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Página322 O TEMA DA VIOLÊNCIA ENTRE IRMÃOS COMO LEITMOTIV DO LIVRO DE GÊNESIS Carlos Augusto Vailatti 1 INTRODUÇÃO O tema da violência é recorrente no livro de Gênesis, funcionando como um fio condutor que atravessa as suas páginas. 2 E, dentro do tema sobre a violência em geral, a violência entre irmãos sobressai como o tipo de violência mais predominante em todo o livro, funcionando como um eixo central para a sua compreensão. Trata-se de um Leitmotiv que percorre todo o seu corpus textual. Aliás, como bem observou Fokkelman, “o tema da fraternidade, uma metonímia para o laço que une a 1 Membro da ABIB. Doutorando em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Teologia, com especialização em Teologia Bíblica, pelo Seminário Teológico Servo de Cristo (STSC). Atualmente, é docente na área bíblico-teológica no Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro (STEBB) e também no Instituto Betel de Ensino Superior (IBES). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8784759515071968 . Email: [email protected] . 2 O tema está presente na vida dos seguintes personagens genesianos: Caim e Abel (Gn 4.1-26), Lameque (Gn 4.23), a geração do dilúvio (Gn 6.11-13), Cão e Noé (Gn 9.22), os pastores de Abrão e os pastores de Ló (Gn 13.7-12), vários reis (Gn 14.1-12), Abrão e os seus 318 homens (Gn 14.13-16), Sara e Hagar (Gn 16.1-6; 21.9- 14), os habitantes de Sodoma (Gn 19.1-11), Ló e as suas duas filhas virgens (Gn 19.8), Esaú e Jacó (25.21-26; 27.41-45), Raquel e Léia (Gn 29.31-30.24), Diná, Simeão e Levi (Gn 34) e José e os seus irmãos (Gn 37-50).

O tema da violência entre irmãos como letmotiv do livro de gênesis

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O TEMA DA VIOLÊNCIA ENTRE IRMÃOS

COMO LEITMOTIV DO LIVRO DE GÊNESIS

Carlos Augusto Vailatti1

INTRODUÇÃO

O tema da violência é recorrente no livro de Gênesis, funcionando como um

fio condutor que atravessa as suas páginas.2 E, dentro do tema sobre a violência em

geral, a violência entre irmãos sobressai como o tipo de violência mais predominante

em todo o livro, funcionando como um eixo central para a sua compreensão. Trata-se

de um Leitmotiv que percorre todo o seu corpus textual. Aliás, como bem observou

Fokkelman, “o tema da fraternidade, uma metonímia para o laço que une a

1 Membro da ABIB. Doutorando em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Teologia, com especialização em Teologia Bíblica, pelo Seminário Teológico Servo de Cristo (STSC). Atualmente, é docente na área bíblico-teológica no Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro (STEBB) e também no Instituto Betel de Ensino Superior (IBES). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8784759515071968. Email: [email protected]. 2 O tema está presente na vida dos seguintes personagens genesianos: Caim e Abel (Gn 4.1-26), Lameque (Gn 4.23), a geração do dilúvio (Gn 6.11-13), Cão e Noé (Gn 9.22), os pastores de Abrão e os pastores de Ló (Gn 13.7-12), vários reis (Gn 14.1-12), Abrão e os seus 318 homens (Gn 14.13-16), Sara e Hagar (Gn 16.1-6; 21.9-14), os habitantes de Sodoma (Gn 19.1-11), Ló e as suas duas filhas virgens (Gn 19.8), Esaú e Jacó (25.21-26; 27.41-45), Raquel e Léia (Gn 29.31-30.24), Diná, Simeão e Levi (Gn 34) e José e os seus irmãos (Gn 37-50).

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humanidade, é tratado com crescente complexidade desde o início do Gênesis até o

fim”.3 E Girard completa esse pensamento ao afirmar que “no Antigo Testamento e

nos mitos gregos os irmãos são quase sempre irmãos inimigos”.4 E esta inimizade

entre irmãos é verificada, sobretudo, no primeiro livro da Bíblia.

Apesar de reconhecer toda a complexidade, bem como, a insuficiência da

definição que propomos ao assunto, optamos por definir “violência” neste artigo como

todo o tipo de ato ou comportamento, físico ou moral, que de uma forma ou de outra

atenta injustamente contra a dignidade, vontade ou liberdade de uma pessoa ou de uma

sociedade.

