vocalizadas em programas de televisão em

diferentes períodos, sendo um exemplo um quadro fixo no programa da apresentadora Ana

Maria Braga, “Mais Você”, da Rede Globo, de 1999 a 2004. Nesse quadro, a apresentadora

vocalizava crônicas de Carlos Heitor Cony15. Mas como o gênero requer apenas leitura,

mesmo na TV, entende-se aqui que ele, na telinha, pouco difere da veiculação no rádio, ou

seja, na TV a crônica ainda é uma literatura de ouvido, tomando emprestada a definição da

pesquisadora Cláudia Thomé, e não uma literatura visual. Mesmo que dê para visualizar a

vocalização da crônica, o efeito está mesmo no texto e na entonação, como no rádio, e não na

imagem, apesar de algumas ainda raras exceções mais recentes em que a imagem completa o

texto ou, eventualmente, acrescenta algo a ele.

Resta ainda destacar que, contemporaneamente, a crônica migra para a Internet,

espaço livre para onde também estão migrando romances, poemas e contos, alguns esgotados

editorialmente, outros buscando espaço editorial, e muitos se tratando de resgates de textos

esquecidos ou perdidos. Migra, sem, porém, tirar o pé dos jornais e dos livros que, no entanto,

cada vez têm suas tiragens reduzidas em função do custo de impressão e do papel.

Na web, porém, são poucos os autores já conhecidos que despontaram primeiramente

em sites e blogs. Destaque vai para a autora Martha Medeiros, publicitária que conquistou

projeção como cronista (antes de estrear publicando crônicas apenas no jornal gaúcho Zero

Hora) com seu site pessoal. Há ainda autores novos, como a também gaúcha Ana Cecília

Rodrigues, que iniciou a divulgação de suas crônicas exclusivamente na web, no blog

anaceciliaromeu.blogspot.com.br e hoje tem seus textos publicados em jornais do Rio Grande

do Sul e até mesmo do Rio, como no carioca O DIA, que abrigou em suas páginas toda a obra

de Léo Montenegro de 1965 até 2003, quando ele faleceu.

15 In: http://globotv.globo.com/rede-globo/memoria-globo/v/mais-voce-cronicas-de-carlos-heitor-cony/3680627/

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3.3 Crônica pelos autores

Foi a pesquisadora Beatriz Resende, em um evento acadêmico em 2012, na Faculdade

de Letras da UFRJ, que sugeriu como seria interessante reunir as definições para crônica

escritas pelos próprios autores. Estávamos nós, todos também pesquisadores, diante da

definição para crônica escrita pela acadêmica Dinah Silveira de Queiroz, um resgate obtido

pela professora Cláudia Thomé, em seu já citado trabalho “Literatura de ouvido: crônicas de

Dinah Silveira de Queiroz e de Giuseppe Ghiaroni no rádio”. Thomé falava da crônica

inaugural de Dinah no programa “Café da Manhã”, quando a escritora explicava aos ouvintes

como enfrentava o desafio de escrever uma crônica para ser vocalizada por um locutor de

rádio e não simplesmente para ser percorrida pelos olhos do leitor.

A letra, por maior que seja, é sempre uma formiga preta carregando uma ideia, que vai aos pedaços e que será reconstituída numa linha. Mas a voz é toda a presença, toda a ideia. Antigamente numa cidade do interior de São Paulo, a menina que seria escritora achava que a pessoa mais importante do lugar era o sino. Às vezes ele corria baixo, às vezes o seu som voava alto e atingia as colinas cobertas de cafezais em flor que pareciam tremer, perder as pétalas rosadas sob a onda violenta que passava tão sonora. Era quase a reprodução do mistério de Deus, aquela voz que chamava a freguesia da missa e passava pelas casinhas dos colonos afastados da cidade. E visitava os campos. E penetrava na mata. Tremendo nas poças verdes. Agora me vou por distantes lugares E a voz que me carrega me faz lembrar o velho sino da cidadezinha perdida. (trecho de crônica de Dinah Silveira de Queiroz para o programa Café da Manhã da Rádio Nacional in THOMÉ, 2012)

Desde então a presente pesquisa passou a prestar atenção maior às definições sobre o

gênero dispersas em textos de diferentes cronistas. Peso semelhante às explicações dadas

pelos teóricos, as considerações feitas pelos autores são carregadas de um lirismo

emocionante. Drummond, em trecho de “O frívolo cronista”, vai falar da crônica como

“espaço descompromissado, onde o jogo não visa ao triunfo” (ANDRADE, 1998, p. 178-

180). Já Machado de Assis, refletindo sobre a melhor forma de começar uma crônica, em vai

sentenciar: “por uma trivialidade”. (ASSIS in SANTOS, 2007, p. 27)

Luis Fernando Veríssimo vai se deparar com a dificuldade para a definição do que é

realmente uma crônica e, divertidamente, dirá, na introdução da coletânea “O Nariz & Outras

Crônicas” (VERÍSSIMO, 1996, p. 4 e 5), que a discussão em torno da definição do que venha

a ser crônica é quase tão antiga quanto aquela sobre a origem das galinhas: vai dizer que só

aos estudiosos de literatura interessa saber se um texto é crônica, conto ou outra coisa. Faz

desse pensamento uma brincadeira ao afirmar que a dúvida sobre quem nasceu primeiro, o

ovo ou a galinha, não interessa a 'ambos', mas apenas a especialistas em animais ou, em

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última análise, ao galo. Introduz assim o pensamento sobre o qual o mesmo princípio vale

para cronista e leitores a respeito da crônica. Faz essa ilação e completa:

Como identificar cada uma? Crônica é qualquer crônica, ou uma crônica qualquer. Croniqueta é o nome científico da crônica curta, como pode parecer. [...] Cronicão é a crônica grande, substanciosa, com parágrafos gordos. [...] Grande crônica é o Cronicaço. O cronicaço é contagiante; seu autor sai na rua e deixa um rastro de cochichos - É ele, é ele! (VERISSIMO, 1996, p. 4 e 5)

A pesquisa deparou também com a singela definição, já citada neste trabalho, de Léo

Montenegro. Como já dito, falando de como começou a escrever suas crônicas, Léo recorda

que fora escalado para “fazer qualquer bobagem”. E continua, pontuando o que buscaria

escrever nos 38 anos de carreira, e assim dá sua simples definição: “algo engraçado e

completamente diferente” 16

Mas é Machado de Assis, como não podia deixar de ser, que em sua definição melhor

revela a proximidade da crônica com o trivial, comparando-a alegoricamente a uma conversa

de amigos sobre o calor, sendo esta forma despreocupada a mais adequada para abrir uma

crônica:

É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est

rompue; está começada a crônica (ASSIS, 1877, p. 34)17

Carlos Drummond de Andrade, em trecho de “O Frívolo Cronista”, compartilha da

visão de Machado e amplia o leque de possíveis temas para matéria prima da crônica:

Pode ser um pé de chinelo, uma pétala de flor, duas conchinhas da praia, o salto de um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, o assobio do rapaz da lavanderia. Pode ser um verso, que não seja épico; uma citação literária, isenta de pedantismo ou fingindo de pedante, mas brincando com a erudição; uma receita de doce incomível, em que figurem cantabiles de Haydn misturados com aletria e orvalho da floresta da Tijuca. Pode ser tanta coisa! Sem dosagem certa. Nunca

porém em doses cavalares. (ANDRADE, 1998, p. 178-180) 18

Já Marques Rebelo, ao voltar a publicar crônicas em 1953 no jornal Última Hora, vai

carinhosamente chamar o espaço entre fios no alto da página de jornal de “ninho”, em um

16 Léo Montenegro em entrevista ao jornal O DIA publicada na edição de 14 de janeiro de 2001. 17 In Acervo de Machado de Assis (“História de Quinze Dias”) no site do Ministério da Educação e Cultura (MEC): , p. 34, visualizado em 17 de janeiro de 2015 18 “O frívolo cronista” está disponível também em , visualizado em 17 de janeiro de 2015

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breve texto sobre sua dificuldade de retomar o ofício após algum tempo afastado do gênero e

do Rio. Lista as trivialidades que teria para contar (“tantas coisas importantes”) e fala do

ultimato que recebera do editor:

Então o Malta [o pernambucano Octávio Ribeiro Malta que fundara com Samuel Wainer o jornal Última Hora] não suportou mais a ausência do seu colunista e me espremeu contra a parede que, como é de domínio público, tem painéis de Di Cavalcanti altamente alegóricos. E da espremeção resultaram estas linhas de hoje e a promessa de outras mais. (REBELO, 2004, p. 86)

Falando do colega cronista Rubem Braga, o poeta e também cronista Manuel Bandeira

revela o que considera uma crônica:

Qual o segredo de Braga? Creio ser este: pôr em suas crônicas o melhor da poesia que Deus lhe deu. Outros põem também poesia nas suas crônicas, mas cautelosamente, só o refugo; a melhor eles guardam para seus poemas. Ao passo que o velho Braga, poeta sem oficina montada, descarregava todos os seus bálsamos e venenos na crônica diária.19

Em reportagem do jornal Tribuna de Minas sobre Rubem Braga, em que Bandeira é

citado, há outras definições, como a do cronista contemporâneo Antonio Prata, filho do

escritor Mário Prata: “Para mim, a crônica é mais formato que conteúdo. Não importa o que

você escreveu, se for agradável, divertido e se tocar a pessoa que está lendo, de maneira lírica

ou melancólica, atingiu sua função primeira. O que ela não deve causar é aborrecimento” 20.

Em seguida, na mesma reportagem, a definição do poeta, ensaísta e também cronista Afonso

Romano de Sant'Anna, que, falando de como se iniciou no cronismo, sublinha a relação de

seus textos com o cotidiano e o noticiário jornalístico:

Quando comecei a escrever no JB [Jornal do Brasil], trouxe a questão da violência cotidiana para a crônica. O Rio já não era mais 'o barquinho vai, o barquinho vem', não era mais a bossa nova, nem a capital lírica de Rubem Braga, nem bastavam os casos engraçados de Fernando Sabino. A cidade (o Brasil) perdeu sua ingenuidade. E o cronista tinha que dar conta disso, embora falasse às vezes de amenidades. 21

Cronista contemporânea, a capixaba Marcia Tiburi fala, na mesma reportagem do

jornal Tribuna de Minas, citada acima, do poder de emocionar do cronismo brasileiro,

19 Manuel Bandeira in: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-19/cronicas-criticas/o-palhaco-da-burguesia-e-outros 20 Depoimento de Antonio Prata in: , acesso em 15 de julho de 2013 21 Depoimento de Afonso Romano de Sant’Anna in: , acesso em 15 de julho de 2013

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revelando os obstáculos atuais para o gênero, aguçando a curiosidade para leitura de crônicas

de hoje em dia e, ao mesmo tempo, convidando para releitura de crônicas mais antigas: “Na

nossa época dessensibilizada, é complicado fazer crônica”. Tiburi, em sua afirmação, dialoga

diretamente com Clarice Lispector, que pensa exatamente o oposto da cronista contemporânea

sobre a trajetória do cronismo e sua importância literária. Em “Escrever para jornal e escrever

para livro”, texto publicado primeiramente em julho de 1972 (in LISPECTOR, 1999), Clarice

vai dizer, com certo desdém, que suas crônicas parecem ter textos menos complicados que

seus livros simplesmente porque o leitor de jornal está habituado a ler jornal sem dificuldade,

porque o jornal é para ser entendido. Em seguida sentencia: “Não há dúvida que valorizo

muito mais o que escrevo em livro do que escrevo em jornais” (LISPECTOR, 1999). Essa

ideia é retomada na crônica “Ser cronista”, publicada em 22 de junho de 1968, quando a

autora deixa claro o descontentamento em estar ganhando a vida escrevendo para jornais. Seu

desdém é uma definição.

Basta eu saber que estou escrevendo para jornal, isto é, para algo aberto facilmente por todo mundo, e não para um livro, que só é aberto por quem realmente quer, para que, sem mesmo sentir, o modo de escrever se transforme [...] mas mudar só porque isto é uma coluna ou uma crônica? Ser mais leve só porque o leitor assim o quer? Divertir? fazer passar uns minutos de leitura? [...]Vou dizer a verdade: não estou contente.(grifo meu). (LISPECTOR, 1999, p. 113)

Marina Colasanti, em entrevista para o site da editora Saraiva (MELLO, 2009), revela

que sua escrita literária surge da crônica, apontando caminho totalmente inverso ao de

Clarice.

A minha escrita literária surge da crônica. Eu era cronista do Jornal do Brasil e não era escritora. A partir da crônica, ou seja, do meu envolvimento com uma escrita que, embora seja jornalística, é literária – e percebendo que meu interesse era mais intenso para o lado literário – comecei a escrever o meu primeiro livro. A partir daí, eu sempre trabalhei a crônica como uma questão muito literária. Mas não foi o contrário, não sou uma escritora que foi chamada para escrever crônicas . 22

Para não deixar de fora a definição de um dos cronistas pioneiros do cronismo

brasileiro cabe convocar Olavo Bilac. O poeta consagra uma definição imagética a respeito do

gênero jornalístico e literário que então se formava:

22Marina Colasanti em entrevista ao site da editora Saraiva, em 16/09/2009 (MELLO, Ramon. Marina Colasanti, tintas, papeis e canetas, in http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/10114)

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Os cronistas são como bufarinheiros, que levam dentro das suas caixas rosários e alfinetes, fazendas e botões, sabonetes e sapatos, louças e agulhas, imagens de santos e baralhos de cartas, remédios para a alma e remédios para os calos, breves e pomadas, elixires e dedais. De tudo há de conter um pouco esta caixa da crônica: sortimento para gente séria e sortimento para gente fútil, um pouco de política para quem só lê os resumos dos debates no Congresso e um pouco de carnaval para quem só acha prazer na leitura das seções carnavalescas. (BILAC, 2005, p. 10)

Para encerrar essa degustação, que merecia maior aprofundamento, mas que desviaria

essa pesquisa de seu foco, cabe recorrer à definição de crônica do mestre do gênero, Rubem

Braga. O autor, ao falar de amor, revela a efemeridade do gênero e, ao fazê-lo, evidencia a

leveza e a oralidade que marcaram sua perene obra.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão. Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor. (BRAGA, 1967, p. 112)

Sim, de pé ou sentados, perplexos, temos a certeza hoje que repousadas nas páginas

dos jornais estão as crônicas, suas revelações e ideias, um oceano de ideias que ainda precisa

ser explorado entre as publicações do Rio de Janeiro e de todo o país.

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4 FORMAÇÃO E OPINIÃO

Uma questão que pode ocorrer ao leitor que vê, muitas vezes, na mesma página de

jornal, uma crônica e um artigo de opinião é que não há como distinguir um texto do outro,

afinal ambos vêm entre fios. Jornalistas e estudiosos da literatura vão se apressar e explicar a

diferença para o leigo que formule tal questionamento. Os primeiros logo dirão que o artigo

de opinião é assinado pelo articulista, autoridade reconhecida no assunto que trata, ou com

representação suficiente para sua opinião ocupar espaço entre as notícias publicadas no

periódico. O artigo vai recorrer a regras do texto argumentativo, de modo a tentar formar

opinião com dados concretos e precisos. Os estudiosos da literatura vão defender que a

distinção se dá sobretudo no que diz respeito à linguagem da crônica, lírica e cotidiana, à

temática, ligada ao dia a dia e ao pitoresco, e à liberdade literária, podendo recorrer ao

imaginário e a expressões como gírias e estrangeirismos.

Ambos, jornalistas e estudiosos de literatura, poderiam voltar para seus lugares sociais

e darem a questão por encerrada caso o questionamento não fosse refeito e passasse a

perguntar se tanto crônica quanto o artigo de opinião têm poder ou não de formar a opinião de

leitores ou representar a opinião de alguns leitores a outros que a desconheciam. Ora, é

consenso em ambos os grupos que tanto uma quanto a outra forma de texto, ao lado dos

editoriais, têm dentro do mito da imparcialidade jornalística o poder sagrado de revelar uma

opinião e o quase leviano poder de formar opinião.

Os editoriais, diga-se, são a opinião do jornal, quase sempre o ponto de vista do

empresário ou grupo empresarial que controla a publicação e seus pares. O editorial sempre

tratará de um assunto que figura como conteúdo da publicação naquele dia ou semana. O

artigo de opinião virá da pena de um convidado, frequente ou não, nas páginas da publicação.

A crônica nascerá das mãos do cronista, eventual ou diário, com narrativa já conhecida pelos

leitores. Os três, porém, têm papeis distintos, importantes na formação de opinião do público

leitor. Como a proposta dessa parte da pesquisa é investigar o papel formador de opinião das

crônicas, objeto de estudo deste trabalho, a análise nesta tese se restringirá a elas.

Para iniciar a discussão cabe recorrer ao teórico Afrânio Coutinho (COUTINHO,

1984), e a tipologia clássica que o autor faz das crônicas: narrativa, metafísica, poema-em-

prosa, comentário e de informação. Ao observar cada um desses tipos de perto, nota-se que

cada um, a seu modo, revela opinião e, ao fazê-lo, forma opinião e, com isso, constrói ideias

em torno dos temas que são recorrentemente tratados, consolidando pensamentos e, em alguns

casos, configurando estereótipos.

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Segundo Coutinho (1984), a crônica narrativa é uma estória ou episódio próximo do

conto contemporâneo, que não precisa apresentar de forma obrigatória começo, meio e fim.

Acrescento que, como essa estória está relacionada ao cotidiano, representando fragmento

dele de forma simplificada, tem peculiaridades. Muitas vezes, por exemplo, o cronista não dá

nomes aos personagens e os identifica pela profissão ou atividade profissional, como médico

e apontador do Jogo do Bicho, ou pelos traços físicos e psicológicos, como gordo e neurótico.

Ao fazer isso, recorre ao que o leitor imagina ser um apontador do Jogo do Bicho ou um

neurótico. Neste caso, consolida estereótipos e ao mesmo tempo os registra como documento

histórico. Em outras palavras, a ideia de apontador do Jogo do Bicho que se ouve nas ruas

quando a crônica é escrita é a que vai ficar registrada nas páginas de jornal, mesmo sendo os

apontadores do Jogo do Bicho diferentes entre si. Como muitas vezes essa narrativa vai usar

os diálogos como estratégia, as formas de falar e os tratamentos de grupos sociais ou de

moradores da região A ou B também serão consolidados por meio das crônicas, que na sua

simplicidade vão registrar ideias as respeito das variações linguísticas e dos tratamentos entre

as pessoas de um determinado momento ou bairro ou cidade.

O segundo tipo identificado por Coutinho, a crônica metafísica, por definição já revela

seu poder de formar opinião. Por se tratar de texto que envolve reflexões sobre

acontecimentos e pessoas e por ter inspiração filosófica, carrega em si um juízo: o do autor.

Se ele busca esse juízo na interpretação de notícias ou no que percebeu nas ruas em

movimento de flaneur, defende em seu texto um pensamento. Por se tratar, na maioria das

vezes, do titular de um espaço editorial diário ou semanal, mas constante, tem bancada

privilegiada para defesa de suas ideias e consolidação delas. Como a permanência dos

cronistas nas páginas requer a fidelidade de leitores, identificados com seus pensamentos,

nota-se que tais ideias encontram eco e seguidores, ficando claro aí o papel decisivo desses

autores na formação de opinião a respeito de temas, grupos de pessoas, regiões e épocas.

Já a crônica-poema-em-prosa, apresentada por Coutinho como tendo o lirismo como

característica, apresenta a força do texto que expressa sentimentos e olhares próprios do autor.

Nada mais precisaria ser explicado em torno de seu poder de consolidar ideias, mas um

aspecto cabe destaque: o da escolha das palavras. Buscando o lirismo no cotidiano, o cronista

sedimenta variações linguísticas e outros falares. Como vai voltar seu olhar para o espetáculo

da vida, as paisagens e os episódios significativos, vai emprestar poesia para as imagens que

vai consolidar por meio de palavras em seu texto. Ao fazê-lo, consolidará ideias por meio de

imagens mentais, facilmente compartilhadas e memorizadas.

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A crônica-comentário faz, seguindo o teórico, uma crítica de acontecimentos, a

maioria díspares, tomando o aspecto que ele classifica como “bazar asiático”. Ora, tal crônica

carrega em si, é fácil avaliar, o conceito de juízo, aqui tido como capacidade intelectual de

julgar, entender, comparar e tirar conclusões. Ou seja, ao fazê-lo defende uma ideia e convida

os leitores a compartilhá-la com seus pares. Se for convincente, requisito indispensável para

se manter nas páginas dos jornais, atingirá seu tento.

