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Anais do Simpósio da International Brecht Society, vol.1, 2013. O TEATRO ÉPICO E AS PEÇAS DIDÁTICAS DE BERTOLT BRECHT: uma abordagem das mazelas sociais e a busca de uma significação política pelo teatro. OLIVEIRA, Urânia Auxiliadora Santos Maia de 1 RESUMO Este resumo pretende apresentar o processo de montagem do espetáculo teatral “Hip Brecth Hop” desenvolvido na pesquisa de doutoramento em Artes Cênicas, com jovens atores de um bairro popular de Salvador/Bahia. Os atores trouxeram o Hip Hop por identificarem a semelhança entre o coro das peças didáticas e a linguagem utilizada pelos hip hoppers em suas músicas. A base metodológica utilizada foi a aplicação das peças didáticas de Bertolt Brecht e do seu teatro épico. O intuito foi o de utilizar esses dois recursos no processo de criação dramatúrgica, sensibilização dos sentidos e construção de um espetáculo teatral cuja intervenção social teve em seu cerne a idéia de emancipação política e de produção estético-discursiva. Será relatado como as peças didáticas foram aplicadas e sua repercussão no processo de crescimento individual, artístico e de criação do texto dramatúrgico. A práxis e o sentido do trabalho com o teatro em comunidades visa a expansão do campo-consciência dos jovens atores. A peça didática serve como pré-texto que necessita ser articulado de maneira eficiente para que a partir dessa lógica provocativa os atores sintam-se estimulados a recortarem situações cotidianas e aplicarem as mesmas como embriões de um novo texto teatral. Para tanto se aplicou durante o processo a peça didática, como um modelo de aprendizagem” onde cenas cotidianas das mazelas sociais foram narradas e vivenciadas. Modelo de aprendizagem que, além de despertar a consciência crítica, política e social, permite a aplicação de exercícios teatrais preparatórios do corpo, da voz e da interpretação dos atores. Palavras-chave: Teatro; peça didática; política. 1 Professora Adjunto EMAC – Escola de Música e Artes Cênicas - UFG

O Teatro Épico e as Peças Didáticas de Bertolt Brecht Uma Abordagem Das Mazelas Sociais e a Busca de Uma Significação Política Pelo Teatro

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    O TEATRO PICO E AS PEAS DIDTICAS DE BERTOLT BRECHT: uma abordagem das mazelas sociais e a busca de uma significao poltica pelo

    teatro.

    OLIVEIRA, Urnia Auxiliadora Santos Maia de1

    RESUMO

    Este resumo pretende apresentar o processo de montagem do espetculo teatral Hip Brecth Hop desenvolvido na pesquisa de doutoramento em Artes Cnicas, com jovens atores de um bairro popular de Salvador/Bahia. Os atores trouxeram o Hip Hop por identificarem a semelhana entre o coro das peas didticas e a linguagem utilizada pelos hip hoppers em suas msicas. A base metodolgica utilizada foi a aplicao das peas didticas de Bertolt Brecht e do seu teatro pico. O intuito foi o de utilizar esses dois recursos no processo de criao dramatrgica, sensibilizao dos sentidos e construo de um espetculo teatral cuja interveno social teve em seu cerne a idia de emancipao poltica e de produo esttico-discursiva. Ser relatado como as peas didticas foram aplicadas e sua repercusso no processo de crescimento individual, artstico e de criao do texto dramatrgico. A prxis e o sentido do trabalho com o teatro em comunidades visa a expanso do campo-conscincia dos jovens atores. A pea didtica serve como pr-texto que necessita ser articulado de maneira eficiente para que a partir dessa lgica provocativa os atores sintam-se estimulados a recortarem situaes cotidianas e aplicarem as mesmas como embries de um novo texto teatral. Para tanto se aplicou durante o processo a pea didtica, como um modelo de aprendizagem onde cenas cotidianas das mazelas sociais foram narradas e vivenciadas. Modelo de aprendizagem que, alm de despertar a conscincia crtica, poltica e social, permite a aplicao de exerccios teatrais preparatrios do corpo, da voz e da interpretao dos atores.

    Palavras-chave: Teatro; pea didtica; poltica.

