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O Tempo é um Rio que Corre · PDF fileEu estava no auge da juventude, a caminho da maturidade: um bom casamento, filhos saudáveis, muito trabalho — mas numa profissão que me apaixonava

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1ªedição

2014

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAFONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

Luft,Lya,1938-

L975tOtempoéumrioquecorre/LyaLuft.–1ªed.–RiodeJaneiro:Record,2014.recursodigital

Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebISBN978-85-01-02534-0(recursoeletrônico)1.Ensaiobrasileiro.I.Título.

13-07816

CDD:869.93CDU:821.134.3(81)-3

Copyright©byLyaLuft,2014

Capa:LeonardoIaccarinoTextorevisadosegundoonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

TodososdireitosdestaediçãoreservadospelaEDITORARECORDLTDA.RuaArgentina,171–RiodeJaneiro,RJ–20921-380–Tel.:2585-2000.

ProduzidonoBrasil

ISBN978-85-01-02534-0

SejaumleitorpreferencialRecord.Cadastre-seerecebainformaçõessobrenossoslançamentosenossaspromoções.

Atendimentoevendadiretaaoleitor:[email protected](21)2585-2002.

ParaMarcoAntônio,JoãoPedroeJoséArthur,Isabela,FabianaeFernanda,eRodrigo—irmãodeMarcoAntônio:vocêsiluminamomeutempo.

(ParaVicente,sempre.)

nadaébanal(agenteéqueesquece)

ROTEIRO

Apresentação

1 | Águasmansas

2 | Maréalta

3 | Aembocaduradorio

Apresentação

Este livroéumirmãomaismoçodeOriodomeio,ePerdas&ganhos, talvez pelo tomameia-vozfalandodiretamentecommeu leitor—semtramas,histórias,personagens.Eleémemorialismo,ensaio,confidência — em muita coisa dúvidas. Talvez seja mais pessoal. Gosto tanto desse jeito de escreverquantodecriarminhasficções.

Trêsobsessõesmarcamminhaobra:asrelaçõeshumanas,otempo,eamortequeconfereimportânciaà vida. Temas, frases, personagens circulam em meus livros como num bosque de fantasias.Desaparecem,emergemdenovo,escondem-seementrelinhasousemostramsemmedo.Tambémaquiéassim:meujeitodetrabalhar.

Feitocriançasnumaciranda,estaspáginasgiramemtornodoTempo—paraamaioriadenósumprocessodoqualfugimos,quefingimosignorar,ouconsideramosummistérioinabordável.(Paramuitos,resume-seaograndesustofinal:derepente,tinha-sepassadoumavidainteira.)

O tempo pode ser visto como um assassino em série: suas correntezas levam pessoas, esperanças,possibilidades. Mas também é um Papai Noel bondoso: quem vou encontrar naquela esquina, quehorizonte depois daquela curva, que visões, que experiências, que esperanças? Indagar é um desafiopermanente.

Otempotransforma,amemóriapreserva,amorteaofimabsorve.(Oudevoescrever“absolve”?)

(Gramado,OBosque,janeirode2014)

1 | Águasmansas

Otemponãoexiste:eudecretoassim.Essesvultosesquivossãorostos,sãonomes,sãoashorasfelizes(sãooquefoiembora?).

Otemponãoexiste:tudocontinuaaqui,ecrescecomoumaárvorepesadadefrutosquesãomáscaras,palavras,promessas,bocasferozes.

Otemponãoexiste:tudoseresumeaoinstante.

Oantesdissoéumrioquecorremasnãopassa.(Bastachamar:ésempreagora.)

Eu estava no auge da juventude, a caminho da maturidade: um bom casamento, filhos saudáveis,muitotrabalho—masnumaprofissãoquemeapaixonava.Levávamosavidacomdignidadeemuitosprojetos.

Entãoalguémmedeuumapequenaampulheta,quecoloqueiemminhaescrivaninha.Nocomeçoacheiinteressanteaareiafinaqueescorriamarcandoashoras.

Um diame dei conta de que elamarcava a vida que foge e amorte que aguarda.Num impulsojogueiaampulhetapelajanela.

Aareiadotempoficouespalhadanaspedras,rindodemim.

Convocoainfâncianestecomeçodelivro.Porqueamemóriaéaguardiãdavida.E porque nesse reino do pensamento mágico, num mundo ainda informe, se prende a raiz do

destino. É quando o tempo quase não existe: existe uma forma nebulosa de viver entre sonho erealidade,quedepoisquasetodosperdemos.

(Excetoosartistaseosloucos.)

Senosabrimosparaas surpresas—comoascriançasquando lhesdeixamos livrea imaginação—,enxergamos, nítido ou fugidio no canto do olho, um segredo que quer ser revelado,mas não temoscoragemdeinsistircomele.

Aliberdadedascriançasnosdámedo,porissoasqueremosenquadrar.A nós, o cotidiano tanto anestesia que correndo entre as atividades diárias ignoramos o realmais

real.Atéque algonos toca,pungente, bomou sinistro:nossoolhar sedesembaça, asmáscaras caem,ficamosdecaraexpostaenfrentandotudocomosefossepelaprimeiravez.

Eubatia pé—porque era impertinente, e porque queria algo “agora”.Umdos adultos, divertido,disse:

—Oagoranemexiste!Aborrecida,pediameupaiquemeexplicasseaquilo,eeletentou:—Otempoestásemprepassando,écomoaáguadeumrio,acadainstantetudomuda.Atéagente

nãoéamesmapessoadeumsegundoatrás.Eacrescentouparaeuentendermelhor:— Quando a gente começa a pensar a palavra “agora”, entre o primeiro “a” e o “a” final já

transcorreuumtempinho,portantonadaéamesmacoisa,eacadamomentoagentenãoéamesmapessoa.

Leveidiasprocurandoemvãoempilharas letrasdo“agora”paraquefossemumacoisasó,numsóinstante. Mas não consegui enganar a esfinge que nos proporciona pequenos milagres e grandestragédias,noduelodasideiasedaspalavrasansiosas.

Asmanhãs de inverno eramgeladas.Ànoitemeupai dizia, esfregando asmãos diante da lareiraacesa:

—Estamadrugadavamostergeada.Nós crianças pegávamos uma bacia de vidro com água e ali colocávamos folhas, pétalas, flores

inteiras—deixávamosnopátio,correndo,depressadepressa,ofrioqueimavaapele.Demanhãantesde irparaaescola,opequenomilagre:estava tudoconservadodentrodogelonabacia,comoosdiasvividossepreservamnabaciadasmemórias.

Apalavradeamormurmuradanoescuro,acriançadormindoemmeusbraços,otrabalhobem-feito,oolharcúmpliceatravésdasala,a flechadesolabrindoumapaisagemirreal,a famíliareunidadandorisadaenaquelemomentotodosdeverdadeseamando:tudoissopassanoinstanteemqueacontece—masestáparasempreaquicomigo.

Umartista escocês que faz esculturas e instalações compedras, galhos e folhas, sentadona gramadiantedeumriozinho,comentaquecostumamcompararotempoaummar,comsuas idasevindas,masqueparaeleofluirdavidaéoriodocrescimentoedatransformação.

Fiquei encantada: pois era exatamente o que eu pensava lidando com este livro então apenas noinício. Sinal da vida, dos deuses, dos enigmas?Não importa: estava consagrado esse tema, de que otemponãovaidarnopoçodanãoexistência,masnummarquenãosabemosoqueseja:láestá,enosdevoraounosacolhe.

Cadaumdenósprecisa(masninguémnosexplicaisso)escreveroroteirodesuaexistênciadando-lhe sentido nos espaços brancos e nas entrelinhas das fatalidades e dos acasos (nos quais eu nãoacredito).

Cúmplicesdenósmesmosnessesolitáriobrinquedodeexistir,alternamostrabalhodurocomeuforiacintilante,desejodeseocultaratrásdefantasiaseoímpetodearrancarasmáscarasefinalmenteser.

Abertaaomundocomoumgrandeouvido—nadaentreobuscadoeobuscador—,senta-seacriançanodegraueolha.Elaéinteiramenteoquecontempla:apedra,aflor,obesourovermelhonocapimeoespaçoforadessascoisas.

Nãoqueroindagaroqueelapensanemachamoparaocotidiano:elanãoviveofluirdotempo,mascurteoseumomentoeterno.

(ParaIsabela)

Notemposemtempoda infância,o trabalhodos relógiosdemarcandoavidaécoisadosadultos,éahoraimpostadefora.Nós,entreosintervalosdecorreriaseagitação,contemplamos.

Tudoépossívelnessafase:otempoemcurso,dequenosfalamcomvozesqueparecemvirdetãolonge,podeserapenasumainvençãomalévoladosbem-intencionadosadultosparanoscontrolar.

Sóaospoucosodentroe foradenósassumirádesenhose figuras,o fluirdaságuas se impõe—eteráinícioanossahistória.

Aminha liga-seacasas: ademeuspais, àsdeminhasavós, sobretudoo sobradoondeatéhoje sepassamtantosdemeussonhos—tambémosquenadatêmavercominfância.Équandotudoretorna,nítidocomosefosserealmenteagora:osaromas,aspessoas,eu-naquele-tempo.

Estaquehoje sou, aindame transformando, comaflições, alegrias, fracassos e algumas conquistas,temalisuaraiz,assimcomoseprendemaofundodotanqueosaguapésqueboiamnaflordaságuas.

Mashátambémaquelacasaquenãoconheci,ondenuncaestive,queemergedemeuinconscienteemmuitos sonhos, recorrente. Temporões e uma espécie de subterrâneo de vários níveis, aposentosestranhos, janelas que abrem para o nada. Lá encontrei velhas desgrenhadas vestindo farrapos, oupessoas felizes em torno da grande mesa numa cozinha. No quintal atrás brincam meus filhospequenos,no jardimda frenteprocuroaflitaalgumacoisaqueperdientreoscanteiros, e seiquenãovouencontrarnuncamais.

A casa do pensamento mais oculto é a nossa verdadeira casa, aquela da criança no reino daimaginação,antesdosenquadramentosedosmurosconvenientes.

Láacadadiapodem-semudarosquartos,enfeitarasala,abrirefecharjanelas,desenharatrilhadepedrasno jardim (as areiasda ampulheta rebrilham,mas eunão as entendo ainda), e abrir oportãoparaoquepareceumcamposembeiradas.

Setivéssemosconsciênciadequeestamosemtransformação,dequetudoépassageiroepodeacabaremalgunsminutos—ouanos,oudécadasqueseja—,nãosuportaríamosapressão,nãohaveriaespaçoemocionalparavivercomcertanormalidade.

(Ou,naambiguidadequenoscaracteriza,daríamosmaisvaloraoquetemos?)Por isso, a rotina e a acomodação são essenciais: delírio sim,mas às vezes. Só crianças conseguem

vivernesseestadoqueembrevelhesserároubadoparasetornaremcidadãosdesinteressantes—com

algumasexceções.

Névoaencostadanajanela,qualquercoisaroçandootelhado:omedomeprocurava—talvezsimplesmenteovento.

Assombrasnoteto,orespirardascortinas,estalosdosdegraus,nacurvademadeiraospassosdequemnãovinhaoudeperdidosamores.

Avelhinhanorelógiotricotandominhashorasemcoresalegres,sombrias,insôniaepressentimento.

Longasrosasdelongapaciência,ossilêncioseosprantos;alguémarranhandoaparede—oueramosmeusterrores?

Algosempreemmovimento:avidaarrastandoaspantufasnoscorredoresdotempo.

Umademinhasavósmoravanumsobradocheiodesustos.Nojardim,árvoresemqueeueraproibidadesubir,eumtanquedepedracomincansáveispeixinhosvermelhos.

Dentrodacasa,aromas,armários,cortinas,paredescomdesenhos,euma largaescadademadeiraemcaracol.

Algumasnoiteseudormialá.Antesdeadormecercontavaasrosasdeumaramagemcomespinhosquerodeavaasparedeslogoabaixodoteto,tãoalto.Quempintaraaquilo,comquelongaescadaequelongapaciência?Quemseesgueiravapelosdegraus,quemchegavaàquelahora?