Por fim, ainda dentro da classificação de Coutinho, há a crônica-informação, que

relata os fatos, mas o faz sem se privar de emitir comentários, mesmo esses sendo ligeiros. De

novo, é nesses comentários que reside o poder das crônicas de consolidar ideias por meio de

sua militância que, mesmo sendo despretensiosa, é diária e detém o poder da constância.

Relato breve e entre fios, tem como suporte veículo de comunicação de massa, que atinge

grandes grupos de leitores, com escolaridades diferentes e papeis diversos na sociedade.

Poderia a pesquisa recorrer a outros autores, como o pesquisador Luiz Beltrão

(BELTRÃO, 1980), para defender o mesmo conjunto de pensamentos descritos acima. Por

isso, vai buscar nesse teórico um último apoio, relacionado às fontes de inspiração cultivadas

pelos cronistas em seu trabalho. Beltrão afirma que essas fontes são as ideias que o cronista

pesca na comunidade - aqui entendida como público-alvo do jornal que o abriga -, a

informação sobre fatos - matéria-prima da notícia - e as emoções pessoais ante tais ideias e

fatos. Ou seja, o próprio conceito de fontes temáticas da crônica já carrega em si o

entendimento segundo o qual sem defender ideias e pontos de vista, o texto deixa o cronismo

e vira reportagem jornalística.

4.1 Efêmero, mas profundo

Ainda dentro da proposta de relacionar o cronismo à formação de opinião, cabe um

aprofundamento de modo a mostrar que efêmeras crônicas podem trazer questionamentos

profundos, contribuindo para formação de ideias consolidadas no imaginário nacional, tais

como as de Carnaval e cidade-capital do Rio de Janeiro e, por ponto de chegada da presente

tese, do subúrbio dessa cidade-capital e suas características e problemas.

Interessante é trazer à tona algumas considerações, ora diretas ora indiretas, em torno

dessa profundidade temática identificadas em despretensiosas crônicas publicadas em jornais

brasileiros ao longo do século passado. Identificar nestes textos, escritos para serem lidos no

tempo livre e retratando cenas do tempo de folga do trabalho, profundas reflexões sobre a

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sociedade moderna e suas questões, como indústria cultural, consumo de massa, violência e

intolerância a diferenças éticas e sociais.

No âmbito da presente pesquisa, esse desafio volta-se para as obras de Lima Barreto,

João Antônio e Léo Montenegro, agrupados como já dito por se tratarem de autores que

apontam no subúrbio carioca a experimentação de certa liberdade na organização social e das

obrigações hodiernas nos momentos livres do trabalho. Como indicado na introdução deste

trabalho, neste momento a análise se debruça sobre a íntegra de crônicas previamente

selecionadas, que apresentam temas centrais nas obras dos três autores, em tom crítico ou

carnavalizado, uma vez que o objetivo nesta etapa da pesquisa é revelar conteúdos profundos

presentes nas efêmeras crônicas.

De Lima Barreto, foi escolhida a crônica “A vingança (História de Carnaval)”, texto

crítico sobre conflitos de classe e étnicos entre crianças moradoras do subúrbio carioca. De

Léo Montenegro, duas crônicas sobre o Carnaval das escolas de samba, que mostram uma

crítica aguçada sobre a organização da festa, sobre o tempo livre dos foliões e sobre o medo

comum em relação à violência urbana. De João Antônio, despretensiosa crônica de 1986

sobre o bairro de Santa Teresa, onde faz menção à ditadura militar oficialmente encerrada um

ano antes, à segregação social entre moradores do asfalto em relação aos das favelas e à má

fama da Polícia Militar do Rio naquele momento histórico.

4.1.1 Vingança contra o racismo

Um olhar mais atento para crônicas dos três autores citados pode evidenciar esse tom

crítico por trás de textos leves. Esta exemplificação começa então com a crônica já citada do

escritor carioca Lima Barreto, autor consagrado pelo cânone brasileiro, especificamente

preocupado com a movimentação social do subúrbio. Crítico do arbítrio com que se deram as

mudanças estruturais no Rio de Janeiro no início do Século XX (desocupação dos casarios do

Centro do Rio e afrancesamento da região em obras tocadas pelo então prefeito Pereira

Passos), Lima Barreto pontua, em crônica de 1921, a divisão da cidade em duas partes, uma

“europeia e a outra, a indígena”.

Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a europeia e a outra, a indígena. [...] dia pela manhã, quando vou dar meu passeio filosófico e higiênico, pelos arredores da minha casa suburbana tropeço nos caldeirões da rua principal da localidade de minha residência, rua essa que foi calçada há pelo menos cinquenta anos [...]

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Lembro-me dos silhares dos caminhos romanos e do asfalto com que a Prefeitura Municipal está cobrindo os areais desertos de Copacabana. Por que será que ela não reserva um pouquinho dos seus cuidados para essa útil rua das minhas vizinhanças, que até é caminho de defuntos para o cemitério de Inhaúma? Justos céus! (BARRETO, 1921)

Em sua atividade como cronista, Lima Barreto (neto de escravos, mulato, pequeno

funcionário público e enfermo) detém-se ainda sobre temas densos, como segregação racial na

ocupação urbana dos subúrbios entre outros temas relevantes para sua época. Nos textos

publicados em jornais, para os leitores dos anos 20, o autor se debruça sobre o papel para

discutir também ensino, conquistas femininas (como o direito ao voto), guerra, doutrinas

políticas e lazer, sobretudo Carnaval e futebol. Peculiar é quando, olhando para os momentos

de descanso, de tempo livre, destinados ao lazer, Lima Barreto não se furta de levar reflexões

sobre temas dos mais densos.

Esta pesquisa chama a atenção, a título de exemplo, para a crônica “A Vingança

(História de Carnaval)”. Segundo a pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz (BARRETO, 2010),

na introdução da coletânea de textos de Lima Barreto organizada por ela, essa crônica foi

publicada sob o título de “O moleque” no periódico ABC dos primeiros anos do Século XX.

Saiu também inserida na 1ª edição de Histórias e Sonhos. O texto anexado a este trabalho é

fiel ao original manuscrito a lápis resgatado por Schwarcz na Biblioteca Nacional, também

disponível no site da Biblioteca Brasiliana (ANEXO VIII) e posteriormente com grafia

atualizada para publicação na coletânea. A respeito da diferença entre o título dos originais e

o publicado nos anos 20, a pesquisadora faz interessante observação.

Percebe-se como Lima amainou o título final. No original, chamado “A vingança” – nota-se com maior clareza a mágoa que o escritor sentia diante das manifestações cotidianas de preconceito, ademais, contra crianças. Ele mesmo, em seu Diário Íntimo, relata que quando criança, entre onze ou doze anos, fora vítima de uma acusação falsa de latrocínio e que quase se suicidara por conta disso. (SCHWARCZ in BARRETO, 2010, p. 700)

A crônica em questão é breve. É sábado de Carnaval e a mãe lavadeira, dona

Francelina, questiona o filho Zeca sobre o embrulho que ele carregava já com papel rasgado,

revelando uma fantasia de diabo. É dia de descanso, de tempo livre. É sábado de Carnaval,

mas Francelina “está muito ocupada em arrumar as camisas e punhos de seus fregueses”

(BARRETO, 2010, p 578). A mãe suspeita que o menino tenha roubado a fantasia, mas ele

logo esclarece que a máscara fora dada de presente por um conhecido da família (“Seu

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Chico... Aquele que gosta de dona Noêmia do nº 14”) e os demais apetrechos da roupa

comprados pelo próprio garoto, com dinheiro que ele “ajuntara desde junho do ano anterior”.

Os dois estão numa vila, possivelmente operária, com casas numeradas. O menino iria

se fantasiar no sábado de Carnaval. É festa de Momo, momento de inversão, em que o folião

mais humilde “vira” rei e o operário, um “nobre” da corte momesca. Zeca aproveitará o

momento de folga para experimentar uma revanche, planejada há muito tempo. Ele conta para

a mãe a cena, repetida recentemente em um estádio de futebol no Rio Grande do Sul e

felizmente repudiada em toda nação. 23 Cem anos antes, a mesma situação passaria

despercebida pela sociedade, mas não para o cronista Lima Barreto:

O ano passado eu passava na casa de um doutor lá das bandas do Largo de Segunda-

Feira. Eu ia só, sabe, mamãe. Levava a marmita a dona Filomena ... A senhora não

se lembra quando estive empregado na pensão? [...] Pois bem; foi nesse tempo. Eu

levava a marmita, os meninos do doutor estavam na porta e quando passei se

puseram a gritar: “Seu mouco, macaco”. Eu tive uma raiva, mamãe, que a senhora

não imagina. (BARRETO, 2010, p. 579)

Foi para se vingar dessa humilhação que Zeca juntou o dinheiro, arranjou a máscara

para, no momento de folga do sábado de Carnaval, passar na casa do tal doutor “para meter

medo nos meninos”. Por si só a descrição do breve texto mostra quanto profunda é a crítica e,

como ela faz referência ao tempo livre, pontuando nele o embate e uma clara possibilidade de

vingança libertadora do sentimento de humilhação há tanto tempo cultivado pelo menino

Zeca. Relevante é destacar que a fantasia escolhida, de diabo, é típica dos tempos do entrudo e

da passagem deste tipo de folia para o Carnaval mais semelhante ao que conhecemos hoje.

Cabe sublinhar, como pontua o pesquisador Felipe FERREIRA (2004), que entrudo é

a brincadeira violenta e grosseira, tendo como protagonistas escravos e a população das ruas,

que se envolviam em uma espécie de batalha, sujando uns aos outros com urina e até esperma.

Diabo é uma fantasia que o caricaturista Raul Pederneiras, em 1914, numa charge intitulada

“Carnavais de Outrora”, indica como recorrente no passado. No caso da crônica de Lima

Barreto esta fantasia é pontual. Dessa forma, o autor filia o protesto de Zeca aos homens

simples, seus antepassados, seus parentes pela cor e pela condição social.

E mais: é no momento do Carnaval (período secular, fora do ano litúrgico eclesiástico)

que o menino pretende se vingar da humilhação promovida pelos filhos do tal doutor,

23 Em agosto de 2014, torcedores gremistas chamam o goleiro do Santos de ‘macaco’. Os torcedores do time gaúcho gritaram ofensas ao jogador na derrota da equipe por 2 a 0 pela Copa do Brasil, na Arena do Grêmio, conforme pode ser conferido, por exemplo, no site, acessado em 1º de novembro de 2014.

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fantasiando-se de diabo, o dono da festa da carne, da desordem, da quebra da rotina. É a vez

do menino amedrontado pela humilhação causar medo, invertendo as condições dentro da

inversão permitida no período de Momo.

Lima Barreto vai além e mostra que o sentimento de inversão é privilégio, uma

experiência para foliões em seus momentos de folga e nunca para aqueles que não descansam

da labuta. Nesse sentido, encerra sua crônica com a fala da mãe, que chama o filho Zeca de

“tolo”, sentença proferida enquanto ela continuava “muito resignadamente a arrumar a roupa

de várias famílias conceituadas”.

4.1.2 Nas entrelinhas

O cronista João Antônio, como já definiu o crítico Antonio Candido, dará destaque ao

real “numa prosa dura, reduzida às frases mínimas, rejeitando qualquer 'elegância' e, por isso

mesmo, adequada para representar a força da vida” (CANDIDO, 2004). Nessa tessitura de

texto, não se privará de revelar aguçada crítica à sociedade de sua época mesmo em textos

frívolos, como o intitulado “Santas Teresas”, publicado no livro “Zicartola e que tudo mais vá

para o inferno”, de 1991, originalmente escrito em 1986, um ano depois do fim histórico da

ditadura militar que governou o Brasil após o golpe de estado de 1964.

A despeito de descrever o cotidiano do bairro boêmio de Santa Teresa, região central

da cidade do Rio de Janeiro, o cronista vai, entre uma e outra descrição, ao representar o real

de forma convincente, igualando narrador e personagens, como já disse Candido, revelar

ácida crítica à ditadura, chamada na crônica “de época dura, de intolerâncias” (ANTÔNIO,

1991, p 19-23). Relevante notar que essa descrição soa ousada no ano de 1986, quando o fim

efetivo da ditadura militar ainda era uma dúvida na sociedade e após longo período de censura

e ataques militares contra críticos de seu regime.

João Antônio, jornalista com passagens pelo Jornal do Brasil, revista Manchete e

jornal O Pasquim e um dos fundadores da revista Realidade (1966), sempre foi crítico do

regime militar. E a crônica apresenta essa crítica refletida logo em suas primeiras linhas.

Previsível? Gratuito? Não. Faz isso para parágrafos depois fazer ligação dos abusos dos

ditadores com os da Polícia Militar do Rio de Janeiro de então.

Hoje transformada em retrato mal-encarado da corrupção, violência e ladroeira, tudo com descaramento, a PM poderia esclarecer um dado desconcertante . Ou expressivo. Depois de sua instalação em Santa Teresa, os assaltos aumentaram.

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Cumpre-se, então, uma velha fala: 'acabe-se com a polícia e se acabarão os ladrões'. (ANTÔNIO, 1991, p. 21)

Importante é notar que a crítica ácida se dá em um texto irregular, de fácil leitura,

muito próximo da conversa despreocupada. Nesta crônica, João Antônio fala a seus leitores

sobre uma padaria de Santa Teresa, a Padaria das Famílias, e seu intenso movimento, um

local de encontros e fofocas. Local ideal para saber da vida alheia e “da vida policial do Rio”.

As repetições, como disse o crítico Antonio Candido no prefácio de “Malagueta, Perus

e Bacanaço” (2004), violam os “manuais de escrever bem, mas aumentam o alcance da

expressão, porque a aproximam da naturalidade”. Tal característica liga a crítica feroz ao

texto leve, numa articulação tal que a reflexão se dissolve, se torna natural.

4.1.3 A crítica carnavalizada

Como já revelado nesta tese, o “Avesso da Vida” de Léo Montenegro apontava

situações ambientadas no subúrbio do Rio. Tais situações eram contadas ao cronista como

verdadeiras por moradores do subúrbio. Outras eram inspiradas em registros policiais. Ao

cronista cabia resumi-las no restrito espaço que lhe estava reservado no jornal. Nessas

crônicas, em poucas linhas, inúmeras vezes tratou de temas densos, levando para os leitores

de O DIA reflexões relevantes sobre relações de poder, estado de conservação das ruas do

subúrbio, Carnaval e violência urbana, entre outros temas. Um desses textos, publicado na

edição do jornal O DIA do domingo de Carnaval, 13 de fevereiro de 1994, a crítica reflete o

que então era uma questão para sociedade carioca da época: o estranhamento com o luxo

excessivo das escolas de samba do Grupo Especial do Carnaval carioca, na sua grande

maioria com quadra de ensaios e de sede nos subúrbios cariocas, onde a conservação das ruas

é precária e em nada lembra a abundância de recursos levados à Marques de Sapucaí, avenida

onde ocorrem os desfiles nos dias da festa de Momo.

A crônica do “Avesso da Vida” em questão falava de um bloco não identificado. Léo

conta a história da agremiação com poucos recursos e poucos componentes, com enredo que

citava D. Pedro I, confrontando com grandes escolas de samba que naquele ano falavam de

reis e da corte francesa (ANEXO IX). Nas poucas linhas, ironiza a briga por pontos

protagonizada pelas escolas de samba do grupo especial (“Com mil notas zero, metade do

bloco está no bar!”) e o financiamento do desfile por meio de benfeitores: nas Escolas de

samba, contraventores do Jogo do Bicho, os chamados bicheiros; no bloco da crônica, o

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quitandeiro. Compara também as fantasias luxuosas das escolas de samba do Grupo Especial

e seus bem vestidos componentes com as fantasias de um quilo e meio e o folião magricela do

bloco, cuja ala das baianas tem uma só senhora e a “bateria cabe em um bar”.

De forma carnavalizada, a crônica de Léo Montenegro traz a público a discussão sobre

o contraste entre o luxo apresentado pelas escolas de samba do subúrbio e a precariedade da

conservação das ruas por onde, no dia a dia do mundo do trabalho, circulam sem fantasias os

sambistas que as defendem na Avenida Marques de Sapucaí. Faz isso quando, na crônica, o

presidente do bloco autoriza que um componente fosse ao bar buscar os integrantes da bateria

da agremiação. O presidente diz: “A sua pessoa vai num pé e volta no outro! E cuidado com a

vala! Se a sua pessoa cai naquela porcaria e quebra um pé a gente fica desfalcado!”

Da mesma forma, Léo Montenegro leva para sua crônica, já no ano de 2001, outra

discussão, igualmente relevante para a sociedade: o aumento da violência e a intenção dos

governantes de barrar a divulgação desse fenômeno durante o Carnaval para outros estados e

para o exterior, temendo redução no fluxo de turistas e de investimentos privados. A crônica

foi publicada no domingo de Carnaval, dia 25 de fevereiro de 2001, mesmo dia em que o

suplemento especial do jornal O DIA trazia reportagem sobre censura governamental a

alegorias das escolas de samba que fizessem referência à violência urbana. Por esse motivo

ela é relembrada nesta tese.

A Mocidade não vai mais exibir a fita com a tragédia do ônibus 174. A Grande Rio também não mostrará cenas de PMs em pancadaria. Para evitar as farpas da Funai, a Viradouro aboliu a ala dos índios-preguiça. (ANEXO X)

A crônica de Léo Montenegro no mesmo domingo de Carnaval (ANEXO XI) ironiza,

no melhor estilo reconhecido como ficção jornalística (PENA, 2006), a censura, que tanto

estava incomodando os integrantes das escolas e os espectadores do Carnaval moradores do

subúrbio. Em texto ousado, usa palavrão (“porrada”) e insinua cena de sexo da costureira de

um bloco imaginário do subúrbio com o marido. Mesmo com o espaço de texto limitado pelas

poucas linhas, restrição típica da crônica publicada em jornal, fala diretamente da censura

governamental contra a citação da violência urbana no desfile da Marques de Sapucaí. Quem

faz referência à violência urbana, com destaque para o armamento pesado dos bandidos, é o

presidente do bloco imaginário:

“Quero todo o mundo sambando e cantando o samba dos nossos compositores que, por coincidência, são do cerol aqui da área!” [Ou seja, fala que os compositores são bandidos assassinos, usando gíria do subúrbio e do morro]. Um magricela

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[personagem caracterizado pelo tipo físico], célere: “Concordo! Afinal, eles queimaram as pestanas pra fazer o samba, ficaram dias e noites sem dormir e ainda tiveram que ameaçar a comissão julgadora com aqueles fuzis pro samba deles ganhar!” (ANEXO XI)

Diante do exposto, cabe sublinhar que os textos acima discutidos, escritos para serem

lidos nos momentos de folga dos leitores dos jornais, muitas vezes retratam rotinas, práticas

ou cenas nas quais seus personagens estão também em momento de descanso do trabalho, de

tempo livre. Fazem este exercício exatamente para retratar questões relevantes para esses

leitores de jornal.

São questionamentos que muitas das vezes não cabem na exaustiva rotina do mundo

do trabalho e que são evitados nos momentos de folga por carregarem certa dosagem de

conteúdo perturbador e tenso. No recorte proposto, viu-se nos textos selecionados densa

reflexão sobre a sociedade de massas. Nos exemplos pinçados para esta reflexão, pode-se

observar como, em crônicas aparentemente descompromissadas, Lima Barreto destacou o

racismo existente no aparente paraíso de tolerância étnica localizado no Rio de Janeiro dos

primeiros anos do século XX que sucederam o fim da escravidão; como João Antônio ligou

os abusos e erros da ditadura militar à prática da polícia militar dos anos 80; e como Léo

Montenegro mostrou que a censura pode se tornar bem mais agressiva que a violência

criminal que se expandia no mesmo Rio nos últimos anos do mesmo século XX e primeiros

anos do século XXI. E ainda como o luxo do desfile das Escolas de Samba do Rio dos anos

90 do Século XX contrasta com a precária infraestrutura urbana dos bairros onde estas

mesmas agremiações fazem ensaios, mantêm suas sedes e onde seus apaixonados integrantes

residem.

Cabe observar ainda que os autores citados escreveram sobre temas densos, mas,

mesmo assim, muitas vezes foram criticados, em um primeiro olhar, pela falta de

aprofundamento e pela qualidade questionável da narrativa. São textos que posteriormente

tiveram suas críticas negativas revistas para apontar neles a realização de relevantes

questionamentos, verdadeiros presentes reflexivos para os amantes do cronismo, sejam eles

amantes das escritas ácidas de Lima Barreto e João Antônio ou das carnavalizadas histórias de

Léo Montenegro.