    1 Professora Adjunto EMAC Escola de Msica e Artes Cnicas - UFG

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    ABSTRACT

    This paper aims at presenting the process of staging the play Hip Brecht Hop developed in the theses of doctorate in performing arts, with young actors and a popular dancer from Salvador/Bahia. The actors brought Hip Hop for they identify the likelihood of chorus of the didactical plays and the language used by hip hoppers in their music. The methodological founding used was the applying of the didactical pays by Bertolt Brecht and of his Epic theatre. The aim was to use these two resources in the process of dramaturgic creation, sensitization of senses and the development of a theatrical play which social intervention had in its core the idea of political emancipation and aesthetics-discursive production. We will report on the application of the didactical pays and their repercussion in the process of individual growth, artistic and of creating the dramaturgic text. The praxis and the meaning of working with community theatre aim at the expansion of the science-field of the young actors.The didactical play has the role of a pretext that needs to be articulated in an efficient manner so that from that provocative logic actors feel stimulated to frame everyday situations and apply them as embryos of a new theatrical text. For that purpose we have applied the didactical play as a learning model where everyday scenes of social afflictions were narrated and experienced. Critical, political and social consciousness is brought about through this learning model and it also allows the applying of theatrical body training as well as voice and acting exercises.

    Key words: theatre; didactical play; politics.

    Pessupostos para compreenso do teatro didtico brechtiano

    Nas ltimas dcadas do sculo XIXa srie de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo, prenunciava a ecloso de uma grande guerra mundial. A Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma concentrao do capital industrial aliado ao capital bancrio, formando monoplios poderosos. Nesse

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    cenrio, a classe operria passava por momentos difceis e de uma forma bastante tmida no incio, eclodiam esporadicamente movimentos de revolta contra o regime burgus.

    No , portanto de se estranhar, que toda a obra de Brecht vir marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. Todo o tempo h uma profunda reflexo sobre a situao do homem num mundo dividido em classes; e o estudo do relacionamento entre os homens que vivem condicionados a uma diviso econmica-poltica.

    A caracterstica mais importante da obra brecht a viso que ele tinha do teatro como um elemento que deve apresentar sociedade os fatos cotidianos a fim de que o espectador os julgassem, portanto, tudo serviria de depoimento e documentao. Tanto o seu teatro pico quanto o didtico so narrativos e descritivos, onde por meio de um processo dialtico Brecht apresentava duas funes: fazer as pessoas se divertirem e pensarem.

    Nenhum outro escritor foi to representativo da sua poca quanto Brecht. Uma poca tumultuosa de rebeldia e de protesto refletida extraordinariamente em suas obras, que apontam sempre para os problemas fundamentais do mundo atual: a luta pela emancipao social da humanidade.

    A alienao do homem, para Brecht, no se manifesta como produto da intuio artstica. Brecht ocupa-se dela de maneira consciente e proposital. Mas no basta compreend-la e focaliz-la. O essencial no a alienao em si, mas o esforo histrico para a desalienao do homem.

    Essa opo de Brecht por um teatro que apresenta caractersticas que formam uma trade narrativo, crtico e poltico. A construo de uma teoria de representao teatral fundamentada no distanciamento do ator tem por objetivo deixar claro o carter social e mutvel do que mostrado, o que vai de encontro imutabilidade da natureza humana pregada pelo teatro dramtico.

    Sua obra tem compromissos firmados com a causa poltica sem deixar de apresentar seu autor como um artista talentoso, criador e renovador de sua arte. Isso marcou profundamente suas concepes na histria da dramaturgia e do teatro mundial.

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    A obra de Brecht exprime em sua quase totalidade uma revolta contra a arrogncia dos detentores do poder e, contra toda a disciplina cega. Com a finalidade de alcanar a massa oprimida atravs de seus escritos criaum teatro de ao social voltado para mostrar que o homem tem a capacidade, o direito e o dever de transformar o mundo em que vive. E que no possvel lutar contra a retrica de um governo, mostrando que o destino do homem deve ser sempre preparado por ele mesmo.

    A partir da, a preocupao de Brecht em relao ao teatro ter como cunho especfico utiliz-lo no apenas como forma de interpretar o mundo, mas principalmente como um meio de mud-lo e o autor confirma esse pressuposto ao escrever: A arte segue a realidade (BRECHT apud EWEN, 1991, p.196).

