12
1 O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE: REBATIMENTOS E RESISTÊNCIAS NA ESFERA MUNICIPAL Argéria Maria Serraglio Narciso 1 Márcia Pastor 2 RESUMO: Apesar dos avanços decorrentes do Sistema Único de Saúde nos mais de 25 anos de sua existência, o sistema público ainda encontra dificuldades para materializar o direito social do acesso integral e universal à saúde. Este artigo busca realizar uma análise do contexto da crise contemporânea da política de saúde brasileira e os rebatimentos desta nas políticas locais de saúde. Os objetivos são realizar uma reflexão sobre os desafios impostos às políticas universais de saúde a partir de revisão bibliográfica e relatar a experiência de inserção no espaço do movimento social. Trata-se de uma reflexão sobre a materialização da contrarreforma do Estado e suas expressões na política de saúde da cidade de Londrina e como o movimento civil organizado tem realizado o enfrentamento a esses desdobramentos. A partir do relato de experiência, percebe-se que o movimento civil organizado vem resistindo à onda de privatização no sistema público de saúde, com destaque para o Fórum Popular em Defesa da Saúde Pública de Londrina e Região, junto com demais entidades da sociedade civil e com o conselho municipal de saúde. PALAVRAS-CHAVE: SUS; Privatização; Movimento Social; Serviço Social. INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 incorporou várias reivindicações feitas pelo movimento de reforma sanitária 3 . Com isso, a saúde passou a ser uma política pública de direito de todos e dever do Estado, sendo um dos eixos constituintes da seguridade social, junto com a previdência e assistência social. O Sistema Único de Saúde SUS, apesar de aprovado em 1988, somente em 1990 passa a ser implantado, com a promulgação da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90), 1 Assistente Social do Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina e doutoranda em Serviço Social e Política Social/UEL. E-mail [email protected] 2 Docente da Universidade Estadual de Londrina E-mail [email protected] 3 O Movimento de Reforma Sanitária Brasileira nasceu na luta contra a ditadura na segunda metade da década de 70, articulado ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) reunindo profissionais, intelectuais e lideranças políticas do setor saúde, vindos, na maioria, do Partido Comunista Brasileiro e estruturou-se nas universidades, no movimento sindical, em experiências regionais de organização de serviços. Representava um foco de oposição ao regime militar buscando a transformação do setor saúde, pressupondo a democratização da sociedade. Esse movimento social consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na qual, pela primeira vez, mais de cinco mil representantes de todos os seguimentos da sociedade civil discutiram um novo modelo de saúde para o Brasil. O resultado foi garantir na Constituição, por meio de emenda popular, que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado (AROUCA, 1998; CORREIA, 2005).

O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

  • Upload
    lamhanh

  • View
    221

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

1

O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE: REBATIMENTOS E

RESISTÊNCIAS NA ESFERA MUNICIPAL

Argéria Maria Serraglio Narciso1

Márcia Pastor 2

RESUMO: Apesar dos avanços decorrentes do Sistema Único de Saúde nos mais de 25 anos de sua

existência, o sistema público ainda encontra dificuldades para materializar o direito social do acesso

integral e universal à saúde. Este artigo busca realizar uma análise do contexto da crise contemporânea

da política de saúde brasileira e os rebatimentos desta nas políticas locais de saúde. Os objetivos são

realizar uma reflexão sobre os desafios impostos às políticas universais de saúde a partir de revisão

bibliográfica e relatar a experiência de inserção no espaço do movimento social. Trata-se de uma

reflexão sobre a materialização da contrarreforma do Estado e suas expressões na política de saúde da

cidade de Londrina e como o movimento civil organizado tem realizado o enfrentamento a esses

desdobramentos. A partir do relato de experiência, percebe-se que o movimento civil organizado vem

resistindo à onda de privatização no sistema público de saúde, com destaque para o Fórum Popular em

Defesa da Saúde Pública de Londrina e Região, junto com demais entidades da sociedade civil e com

o conselho municipal de saúde.