Ao fazer dos textos desses autores elementos alegóricos de uma constatação (são

efêmeros porque escritos para jornal, mas nem por isso se furtam de profundidade reflexiva),

busca-se ainda estimular releituras dessas obras. Com esse mesmo objetivo cabe olhar para os

cronistas e, mantendo a atenção sobre textos que tratam do Carnaval, pontuar como os três

usam a inversão típica da festa de Momo para alcançar temas densos, criticar situações e, com

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isso, propor e consolidar ideias sobre esses temas, próprios do subúrbio, e até mesmo sobre o

Carnaval carioca.

4.2 Samba em prosa

Como já dito, a inversão típica da festa de Momo serviu de instrumento para o

cronismo, especialmente os autores que ambientaram seus textos nos bairros do subúrbio,

como Lima Barreto, João Antônio e Léo Montenegro. Com seus olhares voltados para essa

região do Rio, a festa momesca, solar para os moradores daquele pedaço da dita Cidade

Maravilhosa, despontou como temática perfeita para seus textos críticos. Desta forma

terminam, a exemplo dos chamados cronistas de Momo, ajudando na consolidação da ideia de

Carnaval e, com isso, da própria representação de subúrbio que defendem em suas crônicas.

Antes de iniciar tal análise cabe destacar o que se entende nesta pesquisa como

cronista de Momo e porque há como distinguir Lima Barreto, João Antônio e Léo

Montenegro desses cronistas, mas sem afastá-los totalmente dessa tradição. Termo utilizado

pelo pesquisador Eduardo Granja Coutinho (2006), cronista de Momo é uma forma a se

referir aos jornalistas que no fim do século XIX e início do século XX tinham como tema

central o Carnaval e seus personagens para suas crônicas diárias na imprensa do Rio de

Janeiro.

Jornalistas também o eram Lima Barreto, João Antônio e Léo Montenegro. Sobre

Carnaval tanto um quanto os outros dois escreveram. Mas, diferentemente dos cronistas de

Momo tradicionais do início do século XXI, como João Ferreira Gomes (o Jota Efegê), o mais

longevo do grupo, e Jamanta (José Luiz Cordeiro), os três cronistas analisados nesta pesquisa

não falam da festa em si, ou da tentativa do poder público de discipliná-la. Vão usar o

Carnaval como mote para tratar de diferentes temáticas, que vão do estado de conservação de

ruas suburbanas ao preconceito racial, como já observado.

Se os autores das chamadas crônicas carnavalescas atuaram, segundo Coutinho, como

mediadores (COUTINHO, 2006, p.25) e a serviço da conciliação dos interesses disciplinantes

com os próprios promotores da festa popular de Momo, Lima Barreto, João Antônio e Léo

Montenegro vão em outra direção, apesar de em seus textos, como os seus pares cronistas de

Momo, também construírem para toda a sociedade a imagem do Carnaval a partir de relatos

feitos por e sobre quem faz a festa e a perpetua. Com isso, noticiam sobre as práticas

carnavalescas e em nada se aproximam da missão de disciplinar a festa, muito pelo contrário.

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É interessante observar ainda que, nos primórdios, a mediação feita pelos cronistas de

Momo ocorre num momento em que o Estado tentava abolir das reformadas ruas do Rio de

Janeiro mais de uma manifestação carnavalesca popular, negra e, muitas vezes, agressiva. Por

isso, Lima Barreto, crítico militante e ácido dessa mudança, vai tirar proveito da temática para

disparar contra o afrancesamento do Centro do Rio e o abandono da periferia da cidade, o

subúrbio dos trens da Central para onde seria descolocado o Carnaval popular (onde hoje está

a maior parte das quadras das escolas de samba do Rio) e onde se instalariam também os

agressivos grupos de bate-bolas, herdeiros mais civilizados, apesar de ainda violentos, dos

adeptos do entrudo (festa, como já dito, rudimentar do Carnaval de rua do século XIX,

marcada pelo confronto de escravos e ex-escravos contra eventuais encartolados que

encontrassem nas ruas).

Diferentemente dos cronistas de Momo, Lima Barreto, João Antônio e Léo

Montenegro não estão empenhados na fixação dos conceitos de Grande Carnaval e Pequeno

Carnaval, que segundo Maria Isaura Pereira Queiroz, em sua obra “Carnaval Brasileiro: o

vivido e o mito” (QUEIROZ, 1992), era um esforço que se arrastou do fim do século XIX à

década de 30 do século passado. Os cronistas de Momo estão entre os empenhados na tarefa

de legitimar as associações populares do chamado Pequeno Carnaval, fixando o conceito na

comparação do Grande Carnaval, da elite. Com isso, o violento entrudo, forma de brincar o

Carnaval popular desde o império, ia sendo abolido do Brasil, que passava por um processo

de pretensa civilização. Lima Barreto vai por caminho distinto e João Antônio bem como Léo

Montenegro, seus sucessores, o acompanham.

Os três olham o Carnaval dentro da ótica da cidade dividida, ou partida. As

associações populares de Carnaval, como a própria população pobre do Rio, iam sendo

banidas dos cortiços e sobrados da área do Estácio, da Praça XI, da Lapa e da Praça

Tiradentes para áreas mais afastadas do subúrbio, “higienizando” o Centro da Capital. Vão

mostrar esse universo que, na legitimação dos desfiles de Carnaval (permitido no Centro da

cidade somente para as associações e, posteriormente, para as escolas de samba oficiais,

reconhecidas pelas autoridades municipais), ignora a rotina dos sambistas nas áreas

suburbanas.

Feita a distinção acima, cabe, portanto, inserir os três cronistas aproximados nesta

pesquisa em um conceito que reconhece seus textos como samba em prosa. Falam de

Carnaval para falar do subúrbio, falam das pessoas para falar de suas vidas humildes, uma

realidade oculta para a maioria dos moradores da Zona Sul do Rio e dos frequentadores da

imponente área central da cidade, insistentemente retratada em crônicas de outros autores.

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Lima Barreto, João Antônio e Léo Montenegro fazem em seus textos que tratam

abertamente de Carnaval o que pode ser conferido em lindos sambas como, por exemplo, o

“Geografia Popular”, de Marquinhos de Oswaldo Cruz, Edinho Oliveira e Arlindo Cruz

(ANEXO XII). Este samba, a despeito de procurar o sambista Aniceto (com o refrão “Gente

boa, onde Aniceto está?”), em uma homenagem póstuma a ele, faz um divertido passeio pelos

bairros suburbanos. No melhor do estilo consagrado por Léo Montenegro e dentro da temática

de Lima Barreto e João Antônio, o samba diverte, mas crava que os bairros citados ficam bem

longe (da onde?) do Centro, são o lugar onde os sambistas “se escondem”. Fala do trem lento

que custa a chegar “lá na Central”, provocando “a maior canseira”.

As temáticas de sambas, como o citado “Geografia Popular”, com seu ritmo em verso,

são facilmente encontráveis nas obras de Lima Barreto e Léo Montenegro, e estão presentes

em menor número no cronismo de João Antônio.

Lima Barreto, em uma de suas crônicas, intitulada “O Morcego”, de 1915, vai também

em busca de um folião, o oficial dos Correios, conhecido como Morcego.

Ao aproximar-se o Carnaval, Morcego sai de sua gravidade burocrática, atira a máscara fora e sai para a rua. A fantasia é exuberante e vária, e manifesta-se na modinha, no vestuário, nas bengalas, nos sapatos e nos cintos. E então ele esquece tudo: a pátria, a família, a humanidade. (ANEXO XIII)

Se no samba contemporâneo, Aniceto servirá para mostrar a demora do trem e os

bairros esquecidos, Morcego, de Lima Barreto, não ficará atrás. Não se furtando de sua crítica

ácida contra o poder vigente, o cronista do início do século XX, encerra seu texto fazendo de

Morcego um ícone contra o positivismo que marcava então a recém proclamada República

Brasileira: “A vida não se acabará na caserna positivista enquanto os “morcegos” tiverem

alegria...”.

Em outra crônica, Lima Barreto, no melhor estilo das temáticas dos sambas de partido

alto, constrói uma narrativa a partir de notícias de jornal sobre crimes passionais, agrupados

pela localização ou pelo fato de ocorrerem durante o Carnaval, festa dos amores passageiros e

da moral afrouxada. Ante o caso do rapaz de Deodoro, que “quis matar a ex-noiva e suicidou-

se em seguida”, do outro “rapaz que atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio,

matando-se em seguida”, e de um outro jovem “ também, pelo Carnaval” que atirou na ex-

noiva e matou-a, Lima Barreto vai condenar a agressão contra as mulheres e protestar contra a

valentia masculina:

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Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação. O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido. (ANEXO XIV)

Por fim, Lima Barreto encerra a crônica com um apelo que soa atual: “Deixem as

mulheres amar à vontade. Não as matem, pelo amor de Deus!”

Crítico ácido, Lima Barreto olha para a festa de momo com rigor, mas também

condena apenas o que chama de mediocridade do Carnaval de então, já disciplinado pelo

poder público:

Não partilho da opinião da polícia, nem muito menos tenho os melindres pudibundos da “Liga” do Sr. Peixoto Fortuna; o que me aborrece mais no atual Carnaval é a conclusão a que fatalmente chego ao ouvir as suas cantigas, sambas, fados, etc., ao ouvir toda essa poética popular e espontânea, de não possuir o nosso povo, a nossa massa anônima, nenhuma inteligência e de faltar-lhe por completo o senso comum. Mete horror semelhante pensamento. O ponto de vista de imoralidade e chulice pouco me preocupa: o que me preocupa é o intelectual e artístico, tanto mais que, se este, segundo as suas forças, fosse obedecido pelos nossos bardos carnavalescos, certamente a imoralidade e a chulice ficariam atenuadas e disfarçadas. Tal coisa, porém, não se dá; e na impossibilidade devido à polícia de entoarem coplas francamente pornográficas e porcas, não têm os rapsodos Carnavalescos outro recurso senão lançarem mão de estribilhos e cantigas sem nexo algum. Uma tal pobreza de pensamento no nosso povo causa a quem medita piedade, tristeza e aborrecimento. Por isso fugi ao Carnaval e ele agora me é indiferente. (BARRETO, 2004, p. 137)

João Antônio escreveu crônicas sobre Carnaval sobretudo na coluna Corpo-a-Corpo,

publicada no jornal carioca Última Hora (UH), entre março e setembro de 1976. Os textos

estão no acervo do autor doado pela família à Unesp/Assis (SP) e na Biblioteca Nacional do

Rio de Janeiro. É notório ainda o texto que dá nome a um dos livros do autor: “Zicartola”

(ANTÔNIO, 1991).

Na produção para o UH, uma das crônicas chama a atenção pela clara referência ao

Jogo do Bicho, também facilmente encontrável nos textos de Léo Montenegro. Na crônica

“Sonhar com rei dá leão”, publicada na edição que circulou entre os dias 12 e 15 de março de

1976, João Antônio vai falar da vitória da escola de samba do grupo especial do Carnaval

carioca Beija-Flor, de Nilópolis, cidade da Baixada Fluminense. Naquele ano, em plena

ditadura militar, o samba era explicativo sobre o então proibido Jogo do Bicho. Este foi o

primeiro campeonato vencido pela escola de Nilópolis e, na letra, o samba saudava o bicheiro

histórico Natal, patrono da Escola de Samba Portela, do subúrbio carioca de Madureira. João

Antônio vai, em sua crônica, destacar, com refinada ironia, a liberdade experimentada então

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pelo Jogo do Bicho no Rio, sem qualquer repressão, apesar de estar proibido desde a década

de 1940, como crime previsto no Artigo 58 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3

688, de 3 de outubro de 1941).

A franqueza, a ótica rude e suburbana, quase marginal, com que Neguinho [intérprete de samba da Beija-Flor] vê a brincadeira do bicho e do samba (atenção, sabidos: o ludo, não é isso?) sempre de mãos dadas é, neste pobre entender, um dos

momentos mais fortes em que a essência dessa coisa samba já se viu auto-retratada. (ANTÔNIO, na edição de Última Hora de 12 a 15/03/1976)

Em raciocínio complexo, o cronista João Antônio mostra o quanto de resistência e

enfrentamento há no samba e mesmo na vitória consagradora da escola de Nilópolis, que até

então não ganhara nenhum dos desfiles do grupo principal do Carnaval carioca. Faz isso,

rememorando Lima Barreto e naturalizando o hábito consolidado, não só no subúrbio, mas em

todo o Rio, das apostas no Jogo do Bicho.

Nas manhãs, eu arrancava a camiseta e ficava lendo, debaixo do sol, alguma bruzundanga de Lima Barreto. Corria o ano de 71 e eu me aferrava de amores pela obra do mulato tão suburbano, tão Central do Brasil, tão Zona Norte e tão nacional. Se me cansava, tocava para a terapêutica ocupacional, jogava baralho, sinuquinha, levava uns papos. Era hora ainda da fezinha no jogo do bicho. (ANTÔNIO, na edição de Última Hora de 12 a 15/03/1976)

Na crônica “Zicartola” (ANTÔNIO, 1991), sobre o bar dos primeiros anos da década

de 60 aberto na Rua da Carioca, no Centro do Rio, pelo sambista e compositor Cartola, e sua

mulher, d. Zica, João Antônio vai evidenciar o que posteriormente se popularizou chamar de

cidade partida24. A despeito de contar, em junho de 1989, como o bar que nascera das rodas

de papo de Cartola e do tempero de d. Zica, e atraía sambistas e bicheiro da Zona Norte, fora

perdendo o encanto por entrar na moda entre moradores da Zona Sul, o cronista revela uma

crítica ácida. Logo no início fala de samba censurado pela ditadura militar para depois citar o

que chamou de bando de “falsos sabidos” que tirariam o ar boêmio do bar e até mesmo do

ilustre casal mangueirense. É que os “bem-comportados da classe média” teriam levado o

casal a formalizar a união no papel porque não era de bom tom “relacionar-se com um casal

amigado”.

24 Termo usado por alguns autores da sociologia urbana para definir entendimento segundo o qual o Rio de Janeiro seria uma cidade dividida em duas, de acordo com as classes sociais, os bairros e os grupos culturais. O termo se popularizou após o lançamento, em 1994, do livro Cidade Partida, do jornalista Zuenir Ventura, sobre a dicotomia entre morro e asfalto existente entre moradores da favela de Vigário Geral, da Zona Norte, onde ocorrera um ano antes uma chacina, e ativistas contra a violência, moradores da Zona Sul. (VENTURA, 1994)

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Pegou bem, já que deu reportagem em segundo caderno das folhas da imprensa chamada grande. Pegou mal e atravessado_ camaradinhas decentes entenderam tudo e houve constrangimentos. Afinal casar-se para dar satisfação aos outros, a uma corriola mal chegada, de novo. (ANTÔNIO, 1991, p.29)

Nas últimas linhas da crônica, João Antônio até experimenta um tom nostálgico,

lembrando sobretudo da genialidade de Cartola, que havia morrido em 1980, nove antes da

crônica “Zicartola” e 20 anos depois do fechamento do bar.

O tema Carnaval também foi recorrente na obra do cronista Léo Montenegro e ganhou

destaque ainda maior após o jornal carioca O DIA, onde Léo publicou todos os seus textos,

passar para o controle do jornalista Ary Carvalho, no fim dos anos 80, e gradativamente ir

abandonando o perfil policial que o marcara nas duas décadas anteriores. Nos anos 90 e nos

primeiros anos do século seguinte, portanto, cem anos após Lima Barreto também escrever

crônicas sobre a Festa de Momo na imprensa carioca, o assunto Carnaval passou a ser lido nas

crônicas de Léo no DIA com mais frequência, mesmo em datas de pequena mobilização

popular para os festejos de Momo, como os meses de inverno. Era previsível, portanto, que

períodos que antecediam a festa popular e nos logo posteriores a ela seus textos com citações

e personagens envolvidos com o Carnaval aumentassem consideravelmente em número,

levando à conclusão possível de que o autor buscava traduzir o subúrbio com os assuntos que

são mais lembrados na região da cidade do Rio no período temporal em que eles estavam

mais em evidência.

Nas crônicas de Léo, a exemplo das de Lima Barreto e João Antônio citados nesta

pesquisa, não há movimento em direção à legitimação da festa controlada pelo poder público.

Com as características que marcariam toda a sua obra, Léo Montenegro usaria personagens

com nomes insólitos, texto com sinais de oralidade e vocabulário popular e o humor simples

com desfecho apresentando personagens presos, internados em hospitais ou simplesmente

envolvidos em brigas ou confusões, para falar de como a festa deslocada para o subúrbio não

se livra de espertalhões e malandros, apenas sai de cena do higienizado centro do Rio.

Esse é o caso da crônica “A grande eleição” (ANEXO XV), de 16 de janeiro de 1997.

Um “negão”, termo politicamente incorreto mesmo para aquele ano, é eleito presidente do

bloco, tendo disputado o cargo com um gay e um comerciante emergente. Ao narrar a

situação, Léo Montenegro vai insistir no improviso do Carnaval deslocado, mas também da

relação do comando da festa com a “compra” de votos em troca de favores, ainda tão comum

na política suburbana. No texto, um dos candidatos sentencia que, se ele for eleito, “ninguém

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mais vai precisar pegar trem pra desfilar naquele fim de mundo, porque vai tudo na minha

Kombi”. Quatro personagens tentam a presidência do bloco. Identificados por suas

características físicas ou papel na comunidade local – negão, gay, quitandeiro e gordão –

disputam a eleição que seria ganha pelo primeiro deles. Pitoresco, porém, é o surgimento de

um novo personagem suburbano que já começava a frequentar as páginas informativas do

matutino, o emergente. É ele quem oferece a Kombi e simboliza no texto os novos ricos da

periferia.

A exemplo de Lima Barreto e João Antônio, Léo Montenegro vai usar as crônicas

sobre Carnaval para expor os problemas do subúrbio, disparando preferencialmente farpas

carnavalizadas contra governos e administradores municipais e contra a elite do Carnaval

representada pelas grandes escolas de samba. Esse é o caso da crônica “Os Buracos”,

publicada em 15 de fevereiro de 1996, sexta-feira antes do Carnaval (ANEXO XVI). Nela, o

presidente de um bloco não nomeado evidencia a pouca preocupação da gestão municipal de

então com o Carnaval do subúrbio. A despeito de fazer obras na cidade, as ruas por onde

passaria a agremiação carnavalesca estavam cheias de buracos abertos simultaneamente sem

aparente planejamento viário ou momesco. Em momento raro, o destinatário da crítica, o

prefeito do Rio de então, é nomeado. Primeiro por atrapalhar o transporte coletivo no bairro

(“... a rua onde passa o ônibus tá assim de buracos abertos pelo Cesar Maia!”). Depois por

atrapalhar o próprio Carnaval: “— Esse ano a pessoa do bloco não sai, por causa dos buracos

do Cesar Maia! E não vai sair mesmo”.

Nessa crônica exemplar, Léo Montenegro, a exemplo de Lima Barreto e João Antônio,

contribuirá para a construção da ideia sobre essa região do Rio e sobre seus moradores

presentes neste recorte do cronismo ora estudado, o subúrbio feito letra. Que ideia é essa, e

como ela desponta nos textos, é para onde esta pesquisa aponta. Mas, antes, cabe uma pausa

para refletir sobre a relação da crônica com o ambiente urbano, a “cidade feita letra”, como, já

dito aqui, definiu o teórico Eduardo Portella.

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5 A CIDADE COMO TEMA

A relação das crônicas com a cidade, já abordada nesta pesquisa, segue uma tradição

que aproxima o gênero aqui estudado ainda mais do jornalismo e da literatura. Tal ligação

está atrelada ao fenômeno da urbanização expressiva e massiva ocorrida notadamente no

século XIX. É nesse espaço geográfico conhecido como cidade que o jornalismo iniciará sua

industrialização. O jornal como veículo de massa tem no contexto urbano seus assuntos, seu

público-alvo e seus repórteres-autores. Na literatura, tal espaço vem enquadrar personagens e

ações, que encontram no inglês Charles Dickens e nos franceses Émile Zola e Honoré Balzac

forma tal que a cidade se eleva ao status de espaço romanesco.

Diferentemente do campo, área rural, a cidade tem como característica a população

mais densa, com habitantes mais próximos, e uma geografia tal que os limites são outra

cidade ou o campo, o que, de certa forma, organiza seus moradores e as relações sociais.

Surgidas ao longo dos séculos, impulsionadas pelo comércio em larga escala e consolidadas

com áreas em expansão após a industrialização, as cidades se impõem na contemporaneidade

como espaço principal na grande maioria das nações.

