O tempo que quase não dura e o tempo denso da duração. Estratégias de enfrentamento do tempo nas organizações

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    O tempo que quase no dura e o tempo denso da durao

    Estratgias de enfrentamento do tempo nas organizaes

    Rogrio Ferreira de Andrade

    memria da Maria Amlia Faia

    The bar (in the small Polish border-town of Slubice)is presented as a social space betwixt and between

    everything. It belongs neither to the pastnor to the present. It belongs neither to here, nor to

    there, and it most certainly belongs neither to us nor tothem. The bar is described as a social space and time

    in transformation, where inherited framesof orientation are remade.

    (Richard Rottenburg, Sitting in a Bar, p.87)

    The Foundation is becoming increasingly importantas the Empire disintegrates. The Foundations store

    of knowledge is becoming increasingly valuableas the technology of the Empire

    is lost in the confusion of feudalism

    and the decay of an empire.(Phillips & Zyglidopoulos,Learning from Foundation:Asimovs psychohistory and the limits of organization theory, p. 597)

    Resumo: A categoria do tempo que quase no dura - o tempo da mudana, da inovaocontnua e da obsolescncia acelerada de pessoas, estruturas e conhecimentos - amplamentesobrevalorizada na nossa modernidade tardia e vista como prioridade absoluta para acompetitividade e prosperidade econmicas. Pelo contrrio, a categoria do tempo denso dadurao - o tempo da repetio, dos ciclos e da lentido - submetida a graus diferentes deocultao ou mesmo ostensiva e sistematicamente ignorada. No entanto, a durao no deixa,em todas as pocas, de vir reclamar os seus direitos face ao devir. Da que as pessoas

    individuais e as super-pessoas que so as organizaes faam algum bluffquando insistem nainevitabilidade da acelerao do tempo e, simultaneamente, ensaiam estratgias deencurvamento mtico da linha do tempo. Tais estratgias de enfrentamento do tempo que quaseno dura podem ter desenlaces por vezes antagnicos. Neste artigo apresentaremos dois casos:as organizaes liminares (em particular a variedade de organizaes que exibem umaidentidade socialmente odiada e que vivem no limiar da inexistncia) e as hiper-instituies ouorganizaes inclusivas (que pretendem funcionar como ncoras de sentido e aspiram aincorporar toda a vida no seu interior, como o caso das fundaes privadas criadas por pessoasindividuais).

    Palavras-chave: devir, durao, imortalidade, liminaridade, organizaes liminares, hiper-instituies, cosmogonias organizacionais, filantropia, fundaes

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    ndice

    Introduo

    Tempo

    Devir edurao nas organizaesO tempo que quase no duraO tempo denso da durao

    Liminaridade

    Organizaes no limiar da inexistnciaLiminaridade e communitasRevisitar o caso Emel

    Liminaridade nas organizaes e organizaes liminaresUma variedade de organizao liminar: A organizao com identidade odiada

    Hiper-instituies

    Organizaes que aspiram a incluir toda a vida no seu interiorO tempo inclusivo da filantropiaCosmogonias pessoais e organizacionaisFundaes e hiper-instituies

    Comentrios finais e pesquisa futura

    Referncias

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    Introduo

    A lentido, o abrandamento ou o repouso so hoje valores com dificuldade em

    afirmarem uma existncia autnoma e s parecem encontrar o seu direito de cidadaniase, paradoxalmente, aceitarem inscrever-se numa lgica do movimento irreversvel, da

    acelerao e da inovao contnuas. Assim, por exemplo, o repouso s bom se for

    activo e contribuir para a re-actualizao de uma mitologia da adrenalina, quer na vida

    individual, quer, sobretudo, na indstria luxuriante do entretenimento; ou oslow foods

    faria sentido para a grande maioria se se tornasse, bizarramente, num movimento com

    vocao global e acelerasse em direco sobre-exposio meditica e a produtos

    baseados num modelo defranchisingsemelhante ao das grandes cadeias de consumo. Ainovao contnua e o culto da obsolescncia acelerada de pessoas, estruturas e

    conhecimento correspondem, sem dvida, a exigncias de mercados globalizados, de

    novas tecnologias e, de um modo geral, da sociedade em rede, mas ocultam o confronto

    entre o tempo denso da durao (repetio, ciclos, lentido) e o tempo que quase no

    dura (acelerao, mudana, inovao). Alis, o que permanece oculta - ou ostensiva e

    sistematicamente ignorada - a dimenso dramtica que resulta deste embate de

    ontologias que tem conduzido ao empobrecimento de formas de vida e de expresso,

    sintomas de que o mundo hoje moldado por poderosas fantasias de inevitabilidade que

    levam ao paroxismo a nossa recusa em aceitar a falha narcsica imposta pela

    inevitabilidade da morte (Levine, 2001: 263).

    No entanto, a durao no deixa, em todas as pocas, de vir reclamar os seus

    direitos face ao devir. Da que as pessoas individuais e as super-pessoas que so as

    organizaes faam algum bluff quando insistem na inevitabilidade da acelerao do

    tempo e, simultaneamente, ensaiam estratgias de encurvamento mtico da linha do

    tempo. Tais estratgias de enfrentamento do tempo que quase no dura podem ter

    desenlaces por vezes antagnicos. Neste artigo apresentaremos dois casos: as

    organizaes liminares, em particular a variedade de organizaes que exibem uma

    identidade socialmente odiada e que vivem no limiar da inexistncia; e as hiper-

    instituies ou organizaes inclusivas, que pretendem funcionar como ncoras de

    sentido e aspiram a incorporar toda a vida no seu interior, como o caso das fundaes

    privadas criadas por pessoas individuais.

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    Tempo

    Devir e durao nas organizaes

    Comecemos por uma breve reviso da literatura sobre temporalidades dase nas

    organizaes, a qual ir, por vezes, exceder a fronteira dos Estudos Organizacionais.

    Apresentaremos algumas teses que tomam o devir e a mudana como o eixo central da

    modernidade tardia, para, em seguida, nos determos na temporalidade da durao, muito

    em particular nesse encurvamento mtico do tempo linear que designamos por tempo da

    imortalidade, afinal uma estratgia temporal que muito mais praticada na actualidade

    do que pessoas e organizaes esto na disposio de reconhecer abertamente.

    O tempo que quase no dura

    O tempo universal pode desdobrar-se numa multiplicidade de temporalidades. T.

    K. Das, revendo linhas de pesquisa sobre a questo do tempo nos Estudos

    Organizacionais, identifica algumas dessas temporalidades mais recorrentes, como

    sejam o tempo individual, o tempo do grupo, o tempo funcional (como o caso das

    temporalidades prprias da contabilidade, do marketing ou da investigao &

    desenvolvimento), o tempo organizacional (incluindo os sectores governamental, dos

    servios ou o no-lucrativo), o tempo das sociedades (incluindo o tempo cultural)

    (1993: 270). T. K. Das coloca uma particular nfase no contraponto entre o tempo

    universal - escandido pelo relgio, ou pelo calendrio, e que igual para todos - e o

    tempo subjectivo ou individual, isto , o tempo da intencionalidade humana.

    Gherardi e Srati tambm propem uma tipologia de temporalidades, chamando a

    ateno para a existncia paralela de uma pluralidade de tempos internos e particularesdentro de cada organizao (1988: 150). Nessa pluralidade de tempos - seja o tempo

    supernatural que torna a organizao uma entidade meta-histrica sem princpio nem

    fim, seja o tempo de mudana ou evolucionista em que h um princpio mas no um fim

    antecipvel para a organizao e para os seus projectos, ou, ainda, o tempo histrico

    colectivo que d identidade organizao - Gherardi e Strati identificam, embora no a

    desenvolvendo, uma dimenso temporal particularmente interessante: o tempo prprio

    da imortalidade. Apresentam-na do seguinte modo: uma organizao estabelece o seu

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    presente num tempo mtico - apesar de se tratar de um produto histrico e colectivo

    (). Mesmo que esta forma de vida colectiva morra, sobreviver graas sua

    capacidade parafazer de si prpria um mito e conservar-se viva na conscincia" (1988:

    157/8 - itlicos nossos). Quer a tipologia de T. K. Das, quer a de Gherardi e Strati

    balizam a nossa prpria investigao, pois interessa-nos explorar o tempo subjectivo e

    intensamente vivido pelas pessoas e pelas organizaes num quadro geral em que se

    cruzam o tempo histrico e o tempo das mquinas, isto , interessa-nos explorar os

    esforos das pessoas e das organizaes no sentido de realizarem a durao e, assim,

    obterem alguma forma de imortalidade na sua prpria poca ou em pocas futuras.

    Alis, esta procura mais ou menos ansiosa por integrar o cnone clssico tem sido uma

    constante ao longo da histria, e da histria das ideias, e no vemos porque deveria serdiferente nas sociedades hoje globalizadas pelos efeitos conjugados do capitalismo

    financeiro, de modelos culturais, das tecnologias de desmaterializao e, sobretudo, de

    um vasto complexo meditico.

    O tempo que quase no dura , pois, o tempo da nossa mortalidade e refere-se

    tanto ao tempo histrico quanto ao tempo acelerado da informao electrnica, isto , o

    tempo real ou instantneo organizado em velocidades que esto muito para alm daspossibilidades da conscincia humana (Hassard, 2002: 889). Retomando Castells,

    Hassard sustenta que a informao electrnica gera um tempo sem tempo, no qual o

    capital se liberta do tempo e a cultura escapa ao relgio (Hassard, 2002: 890). No

    entanto, estas so temporalidades sem pessoas ou, antes, que conduzem perda das

    pessoas. A nossa perspectiva ser, pois, diferente, uma vez que nos interessa o tempo da

    intencionalidade e da narratividade humanas, a luta por vezes dramtica das

    organizaes e das pessoas contra o tempo do devir e contra o tempo sem tempo datecno-esfera e do presente eterno dos indicadores bolsistas (Aldo Haesler, referido em

    Duclos, 2002). O tempo discreto e feito de instantes heterogneos apaga, anula, a nossa

    presena no mundo; pelo contrrio, o tempo do fluxo indivisvel da conscincia, o

    tempo do vivido - o nosso e o dos outros - o nico onde podemos ambicionar

    perdurar.