PALAVRAS-CHAVE: SUS; Privatização; Movimento Social; Serviço Social.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 incorporou várias reivindicações feitas pelo

movimento de reforma sanitária3. Com isso, a saúde passou a ser uma política pública de

direito de todos e dever do Estado, sendo um dos eixos constituintes da seguridade social,

junto com a previdência e assistência social.

O Sistema Único de Saúde – SUS, apesar de aprovado em 1988, somente em 1990

passa a ser implantado, com a promulgação da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/90),

1 Assistente Social do Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina e doutoranda em Serviço

Social e Política Social/UEL. E-mail [email protected] 2 Docente da Universidade Estadual de Londrina E-mail [email protected]

3 O Movimento de Reforma Sanitária Brasileira nasceu na luta contra a ditadura na segunda metade da década de

70, articulado ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) reunindo profissionais, intelectuais e

lideranças políticas do setor saúde, vindos, na maioria, do Partido Comunista Brasileiro e estruturou-se nas

universidades, no movimento sindical, em experiências regionais de organização de serviços. Representava um

foco de oposição ao regime militar buscando a transformação do setor saúde, pressupondo a democratização da

sociedade. Esse movimento social consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na qual, pela

primeira vez, mais de cinco mil representantes de todos os seguimentos da sociedade civil discutiram um novo

modelo de saúde para o Brasil. O resultado foi garantir na Constituição, por meio de emenda popular, que a

saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado (AROUCA, 1998; CORREIA, 2005).

Page 2: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

2

complementada pela Lei 8.142/90, as quais definem as atribuições dos governantes na

prestação e gestão dos serviços a saúde e os meios pelos quais a população pode exercer o

controle social.

O Estado, a partir do SUS, deveria garantir novos direitos, tais como a ampliação de

serviços não mercantis; porém, a partir de meados dos anos 90, este sistema foi alvo das reformas

neoliberais4 com ataque ao seu caráter e público e universal - visando o seu desmonte - através de

um processo de universalização excludente, mercantilização e privatização da saúde.

Os rebatimentos destas orientações, da chamada “reforma”5 do Estado afetou

diretamente o sistema de proteção social que poderia ser estruturado, visto que ocorreram

cortes nos recursos da previdência social, nos programas de assistência social e nos serviços

de saúde pública.

A seguridade emerge como um dos principais setores candidatos à privatização, graças a

sua enorme capacidade de produzir acumulação de capital na área financeira e na ampliação

do mercado de capitais, sobretudo o de seguros privados (SALVADOR, 2010, p. 28).

Essas reformas são decorrentes dos reflexos das mudanças do mundo econômico em

nível global e das consequentes reformas sanitárias propostas pelos agentes financeiros

internacionais, em especial, pelo Banco Mundial (BM), que vem tendo proeminência nesta

área, desde a segunda metade da década de 80 (CORREIA, 2005).

DESENVOLVIMENTO

Para compreender as razões que levaram ao retrocesso do Sistema Único de Saúde - o

chamado “SUS legal” - conquistado no final dos anos 80 e início dos anos 90, e o “SUS real”

(ataques ao seu caráter universal e público), há necessidade de inicialmente contextualizar as

4 Também chamadas de contrarreformas do Estado, iniciadas na década de 90 pelo seu caráter regressivo do

ponto de vista do direito da classe trabalhadora, trata-se de medidas exigidas ao Brasil pelos programas de

ajustes macroeconômicos sustentados pelos agentes financeiros internacionais, referindo-se ao processo de

"desestruturação do Estado e perda de direitos.” (BEHRING, 2003). 5 Na concepção do governo FHC, o então Ministro Bresser Pereira,deu início à reforma do Estado, entendida

“como um processo de criação ou de transformação de instituições, de forma a aumentar a governança e a

governabilidade”. Argumentava que a “Privatização é um processo de transformar uma empresa estatal em

empresa privada. Publicização, de transformar uma organização estatal em uma organização de direito

privado, mas pública não-estatal. Terceirização é o processo de transferir para o setor privado serviços

auxiliares ou de apoio (BRASIL, 1995, p.18).