A cidade é ainda um espaço simbólico, com códigos próprios, lugar da comunicação,

dos conflitos sociais urbanos, de troca de experiências. É a resposta ao questionamento “onde

ocorreu”25 presente na abertura dos textos jornalísticos. Mais que uma informação geográfica,

este “onde” na narrativa carrega um jogo de representações, é o lugar da troca, das

afetividades, da vivência, na concepção de Marc AUGÉ (2012), quando diferencia lugares e

não-lugares.

Recorrendo a Ítalo Calvino, e sua obra “Cidades Invisíveis” (2003), cabe destacar que

a cidade é ela própria um discurso porque a cidade e seus discursos próprios se confundem. A

partir de Roland Barthes, é possível acrescentar:

A cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, nós falamos à nossa cidade, a cidade onde nos encontramos simplesmente quando a habitamos, a percorremos, a olhamos (BARTHES, 1987, p.184).

É facilmente identificável tal definição com o modo de produção que se sabe em torno

das crônicas como se concebe neste trabalho. Cronistas brasileiros que escolheram o Rio de

25 No jornalismo, o agrupamento de informações de forma mais direta e objetiva na abertura das reportagens é chamado de lide, que carrega, como regra, respostas aos questionamentos: 'O que?, Quem?, Como? Quando?, Onde? e Por que?.

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Janeiro como lugar privilegiado para suas obras se empenham a auscultar a cidade-musa do

Rio, buscando os sussurros trocados entre ela e seus habitantes ou simplesmente flanando por

suas ruas, observando as pessoas e os lugares que encontram pelo caminho.

É instigante perceber como o paulista João Antônio percorre e encontra em suas

crônicas uma mesma cidade tanto na periferia de São Paulo quanto nos subúrbios do Rio de

Janeiro. Está na obra desse repórter-cronista um objeto exemplar para identificar nas crônicas

a definição do filósofo Ludwig Wittgenstein (1995), segundo a qual os limites da cidade são

os limites da linguagem. Por isso, a periferia de São Paulo e o subúrbio do Rio de Janeiro,

regiões tão distantes, ficam tão próximas para o público leitor na obra de João Antônio.

O mérito dessa aproximação pela linguagem de áreas tão distantes geograficamente

recai sobre o cronista flaneur que, perambulando pela cidade, sobretudo pela parte suburbana

dela, se torna agente da interpretação da realidade urbana. Partindo desse princípio, nota-se

que tais autores, entre eles o próprio João Antônio, Lima Barreto e Léo Montenegro,

assinaram, para o sucesso efetivo de suas obras, uma espécie de contrato com a alteridade

formada por seus leitores em jornais e personagens retratados em seus textos. Um contrato de

fidedignidade que, se fosse quebrado, certamente eles não seriam lembrados hoje em dia.

Esse retrato feito pelas crônicas faz os textos, recorrendo ao pensador católico Michel

de Certeau (1994), retratarem as práticas cotidianas na cidade, como o simples caminhar pelas

ruas ou mesmo o rotineiro hábito de cozinhar. Essas crônicas e seu discurso urbano fazem

entender melhor a definição, já citada nesta tese, do crítico Eduardo Portella (1958), segundo

a qual as crônicas são a cidade feito letra.

Buscando apoio no jornalismo, notadamente na questão da representação da

representação segundo defende o professor Caio Túlio COSTA26, é notar que o cronista, em

seu trabalho de observador, vai elaborar, em suas obras, um modelo de representação em que

empresta seu olhar para os acontecimentos da cidade e inúmeras vezes insere em seus textos

histórias que ouviu contar em primeira ou segunda mão, ambas carregadas de representações

de quem as contou. E este olhar do cronista passa a fazer parte também desta cidade como

discurso na medida em que espelha, na narrativa, um emaranhado de representações, ora

reforçando estereótipos ora apontando outros pontos de vista.

É esse emaranhado de representações que fez o poeta Carlos Drummond de Andrade

dizer que seu flanar pela cidade era comparável ao andar dentro si. É esse mesmo emaranhado

26 http://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2014/05/Jornalismo-como-representa%C3%A7%C3%A3o1.pdf, acesso em 12 de dezembro de 2014

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que faz das cotidianas histórias eternizadas nas crônicas obras que se comunicam diretamente

com os leitores, sejam eles da efêmera imprensa ou dos permanentes livros. É uma relação de

cumplicidade entre autor e leitor, um entendendo a representação que o outro faz da cidade.

Com isso não parece exagero identificar nos leitores fiéis dos cronistas uma relação de

amor aos textos que, em última análise, é também uma relação de amor à cidade onde esses

leitores vivem e que está retratada nas despretensiosas crônicas. Estão presentes nesta

narrativa dispositivos de identificação que reforçam este elo, na medida em que tais leitores

encontram na crônica os rastros de cotidiano do local em que vivem e seus ambientes de

convivência retratados.

As crônicas são autorais, são textos sobre o cotidiano assinados por seus autores, que

passam a ser então conhecidos do público leitor. Essa identificação também reforça o elo de

ligação entre cronista e leitor que, ao abrir o jornal, sabe quem está lhe contando aquela

história, a ponto de não ser raro o leitor dizer que vai ler tal autor, e não determinado texto.

Na crônica, tanto autor quanto público são seduzidos pela cidade-musa retratada. Tal

constatação leva a pesquisa a resgatar um filme nacional de 50 anos atrás. Data de 1965, ano

em que Léo Montenegro iniciou sua trajetória como cronista, a estreia no cinema do filme

“Crônica da Cidade Amada”27, que começa com um samba do compositor Taiguara. De

versos com fácil memorização, a letra chama o sambista de cronista musical desta cidade (o

Rio). E prossegue: “Cantor da Praça Onze,/Do Estácio/ E do Salgueiro/Cronista musical do

Rio de Janeiro”. Diz que o jornal, o livro e mesmo a película do cinema servem de “livro de

ouro”, que oferece “a crônica da cidade amada”. Nesse caso, não estaríamos longe da ideia de

que a crônica, no Rio, seria então o samba em prosa.

O professor Renato Cordeiro Gomes, em seu trabalho “Todas as cidades, a cidade –

Literatura e experiência urbana”, de 1994, teoriza sobre a legibilidade das cidades através de

textos ficcionais, como crônicas, iguais às que inspiraram o filme de 1965 de Carlos Hugo

Christensen. Nesse trabalho, Cordeiro Gomes vai se demorar sobre o caso do Rio, cidade-

musa de eminentes escritores desde o século XIX até os dias de hoje, em um conjunto de

registros que vão dos cenários ao ambiente psicológico de seus habitantes, deixando para mais

27 Filme brasileiro dirigido por Carlos Hugo Christensen, com roteiro do jornalista Millôr Fernandes, “Crônica da Cidade Amada” foi construído a partir de crônicas de Carlos Drummond de Andrade, Orígenes Lessa, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Dinah Silveira de Queiroz e Paulo Rodrigues, este com apenas uma crônica, intitulada “Um pobre Morreu”, com narração do ator Paulo Autran. A obra reúne onze situações inspiradas na vida carioca. No elenco, Oscarito e Grande Otelo. Nas esquetes estão presentes a praia, o dinheiro falso, a favela, o malandro carioca, o adultério, a paixão pelo futebol e as cenas pitorescas vividas no deslocamento pela cidade, cenas que evidenciam a estreita relação da crônica com o ambiente urbano e a preferência que essa cidade seja o multifacetado Rio de Janeiro. A trilha sonora de Taiguara evidencia a relação dessa cidade-musa com o samba.

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de uma geração de leitores retratos históricos e pessoais, que fariam a professora Beatriz

Resende cravar o Rio como “cidade da crônica”.

Voltando ao pensamento de Cordeiro Gomes, presente também no prefácio que fez na

edição de melhores crônicas de Marques Rebelo, autores, como o homenageado na coleção

que organizou, levam para seus escritórios uma cidade inteira, “com seus costumes e músicas,

a tristeza e o pitoresco, o ar, o paladar, o odor do ajuntamento humano” (GOMES, 2004, p. 9-

17). E tal cidade não é outra senão o Rio.

Numa entrevista a Clarice Lispector, falando sobre o bairro em que nasceu e outros onde morou, Marques Rebelo diz que “cada bairro tem uma personalidade própria: o Rio é uma cidade com muitas cidades dentro” (Jornal do Brasil, 30 jun. 1976). Parece que a declaração vem confirmar a geografia física e humana, bem como a cartografia afetiva de sua obra. (GOMES, 2004, p.10)

O Rio de Janeiro é o melhor “ponto de vista” para os cronistas. Foi o poeta Carlos

Drummond de Andrade (1984, p. 120) quem melhor definiu a evidente preferência dos

cronistas por ambientar suas histórias na cidade-musa. Estudos clássicos já levantaram

hipóteses concretas explicando essa predominância do cenário carioca, mesmo nos textos de

autores nascidos em outros estados, como o próprio mineiro Drummond. Em resumo,

apontam o fato de os jornais que mais dedicam espaço a crônicas estarem sediados no Rio

como uma das explicações. Também atribuem à característica ao fato de o Rio ter sido a

capital do país de 1763 até abril de 1960, o que compreende todo o período de implantação da

imprensa brasileira. A pesquisadora Beatriz Resende, em estudo sobre Drummond cronista,

aponta ainda o Jornal do Brasil, sediado no Rio, como o “grande espaço para a crônica”, seja

por sua paginação bem cuidada, seja pela visibilidade que proporcionava, sobretudo, nas

últimas cinco décadas do século passado.

É falando do Rio de Janeiro que os cronistas encontram sucesso. É como se fosse importante tornar-se carioca para ser um cronista de visibilidade nacional. Mas, como já dizia Vinícius de Moraes, um dos raros cronistas cariocas nascidos realmente no Rio, “ser carioca é antes de mais nada um estado de espírito”. E diz, ainda, na mesma crônica, que, “para ser carioca, mais do que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade”. E exemplifica: “Eu tenho visto muito homem do Norte, Centro e Sul acordar de repente carioca, porque se deixou envolver pelo clima da cidade e quando foi ver...kaput! Aí não há mais nada a fazer”.(RESENDE, 2002, p. 77)

O Rio predominante das crônicas é o do efervescente centro político e cultural. É o da

Livraria José Olympio, o da interferência do poder público na cidade nas gestões do prefeito

Pereira Passos e seus sucessores nos primeiros anos do século XX, o da malandragem

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radicada nos bairros do Estácio e Catumbi. Em plano também muito recorrente, está o Rio da

Zona Sul, das praias, das belezas naturais e seus charmosos habitantes, sejam lindas banhistas,

surfistas profissionais ou sofisticados engravatados. Ainda falando do cronista Drumnond,

Beatriz Resende sublinha.

Quando Drummond publica, porém, o seu primeiro livro reunindo crônicas, Fala Amendoeira, em 1957, dedicado a Paulo Bittencourt, diretor do Correio da Manhã, onde os textos tinham sido publicados, o Rio de Janeiro já é personagem de destaque, com suas alegrias, prazeres e problemas. Lá estão a Rua São José e seus sebos, a Livraria José Olympio, prestes a desaparecer, ainda que a editora permanecesse, a Praia do Arpoador, cujo desaparecimento, sob a força do mar, o cronista prenuncia,para corrigir-se depois, crônicas sob forma de cartas (no estilo usado por Lima Barreto) ao prefeito do Distrito Federal, outra como diário, onde relata a mudança para o Posto 6 no auge na falta d’água que tanto atormentou a cidade antes da criação do reservatório do Guandu. (RESENDE, 2002, p 79 e 80)

Em estudo apresentado, em 1994, em seminário promovido no Centro Cultural do

Banco do Brasil (CCBB), no Centro do Rio de Janeiro, a professora Beatriz Resende,

organizadora do encontro, vai defender, logo na introdução, a relação estreita da crônica com

a cidade que a inspira, uma característica que a autora resume dizendo que na crônica “a

cidade se escreve” (RESENDE, 2001, p. 11). No mesmo texto, a autora relaciona a crônica ao

Rio de Janeiro, cidade referencial, onde o jornalismo ganhou relevância desde o império, uma

importância amplificada após a reforma gráfica feita pelas empresas da década de 50, quando

começaram a surgir suplementos culturais e literários, ambientes perfeitos para abrigar as

crônicas.

De forma analítica, em estudo apresentado no mesmo seminário, RESENDE (2001, p.

38) vai localizar no tempo dois grandes momentos históricos para o cronismo, ambos tendo o

Rio de Janeiro como palco dos acontecimentos. O primeiro deles coincidindo com a Velha

República ou Primeira República (1989-1930), momento da modernização do país a começar

por sua capital, o Rio de Janeiro. São desse momento os ‘louvores’ à civilização que chegava

à antiga colônia, feitos por Olavo Bilac em suas crônicas, e também das severas críticas

disparadas por Lima Barreto, também em suas crônicas, a essa modernização, que relegou à

periferia urbana os pobres que habitavam os casarões desapropriados no Centro do Rio pelo

então prefeito Pereira Passos (que governou a cidade do Rio entre 1902 e 1906).

O segundo momento, a pesquisadora (RESENDE, 2001, p. 40) vai localizar no fim

dos anos 1950 e primeira metade da década seguinte. Reafirmando que a Primeira República

fora uma grande época para as crônicas, Beatriz Resende defende que somente nos anos que

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antecedem ao Regime Militar (1964 – 1985), o cronismo vai experimentar semelhante

popularidade e “poder de influenciar a vida da população e as decisões governamentais”.

Datam desse período obras relevantes para o cronismo nacional, como “Correio Europeu”, de

1959, do carioca Marques Rabelo (1907- 1973), “Ai de ti, Copacabana”, de 1960, do capixaba

Rubem Braga (1913-1990), e “Malagueta, Perus e Bacanaço”, de 1963, incensado livro de

estreia do paulista João Antônio (1937-1996).

É, porém, a professora Margarida de Souza Neves, em ensaio para o mesmo evento no

CCBB, que vai apontar a gênese da relação do cronismo, gênero essencialmente urbano, com

a cidade do Rio. Neves (In: RESENDE, 2001, p.26) destaca que a memória da cidade reside

na crônica. E que no caso do Rio de Janeiro e da crônica carioca essa relação termina por

intercambiar o Rio com o próprio Brasil. É como se um “argumento ou uma questão referidos

ao país como um todo possam ser exemplificados como uma referência à cidade (do Rio)”

que, tendo sido capital no sentido político, inclusive sede do Império, comumente é

metaforizada. Foi o que fez, por exemplo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao

chamá-la de “farol do Brasil”, como recorda a professora Margarida Neves no mesmo ensaio.

É essa característica que, na visão dos pesquisadores, faz do Rio a cidade da crônica,

mesmo que os paulistas citem Mario de Andrade e suas crônicas na coluna Táxis28 , tal

citação em nada ofusca a predileção de cronistas pela cidade do Rio, ambiente fértil dos

suplementos literários, cidade-mulher-musa, multifacetada e naturalmente cosmopolita, sede

de influentes jornais, como os clássicos Jornal do Brasil e O Jornal e os polêmicos Última

Hora e Tribuna da Imprensa.

Natural, portanto, que cronistas como Lima Barreto, João do Rio e Marques Rebelo

tenham a cidade do Rio como tema relevante em suas obras. Interessante é notar que

paulistas, como João Antônio, e mineiros, como Carlos Drummond de Andrade, também

elegeram o Rio como musa de suas crônicas. Ocorre, porém, que o Rio mais retratado em

crônicas é o da Zona Sul e do Centro. O primeiro, pela beleza natural e efervescência cultural;

o segundo, pela importância histórica e política cuja trajetória se confunde com a do próprio

Brasil.

Um outro Rio desponta, porém, em crônicas. Nelas prevalece um tom crítico, por

vezes, ácido, contundente e carnavalizado para evidenciar abandono em relação ao Rio da

Zona Sul e do Centro e mesmo uma esperança, ainda frustrada, que esse quadro se reverta e o

subúrbio passe a impor sua lógica. Cabe voltar ao prefácio do professor Renato Cordeiro

28 Coluna publicada no jornal paulista Diário Nacional entre 1929 e 1930.

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Gomes, para a coletânea de crônicas de Marques Rebelo, para exemplificar esse último olhar

em torno desse Rio de Janeiro partido, tão presente no cronismo.

Não é apenas a divisão geográfica que leva Marques Rebelo a fragmentar a leitura da cidade que os textos encenam. Embora apareçam, aqui e ali, os contrastes entre Zona Norte e Zona Sul, que o tempo vem acentuando e, contraditoriamente, igualando (disse Rebelo: “O cerne da vida carioca está na Zona Norte. A Zona Norte do Rio vai se ligar à Zona Sul, já se percebe essa aproximação, e não tenho a menor dúvida de que a influência vai ser o revés. A Zona Sul, que exercia certo fascínio sobre a Zona Norte, vai ser arrasada por esta. A Zona Norte vai ser a massa que vai funcionar”). (GOMES, 2004, p. 10 e 11)

Tal esperança de Marques Rebelo contrasta, porém, com outros cronistas, menos

entusiasmados com o futuro suburbano e muito preocupados e críticos com o presente desses

bairros que registram em seus textos. Sobre essas crônicas ácidas, mesmo que carnavalizadas,

a presente pesquisa identifica o subúrbio feito letra. É sobre elas que a presente tese agora se

debruça, aproximando autores e resgatando textos de modo a evidenciar uma tradição

particular, por ser nada nostálgica, dentro do cronismo suburbano do Rio.

5.1 O subúrbio feito letra

O Rio desta tese é o do subúrbio descrito nas crônicas de Lima Barreto, João Antônio

e Léo Montenegro. A própria ideia de subúrbio carioca tem em sua formação inegável

contribuição dos cronistas cariocas de nascimento ou adotados. Descrito de forma crítica por

esses três cronistas citados acima, esse subúrbio aparece em suas obras com força e

constância, não menos que em três a cada 10 textos conforme amostragem conferida pela

pesquisa. Em outros autores, como Marques Rebelo, o subúrbio vem de forma esporádica,

mesmo que apareça mais pela peculiaridade de seus moradores ou temáticas. Poeta

consagrado, Olavo Bilac (1865-1918) é outro cronista que visita o subúrbio em seus textos.

Alguns deles são exemplares, como “A festa da Penha”.29

É exatamente no período histórico em que escreve Bilac, o da virada do século XIX

para o século XX, que as crônicas começam a passar por transformações e aos poucos vão

29 Bilac estreou como cronista em 1897, nas edições dominicais da Gazeta de Notícias, substituindo Machado de Assis. A Gazeta é reconhecida como o primeiro jornal brasileiro a valorizar o jornalismo literário. Machado ocupara o espaço por cinco anos (de abril 1892 a fevereiro de 1897). O período é propício para as crônicas. Além de Machado e Bilac, escrevem suas histórias curtas nos jornais Raul Pompéia e Carlos de Laet. Esses cronistas tratavam de tudo um pouco. Da política à moda, de forma frívola em função do escasso espaço físico para reflexões mais profundas.

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ficando monotemáticas, sofrendo influência provável da redução do espaço nos jornais, cada

vez mais profissionais e comerciais, tendo seus textos reduzidos em função dos anúncios

publicitários ilustrados, que haviam estreado em 1875 e que ficavam cada vez mais

frequentes. São essas crônicas de Bilac, voltadas para um único tema, que a presente tese

destaca como exemplares da abordagem esporádica de alguns cronistas consagrados em torno

de temas relacionados à região suburbana do Rio.

Em “A festa da Penha”, o olhar crítico do poeta, em texto de 1902 sobre a procissão e

quermesse católicas, que segundo o Jornal “Paiz”30, na edição de 3 de outubro de 1897, reunia

mais de 100 mil pessoas após a entrada em funcionamento da Estrada de Ferro. Bilac seria

ferrenho opositor dos festejos religiosos, que naqueles anos pareciam se confundir com o

Carnaval por provocar imensa movimentação na cidade do Rio. Na crônica de 1902, Bilac

aborda abertamente e de forma crítica o caráter alienante da festa suburbana.

Ao menos, no dia de hoje (festa da Penha), essa gente pobre, que ganha com suor e sangue o pão que come, não se lembrará da carestia dos gêneros, nem do preço fabuloso que custa o aluguel de um quarto infecto na mais infecta das estalagens. Haverá quem possa condenar uma festa que é alegre, numa época tão fúnebre, e uma festa que dá aos pobres a ilusão da felicidade, sufocando-lhes na alma, durante doze horas, a recordação de todas as amarguras da vida? (BILAC, 2005, p. 43)

Mas que ambiente é esse a que se refere Bilac ao falar da Penha, bairro suburbano da

Zona Norte do Rio? O termo subúrbio deriva do inglês suburb e do latim suburbium, cuja

tradução literal é sub-cidade. Diz respeito a áreas que ficam ao redor do aglomerado urbano

central, com construções descontínuas, umas distantes das outras, e de menor aglomeramento

populacional quando comparado a regiões centrais das cidades. Diferentemente dos países

como Estados Unidos e Canadá, onde os subúrbios são ocupados pela classe média que mora

em casas luxuosas e não apartamentos, no Brasil, como nos demais países da América Latina,

os subúrbios são marcados pelas vilas operárias, pela falta de infraestrutura e pelas casas

simples e população de menor renda.