    Paul Virilio um dos pensadores da actualidade que melhor avaliam os efeitos

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    de compresso do tempo e de acelerao da velocidade, responsveis por uma crescente

    filofolieque ele define como o amor do impensado radical, em que o carcter insensato

    dos nossos actos no s deixaria de nos inquietar conscientemente, como nos atrairia,

    nos seduziria (Virilio, 2002: 7) e, mais do que isso, poria em cena a nossa relao com

    o fim, com todos os fins, ou, dito de outra maneira, com a finitude (Virilio, 2002: 25 -

    itlico do autor). Os dromlogos, e a dromologia enquanto disciplina que estuda os

    fenmenos de acelerao, exigem estar hoje no comando no s da vida econmica e

    poltica das sociedades, mas tambm das vidas individuais.

    Num belo texto de aproximao ao pensamento de Virilio, sublinha Bartram

    (2004) esta centralidade da dromologia, interessada na acelerao do mundo social,poltico e econmico, com a implicao bvia de que as duraes do tempoenvolvidas

    na transferncia de pessoas e objectos, e na transmisso de imagens e ideias, se

    comprimiram (Bartram, 2004: 289 - itlicos nossos). A dromologia refere-se tanto

    acelerao da velocidade real como acelerao da velocidade virtual, esta sim, na

    origem do potencial de acidentes da nossa poca. Se as novas tecnologias da

    desmaterializao permitem acelerar a velocidade real, visvel e que comporta um

    carcter flagrante de desastre (Virilio, 2002: 27), elas tambm permitem, e de formaainda mais inquietante, potenciar a acelerao da velocidade virtual, invisvel. O

    diagnstico s pode ser inquietante porque

    uma sociedade que privilegia inconsideradamente o presente, o tempo real, em

    detrimento tanto do passado como do futuro, privilegia tambm o acidente.

    Uma vez que tudo est a acontecer a qualquer instante, e na maioria das vezes

    inopinadamente, uma civilizao que promove o imediatismo, a ubiquidade e a

    instantaneidade encena permanentemente o Acidente, a catstrofe (Virilio,

    2002: 59).

    Eisenhardt & Tabrizzi (1995), e ainda Brown & Eisenhardt (1997), importam a

    dromosfera para o campo das organizaes e da teoria da gesto, em particular no que

    respeita inovao de produtos e de processos. Evoluindo no interior daquilo que

    designam como um paradigma organizacional dinmico (Eisenhardt & Tabrizzi,

    1995), acreditam ser este paradigma o nico capaz de explicar quer a acelerao dos

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    processos organizacionais, quer a rpida inovao de produtos e, por conseguinte, a

    adequao contnua das empresas a situaes competitivas. Os seus trabalhos so um

    excelente exemplo da ocultao da temporalidade densa da durao de que vimos

    falando. No constitui, por isso, novidade o tom seco com que concluem que uma

    teoria institucional tem pouco a dizer sobre velocidade e mudana (Eisenhardt &

    Tabrizzi, 1995: 108). Bem pelo contrrio, as teorias institucionalistas pressupem um

    contexto generalizado de mudana, mas tratam-no apenas como uma das variveis para

    explicar o que as organizaes e os seus membros tambm realizamquando inovam ou

    improvisam. certo que Eisenhardt & Tabrizzi pretendem corrigir insuficincias do

    paradigma racional e dinmico de compresso do tempo, propondo um modelo

    experiencial do tempo que , afinal, o modelo da improvisao nos processosorganizacionais. No entanto, seja no modelo dinmico ou no modelo experiencial do

    tempo, no samos de uma mesma, mas muito eficaz, retrica da gesto de alta

    velocidade. Por outras palavras, no samos de um modo de gesto que cria vantagens a

    partir do elemento tempo e aumenta a presso para mudanas radicais (Cushman &

    King, 1995), mas que desconfia francamente das mudanas incrementais por onde

    espreita a durao.

    A criao de estruturas organizacionais flexveis e de processos para o

    encurtamento do ciclo de vida dos produtos parece ser a chave de leitura para

    compreendermos o universo prprio daqueles se dedicam intensivamente a examinar

    fenmenos de improvisao nas organizaes, inspirando-se nas metforas do jazz ou

    noutras metforas que realam, simultaneamente, o criar-em-conjunto e o individual

    touch. O tema da improvisao tem sido abordado de muitas e distintas perspectivas

    (Orlikowski, 1996; Crossan e Sorrenti, 1997; Weick, 1998; Ciborra, 1999; Cunha et al,1999; Crossan et al, 2005), embora todas elas tenham como intento ltimo valorizar a

    categoria temporal do devir. Consideremos, a ttulo de exemplo, um artigo muito

    sistemtico e informativo de Cunha et al (1999) em que os autores se empenham em

    distinguir a improvisao de outras formas de fazer emergir o novo, como o caso da

    mudana, da inovao, do bricolageou da criatividade, propondo no s uma definio

    abrangente de improvisao, mas tambm uma extenso do conceito. A improvisao

    organizacional tipificada por Cunha e colegas como a concepo da aco medida

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    que a organizao e/ou os seus membros a realizam, com base em recursos materiais,

    cognitivos, afectivos e sociais disponveis (Cunha et al, 1999: 302). Quanto extenso

    do conceito, os autores introduzem novas aceleraes na teoria e nos processos

    organizacionais, referindo que embora no contestemos que cada desvio de um curso

    planeado da aco possa ser rotulado de improvisao, parece-nos que tratar como

    improvisaes apenas os afastamentos radicais de planos no uma posio totalmente

    sustentvel (...). A raison dtrede uma improvisao est na sua aptido para provocar

    mudanas significativas a partir de variaes limitadas e isto de uma maneira prxima

    do efeito borboleta proposto pela teoria do caos e da complexidade (1999: 310). No

    entanto, no h gozo criativo sem seno, e nos bastidores deste teatro da improvisao,

    descobrimos que uma consequncia final negativa da improvisao organizacional acrescente ansiedade e incerteza sentida pelos seus membros (Cunha et al, 1999: 332).

    O trabalho de Cunha e colegas sobre a improvisao no est muito distante de

    investigaes de Martha Feldman sobre falsas rotinas, aquelas que fazem ressurgir o

    devir num territrio de onde o supnhamos algo ausente. Com Feldman descobrimos

    que tambm as rotinas so, surpreendentemente, to cheias de vida como outros

    aspectos das organizaes (2000: 626) e no meras repeties de actividadespadronizadas e totalmente pr-planeadas. Quando avaliadas de acordo com um modelo

    performativo de rotinas organizacionais (2000: 622), as actividades relativamente

    repetitivas como treinar ou oramentar revelam no s um potencial de mudana

    inerente prpria rotina, mas sobretudo o papel decisivo que as pessoas podem ter

    quando introduzem variaes nas rotinas que realizam, fazendo com que mudem,

    evoluam e se assemelhem mais a trabalhos em progresso do que a produtos acabados.

    As rotinas so interpretadas, no meramente replicadas. A concluso de Feldman a deque a mudana pode ser mais frequente - e as rotinas bem mais ocasionais - do que so

    muitas vezes apresentadas (2000: 626).

    De entre os autores que tm reflectido sobre a improvisao organizacional

    interessa-nos particularmente Ciborra (1999), pois traz ao tema um poderoso insight.

    Ciborra tambm parte da temporalidade prpria das rotinas, mas para lhe opor, de

    imediato, o tempo da surpresa, do improviso, que exige o envolvimento total e criativo

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    das pessoas. O tempo da improvisao o tempo em que reconfiguramos a ordem e as

    rotinas institudas, exprimindo mais autenticamente uma viso prpria do mundo, e de

    ns prprios no mundo, com vista a melhorar decises e aces (1999: 89). Nas

    improvisaes e nas surpresas Ciborra v uma experincia intensiva de transcendncia

    do tempo e tambm do prprio sujeito histrico. Para Ciborra, quando improvisamos

    libertamo-nos de constrangimentos excessivos, tornamo-nos autnticos e vivemos uma

    experincia nos antpodas dessa relao perturbada e ansiosa com o relgio, passamos

    a ler o mundo de uma maneira nova, a fazer escolhas rpidas e resolutas, envolvendo-

    nos na aco verdadeiramente empreendedora (1999: 92). Assim, para Ciborra o

    agora da improvisao um acontecimento vivido fora do normal fluxo do tempo,

    como uma experincia exttica, um momento de viso e de deciso de Estar-no-mundo, em que vastas regies do passado so articuladas nesse preciso momento

    (1999: 90). Passando um pouco ao largo desta viso entusistica dos momentos

    singulares da improvisao, interessa-nos sublinhar a inteno modelizadora,

    performativa que o improvisador revela quando articula, de forma talentosa, vastas

    regies do passado.

    O tempo do improviso, que emerge e se desvanece no impulso do momento(Ciborra, 1999: 86), parecendo inteiramente tomado pelo devir, revela, no entanto, uma

    secreta ligao com a durao. De facto, o improvisador um modelizador de novos

    sentidos e novas solues, aproximando-se, aqui, e algo inesperadamente, daquele que,

    nas organizaes, trabalha sob o signo do tempo da durao e da imortalidade. Liga-os,

    a ambos, a mesma vontade de suspender o tempo e de inscrever novos enunciados que

    refaam o mundo. Mas h uma diferena de peso: o improvisador inscreve enunciados

    no presente da sua aco, sem se preocupar com o trabalho de memria; j aquele quetem conscincia de que trabalha sempre a duas temporalidades, a ambas devendo

    responsabilidades, inscreve duplamente esses enunciados: no presente da sua aco e no

    futuro da memria dos seus prprios actos (ou da memria da organizao a que

    pertence). As organizaes e as pessoas sensveis durao pensam e agem no interior

    do tempo da imortalidade, isto , agem de acordo com o princpio da cumulao

    simblica ou do tempo que deve perdurar.

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    Tsoukas & Chia (2002), pelo seu lado, manifestam insatisfao, e mesmo

    impacincia, face a alguns dos mais celebrados teorizadores da mudana organizacional

    como Eisenhardt, Feldman, Orlikowski ou Weick, considerando que estes no vo ainda

    suficientemente longe ou, pelo menos, to longe quanto as suas investigaes lhes

    permitiriam ter ido(2002:569). A insatisfao de Tsoukas & Chia resulta do facto de

    que a mudana ontologicamente anterior organizao, a condio de possibilidade

    para a organizao (2002: 570) e, portanto, os direitos do tempo que quase no dura, os

    direitos do devir, no so suficientemente considerados por aqueles tericos. A questo

    que levantam a seguinte:

    com que deve parecer-se uma organizao se a mudana constitutiva darealidade?Desejando sublinhar a disseminaoda mudana nas organizaes,

    teremos de falar em devir organizacional(...). A organizao uma tentativa

    para ordenar o fluxo intrnseco da aco humana, dirigindo-o para certos fins

    por meio da generalizao e institucionalizao de sentidos e regras particulares

    (). Vista desta maneira, a organizao uma realizao secundria (...), um

    conjunto de regras socialmente definido com que procuramos estabilizar uma

    sempre mutvel realidade, tornando o comportamento humano mais previsvel

    (2002: 570 - itlico dos autores).