Depois dessa breve introdução, vejamos então o que a leitura de alguns

textos selecionados de Gênesis nos reserva.

1. A VIOLÊNCIA ENTRE CAIM E ABEL

“[...] e sucedeu que, estando eles no campo, se

levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o

matou”. (Gn 4.8).

A narrativa sobre o fratricídio cometido por Caim contra o seu irmão Abel é

uma das mais conhecidas de toda a Bíblia. Certo dia, Caim, o irmão primogênito que

era lavrador da terra, resolve deliberadamente matar o seu irmão caçula, Abel, que era

pastor de ovelhas. Ao que tudo indica, o sentimento de inveja foi a força motriz que

3 FOKKELMAN, J. P. Gênesis. In: ALTER, Robert & KERMODE, Frank. (orgs.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997, p.68. 4 GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo, Editora Paz e Terra S.A., 2008, p.15.

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impulsionou Caim em seu ato, uma vez que Deus rejeitara o “fruto da terra” que ele

lhe havia oferecido e, ao mesmo tempo, aceitara o “sacrifício animal” ofertado por seu

irmão, Abel (Gn 4.3-5).

Deve-se ressaltar nesta história o caráter totalmente gratuito da violência

praticada por Caim. Caim assassina o seu irmão sem qualquer motivo que o justifique

em seu ato.

Neste momento, alguém pode estar se perguntando: “Mas por que Deus não

fez nada para impedir que Caim assassinasse a Abel?”.5 A resposta a esta importante

questão é bastante simples: todos os homens nascem livres. Aliás, como bem declarou

Moshe Grylak, “é o livre-arbítrio que nos outorga o título supremo de seres humanos.

Perante o livre-arbítrio desvanecem-se as desculpas, justificativas e pretextos, que têm

o intuito de liberar-nos das responsabilidades”.6 Uma vez que somos seres moralmente

livres, isto é, dotados de capacidade para praticarmos tanto o bem quanto o mal, logo,

somos responsáveis pelos nossos próprios atos e não um segundo agente. Isto é

exemplificado na fala divina dirigida a Caim: “na porta jaz o pecado, e fazer-te pecar é

o seu desejo, mas tu podes dominá-lo”. (Gn 4.7).7 Se Caim “podia dominar” os seus

impulsos para o mal, isto quer dizer que ele foi o único e verdadeiro responsável pelas

ações que cometeu. Dessa forma, colocar Deus no banco dos réus como o “mentor

intelectual” e, portanto, como o culpado pela violência que nós mesmos praticamos

5 Esta questão é trabalhada de várias formas por Saramago que, em seu livro, retrata Deus como o verdadeiro culpado pela morte de Abel. (Cf. SARAMAGO, José. Caim. São Paulo, Companhia das Letras, 2009). 6 GRYLAK, Moshe. Reflexões Sobre a Torá. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 1998, p.9. 7 GORODOVITS, David & FRIDLIN, Jairo. (trads.). Bíblia Hebraica. São Paulo, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2006.

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livremente, é tão absurdo quanto culpar postumamente Henry Ford por algum acidente

automobilístico no qual nós éramos os motoristas do veículo.

Além disso, a frase dita a Caim depois de assassinar o irmão: “A voz do

sangue do teu irmão clama a mim desde a terra” (Gn 4.10) também merece ser

considerada. O texto hebraico diz: qol demê ’ahîka tso‘aqîm ’elay min-ha’adamâ, isto

é, “a voz dos sangues do teu irmão grita a mim desde a terra”. Aqui, a palavra hebraica

para “sangue” ocorre no plural, “sangues”, e pode se referir a uma de duas

possibilidades: a) ao sangue de Abel e de sua descendência interrompida ou b) aos

vários ferimentos produzidos no corpo de Abel.8 Seja como for, é digno de nota que

enquanto Abel permanece em um silêncio ensurdecedor, não pronunciando uma só

palavra em toda a narrativa, a sua morte não ocorre sem testemunhas. O seu sangue

(“sangues”) em silêncio testemunha(m) em seu favor, “gritando” contra o injusto ato

de Caim desde o tribunal campestre onde o próprio assassinato se consumara.