Nas metrópoles brasileiras, descreve o professor Flávio VILLAÇA (2001), o subúrbio

decorre de um processo de segregação, com as classes mais ricas ocupando as melhores áreas

da cidade. No caso do Rio de Janeiro, a orla foi a escolhida pela elite. Como a área central

30 Lançado em outubro de 1884, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), pelo conde de São Salvador de Matozinhos, nome nobre do empresário João José dos Reis Júnior, o jornal O Paiz é considerado o mais importante entre os que tiveram o mesmo nome. Assumiu papel governista na República Velha, sendo de forte influência na opinião pública entre o fim do século XIX e o começo do século XX. Foi fechado pela Revolução de 1930 em novembro de 1934.

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urbana foi destinada a edifícios comerciais e do governo, teatros, museus e biblioteca, os

grupos de menor renda foram sendo empurrados para áreas de baixo interesse imobiliário,

especificamente os bairros suburbanos e as favelas.

Após estudo do jornalista Zuenir Ventura de 1994, teóricos de mais diferentes matizes

identificaram o subúrbio do Rio como parte menos favorecida da chamada cidade partida,

espécie de hiato geográfico e social entre a Zona Sul e a Zona Norte da cidade. Neste caso, o

subúrbio é visto como cenário da tensão vivida no quotidiano da metrópole, como pontua o

professor Márcio Piñon de Oliveira, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Urbanas

(Neurb-UFF).

No passado, o subúrbio romântico, como na letra da canção “Gente humilde”, de Garoto, Chico Buarque e Vinicius de Moraes, de “casas simples, com cadeiras na calçada, e na fachada escrito em cima que é um lar”. Nos dias de hoje, espaços fragmentados, de forte conteúdo sociocultural, identificados como parte da representação da cidade, mas revestidos pela roupagem da violência e insegurança. (OLIVEIRA, 2013, p 22)

Paralelo ao conceito de subúrbio, centros urbanos como o Rio de Janeiro e São Paulo

carregam ainda o conceito de periferia, termo intimamente relacionado à distância e até de

oposição em relação ao centro da cidade, mas que, no caso das duas metrópoles, sempre é

associado à violência. Há quem defenda, como a antropóloga Regina Celia Reyes NOVAES

(2013, p. 7), que o termo periferia só seria mais usado em relação ao Rio de Janeiro após

1997, com a popularização de um rap do grupo MC Racionais cujo verso “Periferia é

periferia (em qualquer lugar)” seria emblemático. A ele, se alia o qualitativo para jovens de

áreas pobres, jovens de periferia, ligados à escassez de recursos financeiros e formação

escolar baixa, mas também a toda uma produção artística musical, cênica e plástica.

Como é possível identificar uma área de periferia mesmo na área suburbana carioca, é

fácil perceber nas crônicas que têm os bairros e as pessoas dessa região da cidade como

temática uma acidez que vai associá-los mais com a ideia de periferia do que com a de local

de nostalgia amorosa e idealização bucólica, tomando emprestados termos usados pela

professora Regina Celia Reyes NOVAES (2013). Tal visão desenha um cenário bem distante

do presente no divertido Guia Afetivo da Periferia, de Marcus Faustini (FAUSTINI, 2009).

Portanto o subúrbio da crônica é o periférico, muitas vezes violento.

O professor Márcio Piñon de Oliveira deixa ainda mais clara essa característica ao

apontar que, no Rio de Janeiro, bairros como Méier e Madureira, atendidos pelos ramais de

trem da Central do Brasil, reproduzem o que é próprio da cidade como um todo. Ou seja, não

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são espaços homogêneos.

Não são, necessariamente, a periferia social da cidade. Ao contrário do que se possa supor, esses bairros também têm as suas periferias sociais, que se espraiam para os morros e favelas e antigos conjuntos habitacionais, que também neles tomam lugar. (OLIVEIRA, 2013, p 21)

Cabe aqui uma ressalva sobre os cronistas que elegem o subúrbio como temática.

Escrevendo em épocas e contextos históricos diferentes, Lima Barreto, João Antônio e Léo

Montenegro vão retratar subúrbios diferentes. Barreto vai tratar do subúrbio em implantação,

todo ele como periferia da área central, habitado por famílias deslocadas dessa área pela

administração pública municipal. João Antônio olhará já para um subúrbio consolidado, com

sua periferia interna, no arranjo complexo que separa áreas centrais dos bairros suburbanos de

seus morros e conjuntos habitacionais, que aos poucos foram se tornando favelas e se

constituindo como áreas periféricas suburbanas. Léo Montenegro tratará, sobretudo na década

final de sua obra, de um subúrbio ainda mais densamente ocupado e uma periferia ainda mais

violenta que a retratada por João Antônio, então marcada pelo domínio de facções criminosas

e bandidos fortemente armados.

Outro complicador para entendimento dessa complexa divisão é que, desde a década

de 1960, há um conceito carioca de subúrbio bem particular. É o da professora Maria

Therezinha de Segadas Soares (1960), segundo o qual, o subúrbio do Rio abarca cidades da

Baixada Fluminense, como Duque de Caxias e Nova Iguaçu, e áreas semi-urbanas, como

regiões afastadas dos bairros cariocas da grande Santa Cruz, na distante Zona Oeste. É o

subúrbio de categoria geográfica, nada relacionado ao das crônicas, este mais identificado

com os bairros que circundam a linha férrea de passageiros, majoritariamente das zonas Norte

(Méier, Engenho de Dentro e Madureira, por exemplo) e da Leopoldina (Ramos, Olaria e

Penha), seus moradores, suas áreas centrais, sua cultura e sua periferia.

Interessante é notar que o início das crônicas sobre o subúrbio carioca coincide

exatamente com o surgimento dessa peculiar área do Rio na paisagem nacional. Adjetivados

como ferroviários, os subúrbios do Rio começaram a tomar a configuração atual a partir de

1858, com a inauguração do eixo de transporte de passageiros por trens conhecido atualmente

como Central do Brasil (antiga Estrada. Ferroviária Dom Pedro II).

Cortando áreas antes ocupadas por engenhos de cana de açúcar, a ferrovia deu origem

a bairros como Engenho Novo, que ainda guardam em seus nomes essa origem, mas também

Cascadura e Riachuelo. Outro eixo, como já dito, é o da Ferrovia Leopoldina (antiga Estrada

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de Ferro do Norte), inaugurada em 1923 e que hoje corta bairros como Leopoldina e Penha.

Por fim, a região é cortada por um terceiro ramal de trens, o da Linha Auxiliar (E. F. Central

do Brasil), que liga ao subúrbio os bairros do Jacarezinho, Pilares e Rocha Miranda.

Dado relevante na configuração que se faz hoje da área suburbana carioca

representada nas crônicas se dá na reforma empreendida pelo prefeito Pereira Passos e seus

sucessores nos primeiros anos do século XX no centro urbano do Rio de Janeiro. Conhecida

como “Bota-abaixo”, a reforma foi inspirada na feita 50 anos antes em Paris pelo prefeito

barão de Haussmann e alargou ruas da área Central do Rio de Janeiro, afrancesou novas

imponentes construções, demoliu sobrados e expulsou os pobres dos cortiços centrais para o

subúrbio. Tal movimentação será ingrediente para cronistas do período, como pontua a

professora Beatriz RESENDE (2001).

[...] Ao cronista de plantão cabe a tutela da coisa pública, a guarda do espaço da cidade. O tom pode ser mais ou menos nostálgico, a defesa mais ou menos apaixonada, nela interferindo ou não o humor, conforme as circunstâncias da demolição, da interferência do poder (público) no cotidiano do cronista, do passante, do habitante. Como a interferência do poder público na própria anatomia do Rio de Janeiro, em sucessivas cirurgias (grifo da autora) é uma constante, tal assunto nunca faltou aos nossos escritores. A derrubada do casario colonial, a construção da Avenida Central, a demolição do morro do Castelo, o violento corte que o centro da cidade sofreu para que a monumental Avenida Presidente Vargas surgisse, à custa da Praça Onze, do Paço Municipal, e de igrejas barrocas, o aterramento da praia do Flamengo, a construção da ciclovia, tudo isso pode ser rememorado, analisando, investigando, a partir dos textos dos cronistas do Rio. (RESENDE, 2001, p. 52-53)

Especificamente preocupado com a movimentação social provocada pela reforma

urbana de Pereira Passos está Lima Barreto com seu emblemático olhar sobre o subúrbio

carioca, exposto em crônicas e também em romance, como o póstumo “Clara dos Anjos”.

Especificamente a demolição do morro do Castelo serviu de porta de entrada para Lima

Barreto nos jornais de maior circulação. Foi em 1905, com uma série de reportagens sobre a

demolição, que Lima Barreto fez sua estreia no Correio da Manhã.

Lima Barreto vai ser identificado por incluir o subúrbio na vida da cidade do Rio de

Janeiro graças às suas crônicas. De acordo com Beatriz RESENDE e Rachel VALENÇA

(2004) Barreto vai colocar a vida do subúrbio como tema de seus comentários diários em

jornais. O subúrbio de suas crônicas ainda é quase rural, é o “refúgio dos infelizes” citado no

romance Clara dos Anjos (BARRETO, 1995), definição recorrentemente retomada por João

Antônio quando fala da obra barretiana e sua atenção pelos bairros periféricos. Os moradores

desse subúrbio dos primeiros anos do século XX são da classe média mais baixa, integrantes

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do operariado, os biscateiros e desocupados que passam a ganhar, com a obra de Lima

Barreto, espaço nas revistas e jornais de circulação no meio político.

É assim que na crônica “A Polícia Suburbana”, publicada no jornal Correio da Manhã

em 1914 e resgatada na coletânea Toda Crônica (RESENDE e VALENÇA, 2004), Barreto vai

destilar ironia ao comentar uma notícia segundo a qual um delegado corregedor descobrira

delegacias suburbanas “às moscas” e “comissários a dormir”. O autor vai dizer que os

policiais suburbanos “têm a razão”, uma vez que já se convenceram que a “polícia é inútil”.

Em crônica intitulada “História Macabra”, publicada na revista Careta em 1915 e

presente na já citada coletânea, Lima Barreto vai se queixar do calçamento esburacado das

ruas do subúrbio que dão acesso ao cemitério de Inhaúma, onde um amigo do cronista ia ser

sepultado. O cronista fala da dificuldade de o cortejo fúnebre seguir tendo que cortar a estrada

de ferro e mergulha no inesperado ao narrar que o caixão foi “ao chão” ao desviar de um

buraco, obrigando o cortejo a consertar o defunto no caixão, que fora “machucado mesmo

depois de morto”. Mais adiante na mesma narrativa, um dos carros do cortejo quebra o eixo

em um buraco da companhia de iluminação Light e um de seus passageiros quebra uma das

pernas. Por fim, o fantástico: “houve outras peripécias e tão emocionantes foram, que o

defunto ressuscitou” (RESENDE e VALENÇA, 2004, p. 221).

O paulista João Antônio, escrevendo em outro tempo e contexto, vai manter o olhar

crítico do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma ao tratar do subúrbio em suas crônicas.

Ora falará de São Paulo e, ora, do Rio de Janeiro.

“Para essa gente de subúrbio mesquinho, semana suada nas filas, nas conduções cheias e difíceis, cinema à tarde, pelo domingo, é grande coisa. Viaja-se encolhido, apertado. Os ônibus se enchem. Essas vilas por aí são umas misérias”, [dirá um pugilista decadente paulistano, na crônica “Busca”, publicada na coletânea “Sete Vezes Rua”] (ANTÔNIO, 1996, p, 35).

Falando da cidade partida que também define o Rio de Janeiro, João Antônio vai

tratar, na crônica “Mendigos e Mafueiros” (ANTÔNIO, 1996, p.53), de como os moradores

suburbanos são vistos pela elite da Zona Sul carioca. Ironicamente vai dar voz à elite que

refletirá sobre como sua paciência é posta à prova aos domingos, quando suburbanos saem de

seus bairros “para frequentar a democrática” areia das praias da orla.

Ela [a praia] é invadida pelo pessoal da Zona Norte, que não tem praia e nem boa sorte na vida. Já foram apelidados de farofeiros, bifes à milanesa e outros deboches. Pessoal simples, de outros hábitos, enchem-se de areia, atiram-se areia uns aos outros e sempre sobra para quem não está no brinquedo … democracia é bem difícil. (ANTÔNIO, 1996, p.53)

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Como pode-se perceber, João Antônio buscou uma identificação com os moradores

das áreas suburbanas, numa escritura identificável com homem que “cheira a povo”. Cabe

destacar a admiração nutrida pelo autor em relação à obra de Lima Barreto (a partir de 1974,

ano da segunda edição de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, o autor passa a dedicar todos seus

livros ao escritor pré-modernista).

Na década de 70, o cronista paulistano visitara o sanatório onde Lima Barreto fora

internado, no bairro da Muda, na Grande Tijuca, Zona Norte do Rio. Nesse período trabalhava

num projeto sobre Lima Barreto, autor que influenciaria seu cronismo, fase em que

notadamente recebeu severas críticas. Esse projeto resultou, em 1977, no romance “Calvário e

porres do pingente Afonso Henrique de Lima Barreto” (Editora Civilização Brasileira, dentro

da Coleção Vera Cruz de Literatura Brasileira). Na nota prévia do romance, fala dessa visita

ao sanatório e de como chegou às histórias do livro.

Este roteiro dos bares urbanos frequentados pelo amanuense Afonso Henriques de Lima Barreto, me foi passado no Sanatório da Muda da Tijuca, entre maio e junho de 1970, pelo professor Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, homem tido e havido como caduco, maníaco e esclerosado. Na mocidade, diretor político do Diário de Notícias, depois subsecretário de O Jornal. Conheceu Lima Barreto em vida e tinha setenta e dois anos quando me deu o depoimento. Os textos em destaque são dele em torno de Lima. Assim, não há aqui uma palavra minha. Como um montador de cinema, tesoura em punho, dei ritmo e respiração ao trabalho alheio. Participei, se muito, na linguagem da versão final do depoimento (ANTÔNIO, 1977, p. 17).

Incensado em 1963 logo após a publicação de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, João

Antônio migraria mais frequentemente para o cronismo após essa maior aproximação gradual

com a obra de Lima Barreto, buscando seguir os passos do pré-modernista e cultivando uma

visão tida como desalentadora do Brasil, sobretudo do Brasil que reside nos subúrbios e

periferias. O crítico literário Luiz Costa Lima (1983) é quem vai mais duramente condenar o

destino escolhido pelo autor de “Malaguetas, Perus e Bacanaço”. Vai dizer que João Antônio

poderia tornar-se “o escritor mais habilitado para dotar nossa ficção (da década de 70) da

força que Dublin soube extrair da Berlim dos anos 20 em seu Berlin Alexanderplatz”, mas se

desqualificaria por sua aproximação com o neonaturalismo.

Como pontua a pesquisadora Ieda Maria Magri em sua tese de doutorado “'Nasci no

país errado - Ficção e confissão na obra de João Antônio” (MAGRI, 2010), outra vertente,

encabeçada pelo crítico Antonio Candido, colocaria o cronismo de João Antônio como aquele

que consegue extrair da realidade o material para uma literatura capaz de mostrar o “teor de

humanidade dos excluídos”: vai dar luz e voz para os moradores do subúrbio, com ácida

crítica sobre o abandono, a violência e o preconceito experimentados por essa região do Rio e

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seus moradores.

O modo de trabalho do autor paulistano, particularmente quando se separa da esposa e

troca São Paulo pelo Rio, é lembrado por colegas de redação (como já dito anteriormente,

João Antônio trabalhou no Jornal do Brasil, nas revistas Realidade e Manchete, em O

Pasquim e outros veículos da chamada imprensa alternativa). Em depoimento para esta

pesquisa, o jornalista Nelson Vasconcelos, editor-executivo do jornal O DIA, amigo de João

Antônio desde a década de 80 até a morte do autor, conta que flanar com o João Antônio pelas

ruas do Rio era uma aula de “carioquice” e também um exercício de paciência. “Você não

tinha que ter pressa, porque ele vivia em outro ritmo”. Segundo Nélson, o cronista “falava

pelos cotovelos”:

Comentava sobre tudo e sobre todos. Abusava de sua ranzinzice cômica, os olhinhos espertos, o sorriso maroto. A crítica certeira. Às vezes, falava mais do que deveria, e em voz alta. Ficava exaltado, parecia que iria explodir de tanta indignação com os merdunchos que dominam o país. João Antônio também parava para observar belas pernas e belas bundas. Interrompia a caminhada sem cerimônia, em troca de

segundos de observação atenta. E vida que segue.31

Nelson Vasconcelos revelou, no depoimento para esta pesquisa, um aspecto pitoresco

da biografia de João Antônio, sublinhando a preocupação do autor em relação à própria obra,

mesmo quando já assumia mais o perfil boêmio e malandro, tão bem retratado em seus textos:

Nos seus últimos meses de vida, o João Antônio tentava executar um plano engenhoso. Queria comprar todos os seus livros ainda disponíveis no mercado carioca. Isso incentivaria as editoras, dizia ele, a relançar sua obra. Foi assim que fizemos vários passeios por Copacabana e pelo Centro, entrando nos inúmeros sebos que hoje fazem tanta falta. Sempre achávamos algo baratinho, a um real ou até menos, e mesmo assim João Antônio regateava. Não só por ser o pão-duro que de fato era, mas também por ser duro. Nunca deu muito certo porque costumávamos parar 'para respirar' em algum boteco do circuito e aí a caçada se encerrava. Quanto mais sórdido o boteco, melhor. Pintos no lixo.

Assim, flanando pelo Rio, João Antônio segue uma tradição ao ambientar suas

crônicas nos botecos, nos bairros do subúrbio e sua precariedade, buscando um recorte realista

em detrimento da busca literária. Uma tradição que tem Lima Barreto como expoente (como o

próprio João Antônio fazia questão de confirmar), com seu olhar peculiar, sua linguagem

coloquial e seu aguçado senso crítico de cunho social.

31 Depoimento do jornalista Nelson Vasconcelos para esta pesquisa em 2015

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Quando há mais de vinte anos fui morar nos subúrbios, o trem me irritava. A presunção, o pedantismo, a arrogância e o desdém em que olhavam as minhas roupas desfiadas e verdoengas, sacudiam-me os nervos e davam-me ânimos de revolta. (BARRETO, 1961, p. 245)

A professora Beatriz Resende (1993) defende, em outra obra sobre as crônicas de

Lima Barreto, que a análise cuidadosa da tradição iniciada pelo autor contemporâneo à

formação do subúrbio carioca revela que as crônicas referentes à vida nessa parte do Rio de

Janeiro são bem próximas do ficcional. Ela pontua que, nesses textos, os habitantes anônimos

do subúrbio são tratados como personagens. João Antônio e Léo Montenegro, portanto,

seguem a mesma tradição de tornar os habitantes anônimos do subúrbio personagens em

textos brutos, rudes e por vezes ácidos, não imaginados por moradores de áreas centrais e

mais nobres. E incontáveis vezes, deixando clara essa divisão da cidade em duas, como faz

João Antônio na coletânea “Ô, Copacabana”

O carimbo pretensioso e generalizador se esquece de que o carioca não é apenas o homem da Zona Sul badalada — de Copacabana ao Leblon. Setenta e cinco por cento da população carioca moram na Zona Centro e Norte, no Rio esquecido. E lá, sim, o Rio fica mais Rio, a partir das caras não cosmopolitas e se o carioca coubesse no carimbo que lhe imputam não se teriam produzido obras pungentes, inovadoras e universais como a de Noel Rosa, a de Geraldo Pereira, a de Nelson Rodrigues, a de Nelson Cavaquinho... Muito do sorriso carioca é picardia fina, modo atilado de se driblarem os percalços. (ANTÔNIO, 2001, p. 142)

Peculiar em Léo Montenegro é que esse mesmo tom crítico se revela na forma

carnavalizada, embutida em textos que fazem divertir, mas sem abrir mão do olhar ácido

sobre as condições precárias da vida suburbana do Rio. Esse texto carnavalizado o distancia

de Lima Barreto e João Antônio, mas a crítica feroz aproxima os três. Em suas crônicas, Léo

Montenegro prioriza a perspectiva do flaneur que perambula pela cidade em busca de

diversão, o prisma da malandragem carioca a qual ele parece se incluir. Fala muitas vezes a

partir do bloco de sujos, que sai pelas ruas suburbanas no Carnaval, mas como um crítico em

pele de folião.