Page 3: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

3

mudanças do mundo econômico que prejudicaram as políticas estatais dos países de

capitalismo periférico, em especial a política de saúde brasileira e a materialização da

contrarreforma do Estado e suas expressões na política de saúde da cidade de Londrina.

Para tanto, definiu-se como objetivos: realizar uma reflexão sobre os desafios

impostos às políticas universais de saúde e relatar a experiência de inserção no espaço do

movimento social.

Quanto aos procedimentos metodológicos, o caminho percorrido na construção deste

trabalho deu-se a partir de revisão bibliográfica em artigos, acesso virtual no blog da Frente

Nacional Contra a Privatização da Saúde e a observação sistemática das reuniões do Conselho

Municipal de Saúde de Londrina. Trata-se do relato de experiência da participação no

movimento social, com o engajamento no Fórum Popular em Defesa da Saúde Pública em

Londrina, propiciado uma visão mais crítica da crise contemporânea da política de saúde

brasileira e os rebatimentos desta na política municipal de saúde.

Os projetos de esvaziamento do Estado foram colocados em curso com profundas

consequências para as sociedades latino-americanas com o advento do neoliberalismo em

âmbito mundial, em boa parte do Ocidente, especialmente na América Latina, com a

desmontagem de serviços públicos e as privatizações dos serviços, decorrentes dos reflexos

das mudanças do mundo econômico e das reformas propostas pelos agentes financeiros

internacionais.

Segundo Andreazzi et al. (2011, p. 91-92), esta é uma orientação do Banco Mundial

com recomendações ao Brasil, nos anos 1990:

Constam, nesses documentos, o estabelecimento de um pacote de benefícios de saúde-

padrão e a limitação do acesso a serviços de atenção terciários, ambos, uma recomendação

constante no relatório geral do Banco 1993. E, ainda, o incentivo à concorrência na

prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares, envolvendo indistintamente os setores

públicos e privados, bem como a adoção de formas de copagamentos [...].

Enquanto se preconizava a universalização do direito, defrontava-se com um desmonte

do aparato público, com financiamento muito aquém do que foi previsto, com racionamento

na oferta progressiva e queda dos serviços, com a não abertura de concursos públicos, com

rotatividade dos profissionais e a não garantia da estabilidade no emprego, afetando

diretamente o atendimento e a organização da classe trabalhadora da área de saúde.

Page 4: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

4

A política de saúde do Brasil tem dois projetos antagônicos: “o projeto do capital, que

defende as reformas recomendadas pelo Banco Mundial, e o projeto de setores progressistas

da sociedade civil, que defendem o SUS e seus princípios, integrantes da proposta da reforma

sanitária.” (CORREIA, 2006, p. 130-131).

O projeto que defende o SUS é composto por membros dos movimentos populares,

sindicais e estudantis, articulados ao Movimento da Reforma Sanitária dos anos 80 e 90, dos

conselhos de saúde com destaque para o Conselho Nacional de Saúde. O outro projeto é do

setor privado: donos de hospitais, indústrias farmacêuticas, de equipamentos nacionais e

internacionais, com apoio de grande parte do governo que tem implementado na política de

saúde reformas limitando as funções do Estado (CORREIA, 2005).

Desde o Governo FHC (1995-2002), depois com o governo Lula (2003-2010), mesmo

com a determinação legal de universalização das políticas sociais, o que se tem visto na

prática é o contrário: uma predominância do projeto neoliberal nas ações governamentais com

a orientação política seguindo estratégias de privatização (SALVADOR, 2010).

A reforma do Estado brasileiro orientou para a contenção de gastos a partir de medidas

de “austeridade”, que consiste em promover os valores como renúncia fiscal, disciplina e

“seletividade”, ou seja, a “seleção de demandas” aumento da “eficiência e efetividade” na

utilização dos recursos destinados a saúde para conter os custos do sistema (NOGUEIRA,

2011).