—Vemvindoalguémnaescada...—Nãoénada.Éamadeiraquetrabalhadenoite.Casasvelhassãoassim.Dorme.A menina tentava dormir, mas aquela ideia confusa a mantinha alerta: que trabalho fariam as

madeirasdasvelhascasasquandoanoitecia?Inútilpedirmaisexplicações,ninguémpareciainteressado.

(Antesdelhedarmosnometudosechama:enigma.)

Nomeiodanoite,orelógionoandardebaixosoavaasbatidascomumamúsicasincopada:algumacriatura morava nele e o mantinha funcionando na medida certíssima das nossas horas. Eu nãoimaginavaummaquinismo,masumservivo.

(Tudo,então,eraassim.)Otempoerafeminino,emalemão,“DieZeit”:umabruxainstaladaemtodososrelógios—daqueles

quedavamosquartosdehora,meiahoraehorainteira,otique-taquevinhadesuasagulhasdemetalfabricandoosminutosdotempoquenosrestava.

Mais tarde entendi queo tempo se estendia emanos, décadas, os incalculáveis séculos: comecei asentirumpoucomaiso seupoder.Suplicando,nomeucoraçãodecriança: “Nãopare,nãopare,nãopareomundo,nãodeixequenadaacabe.”

Depoisdescobrique tambémeupodiaparar:omaquinismodomeucoraçãopodiaromper-seeeuhaveriademedesmancharcomoumabonecaquebrada.DesdeentãorespeiteioTempoquetudolevaconsigoenãodevolve.

Memóriasesonhoporémresistemcomoilhasnomeiodorio.Hesitei, em alternadas fases, entre considerar que ele destruía e suspeitar que transfigurava: como

tudoomais,umaprendizado.(Nuncafuiboaaluna.)

Sensaçõesdeimpermanênciaaindahoje:acordarnamadrugadaesaberquetudoestápassando.Arespiração de quem dorme ao meu lado vai cessar; as vozes familiares no corredor; o tumulto dasemoçõeseorumordarua,tudovaiacabar.

Equandoeupassar,atéissoqueestáretidonaminhamemóriavaideixardeexistir?Omundo,comgente, casas, carros, florestas e rios, e todos os mares, será apenas a invenção de cada um para daralgumsentidoatodaessacomplexidadedeviver?

Tempodemuitosmedos:medodetudoedenada.DoNadaquandotudotivesseacabado.Doqueadivinhavaserofimdascoisastodas,dosbichos,daspessoas.Aideiadeperdê-lasprovocavaangústiasquenãose imaginaemumacriança,quandooconceitoera“criançanãopensa”,mote repetidopelosadultosparasimplificaremavida.

Mas eram afliçõesminhas, estendiamminhas horas de insônia (“criançanão tem insônia!”), só seacalmandoquando,pertodoamanhecer,osprimeirosgaloscomeçavamacantarlonge,eruídosnaruaprovavamqueascoisaseaspessoascontinuavamali.

Obanalsempremesalvava.Aindaexistíamos,ouniversointeiroeeu.

Naquele casarão, entrar no quarto que tinha sido deminhamãe era entrar num conto de fadas.Quando tinha tempo, a avó abria a tampa de um baú sob a janela e eu podia ver, pegar, até vestir,roupagensdecriançasdeantiquíssimoscarnavais.

A sensação de coisas hámuito guardadas, o farfalhar dos tafetás, a cócega das plumas, o oblíquoolhardasmáscaras,asrendaslânguidaserepuxadasacendiamafogueiradaminhaimaginaçãoquenãoprecisavademuitocombustívelparadelirar.Vestindoaquelasroupaseusentiaopoderdodisfarceeamultiplicidade,ariqueza,denadanuncaseromesmonemserumsó.Usarumafantasiaerasertodasaspossibilidades.

Nãoconsigodescrevera excitaçãode remexernessevelhobaú:o tempoeraumpeixedevidroderepentenaminhamão.Estavamaliosmomentosvividosdeminhamãemenina,minhastiasmocinhas:eraoestranho-íntimo,ondeeupenetravaamedo.

E quando em casa lhe falei daquela descoberta, o baú, asmáscaras e roupas, ela não pareceu darmuita importância. Achou graça daminha emoção, nem sabia que aquelas “velharias inúteis” aindaestavamguardadas.

Nessamesmaarcaencontreiembrulhadaempapeldesedaamareladoumatrançagrossaecompridadecabelocastanho-avermelhado,lustrosocomosetivesseacabadodeserlavadoesecoaosol.

Corriparaaavócomaqueleachadoincrível:—Oqueéisso,oqueéisso?—Olhasó,euatétinhaesquecido.

—Masécabelo,issoaí,nãoé?Deboneca?—Éatrançadesuamãequecorteiquandoelatinhaunsnove,dezanos.Vejasó...Atrançaapareciaemalgumasfotosmuitoantigas,ameninasériacomoseopesodacabeleiraque

desciaabaixodacinturaa incomodasse.Comoela fosse rebeldeaospuxõesedoresdoeterno fazeredesfazer dessa cabeleira, certa ocasião a mãe irritada tinha pegado a tesoura transformando-a empoucos instantes numamenina comum com cabelos comuns. Em lugar de se entristecer,minhamãeficaraaliviada:eraumacriançacomoseriamulher,alegreeprática,aparentementesemcomplicações.

Eu, a quem ela não permitia ter cabelos compridos nem as tão desejadas tranças porque só lhedariamtrabalho,sentiadevezemquandosobremimoseuolharintrigado.Talvezestranhassehaver-meparidotãodiferentedela.Aqueleregistroondeeuàsvezesmeperdia,aqueledesvãopeloqualmeenfiava,aaborreciaumpouco.

Elanãoeradesombras,frestasouporões:eradaclaridadefácilefeliz.

Adonadaqueles cabelos lustrosos, ameninaquenão conhecimasme significava tanto, viveu emmimalimentada comhistóriasquedelame contavam:dequandonão era ainda amãe futura comaespinhosatarefademeeducar,masumacriançaquesubiaemárvores,jogavabolinhadegudecomosirmãos,roubavauvasdaparreirae(comoeu,comoeu!)nãogostavadaescola.

E parecia um anjo num retrato, em seu vestido de quinze anos, babados de tule branco, sentadanuma poltrona debaixo da árvore de Natal que ainda girava numa caixa de música quando eu eracriança. Esse esboço da mulher — que depois seria minha mãe — era mais meu que dela,desinteressadadaquelepassado,tãopassadoestavajánoseupresente.

Assim, por um período convivi comminhamãe pequena reinventada, com seu rosto oval e peleazeitonada,osolhosmarotoseacabeleiraintemporal.

Tudo estava ali, e estaria enquanto alguém lembrasse: como retratos em esquecidos baús, que osanoseosanosnãoconseguiramanular.

Omenininhobrincanotapeteenquantonósadultosrimoscontandocoisasdainfânciadopaideleedostios.

Eleergueorostoeindaga:—Doquevocêsestãofalando?—Dainfância—respondealguém.—Infânciaélegal?—Muito.—Agentenãopodeviajarpralá?Eraoqueestávamosfazendo.

Numpaísdenévoaelembrança,minhamãetocavapianoeaárvoredeNatalbrilhavanumcantodasala.Eucochilavanocolodemeupai:nopeitodelepulsavaaengrenagemdavida.(Algumacoisaescuraesorrateirafaziarumorforadacasa:eraotempofugindo,eeunãosabia.)

Noritmodoriodosangue,afacacortandoaminhaalmaerapressentirqueaságuasdotempoinundariamacasa,eseríamosumdiaosrostosnaufragadosdeumvelhoretratonumamala.

Oquetantopensavaacriançadosdiassemtelevisãonemcomputador,mascommuitafantasia?Oquesentiaepressentia,oquetemiaoudesejava?Pensavanosignificadodanatureza,dovento,dachuva,do silênciodasnoitesnumacidadepequenaemquedepoisdecertahora tudoadormeciamenoseu,menos eu? Lá fora todas as coisas conhecidas, pessoas, árvores, casas, estavam agora afogadas numvastotinteiro,noitesemestrelas,ruazinhasemiluminação,enoinvernonemaomenosvaga-lumes.

(EraoNadaquequeriamedevorar.)Pensavanadordomundo,aquelesentimentovagoqueaparecianosulcodabocademinhaavó,no

olhar eventualmentemelancólico demeu pai, nas pequenas intrigas familiares que eu escutava semmuitoentender,quandopalavrasviravamfinospunhaisfingindoserbrincadeiras.

Seráqueemtodasasfamíliaseraassim?Era assim, ou muito pior, me contavam as amigas e confidentes, todas mais espertas do que eu:

“Gentegrandeémuitocomplicada.”Outra relatava rumores e vozes no quarto dos pais em algumas noites, que a enchiam demedo.

Outra ainda contou que os pais brigavam muito, havia gritos, tapas, choro reprimido, a mãe serefugiandonoquartinhodafilha.

(Enredoscomotentáculossempremeperseguiram.)

Omaisfascinantenacasaeraoporãodossegredos.Alisósepodiaentrarcomachavedaporta,umachavedeferrodesmesurada,semprependuradana

cozinhanumlugarqueeunãoalcançava.(Porquetãoalto,porquetãolonge,porquetãosedutoraeproibida?)Nãopassavadeum simplesporão,muitopequeno, tetobaixoobrigandoos adultos a se curvarem

umpouco,aoqualsechegavadescendotrêsgastosdegrausdepedra.Nãodeviaternadadeespecial.Mas,paramim,eraomaiordetodososmistérios.

Naquelapenumbracheirandoamofoemqueestavatudoeternizado,otempoeraumailusão:umavelhaespingardaqueserviraparacaçaratésuabalaarrebentarumcoraçãohumano.(Quemtinhamecontado? Alguém que sabia tão mais do que eu, ou só queria me assustar?) Uma cítara de cordaspartidas,ninguémmaistocavacítara,tãoantigoaquilo.Umajarradelouçarachada,quemlavoualiasmãos,ouprocuroudisfarçaropranto?

Asbotascambaiasseencostavamnaparede;juntoatachosfoscos,umamaladecourocomcadernosesquecidos;umberçodemadeiramaciça talhadoàmãopareciaaindaaguardarqueembalassemumacriançahojeadulta,ouvelha,oumorta?Bonecascegasoucalvas,umcavalodemadeira:crinasverdeseumgrandeolhoespantado.

(Quem tinha dormido naquele berço, escrito naqueles cadernos, quem tinha dado risadascavalgandoaquelebrinquedo?)

Apoiadonaparedeaofundo,refletindo-noscomoespectros,oespelhofendidodealtoabaixo;comocantodoolhoperceboummovimentoquecontinuabruxuleandonasuperfíciemanchada.Aspessoasque ali haviam se mirado, que tinham tocado aqueles objetos, escrito aquelas palavras, balançadoaqueleberço,continuavamenviandoseusrecadosaumameninacujasensibilidadeeraumaflorestadeantenasmovendo-seemtodasasdireções,tateandosobresedaegrãos—efogoegelo.

Etransformariatudoempalavras,frases,livroscomquepretenderiafixaraomenosumrastro,umapegada,umroçardeasadetudoissoquequeriasernarradoepassadoadianteparanãoacabar.

(Porissoeudigoparamimmesmaqueviverépossívelemorrerhádeteralgumsentido.Assiminventoaminhahistória.Assimtemdeser.)

Passaramenãopassaramosdias,aspessoas,assensações.Fechoosolhoseestãovivosnosespelhos,nascômodasemsótãosouquartosvazios,noslivros,nasmemórias.

Tambémascontradiçõesespreitamportrásdepálpebrasfrementes.Quem,como,onde,quando?Nãoparecehaverrespostas.Masnósinsistimoseminventaralgumas—eissoafinalnossalva.

Oporãonãoeraoúnicolugarespecialdanossacasa:oportaldouniverso,ondeagentepodiafazertodasasviagensesonhartodososdevaneios,eraabibliotecademeupai.

Ali,entreoaromadoscigarros(naquele tempose fumava),docourodaspoltronas,eocheirodoslivrosquecobriamasparedes,euentravacomonumnavio.Muitashoraspasseiabrigadanovãosobaescrivaninhaimaginandoqueaqueleeraomeucastelo.Eraminhacasinhadebrinquedos,eraumjeitodeocuparespaçonaqueleespaçotãoamado.