    Posteriormente, Robert Chia veio esclarecer melhor estes processos de

    institucionalizao pelos quais uma organizao realiza a durao e age contra as

    foras imanentes da mudana (2002: 867 - itlico do autor), referindo-se s

    organizaes como tecnologias sociais para suspender, fixar, estabilizar e regularizar o

    que, de outra maneira, seria um mundo selvagem, amorfo e, portanto, invivvel (Chia,

    2002: 867). De facto, para tornarem o mundo um lugar vivvel, as organizaes - e,veremos, as pessoas - envolvem-se num deliberado abrandamento da realidade (Chia,

    1999: 210). O que interessante nesta cosmogonia que envolve as organizaes e os

    seus ambientes o facto de que Chia, sendo um incondicional defensor do devir

    organizacional e inspirando-se em teorias processualistas da mudana que se opem

    metafsica da substncia, revelar uma sensibilidade apurada ao trabalho conjunto destas

    temporalidades primrias que so odevire adurao.

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    As posies em favor da categoria temporal do devir tm, na teoria

    organizacional e da gesto, outros intrpretes por vezes ainda mais radicalizados. Tom

    Peters, no site da empresa de consultoria Tom Peters! Company, oferece aos clientes o

    quase-epitfio Be distinct or extinct e, tambm, uma frmula para sossegar o sono

    de inovadores permanentes nas noites agitadas que se sucedem a dias de investidas

    dromolgicas: esqueam, diz ele, porque esquecer sublime (Peters, 1994: 128).

    Sempre que uma empresa incorre no risco de corporate rigor mortis, normalmente

    porque repete estratgias ou processos por tempo demasiado, a soluo recomendada a

    introduo de rasuradores da eperincia organizacional (organizational erasers) como

    a descentralizao ou o outsourcing, o que, mesmo assim, nem sempre parece funcionar

    bem. Se para Mary Douglas (1987) a questo era compreender como pensamcolectivamente as organizaes, isto , como criam categorias classificadoras para

    introduzir estruturao interna e prever mudanas nos seus ambientes, j para Peters a

    questo antes a de saber como apagam as organizaes estas categorias da sua

    conscincia colectiva, como fogem ao peso do hbito, ao pensamento e s emoes

    inibidoras associadas ao institudo.

    Subsiste, no entanto, um problema: o esquecimento mais difcil de realizar no o esquecimento colectivo mas o individual. Da o desencantamento de Peters ao

    concluir que embora algumas metodologias faam aumentar levemente as hipteses de

    uma instituio esquecer glrias passadas nos mercados, essas metodologias so de

    pouca utilidade para obter o esquecimento individual (Peters, 1994: 129) pois as

    pessoas podem devotar uma vida inteira elaborao de apenas uma ideia (Peters,

    1994). Por isso que Thomas Edison, apesar da genialidade que se lhe reconhece,

    sempre esteve intelectual e emocionalmente ligado ao mundo dos fios (Peters, 1994:128). Refm da natureza perversa do mecanismo de reteno que domina os

    organismos, incluindo as variedades humana e empresarial (Peters, 1994), era-lhe

    impossvel pensar aquilo que para Marconi surgia como uma evidncia - a transmisso

    sem fios (cf. Hargadon & Douglas, 2001).

    Diramos, pois, que no s os indivduos e as organizaes esquecem com

    dificuldade, como frequentemente no queremesquecer, sobretudo quando se trata de

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    inscrever a sua experincia e as suas obras na memria colectiva.

    O tempo denso da durao

    O texto literrio sugere-nos luminosas intuies sobre a dimenso oculta, ou

    censurada, da durao. Milan Kundera, em La lenteur,refere que a nossa poca est

    obcecada pelo desejo de esquecimento e para realizar esse desejo que se abandona ao

    demnio da velocidade; acelera o passo porque quer fazer-nos compreender que j no

    aspira a ser lembrada; () quer soprar a chamazinha trmula da memria (Kundera,

    2002: 98). Mas um dos personagens deste seu ensaio em forma de novela soube,

    paradoxalmente, imprimir ao escasso lapso de tempo que lhe coubera como que umapequena arquitectura maravilhosa, como que uma forma. Imprimir forma numa

    durao, tal a exigncia da beleza, mas tambm a da memria (Kundera, 2002: 31 -

    itlico nosso). Em contraponto a um suposto desejo de auto-esquecimento por parte da

    nossa poca, Kundera inventaria com bastante ironia formas de perdurao individual,

    como o caso das pessoas clebres que se transformaram numa instituio pblica

    semelhana do que acontece, diz ele, com as instalaes sanitrias, a Segurana Social,

    os seguros e os manicmios (Kundera, 2002: 40).

    Michel Serres chama igualmente a ateno para o tempo ainda hoje detido nas

    velhas instituies e que garante uma certa estabilidade a um determinado grupo,

    assim como uma relativa lentido sua histria(1996: 199 - itlico nosso). Mesmo

    que o tempo da pacincia das pedras (1996: 200) parea estar a esgotar-se, no

    certo que o tempo da impacincia do voltil e domalevel, isto , dos chipse das redes

    de comunicao, seja o nico a reinar no futuro. Pelo contrrio, antecipa Serres, todos

    os poderes viro a pertencer queles que detm o duro e o malevel (), pertencero

    aos media, cincia e ao direito (1996: 201).

    A questo do tempo nos estudos organizacionais , pois, objecto de abordagens

    muito diferenciadas, se bem que a temporalidade da mudana e da inovao, isto , do

    devir, tenda largamente a prevalecer. Por essa razo, ao colocarmos em relevo a

    temporalidade da durao queremos sublinhar que na vida individual e colectiva h

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    outras temporalidades de referncia para alm do tempo que quase no dura, sejam elas

    o tempo sem tempo (Mainemelis, 2001), o tempo do fluxo ptimo

    (Csikszentmihalyi, 1997), o tempo cclico (Hatch, 2002) ou, como vimos tratando, a

    experincia da durao (Flaherty, 1987; Bergson, 1922). Assim, Mainemelis, num

    interessante artigo sobre a experincia do tempo sem tempo nas organizaes, refere

    que esta a experincia de transcender o tempo e o prprio eu, em que,

    simultaneamente, cada momento pode ser um momento no tempo - um momento

    ligado sucesso do que foi, do que podia ter sido, do que pode vir a acontecer e do

    que tem de ser feito (...) -, mas tambm um momento fora do tempo, em que nos

    entregamos profundidade e intensidade da experincia imediata (2001: 562 - itlico

    do autor). No nos surpreende, pois, que cada instante revele profundidade temporal,uma intensidade imortal que alimenta a ruptura esttica e a criatividade individual e

    colectiva (2001: 551).

    Uma reflexo sobre a experncia pessoal do tempo tambm a que faz Mary Jo

    Hatch (2000). Hatch reclama o tempo cclico como a categoria temporal mais

    apropriada aos modelos de anlise que vem desenvolvendo na teoria das organizaes

    para abordar questes de identidade e de cultura, j que o tempo cclico que traz a

    intimidade com o objecto de estudo. A inspirao para esta sua viso cclica do tempo

    prprio do teorizar vem-lhe do contacto com a pintura de David Hockney, sobretudo da

    reflexo deste em defesa da pintura e em detrimento da fotografia, mas vem igualmente

    da prpria experincia de Hatch enquanto pintora ocasional. Hatch interroga-se:

    Pergunto-me a mim prpria se no haver alguma coisa na soluo de Hockney para o

    problema de defender a pintura que possa ser de alguma ajuda para o meu prprio

    problema de produzir um modo cclico de construir o tempo na teoria organizacional?

    (2002: 871). Ela revela uma interessante intuio ao afirmar que nada disto ter

    particularmente a ver com ciclos, mas talvez com o deixarmo-nos arrastar para o

    interior do que queremos descrever para melhor o descrevermos, pois se para Hockney

    a pintura torna o mundo mais ntimo, a minha [de Hatch] aproximao teoria

    das organizaes, por extenso das ideias de Hockney, tem a mesma aspirao.

    As reflexes que fao neste ensaio sugerem que a intimidade com os processos

    cclicos do organizar produziro uma relao recproca entre reflexo e tempo

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    (...). Ser que um dia a teorizao cclica vai permitir instilar reflexo no

    processo de organizar ou, pelo menos, na teorizao que sobre ele fazemos?

    (2002: 874).

    A acelerao do tempo e a experincia intensiva de si tero, pois, atingido um

    clmax na nossa poca. Mas onde tudo ter comeado? Peter Sloterdijk vai muito atrs

    na histria e identifica-os como fenmenos de grande amplitude que foram retirados da

    substncia epistemo-messinica da velha Europae passaram a actuar escala planetria

    - histria, cincia, indstria, comunicaes em massa, velocidade (2002: 15 - itlico

    nosso). No entanto, a ideologia da velocidade e da experimentao no depende

    exclusivamente de foras que se nos impem do exterior, depende tambm da nossaprpria insatisfao geradora de movimento, j que

    o capital cintico faz explodir velhos mundos, no porque tenha algo contra

    eles, mas apenas porque seu princpio no se deixar deter. No se pode fazer

    outra coisa seno pr as circunstncias a danar ao som de melodias aceleradas,

    pr rios de mercadorias a correr, frotas a cruzar, escadas rolantes a deslizar,

    atmosferas a mudar, faunas a desaparecer (). Entretanto, o movimento, o

    movimento puro, passou a andar solta () e espalha-se pelo mundo uma

    maldosa suspeita: talvez a cintica seja o destino? (2002: 29).

    Mas ser que podemos, e desejaremos verdadeiramente, enfrentar quer os

    mpetos modelizadores deste universo dromolgico globalizado, quer as nossas prprias

    auto-mobilizaes geradoras de xtase? Ter hoje sentido colocar sequer a questo sem

    parecermos ingnuos?