    Ao escrever suas peas, Brecht imagina um espectador atento e no passivo perante a arte apresentada nos palco, um espectador cujo papel no era apenas de sentir a emoo, mas entender-se como ator da prpria realidade, com capacidade de criticar e mudar o mundo, era preciso usar meios imediatos de chegar s pessoas. Foi desta forma que Brecht junto a outros artistas da poca passaram a levar suas canes e poemas para as tavernas e at mesmo para restaurantes de maior porte.

    dessa forma que surge a Lehrstcke2, ou peas didticas de Brecht. Na opinio de Ewen, elas eram compostas mais com o olho nos seus participantes do que na plateia e marcaram uma fase altamente interessante, embora controvertida na evoluo do autor (1991,pp.219-220). Por essa ocasio Brecht escreve que os filsofos burgueses, fazem uma distino entre o homem ativo e o homem reflexivo. O homem pensante no faz essa distino. (BRECHtapud EWEN, 1991, p.220).

    A funo das Lehrstcke peas didticas era fazer com que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. O princpio que subjaz a essas tentativas era a prtica coletiva da arte, que teria tambm uma funo instrutiva no tocante a certas ideias morais e polticas. Na viso de Ewen, a origem das peas didticas remonta ao modelo de instruo jesuta e humanista.

    2O termo original em alemo Lehrstck. Ingrid Koudela(1991) nos diz que a traduo mais correta desse termoseria pea de aprendizagem, medida que o termo didtico na acepo tradicional, implica doar contedos atravs de uma relao autoritria entre aquele que detm o conhecimento e aquele que ignorante.

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    Se formos localizar temporalmente, a pea didtica na obra de Brecht, ela nasce no conflito legal aps a verso filmada da pera dos Trs Vintns. Koudela registra que Brecht sente a necessidade de produzir arte distante da indstria cultural (...). Atravs desse tipo de pea, Brecht prope a superao da separao entre atores e espectadores, atravs do Funktionswechsel (mudana de funo), do teatro (1996, p.13).

    Porm, a pea didtica (Lehrstck) durante um longo perodo foi esquecida ou talvez considerada como parte menos importante da obra de Brecht. No entanto, alguns autores alemes comearam a pesquis-la e a destacar a sua importncia como proposta pedaggica inovadora. Dentre esses autores destaca-se ReinerSteinweg, que em 1972 publicou A pea didtica a teoria de Brecht para uma educao poltico-esttica.

    Ao distanciar-se da mdia, Brecht procura um pblico novo, para alm dos muros da instituio teatral tradicional. Participantes em escolas e cantores em corais passam a fazer parte desse universo novo de espectadores, alm de novos elementos que so acrescentados sua obra teatral. Grosso modo, esses elementos so os seguintes: descontinuidade, intertextualidade, pluralidade, descontextualizao, fragmentao e valorizao do receptor.

    Brecht passou por uma fase experimental de produo, denominada Versuche (tentativas/experimentos), em busca de traduzir os conhecimentos da dialtica materialista em formas dramticas. O autor intencionava promover a troca da funo do teatro, a fim de que ele deixasse de ser simplesmente uma mercadoria esttica vendida aos espectadores e pudesse ser um espao/momento de construo participativa da conscincia poltico-esttica.

    Brecht destaca que o objetivo da pea didtica est no processo de construo com o grupo, no na apresentao, tanto que ela nem necessitaria de pblico. A pea didtica trabalha com dois principais instrumentos didticos: o modelo de ao e o estranhamento, com claros objetivos polticos.

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    Abordagem metodolgica do processo com a pea didtica