Em suma, aprendemos com a história de Caim e Abel que a violência pode

ser evitada. Quando isto não ocorre, é porque não fizemos bom uso de nossa liberdade

para impedi-la.

8 ZAJAC, Motel (trad.). Bereshit com Rashi Traduzido. São Paulo, Trejger Editores, 1993, p.18.

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2. A VIOLÊNCIA ENTRE ESAÚ E JACÓ

“[...] e Esaú disse no seu coração: Chegar-se-ão

os dias de luto de meu pai; e matarei a Jacó meu

irmão”. (Gn 27.41).

Além da trágica história entre Caim e Abel, outra história, porém, menos

trágica, também se descortina em Gênesis entre outros dois irmãos, Esaú e Jacó.

Contudo, o pano de fundo deste novo conflito entre irmãos, desta vez não

envolve ofertas trazidas perante Deus, mas sim o fato de Jacó, o irmão caçula, ter

“roubado” de Esaú, seu irmão mais velho, a primogenitura e a conseqüente bênção que

era destinada ao filho primogênito (Gn 27.36).9

Entretanto, esse conflito entre irmãos que tinha tudo para terminar com um

final bastante trágico – pois começou com mentiras, enganos, trapaças e muito ódio –

acabou tendo um desfecho feliz. No desenrolar da narrativa bíblica, um emocionante

reencontro ocorre. Jacó sai ao encontro de Esaú e se inclina sete vezes em terra diante

dele.10 Esaú responde a esse comportamento correndo em direção ao seu irmão,

abraçando-o, lançando-se sobre o seu pescoço e beijando-o. No final, ambos, Esaú e

Jacó, choram (Gn 33.1-3).

9 A prática da venda da primogenitura também pode ser encontrada entre outros povos do Antigo Oriente Médio. Para um exemplo dessa prática em outras culturas, veja: KIDNER, Derek. Gênesis, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova / Mundo Cristão, 1991, p.141. 10 Segundo Chouraqui, o ato de se inclinar em terra sete vezes também aparece nas cartas de Amarna e representa rendição total. (Cf. CHOURAQUI, André. No Princípio. Rio de Janeiro, Imago, 1995, p.348).

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Esse final feliz só foi possível graças à colaboração solidária dos dois

irmãos. Quanto a Esaú, parece que o tempo encarregou-se de ensiná-lo sobre a difícil

tarefa de perdoar, que é o ato de “reconhecer que alguém tem uma dívida com você e

liberar esse indivíduo do pagamento. É resgatar a nota promissória de seus ofensores e

abrir mão de todas as cobranças, por mais legítimas que sejam”.11

Perceba que a prática da não-violência nesta relação conflituosa entre

Esaú e Jacó só foi possível porque Esaú quis perdoar o seu irmão. Assim, percebemos

novamente que o livre-arbítrio se encontra bem no meio do dilema entre as práticas da

violência e da não-violência. Isto implica dizer, e nunca é demais repetir, que nós

mesmos somos os principais responsáveis pela prática da não-violência, pois cada ser

humano livre é o condutor das rédeas de seus próprios atos.

3. A VIOLÊNCIA ENTRE RAQUEL E LÉIA

“Vendo, pois, Raquel que não dava filhos a

Jacó, teve Raquel inveja de sua irmã, e disse a

Jacó: Dá-me filhos, ou senão eu morro. [...]

Então disse Raquel: Com lutas de Deus tenho

lutado com minha irmã [...]”. (Gn 30.1,8).

De todos os relacionamentos conflituosos entre irmãos relatados em

Gênesis, a relação entre Raquel e Léia é a menos tensa. Porém, isto não significa que

11 AGUIAR, Marcelo. Em Busca da Bênção Perdida: princípios bíblicos para a restauração da vida espiritual. São Paulo, Editora Vida, 2003, p.168.

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essa relação esteja isenta de traços de violência, como veremos a seguir. Em resumo, a

história das duas irmãs é a seguinte: Raquel era estéril e Léia, sua irmã, não. Ambas

eram casadas com Jacó, dentro do conhecido regime marital oriental do concubinato.