    Sloterdijk procurou uma resposta, repensando os fundamentos de uma teoria

    crtica da modernidade. As dificuldades so, no entanto, enormes, pois se uma crtica da

    cintica poltica supe o desengatar-se do processo de acelerao para ganhar

    distncia (), a questo est em saber se a totalidade moderna se pode livrar do modo

    de ser que determinado pela frmula do ser-para-o-movimento () e do ataque do

    presente contra o resto do tempo (2002: 51/2 - itlicos nossos). Num fundo de poca

    saturado de ataques do presente contra o resto do tempo, como se organizam

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    estratgias de enfrentamento do tempo que quase no dura a partirdo tempo denso da

    durao, ou, como referiremos mais adiante, a partir do tempo da institucionalizao?

    Sloterdijk pressente a tenso entre estas duas temporalidades e a improbabilidade de se

    virem a anular reciprocamente, sobretudo quando os sinais de des-eternizao

    parecem avassaladores:

    desde h uns sculos que a paixo imobilista [ou paixo eletica] se est a

    esgotar na Europa (). Assistimos a uma des-eternizao e a uma mobilizao

    to penetrantes que j nem sequer estamos em condies de pensar

    especulativamente um conceito oposto aos conceitos dominantes de movimento

    e de acontecimento. Dois sculos bastaram para esgotar as reservas imobilistasde uma era. Um culto do movimento sem precedentes histricos cobriu o

    pensamento e a aco dos tempos modernos. Para ele, torna-se ridculo tudo o

    que est parado, se mantm, repousa sobre si prprio e jaz sem ser utilizado.

    Como se tivesse de se recompor de uma longa doena, a poca moderna

    desprendeu-se do seu mundo antecedente, apaixonado pela rigidez, e goza o seu

    novo poder, capaz de volatilizar tudo quanto seja permanente e slido (). No

    entanto, a eternidade abolida projecta uma longa sombra sobre a grande poca

    da dinamizao (). Volta, pois, a metafsica? () H uma outra alternativaque no tenha de ir parar pedra, pureza, automortificao, para lidar com a

    fugacidade da vida? (2002: 96/7 - itlico do autor).

    Superar o mundo pela volatilizao, pressupondo um tempo dinmico-funcional

    que quase no dura, ou super-lo pela metafsica, pressupondo o tempo denso da

    durao, so estratgias de enfrentamento do tempo que continuam a coexistir na nossa

    vida pessoal e nas organizaes.

    A concluir esta reviso da literatura sobre devir e durao, e antes de passarmos

    seco seguinte, sugerimos que se passe a identificar o tempo denso da durao com o

    tempo da institucionalizao. Por outras palavras, daqui em diante sempre que falarmos

    em estratgias de enfrentamento do tempo que quase no dura quereremos dizer

    estratgias ou processos de institucionalizao. O sucesso ou insucesso desses

    processos permanecer, no entanto, sempre em aberto, pois mantm-se a questo de

    como institucionalizar numa poca em que nada parece poder institucionalizar-se, em

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    que o valor dominante o da diferena, no o da repetio, em que a categoria temporal

    dominante o devir, no a durao.

    Liminaridade

    Organizaes no limiar da inexistncia

    Escolas, hospitais ou igrejas sero as verdadeirasinstituies, garantia Selznick,

    pois a que melhor se sente a flavour of immortality. Numa poca que celebra a

    inevitabilidade da acelerao do tempo, a esmagadora maioria das organizaes no s

    no respira este aroma de imortalidade - supomos que j nem as escolas, os hospitais ou

    as igrejas respiram -, como vive uma condio liminar, comprimida entre o tempo quequase no dura (mudana) e o tempo denso da durao (institucionalizao). Algumas

    organizaes em particular, embora partilhando com todas as outras traos comuns da

    actual condio liminar, vivem permanentemente essa condio, posicionando-se no

    limiar da inexistncia. Estas so as organizaes que aqui nos interessam - as

    organizaes liminares.

    Liminaridade ecommunitas

    Liminaridade refere-se a um tempo ou lugar na fronteira das estruturaes

    ordinrias da vida individual ou colectiva, um tempo e um espao social de

    transformao entre duas fases - uma de separao e outra de re-incorporao. No

    excerto que colocmos em epgrafe, Richard Rottenburg descreve as delcias ambguas

    do tempo suspenso na fronteira entre territrios que, ao sabor das guerras, ora ostentam

    a cidadania polaca, ora a alem. O bar em que os habitantes da cidade fronteiria de

    Slubice vivem suspensos no tempo no uma metfora de liminaridade, o espao

    social onde as pessoas vivem literalmente a sua condio liminar, uma vida em

    transio entre distintas identidades nacionais e pessoais, um espao e um tempo social

    em transformao onde so refeitos quadros de orientao herdados (Rottenburg, 2000:

    87).

    O conceito de liminaridade foi primeiramente proposto e definido por Arnold

    van Gennep em Rites de passage (1908), constituindo a segunda de trs fases

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    constitutivas de um rito inicitico de passagem. Assim, um nefito era simbolicamente

    separado da comunidade a que pertencia (fase pr-liminar), sucedendo-se um estado de

    transio ou liminar, concluindo-se o ritual com a incorporao ou regresso do nefito

    comunidade (fase ps-liminar), mas agora com um estatuto social qualitativamente

    distinto do originrio. Victor Turner (1966), inspirando-se nos trabalhos de Van

    Gennep, desenvolveu o conceito de liminaridade em mltiplas e surpreendentes

    direces, conferindo-lhe um aprecivel valor interpretativo e viabilizando sua

    aplicao no s na antropologia (como sejam, por exemplo, a anlise de autctones

    subjugados, pequenas naes, santos, bons samaritanos, movimentos milenrios, bobos

    da corte, "dharma bums," peregrinos, profetas, artistas ou ainda ordens monsticas), mas

    em muitas outras reas de investigao como , tambm, o caso dos estudosorganizacionais.

    A condio liminar est associada, por um lado, a situaes-limite, a fronteiras,

    lugares em que as identidades individuais ou colectivas da nossa poca j no so

    estritamente definidas por papis e estatutos sociais, por instituies como a famlia, a

    igreja, a escola ou o trabalho, mas so ambguas, instveis ou mesmo efmeras, em

    transio para novas identidades. Victor Turner oferece, alis, outros equivalentes deliminaridade, como sejam o intersticial, o marginal, o profano, a anti-estrutura ou o que

    est entre uma coisa e outra. Ora, estas situaes liminares, em que o que est a

    caminho de se tornar algo diferente, implicam perturbao ou atentam mesmo contra as

    estruturas sociais, so potencialmente perigosas e sempre foram objecto de rituais que

    protegiam aqueles que nelas estavam envolvidos, ao contrrio do que hoje sucede

    quando enfrentamos, sem iniciao, o inorgnico da vida social.

    Quanto communitas, Turner apresenta-a como uma expresso de estados

    liminares colectivos em que as capacidades humanas de cognio, afecto, volio e

    criatividade se libertam de constrangimentos normativos (1982: 44). Na communitas, a

    sociedade j no vista como um conjunto de indivduos que ocupam posies

    diferenciadas e hierarquizadas protegidas pelo direito, mas antes como uma comunidade

    fracamente estruturada ou, talvez melhor, como uma comunho de indivduos iguais,

    concretos, no segmentados por riqueza ou estatuto social. Turner considera que a

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    communitas no um modo ou forma estvel de organizao social, e muito menos

    movimentos criados para mudar a sociedade. Pelo contrrio, communitas so

    comportamentos e manifestaes espontneas, transitrias, de forte inclinao afectiva e

    emocional que tm lugar nos interstcios da estrutura social.

    Veremos em seguida, com a Emel, empresa pblica gestora do parqueamento na

    cidade de Lisboa, que em certas circunstncias as organizaes podem ser fortemente

    penalizadas pela formao de uma particular communitas de sublevao nos seus

    ambientes, o que refora, e pode mesmo perpetuar, a sua condio liminar.

    Revisitar o caso Emel

    J analisado em artigo anterior (Andrade, 2005), o caso envolve a Emel,

    empresa municipal que gere parques de estacionamento pblico na cidade de Lisboa. A

    Emel v sistematicamente negado o direito existncia por parte de cidados e dos

    media, os quais sobre ela vo produzindo insistentes narrativas erosivas. Sintoma desta

    coliso de interesses entre a empresa e os cidados , por exemplo, o facto de no ano de

    2001 e de um total de 350 000 infraces por estacionamento indevido, a Emel terapenas cobrado 6 000, isto , 5%. Sustentmos, ento, que a Emel no conseguia criar

    um sistema de gesto baseado na hipocrisia funcional (Brunsson, 2003) capaz de

    compatibilizar e integrar conflitos de interesses antagnicos que lhe permitisse

    legitimar-se e realizar a sua misso.

    Prolongando agora a nossa investigao, afirmamos que a Emel tambm no

    consegue operar no tempo denso da durao, isto , institucionalizar-se e

    institucionalizar as suas actividades de modo a obter dos cidados, e dos media, o

    reconhecimento da sua utilidade e da utilidade dos servios que presta cidade. A Emel

    , assim, uma organizao liminar que se defronta continuadamente com uma

    communitas hostil. Esta communitas no , na nossa perspectiva, uma mera opinio

    pblica intransigente e em estado de alerta, mas uma verdadeira sublevao cvica no

    organizada que quer deliberadamente atentar contra a empresa e infligir-lhe uma

    condio liminar, ambicionando primeiro a sua extino moral e, por fim, se possvel, o

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    seu colapso. O conflito sempre em aberto dos cidados com a Emel resultar, em

    primeiro lugar, da acusao de que a empresa confisca abusiva e ilegalmente o espao

    pblico da cidade. Julgamos que esta percepo amplamente partilhada, e o efeito de

    communitasque provoca, a razo de fundo que mantm a Emel num limen social.