Esse é o caso da crônica publicada no “Avesso da Vida” em 2 de março de 2000 sob o

título “A carta” (ANEXO XVII). Nela, o personagem Enosprézio revela, ao avistar um

carteiro, ter parentes em, pelo menos, cinco bairros diferentes do subúrbio carioca (Pavuna,

Jacaré, Cascadura, Madureira e Méier). Revela uma situação cotidiana, como a curiosidade

despertada entre vizinhos suburbanos, em geral moradores em casas simples — muitas

compondo vilas, como já dito aqui — quando um carteiro aparece para entregar cartas ou

contas. Os demais personagens são anônimos, designados pela característica física (careca,

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gordinho) e definidos apenas pelo grande número (multidão). Por fim, a carta faz rir ao expor

que seu texto, lido em voz alta pelo personagem central de nome insólito, acusava a esposa

dele de cometer traição. Enosprézio acaba tendo que ouvir a multidão gritar em coro: “Corno!

Corno!” O cronista fala indiretamente da presença no subúrbio de alcaguetes, usados para

denunciar crimes e bandidos, e de adultério explícito, revelando uma condição social. Mas a

crítica é sutil uma vez que tanto um aspecto quanto outro são apresentados como

naturalizados pelos moradores do subúrbio.

Como pode ser observado no texto acima, Léo Montenegro não faz de suas crônicas

um alto-falante para reclamar nem reivindicar nada, de forma panfletária. Ele ambienta seus

personagens suburbanos nos novos cenários que lhes são impostos, como a superlotação ou os

atrasos do trem de passageiros e a brutal violência protagonizada por bandidos armados, sem

fazer desses ambientes a razão central da história contada. Mostra, nas entrelinhas, como

aquilo reflete na vida das pessoas, mas trata a mudança como inevitável para, de forma

carnavalizada, forçar a reflexão, tocando seus leitores, a imensa maioria moradora do

subúrbio, em pontos que lhe são cotidianos, mas que são ignorados por moradores em outras

áreas da cidade.

Desta forma, o autor cria uma empatia com seu público, partindo do que já existe, sem

se colocar em local privilegiado, de porta-voz, na pretensão de que tem uma missão de guarda

da cidade. Não abdica, porém, de criticar costumes, expor situações inusitadas estranhamente

naturalizadas pelos moradores do subúrbio e retratar tipos humanos tipicamente cariocas que,

caso contrário, se manteriam no ostracismo ou seriam inevitavelmente esquecidos sem mesmo

terem sido conhecidos fora de seus ambientes suburbanos.

Inserido numa tradição que remonta a virada do século XIX para o XX, Léo

Montenegro dialoga até mesmo com Olavo Bilac, que tem o subúrbio como temática eventual

em suas crônicas. Noventa e quatro anos depois da crônica bilaquiana, “A festa da Penha”,

citada acima, em texto publicado no dia 26 de setembro de 1996, Léo Montenegro faz

referência à devoção popular por Nossa Senhora da Penha, também para criticar o tratamento

dado aos mais pobres. No episódio imaginado, uma pensionista é retida na porta de segurança

de uma agência bancária no final do século XX. A senhora é confundida com um assaltante, é

desrespeitada por seguranças e por um outro cliente bancário e só escapa da confusão por uma

espécie de milagre.

[...] A velhinha chegou ao banco, para tirar o extrato no caixa automático, mas a porta travou. Ela entrou em pânico e exagerou: — Minha Nossa Senhora da Penha! Os seguranças vão pensar que eu estou armada!

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[...] Não se sabe como, mas na sacudida da velhinha a porta destravou e ela saiu de lá, cuspindo marimbondos: — Filhos da mãe! Eu vou mostrar quem é assaltante! Tirou a sombrinha da bolsa e caiu dentro de todo mundo, distribuindo cacetadas em todas as direções. Depois, saiu do banco muito na dela e foi para casa tomar seu chá para ficar mais calma.” (Trecho da crônica “A velhinha perigosa”, de Léo Montenegro) - ANEXO XVIII

A crônica aborda a violência crescente marcada pelos assaltos a banco, mas também

dos constrangimentos experimentados pelas pessoas simples quando as portas eletrônicas dos

bancos travam. A personagem logo se coloca na condição de suspeita, pede ajuda aos céus (a

mesma fé descrita na crônica bilaquiana), reage à humilhação, mas, como diz o texto, chega

em casa nervosa.

Tema recorrente nas crônicas de Léo Montenegro, presente também nas obras de Lima

Barreto e João Antônio, o Jogo do Bicho liga Olavo Bilac aos três autores. Pitoresco é notar

como Bilac tem o olhar externo ao subúrbio, enquanto os três cronistas suburbanos cultivam

um ponto de vista inserido naquele ambiente.

Na crônica bilaquiana “O jogo dos bichos”, de 1895, a crítica ácida do poeta é contra a

contravenção, inaugurada em 1889 para financiar o antigo Jardim Zoológico do Rio de

Janeiro, no bairro de Vila Isabel, mantido pelo Barão de Drummond. Para tecer suas críticas,

Bilac usa uma notícia publicada na imprensa, outra prática comum no cronismo, em especial

no grupo suburbano. Sem dinheiro, o personagem Hilário precisa enterrar a mãe, pega os

trocados que dispõe, e aposta no gato. O resultado é burro. Não fosse tão clara a mensagem

que dá na história, o poeta vai além.

“Pobre Hilário! Não merecias os remoques e as graçolas com que te frechou a imprensa alegre … O teu caso é um simples sinal do tempo, um sintoma. Hoje, no Rio de Janeiro, o jogo é tudo. Não há criados, porque todos os criados passam o dia a comprar bilhetes de bichos. Não há conforto nas casas, porque as famílias gastam todo o dinheiro do mês no elefante ou no cachorro. Ninguém trabalha! Todo o mundo joga … Pobre Hilário! Querias ao menos aproveitar o vício para um fim digno … Se o jogo serve para engordar tanta gente - por que não havia de servir para enterrar tua mãe?” (BILAC, 2005, p.74 e 75)

O Jogo do Bicho é, não por coincidência, lembrado em mais de uma crônica de Léo

Montenegro, como na já citada “O Peru” (ANEXO IV). Vale insistir que diferentemente de

Bilac, Léo não é crítico do Jogo do Bicho, prática que, como já dito, caiu no gosto do carioca

suburbano ao longo do século passado. As referências à contravenção nas crônicas de Léo

revelam apenas esse gosto popular pelo jogo, que com o tempo caiu nas mãos dos chamados

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bicheiros, personagens suburbanos respeitados e temidos, patrocinadores das escolas de

samba, ilegais perante a Justiça, mas tolerados pela polícia. A crítica de Léo recai sobre essa

tolerância.

Em outra crônica bilaquiana selecionada para exemplificar seu passeio como

observador externo pela temática suburbana, “A dança no Rio de Janeiro”, publicada em

1906, o poeta fala de bairros cariocas, de Botafogo, na Zona Sul, ao Engenho Velho (hoje São

Francisco Xavier e desde então bairro da Zona Norte atendido pela Estrada de Ferro que corta

o subúrbio do Rio). Faz isso para traçar o que chama de “geografia moral” da forma como se

dança no Rio, sendo bastante moralista, seguindo os padrões do início do século passado,

quando descreve a forma como se requebram os moradores da Saúde, bairro pobre da área

central.

Na Saúde, a dança é uma fusão de danças, é o samba uma mistura do jongo e dos batiques africanos, do canaverde dos portugueses, e da poracé dos índios. As três raças fundem-se no samba, como num cadinho. O samba é a opoplacia (gritaria) do Cortiço, é pírri a (adjetivo usado para expressar uma vitória obtida a alto preço, potencialmente acarretadora de prejuízos) da Estalagem [...] O samba é - se me permites a expressão - um bule, onde entram, separados, o café escuro e o leite claro, e de onde jorra, homogêneo e hamônico, o híbrido café-com-leite … (BILAC, 2005, p. 196)

Interessante, porém, é notar a forma elogiosa como o cronista descreve o jeito como se

dança na área suburbana do Engenho Velho, e a reboque Tijuca e Andaraí, onde não há carros

na porta como em Botafogo e o bonde e a democracia imperam. Tal elogio contribui para a

ideia que se formou ao longo do século passado, com clara contribuição das crônicas

publicadas em jornal, do subúrbio como uma área pobre, mas sendo a maioria de seus

moradores gente de bem, apesar da existência de malandros e posteriormente criminosos.

Na região, nos primeiros anos do século passado, as casacas dão lugar ao “smoking”

ou a modestos casacos, com flor na botoeira: “os corpos ainda não se aproximam”, “o

cavaleiro tem os olhos postos ao lado, a dama tem olhos postos no chão”. Ali se dança

respeitosamente, bem em oposição ao que seria descrito pelo cronista quando fosse falar dos

bailes da região central do Rio. “ … A dança, no Engenho Velho, ainda é formalista. Quereis

começar a ver dançar à la bonne franquette? Vamos a Catumbi!” (BILAC, 2005, p. 195).

É contra essa ideia de região recatada que Léo Montenegro faz sua crítica na crônica

“Fantasia de Carnaval”, publicada em 27 de fevereiro de 1987. Nela, descreve a cena de um

personagem comprando uma fantasia para a esposa, para ela brincar o Carnaval num coreto

suburbano. Ele quer uma fantasia fechada, com “véu tapando tudo” porque “quanto mais a

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mulher ficar escondida, melhor”. Ele bate boca com os outros clientes da loja, exige respeito e

rebate o personagem identificado como gordinho, que questionara sobre o tipo de fantasia que

estava comprando. “O que é um pedacinho de bunda de fora?”, provoca. Nescrópio até tenta

estrangular o gordinho, mas é detido. ”Insano mental! Minha primeira-dama é uma senhora de

respeito, até canta no coro da igreja!”, rebate. O encerramento é inusitado: Nescrópio

comprava a fantasia para ele próprio (“Mal posso esperar o momento de arrasaaaaar lá no

baile”), apenas não queria ser identificado”. (ANEXO XIX). No texto, crítica sutil ao

machismo e ao “moralismo” suburbanos.

Cabe aqui citar ainda a crônica “Maus Momentos”, de Léo Montenegro, publicada em

26 de maio de 1994 (ANEXO XX), para abordar crítica mais ácida, apesar de igualmente à

anterior, sem abrir mão da carnavalização. A crônica é ambientada no interior de um vagão de

trem suburbano, retrata a má conservação do transporte: sujo, com baratas, e com defeito,

tendo possibilidade de abrir a porta em movimento. O cronista apresenta um personagem com

linguajar inculto (“...essa barata é daquelas que avoam”) sem ridicularizá-lo, mas pontuando

pelo riso se tratar da fala incorreta. Naturaliza o fato de haver alguém armado entre os

passageiros do trem: “(...) Um nordestino, largando o ferro: - Faça isso e será um homem

morto, porque se a barata sair das suas costas e voar pra cima de mim não respondo pelo que

vou fazer!”.

A história consiste em um dos passageiros do vagão, o personagem central

Florepildes, ter uma barata do tipo voadora nas costas. O dilema reside em um personagem

identificado apenas como Negão matar a barata dando um tapa nas costas de Florepildes ou

este se sacudir forçando a barata a sair de suas costas. Como é isso que o personagem central

faz, ele toma uma surra e a barata se esconde embaixo do banco do vagão, denotando a má

conservação da composição.

Se para Léo Montenegro a falta de consciência dos suburbanos em relação às

condições precárias do trem de passageiros é vista de forma carnavalizada, em Lima Barreto

ela é duramente criticada, apontando que um morador da área melhor empregado que os

demais, mesmo ocupando uma posição subalterna no mercado de trabalho, se torna arrogante

e vaidoso.

Um velho contínuo tem-se na conta de grande e imensa coisa, só pelo fato de ser funcionário do Estado, para carregar papéis de um lado para outro; e um simples terceiro oficial, que a isso chegou por trapaças de transferências e artigos capciosos na reformas, partindo de ‘servente adido à escrita’, Limpa que nem um diretor notável, quando compra, se o faz, a passagem no ‘guichet’ da estação. Empurra

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brutalmente os outros, olha com desdém os mal vestidos, bate nervosamente com os níqueis... A sua pessoinha vaidosa e ignorante não pode esperar que uma pobre preta velha compre uma passagem de 2a classe. Tem tal pressa, a ponto de pensarmos que, se ele não for atendido logo, o Brasil estoura, chega-lhe mesmo a esperada bancarrota... (BARRETO, “A estação”, 1961)

João Antônio, por sua vez, vai falar da superlotação dos trens, na crônica “Pingentes”,

de 1975. Fará isso comparando o transporte oferecido aos moradores das áreas nobres com o

das regiões suburbanas.

Tudo para a Zona Sul, o lado rico da cidade. Um dado – enquanto do lado de lá do Túnel Novo, entre Copacabana e Leblon, vivem cerca de quinhentas mil pessoas, na Zona Norte e no Grande Rio estão os que restam: cerca de três milhões e quinhentas mil. (ANTÔNIO, 1975, p. 29)

Quotidiana, tal superlotação passa despercebida pelos personagens retratados como

trabalhadores resignados no trajeto entre a casa e o trabalho. Na mesma crônica, a explicação

para tal resignação aponta para mais um problema recorrentemente retratado no cronismo

suburbano.

… a empregada doméstica Maria Teresa Conceição Martins, de trinta anos, sai todos os dias de Cascadura para trabalhar no Posto Três, em Copacabana, e diz que a sua luta pela individualidade 32 é esta: - A gente pega o trem na Central porque custa cinquenta centavos. Se eu fosse pegar o ônibus, só de Cascadura até o Passeio Público [no Centro do Rio de Janeiro] gastava oitenta. Manjou? É aquela, pobre não luta, peleja. (ANTÔNIO, 1975, p. 28)

Além da naturalização de situações que causariam estranhamento fora do ambiente

suburbano, Léo Montenegro privilegia em suas crônicas também o registro de situações

cotidianas aparentemente banais dos moradores dos bairros dessa região do Rio. Muitas de

suas histórias são ambientadas sem fazer descrições (o espaço na página do jornal não

permite). Essas crônicas levam o leitor para dentro das casas e das vidas simples dos

moradores locais e seus constantes problemas financeiros ou de convívio familiar. Esse é o

caso da crônica “O boa-vida”, publicada em 15 de novembro de 2000 (ANEXO XXI). Nela, o

personagem central, Juresvaldo, chega em casa após a aposentadoria. Comemora não ter mais

de pegar o trem suburbano da Central do Brasil e de poder, enfim, descansar do que deve ter

sido uma vida de árduo trabalho. Diante da reação da mulher e do filho, que planejam tarefas

para ele executar, passa a tentar a anulação da aposentadoria.

32 No mesmo texto “Pingentes”, João Antônio recorda que a sociologia explicaria os pingentes dos trens como pessoas que buscam a individualidade dentro da multidão, tentando enganar a máquina mesmo colocando a vida em risco.

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Os hábitos humildes de Juresvaldo e seus familiares — ele pensa em se divertir

jogando cartas com amigos numa praça próxima e o filho sonha em ser levado por ele mais

vezes ao Maracanã e ao circo — não questionam o cotidiano suburbano. Moram em casa (a

mulher diz que Jurevaldo terá de varrer o quintal), mas não é problema o entorno dessa casa.

Em João Antônio, a aproximação com o cotidiano suburbano, sobretudo da área

periférica do subúrbio, é brutal. Na crônica “Testemunhos de Cidade de Deus”, do livro Casa

de Loucos (resultado da compilação de textos publicados na coluna ``Corpo-a-corpo'', no

jornal Última Hora), João Antônio fará micro perfis dos moradores da favela, todos tratados

com rigor jornalístico para uma aproximação crítica que faz chocar.

Promiscuidade, insegurança, falta de higiene, fedor permanente, fossas entupidas. Se chove, as águas não têm para onde escorrer, ficam empoçadas nos arruamentos de terra. Há o perigo de enchentes, que o rio Fundo, ali perto costuma transbordar. Defendendo-se do fedor das fossas entupidas da triagem, alguns moradores usam creolina e fecham as portas e as janelas quando vão comer. (ANTÔNIO, 1994, p. 106)

Na crônica, João Antônio fala da violência. Ora é uma personagem doméstica que teve

os objetos de casa furtados pelos vizinhos, ora o focalizado é quem testemunhou assalto, mas

tem medo de denunciar os ladrões, e ora é uma mulher que tem medo de sair de casa de noite.

Isso para citar três exemplos. O relato, seco, evidencia as histórias de vida, por si só brutais. A

crítica é direta, ácida, sobretudo porque a violência está naturalizada na maioria das falas dos

perfilados.

A violência no subúrbio, também naturalizada, não escapa da pena de Léo

Montenegro, que pela carnavalização a ridiculariza. Esse estilo pode ser visto na crônica “A

pendência”, publicada em 7 de fevereiro de 1998 (ANEXO XXII). Naquele ano, como em

quase toda a década de 90, os assaltos a ônibus estavam amedrontando cariocas e fluminenses

de todo o Estado do Rio, inclusive os moradores do subúrbio da capital. A crônica retrata um

desses assaltos, mas o insere numa confusão tipicamente suburbana.

Como percorrer o itinerário dos ônibus pelos bairros do imenso subúrbio carioca é

demorado, é comum um passageiro se incomodar com outro sentado a seu lado, que esteja

muito perto. Não raro um passageiro reclama com outro o fato de ele estar encostado, apesar

de haver espaço no banco do ônibus. É em uma dessas confusões que o assalto acontece e

nenhum passageiro dá atenção aos bandidos enquanto o bate-boca (com insinuações sobre

sexualidade) não termina. Como é habitual nos textos de Léo Montenegro, tudo acaba em

uma imensa briga, que fere até mesmo os assaltantes armados. Todos acabam em um hospital.

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Ao ironicamente pontuar mazelas suburbanas contemporâneas, mesmo que de forma

carnavalizada, Léo Montenegro dá sinais de continuidade literária com as crônicas sobre o

subúrbio do início do Século XX. Continuidade que pode ser identificada com a produção de

Lima Barreto romancista. Em Clara dos Anjos — romance editado pela primeira vez em

1948, mas cuja redação data entre 1904 e 1922 — o abandono do subúrbio é apresentado não

pela falta de policiamento ou pela violência (problemas contemporâneos do subúrbio e cujo

agravamento se deu na década de 1990), mas, sim, pela falta de infraestrutura, ainda presente,

mas não nas cores do início do século passado. Esse abandono pode ser conferido nas

descrições feitas no romance (que tem espaço para tanto).

Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Caxambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população da cidade, de certo ponto, no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, de dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma cousa, para o sustento seu e dos filhos. (BARRETO, 1995, p. 118)

Ambientado no subúrbio do Rio de Janeiro, o romance conta a história da mulata

Clara dos Anjos, que se apaixona e é enganada pelo malandro branco Cassi Jones. Morador na

mesma região que a personagem-título, Cassi tem vida financeira um pouco mais tranquila

que a dela. A proteção da mãe garante a ele vida de sedutor (“contava perto de dez

defloramentos”). Clara dos Anjos entra no rol de suas vítimas. Grávida, a personagem revela

sua condição à família quando o malandro já está bem longe. Expondo divisão de classes,

Lima Barreto evidencia, no romance, latente preconceito racial. Quando a mãe de Clara dos

Anjos entra em contato com a mãe de Cassi, vê a si própria e a filha tratadas com desdém

racial, chamadas de “gente dessa laia” e de aproveitadoras. Abandonada e grávida do

malandro, Clara dos Anjos sentencia para a mãe na última página do romance: “— Não

somos nada nesta vida”.

Clara, mesmo com perfil totalmente diferente, dialoga com Mariazinha Tiro a Esmo,

personagem da crônica de abertura da coletânea Malhação do Judas Carioca, de João Antônio.

Malandra, a menina nascida de mãe “marafona” e pai ferroviário “calibrado de tantas

cachaças da birosca” morou na Catacumba, favela em área nobre da Zona Sul do Rio, cujos

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moradores foram desapropriados e transferidos para conjuntos habitacionais, como o da

Cidade de Deus. Foi pivete, pedinte, um nada na vida. Termina prostituta.