Este baixo financiamento é decorrente da política econômica adotada pelos sucessivos

governos, seja da direita ou da frente popular, por não revogar a lei de responsabilidade fiscal,

que limita os gastos públicos com pagamento de servidores públicos. Outro entrave é a

manutenção da DRU (Desvinculação das Receitas da União) que retira dinheiro do orçamento

da seguridade social para o pagamento da dívida pública (BLINDER, 2013).

Ainda é precoce fazermos uma análise do governo Dilma, uma vez que está em curso;

porém, algumas medidas adotadas no governo atual têm evidenciado o fortalecimento do

privado em detrimento do público na saúde. A aprovação da Lei 12.550/2011 que criou a

Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e desvincula os Hospitais

Universitários das Universidades demonstra este atrelamento.

Page 5: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

5

Esta lei compromete a formação e qualificação dos profissionais que trabalham na

saúde pública; a Empresa irá atuar na lógica de mercado, colocando em risco a independência

das pesquisas realizadas no âmbito dos Hospitais Universitários e poderá direcionar a

produção do conhecimento na área de saúde, ferindo o princípio constitucional de

indissociabilidade entre ensino, pesquisa, extensão.

Os movimentos sociais em saúde no Brasil, como associações de classes, os conselhos

de saúde, especialmente o Conselho Nacional de Saúde pela expressão da maioria de seus

representantes, são contrários à implantação dessas novas modalidades institucionais. Mesmo

sendo aprovada na 14º Conferência Nacional de Saúde, realizada entre 30 de novembro e 04

de dezembro de 2011, a moção contra as terceirizações e privatização no SUS o controle

social: “Rejeitar a criação da Empresa Brasileira de serviços Hospitalares (EBSERH),

impedindo a terceirização dos hospitais universitários e de ensino federais”, são constantes as

“adesões” a esta empresa.

No Estado do Paraná, o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná

(UFPR) debateu em novembro do ano passado (2013) a “adesão” à EBSERH e a maioria do

Conselho Universitário decidiu recusar o contrato devido à grande mobilização de

trabalhadores e estudantes, para evitar a perda de autonomia e do controle administrativo do

hospital (FÓRUM POPULAR EM DEFESA DA SAÚDE PÚBLICA DE LONDRINA,

2014).

Entretanto, nova articulação do Reitor da UFPR em maio (2014) para assinatura do

contrato com EBSERH- Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, utilizou meios

arbitrários e autoritários: “Contratou cerca de 150 seguranças privados para coibir a

participação dos manifestantes (funcionários públicos com longos anos de carreira,

profissionais de saúde, estudantes da área de saúde e usuários do SUS)” contrários a

EBSERH. O Movimento contrário à privatização do HC contou com a participação de

membros do Fórum Popular de Saúde de Londrina e conseguiu obter êxito através de uma

liminar judicial alegando que a reunião era ilegal porque foi marcada em cima da hora e sem

divulgar onde se realizaria (FÓRUM POPULAR EM DEFESA DA SAÚDE PÚBLICA DE

LONDRINA, 2014).

Page 6: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

6

Também em Londrina, no dia 30 de novembro de 2013, foi realizado o I Simpósio:

Novos Modelos de Gestão e Financiamento dos Hospitais Universitários do Paraná. O

objetivo era debater as dificuldades enfrentadas na Gestão dos Hospitais Públicos

Universitários Paranaenses e apresentar à “comunidade” do HU Londrina, uma visão gestora

atual e futura de Hospitais Públicos Brasileiros. Os organizadores intencionavam ao final do

Seminário tirar uma moção de apoio à criação da Fundação. No entanto, o encaminhamento

foi outro, em razão da mobilização dos participantes do Fórum Popular em Defesa de Saúde

Pública, que durante o evento manifestaram-se contrários à criação desta fundação no HU de

Londrina, destacando os malefícios para o próprio hospital.