(Artesdotempo:quandoarevi,hápoucosanos,eramenordoqueestaemqueagoraescrevo.)

Naqueletemposemtempoaverdadepareciaestarnoslivros:alicalavamasrespostasemoravamossilêncios.

Quantomaisprocurei,maismeenredeinaramagemdasindagações:asrespostasnãovinham,averdadeeramiragem,abuscaeramelhorqueadescoberta,enuncasechegava.

(Vivereramesmosentiraquelafome.)

Quandoeuficavademaisinquietaeminhamãejánãosabiaoquefazer(eunemtinhatrançaslongasaserem cortadas por tesouras impacientes) — ou simplesmente quando queriam me agradar —,botavam-menabibliotecadepoisquemeupaifecharaseuexpedienteouerafimdesemana.Sentavam-menumadaquelaspoltronasgrandescomobarcos.Punhamemmeucolo(minhaspernasbalançavammuitoacimadoassoalho)algumvolumedaenciclopédiaqueaindaestácomigo,emanuseioparasentiroantigoprazer.

Ocheiroéomesmo:develhiceedeinfância,denascimentoemorte,depermanênciaerevelação.Cadapáginacomfigurasdecoresempalidecidas—bichos,pássaros,borboletas, cidadesemontanhas—,protegidaporumafolhadepapeldesedaamarelado.

Eu contemplava— e tocava— tudo como se fosse um tesouro. Sentia com as pontas dos dedoscautelososapenugemdospássaros,odesenhodaquelasborboletasroçavameurosto,pinturasegípciasde perfil ingênuo e olhar rasgado desfilavam no escritório, fotografias de máquinas e montanhas e,principalmente,palavraseseusespaçosdefantasiasemlimitesparaumameninatãopequena.

Naquelemesmo aposento um relógiomarcavaminutos com um tique-taque perturbador quandotudo ficava quieto à noite.Domeu quarto, do outro lado da parede, eu escutavameu pai, antes dedormir,dandocordanaengrenagem,emeadmirava:meupaicontrolavaotempo?

Eseelenãodessecorda,eseomaquinismoparasse—nadanuncairiaacabar?(Hoje esse relógio está numaprateleira demeu escritório,mas eununca lhe dou corda.Todos os

relógiosdeminhacasatêmdeficarcalados.)

Quando aprendi a ler, parei de atormentar os adultos para queme lessem infinitamente infinitashistórias.Acheiquenãohaviamaisnenhumafronteiraparaomeudesejo—quehojeseiimpossível—de encontrar a explicação da existência nossa.Nunca desaprendi a excitação quase amorosa de estarentrelivros;mesmoquenãohajapoltronasdecouronemaromadecigarro,etudoestejaàdisposiçãodeumdedomeusobreumatecladecomputador—páginasdepapelaindasãoaportaporondeentrocommaisprazerlevandominhabagagemdecuriosidade.

O tempo, criador de ilusões: os quemorreram são para nós sempre como eram— jovens, velhos,belos, feios, com suasmanias e jeitosde serquenos encantavamou irritavam tanto.Não crescemosmortos,nãoenvelhecem,nemsetransfiguram.

Enós,mesmoquandosepassarammuitosanos,nossurpreendemossentindo,àsvezesagindo,comoquando tínhamos seis anos: mas eu ainda sou aquela! Não é preciso ter uma alma juvenil na

maturidadeounavelhice,masumafaíscadealegria,umabrechaparaimaginação,vontadededançarsemmúsica.

Isso vale mais do que todos os recursos da estética, da medicina, da psicologia, das mais belasviagens,emesmodosmaistocantesafetos.

Tempodeagonia:quandoeueramuitopequena,eventualmentemeupaimedeixavaporunsdiasno sítio de amigos, a alguns quilômetros da cidade. Todos achavam interessante, divertido, ali haviapessoasboníssimasecriançasdaminhaidade.

Aliviava-seassimminhamãe,dedicadaaocuidadodomeuirmãozinhopequeno,cansadademinhasperguntas, carências inexplicadase incompreensíveisaflições.Eatormentava-meeu, aquemqualquerseparaçãodilacerava,eaquemsóimportavamashorasquetinhamdepassarparamelevaremdevoltaparacasa.

—Quantasnoitesaindatenhodedormir?Quantashorasfaltam?Foimeuprimeiro pequeno exílio em fragmentos, que até hojeme acordanomeio da noite, num

sonhoemquetudoaquiloserepete—edóicomodaprimeiravez.

Tempodasboasintençõescomquesepensavaeducarumacriança:aosonzeanos,porque,segundomeupai,nãotinhamconseguidomedisciplinarnaseveraescola,nememcasaeuaprendiaasprendasdomésticasnasquaisminhasprimaseamigasbrilhavam,eporserdemodogeralinquietaerebelde,mecolocaramnum internato ondemuitas filhas de amigos estavam. Era de bom-tom, disseram, era poramor,explicaram,láeuaprenderiatudooquemefaltava,protestaram.Era“paraomeubem”.Todasascoisasdolorosas,entediantes,oscastigos,asobrigações,pareciamserparaomeubem.

(Aalegrianãocontavamuitoquandosetratavadeeducarumacriança.)

O internato foi uma experiência cruel, certamente exagerada pelasminhas emoções: pois era umaótima escola, com gente boa, dezenas de meninas, estudo, música, passeios e pátios de muitasbrincadeiras.Paramimfoioabandonoearejeição,oinexplicávelcastigo,muitomaiordoquequalquerpequenodelitoqueeutivessecometido,comodiscutircomamãe,escrevercomumaletradescabelada,esqueceraslições,rirnaaula,nuncaarrumardireitoacama.

Depoisdealgunsmeses,porquenãomeadapteieporquefinalmenteadoeci,meupaimebuscoueme levoudevoltapara casa.Aspoucashorasdaviagemde retornonunca se apagaram:voltamosdetrem. O cheiro da fumaça, o matraquear das rodas nos trilhos, o balanço do vagão enquanto euadormeciacomacabeçanocolodemeupaiestãoentreasexperiênciasmaisconfortadorasquejátive.Ficouemmim,marcaindelével,umarecorrentefobiadeseparaçãoeafastamento:qualquerviagemdemaisdiasatéhojeéfontedeafliçõesirracionais,quedepoisseacalmam.Porémaindaagoranemamaisespetacularexperiênciasecompara,paraameninadointernato,àsensaçãodechegar,abriraporta,eestaremcasa.

(O tempo medido em noites a dormir: quantas noites preciso dormir para virem as férias? Oaniversário?ONatal?Paraeupodervoltarparacasa?)

Velhas fotos:minhamãe fezovestidodeseda,aavóagoladerenda,nocabelobotarama fitadecetim,tudoazul-claro.Sapatopretodefivela,novinho.

(Levaramjuntoumlivrodefiguras,commedodequeeunãoficassequietatemposuficiente.)Sentaram-mediantedeumapaisagemdementirinha,papelãopintadocomárvores,gramado,flores.Nadaerareal—portantoeratudopossível.Examinoessacriançaquesorriparamimcomgrandesolhosconfiantes.Seiqueelaestáescrevendo

comigoestaspáginas,porissoaquerocompreender.Masquandopensoqueaalcancei,elaviraorostopara o outro lado e foge sem ter me dado todas as respostas. Está engaiolada numa fotografia,ignorandoofluxodavida,comseusolhosqueaindanãotinhamvistonadadestemundo.

Somos,elaeeu,amesmaalmaemduas.

Eseotempoforapenasumainvençãoparacoordenarnossasatividades?Poisàsvezeseumesintoaindatãoeu-mesma-de-sempre,emqualquermomentodavidasendoapenaseu,sempensarmuitoemquem seria ela. A que por alguns momentos está plena, até o rio que corre levar tudo de roldão,atrapalhandotodasascertezas.

Omaréonaufrágiodotempo:asmesmasondas,osmesmospenhascos,asmesmasareias,sempreesempre.

Aquilomepareciaincrivelmenteapaziguadornassemanasdeverãonapraia.—Tudoigualhácemanos?—Não,milhõesdeanos.Milhões de anos, milhões de estrelas.Meu coração, perturbado pela dor de começar a saber das

coisasquepassavam,setranquilizavaumpoucodiantedessenúmero.Nemtudoiaacabarlogoali.Emalgumasdimensõespodiasersempreagora?Agentepodenãoser

tãoimportante,nemnossasdores,edesejos,ealegrias,nemnossamorte:aprendialgumascoisassobreela naqueles verões, pois no alto de um morro, falésia sobre as ondas, havia restos de um velhocemitérioabandonado,comnomesquaseapagadospelaerosãonassepulturastortas.

—Olha essa aí,morreu coma sua idade—diziaminha avó examinandouma lápide arruinada etirando as ervas daninhas que cobriam a inscrição, ameaçando deixar aquela menina ainda maissilenciosa.

Ondeestariaagoraaquelacriançaenterradaporcimadomar,suspensanovento?

A insegurança perturbadora se afirmava nas visitas ao cemitério na cidade, onde estava enterradoumirmãozinhonascidoemortoantesdeeuviraouniversointeiro.

Perto da sepultura dele, ummausoléu de granito rosa: na entrada sentava-se um anjo de bronze,enormeesolene—minhaavóexplicavaqueeraoguardiãodaquelacasadasalmas.

—Oqueéqueelefaz?—Apontaocaminhodocéuparaaspessoasboas.—Easruins?—Essasestãoperdidas.Eu fazia o cálculo das minhas desobediências, as mentiras, as raivas secretas: o anjo podia ser

benfazejoouperquiridordemais.Oanjodaguarda seriaaquelemesmo?Oprotetor seriaumtipodeespião?

Minhaavófalavacomnaturalidadedosmoradoresdocemitério,cujosnomesestavamnas lápides,algunsvelhosconhecidosdela.Dava indicaçõesdesuavida,doença,morte:aquelecaíranumpoço,aoutraseenforcara,masamaioriapareciatermorridoamortequelheseradevidaenatural.

Euouviatudoquasesempoderrespirar.Depois chegávamos junto da sepultura branca ondeme esperava um pequeno anjo demármore,

rosto de menina e vestidinho, embora o bebê morto fosse menino. (Isso ninguém conseguia meexplicar,mas,paratersossego,alguémfinalmentedissequetodososanjosusavamvestido.)Diziamqueeleagoraestavanocéu,ànoiteeraumaestrela,apontavamparamim,estávendo?Eleestáalicuidandodevocê.

Masaquilonãomeconfortava:nofimdostempos—eninguémsabiaexplicarquandoseriaisso—,comousemumirmãodesconhecido,esperavapormimumpoçonegroesemfundo.

AMorte visitou a escola. Chegou com seu nevoeiro escuro, num gesto abatendo uma de nós nobanheirofeminino.

Uma dasmeninasmaiores tentou sematar ali, cortando os pulsos. Todo um lado do pátio ficouinterditado,meninas usando banheiro dosmeninos com professores vigiando, risadinhas e confusãocontraopanodefundodaqueleteatroinusitado.

Lembroatéhojeobelonomedessamoça,dequemforaissoguardoumalembrançapalidíssima.Elanãomorreu.Voltouàescolaporpoucotempo,vagavasozinhapelopátio,brancacomoumfantasma—depoisdesapareceu.

—Masporquequeriasematar?—Umdosrapazesfezmalaela.—Comofezmal?Aoutrameolhouincrédula.Tivevergonhadeperguntarmais:aliestavaoutravezoestranho.Em

casaindagueidamãeoqueeraumrapazfazermalaumamoça.Elafechouolivroqueestavalendo,odedoindicadormarcandoapágina.Pareceumeioimpaciente,

elaeraimpaciente.—Quemdisseisso?

—Falaramnaescola.—Fazermaléamoçaficargrávidasemestarcasada.Amãepareceunãogostardorumodaquelaconversa.Fechouacara,voltouaabrirolivro,ajeitou-se

paracontinuarlendo.Meutempotinhaacabado,assuntoerrado.Euinsistia:—Masterfilhoéruim?—Quandoagentenãoécasadaéhorrível,agentecainabocadopovo.Aquilo,eusabia,eraruimdemais.