- Sou piranha e daí? Eu tenho culpa? Acho que não gostaria de ser. Seria bom ter um homem só com um carro só. Parece que seria legal. Mas está aí uma coisa que eu acho que os homens não querem. (ANTÔNIO, 1975, p. 9)

A retratação de malandros e suas vítimas é outro ponto de continuidade encontrado

entre as crônicas de Léo Montenegro, João Antônio e Lima Barreto e mesmo em outras obras

consagradas da tradição literária brasileira, como o Leonardo, protagonista do romance,

publicado inicialmente na forma de folhetim, “Memórias de um Sargento de Milícias”, de

Manuel Antônio de Almeida.

Diálogo direto entre Léo Montenegro e essa tradição está na crônica do “Avesso da

Vida” publicada em 1º de dezembro de 1968 (ANEXO XXIII). Com o título “A Fofoca”, ela

também relata um caso de sedução como o presente em Clara dos Anjos. Na crônica, o

malandro Alarico tenta despistar da mulher e da família um caso de adultério com a “guria”

Esmeraldina. Sendo do mesmo nível social da vítima — ambos moram em um morro não

localizado com precisão —, acata conselhos de amigos e tenta se livrar do que estava

chamando de “fofoca”, promovendo uma confusão na casa da vítima. Mostra indignação,

mas, diferentemente do destino de Cassi, é desmascarado por Esmeraldina. Leva uma surra e

termina internado em hospital público do bairro de Marechal Hermes.

Vivo muito bem com a minha espôsa e não posso permitir que minha felicidade seja destruída por línguas ferinas! Num esfôrço supremo a Esmeraldina conseguiu dizer: - É, mas não foi isso que você falou! Prometeu tudo, tudo! Alarico recebe visitas às quintas-feiras, no hospital Carlos Chagas, onde se encontra internado com fratura exposta. (ANEXO XXIII)

Em “A Fofoca”, crônica publicada em uma edição de domingo, que teria validade,

naquele ano, também para a segunda-feira, dia 2, nota-se a retratação de linguajar pouco usual

para jornais da época, como sinais de oralidade popular. É o caso de “mermo”, do

“fofoqueiras de carteira assinada” e do “fim da picada”. A amante, retratada na crônica, é

subestimada. A mulher do personagem, enganada. No texto devidamente carnavalizado, essas

duas tristes retratações dialogam diretamente com a obra de Lima Barreto, num claro sinal de

tradição da crônica suburbana. Para tanto, basta retomar como exemplar a crônica de Lima

Barreto “Não as matem” (ANEXO XIV), citada no capítulo Samba em Prosa, como uma das

grandes referências da preocupação dos cronistas suburbanos em combater o machismo

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suburbano e valorizar a mulher local.

Esse é o pedaço da cidade do Rio de Janeiro de Lima Barreto, João Antônio e Léo

Montenegro, citando o samba-canção “Subúrbio”, de Chico Buarque de Holanda. A vida nos

bairros dessa região, diz o compositor, “é lenha, é fogo, é foda”, “lá tem Jesus, e está de

costas”. Esse é o cronismo dos três autores, tão distantes de seus pares cronistas que falam do

Rio cidade-musa. “Lá não sai foto de revista”, diz a música de Chico Buarque. Sai crônica no

jornal, onde a região e seus problemas e o cotidiano duro se fazem letra.

5.1.1 Carnavalizar, inverter e criticar

Cabe um aprofundamento da leitura que descobre a crítica presente nas obras de Lima

Barreto e João Antônio por trás das crônicas carnavalizadas de Léo Montenegro, autor cujos

textos ainda carecem de resgate, diferentemente dos outros dois cronistas. Ajuda a introduzir

esse trabalho depoimento obtido durante a pesquisa no ano de 2015 com o jornalista

Luarlindo Ernesto, que trabalhou durante longos anos com Léo Montenegro na redação de O

DIA. Nascido em 1943, no Rio, Luar, como ainda é chamado pelos colegas de redação,

começou a trabalhar aos 14 anos no jornal Última Hora. É um dos mais respeitados repórteres

do Rio, notadamente por suas reportagens policiais.

Cronista do infortúnio, ou da desgraça, ou dos aflitos, ou escriba dos problemas dos mais desvalidos. Assim eu vi crescer “O Avesso da Vida” - cujo título já diz tudo... A figura magra, agitada, de pensamento rápido de Léo Montenegro, volta sempre à minha lembrança. Principalmente quando ando aqui pelas bandas da Lapa, da Rua do Riachuelo, do ponto do jogo de bicho da Rua do Resende, ou de um certo barzinho em Copacabana onde ele frequentava. Mas era no dia a dia da redação do velho O Dia e A Notícia onde Léo buscava as histórias diárias para contar. A coluna dele não poderia faltar no jornal. Era uma das mais lidas. Os leitores babavam com os nomes dos personagens criados pelo Léo. Mas, amigos, os enredos contavam as aflições dos leitores, na época chamados de “Classe B, ou C”... Léo, entre romances desfeitos, traições, falta de água, buracos nas ruas, desemprego ou outra desgraça qualquer, enfeitava a coluna. E os leitores se deleitavam com o infortúnio dos “Eleitoradados”, dos “Orquelinos”, “Arnobaldos”, “Nicarozenios”. nomes dos personagens sempre envolvidos em histórias que terminavam no necrotério, no bar, na delegacia ou em hospitais. Desde 1965 Léo assumiu o Avesso da Vida. O pior é que muita gente se amarrava nos nomes dos infortunados. Esqueciam as desgraças que ele denunciava e trazia à tona.33

Trazer à tona é a expressão correta para as críticas facilmente encontradas nas crônicas

de Léo Montenegro. Esse é o caso resgatado logo na introdução do livro do cronista (ANEXO

VII, p. 7). Apresentando sua obra, Léo vai dizer para os leitores que “perdem tempo” lendo o

33 Depoimento do jornalista Luarlindo Ernesto para esta pesquisa em 2015

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que ele escreve e que não tem nenhuma pretensão literária. Mas crava, logo nas primeiras

linhas, que contará em suas crônicas sobre a “história da primeira galinha na vida de uma

família” e também da “desventura de uma família que não chegou a comer sua primeira

galinha” em vida. Tais infortúnios familiares, revelados com certo exagero, evidenciam a

condição social dos personagens retratados, todos suburbanos. “‘O Avesso da Vida’ é uma

realidade”, dirá nesta introdução, acrescentando também que tratará de temas do cotidiano,

como “a torneira que pinga, a tábua do vaso sanitário que belisca como alicate", mas também

de crítica a hábitos consolidados no mundo suburbano, como “o xixi escancarado na calçada”,

Por fim resumirá afirmando que suas crônicas tratarão de “coisas que a vida conta e poucos

têm coragem de repetir”.

Em jornalismo um dos conceitos para identificar o que é notícia é quanto de novidade

e atualidade tem o assunto a ser reportado. Léo Montenegro levará esse conceito para sua

obra. Esse é o caso da crônica “Teste de Cooper”, publicada em seu livro (ANEXO VII, p. 41-

44). Nela, Léo Montenegro fala da corrida para manter a forma idealizada pelo médico e

preparador físico norte-americano Kenneth H. Cooper que se tornara moda entre os

moradores da Zona Sul do Rio e de outras áreas nobres das metrópoles brasileiras na década

de 70.

Nessa crônica, com refinada ironia em relação ao modismo, Léo Montenegro vai

destacar a condição social dos personagens suburbanos, moradores de Cordovil, bairro da

Zona Norte do Rio, formado a partir da inauguração de uma estação de trem. A mulher do

personagem central e de nome inusitado, Antiprósio, é tida como tendo as pernas cheias de

varizes. Ela desaconselha o marido que, resignado, diz abertamente que se “os caras da Zona

Sul fazem o Teste de Cooper, por causa de que” ele não pode fazer. O encerramento é

revelador do conceito em torno da cidade partida, que se tornaria popular posteriormente

como já dito nesta tese. Antiprósio vai provocar a maior confusão ao sair correndo pelas ruas

de Cordovil. Será confundido com ladrão em fuga, perseguido por forte aparato policial e

terminará sendo levado para delegacia. Lá, o delegado, classificado na crônica como

"atualizado", vai esclarecer a confusão e liberar o personagem. Na frase de encerramento, Léo

Montenegro sentencia: "Conseguiu ir para casa, jurando que na Zona Norte, Teste de Cooper

é risco de vida".

Uma maneira de Léo Montenegro retratar de forma crítica a precariedade da vida no

subúrbio é naturalizar situações e, a despeito de contar uma cena cotidiana, evidenciar o que

outros contadores de histórias não teriam coragem nem interesse em repetir. Na crônica “O

Vidro” (ANEXO VII, p. 51-54), o personagem Ambrosino tem de levar um exame da sogra

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para um laboratório de análises clínicas. É a oitava tentativa, que certamente seria frustrada.

Ocorre que para introduzir a cena, Léo Montenegro vai evidenciar a falta de policiamento e a

banalização do tráfico de drogas nos bairros da região.

Ambrosino estava na fila do ônibus, segurando um pequeno embrulho com um cuidado desgraçado. Se algum policial passasse na hora (e não passou nenhum, é obvio) na certa desconfiaria de que no embrulho tinha maconha em charuto ou cocaína aos quilos. (ANEXO VII, p. 53)

Malandros, personagens tão relevantes para literatura brasileira, desde Memórias do

Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, também são constantes na obra de Léo

Montenegro, sobretudo porque evidenciam precariedade financeira dos moradores da região.

Exemplos são facilmente encontrados em toda a obra. No único livro do autor, a crônica “O

Grande Herói” (ANEXO VII, p. 123-126), um ladrão de galinhas, com o nada inusitado nome

Tião, engana o dono do galinheiro contando uma falsa história triste. Rouba 40 galinhas e

deixa o proprietário, identificado como gordão, com a sensação que impedira o roubo.

O gordão mandou Tião se mandar: - E depressa, antes que eu me arrependa e puxe o gatilho. Tião se mandou e, na esquina, se encontrou com o comparsa: - O dono da casa, um gordão, me flagrou catando a última! Mas colei uma em cima dele e consegui dar o fora! O palhaço nem notou que só faltava aquela! E se foi com o comparsa, levando umas quarenta galinhas do gordão, que depois do feito heroico foi pra cama e dormiu como um vencedor .(ANEXO VII, p. 126)

Já o malandro da crônica “O Homem que Aniversariava” (ANEXO VII, p. 127-130)

só é descoberto quando um personagem testemunha, por duas vezes, o golpe que aplicava: ele

ficava sentado sozinho no fundo de casas noturnas de modo a sensibilizar o proprietário do

estabelecimento que o deixava sair sem pagar a conta mesmo após ele comer e beber. Outro

malandro, na crônica “Nomézio, o valente” (ANEXO VII, p. 143-146) vai se passar por

valentão desafiando um homem muito mais forte para briga. Com isso, obtém dinheiro de

uma aposta com os frequentadores de um bar ao esbofetear o adversário. Por fim, a crônica

revela que o fortão, identificado como crioulão, era comparsa do malandro. Ambos iriam, em

seguida, aplicar o mesmo golpe em outro bar.

Outro malandro é associado aos personagens do Carnaval. Trata-se de Flautézio da

crônica “O Desejo” (ANEXO XXIV), de 3 de julho de 2003. Há um suspense em toda a

narrativa. Primeiramente ocorre um diálogo entre o casal protagonista, iniciado quando o

marido pega a mulher pelo braço e diz que gostaria de fazer um pedido, falando palavras

doces e a enchendo de elogios. Ela acha que ele é um poeta e afirma que não é à toa que

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Flautézio é o melhor compositor do bloco da comunidade, ambientando a crônica. Depois de

todo um clima de sedução, ela diz que ele podia pedir o que quisesse, e ele, então, faz o

pedido. Queria que a mulher fizesse rabada no almoço do dia seguinte. Daí o motivo da surra

que fecha a crônica, seguindo o estilo do cronismo de Léo Montenegro. Pode-se observar que

o personagem é malandro, conquistador e considerado poeta na comunidade por ser

compositor do bloco.

Em um sinal claro de continuidade com a tradição dos cronistas do subúrbio, o Jogo

do Bicho e a tolerância das autoridades com sua prática, mesmo que proibida, será tema

recorrente na obra de Léo Montenegro. Ainda no livro de 1976, a crônica “Eu, Testemunha

Ocular” (ANEXO VII, p. 147-150) vai ser ambientada toda num ponto do Jogo do Bicho. O

personagem central, narrador em primeira pessoa e sem o nome inusitado revelado, vai

dialogar o tempo todo sobre a conivência policial com a contravenção. A crítica feroz, mas

carnavalizada, vai mostrar que, mesmo quando a polícia reprime o jogo, o delegado, que

registra o flagrante de contravenção, vai, ele próprio, apostar na jogatina idealizada pelo

Barão de Drummond.

Já na crônica “O hospício”, publicada no dia 18 de junho de 2003 (ANEXO XXV), a

relação da comunidade suburbana com o Jogo do Bicho se confunde com o vínculo da mesma

comunidade com o dinheiro. A narrativa começa com o estranhamento que Asfinaldo, o

protagonista, causa em seus vizinhos ao sair de bermuda e camiseta em um dia frio. A partir

daí se instala a dúvida quanto à sanidade do personagem, que esclarece o comportamento

estranho: ganhou R$ 4 mil no Jogo do Bicho. Assim, como condição para se beneficiarem da

"fortuna" ganha pelo amigo, todos se vestem como Asfinaldo, carnavalizando o status

conquistado pelos suburbanos com mais dinheiro, mesmo sendo ganho em um jogo proibido.

E eu tenho grana, pois acabei de dar a maior cacetada no bicho! O careca acendeu o olhar na hora: – Jura, meu adorável amigo de infância? E quanto ganhou? O resto da vizinhança aguçou o ouvido para ouvir o Asfinaldo revelar: – Quatro mil reais! E, desde já, tá todo mundo convidado pra boca livre que eu vou dar agora no bar, regada a muita cerveja gelada, pastéis, moelas e carne assada! O coro dos ávidos: – Tamos aí! Só que o Asfinaldo fez uma exigência: – Quero os homens vestidos só de sunga, como eu, e as senhoras só de shortinho e top! O bar ficou parecendo um hospício. (ANEXO XXV)

Na crônica “A bicicleta” (ANEXO XXVI), além do Jogo do Bicho, a simplicidade dos

sonhos infantis de um menino pobre do subúrbio. O Jogo do Bicho é pivô para a situação e

serve de pano de fundo da história. Publicada dia 7 de junho de 2002, a crônica conta o drama

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de Asfrônio, que, com o dinheiro ganho no Bicho, compra uma bicicleta e quer aprender a

andar, concretizando assim seu sonho de infância. Os colegas chamados para ajudar resolvem

ensiná-lo do jeito tradicional. Mas ao se indignar com o fato dos amigos segurarem no selim e

sugerir que eles queriam se aproveitar dele, o protagonista apanha e vai parar no hospital,

onde o incidente foi registrado como “acidente com bicicleta”.

Não são raras na obra de Léo Montenegro as crônicas que dialogam diretamente com o

noticiário, evidenciando a relação dos textos ficcionais com as reportagens. Esse é o caso da

crônica “O Flanelinha Familiar”, publicada em 22 de junho de 2003 (ANEXO XXVII). Nela é

contada a história de Asclepildo que, ao chegar à rua onde morava dirigindo seu carro

popular, um Fusca, se depara com o filho mais novo atuando como flanelinha na calçada em

frente à sua casa. O menino explica que aprendera o ofício com um vizinho, que atua como

flanelinha na rua ao lado, passa a chamar o pai de “tio” para ganhar gorjeta maior e provoca

uma discussão entre seus pais (a mãe elogia o “trabalho” e o esforço do garoto e o pai fica

indignado). Na sua peripécia, revela a baixa escolaridade dele e dos vizinhos (uma

personagem conta que só saíra do jardim da infância aos 15 anos). O trabalho infantil e a

atividade informal são as críticas carnavalizadas abordadas na breve crônica. Ao lado, o

noticiário que circunda a história do flanelinha denuncia a presença de seguranças

clandestinos atuando na Zona Sul do Rio. De novo, uma parte escondida da cidade é exposta.

No subúrbio imaginário (o local não é citado, mas os personagens são identificáveis como

suburbanos), o flanelinha. Na Zona Sul, o segurança clandestino. Ambos, trabalhadores

informais, comuns nas ruas do Rio.

Outra referência recorrente nas crônicas de Léo são os aposentados do INSS,

sobretudo os que recebem salário mínimo. Na crônica “A loura”, publicada no dia 1º de julho

de 2003 (ANEXO XXVIII), o aposentado aparece em uma cena que evidencia o conceito de

cidade partida entre o subúrbio e a então nova área habitacional valorizada no Rio, a Barra da

Tijuca. Na crônica, Florneldo está lendo jornal na sala de sua casa quando toma um susto ao

ver a sogra entrando com “shortinho, top e cabelos oxigenados”. Totalmente transformada, ela

explica que foi ao shopping e à cabeleireira. O genro a compara a uma alegoria de Carnaval.

“Parece até que a senhora passou por algum barracão de escola de samba! Tá parecendo uma

alegoria!”. Depois de assustar também o neto, que não a reconhece ao vê-la assim, a loura

explica quer ir para a “night” e “pegar” um “cara com grana suficiente” para lhe dar uma

cobertura na Barra. O genro ironiza, e diz que o máximo que ela vai arrumar é um velhinho

tarado que ganha do INSS um salário mínimo. A senhora perde a paciência e bate no genro,

que vai parar no hospital. Os atendentes acham que ele levou a surra porque não havia pago

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pensão alimentícia.

O trem que identifica os bairros suburbanos é outra constante do cronismo de Léo

Montenegro, seguindo a tradição iniciada por Lima Barreto e João Antônio. Na crônica “O

Doente”, publicada em 4 de julho de 2003 (ANEXO XXIX ), a situação é narrada dentro do

vagão do trem. A crítica carnavalizada é sobre o medo de propagação de doenças dentro da

composição, mal ventilada, e quase sempre superlotada. O personagem Granaldo, gripado, é

hostilizado pelos demais passageiros do trem por tossir. Um desses passageiros, identificado

como magricela, sai em sua defesa e o bate boca é encerrado por um fortão que dá uma surra

nos dois. A carnavalização e a crítica das demais crônicas são ambientadas no trem, local

referencial na obra de Léo.

O tal camarada, que mais parecia um armário, cercou o Granaldo e o magricela: – Um vai apanhar muito pra aprender a não andar gripado dentro do trem! O outro, pra não ficar tirando uma onda de assessor de doente! No hospital, o atendente da emergência que encheu a ficha do Granaldo e do magricela nem quis saber de gripe. Botou lá: contusões e escoriações generalizadas. (ANEXO XXIX)

A referência ao trem e à demora da viagem sobre trilhos no Rio é notada em crônicas

como a intitulada “O Jantar do Bombrildo”, publicada no domingo 11 de novembro de 1999

(ANEXO XXX). Nela, um personagem que ia descer na estação de trem de Madureira

pergunta a seus pares o que iam jantar. A viagem é demorada. Os personagens revelam pratos

simples e hábitos reprováveis (o roubo de uma lata de caviar). Por fim, Bombrildo chega em

casa e a crônica revela o aperto financeiro de sua família: como não deixara dinheiro com a

esposa, ele não tinha o que jantar. A situação era esperada pelo personagem central, afinal

perguntara no trem o que seus pares iam comer ao chegarem do trabalho para ter a sensação

de que já havia comido quando entrasse em casa.

Já a crônica “O assédio dentro do trem” (ANEXO XXXI) satiriza de forma direta a

quantidade de camelôs e comerciantes que são encontrados pelas ruas do Rio e mesmo dentro

dos trens suburbanos. Publicado no dia 8 de maio de 2002, o texto tem como protagonista

Alvosnaldo que, cansado de ser assediado pelos ambulantes dentro do trem, quer partir para

briga com qualquer um que lhe aparecer oferecendo produtos. Sai do trem e passa rápido

pelos comerciantes na rua. Ao chegar em casa encontra sua sogra vendendo rifas.

Na escada da estação, deu com aquele monte de ambulantes e entrou em pânico: – Vou ter que passar correndo! Se alguém me oferecer alguma coisa pra comprar, não vou responder por mim! Passou a mil pelos camaradas e chegou à rua onde mora: – Ufa! Fiquei livre! - chegou em casa, entrou e a sogra foi em cima dele: – Tô vendendo rifinhas da paróquia!