A UNIVERSALIDADE NO SUS

As investidas contra o caráter universal do sistema público de saúde SUS tem sido

constantes; tem-se direcionado as ações para atendimento aos mais pobres, àqueles que não

podem pagar pelos serviços no mercado, através de um modelo assistencial baseado na oferta

da atenção básica. Ao invés de desencadear um processo de universalização, ou seja, um

processo de extensão de cobertura dos serviços, de modo que venha, paulatinamente, a se

tornar acessíveis a toda a população, propõe-se a “cobertura universal na atenção básica”,

reduzindo o SUS a um nível de atenção. (TEIXEIRA, 2011).

Outra ameaça ao caráter universal do SUS, foi a recente discussão sobre “diferença de

classe” em internação pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ocorrida em maio/2014 na

audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), para julgamento do Recurso

Extraordinário (RE) do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul6 defensor do

pagamento adicional por parte de pacientes atendidos no SUS para ter melhores médicos e

hospitais (BRASIL, 2014).

Todavia, há que se considerar que esta “dupla porta” de acesso ao SUS promove

privilégios a alguns pacientes em detrimento de outros e ocorre o desvio de finalidade no uso

6 O CREMRS (Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul) ajuizou ação contra todos os

municípios gaúchos com gestão plena do SUS solicitando a “diferença de classes”. No caso do município de

Canela a ação foi julgada improcedente aos usuários do SUS, o CREMRS recorreu ao STF, que convocou a

audiência pública.

Page 7: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

7

do recurso do SUS para o atendimento privado. Assim, na modalidade proposta o acesso

ocorre pela via financeira, ferindo o princípio da universalidade.

O argumento utilizado é a defesa de quem pode pagar escolhe o médico e o hospital e

utiliza os leitos do SUS com melhores acomodações; os demais que não podem arcar com este

custo terão mais dificuldade ainda no acesso a internação hospitalar.

Para Pereira7 (2014) a existência da “dupla porta de entrada”, distorce a alocação de

recursos públicos; corre-se o risco de o acesso universal assumir o caráter [...]

“patrimonialista e clientelista em que o próprio poder público aporta mais dinheiro onde se

tem clientes privados tendo acesso privilegiado”.

A iniciativa do RE (Recurso Extraordinário) foi rechaçada pela maioria dos diferentes

segmentos presentes na audiência pública (Ministério Público Federal, o Ministro da Saúde,

Sindicatos, Conselho Nacional e os Estaduais de Saúde, o TCU e a Frente Nacional Contra a

Privatização) O processo será encaminhado para a Procuradoria Geral da República (PGR), e

posteriormente aos demais ministros do STF para análise e decisão.

Espera-se que seja considerada a inconstitucionalidade e ilegalidade desta modalidade

de acesso ao SUS, mas esta investida dos interesses privados demonstra o quanto cada dia

mais depara-se com o desafio de garantir a universalidade na política de saúde.

FINANCIAMENTO E GESTÃO

Um dos desafios apontados para os baixos investimentos em saúde refere-se à

ausência de legislação que obriga o financiamento nos três níveis de governo. Desde 2003,

tramitava na Câmara Federal o Projeto de Lei para regulamentar a Emenda Constitucional

298, o qual define o percentual de financiamento de cada instância de governo para a saúde

pública brasileira. No ano de 2012 foi aprovada a PEC 29 sem uma definição de mínimo de

7 Luceni Pereira – Auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (TCU) e Representante da

Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANATC) 8 EC 29 define os percentuais de gastos em saúde nas três esferas do governo, obriga as três esferas de governo

a aplicar um percentual mínimo anual dos recursos financeiros públicos no custeio da assistência à saúde. O

Projeto inicial, previa alocar 10 % da Receita Bruta da União, 12 % para os Estados e 15 % aos municípios.