Oquemaismeintrigounãofoiaquele“mal”nãobemexplicado,quenaquelaépocaaindanãomeinteressava muito: foi o fascínio da morte longamente preparada. Obter a lâmina, andar com elaescondida, tomar a decisão: cortar a pele primeiro, depois a carne, aquele sangue, tinham falado emmuitosanguenobanheirodaescola.

O fio sutil da lâmina— comentaramque a pobre havia escondido a gilete debaixo do travesseiroantesdelevarparaaescola—ficaraàesperaemnoitesdeafliçãodespetalandosuaincerteza:bemmequero,malmequero.

AMortevigiandodebaixodotravesseiro,certadasuapresa,eamocinhadeolhosabertosnoescuronamorandoasoluçãoparaoseumal.Ela, jáadolescente,comuma liberdadequeeunemimaginava,tinhaescolhidoosofrimento?

Aliberdadeeraumsolcomumfuronegronomeio,adestruiçãopossível.

(Doresdecrescimentofuramosossosdaalma.)

O lapso entre as falas dos adultos quando, eu sabia ou sentia, algo ali estava desconsertado:pergunta, e fração de segundo para a resposta, quem sabe pigarro, involuntária gagueira. O que seescondia,àespreita,naquelamínimafresta?

O tempoentreogritoeo soluço, entreo tapaeochoro,o tempoentreestenderamãoe sentiratexturadopêssegomornoapanhadonogalho,ouosabordauvanocachocolhidonahora,noparreiralbaixinho.E saber que eraproibido, as transgressõesda infância, começo, primeiras ousadias, deumainocênciaquasepatéticavistaagora.

Oenigma,osenigmas,sóraramenteaconsciência,nãomuitoclara,dequeomesmotempoquemepreparava delícias ou alegrias estava levando tudo, todos, para o grande silêncio damorte de que sefalavapouco,comdoroumedonavozenoolhar.

Otempodeaparentementenãofazernada:aindahojeéquandotudosefazemmim.Esseprivilégioque a esta altura da vida de novo possome conceder,mas na infância—quando o universo adulto

predominava—eralogoabaladopelavozchamandoparaalgumaobrigação,comootemadaescola.Eeusóqueriaumtemposemmedidasparaficarsuspensanovaraldosdevaneios:quefiguraestava

se formando naquela nuvem, que unicórnio, que princesas habitavam os morros azuis, que dedomágicodoventofaziaumtraçadonascopasdasárvoresnumalinhacaprichosa,sóumarcosingulardefolhagemsemovendo?

Depois da infância de correrias e contemplação, outro território, outro país, outro eu: o corpoesticando, a almamais inquieta, os deveres mais enjoados, frestas fininhas de liberdade desajeitadapiscandoolhossedutores,agentesemsabernemoquefazer.Umaprimeiraideiadequeavidanãoésó brincadeira ou miragem mas mudanças, decisões, desafios, muros altos, portas fechadas, jardinsmágicos,elágrimasnoescurosemmotivoalgum.

Algonalembrançasemove,emerge,estávivo:aquelamulherqueapareciaemnossacasa.Nãotinhamaridonãotinhafilhosnãotinhaseiosnãotinhaquadris.Vestiaumassaiaslisasecamisasmasculinascomlistrasouxadrezmiúdo.Nemseunomeeusei,maslembroisto:entroinesperadamentenasalaeelaestáalisozinha—abraçadaasimesma,embala-sedeleve,dança,ecantarola:“Hastacuando,hastacuando.”

Nãomepercebe.Eusaiodepressanapontadospés.Nãoseiseachoengraçadoousemeucoraçãoaindainfantiléferidodeumadorquenãoconsigoexplicar.

Poralgumtemponãosomosnósmesmos,nãosomosnada,apenastransitamos,fluímos,osadultosnosolhamcomcertaimpaciência,bomhumor(setivermossorte)oucompaixão:queidadeessa,denãosernemcriançanemjovem,desimplesmentenãoser?

Masparaagente,esseindefinidoseréalgomisterioso,sedutor,edolorido.

O rio dos encontros e das despedidas. Dizer adeus a simesmo em cada fase. De repente, somosjovens adultos. Fimparao colodemãe, fimpara asbrincadeirasnopátionasnoitesquentes, fimdacrençaemcegonhaePapaiNoel.Adeusàsfadaseelfosnasflorestassobreosmorrosazuis.

(Delesnuncadesacrediteiinteiramente:aindaossintoentreasárvoresdobosqueondeconstruímosumacasinhadetelhadospontiagudoscomodelivrodehistórias.)

2 | Maréalta

Antesdesereumesma(ouissoquepensoser),eujogavaesconde-escondecommeusfantasmas—osterríveiseosgentis.

Osdiasmeviravamdoavessoedesviravam,ashorasmetrançavamparamedesarrumar.Quantomaismebusqueinosespelhossecretos,maismeperdidemim.

Quandochegouotempodaverdade,entendiquesou—numfundoporãodashoras—reflexodereflexodereflexo,nadamais.(Equedeveserassim.)

Estamos agudamente em trânsito: a infância acaboumas a gente ainda não sabe. Amaior parte dascoisassabemosemretrospectiva.

Semque a gente entenda direito, já nos acenamos dias de ter uma vida própria, segurar o leme,decidir: o curso, a profissão, o amor (esse se decide?), a casa, os filhos, o futuro, ah! o futuro quepertenceàvelhafeiticeiracomsuasagulhasloucas.Tudooquedesejamoseaomesmotempotememos,comovaiser,oquetereidefazer?

Os compromissos, as dúvidas, o cansaço.A alegria algumas vezes, o inesperado êxtase, a tamanhaesperança. Decidir fechar os olhos, dormir (mas quantos fantasmas, quantas memórias, quantaansiedade).

Asdesordenadas falasdos adultos: “Você aindanão é gente grande, comporte-se; você já é quaseadulta,leveascoisasmaisasério.Curtaestafasedavida,quandoforadultavocêvaiveroqueébom!”

Vamos nos alegrar, vamos nos assustar, nos encolher, nos fechar no quarto, entrar na internet eseguiressesmilchamadosemquenãoéprecisomostraridentidadeerostoverdadeiro?

Amúsicade fundodesse complicado espetáculo interior é aindaomurmurejardaquelas águas.Agentenãoopercebenobenfazejo cotidiano.Mas está ali, enos acordanomeiodanoite, nos esperanaquelaesquina,ounostocaoombronomomentodaeuforiaedoprazer, lembrando:tudo,umdia,vaiacabar.

Se a infância é o pátio dos sustos e dos devaneios, a juventude é o horizonte provocador que dátontura, arrepio, fascinação. Mais medo. Época dos primeiros questionamentos e daquela docearrogância(outrafacedainsegurança)comquenosfingimosdeonipotentes.

Nointerstício,abreveadolescência,deconfusosfiossaindodemuitoscarretéisemisturandozonasde dor ou de alegria, num bordado brilhante entremeado de tons escuros, e angústias que para osoutrosparecemsemsentido,masparanóssãooaugedodrama.

Rebeldias saudáveis, rebeldias tolas, rebeldias inúteis, sinais de que existimos: somos pessoas,queremosnosentender,nosexpandir,queremoschegaraoutros lugares:que trilhasdeangústia semexplicação,aquenemnomesconseguimosdar.Massemprequeremosmais.

(Aquieali,labaredasdeeuforiaqueninguémdecifra:nemnós.)

As armadilhas, as fatalidades, o riso, o afeto, o punhal.As inquietantes descobertas que ninguémexplicadireito—melhornem falar.A criançapensativa começa apreferir a balbúrdia, o adolescentefinge que olhando para os lados ou tocando música bem alto não se escutarão as dúvidas e asansiedades. Híbrido entre criança e adulto jovem, suas antenas supersensíveis se expandem eencolhem,assustadas,muitasvezesfalhandonasensação,oquepareceamorosoéduro,oqueparece

frio é cálido, mas ele nem sempre tem como saber, e a opinião dos adultos mais machuca do queilumina.

Nem mesmo um bom pai, nem uma boa mãe (significando serem firmes e ternos, amigos masorientadores, compreensivos mas não omissos) podem fazer grande coisa, a não ser, nessa fase tãosingular,oferecerumacerteza:nahoradifícilhaveráumbraço,umabraço,umombro—umaescutaamorosa.

Nessa fase, antes de desabrochar a plena juventude, não temos vontade de escutar conselhos ouprevisões: tudo nos aborrece (porque nos assusta?). O tempo, uma abstração, resumido à hora doencontro,do jogo,daprova,domedo.Estaremtrânsitoéanossaessência,ninguémtemtempoparapensarnotempo.

Tempocontraditório,nósambíguos:olhamosparaumlado,eoutro,imaginandotambémoquevemaonossoencalço.Receando(oudesejando)oquevempelafrente,feitocriançaslargadasnumaflorestaescura:aquelaluzinhadistanteéanossacasa,ouacasadabruxamá?

Orasomosreis,oranossentimosréus.Atribonosacolhe,nosconforta,quebraumpoucoasolidão,mastambémpodenosdescaracterizar,nosengolir.Agentenuncasabedireitooquefazer,entãocanta,então dança, então chora, então ama, então se desespera, então ri com o mesmo encantador jeitoinfantildeoutrodia.

Aindatemosailusãodequenãoseráprecisopagartodosospreços.

Inventeiumapersonagemquereproduzoaqui:euabatizoJuventude.Ela se diverte com o atrás da porta, o dentro da fenda, o embaixo do tapete— tudo o que me

assombraeatrai.Pintadevermelhoasunhasdospéscomoeujamaisousariafazer,esenta-sedepernasporcimadobraçodapoltrona—oqueeusóconsigofazerempensamento.

Penduradanasualiberdadecomonumbalãocolorido,elasaipelanoiteerialto,risoltanostrajetosdoventoenquantoeuquerodormir(paranãopensar).

Elame assusta,masme impede demorrer esmagada no cotidiano dosmeus deveres e dosmeusamores.

Ela me sequestra para fora deste concreto deste trivial deste considerado obrigatório e normal, eassimmedeixaser,tambémeuadultae jáamadurecida,poralgunsmomentosumafeiticeira,mulherproibida.

Não sei o que fazer com essa em mim que quer se livrar da mesmice: descobrir é um de meusmotivos.Me instigame inquieta.Elameensinou tambéma rir:maisdemimmesmaquedosoutros,nãoumrisosarcásticomasumpoucocomplacente,dequemdiz:

—Bom,afinalessasoueu.

Ou:—Paciência,essaéaqueconsigoser.

“A juventude é amelhor fase da vida”, dizem os que endeusam essa fase. “A infância é que é aépocamaisfeliz”,protestamosquenãoselivramdessailusão.

Juventude são tambémasprimeirasdecisões reais,masainda sobpressãodosadultosoudanossaprópria ansiedade; a pressão forte dos amigos, dos que cuidam de nós ou nos comandam, e (mas agentenãosabedisso)danossacultura.

As primeiras responsabilidades, os primeiros medos concretos, somos atropelados pela vida.Cobranças contraditórias começam: que a gente se divirta, curta essa “melhor fase da vida”, mastambém que seja responsável, estude, escolha, trabalhe, mostre serviço, comece a se interessar pelascoisas sérias. Ou: “Caia de cabeça nos prazeres, não se afogue em compromissos, essa é a idade deaproveitar.”

Enós,paraondenosviramosnesseburburinhodedesordenadasordens?Dessedilaceramentoaospoucosemergimoscomodeumcasulo:euforiaedepressão,possibilidadee

receio, o rio agora é uma corredeira de espumas entre pedras, depressa, depressa, a vida sorvida emgrandesgolesquequasenossufocam.

“A adolescência é como um cálice de espumante borbulhando”, nos dizem. “É uma faseinesquecível,penaquelogopassa.”

Tudoissonosdizem.Esperamquesejamosfelizesnessafase,comoselhesdevêssemosisso.

Adolescênciaéaquele tumultonomeiodo rio: estamosnumbarco frágil,numapequena jangada,detodoladochamamvozesesopramventos,qualamargemboa,qualoacenoperverso,qualodelíriopermitido,comoevitarqueagenteváaofundo—queéesquecimentooutrégua?

Um adolescente conhecido de meus filhos se matou. Faz muitos anos, porém o fato retorna emnossas conversas ou silêncios quando se aborda o tema suicídio, sobretudo o inacreditável mas realsuicídiodejovens,quasecrianças.