    Realizei com jovens do Nordeste de Amaralina, em Salvador, Bahia, aulas de teatro com as peas didticas. As aulas foram estruturadas em torno dos jogos teatrais e da aplicao das seguintes peas didticas de Bertolt Brecht: O vo sobre o oceano, Baden-Baden sobre o acordo, Aquele que diz sim aquele que diz no, A exceo e a regra, Os horcios e os curicios e A deciso. O grupo fez leituras das peas didticas de Bertolt Brecht, aplicadas na ntegra e em forma de excerto, embasados nas suas experincias cotidianas. A memria e a expresso oral dos jovens possibilitaram, atravs das associaes com modelo de ao e o cotidiano, a criao de texto teatral Hip Brecht Hop. A primeira pea lida foi O vo sobre o oceano, escrita em 1928/1929, para ser apresentada em rdio e/ou salas de concerto e que era destinada a estudantes. A princpio recebeu o ttulo de O Vo de Lindbergh3. Transmitida pela primeira vez na cidade alem de Baden-Baden. A pea teve seu ttulo alterado para O vo sobre ooceano. Alguns estudiosos dizem que o tema uma exaltao ao progresso cientfico outros, que uma glorificao vitria do homem sobre si mesmo. Conforme Peixoto(1979) Brecht define o texto como um instrumento de ensino, um objeto didtico (p.111). Os participantesleram o texto, fizeram uma anlisee identificaram a perseverana como um tema. Tambm reconheceram o predomnio da tecnologia sobre o ser humano.Finda a reflexo, foi escolhido o fragmento da pea para a turma trabalhar: CENA 8 Ideologia: o personagem discorre sobre o progresso, assinalando que ele vem para mudar o que antigo e ultrapassado, o que primitivo. A pea didtica de Baden-Badensobre o acordo foi asegunda lida e refletida. Brecht a escreveu com a finalidade de que fosse apresentada s escolas e com efetiva participao do pblico. Ela retoma o tema de O vo sobre o oceano [...] mas aprofunda a desmontagem do mito do heri e coloca em primeiro plano a reflexo sobre

    3Charles Augustus Lindbergh (1902 - 1974), americano, foi o primeiro a sobrevoar o Atlntico num vo solitrio, entre Nova York e Paris, em 1927, gastando 33 horas e meia na travessia.

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    o significado social do progresso tcnico e cientfico assim como as bases para o seu desenvolvimento. (PEIXOTO, 1979, p.112). Os jovens escolheram o fragmento da cena 2 Terceiro Inqurito, em que aparecem trs clowns. A cena foi improvisada com trios e em seguida foi discutida a temtica da pea: manipulao x autonomia. A terceira pea didtica foi A deciso. A pea um julgamento e provocou muita polmica na poca em que foi apresentada por Brecht. Pelo seu carter ideolgico partidrio fazendo com que alguns autores como Hanna Arendt a relacionasse com os processos e expurgos iniciados na Unio Sovitica aps o VI Congresso do Partido Comunista (PEIXOTO, 1979, p.117). Aps a leitura e anlise da pea, se discutiu sobre interesses individuais e coletivos, mobilizao social e participao poltica na comunidade. Depois dessa discusso fiz um aquecimento fsico a partir da criao de uma coreografia cujo tema era a comunidade e seus participantes numa ao social. O prximo passo foi a leitura da pea. Como os participantes j tinham discutido sobre interesses e mobilizao social, foi mais fcil a compreenso do texto e o reconhecimento do tema autonomia. O fragmento escolhido para a dramatizao foi A pequena e a grande injustia. Nesta cena quatro agitadores convencem um jovem a ficar na porta de uma fbrica, cujos funcionrios estavam em greve, distribuindo panfletos. Os panfletos traziam mensagens de incentivo para alguns funcionrios que se recusavam a fazer greve, a agir de forma contrria. Um policial chega ao local e comea o enfrentamento entre ele, os agitadores e o rapaz. O resultado disso a morte do policial e de dois operrios. Os participantes dramatizaram a cena, procurando manter o texto e a situao do fragmento o mais fiel possvel. Em seguida formaram um nico grupo esolicitei que associassem as situaes tantos as que surgiram na discusso quanto quela relacionada A deciso com outras situaes do cotidiano, onde todos participassem coletivamente e algumas dessas cenas foram improvisadas a partir das referncias e da memria dos participantes A quarta leitura foi Aquele que diz sim e aquele que diz no, pea queteve sua estria em 1930. uma pera curta e foi representada por estudantes. A pea conta a histria de um professor que organiza uma excurso para buscar medicamentos que