A Lei Complementar nº 141/2012 no art. 5º define que a União deve aplicar, no mínimo, o montante

correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior acrescido do percentual correspondente

à variação nominal do PIB ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual.

Page 8: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

8

gastos federais para a saúde, frustrando uma luta de anos por melhoria no financiamento da

saúde.

O que se tem constatado no atual governo, a partir das expressões orçamentárias, é a

manutenção do subfinanciamento publico para a política universal de saúde. A compreensão

do governo e de políticos sobre fonte de recursos permanentes para a saúde é bem mais

reduzida do que preconizado na constituição de 1988 (BAHIA, 2011)

Para se ter uma ideia do percentual de financiamento na saúde no Estado do Paraná,

no primeiro quadrimestre (2014) foram destinados 9,5%9, sendo que o mínimo estabelecido

em lei é de 12%. Quanto à cidade de Londrina, no ano de 2003 o município gastou 20,90 %, e

nos demais anos os percentuais também oscilaram em torno de 20%. Neste primeiro

quadrimestre (2014) foram aplicados 28% do orçamento municipal em saúde, valor bem

acima do que prevê a legislação, cujo percentual é de 15% (LONDRINA, 2014)10

.

Embora se mantenha este percentual acima do preconizado, a cidade de Londrina, a

exemplo de outras cidades do Brasil, enfrenta uma longa crise na política de saúde, refletindo na

pouca resolutividade na atenção básica, na baixa qualidade dos serviços prestados aos usuários

do sistema, na superlotação da urgência e emergência, na falta de leitos de UTI e problemas

com terceirizações e escândalos envolvendo desvios11

de recursos públicos da saúde.

Somando-se a este contexto, desde 2006 a gestão da política de saúde depara-se com

entraves burocráticos e centralidade dos processos licitatórios na Secretaria de Gestão Pública

da Prefeitura Municipal, sob os argumentos da economicidade e controle nos processos de

compras. Porém, o que de fato se percebe é que esta centralidade tem trazido uma série de

prejuízos à população devido à falta de agilidade nos processos de compras de medicações,

insumos, equipamentos, reformas na estrutura física, dentre outras.

9 Fonte SIAF- SAI 220- Relatório Resumido de Execução Orçamentária- 1 quadrimestre

10 Prestação de Contas do 1º Quadrimestre (2014) apresentada na reunião do Conselho Municipal Saúde-

18/06/2014. 11

Em maio de 2010, foi identificado pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado

(GAECO) desvio de recursos com a Oscip Centro Integrado e Apoio Profissional (CIAP), edital fraudulento na

contratação de servidores, cujos desvios chegaram a 300 milhões em verbas federais (COSTA, 2010). Um

ano depois, maio de 2011, foi deflagrada novamente pelo GAECO a "Operação Antissepsia", prendendo 23

pessoas suspeitas de desvio de dinheiro público, através de duas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips).

Page 9: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

9

Mesmo com a existência de uma Resolução para o retorno da autonomia na

Autarquia de Saúde, nem os prefeitos anteriores e nem o atual sinalizaram para esta

mudança, optando por uma centralização do poder, o que demonstra uma gestão

conservadora, ao invés de se pensar:

[...] uma matriz de administração pública tendo com referência elementos da organização

burocrática que potencializam a intervenção administrativa numa perspectiva pautada no

atendimento das demandas e necessidades das classes dominadas [...] (SOUZA FILHO,

2011, p. 77).

O desfinanciamento da saúde tem dois componentes: falta de recursos financeiros e

mau uso ou uso incorreto dos recursos pela ineficiência administrativa e perdas vultosas em

decorrência da corrupção.

O movimento popular nacional em defesa do SUS tem tido uma atuação de resistência

frente à privatização e vem articulando várias ações na cidade com o objetivo de mostrar o

quanto é perversa esta lógica tanto para política de saúde, como para o usuário e para o

trabalhador o sistema.