Outromeninodaturmamedisseaquelavezemvozbaixa,olhoarregalado:—Ontemaindaagente jogoubola juntonaescola,eelenãodissenada,agentenãonotounada.

Seráqueeudeviaterpercebido,perguntado?Quemsabepodiaterajudado?(Haviamedoeafliçãonoolhardaquelemenino.)Nãocabianinguémmaisnesseburaconegrodaalmadoamigomorto,emborananossailusãouma

palavraboa,umcolo,umabraço,umpequenoadiamentotivessempodidoajudar.Quemsemataespalhaaoseuredorumazonadeculpainsensata:esseficasendoseutriste legado,

suacruelvingançainconsciente.

Nãonotamos,nãoimpedimos,nadafizemos,nãoporquenãooamássemos,nãonosimportássemos,masporqueagenteéassim.Ouporquenadahaviaaserfeito,serdito,apenasseraceitocomumriodedúvidaseculpapelorestodosdias.

Um de meus filhos, bem jovenzinho, teve um sintoma que podia ser uma doença fatal (mas foiapenas algo muito simples). Nos dias entre esse sintoma e a constatação da sua banalidade, minhaangústiafoiinenarrável.

Obommédicoeamigoaquemrecorrimeolhoucomafetoecertacompaixãoedisse:— Viver é estar num campo de batalha, as metralhadoras disparando o tempo todo. Atingem

desconhecidos,oualguémbem longe,maispróximo,ounonosso lado.Umdiaos atingidos seremosnós.

Nahoramepareceuinutilmentecruel;depoispercebiqueeraapenasrealista.Maseunãoqueriaarealidade.Eafinalarealidadeaquelavezfoisimplesmentebenigna.

Finalmenteo rio se alargana idade adulta, quando se começa apensar: e agora?Onde?Quando,quanto,oquê?

Ejátemosumpassado.Comoamadurecer semperder a graça, sem ficar embotado, sem sucumbir ao tédioda rotina com

quenosenrolamos feitoumcobertorqueabafaas inquietações, asdoreseosmaravilhamentos?Eaonossoencalçocorreoespectrotraiçoeirodeacabarmossensatosdemais:temerosos,quandoparaviveréprecisoumadosedeaudáciaefervor.

Emquemedida?Ninguémtemaresposta.

A gente se torna (ou acha que se torna) um poucomais senhor de si, de seus limites, e até fazalgumas escolhas acertadas. Esse é um dos dons da maturidade. Com sorte e sabedoria, mais tardepoderemosdescobrirquetambémfazpartedoenvelhecer.

O temponãoémais apenaso futuro,quandovoucrescer,quandovou ser independente,quandovoutransar,casar,terfilhos,viajar,quando?Agoraexisteumpassado:quandoeueracriança,quandofiz vestibular, quando transei, quandome casei, quando comecei a trabalhar... enosdamos contadequeestamosnoaugedajuventude,amaturidadelogoali,etantoscompromissos,tantodesejo,játantafrustração.

Somosadultos.Euemcriançasemprequisseradulta:alininguémmaiscomandariaaminhavida.Nadadedeveres,

críticas,cobrançasepressões.(Ailusãosorriacomsuamáscaradedocefalsidade.)

Vamoscumprindotarefas,conquistandoalgumascoisaseperdendooutras,vamoslargandopedaçosaquieali—algunsjamaisserecuperam.Incomodasentirqueaindanãocrescemosdireito:dentro,aquidentro, neste reino nosso onde receamos olhar, talvez se descubra a frustração das decisões nãotomadas(masqueerampossíveis),dasalegriasnegadas(queseriaminocentes),dasasascortadas(bemqueagentequeriaovoo).

Empurramosmaisparaofundoaincertezaquantoaoqueestamosfazendo,ficaaí,quieta,nãomeestorva, eu tenho de pegar o ônibus, chegar na hora, bater o ponto, cumprir a agenda, satisfazer opatrão, o marido, a mulher, o filho, a sociedade, é preciso é preciso é preciso. Pois agora somosresponsáveis.

Otempoadquireumanovadimensãoquandoagentetemfilhos.Nadasecomparaaoassombrodeparirumserhumano—umanovapessoa existindo.Temnome, temvida, tem futuro, tem todoumtempo impenetrável à frente.A responsabilidade, os cuidados; a impotênciadiante do seudestino; oamor desmesurado, que tonteia, delicado, intenso, feroz na defesa, mágico nas intuições. Criançamorninhavindoparaacamademadrugada,nunca foi tãodoceperdero sono;adolescentemaisaltoqueagentemudandodevoz;meninalindíssimasaindocomoprimeironamorado;eofuturonoqualnãoestaremossempreaínailusãodequeestamosprotegendo.

Quantomaisdivididanessescuidados,maisinteiraficaanossavida.Eotempodedespedir,dedeixarqueseváparaviverseutempo,esse filho,essa filha:essadádiva

queotemponãofazempalidecermasperduraquandoquasetodoorestoseesvai.

Porque tudo se vai e se transforma, eventualmente nos damos conta da importância máxima dascoisasmínimas.Écomoescutar,numsegundodevigílianomeiodosono,arespiraçãodomar.

Nofluxodavida,ahoraperdida:“perdiahora”dotrem,docompromisso,dopagamento,ahoradeser feliz. Esse é o tempo implacável, o sem retorno. Esquecemos a hora possível da esperança e dapromessa.

Eahoradopranto?E o tempo que nem foi perdidomas posto fora: a hora de jogar bola com omenino, de ouvir as

confidências da filha, de conhecer os amigos deles, de deixar que nos mostrem suas novidades nocomputador,deelogiar,dedizersim,dedizernão—deestarali.

Aospoucospesaemnossocorpo(enaalmanãomenos)arealidadedequeorioqueempurraavidanão émiragem.Manchas, rugas, cansaço, impaciência, e sempre espiando atrás das portas, omedo:estouforadospadrões,foradoesquadro,devoimpedirisso,precisomudar?Ograndeengododanossaculturanosconvoca:aendeusadajuventudetemdeseranossameta.

Correrparaafrente,voltadosparatrás.

Ou nascemos assim, querendo permanência e achando, infantilmente, que criança não sofre,adolescente não adoece, só na adultez e na maturidade, pior ainda na velhice, acontecem coisasnegativas. Esquecemos a solidão, a falta de afeto, a sensação de abandono, omedo do escuro ou dafrieza dos adultos, tudo o que nos atormentou nesse frágil paraíso chamado infância, ainda que elatenhasidoboa.

Para sobreviver, nada de pensar no movimento dos ponteiros, por sorte mal os percebemos nosrelógiosdepulso,enãoolhamososgrandesrelógiosdasparedesdosshoppings,dosmetrôs,davida.Agenteolhaparaoutrolado,assobiafeitomeninonoescuro,fazdietas,plásticas,aplicações, legítimasepositivas ou desesperadas e deformantes, e toca a vida sem pensar emmuita coisa além da próximafesta,apróximaviagem,opróximoencontro,apróximaaquisição.

Apróximadívida,apróximacobrança,opróximoamoroutraição.Pensamos, atormentados: como está minha pele, meu cabelo, barriga ou não, flacidez ou não,

inadmissívelviverseviversignificapassar.Agoraagentequerestancar,querseprendernumamolduraimpossível,seprecisoqueremospararderespirar.

Pois no conceito atual, o tempo é o vampiro que suga força, beleza, potência, e nos deixará comoumacascadeuvachupada,cuspida,apodrecendonoasfalto.

Depois, aospoucos, semperceber,deixamosdequestionar: a acomodação, adversáriadavida,nosprotege, mas também nos anestesia. Viver agora é cumprir deveres, correr atrás de horários, tentarcrescer, tentar acertar, tentar esquecer o incômodo quebra-cabeça que somos e precisaríamos a todahorarecompor.

Tempopararefletirparecefaltarsempre.Tempoparaviverfaltamuitasvezes.— Eu não tenho tido nem o tempo de uma risada—me disse certa vez um jardineiro, e nunca

esqueci.Nãoéfácilbotaracabeçaparaforadamontanhadecompromissosimportantesoufúteis,analisar-

se, descobrir-se e tomar decisões — ainda que sejam para melhorar a vida, a nossa e a dos queconvivemconosco.A ilusãopodesermaisconfortável,masaverdadeémaissimples,sónãosabemosqueverdadeéessa.Começamosarejeitarcomofutilidadeouromantismoaquelaprementeindagaçãodaadolescência:oquequerodavida?Procuroporissooufaçooqueexigemdemim?

Ahistória de quem foi invenção ou émemória não importa. Era umpeixe-voador.Quis ser umagaivota:afadadavidalhedariaessepresente,asaseplumasemlugardenadadeiraseescamas...maseleescolheudenovoafundar.Comotempoperdeuessebreveenganosovoodeumpeixesingular.

Eraagoraumpeixinhocomum.Morreudepequenez,detédio,enforcou-secomsuaprópriaescolha,numriocoagulado.

Mas:senãoformosdemasiadofúteisnemnosavaliarmosapenaspelobolsoepelofísico,podehavermuitaenergiaboanamaturidade.Algunstrabalhoscumpridos,aindahorizontespelafrente,sensaçãodequeafinalpodemosrepensarmuitacoisa.

Digo e repito sempre que quando se diz “pare um pouco pra pensar”, a reação émais oumenos“pararprapensar?nempensar!seeuparoprapensar,desmonto”.

Já comentei isso, e aqui, como outras coisas mais, retomo: porque me agrada, porque aqui meimporta.

Entãoagentenãopensa:segueadiante,busca,luta,desperdiçatempoealegria,asdoressãosurdaseinsidiosas,perdemosoprumo,orumo,avidasevaieagora,eagora?

Umadistraçãoqualquer,eamãoqueseestendechegatarde,opulsojáforacortado;porumfio,porumminuto, o avião havia partido, o telefone estava fora do gancho. Foi egoísmo nosso, futilidade,aridez?Descartamosoquenãofazpartedonossomundo.Porquesomosperversos?

Porquesomoshumanos.(Pensardói.)

Alguémdisse:—Não inventem essa de que amadurecer é bom. Eu tenho ódio do tempo passando, queria ser

sempreadolescente.—Comespinhasetudo?—alguémprovocou.— Bom, as espinhas não. Osmedos não. As primeiras menstruações doloridas, não. Omedo de

transaredarerrado,não.Concluímosquetodaaquelaconversaerabobagem.Valiamesmoeraviverecurtirasnovidadesque

de qualquer jeito a vida traz, mesmo à nossa revelia. Pois apesar das possíveis — e necessárias —escolhas,afinalnãosomososúnicossenhores.

Umdiaescreviquecomasperdassóháumjeito:perdê-las.Hojedigoquecomotemposóháumjeito:vivê-lo.Paraquenãofiquerosnandoemnossoscalcanhares.

Otemporastejanotelhadodepoisdesefazeremfilhosedívidas,easdúvidasbrotaremnasfrestas.

Otempotraçabordadosnorostoemanchasnamão,masagentenãomuda:aindachovenoescuroeumpássarocomeçaacantar.Umamigomorreantesdosquarenta,enossamãe,comquasecem,nemestánemseausenta.

Comotudoomais,otemponãotemexplicação:corróioutransfigura,conformecadaumescolhe,sofreouinventa.

Escondido atrás da porta, atrás do mais trivial, algo vai devorando uma existência que nuncaaprendemosaadministrar.

(Devoescrever:vaitransformando,poiseuacreditonisso.)Possivelmentenemaqueríamosadministrar,porqueissosignificariasairdaalienaçãoprotetorapara

o susto das decisões. Enfrentar obstáculos e exercer o tão desejado— e temido— poder sobre nósmesmos,edesafiaracorrenteza.

Mas tudo o que conseguimos é, commuito jeito, espiar o baú dasmemórias onde tanta coisa sepreserva.Na juventudenempensamosnele.Depoisnosdamoscontadequeerguera tampaeespiarpodeserpuraalegria.

Na linhagemhumana, a vida vai fechando elos, aqui e ali, clipe clipe, e algum reaparece, amaiorpartedasvezesnemsabemos;ojeitodevirarorosto,omododerir,degesticular,oformatodamão,aansiedadeouenergia,adorinútil,atendênciaparaosfracassoseabuscaderealização.