    No nos surpreendeu, pois, no nosso estudo, encontrarmos narrativas erosivas

    em excesso e raras narrativas construtivas. Recuperemos dois breves exemplos. O

    primeiro, refere-se a narrativas auto-erosivas que a Emel conta sobre si mesma,

    reforando-se a ideia de que a empresa , ela prpria, o primeiro e poderoso agente

    erosivo da sua identidade, e tambm a primeira a infligir danos na sua reputao. A

    narrativa O parqumetro portugus, particularmente contundente, comea por ter oento presidente da Emel como narrador confidenciando a um jornal dirio que

    o sistema de cobrana atravs de parqumetros tem-se revelado ineficaz no que

    diz respeito sua segurana e fiabilidade, porque ou se avariam constantemente

    ou, ento, so incessantemente vandalizados (). Temos a funcionar 1 800

    parqumetros em Lisboa. Uns so de fabrico alemo e no resistem ao

    vandalismo. Outros so de fabrico francs e, apesar de funcionarem bem, so

    facilmente vandalizados. Por fim, temos os parqumetros de fabrico portugus -

    os mais baratos - que no funcionam e so mais assaltados (inAndrade, 2005).

    Em esforados pargrafos do Relatrio Anual de Gesto e Contas de 2003 (pp

    25-28), ficamos ainda a conhecer a tipologia das dificuldades de manuteno e das

    vulnerabilidades especficas por marca de parqumetro. Assim, a marca Gain de

    extrema vulnerabilidade ao arrombamento da porta e roubo do cofre, enquanto que os

    parqumetros da marca Kienzle, com custos de manuteno elevadssimos, so de

    fcil destruio por qualquer elemento pontiagudo introduzido na ranhura das moedas,

    atingindo o selector de moedas (250 euros/unidade) e teclado (370 euros/unidade).

    Quanto aos Slumberger, regista-se que no Campo das Cebolas chegaram a ser

    substitudos 50 selectores de moedas num ms, pois so equipamentos muito sensveis

    furao da chapa em pontos estratgicos.

    Por isso que quem passear pela Lisboa perifrica, aquela que no cai no eixo

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    central de explorao comercial e de manuteno prioritria que cobre apenas o

    corredor que vai do Terreiro do Pao a Entrecampos, pode ver parqumetros arruinados

    e cobertos de p, vidros partidos, ranhuras bloqueadas, selectores de moeda destrudos,

    cofres esventrados, enfim, vestgios da retirada da empresa face declarao de guerra

    que lhe foi movida por gangs organizados, pela pequena criminalidade, por arrumadores

    de automveis e, tambm, por cidados indignados e resistentes.

    Quanto s narrativas erosivas, isto , aquelas histrias que tm origem no no

    interior da empresa mas na comunidade que serve, o que explicitamente se pretende

    negar Emel os recursos morais e afectivos necessrios sua legitimao. A narrativa

    Privatizao do espao pblico e o direito natural do indivduo constituir um bomexemplo. Em finais de 2004, a prpria existncia jurdica da Emel que se contesta.

    Uma associao de defesa do condutor (ADEC) fez entrar no tribunal administrativo,

    atravs do seu advogado, uma aco contra a Emel porque esta no realizou uma

    escritura de criao da empresa, mas apenas uma escritura de estatutos. Pede-se,

    ento,

    a nulidade da existncia jurdica da Emel, bem como a impossibilidade dehaver uma outra figura jurdica com a mesma actividade. E, ainda, a

    reconstituio da situao anterior existncia da empresa, como se ela nunca

    tivesse existido, ou seja, desmontados os parqumetros e refeitas as ruas tal

    como eram antes. Por fim, pretende-se que todas as quantias pagas at ao

    presente sejam devolvidas aos automobilistas. O argumento mais forte

    esgrimido o do direito natural do indivduo, sendo irrelevante que a CML

    tenha conferido Emel poderes para gerir o domnio do municpio,porque as

    ruas no lhe pertencem(), elas so domnio do Estado. isso que afirma oInventrio Geral do Estado (in Andrade, 2005 - itlicos nossos).

    Liminaridade nas organizaes e organizaes liminares

    A queda de uma organizao na liminaridade permanente no decorre

    simplesmente da sua dimenso ou tipo de estrutura, o que significa que a Emel, uma

    mdia empresa, tanto uma organizao liminar como o a Enron, empresa que

    protagonizou em 2001 um colapso financeiro com profundas repercusses no EUA e

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    escala global. A Enron pretendia ser uma empresa de tipo novo, de tal maneira que os

    prprios empregados a viam como uma experincia social bizarra, prenunciando um

    ambiente global de negcios que se vem consolidando e onde as destruies

    especulativas por manipulao do factor tempo que quase no dura so a regra. Nas

    suas arriscadas operaes financeiras a Enron contabilizava, por exemplo, contratos

    celebrados no presente - e cujos resultados financeiros em boa verdade s se fariam

    sentir a longo prazo - como resultados j consolidados. Mas a Enron fazia mais:

    ambicionava, paradoxalmente, uma meta-estabilidade temporal. A Enron acreditava

    estar em mudana para sempre,quereria, nas palavras de Swartz & Watkins,devotar-

    se a uma mudana perptua e monumental (inRoberts & Armitage, 2006: 565).

    Uma organizao com estas caractersticas, que realiza uma gesto permanente e

    deliberada de riscos, e vive comprimida entre devir e durao, , na modernidade tardia,

    uma organizao transitria, que dura apenas por um curto perodo de tempo (...), uma

    organizao impermanente quase totalmente determinada pela relao com a velocidade

    excessiva com que opera nos seus ambientes (Roberts & Armitage, 2006: 563/4). A

    Enron acreditava poder incorporar na sua poderosa rede de negcios no s o tempo que

    quase no dura mas tambm o tempo denso da durao. Roberts e Amitage tipificaram-na como uma organizao hiper-moderna, ns preferimos chamar-lhe uma organizao

    liminar.

    Ser possvel identificar e caracterizar globalmente organizaes liminares?

    Esboar mesmo uma tipologia? Que poder haver de comum entre diferentes

    organizaes liminares e como as distinguir de organizaes em que processos de

    liminarizao (deslegitimaes, desinstitucionalizaes, precarizao laboral, fuses eaquisies problemticas, etc) tm inevitavelmente lugar mas so contrabalanados por

    processos inclusivos (comunicao com stakeholders, filantropia, responsabilidade

    social, sustentabilidade ambiental, etc) que mantm, apesar de tudo, a homeostasia na

    sua gesto? Quais so, ento, aquelas organizaes em que uma particular combinao

    de estrutura e de circunstncias as torna tpica e permanentemente liminares e no

    apenas organizaes em que concorrem processos de liminarizao e de incluso?

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    Respostas satisfatrias a tais questes excedem de sobremaneira o mbito deste

    nosso trabalho. Alguns estudos podem, no entanto, ajudar-nos a perceber a amplitude

    dos conceitos de liminaridade e de organizao liminar, como o caso de investigaes

    de Czarniawska & Mazza sobre consultores de gesto cuja tarefa organizar ritos de

    passagem e transformar temporariamente uma organizao normal numa organizao

    liminar (2003: 279), isto , num espao virtual de mudana vivido diferentemente por

    consultores e empregados; ou investigaes de Christina Garsten sobre empregados

    temporrios, tambm eles partilhando com os consultores alguns traos de liminaridade,

    mas, ao contrrio destes, questionando-se se a sua posio transitria, sempre aberta a

    definio, vai afinal revelar-se como uma via para o emprego permanente, como uma

    fase exploratria na esfera do trabalho e da organizao, como uma passagem emdireco a uma mudana de carreira ou simplesmente como um beco sem sada (1999:

    604); e tambm de Tempest & Starkey, que avaliam as vantagens de um tipo de

    organizao particularmente preparada para lidar com o trabalho temporrio, a

    organizao latente, a qual integra agrupamentos de indivduos e de equipas com

    competncias muito especficas que persistem ao longo do tempo numa forma latente,

    sendo periodicamente activados por operadores () e tornando-se crescentemente

    importantes para a produo nas indstrias da cultura, como ser o caso da produotelevisiva (2004: 522); ou, ainda, trabalhos como os de Cunha & Cabral-Cardoso, que

    examinam zonas de legalidade/ilegalidade nas organizaes e interpretam-nas como

    espaos liminares onde decises concretas podem implicar exigncias paradoxais que

    colocam as pessoas, simultaneamente, em conformidade com o sistema de regras ou em

    confrontao com ele (2006: 216). O conhecimento destas zonas liminares, cinzentas,

    permitem-nos desenvolver uma melhor compreenso da tica organizacional e da

    tomada de decises (2006: 216).

    Genericamente, as organizaes liminares: (i) tm dificuldade em afirmar uma

    identidade social clara e estabiliz-la; (ii) no garantem uma fonte continuada de

    legitimidade, o que coloca sob constante suspeita a sua utilidade social; (iii) sofrem

    alguma forma mais ou menos explcita de contestao nos mercados, na comunidade

    e/ou nos media; (iv) no conseguem institucionalizar-se, e s suas actividades, num grau

    razovel, o que lhes confere um carcter de impermanncia; (v) consequentemente, tm

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    mais dificuldade em enfrentar o tempo que quase no dura, o que as torna

    crescentemente vulnerveis e ameaadas de desaparecimento. A Emel no s cumpre

    todos os items enumerados para a considerarmos uma organizao liminar, como

    constitui uma variedade particularmente interessante, funcionando como revelador de

    elementos inorgnicos que persistem e se manifestam ciclicamente nas sociedades

    actuais (como o caso da formao de communitas hostis), criando instabilidade e

    desafiando os sistemas sociais e tcnicos que, legitimados em bases fracas, hoje nos

    governam na esfera empresarial ou da administrao pblica.

    Uma variedade de organizao liminar: A organizao com identidade odiada

    Quando enuncimos a hiptese de a Emel ser uma organizao liminar com

    identidade odiada, submetida a permanentes e virulentas expresses de hostilidade por

    parte de cidados e dos media que a elegeram claramente como objecto de expiao,

    hesitmos na formulao: no seria excessiva essa hiptese? O que seria uma empresa

    com identidade socialmente odiada? Por outro lado, deveramos falar de organizaes

    odiadas ou de identidades organizacionais odiadas? A hesitao anterior conduziu-nos,

    desta vez, a clarificar a condio da Emel e a consider-la, de jure et de facto, umavariedade de organizao liminar com identidade socialmente odiada. Quanto ao termo

    algo forte de dio, deve ser entendido como um

    termo genrico para designar o impulso destrutivo que aparece isolado do

    impulso para preservar, proteger e cuidar. dio o desejo de trazer a morte em

    vez da vida e pode exprimir-se em eventos espontneos e isolados ou numa

    campanha planeada cuja execuo requer tempo, recursos e cooperao

    (Levine, 2002: 1).