O inicio da terceirização nessa cidade ocorreu em 2002, quando o então prefeito

firmou termos de parcerias com OSCIPs para a realização da prestação de serviços em

programas de saúde em Londrina. À época, o contrato, denominado Termo de Parceria, foi

firmado com uma OSCIP da cidade de Londrina para administrar o pessoal da Estratégia

Saúde da Família, especialmente os agentes comunitários de saúde. Desde então, a cada

finalização de um contrato na modalidade de OSCIPs, firmava-se um novo contrato como

justificativa de não interrupção dos serviços.

Na saúde, estas terceirizações surgiram com o argumento de que não havia recursos para

serem aplicados com servidores públicos, dentro do coeficiente da Lei de Responsabilidade

Fiscal (Lei complementar nº 101 de 04/5/2000), que estabelece um limite de gastos públicos

com pessoal, tornando rígida a fiscalização e responsabilização dos governantes com a gestão

fiscal; caso seja descumprida, existe punição prevista no Código Penal.

Neste ano o atual governo municipal optou por ampliar as vagas de servidores, abriu

concurso para os agentes comunitários de saúde e agente de endemias, com vistas a diminuir

as terceirizações no município.

Page 10: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

10

RESULTADOS

O movimento civil organizado em defesa do SUS na cidade de Londrina12

e o

movimento nacional13

, que lutam a favor da melhoria da qualidade da prestação de serviço

público de saúde e contra as terceirizações e privatizações tem desenvolvido ações visando à

ampliação da participação popular em defesa do SUS garantido constitucionalmente.

Desde maio de 2010, quando da criação do Fórum Popular em Defesa da Saúde

Pública de Londrina, unido a demais organizações populares e sindicais, e junto com o

Conselho Municipal de Saúde lideraram o movimento de enfrentamento da política

privatizante da saúde proposta pelo executivo e legislativo local.

Para tanto, têm-se debatido com a comunidade, universidades, conselhos de saúde e

movimentos sociais sobre os malefícios deste modelo de privatização (Fundações, OSs,

OSCIPs). No caso de Londrina foram apresentados no ano de 2011 cinco projetos de lei que

visavam a criação de OSs e Fundações14

Estatais de Direito Privado, que previam a

terceirização do patrimônio público, com utilização de servidores públicos e capacidade

instalada do Estado para servir aos interesses de alguns empresários ou aliados de alguns

partidos políticos. Como resultado deste movimento social, estes projetos foram derrubados

tanto na esfera do conselho municipal de saúde como no poder legislativo.

CONCLUSÕES

Temos nos deparado tanto no contexto nacional, estadual e municipal com manobras

parlamentares e interesses individuais de cunho privatista, descaracterizando o que

defendemos como Sistema Único de Saúde. Quem conhece o sistema de saúde nos diferentes

níveis e acompanha minimamente a gestão percebe que é feito um grande malabarismo para

administrar os poucos recursos existentes.

Entendemos que os problemas de Gestão no SUS não serão resolvidos com os

chamados “novos” modelos de gestão (OSs, OSCIPs, Fundações de direito privado, EBSHER

12

Fórum Popular em Defesa da Saúde Pública de Londrina 13

Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde 14

A Fundação Estatal (FE) insere-se na categoria de entidade pública, integrante da administração pública,

porém com permissão para uma gestão de modelo privado.

Page 11: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

11

e outros), mas assegurando investimento, fornecendo as condições materiais necessárias para

financiamento da rede pública estatal de serviços preconizados pelo SUS. Isto envolve a

necessidade de ampliação dos serviços públicos, dos recursos humanos e a administração

direta com gestão pública estatal, com o controle social efetivo.

Inúmeros desafios são postos para efetivar as instâncias democráticas e a garantia de

direitos sociais aos usuários do SUS. Cabe-nos, como trabalhadores da saúde, incluindo os

assistentes sociais, ocupar os espaços de luta, debater junto aos usuários do SUS sobre a grave

situação de saúde, assim como os aspectos conjunturais que incidem nessa política.