Abruxa temnasmãosonovelode fios tramandoalmae imagem,ehistória:maisos trabalhoseador,afantasia,aobstinadaprocura,algumasorte,muitaesperançanabagagem.Caminhõesdefalhasededesacertos,semprearenovação,difícil.

Dissaboresfazemparte.(Maiordeviaseracelebraçãodavida.)

Palavras,comoemoções,perfumes,barulhodechuvaevento,ealgumasvozes,tambémpreservamotempo.

Magnólia: pétalas como cera, translúcidas, perfume entrando pelo quarto nas tardes de invernoquando fazia sol. Sempre: “Vou estar aqui sempre. Vou te amar sempre. Penso em você sempre.”Nunca:“Nuncavouteesquecer,nuncavoutedeixar,nuncavoutetrair.”

Masooutrojáestáolhandoparaolado.

Oafetopodesermaiordoqueoesquecimento.Lembrodeminhamãe uns passos enérgicos chegando, a vozme chamandono jardim, na sala as

suasrosascomnomessecretoseumperfumeigualaodela.Legou-meoamoràvida,ealgodoperfil.Não a sua beleza: essa ficou nos retratos, muitos dos quais ela mesma rasgou quando a noite daenfermidade a consumia.Morreu numa véspera deNatal, concedendo a simesma e a nós que delacuidávamosoúltimopresente.

Depoisdeumadespedidasossegadacomoconvinhaasuadiscriçãoeaseusnoventaanos,senti-meatropeladaporumtrator.Poisnessashorastodasasvãsfilosofiassecalam,eclamamosvelhosconflitos:asocasiõesemquenãoavisitei,emquenãotivepaciência,emquenãofuiafilhaquepodiatersido,emboratenhafeitoomelhorquepodia.(Diantedecertasdoenças,agentepodequasenada.)

Mas o autorretrato é inevitável, como a autopiedade e um tom meio patético: nunca mais sereipensadacomofilha.

(Inesperadamente,nadensaflorestacotidiana,essasensaçãodefelicidade:orisoqueexplode,aalmaquedança,ocorpoquesedistende.

Porquenãoésempre?Porquesãoosanosdeamadurecer.)

Avolumam-seascomplicaçõeshumanas:laçosamorososcomoalgasnofundodaságuasquepodemenlaçarouenredar,algemaroufazerdançar.

Alguémmedisse:— Não quero amar, não quero me casar, não quero ter família, não quero ter laços fortes ou

profundos:assimnuncavouperdernadaimportanteenãovousofrer.Nãosaberseriamelhordoquesaber?Dormirseriamelhordoqueviver?Nãoternadaseriamelhor

doque tantas vezesperder?Essas águasondepescamosdádivas e jogamosdespedidasnosdesafiarãoatéoúltimoinstantedelucidez.

Enós tentandoaalegria,pois sóna sombranãopodemosandar.Sãoválidasessasmáscaras?Nemtodas são fingimento: algumas nos obrigam a fitar os espelhos por entre as fendas dos olhos, e nosajudamadescobrirquem,por trásdelas—ou semelas—, aindapodemos ser.Nemsempreagentequersaber.

Mascomsortepodemosentenderqueotemponãonosaniquila:elenosmovemesmoquandonosderrubaepassaporcimadenóscomsuasgrandespatas.

A bruxa dos relógios lança teias entre as pessoas, que depois desfaz: o tempo dos casais queacumulamrancoresemágoaseaprendemaseodiar;otempodoscasaisqueelaboramumamorternoerespeitoso — aqueles que de dois extremos de uma sala se entendem só pelo olhar; o tempo quetransforma filhos pequenos em adultos com seus destinos, mesmo assim ligados a nós por afetos ecuidados;ouqueseafastam,fioscruelmentecortados—edeixamosdeexistirparaeles.

Agentenempercebiaoqueestavaacontecendo,oupoucopôdefazer.

Vocêescolheoquepensaseromelhor,aúnicasaídapossível,eaindaestáaturdidoquandoobarcosechocacompedrasdofundodorio.Tudodóicomoumsoconanuca.

Mais tarde você toma outra decisão, quer finalmente atracar num porto seguro. O porto seguroexplode,vocêvaiaofundodessaságuas—emaisumavezsobrevive.

Sofremoscomalgunsenganosconsagrados,como:“Otrabalhoenobrece.”Otrabalhonãoenobrece,pode ajudar a dar sentido à vida, a sustentar uma existência digna, ou pode embrutecer.O que nosenobrecesãopensamentoseatosnobres,oqueédifícil.

Ou: “A dor melhora as pessoas.” Não creio nisso também. O sofrimento pode, ao contrário,desestabilizar,criarmágoaserancores,ouumescudodefrieza.Oquenostornamelhoressãoosbonsafetos.

Eacrescentem-setendênciaspsíquicas inatas,paraobemouparaomal,paraagentilezaouparaagrosseria.

Nadaésimples.

Cruéis convenções nos convocam: estar em forma, ser competente, ser produtivo,mostrar serviço,prover,pagar,eaindatertempoparaternura,cuidados,amor.Ocursodaexistênciacomeçaaserparamuitos uma ameaça real.A sociedade é umamãe terrível, a vida um corredor estreito, o tempo umperseguidor implacável: belos e competentes, ou belos ou competentes, atordoados entre deveres efrestasestreitasdemaisdeliberdadeousonho.

Nósconstruímosisso.Sónãoprevíamosascorredeiras,asgargantas,osredemoinhos,anoite lánofundodessaságuas.É

quando toda a competência, a eficiência, o poder, se encolhem e ficamos nus, e sós, na nossa frágilmaturidade,soboimpériodasperdasquecomeçamaseapresentarsemcerimônia.

Tempodeperder:asdespedidassôfregas,ouapartidasemotempodeumadeus;aalegriaroubada,oamorestilhaçado,orumoperdido,oleitodemorrer,oquartodeacordarsozinha,ondeestãoosbelosmomentos,ondeforampararosprojetos,ondedevomesituaragora,nestetemposemtempo?

Osanosde chumbo.O luto,os lutos,de acordar cadadiapensando:não sei como lidar com isso.Maslevantardacamaelidarcomtudooqueerapreciso,tentandoabafarorefrãoincansável,nãopodeser,nãopodeser.

Avançarporquenãohaviaoutro jeito, aspessoasquemeamparavam,quemeamavam, incluindomeusfilhos,nãomereciamqueeudesistisse.Alémdomais,nãoreagirseriahomenagearavelhabruxaMorte,edeclararqueelatinhavencido.

O tempo faz florescer paixões que fenecem logo adiante; ou transfigura um amor intenso nagenerosaárvoredeumalongaboarelação.Maisumavez,ascontradiçõesdotemposãoasnossas:elemata, ou eterniza, e para sempre estará conosco aquele cheiro, aquele toque, aquele vazio, aquelaplenitude,aquelesegredo.

Risospodem se tornar escassosnahoradas trevas, e ela sempre chega:morte, doença, abandono,separação, fantasmasnossos, semrostonemnome.Podeseraosdezanos,aoscinquenta,aosoitenta.Quando abrem nosso peito e nos arrancam o coração, e a alma envelhece décadas em um instante.Viramosmemóriadoloridadoqueumdiafomos.

Agenteresiste,sepode.Segueemfrente,dojeitoquepode.Agentevence.Agenteaceita.Oufinge.(Máscarasmuitousadassetornamapeledonossorosto.)

Emqualquer fasedavida surgemenseadas tranquilas e águasqueparecemvozdemãe.Comonanatureza: inesperadamente,nomeiodobanalcotidiano,aalegriainexplicada,ascoisasquedãocerto.Onovoemprego,oamorquefloresce,ofilhoquesorri,asaúderecuperada,ascontasliquidadas,avidapossível.

Cicatrizesdevelhasesperanças.—Otempotrazsoluçõesqueagentenemimaginava—medissealguémsábio.Enãoéqueeletinharazão?

Depoisdeperderquasetudo,descobriqueadornãoeramaiorqueosonho.

Quandoesqueciocaminho,viquemeupassotrilhavaoladoerrado.

Quandosóomeurostosobravaemcadaespelho(enadadoladodecá),junteidesalentoedesejoemereinventeicomcuidado.

(Agorapareçocomigoantesdohorizontesercancelado.)

Aoimpactodeumaprimeiramortedramáticaquemecortariaemdois,descobrirqueavidaaindaerapossívelseriaumlongo,duroaprendizado.

Fecheiajanelaparaqueosolnãoentrasseemepermitinadarnomardador.Nessafasenadaaprendi,emnadamelhorei,nadafizsenãomeesconderparameproteger,aténão

aguentarmaisaqueleexílio.Pareciaimpossívelqueumdiaaclaridadeládeforacomeçariaaentrar,devagarinho.

Nãomuitodepois,outroredemoinhotraidorengoliuquasetudoqueseestavareconstruindo:umadoença longa, uma invalidez que fechava o doente numa redoma de silêncio com um olhar semrespostas.

Do fundo do que parecia tão vazio, mais uma vez a força para agir, decidir, cuidar, e manter apossívelclaridadenacasa.Fugirnãoerapermitido.

Novamente o tempo medido em noites, como o alcoólatra mede em 24 horas mais um dia desobriedade. Quantas noites faltam para que o amado desperte, a dor diminua, esse inferno acabe,quantasnoitesaindaprecisosuportar?

Comoaprenderalidarcomissoqueeudesconhecia,eparaoquenãomesentiacapaz?—Ninguémécapaz—meexplicaram.—Agenteaprendeacadahora.

Quandoamortedestroçaoamoréqueagenteavaliaaimportânciadasverdadeirasamizades.

NocomeçosomosdoentesnumaUTIdehospital.Umdiaconseguimossentarnacama,tiramtodososfiosedesligamosaparelhos,enoslevamparaumquarto.Depois,espiarocorredor.Sairdohospitalevoltaràluzdocotidiano:entãotudoaindaexiste.

Eaospoucos tudo se reconstrói, agentecataaspecinhas infinitasdessequebra-cabeçadifícil evairemontando tudo: as casas, cidades, cavalos, trens, árvores,umavião,uma flor.Aprópria imagem, acasa,ojeitodeandar,asombraqueagentelançava.

Sem que fosse uma decisão consciente, passei a dormir com as portas da varanda demeu quartoabertas:asnuancesnocéu,asluzesdascasas,eossonsdaruasobretudoaoamanhecer,meprovavam—comonainfânciadeinsônias—quetudoaindaexistia.

Queeupodiaexistir.Que,estranhamente,haviavida.

Porqueotempopassaéquetudosetornatãoprecioso.Porqueestamossemprenosdespedindo—dessaluz,dessapaisagem,dessarua,desserosto,dessemomento,edenósmesmosnessemomento—,tudo assume uma extraordinária importância. Não é coisa para sentirmos constantemente, mas nashorasemqueaalmaseexpandesaímosdofútilparaosingular—evemoscomosomosespeciais.

Oincansávelmecanismodocotidianotambéméinimigodador.Aípensamosqueela estámais suportável.Masummovimento inesperado,umsom,umapalavra,

umcheiro,umobjetodesintegraoutravezoquepareciasereestruturar.Éprocessocomplexoquevariaemcadapessoa,emcadacircunstância.Sejacomofor,detropeçoem

tropeço, de agonia em agonia, retomamos o prumo. Pois mesmo quando de um lado a morte nosabraça,dooutroavidanoschama.

Umdosmaiores elogios que recebi anos depois como pessoa foi quando uma deminhas criançascomentou:

—Vocêéapessoamaisdivertidaqueconheço,éaúnicaavóquesaiparacomprarumafrutaevoltacomumcachorrinho.Temavósquesómandamagenteficarquieta,comerdireito,nãofazerbarulho.Ounemconversamcomagente.

Sesoudivertidanãosei,masgostoqueminhascriançasmevejam,nãocomoachataquesequeixa,reclamaecobra,masaquelaquedeverdade foicomprara frutaqueomaridomaisgosta, andavadenovopensandonumpug,eentrounalojadeanimaisquaseaoladodomercado.