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Fica com umas cinco, vai! Ele está trepado numa árvore, e nem a polícia consegue tirá-lo. (ANEXO XXXI)

Além do trem, os ônibus que transportam trabalhadores dos bairros do subúrbio para a

área central da cidade ou para Zona Sul também são outra referência no cronismo de Léo

Montenegro. A crítica carnavalizada diz respeito à qualidade desse serviço público, mas

também ao status que alguns suburbanos pensam alcançar quando conquistam emprego

formal ou cargo público, mesmo sendo de função secundária, o que dialoga diretamente com

as obras de Lima Barreto e João Antônio, como já visto nesta tese. A crônica em questão é a

intitulada “Funcionário promovido” (ANEXO XXXII), publicada no jornal O DIA em 10 de

junho de 2003. Nela, o cronista faz rir falando sobre a má qualidade dos transportes públicos

no Rio de Janeiro e sobre a importância que alguns funcionários públicos dão a seus cargos. A

narrativa se inicia com a felicidade de Eriplênio, funcionário conhecido como “puxa-saco” da

repartição, que foi promovido a chefe do arquivo morto. Ao exigir milhares de apetrechos

para sua tão esperada posse, o personagem irrita os colegas e bajula o seu superior hierárquico

que, sem paciência, o envia em um ônibus mal conservado da Avenida Rio Branco para um

barraco em Cordovil, bairro da Zona Norte do Rio.

É também no ônibus que se passa a trama da crônica “A melancia” (ANEXO

XXXIII), que retrata, com tom carnavalizado uma situação cotidiana do transporte público na

cidade carioca, com passageiros entrando na condução sem pagar passagem. Toda a polêmica

começa com a entrada de Nervoézio e sua melancia no ônibus, causando indignação nos

demais passageiros pelo tamanho da fruta carregada pelo homem e pelo fato desta não ter

pago passagem ao entrar. A confusão se alastra por todo o coletivo e o protagonista acaba no

hospital com sua melancia.

Na crônica publicada dia 14 de maio de 2002, sob o título “A paquera” (ANEXO

XXXIV), o pano de fundo são os então recorrentes furtos em ônibus cariocas e o quanto esse

crime já se tornara habitual e até mesmo cômico para os moradores. Na narrativa, Genérzio,

dentro de um ônibus, repara em uma mulher magrinha o encarando e sorrindo. Incentivado

pelos colegas de viagem, ele começa a paquerá-la. Genérzio aposta todas as fichas em sua

lábia e joga cantadas baratas para a moça, até que ela se indigna e revela que é casada.

Confuso com a situação, o protagonista questiona os sorrisos em sua direção, revelando a

crítica carnavalizada presente no texto. A passageira explica então que ria dele, pois tinham

levado sua carteira sem que percebesse.

Generézio completou:

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– Além do mais, eu tava passando a cantada, porque você tava rindo pra mim! Entendeu!? A magrinha esclareceu: – Eu não tava rindo pro senhor, coisa nenhuma! Eu tava era rindo do senhor, porque vi um cara meter a mão no seu bolso e levar na maior a sua carteira! Foi preciso o pessoal intervir para tirar o Generézio de cima da magrinha. (ANEXO XXXIV)

O anonimato dos personagens suburbanos, seguido do desinteresse da imprensa por

eles, é outra marca da obra de Léo Montenegro. Na crônica “A Glória” (ANEXO XXXV), de

20 de junho de 2003, tal situação é evidenciada e, claro, carnavalizada. O personagem central,

Jumenildo, é um exibido que vai a enterros de famosos ou pessoas influentes para aparecer no

noticiário da televisão. Ocorre que, na crônica, seu plano fica frustrado porque o morto não

era famoso. O enterro, no cemitério do Caju, na Zona Portuária, é marcado pela presença do

personagem central ao lado do morto durante o velório. Quando o personagem é notado, os

parentes do falecido o identificam como sendo de alguém que cobraria pelo caixão. Jumenildo

esclarece que está lá apenas aguardando a presença de cinegrafistas. Os parentes do morto se

ofendem, uma vez que ele não sendo famoso ou importante só atrairia equipe de televisão,

segundo eles, se fosse traficante. O encerramento, como de costume, é uma confusão seguida

de briga, que termina com o personagem agredido torcendo para virar notícia pela surra que

tomou até ser jogado para fora da capela onde ocorria o velório.

Já na crônica “A Sociedade” (ANEXO XXXVI), publicada em 24 de maio de 2001, o

ambiente suburbano pobre é revelado pela presença de três personagens disputando uma nota

de apenas R$ 10, esquecida no chão. O preconceito, outra crítica recorrente na obra de Léo

Montenegro, desta vez é contra o homossexualismo, uma vez que três homens, entre eles

Castrênio, se espremiam para pegar a nota caída e foram identificados como gays por duas

personagens que os observavam, uma magrinha e uma velhinha identificada como Dona

Coisa. As duas, revoltadas com o que pensam estar vendo, ameaçam bater nos três, que

correm. Na confusão, magrinha e velhinha encontram e gastam o dinheiro.

– E ainda tem esse negócio de sussurros? Aí, já é demais! A magrinha, empunhando uma sombrinha: – Vamos botar esses três pra correr, vovó! Castrênio, o magricela e o gordão, para não apanhar das duas, esqueceram a grana e se mandaram. Mas, como a magrinha e a velhinha ficaram, viram o tesouro e foram rachar na padaria em frente. (ANEXO XXXVI)

A crítica conta o preconceito religioso também é facilmente identificável nas

carnavalizadas crônicas de Léo Montenegro. No texto intitulado “Estabanado” (ANEXO

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XXXVII), publicado em 28 de junho de 2001, o personagem central Operanildo pisa no que

chama de macumba. Ele fica preocupado com os males que poderia sofrer. Uma simpatia

contra o mal feito logo é ensinada, mas o mal que está por vir vem do cotidiano. Depois de

contar o que havia passado, Operanildo resolve ir ao mictório e, no caminho, pisa no cachorro

do português dono do bar, que dormia no corredor escuro. Ele tem que ser internado em um

hospital para tratar das mordidas que sofrera.

Por fim, a violência suburbana, crescente na proporção do aumento populacional da

região, é outro tema relevante na obra de Léo Montenegro. Devidamente estampada no

noticiário, tal violência foi o mote da crônica “A má ideia” (ANEXO XXXVIII), de 28 de

junho de 2003, um sábado. A história começa com Birocrécio chegando a um bar agitando o

jornal, indignado com a onda de violência na cidade e avisando que construiria um muro de

três metros de altura ao redor de sua casa como forma de proteção. A partir daí o cronista

apresenta a reação dos demais frequentadores do bar, que tentavam tirar essa ideia da cabeça

dele. Um deles chega a citar o prefeito da cidade à época, dizendo que o Cesar Maia proíbe

isso. O diálogo entre os personagens é carregado de ironia e retrata o cotidiano daquela

comunidade. Um deles, apresentado como “negão”, tenta argumentar: “ - Não faça isso! Com

o muro, você vai perder a vista da vala, do verde, que é aquele terreno baldio da esquina, e da

montanha, que é a favela aqui em frente!”. Detalhe, tal descrição, em 2003, dialoga

diretamente com as feitas por Lima Barreto, quase cem anos antes.

Também nesta crônica de 2003 há um personagem considerado poeta por ser

compositor do bloco da comunidade, que pede a Birocrécio que ele desista de sua ideia

porque o muro o isolaria do mundo. O desfecho apresenta um fim surpreendente: o cronista

afirma que os vizinhos, sendo íntimos da mulher de Birocrécio, fizeram então uma reunião no

canto para uma providência necessária: cada um daria R$ 5 para comprar uma escada. Na

carnavalização do texto, violência, adultério e malandragem são expostas como naturalizadas,

em uma sofisticada, mas ácida crítica.

Esta crônica (“A má ideia”) é carregada de ironia e de informação sobre o cotidiano da

comunidade em que se passa a história - não só violência, mas também valas, terrenos baldios

e a favela em frente. Léo Montenegro cita o nome do prefeito, registrando também quem

estava à frente da administração pública. A coluna é publicada abaixo de uma série de quatro

notas sobre crimes ocorridos no Rio, uma ao lado da outra, no alto da página, com os

seguintes títulos: “Bandidos assaltam posto em Campinho”, “Pegos com armas e drogas na

Mangueira”, “Baleado no Morro do Querosene” e “Operação Zona Sul Legal em quatro

bairros”.

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As histórias narradas por Léo Montenegro somam 11 mil crônicas. A maior parte,

sendo direta a crítica carnavalizada sobre a vida no subúrbio. Seriam mais se ele não tivesse

morrido prematuramente, de enfarte. O jornalista Luarlindo Ernesto resume assim a perda:

“Morreu em 2003 e deixou saudades. O Avesso faz tanta falta quanto ele...”.34

A última coluna “Avesso da Vida” foi publicada logo abaixo da manchete da página

34 da edição de 6 de julho de 2003: “DIA perde humor de Léo”. Abaixo da notícia da morte

do cronista, o jornal brindou os leitores com o dilema de Ciclovildo , na crônica “O Manso”

(ANEXO XXXIX). Dividido entre a mulher e o papo com os vizinhos no bar, o personagem

central reflete. “Sou um homem dividido”, constata o marido, que tinha que chegar em casa

mais cedo para visitar a sogra junto com a mulher. Ciclovildo resolve consumir no bar tudo ao

mesmo tempo, a cerveja, chamada de gelada, e a cachaça, boa da roça, porque não podia

perder tempo. No fim, diante do estranhamento do português, avisa, já saindo, que precisa ir

porque “a mulher tá esperando”. A crônica termina com o português ligando para a mulher de

Ciclovildo: “Pô, você não disse que tava tomando a pílula?”, insinuando um caso de adultério

e entendendo equivocadamente que a mulher estava grávida.

A crônica “O Manso” mostra o cotidiano do personagem que se divide entre dois

ambientes: o doméstico e o do bar, lugar retratado na história com linguagem própria e

mostrando diálogos paralelos, como o comentário de uma gordinha que diz que pressa assim

só a do marido na “hora do vamos ver”, logo repreendida pelo próprio: “Lá se foi a minha

candidatura a líder comunitário”, fala o baixinho, pedindo que a mulher não o esculache em

público.

Com produção de textos muito disciplinada, Léo Montenegro enviava ao jornal O

DIA, na sexta-feira anterior, um e-mail com as crônicas que seriam publicadas de terça-feira a

domingo da semana seguinte. Como já mencionado no depoimento do editor Humberto

Tziolas para esta pesquisa, na sexta-feira que antecedeu a morte do cronista (ocorrida no

sábado, 5 de julho de 2003), Léo enviou o habitual e-mail com as seis crônicas, que foram

publicadas de forma agrupada no domingo seguinte à sua morte (ANEXO XXXX), dia 13 de

julho, essas, sim, as últimas crônicas do autor. Nelas, o mesmo estilo e as descrições habituais

de personagens. A história da viúva que requer pensão do marido sem êxito (crônica “O

Fantasma”) e a da funcionária de necrotério (crônica “Mulher Ciumenta”), ao lado de

personagens com nomes insólitos (Mansónério, Eunópio, Morelhagem e Agasparino) ou

descritos pelo tipo físico, como magrinha e gordo, ou pelo tipo de renda, como pensionista,

34 Depoimento do jornalista Luarlindo Ernesto para esta pesquisa em 2015

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são representados nos seis textos, em uma pequena amostra do que foi a vasta obra do

cronista.

Dos seis textos, dois são marcados pela ácida crítica carnavalizada, mas bastante forte

e direta. Estatisticamente, dos seis textos 30% se inserem diretamente na tradição iniciada por

Lima Barreto e continuada por João Antônio. Nessas duas crônicas, a crítica é relacionada às

eleições. O Brasil passara por eleições presidenciais, de deputados, senadores e governadores

no ano anterior e se preparava para o pleito que elegeria prefeitos e vereadores, já no ano de

2004. A memória do pleito ainda estava presente. Léo Montenegro fala de tema delicado: a

compra de votos.

Na crônica “Argumento Decisivo”, um candidato tenta conquistar eleitores

desconfiados. Eles só se decidem pelo voto quando o político diz: “prometo cerveja e tira-

gosto! Vamos para o bar!”. Os eleitores cedem ao convite, como deixa claro o cronista: “o

pessoal, eufórico: – Falou, vereador!”. Neste caso, o alvo da crítica ácida é a facilidade como,

em bairros do subúrbio, a compra de votos em troca de favores ainda persistia. O texto

localiza a comunidade de eleitores no subúrbio (“Nem prometa que vai trazer o Pão de Açúcar

pra nossa comunidade, porque isso nem o Lula pode fazer!”) e revela a baixa estima dos

moradores da região (“... aceite meus parabéns por elogiar as mulheres! Só errou nesse

negócio de homens probos! Só tem pilantra aqui!”).

Em outro texto, a crônica “A escolha do eleitor”, o personagem percorre mesas com

cabos eleitorais oferecendo tirar a pressão dos eleitores em troca de votos. Clara referência

aos centros sociais com serviços médicos que marcaram as eleições de 2003 e 2004, o eleitor

só se decide pelo voto quando a pressão arterial informada é aquela que ele queira ouvir, ou

seja, a crítica é, também, sobre a seriedade desses centros sociais. Para evitar identificação

com os centros sociais abundantes nos bairros suburbanos do Rio, a cena é localizada na área

central (“Estevaldo caminhava pelo Largo da Carioca”), mas o texto revela que o personagem

“vende” seu voto, ao ouvir que sua pressão estava em 12 por 8 (“Jura? Me dá o santinho do

seu candidato, que o meu voto já é dele! Meu, da minha família e de todos os meus amigos

leais! Podes crer!”). A narrativa revela ainda, sutilmente, que Estevaldo mora distante dali

(“Recebeu o santinho e se foi, doido para chegar em casa e falar maravilhas do tal candidato,

só por causa da pressão jóia”) e que não teria chance de ter uma consulta médica regular.

A edição especial do dia 13 de julho de 2003 (domingo após a morte do cronista)

completou a homenagem feita pelo jornal na edição de O DIA do dia 7 de julho de 2003, pelo

também cronista Cláudio Vieira (ANEXO XXXXI) É ele quem vai melhor resumir o estilo de

Léo Montenegro: “Só ele sabia escrever do jeito que o carioca fala, com tamanha competência

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e perfeição”. A opinião de Vieira ainda é compartilhada pelos leitores do “Avesso da Vida”,

como o internauta que escreveu no site Magé Online identificando-se como Edvaldo J.

Menezes. Ele postou sua mensagem no site às 22h27, do dia 23 de abril de 2014, após um

texto lembrando os 10 anos de morte de Léo Montenegro.

Sempre gostei do Avesso da Vida! Os personagens, as situações e os desfechos sempre ótimos do Léo Montenegro. Acho que o jornal O DIA deveria lançar edições comemorativas. Também tenho certeza que o Avesso da Vida daria um ótimo programa humorístico na TV. Seria a oportunidade de nós que conhecemos a arte de Léo relembrarmos e dos que não conhecem passar a conhecer.”35

Em outra resposta, o internauta José Carlos da Silva escreveu, em 9 de novembro de

2013, que havia acompanhado “por vários anos” os textos do Léo: “Era o primeiro texto que

procurava no jornal da época. Simplicidade, irreverência e humor, alegrava o início do dia de

trabalho”.

Foi outro internauta, Álvaro Luiz Magalhães Marques, escrevendo no dia de Natal, 25

de dezembro de 2013, às 12h58, quem deu ainda mais gás para esta pesquisa ao pedir o

“resgate da obra de Léo Montenegro”, chamado pelo leitor de “um maravilhoso presente”

para ele, para cidade do Rio e, “por que não?, também ao país e sua memória literária”.

Tal resgate, parcialmente feito nesta pesquisa, segue este sentimento com a certeza de

que Léo Montenegro integra a tradição de cronistas do subúrbio. Tal grupo, encabeçado por

Lima Barreto, continuado pelo paulista João Antônio, foi levado até 2003 pelo vascaíno e

portelense Léo e sua carnavalizada crítica aos infortúnios vividos pelos moradores desses

bairros do Rio.

35 In: http://mageonline.com/2013/avesso-da-vida-10-anos-sem-leo-montenegro/, consulta em 19 de agosto de 2014

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6 CONCLUSÃO

A presente tese procurou evidenciar uma tradição do cronismo entre autores que

elegeram os bairros do subúrbio do Rio de Janeiro e o cotidiano de seus habitantes como

temas preferenciais. Críticos em relação às condições de vida e o estado de conservação das

ruas, esse grupo de autores vai dar atenção para a falta de policiamento e assistência médica.

Olhará ainda para o aumento da criminalidade, para costumes reprováveis, como o machismo

e outras formas de preconceito, e para a ausência de emprego formal. Chamará a atenção

também para a malandragem decorrente da ausência de renda e para tolerância das

autoridades ao Jogo do Bicho, mesmo sendo esse tipo de jogatina considerada crime.

Essa tradição identificável nas obras de Lima Barreto, de João Antônio e de Léo

Montenegro se dá ao longo de momentos e contextos históricos diferentes, perfazendo quase

um século. Foi interessante notar que outros cronistas consagrados, como Olavo Bilac e João

do Rio, observaram essa área geográfica com atenção, mas não da forma militante, cuidadosa

e preferencial dos três autores que esta pesquisa classificou como cronistas do subúrbio.

Em comum, os três têm uma predileção de não dar roupagem romântica ou nostálgica

para o subúrbio. Falam preferencialmente do tempo em que escrevem, observando a partir do

chão o cotidiano da região. São inseridos no contexto epocal, nas ruas e periferias dos bairros

suburbanos e críticos em relação a administradores públicos que não dão a devida atenção à

essa região da cidade do Rio, quando comparados os cuidados dispensados a bairros da orla e

à região central.

Lima Barreto, como morador crítico, é ácido ao falar do subúrbio em implantação, dos

funcionários mal remunerados que tratam com desdém os trabalhadores informais ou

desempregados com os quais convivem no trem e nas ruas suburbanas. É atento ainda à

chamada cidade partida, polarizando habitantes das Zonas Norte e da Zona Sul do Rio. João

Antônio, paulista que elege o Rio como morada e a periferia como tema, encontrará no

subúrbio do Rio e na obra de Lima Barreto marcos para sua produção. "Refúgio dos

infelizes", termo consagrado na obra de Lima Barreto, é o subúrbio presente no cronismo do

paulista.

Léo Montenegro, por sua vez, tem em sua obra sinais claros de continuidade literária

com os outros dois cronistas, mesmo adotando estilo diverso dos ácidos textos de seus pares.

Portelense e vascaíno, morador de Jacarepaguá e frequentador de rodas de samba de

Madureira, o cronista de O DIA assume, para rememorar a imagem descrita pelo crítico

Antonio Candido, a tocha acesa por Lima Barreto e mantida assim por João Antônio.

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Identificar traços de continuidade nos três produtores literários, ora mais ora menos

conscientes de seus papéis na tradição que forma o cronismo no subúrbio, é valorizar seus

olhares para essa região da cidade e seus problemas. Jornalistas, os três cumprem ainda o

papel de comunicar à sociedade, de diferentes épocas, questões que se perpetuam e que se

transformam, mas que, muitas vezes, são naturalizadas por moradores suburbanos ou

simplesmente ignoradas por habitantes de outras regiões da cidade e do país.

Cabe ainda voltar a chamar a atenção para a crítica desenvolvida pelos três autores,

presente com intensidades diferentes, mas bastante fortes, apesar dos estilos e contextos

diversos. Lima Barreto, militante; João Antônio, ácido; e Léo Montenegro, carnavalizado.

Tais categorizações, simplistas, ajudam a entender a crítica social do cronismo de subúrbio a

que se refere essa pesquisa.

Interessante é frisar que a carnavalização, característica da obra de Léo Montenegro, é

evidente no nome da coluna que escreveu por 38 anos: “Avesso da Vida”. Isso mesmo, é

aproveitar conceito backtiniano de carnavalização, de inversão, para firmar o nome da coluna

que abrigou as crônicas de Léo. Intencional? Impossível hoje afirmar. O certo é que o nome

cai com perfeição para entender a forma como a crítica de Lima Barreto e João Antônio

desponta nos textos cômicos e divertidos de Léo Montenegro.

Por fim cabe sublinhar o cronismo ora trazido à tona nessa pesquisa, presente nas

obras de Lima Barreto e João Antonio e também no conjunto de crônicas aqui resgatadas da

obra de Léo Montenegro. Se essa pesquisa despertar o interesse para releitura dos três autores,

já terá cumprido, em parte, seu propósito. Se essa releitura ajudar quem se aventurar nessa

tarefa a interpretar diferentes esferas de uma realidade, muitas vezes distante no tempo e no

espaço ou mesmo ignorada, terá cumprido outra parte de seu propósito. E se o pensamento

aqui defendido conseguir ajudar futuros pesquisadores a identificar traços de continuidade em

cronistas suburbanos contemporâneos ou mesmo futuros, a presente pesquisa, que ora se

conclui, terá, enfim, completado seu propósito.

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