    Organizaes liminares com identidade odiada so, ento, organizaes s quais

    sistematicamente negado o acesso a recursos morais e de afecto social que lhes

    permitiriam estabilizar o sentido da sua utilidade social e crescer. Estas organizaes

    no conseguem inverter fluxos persistentes de narrativas erosivas (e de narrativas auto-

    erosivas) e encontram-se ameaadas de extino moral, o que faz com que a

    possibilidade do seu desaparecimento esteja regularmente na ordem do dia, seja nos

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    mercados, na opinio pblica ou na agenda poltica e dos media.

    A Emel tornou-se uma organizao liminar com identidade odiada pelo efeito de

    formao de uma communitas de sublevao, fenmeno social que caracterizaramos -

    prolongando observaes de Victor Turner sobre a communitas em geral - como

    imediato, espontneo, concreto, no-racional, indiferenciado e igualitrio. A

    communitas de sublevao emerge de forma no organizada para resistir suposta

    usurpao sistemtica e ilegtima do espao pblico da cidade por parte desta empresa

    municipalizada.

    Acreditamos que as nossas observaes sobre a liminaridade da Emel nodeixaro de se manter vlidas mesmo se, na sequncia de eleies autrquicas, a fora

    poltica vencedora - invocando razes de operacionalidade, custos de explorao ou

    outras mais ponderosas - vier, eventualmente, a optar pela reestruturao da empresa,

    pela sua extino ou mesmo por entregar a gesto do parqueamento da cidade a uma

    unidade orgnica da prpria Cmara de Lisboa. Entretanto, a Emel vem anunciando

    para 2007 o lanamento do sistema Via Verde que eliminar progressivamente os

    parqumetros na cidade, meio at aqui privilegiado para realizar a suas receitas.Veremos o que pode acontecer no s liminaridade da empresa, como communitas

    de sublevao interpretada por aqueles muncipes e cidados que, para alm de

    quaisquer inovaes tecnolgicas nos sistemas de cobrana, pem prioritariamente em

    questo o direito da Emel a retalhar e a rendibilizar espaos urbanos, e, em

    consequncia, questionam igualmente a identidade da empresa, condenando-a a repetir-

    se como organizao liminar.

    Hiper-instituies

    Organizaes que aspiram a incluir toda a vida no seu interior

    Nesta seco trataremos de organizaes que aspiram a incluir toda a vida no

    seu interior e a ocupar uma posio oposta liminar, reforando assim um sentimento

    de indispensabilidade social e, por vezes, mesmo de inevitabilidade (Levine, 2001).

    Designamo-las, globalmente, por hiper-instituies ou organizaes inclusivas.

    Faremos, primeiro, uma incurso pelo tempo inclusivo da filantropia, exploraremos em

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    seguida a tendncia, hoje bem visvel, de edificao de cosmogonias individuais (isto ,

    pessoas-que-estategicamente-se-modelam-como-instituies), para, por fim, nos

    referirmos s cosmogonias organizacionais (isto , instituies-que-estrategicamente-se-

    modelam-como-pessoas). O caso, em intrigante expanso, de fundaes privadas

    criadas por pessoas individuais permitir-nos- associar estas duas tendncias e

    compreender melhor as hiper-instituies e as suas estratgias de enfrentamento do

    tempo que quase no dura.

    O tempo inclusivo da filantropia

    A criao em larga escala de fundaes inscreve-se no que j foi chamado, commaior ou menor pendor ideolgico, revoluo associativa global, sociedade da

    participao ou era da devoluo, caracterizando-se pela emergncia e crescente

    protagonismo em todo o mundo de organizaes sociais sem fins lucrativos, o

    denominado terceiro sector por oposio aos sectores mais convencionais do mercado

    ou do Estado (Salamon, 1994; Salamon & Anheier, 1996). Para Lester Salomon, a

    exploso, nas ltimas dcadas, de organizaes do terceiro sector ou da economia social

    explicada, em primeiro lugar, pela crise do Estado assistencial, mas tambm pela crisede modelos de desenvolvimento social e econmico, tanto no primeiro como no terceiro

    mundos, e, por fim mas no menos importante, pelo agravamento de uma crise

    ambiental globalizada. A tudo isto se veio ainda juntar uma profunda transformao nas

    comunicaes, bem como o aumento da educao pblica e da literacia num contexto

    de, ento, forte crescimento econmico. O resultado pode ser descrito como

    uma massiva expanso de organizaes privadas autnomas no dedicadas a

    distribuir lucros a accionistas ou dirigentes, prosseguindo objectivos de

    interesse pblico fora do quadro formal do Estado. A proliferao destes grupos

    est a alterar definitivamente a relao entre estados e cidados, com um

    impacto que vai muito alm dos servios materiais que oferecem (Salamon,

    1994: 109).

    Neste cenrio, a filantropia consumada por actos de caridade, doao de tempo

    ou por via testamentria tem um lugar destacado. No debate actual encontramos dois

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    modelos dominantes quanto ao entendimento do papel e do modus operandi da

    filantropia organizada. De um lado, e mais tradicionalmente, os que vem na filantropia

    um processo de redistribuio de recursos envolvendo fundaes disponibilizadoras de

    fundos e outras instituies-beneficirias do terceiro sector, as quais funcionariam,

    muitas vezes, com evidentes debilidades organizativas geradoras de desperdcio. De

    outro lado, os que acreditam que, face a um escasso controlo da aplicao eficiente de

    fundos, a atitude das fundaes sociais que deve mudar, passando a adoptar

    metodologias de gesto inspiradas no empreendorismo e no capital de risco. Deste

    modo, as organizaes sem fins lucrativos criariam, a partir de um capital-semente

    inicial, a riqueza que aplicariam nas suas prprias actividades, abandonando a atitude

    anterior de actores mais passivos. Com esta nova filosofia de auto-sustentao,defendem os seus preconizadores, eliminar-se-iam tambm situaes absurdas como as

    verificadas em alguns em alguns pases mais ricos em que vermos fundaes a

    desbaratar recursos com receio de no despenderem o suficiente para continuar a

    beneficiar de condies fiscais favorveis (Letts et al, 1997). Quando transposto para o

    terceiro sector, o modelo de capital de risco funcionaria como um excelente ponto de

    partida para fundaes que desejem apoiar organizaes no lucrativas a sustentar e

    expandir programas filantrpicas bem sucedidos (Letts et al, 1997: 44).

    Quanto aos motivos que levam filantropos individuais ou organizados em

    fundaes a devolver sociedade alguma da sua riqueza, uns so de natureza universal

    como o bem pblico, o interesse social ou o fortalecimento da sociedade civil, outros

    mais particularizados e distribuindo-se por um espectro que vai do altrustico ao

    marcadamente venal, como sejam os motivos de memria e distino pblicas, receios

    piedosos e salvao pessoal, racionalidade e progresso cientfico, conscincia de classee vantagens polticas (Smith & Borgmann, 2001); mas tambm vaidade, culpa,

    vantagens nos negcios, evaso fiscal e controlo poltico ou econmico duradouros

    (Prewitt, 2001). Clotfelter & Ehrlich (1999), por sua vez, concluem que h duas fortes

    linhas motivacionais para a criao de organizaes sem fins lucrativos, incluindo as

    fundaes. Uma, resulta do forte pendor para o individualismo e para a glorificao da

    iniciativa individual to central na filantropia americana da era de Carnegie e

    Rockefeller; a outra linha motivacional o apelo profundo para criar alguma coisa de

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    novo e de ainda no experimentado (1999: 506). Pensamos que estas duas motivaes

    se cruzam porque a ambas comum a vontade de associar o nome pessoal descoberta

    de caminhos inexplorados, isto , a vontade no s de inscrever um legado na histria

    como, simultaneamente, de se inscrever na durao longa. Subjacente a este aparente

    narcisismo mitigado que, por vezes, ganha corpo de instituio est

    um processo de mobilizao memorialque se inscreve na temporalidade do

    devir () de modo a edificar uma totalidade significante que englobe os

    diversos factos constitutivos de um determinado percurso existencial num

    discurso lgico e coerente de apresentao de si (Faia, 2003: 132 - itlico

    nosso).

    Em nosso entender, a mobilizao estratgica da memria ou, melhor ainda, a

    sntese egolgica do vivido (Faia, 2003: 123) no comporta apenas elementos

    racionais e no se esgota no prprio acto filantrpico.Ao aceder ao tempo inclusivo da

    filantropia, o filantropo realiza um encurvamento mtico do tempo linear, processo que

    temos designado por tempo da imortalidade e que corresponde a uma estratgia de

    enfrentamento do tempo muito mais praticada na actualidade do que pessoas e

    organizaes esto na disposio de reconhecer abertamente. Estaramos, alis, a iludir-

    nos se acreditssemos que a projeco ou glorificao de iniciativas individuais como

    motivo para fundar teve j a sua poca e tudo seria hoje diferente com novas geraes

    de fundadores, chamem-se eles Gates, Chirac, Soares, Saramago ou Figo.

    Respondendo a motivos diversos e acolhendo solues de empreendorismo mais

    ou menos decalcadas ou inspiradas na esfera do mercado, a filantropia ,

    intrinsecamente, uma forma de realizar o tempo inclusivo (isto , o tempo denso da

    durao) e tambm de elaborar cosmogonias pessoais e organizacionais.

    Cosmogonias pessoais e organizacionais

    Cosmogonias, na acepo que queremos sublinhar, so narrativas de criao de

    universos e de percursos de vida mais ou menos fantsticos, magnficos. Nestes

    processos demirgicos interessam-nos tanto os universos criados como os seus

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    criadores, pelo que as cosmogonias de auto-expresso de que trataremos em seguida

    poderiam tambm denominar-se picasindividuais e colectivas.

    As narrativas cosmognicas de auto-expresso que observamos na actualidade

    respondem a profundos impulsos de magnificao e de transcendncia do tempo, so

    construes de sentido laboriosas e sistemticas entregues aos cuidados j no de

    pintores ou de arquitectos, como na Renascena, mas de verdadeiros profissionais da

    duraocomo sejam os gestores ou consultores de comunicao e imagem. Sloterdijk

    fala mesmo em indivduos-designersque se exprimem e agem, pelo menos no lado mais

    ocidental e rico do mundo, inspirados na ideia de que mundo aquilo com que

    experimentam at fractura, reconstruindo-o em seguida com novas narrativas defundao, num processo sempre recomeado e que tem por fundo social a ausncia de

    um patrimnio de convices e dogmas utilizveis (Sloterdijk, 2002). Os paradoxos ou

    desmentidos impostos pela realidade so para incorporar nos processos narrativos e

    expressivos, de modo algum inviabilizando ou ferindo mortalmente estas pequenas

    narrativasfundadoras.