Penseinissotambémquandomeunetomaisvelhoperguntousepodiatrazeranovanamoradaparaalmoçar comigo. Essa naturalidade mostrava que ele confiava em mim, não como uma inspetoraexigente quedevia dar o seu aval,mas como a donadeuma casa acolhedora e umabraço amoroso.Pontopramimnaquelahora.

Pontopara cadaumdenósquandoaspessoasaindanosquerembemcomnaturalidade,dividemnossas alegrias e tristezas e as delas, gostam de nos ver, não se assustam com eventuais rugas efragilidades,etambémnãonoscumulamdecuidadosexcessivoseprematuros.Atéamorecuidadoemdemasiafazemsofrer.Oqueagenterealmentequerépodercuidaremsossegodasnossasplantasnumjardim ou num vaso, bons livros para ler, bons filmes para saborear,música para curtir, companhiasparaabraçar,belasmemóriasparanosacompanhar,não importa.Oaprendizadodeumaboa solidãoquenãoéisolamento.

E tudo isso se constrói durante a maturidade, que vai desembocar na velhice, cujo nome não éprecisodisfarçarcommetáforaserodeiostolos,queacabamtornando“velho,velhice”,umaespéciedecondenação—numaconspiraçãodetolos.

Écruelnossoesforçoemiludirotempo,emdeteravida,emnãoserquempodemosseracadafase,numamentiraquesacrificamuitoentusiasmo,muitaalegria,doçura,interesse,experiênciaeesperança.

Somoscomonadadoresembraçadasinúteiscontraaságuasquesevão,comtãopoucainteligência,treinadosparaseremumsucesso,masnãoparaseremfelizes.

Queremosterquarentaanosaossetenta,tãopatéticoquantoquerertervinteaosquarenta...comosenostivessemfixadona idadequeachamos ideal.Queidadeseráessa?Ainfânciaéparaalgunsa fasemaisfeliz;paraoutros,foiajuventude.Acadamomentooseutipodefelicidade,queéumaharmoniapossívelconsigoetudomais.

Armadilhasdeumaculturadafutilidade:podendovivermais,queremospermanecernajuventudecomonumtanquedeformol,porqueumaideologiatolanosdizquesóaliestãoaspossibilidadestodas.

E nós seguimos a manada: vamos ignorar as coisas interessantes que o mundo nos oferece emqualquerfase,vamosdesperdiçaravidaagarradosaumideal impossível, talvezgrotesco.Emlugardeumsemblante,umamáscaraondesóabocasemoveumpouco,easpálpebrasabremefecham.

Estaremosfelizesouapenasmaisdesesperados?Emlugardecorrigir,desfigurar:estaremosmaisbelosouirreconhecíveis?Emvezdecurtirasnovasformasdeliberdadequeopassardotempoconcede,vamosnosaprisionar

noterror?Issopodefazeraculturadoaqui,doagora,donada.“O tempo?”,disseumpersonagemmeu: “precisamos fazerdelenossoanimalde estimação,ouele

nosdevora.”

(Amadurecerdeviaserrefinar-se.)

Em certos trechos dessa viagem, deixar-se levar não é resignação, mas uma pequena sabedoria:difícil,numaculturadoagoraabsoluto,do imediatoprazer,da juventudepermanente,daglóriaedopoderque,emnossailusão,pensamosterdeconseguirounãovaleremosapena.

É possível desafiar os conceitos que imperam, desatar fios que nos enredam, limpar o pó desseuniforme de prisioneiros, deixar de lado as falas decoradas, a tirania do que temos de ser ou fazer.Pronunciaranossaprópriaalforria:vai ser livre,vai servocêmesmo,vai tentar ser feliz, seja láoqueissofor.

Entãopodemosmurmurar,gritar,cantar.Podemosatédançar.Nãohámarcaçõesnemroteiro,masa inquietante possibilidade de optar: estou embarcada, cada minuto vale, aqui e ali posso escutar ovento nas margens, observo as garças que parecem sempre meditar, sombras que dançam entre asárvores,edentrodoslimitessereumesmaaindaqueembarcada.

E assim vão-se abrir as portas: algumas não se abrem apenas sobre salas de papelão pintado ouaposentoscomalçapões,massobrepátios,portõesecaminhosreais.

Correndopela florestadas fatalidadeseazares, encontramosclareirasdeconstruir,deescolher,defazer.Deserenovar,nãoimportaacifraqueindicanossaidade.

Não é preciso decidir segundo leis da sociedade ou críticas alheias, nem, a essa altura, fazer oimpossívelparaseraceitonatribo,comonaadolescência:descobriroquesequeréessencial.Éraro.E,como afirmou um personagem meu, quando alguém resolve não pagar mais o altíssimo tributo daacomodação,masconstruirsuahistóriaalémdosditamesedospreconceitos,estápelaprimeiravezparasimesmodizendosim.

Dizendo:eusouesse,nãooutro;meujeitoéassim,essaéaminhavoz,issoeuquero,nãooqueosoutrosesperamdemim.E,senãofaçomalaninguém,euvouporessecaminho.

Aprendemos eventualmente a gostar de nós. Gente demais se subestima, se desvaloriza, aceitaqualquervida,qualquerpessoa,qualquerroteiro.

Conseguimos até ficar sozinhos nessa pequena liberdade: a de que o tempo é um fato natural, écrescimento emudança permanente. Que ele não só nega e rouba com uma dasmãos,mas, com aoutramão,oferece.

Quandopenseiqueestavatudocumprido,haviaoutrasurpresa:maisumacurvadorio,maisriso,maispranto.

Quandocalculeiquetudoestavapago,anunciaram-senovasdívidasejuros,oamoreodesafio.

Quandoacheiqueestavaserena,oscaminhosseespalmaramcomodedosdeespantoemcortinasaflitas.Eeuespio,aindaqueoolharsejagrandeeafrestapequena.

Numdessesacasosemquenãoacredito,encontreiestequehátantosanosémeucompanheiro.Duasvezesviúva,eunempensavanumanovarelação,emborameusfilhoscomentassem:

—Mãe,vocêdeviasecasardenovo,andamuitoquietaemcasa,vocêaindatemmuitosanospelafrenteparaserfeliz.

Naverdadeeunãoestavatristeneminfeliz,apenasrecolhidanaminhazonadeconforto,aminhacasa,osmeusamigos.E,sefelicidadeéharmoniaconsigomesmaeomundo,euestavafelizdepoisdeanosdifíceis.Alémdomais,sempregosteideestartranquila,atémeutrabalhosefazemcasa.

Porém, por artes do destino ou porque apesar de não saber eu estivesse aberta para algo positivo,encontreiquemseriameuparceiroparaorestodavida.

(Todoencontroespecialéumaprimeiravez.)

Delíciasnascidasdopreconceito:Estávamososdoisnovestíbulodeminhacasa,eminhanetinhaentãodeseteanosestavaporalicom

umaamigadamesmaidade.Ameninaperguntou:—Queméaquelehomemdebarbabrancaconversandocomsuaavó?—Éonamoradodela—respondeuminhanetatranquilamente.Areaçãoimediatadaoutrafoideliciosa:—Vocêestálouca?Avónãonamora!Isso me foi contado logo depois, e nos divertimos muito. Mas foi um exemplo de que, embora

tornandoajuventudeumídolo,somosmarcadospelopreconceito:avósnãonamoram,nãoviajam,masfazembolo,usamcabelobrancopresonoaltodacabeçaeóculosnapontadonariz.Vejamosdesenhos,figurasdelivrosinfantis.Porincrívelquepareça,noséculoqueafirmamosserodalibertação,quandoessafiguradeviaparecerumacaricatura,lánofundoelaaindanosacena.Velhosconceitostortosaindanoslimitam,eocoraçãoépequenodemaisparaaceitarquehápossibilidadesdecrescer—emqualquertempo.

Novastofolcloresobreapassagemdotempo,hámuitashistorinhas.Amoça corria entusiasticamente beirando os jardins das casas, e num deles umamulher já bem

idosaestavacurvadacuidandodesuasplantas.Amocinhapassou,eaindacorrendodisseparaavelhinha,sorrindo:—Ah,comoeuqueriaterasuaidadeparanãoprecisarcorrerparamanteraforma!

Amulherseergueu,olhouparaela,riuedisse:—Ecomoeugostodeteraminhaidade,paranãoprecisarmaiscorrerepodercuidardasminhas

rosas!

Visitei em seu ateliê uma famosa artista plástica de quase noventa anos que naquele momentopintavatelasdeunsvermelhospalpitantes.

Eeulhedisse:—Quemaravilha.Seusquadrossãoumapulsaçãodevida,elescelebramavida.Elarespondeujuntodomeuouvido,brilhonosolhos:—Euoscrioparamimmesma,paramedivertir.Seurostoenrugadoeseucorpojáencurvadoemanavamumaalegriadeviverquemecausouamais

confessáveldasinvejas.Poruminstantedesejeiterchegado,enfim,aomesmopatamar—ondemuitascoisaspelasquaishojelutoesofrofossemumacelebração.

Saí dali pensando, por que não se podem celebrar vida, pessoas, sonhos, até perdas, em qualqueridade?Porquetemosdenosencolher,morrendoantesdahora?

Juntodessamulhermuitovelha,ninguém(sóumimbecil)selembrariadeprocurarsinaisdotempoquehaviapassado:agentevibravacomafogueiraacesadoseutalentoedasuaarte.

(Não é preciso ser uma grande artista para que rugas e corpo encurvadonão tenham importânciaessencial:oafeto,ointeresse,acuriosidade,estarabertoparaosoutrossãoomaiortalento.)

Quandoanuncieiqueestavaconstruindoumacasinhanamontanha,ocomentáriomaiscomum,edesanimador,foi:

—Nasuaidade?Emeolhavamcomoseeudissessequeestavatendoaulasdebaléouaprendendoavoarnotrapézio.— Quase todo mundo a essa altura quer vender suas casas da montanha, da praia — era o

argumentogeral.—Vocêvaifazerocontrário?Ocomentáriomaisengraçadofoiumvagamentecontrariado:—Ahbom,maséporquevocêtemespíritojovem!Era para ser um elogio, mas me deixou desconfortável, como quando dizem “no meu tempo”,

referindo-se inevitavelmente à juventude. Por que ser jovemde espírito seriamelhor do que ter umespíritomaduro,eporqueotempodeagoranãopodesernossotempo?

Nãoseiqualavantagemdeteralmadetrintaanosaossetenta.Porquenãoterumaalmadesetentaaos setenta,mantendo vivos os interesses, emultiplicados os afetos? Embora o corpo já não tenha aantigaagilidade,nemosvelhosdesejose impulsos,podemosinventarmaistempoparacuidardenós,paraescutaroqueafinalqueremos,eatéparacultivarasnossasrosas.

Embora a gente queira sermoderno, e com recursos damodernamedicina possamos vivermuitomais commelhor qualidade de vida, frequentemente se pensa que qualidade de vida significa umaespéciedeembalsamamentoemalgumpontodamocidade.Predominaaideiadequeavelhiceéumasentença da qual se deve fugir a qualquer custo— atémesmo nosmutilando ou escondendo, feitomulherescujorostopareceumamáscaradecera,ondesemovemapenaspálpebraseolhos,eabocaosuficiente para falar e comer. Olhos apequenados ou desiguais sobre enormes bochechas sem rugaalguma.

Oque enxergamosnos espelhos cegos, em lugardeumaverdadeplenamente aceitável: esse, essa,soueuagora,nãohávinteanos,hátrinta?Oquenoslevaanãoveronarizquedestoa,asobrancelharepuxadaparaoalto,afaceredondademais,aexpressãoquasecongelada?

(Quemédico impiedoso não nos avisa de que está na hora de parar, ou, se nos previne, por quesaímosàprocuradeoutronumímpetoautodestrutivodoqualnãotemosnoção?)

Viramosmáscaras,easpessoasindagam,quemé,quemera,ondesemeteuaquelaqueumdiaelafoi?

Quandonãoseconheciamosrecursosfáceiseabundantesdeagora,depreenchimentos,plásticaseoutros,começava-seadiscutirovalordostratamentoshormonais,esugeriramaminhamãe,entãocomsetentaanoseaindamuitoativa,quetentasse.