Como Raquel não podia ter filhos e Léia já havia tido vários, isso provocou a inveja de

Raquel (Gn 30.1) e desencadeou uma desenfreada competição entre as duas irmãs que

chegaram, inclusive, a utilizar as suas escravas como esposas em seu lugar para ver

qual delas daria mais filhos a Jacó (Gn 30.1-24).12 Além disso, o forte amor de Jacó

por Raquel em comparação com Léia (Gn 29.18,30), fez com que esta também

invejasse Raquel, a ponto de lhe dizer: “não é bastante que me tenhas tomado o

marido?” (Gn 30.15).13

Nesse ponto, chama a nossa atenção a linguagem empregada por Raquel

durante a sua competição com a irmã: “com lutas de Deus tenho lutado com minha

irmã” (Gn 30.8). Aqui, na expressão naftulê ’elohîm niftaltî, “com lutas de Deus tenho

lutado”, aparecem duas palavras derivadas do verbo hebraico patal, “torcer, enrodilhar

12 Chouraqui lembra que a esterilidade feminina, caso fosse prolongada, poderia provocar o repúdio da esposa por parte do marido. Isso explica porque Raquel e Léia empregam suas escravas para substituí-las como esposas a fim de proporcionar a edificação da família. (Cf. CHOURAQUI, André. No Princípio, p.307). 13 Para saber mais sobre o relacionamento conturbado entre Raquel e Léia a partir da relação “esterilidade versus fecundidade”, veja: CHWARTS, Suzana. Uma Visão da Esterilidade na Bíblia Hebraica. São Paulo, Associação Editorial Humanitas, 2004, pp.123-142.

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(enroscar)” que é um termo que faz alusão metaforicamente a “uma luta onde os

corpos se enrodilham (enroscam) e se afrontam”.14 Apesar de a linguagem ser utilizada

apenas de forma figurada, contudo, ela evoca a imagem de duas pessoas que estão

agarradas em uma briga. Em outras palavras, a figura de linguagem utilizada por

Raquel faz referência ao embate violento travado entre ela e Léia no âmbito da

competição para ver quem conseguiria gerar mais filhos para Jacó.

Embora essa rivalidade entre as irmãs não tenha atingido proporções mais

graves, todavia, o desejo que uma irmã tinha de sobrepujar a outra e vice-versa, vendo

a sua rival, portanto, em situação abjeta, mostra, ainda que sutilmente, o “espírito

violento” que regia o relacionamento entre ambas. Este ambiente de mútua opressão,

praticada e sofrida por ambas, certamente denuncia e desmascara os nossos instintos

violentos mais íntimos.

4. A VIOLÊNCIA ENTRE JOSÉ E OS SEUS IRMÃOS

“Vinde, pois, agora, e matemo-lo, e lancemo-lo

numa destas covas, e diremos: Uma besta fera o

comeu; e veremos que será dos seus sonhos”.

(Gn 37.20).

Finalmente, chegamos ao último relato de Gênesis a descrever uma relação

de violência entre irmãos, isto é, a dramática narrativa sobre José e os seus irmãos.

14 Idem, Ibidem, p.309. O acréscimo entre parênteses é meu. Para outras observações sobre o verbo patal, veja também: BROWN, Francis et al. A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. Oxford, Clarendon Press, 1951, p.836.

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Nesta narrativa, a violência que será praticada contra José pelos seus irmãos

possui pelo menos três causas principais: a) a difamação dos irmãos feita por José (Gn

37.2); b) a predileção de Jacó, o pai, por José (Gn 37.3,4); e c) os sonhos de José (Gn

37.5-8). A conseqüência desses atos foi a seguinte: os irmãos de José “conspiraram

contra ele, para o matarem” (Gn 37.18).

A narrativa bíblica prossegue em sua descrição, relatando a violência

repleta de “requintes de crueldade” com a qual os irmãos de José o trataram. Eles

tiraram de José a sua túnica colorida que ele ganhara do pai, lançaram-no numa cova

sem água, se assentaram para comer pão como se nada de errado tivesse acontecido e,

por fim, o venderam por vinte moedas de prata, como se ele fosse um escravo, a um

grupo de viajantes ismaelitas que, por sua vez, o levaram até o Egito (Gn 37.23-28).