    A hiptese que desenvolvemos em trabalho anterior (Andrade, 2001) a de queos processos de auto-institucionalizao, a que chamamos agora cosmogonias de auto-

    expresso, desempenham um papel central nas sociedades e nas organizaes actuais. A

    centralidade destes processos - com equivalentes e exemplos to variados como, por

    exemplo, a panteonizao (programada em vida por Andr Malraux), a auto-

    santificao (ou preparao por Joo Paulo II, tambm ainda em vida, do percurso

    conducente sua prpria beatificao) ou ognio cannico dos poetas fortes(teorizada

    por Harold Bloom a partir do conceito de ansiedade de influncia) - decorre do factode assistirmos a uma crescente impregnao da esfera do pessoal pelo institucional

    como condio para uma maior eficcia das pessoas-que-se-modelam-estrategicamente-

    como-instituies. Ensaiar a auto-institucionalizao enfrentar o tempo que quase no

    dura, encurvar a linha do tempo, para que uma representao ou verso mtica de mim

    possa existir e vingar simbolicamente na durao longa. Deste modo, as pessoas

    individuais endurecem socialmente, blindam-se, pretendendo com isto no

    necessariamente renovar-se, mas, pelo contrrio, e de forma talvez menos bvia,

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    repetir-see afirmar assim um sentido, um valor pessoal estratgico, traindo ao mesmo

    tempo um intenso desejo de resistir volatilidade social e ao sofrimento causado pelo

    anonimato.

    Quanto ao que pode entender-se por instituio, e por processos institucionais,

    partilhamos a perspectiva de Scott (1995) segundo a qual para alguns fins tratamos a

    instituio como uma entidade, como um sistema cultural ou social (...), noutras

    ocasies estamos interessados na institucionalizao como um processo, como

    desenvolvimento no tempo de sistemas reguladores, normativos ou cognitivos capazes

    de, em grau varivel, dar sentido e estabilidade a comportamentos sociais (1995: 64).

    Acrescentaramos que, para ns, institucionalizar produzir uma distino de sentidoque se repete como procedimento organizado e, ao repetir-se, sedimenta-se e adquire

    uma legitimidade consentida aos olhos de comunidades existentes. Os processos ou

    tentativas de auto-institucionalizao por parte de pessoas individuais e de organizaes

    visam o acolhimento desse sentido estratgico (traos ou atributos simblicos) em

    estruturas pblicas de memria como condio para perdurar (cf. Andrade, 2001).

    No que respeita s pessoas colectivas que so as organizaes, aparentementeseguem um percurso inverso ao das pessoas individuais, isto , vulnerabilizam-se

    estrategicamente de modo a estabilizarem e exibirem identidades sociais compatveis

    com as convenes, valores e aspiraes da sua poca. Diramos que so instituies-

    que-se-modelam-estrategicamente-como-pessoas. Nas cosmogonias auto-expressivas

    que propem, comportam-se como boas cidads, propiciam a Festa, defendem e apoiam

    devotadamente causas nobres, reclamam o reconhecimento da sua responsabilidade

    social. As cosmogonias organizacionais sero melhor compreendidas se no perdermosde vista o fenmeno simtrico da criao de cosmogonias ou picas individuais, porque,

    em boa parte, so estas picas individuais que alimentam picas organizacionais, como

    constatmos na actividade filantrpica, se bem que os exemplos possam multiplicar-se.

    Assim, quando vemos Joe Berardo protagonizar um anncio publicitrio, sentado numa

    cadeira no topo de um promontrio e olhando de frente o mar, deixando-se envolver

    pelo movimento circular de uma cmara e por uma voz quente que diz tambm tu

    podes (embora no se dirigindo a ele, que supostamente j pde quase tudo, mas ao

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    telespectador que, esse sim, desejaria vir a poder), o que estaremos afinal a ver - o Joe

    Berardo fundador de sucesso ou a instituio individualJoe Berardo? Se a Alcor Life

    Extension Foundation oferece, com visvel sucesso, servios de criogenizao que

    permitem preservar as caractersticas genticas de pessoas falecidas, o que est

    exactamente a oferecer? Apenas a esperana de que um dia a cincia venha reanimar

    essas pessoas que permanecem congeladas em azoto lquido por tempo indeterminado,

    ou oferecer uma verdadeira fantasia da durao? Quando as pessoas se envolvem,

    denodadamente, na tarefa de preservar e garantir a transmisso de nomes de famlia,

    sobretudo os nomes de famlia das elites, o que estaro verdadeiramente a revelar, para

    l das mil e uma vantagens associadas ao status, seno uma tentao de imortalidade

    simblica (Lima, 2006), ou, nas nossas palavras, uma vontade de auto-institucionalizao?

    O reforo do institucional, fenmeno controverso e de percepo dificultada

    pelas aceleraes do presente, explica-se por uma necessidade de acrescer a eficcia

    social por parte de actores individuais e colectivos realmentevulnerveis que procuram,

    deste modo, influenciar os sentidos que circulam nas redes relacionais e sociais em que

    se incluem e que os podem afectar, como facilmente visvel na procura desmedida daateno dos media para obter estados de celebridade. No entanto, no devemos reduzir

    estas manifestaes planeadas da vontade individual a um epidrmico desejo de

    celebridade. Se a celebridade de pessoas e organizaes atrai, sem dvida, um elevado

    nvel de ateno pblica e gera respostas emocionais positivas (Rindova et al, 2006),

    traduzindo-se em vantagens econmicas considerveis e no acesso facilitado a

    oportunidades, recursos ou bens crticos, o processo de construo dessa celebridade

    manifestamente um processo de auto-institucionalizao e contribui para realizar umoutro valor, esse sim, inestimvel - a perdurao do nome e do legado dessas pessoas e

    dessas organizaes. Se um dia tornmos instituies as nossas organizaes,

    ambicionamos agora tornar-nos, ns-prprios, instituio.

    Fundaes e hiper-instituies

    As fundaes de que nos ocupamos neste artigo so as fundaes privadas

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    institudas por pessoas individuais, isto , instituies perptuas ou legalmente

    imortais (Prewitt, 2001) cuja inteno alegadamente realizar o bem comum e, ao

    mesmo tempo, prolongar num futuro distante a memria e o legado filantrpico dos

    seus fundadores. Excludas ficam, pois, quer as fundaes cannicas, quer as fundaes

    criadas pela administrao pblica, por empresas ou ainda por comunidades.

    As fundaes em geral distinguem-se de outras entidades colectivas pelo facto

    de no terem membros, ao contrrio de uma associao, de uma mutualidade ou de uma

    cooperativa; beneficiarem de um patrimnio inicial disponibilizado por um ou mais

    fundadores; no terem fins lucrativos; e proporem-se, de forma desinteressada, a servir

    o bem pblico. Com base nesse patrimnio inicial, e ainda em novos rendimentosgerados a partir dele, as fundaes desenvolvem, com carcter de continuidade,

    programas e actividades previstas na misso que lhes foi explicitamente atribuda pelos

    fundadores ou reinterpretada aps a morte destes.

    Helmut Anheier apresenta trs razes para o explosivo desenvolvimento das

    fundaes que devero juntar-se aos que enumermos anteriormente para o conjunto das

    organizaes no-lucrativas. A primeira de ordem poltica, j que o prprio Estadoque incentiva o envolvimento das fundaes em actividades que complementam

    polticas pblicas; a segunda, de ordem cultural e lembra-nos que actualmente parece

    haver grande aceitao por parte de actores privados na disponibilizao de bens

    pblicos ou bens-quase-pblicos (2001: 64); por fim, a terceira razo econmica e

    sugere que as fundaes so um veculo apropriado para resolver alguns desafios que

    se colocam s organizaes (Anheier 2001: 64), como o caso de muitas mdias

    empresas suas e alems que recorrem figura da fundao para obviar sriosproblemas de sucesso colocados s suas administraes, ou ainda, mais prximo de

    ns, o recurso recente figura da fundao para mudar substancialmente o quadro

    institucional e, sobretudo, a gesto de universidades.

    Em Portugal, o nmero de fundaes pblicas e privadas oscilava, no ano de

    2000, entre 700 (Registo Nacional de Pessoas Colectivas) e 800 (Ministrio da

    Administrao Interna). O nmero no fcil de estabelecer, em parte pela natureza

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    diversa dessas fundaes, por nem todas exibirem o selo de utilidade pblica e,

    sobretudo, pela disperso do seu registo por diversos rgos da administrao central.

    No entanto, no ano 2000, as fundaes com actividade efectiva no excederiam as 450

    (in Memria, Centro Portugus de Fundaes, 2003: 58). Num inqurito s fundaes

    portuguesas, Barros e Santos (2000) tomaram como base um universo de 800

    fundaes, obtendo uma taxa de respostas de cerca de 19%. Embora este valor fosse

    insuficientemente representativo, o inqurito permitiu, mesmo assim, mostrar que 85%

    eram fundaes privadas. Uma larga maioria, quase 70%, eram independentes, portanto

    no ligadas ao estado ou a empresas. Quanto s actividades desenvolvidas, as principais

    so o ambiente, patrimnio, cultura, sade e educao, a que vm somar-se actividades

    associadas infncia, famlia, apoio a idosos, servios sociais e grupos desfavorecidoslevadas a cabo, predominantemente, por fundaes de solidariedade social (Barros e

    Santos, 2000: 53), no divergindo muito do que ocorre a nvel europeu em que se

    destacam os domnios da educao e investigao cientfica (30%) e o servio social

    (25%), surgindo em terceiro lugar as artes e a cultura (Anheier, 2001: 57). O inqurito

    revelava ainda que cerca de 60% das fundaes respondentes tinha um nico fundador,

    indiciando que no nosso pas as fundaes so principalmente instituies individuais

    (Variz, 2000: 152, inBarros e Santos, 2000).