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    combatam a epidemia que assola uma pequena cidade. O grupo tem que realizar uma difcil travessia pelas montanhas. Um menino rfo de pai e cuja me esta doente, pede para ir com a excurso. A partir da a pea apresenta dois momentos distintos. Um em que o menino adoece durante a viagem e aceita ser sacrificado, cumprindo a tradio; e o outro em que ele no aceita morrer e exige que os companheiros o levem de volta para casa. Conforme Peixoto (1979, p.116) o tema moral, mas Brecht estava interessado em provocar um debate mais amplo. A exceo e a regra, tambm utilizada na oficina, foi apresentada pela primeira vez em 1947, dezessete anos aps ter sido escrita. a nica pea didtica de Brecht que se destina ao teatro. Peixoto (1979, p.125) informa que uma moralidade em oito quadros, com um prlogo e um eplogo em versos. [...] uma pea sobre a luta de classes e possui um esquema poltico que pode ser interpretado de forma mais ampla. Para a leitura deA exceo e a regra, procedemos como das outras vezes, porm iniciamos a aula com a msica de Z Ramalho Vida de gado. Os participantes escutaram-na, refletindo sobre a letra. A msicafoi trabalhada individualmente para que os participantes identificassem o tema central. Foi feita a seleo individual de uma frase da msica para um trabalho de interpretao. Depois desse aquecimento foi feita a leitura da pea e dessa vez os participantes leram dando inteno ao texto, com emoo. Houve um crescimento tanto na leitura como na interpretao. No foi preciso estimular o grupo para fazer associaes com a msica trabalhada, uma vez que eles conseguiram espontaneamente identificar opresso e oprimido como teor temtico da msica e da pea. Os participantes receberam um fragmento do texto A gua partilhada formaram duplas para fazer a preparar a cena a ser apresentada posteriormente. A cena foi o excerto escolhido o qual relata que a gua acabara e o carregador percebendo que o comerciante estava com sede, aproxima-se com o cantil na mo. Vendo-o aproximar-se o comerciante imagina estar sendo atacado com uma pedra e, incapaz de supor um ato de bondade da parte de quem sempre tratou com extrema violncia, mata o cule com um tiro (PEIXOTO, 1979, p.127). As duplas apresentaram a cena e se estabeleceu uma discuso sobrea interpretao dos jovens e sobre

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    situaes do cotidiano semelhantes s abordadasna pea, foi feito assim associaes que culminaram em cenas curtas. Os horcios e os curicios foi a ltima pea didtica trabalhada na oficina. Foi escrita tambm para estudantes e, segundo Brecht, trata da dialtica, foi apresentada ao pblico em 1958. A histria baseada em um fato bastante conhecido da histria romana, ao qual o autor conferiu tcnicas de encenao e representao do teatro chins. Acerca desse texto Ewen (apud PEIXOTO, 1979, p.158) afirma: o mais compacto e o mais hbil do teatro didtico brechtiniano. O tema a guerra entre os horcios e os curicios, onde esses ltimos querem se apropriar do solo e subsolo dos primeiros. Os horcios lutam em defesa de suas riquezas, preciso garantir que a produo das fbricas e dos campos sejam suas. Para que isso ocorra travada uma guerra de guerrilhas. Apesar de os curicios serem mais fortes quem vence a luta so os horcios. Peixoto (1979) nos informa que esta pea foi escrita com o objetivo de explicar aos estudantes o que era uma guerra de guerrilhas, a possibilidade de vitria dos povos invadidos pelo imperialismo (p.159) Depois da leitura, o grupo foi dividido e escolheu os fragmentos: As sete maneiras de usar a lana e A batalha dos espadachins que abordam a marcha difcil de um horcio que vai ao encontro do inimigo. Chegando a um determinado ponto ele tem que subir os penhascos e usar como apoio uma lana. Durante a subida o espadachim usa sua lana de seis formas distintas: como basto, como um galho de rvore, como sonda, como vara para salto, como maromba e como escora. O grupo foi dividido em dois grupos e tiveram um tempo para apresentarem a cenas tentando mant-las na ntegra, obedecendo alguns critrios de interpretao como relao com pblico, projeo vocal, inteno nas falas, foco, ritmo e verdade cnica. Terminada a preparao e apresentao das cenas, os jovens fizeram associaes com o cotidiano deles, selecionando situaes semelhantes. Os participantes experimentaram uma cena coletiva numa luta onde o corpo foi usado como arma. Durante o trabalho mencionei seguidas vezes que as peas didticas possibilitam aos participantes a associao de situaes cotidianas e a situaes da pea, para a criao de novos textos teatrais. Para ficar claro o que seria essa