Não há nada pior que possa acontecer a um homem do que ter a sua

dignidade humana atingida, o seu direito de ir e vir cerceado e a sua liberdade tolhida,

pois, como bem escreveu Jolivet, “esta liberdade é um direito fundamental do homem,

que, sendo racional e dotado de livre-arbítrio, deve poder agir com toda a

independência, na medida em que sejam respeitados os direitos do próximo, quer

sejam corporais ou espirituais”.15

Neste caso, notamos que a violência feita contra José poderia ter sido

evitada, se os seus irmãos quisessem. Apesar disso, Deus reverteu toda a violência

sofrida em bem (Gn 45.5-8).

15 JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia, p.403.

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CONCLUSÃO

Ao término da nossa breve reflexão podemos chegar a, pelo menos, quatro

conclusões:

Primeira, a violência é um mal que esteve sempre presente nas sociedades,

desde os primórdios da humanidade. Nós pudemos constatar isso já no início de

Gênesis, no triste episódio entre Caim e Abel. Porém, a presença constante da

violência em nosso mundo não significa que devemos aceitá-la como um elemento

inevitável da condição humana, pois tão antigos quanto a violência são também os

sistemas religiosos, filosóficos, legais e públicos que têm ajudado a combatê-la e a

freá-la.16

Segunda, o tema da violência entre irmãos é o tipo de violência mais

recorrente no livro de Gênesis, funcionando como um fio condutor que percorre as

suas páginas. Esta verdade tão enfatizada já neste primeiro livro da Bíblia serve para

nos alertar quanto à proximidade da violência. “A violência” – nos adverte o Gênesis –

“não está apenas lá fora, nas ruas, nas estradas, nos bares e nas brigas entre gangues

rivais. Ela também pode estar presente bem debaixo do nosso nariz, em nossa casa, em

nossa família ou até mesmo entre os nossos irmãos de sangue”. Portanto, não devemos

subestimar a capacidade que a violência tem de nascer e de criar raízes inclusive no

recôndito dos nossos lares.

16 KRUG, Etienne G. (ed.). World Report on Violence and Health. Geneva, World Health Organization, 2002, p.3.

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Terceira, a violência entre irmãos, tal como retratada no Gênesis, começa

com toda a sua vitalidade na narrativa sobre Caim e Abel (Gn 4), mas vai aos poucos

perdendo terreno quando entra em cena a história de José e seus irmãos (Gn 37-50).

Isto significa que é possível reduzir os índices de violência em nossa sociedade. Para

isso, não podemos transferir as nossas responsabilidades para Deus ou para qualquer

pessoa ou instituição. Não podemos terceirizar nossas ações e responsabilidades. Elas

são apenas nossas e de mais ninguém.

E a quarta e última conclusão é a seguinte: todo ser humano merece ser

tratado com dignidade, respeito e solidariedade. Quando agimos assim, o amor triunfa

sobre a violência! Aliás, creio que não há melhor maneira de encerrar o nosso texto do

que citando o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

promulgada em 1948: “Todos os seres humanos nascem livres e são iguais em

dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com

os outros em espírito de fraternidade”.17 Que este espírito fraternal esteja presente em

nossa vida hoje, amanhã e sempre!

BIBLIOGRAFIA

AGUIAR, Marcelo. Em Busca da Bênção Perdida: princípios bíblicos para a

restauração da vida espiritual. São Paulo, Editora Vida, 2003.

ALMEIDA, João Ferreira de. (trad.). Bíblia Sagrada. [Edição Revista e Corrigida].

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17 MORSINK, Johannes. The Universal Declaration of Human Rights: Origins, Drafting, and Intent. Pennsylvania, University of Pennsylvania Press, 1999, p.38.

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JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro, Agir, 1995.

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Health Organization, 2002.

MORSINK, Johannes. The Universal Declaration of Human Rights: Origins,

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SARAMAGO, José. Caim. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

ZAJAC, Motel (trad.). Bereshit com Rashi Traduzido. São Paulo, Trejger Editores,

1993.

Como citar esse documento:

VAILATTI, Carlos Augusto. O Tema da Violência entre Irmãos como Leitmotiv do

Livro de Gênesis. In: MARIANNO, Lília Dias. (Org.). Bíblia, Violência e Direitos

Humanos: Contribuições ao V Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica. ABIB,

Goiânia; Rio de Janeiro, EAGLE Books; Kent, FDigital, 2013, pp.322-333. [ISBN:

978-1-909144-44-6].