    Neste mpeto fundacional (Moreira, 2000) isolmos, como j se disse, um

    motivo particular embora naturalmente, no exclusivo: fundar um impulso para

    realizar o tempo denso da durao, um impulso para imortalizar. Isolmo-lo apesar de

    sabermos que tal motivo vai ao arrepio de sinais dominantes na nossa poca fascinada

    pelas aceleraes do tempo e tambm no d especial nfase, embora no ignore,

    perversesvrias do modelo clssico de fundaes e que as desvirtuam, como sejam:tornarem-se rgo coordenador central de grupos econmicos, proporcionarem um

    regime fiscal mais favorvel, servirem fins mais ou menos egostas no sentido de

    proporcionar meios de subsistncia ao fundador ou aos herdeiros do fundador, e ainda

    expediente por parte da administrao pblica para contornar a legislao da

    contabilidade pblica e a fiscalizao do tribunal de Contas (Amaral, 2001). Por isso

    que Vital Moreira, referindo-se globalidade do sector das fundaes, considerava-o

    "um universo altamente diversificado, sujeito a um quadro jurdico-institucional

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    complexo e onde escasseia a transparncia e a responsabilidade pblica" (Moreira,

    2000), espantando-se mesmo com a multiplicao de modalidades exticas de

    fundaes (Moreira, 2000). A vocao ambgua destas figuras organizacionais

    complexas foi exemplarmente sintetizada por Prewitt ao referir que

    no sculo XX as fundaes privadas tornaram-se um dos mecanismos mais

    eficazes para o grande capital privado celebrar o doador, dotar de meios a sua

    inclinao filantrpica e reduzir substancialmente as obrigaes para com o

    fisco (Prewitt, 2001: 345).

    Nada disto se ignora, mas nem por isso deixamos de insistir na hiptese de queas fundaes, e de um modo geral as hiper-instituies, so formas organizacionais

    particularmente bem posicionadas para enfrentar o tempo que quase no dura e tm por

    base a criao de cosmogonias pessoais e organizacionais visando estruturar mais

    eficazmente a memria pblica e o tempo denso da durao. Por essa razo que

    consideramos as fundaes como o tipo mais puro de hiper-instituio, como veremos

    j em seguida.

    Quando falamos em hiper-instituies no nos interessar tanto saber se

    estaremos perante um conjunto bem delimitado, homogneo e consistente de

    organizaes, mas interessa-nos sobretudo pr em destaque os processos

    organizacionais inclusivos que trabalham em profundidade as organizaes do nosso

    tempo. Poderemos, mesmo assim, identificar nas hiper-instituies trs traos

    distintivos. Assim, as hiper-instituies:(i)estruturam o tempo inclusivo da filantropia;

    (ii) elaboram cosmogonias organizacionais com vocao global; (iii) realizam mais

    eficazmente processos de institucionalizao e so mais bem sucedidas nas suas

    estratgias de enfrentamento do tempo que quase no dura.

    (i) As hiper-instituies estruturam o tempo inclusivo da filantropia.O tempo

    inclusivo da filantropia d-se a ver quer nas metforas a partir das quais as fundaes

    concebem as suas polticas e programas filantrpicos, quer, como vimos anteriormente,

    nas motivaes dos seus fundadores. As metforas em uso nas decises de grandes

    fundaes dos EUA, pas onde o movimento fundacional foi mais precoce, oferecem-

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    nos alguns bons exemplos. No incio do sculo XX, as metforas em torno da doena e

    da cura ganharam a preferncia dos filantropos, como foi o caso da metfora dos

    germes. Nas dcadas seguintes, sobretudo no ps-guerra, surgem novas metforas de

    cariz mais poltico e ideolgico, como sejam as metforas do ajustamento e equilbrio

    econmicos, do aprofundamento da justia social, da emergncia e reforo da sociedade

    civil. No presente, a metfora viral que melhor parece inspirar as estratgias

    filantrpicas, pois a era do vrus requer estruturas institucionais capazes de aplicar

    rapidamente um novo conhecimento, ou responder eficazmente mesmo na ausncia de

    conhecimento completo, tornando-se menos burocrticas nas suas operaes (Smith,

    1999: 49). De facto, a estruturao do tempo inclusivo da filantropia hoje

    indispensvel obteno de capital moral pelas hiper-instituies. Mas nada disto pacfico. David Bright (2006), em resposta a Paul Godfrey (2005) sobre a hiptese da

    relao entre prtica de filantropia empresarial e acrscimo de riqueza para os

    accionistas em empresas lucrativas, insiste no facto de ser frequentemente tnue a

    fronteira entre o carcter genuno da actividade filantrpica e a sua utilizao

    instrumental, concluindo que se a procura de capital moralno genuna e episdica,

    mas um fim em si mesmo (sem que isto signifique que as organizaes se auto-

    sacrifiquem, Bright, 2006: 753), o prprio conceito de capital moral que se encontradesacreditado.

    (ii) As hiper-instituies elaboram cosmogonias organizacionais com vocao

    global.Em epgrafe a este nosso artigo colocmos um fragmento de uma estimulante

    reflexo de Phillips & Zyglidopoulos (1999) inspirada na trilogia Fundao, de Isaac

    Asimov. Nessa trilogia, a Enciclopdia Galctica era a grande smula e reserva de

    conhecimento face ao declnio do imprio. Para a acolher e proteger esse preciosoconhecimento foram estabelecidas, como sementes de futuro, duas fundaes - ou

    colnias cientficas - em pontos distantes e opostos da Galxia, esperando-se que

    resistissem ao poder imperial (Phillips & Zyglidopoulos, 1999 - itlico nosso). O texto

    de Phillips & Zyglidopoulos (1999), bem como a obra de fico cientfica que o inspira,

    uma reflexo sobre os limites da tentao positivista de criar metarranativas com

    pretenso a explicar e prever com rigor tanto os comportamentos humanos como o

    futuro das sociedades. Ora, esta tentao psico-histrica (Asimov) no se verifica

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    apenas nos estudos organizacionais, e nas cincias sociais em geral, mas nas prprias

    organizaes e, muito em particular, nas hiper-instituies. De facto, nas suas narrativas

    cosmognicas as hiper-instituies propem-se como reserva moral e reservatrio de

    conhecimento para a sociedade civil, capazes de prever necessidades e aspiraes

    sociais, como vimos no ponto anterior quando nos referimos s metforas que animam a

    misso e os programas de fundaes. Esta narrativa cosmognica da reserva moral e de

    conhecimento tambm a encontramos, por exemplo, num relatrio relativamente

    recente da Comisso Europeia sobre o papel que caber s fundaes na Europa, a se

    vaticinado que as fundaes continuam, como sempre o fizeram, no apenas a oferecer

    a sementeira ou a base gentica a partir da qual futuras polticas sociais e outras

    possam eventualmente crescer, mas tambm a criar o clima poltico, social e intelectualpara que a mudana em larga escala seja vista como desejvel (European Commission,

    COM 97/241: 5). , alis, esta a razo porque afirmamos que as hiper-instituies, e em

    particular as fundaes, so ncoras de sentido para as sociedades do presente e aspiram

    a incluir toda a vida no seu interior.

    (iii) As hiper-instituies realizam mais eficazmente processos de

    institucionalizao e so mais bem sucedidas nas suas estratgias de enfrentamento dotempo que quase no dura. Se as organizaes tpica e permanentemente liminares, bem

    como as que vivem temporariamente uma condio liminar, falham, em maior ou menor

    grau, essas estratgias de enfrentamento do tempo que quase no dura que so os

    processos de institucionalizao, pelo contrrio as hiper-instituies so usualmente

    mais bem sucedidas nos seus ensaios para se inscreverem na temporalidade densa da

    durao, isto , para se institucionalizarem. As hiper-instituies, e em particular as

    fundaes, so mais bem sucedidas nas estratgias de enfrentamento do tempo quequase no dura porque, semelhana dos seus fundadores, estas organizaes acreditam

    que nunca morrero (Levine, 2001: 1255). Uma fantasia de inevitabilidade vem

    revelar a matriz religiosa/sagrada das hiper-instituies, apesar da natureza secular

    destas, traduzindo-se na ideia messinica de que uma organizao surge no mundo para

    cumprir uma misso e o mundo no avana se a organizao desaparecer. Levine sugere

    que a fantasia de inevitabilidade introduz na vida organizacional elementos que

    associamos normalmente religio (...) e quando vemos esta fantasia a operar fora da

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    esfera da religio, porque as organizaes seculares retomam, ou esto a tentar

    retomar, elementos do sagrado (Levine, 2001: 1262).

    A terminar, questionemos ainda o estatuto ontolgico das hiper-instituies. Se

    as fundaes nos parecem ser o caso mais tpico de hiper-instituio, no sero

    igualmente hiper-instituies todas as organizaes do terceiro sector? Ou, indo um

    pouco mais longe, e arriscando mesmo alguma diluio de conceitos, no poderamos

    tambm afirmar, semelhana do que fizemos com os processos de liminarizao, que a

    temporalidade e os processos inclusivos prprios das hiper-instituies podem ser

    encontrados no s nas organizaes do terceiro sector mas ainda em todas as

    organizaes do presente? Um banco, por exemplo, no exibir traos marcados dehiper-instituio, comportando-se como uma organizao que aspira a incluir,

    simbolicamente, toda a vida no seu interior? A assinatura A vida inspira-nos do

    Millenium/BCP - que tem como antecedente o portal inclusivo A cidade BCP e se

    prolonga na Fundao Millenium/BCP - no mero detalhe de retrica comunicacional

    do banco, mas um signo particularmente revelador da elaborao de uma cosmogonia

    organizacional e de uma centralidade simblica que vai muito para alm da percepo

    mais imediata de uma instituio bancria enquanto rede integrada de negcios, deaccionistas e de stakeholders. Um banco j no pode propor exclusivamente

    modalidades regulares de crdito comercial, ter, por exemplo, de oferecer tambm

    microcrdito, mesmo que isso represente um mero valor residual no conjunto das suas

    opes financeiras. O microcrdito - que apenas um exemplo, poderamos identificar

    outros elementos inclusivos j hoje fundamental para realizar o tempo inclusivo da

    filantropia numa instituio financeira, e, em consequncia tambm estruturante na

    construo do seu capital reputacional e moral. Se esta narrativa cosmognica comvalor inclusivo no for instituda e objecto de intensa comunicao pblica pela

    instituio financeira, poder vir a originar constrangedoras penalizaes vindas da

    comunidade e dos media.

    O que pretendemos sublinhar nas hiper-instituies, e nos seus processos

    inclusivos, o facto de proporem uma constelao de valores de vida e intensifica