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    associao, considerei importante me reportar a Fayga Ostrower (1989), em seu livro Criatividade eprocessos de criao, para uma melhor abordagem sobre o tema. Durante a leitura das peas didticas ao trmino das discusses os participantes imaginavam outro final para cada uma delas, sempre na perspectiva de seu universo existencial. O desejo de romper com injustias fazia com que eles sugerissem outras possibilidades de textos e eu estimulava isso. Essa participao sinalizava que o ideal seria criar o texto final juntos e assim eles pudessem impregnar um pouco de sua essncia, de sua ideologia e do seu protesto social. A elaborao do texto final seguiu os passos do que foi exposto acima. Primeiro se pensou no objetivo que se queria alcanar e que foi a proposio do meu trabalho: concorrer para o desenvolvimento de um sujeito mais crtico e perceptivo, trabalhar um pouco a tcnica de teatro para ento criar um discurso teatral. Decidi ento aproveitar as cenas criadas a partir das associaes com as peas didticas e conect-las num s texto intercalado por um elemento brechtiano o distanciamento, pensei no coro para unir as situaes tornando-as coesas e com sentido. Assim existia as situaes, os atores, os personagens e o coro, faltava apenas o texto estruturado dramaturgicamente pronto para ser lido, discutido, analisado, ensaiado e encenado. Ante essa perspectiva, alteramos as cenas do cotidiano deixando-as sem respostas, passando para o espectador a responsabilidade de resolver os conflitos, os impasses. A minha experincia com o teatro respalda a minha interferncia e o meu olhar crtico quanto elaborao do texto final, o que ocorreu.Restava dar uma linguagem teatralizada aos episdios escolhidos e os jovens optaram por fundir a linguagem do hip-hoppor identificarem semelhanas entre ambos uma vez que aparece uma forma de protesto e denncia da realidade, da falta de liberdade e das desigualdades sociais. Com fragmentos das peas didticas e situaes enfrentadas por eles na comunidade onde moram surgiu ento o Hip Brecht Hop.

    Depois que a pea Hip Brecht Hop ficou pronta, a consideramos como ponto de partida para a nossa encenao e partimos desse texto para prepararmos um

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    espetculo teatral condizente com a realidade social, esttica e artstica dos participantes.

    Foram feitos vrios ensaios cena a cena e a construo de uma coreografia para os coros, utilizando elementos do Hip Hop e, assim, foi estabelecida a ligao entre o coro e as cenas. Realizamos os ensaios gerais com todas as cenas e coros. Os ltimos, inclusive, foram realizados j com figurino, msica e iluminao (nicos recursos cnicos utilizados em nossa montagem).

    Sobre a nossa concepo cnica no imaginamos a criao de um cenrio especfico com uma linguagem visual, pictrica e arquitetural, optamos pela inexistncia de elementos ilusrios e nos propomos apresentar uma encenao possvel de ser feita em qualquer situao e local. O figurino tambm foi concebido em grupo e optamos pela utilizao de calas jeans, com camiseta preta grafitada de branco consoante um dos elementos do Hip Hop e tnis. A concepo coreogrfica do coro foi discutida em grupo, porm elaborada por uma coreografa.

    Sobre a maquiagem decidimos pela sua excluso. No objetivamos criar uma mscara atravs de uma pintura colocada no rosto do ator, escolhemos a neutralidade e a naturalidade, onde cada participante aparecesse com seu prprio rosto e sua identidade para que sejam reconhecidos como atores cujo propsito representar tipos caractersticos de sua comunidade. A Iluminao utilizada foi bsica para a visibilidade da cena, no para criar efeito subjetivo e nem atmosferas, nem para suscitar emoes na plateia.

    Concluso

    Para concluir esse artigo resgato minha inteno de partir da teoria brechtiana para quem o teatro tinha o objetivo de estimular o senso crtico, em busca de um teatro-educativo numa perspectiva emancipatria e complexa.

    Buscar este elo entre a arte e a sociedade, na tentativa de promover o crescimento do ser humano, no fruto da modernidade e nem da globalizao. Plato com seus escritos, por exemplo, nos remete a problemas sociais e trata-os com a oralidade e a comunicao mesmo que trabalhando em bases imaginrias.

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    Nas atividades realizadas com o teatro, h caractersticas que podem viabilizar a construo de um sujeito participante, com um olhar crtico e complexo diante da realidade, produzindo novos discursos e promovendo mudanas na sociedade em que est inserido. Creio que esta seja uma forma de contribuir com a construo das possibilidades de incorporao de novos discursos e prticas voltadas para a formao da autonomia.

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