REFERÊNCIAS

ANDREAZZI, M. F. S. et al. Copagamentos no sistema público brasileiro: anomalia ou tendência?

Revista Serviço Social & Sociedade, n. 105, p. 91-92, jan./mar. 2011.

AROUCA, S. Reforma sanitária. Disponível em:<http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/

sanitarista05.html>. Acesso em: 11 jun. 2011.

BAHIA, L. A privatização no sistema de saúde brasileiro nos anos 2000: tendências e justificação. In:

SANTOS, N. R.; AMARANTE, P. D. C. (Org.). Gestão publica e relação publico privado na

saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2011. p. 115-128.

BEHRING, Elaine Rosset. Brasil em contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos.

São Paulo: Cortez, 2003.

BLINDER, A. Pacto de Dilma para saúde: mais do mesmo . 2013. Disponível em:

<http://www.pstu.org.br/node/19513>. Acesso em: 29 maio 2014.

BRASIL. Ministério da Saúde, Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado- MARE.

Sistema de Atendimento de Saúde do SUS, Brasília, 1995.

______. Supremo Tribunal Federal. Notícias do STF. STF realiza na segunda-feira (26) audiência

pública sobre internações no SUS. 2014. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=267422 >. Acesso em 17 jun

2014.

______. Tribunal de Contas da União. Auditora do TCU aponta distorção na destinação de

recursos públicos na saúde. 2014. Disponível em: <http://m.stf.jus.br/portal/noticia/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=267658 >. Acesso em: 13 jun.

2014.

CORREIA, M. V. C. Controle social na saúde. In: MOTA, A. E. et al. (Org.). Serviço social e saúde.

São Paulo: OMS, 2006. p. 111-138.

Page 12: O SUS E A CRISE ATUAL DO SETOR PÚBLICO DE SAÚDE ...cac-php.unioeste.br/eventos/Anais/servico-social/anais/TC_SUS_E... · diretamente o sistema de proteção social que poderia ser

12

______. O Conselho Nacional de Saúde e os rumos da política de saúde brasileira: mecanismo de

controle frente as condicionalidades dos organismos financeiros internacionais. 2005. Tese (Doutorado

em Serviço social) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

FÓRUM POPULAR EM DEFESA DA SAÚDE PÚBLICA DE LONDRINA. Nota de Repúdio do

Fórum de Saúde de Londrina ao autoritarismo na UFPR. Disponível em:

<http://forumpopularlnd.blogspot.com.br>. Acesso em: 21 jun. 2014.

FRENTE NACIONAL CONTRA A PRIVATIZAÇÃO. Carta Aberta aos Ministros do Supremo

Tribunal Federal pata expressar posição contrária a “diferença de classe” e em defesa do SUS.

2014. Disponível em: <http://www.contraprivatizacao.com.br/2014/05/0929html>. Acesso em:15 jun.

2014.

NOGUEIRA, R. P. O desenvolvimento federativo do SUS e as novas modalidades institucionais de

gerência das unidades assistenciais In: SANTOS, N. R.; AMARANTE, P. D. C. (Org.). Gestão

publica e relação publico privado na saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2011. p. 115-128.

SALVADOR, E. Fundo Público e seguridade social no Brasil- São Paulo: Cortez, 2010.

SILIANSKY, M. F. Seminário sobre os 20 anos do SUS aconteceu na UERJ. 2010. Disponível em:

<http://www.adufrj.org.br/joomla/index.php/component/ content/article/108-ultimas/5793-seminario-

sobre-os-20-anos-do-sus-aconteceu-na-uerj.html>. Acesso em: 13 jun. 2011.

SOUZA FILHO, R. Gestão pública e democracia: a burocracia em questão. Rio de Janeiro : Lumen

Juris, 2011.

TEIXEIRA, C. Os princípios do sistema único de saúde. 2011. Disponível em:

<http://www.saude.ba.gov.br/pdf/OS_PRINCIPIOS_DO_SUS.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2014.