Ela, com o bom senso que emmuitas coisas a caracterizava, olhou um pouco surpresa, refletiu erespondeucomsegurança:

—Maseunãoqueroserjovem,queroserumamulhernormaldesetentaanos.Paraela,“normal”erasersaudáveldentrodopossível,ativadentrodopossível,bonitanospadrões

dessafasedavida,maistranquiladoquehátrintaanos,menosoneradaderegrasecompromissos,maisabertaàvidaeaosoutros,podendoapreciarcoisasque,aostrinta,aosquarenta,nãotinhatemponemmaturidadesuficientesparasequerperceber.

Viverésentiratransformaçãodoencantoesplêndidodajuventudenapotenteforçadamaturidade,edepoisnabelezapeculiardavelhice.

—Velhopodeserbonito?—perguntouumadascrianças.—Vocêmeachamuitofeia?—Não,euteachoumavelhabonita.Enósduascaímosnarisada.Casualmente a televisãomostrava uma famosa atriz na velhice, e tentei explicar que haviamuitos

tiposdebeleza:adeumacriança,adeumapessoajovem,adealguémmaduro,eadealguémvelho,comostraçosantigostransformadosnissoqueéumanovabeleza.

Amenina e eu concordamos, achando um pouco de graça naquela filosofia.Mas às vezes temosessasconversasmuitosérias.

Entãosuairmãgêmeainterveio.

—Masvocênãoévelha!Euprovoquei:—Meiovelha,né?Asduassacudiramacabeçacomaquelaênfaselindadoamor:—Nãoévelhanão,nemumpouquinho.—Equemaltemservelha?Refletiramumpouco,amaisespontânearesolveu:—Velhoficamaispertodemorrer.—Nem sempre— disse a outra. (Havia poucos meses elas tinham perdido um coleguinha num

acidente.)Ficamosastrêscaladas,absortasemnossasinúteisreflexões.

Exploraropassadonãoprecisaserumajornadadenostalgia.Podesertambémdereinvenção.Poisquemrecordanãoémaisquemvivencioutudoaquilo.Orealsemescladetalmaneiraaosonhadoquenãosedesgrudammais.

Seriabomestar atento, estar aberto, atravessar aporta,pularomuro, correrpelo caminhomesmoqueaspernas jánãoestejam tãoágeis.Pode-seandardevagar.Nunca searrastar,pois a almanão searrasta:ela,diferentedonossocorpo,voa.Enospuxaparatodasastransiçõesdetodasasfasesemque,emvezdesóperder,acumulamosquemsabeatémesmoalegria.

Aalegriaéessencial.Como as fomes que nosmovem, escrevi certa vez: fomede felicidade, por que não? Por que essa

palavraficoutãobarateada,ridicularizada,masvocêacreditaemfelicidade?,meperguntam.Claroquesim:éterafetoseprojetos.—Queprojetosaestaalturadavida?—meperguntoualguémindignadonumapalestra,enãoera

muitovelhonempareciadoente—Ora—respondi,sabendoquetalvezestivessesendocruel—,senãotemosprojetos,podeserhora

derevernossoconceitodeprojetos.Pois elesnãoprecisamsergigantescos,nemesplêndidos, aliás amaioriadaspessoasvivebemcom

projetospequenos:estudarumidioma,visitarumirmão,jantarcomumamigo,caminharapreciandoapaisagemouaspessoas,ouatéascasas...comprarumaflor,experimentarumacomidadiferente...tudosão projetos. Ser mais gentil com as pessoas, por exemplo, é um ótimo projeto; abraçar maiscarinhosamenteoparceiro,ouumfilho.

Quanto aos afetos, se ao nosso redor existe apenas um deserto, possivelmente nós mesmos ocriamos.

Presenças amorosas a gente procura ou nos encontram. Ainda que os afetos perdidos sejaminsubstituíveis,existeespaçonaalmaparanovosacolhimentos,desdequeagentequeira.Oupossa,me

dizalguém,poisalgumaspessoassão,poreducaçãoebagagempsíquica, irremediavelmenteestreitasesecas.

—Nãotenhomaisamigosnemparentes—medisseumasenhoramagoada,emtomquasehostil,como se a culpa fosseminha.—Todos jámorreram. Estou velha demais, vivermuito sóme deixousozinha.

Seaindativermosforça,podemoscurtirpessoascuidandodelasemenfermariasoucasasgeriátricas,nãoprecisamostrocarsuasfraldas,maspodemosconversar,levarumbolo,umaflor,distrairdealgumamaneira.Comporlaços,tãoimportantesparanósquantoparaelas.

Podemosalegrarcriançasemhospitais.Podemosbaternaportadovizinhosobumpretextoboboeiniciarumaamizade.

Podemos telefonar para aquele amigo comquembrigamos séculos atrás, e quem sabe teremos, osdois,umarevelaçãofeliz.

Nãoprecisamosserricos,magros,belos,ágeis,viajaraParis,conhecerasilhasgregaseomaisnovorestaurante chique da cidade para estar bem. Em nenhum momento da vida projetos incríveissignificamincríveisalegrias.Masacadamomentoagentepodesetransfigurar.

Uma coisa não podemos perder, e se perdemos vamos recuperar, e se nunca tivemos é precisoaprender:ohumor,semoqualtudoacabacomcheirodenaftalinaemarmárioslongamentefechados.

(Meperdoemosqueachamquemerepito:euseiquejádisse,eescrevi,muitasdessascoisas.Maseuasretomoaqui,porquenãomecanseidelas—eporqueacadadiameparecemvivas,ereais.)

(Eosdouradossonhos?Easagradainquietação?Easdúvidastãoexcitantes,tudoissoquepoderianossalvardomofonaalmaedavenezianabaixada

sobrenossoolhar?)

—Eosentidodavida?—cobroualguém.—Vocêaindanãofalounosentidodavida!Cadaumtemdeinventaroseucomseustalentosesuaprópriainevitávelincompetência.E encontrar tempo para isso— embora essa invenção se realize quase sempre no inconsciente—,

entreahoradepagaraconta,pegaroônibus,escutarofilho,entenderodrama,cumprirosprazoseaspromessas,eabafarseuíntimodesejooudesespero.

Quemsabeatédançardealegria.

Derepentechegouodiadosmeussetentaanos.Fiqueientresurpresaedivertida,setenta,eu?Mastudoparecetersidoontem!Noséculoemquea

maioriaquertervinteanos(trintaagenteaindaaguenta),euestavafazendosetenta.Pior:duvidandodisso,pois ainda escutava emmimas risadasdameninaquequeria corrernas lajesdopátioquando

chovia, que pescava lambaris com o pai no laguinho, que chorava em filme do Gordo e o Magro,quandoamãealevavaàmatinê.(Euchoravaaltocompenadosdois,amãeficavafuriosa.)

Ameninaque levavacastigonaescolaporqueria foradehora,porquesedistraíaolhandoocéuenuvenspelajanelaemlugardeprestaratenção,porquedevagarinhoempurravaoestojodelápisatéabeiradamesa,edeixavacaircomestrondosabendoqueosmeninos,maisqueasmeninas,sebotariamdequatrocatandolápis,canetas,borracha—astediosasregrasdeordemequietudeseriamrompidasmaisumavez.

Fazendoatodahoraperguntasloucas,elaaborreciaosprofessoresedivertiaaturma:apenasporquenãoqueriaserdiferente,queriaseramada,queriasernatural,nãoqueriaquesoubessemqueela,dozeanos,alémdehistóriasemquadrinhosenovelinhasaçucaradas, lia teatrogrego—sementender—eachavaemocionante.

(Eatédofuturonamorado,aosquinzeanos,esconderiaisso.)

Omeuaniversário:primeiropenseinumagrandecelebração,euquesouavessaabadalaçõesegostode grupos bempequenos.Mas pensei, setenta vale a pena!Afinal já é bastante tempo! Logome deicontadequehojesetentaéquasebanal,muitagentecomoitentaaindaestáativoepresente.

Decidiapenasreunirfilhoseamigosmaischegados(tarefadifícil,escolher),edeixaraquelafestonaparaoutradécada.

A vida é uma casa que construímos com as próprias mãos, criando calos, esfolando joelhos,respirando poeira. Levantamos alicerces, paredes, aberturas e telhado. Podem ser janelas amplas praenxergaromundo,ou estreitasparanos isolarmosdele.Podehaver jardins,pátio,porpequenosquesejam,comflores,combalanços,paraaalegria;ousócomlajesfrias,paramelancolia.

Vendavais e terremotos abalamqualquer estrutura,mas ainda estaremosnela, e aindapoderemosconsertaroquesedesarrumou.

Mas senos submetemos apadrõesmuito rígidos, senos considerarmos injustiçados, vamos acabarsendo aqueles chatos, cobradores, queixosos, que nós mesmos tanto reprovamos. É natural que oisolamento—pornósmesmosurdido—seinstale,efiquemosinsuportáveisatéparaquemnosama.

Teremosconstruídocaprichosamenteumasolidão.

ComenteiquantaspessoasdebengalaandavamnapraçadeSãoMarco,emVeneza.—Aquitemmuitagentecomproblemadelocomoção?(Nesse tempo eu lutava com a dificuldade de tornar a bengala minha eventual parceira em

caminhadasmaislongas.)Alguémiluminouminhapreconceituosaignorância:— Não é que aqui haja mais pessoas necessitadas de bengala. É que elas são aceitas com

naturalidade,háestruturasqueasamparam,quelhesdãoacessoamuseus,restaurantes,boascalçadas,

ascensores, enfim, respeito e naturalidade. A maneira como se encara a velhice é uma das coisaspositivasporaqui.

Epodeserumavisãopositivadentrodecadaumdenós,não importaocontinente,opaís:eusoumeuterritórioemqualquerparte.

Acossadas pelo medo e pela inquietação, nunca parando para refletir e raramente para respirar,algumas pessoas parecem tombar subitamente da juventude impensada para a velhice ressentida.Foramapanhadasdesprevenidas.Estavamdesatentasaomilagredaexistência.

Todaessarealidade,queincluinascimentoevelhice,criançasdocesecarasmurchas,corpossensuaisoumentes confusas, escorre como um rio no qual flutuamos, nadamos, resistimos ou nos deixamoslevar — enquanto ele, estranho e belo, permanece em seu fluir, e nos leva até onde talvez apenascomeceonovoroteirodeumanovapeçadeteatro.

Umafraseinesquecívelsobrevelhiceeenvelhecer,porquerealistaebem-humorada,foi:—Velhice?Euachoótima,atéporqueaalternativaseriaamorte!Foiquemsabeumblefeelegantedeumaatrizaindacommuitostraçosdegrandebeleza—noqual

nemelamesmaacreditava.Umareaçãobem-humoradaedegrandeefeito.Naverdadeagentenãoachaótimo.Agentesabequeénatural,eenfrentacomalgumaelegância,e

bom humor. “Às vezes o humor é atémais importante do que o amor”,me disse um velho e sábioamigo,quandoeuaindanãoacreditavanisso.

Comachegadadoenvelhecimento,essaéumadaspossibilidades:— Então o que tenho de enfrentar é isso? É inevitável? Faz parte da vida? Vamos em frente, se

possívelsemdarvexame.

(Envelhecertambémdeviaserrefinar-se.)

Tomei comomeumodelopara quando esse tempo chegasseumavelha amigaque se tornouumaespéciedemãepeloafeto.Cuidavademim,preocupava-se comigo, e aindahoje, estejaondeestiver,creioque ela sabedemim,me cuida. Sepudessemeaconselharia comocostumava, ehaveríamosdedarboasrisadasjuntas.

Essa velha dama, que, comominhamãe, morreu aos noventa anos, detestaria ser lembrada comtristeza.Umade suasmarcas eraobomhumor, quenessa idade,maisdoque em todas, é essencial:divertidoseramseusolhosmuitoazuisrevelandoointeressemúltiploealerta,abertoocoração.

A gente não a visitava para lhe fazer companhia (sua casa abrigava família emuitos amigos),masporqueprecisávamosdela, elanosalimentavacomseu interesse,nosanimavacomsuavitalidade.Liatodos os jornais, entusiasmava-se comnovidades, e as que não aprovava lámuito eram comentadas,também,comseujeitodivertido.

Dores,perdas?Havia,emuitas,fasesdeportafechadaedepressão,masdecidiracontinuarvivendo—nãovegetando.Entãoenvelheciacomnaturalidade,umpoucodeironiaquantoàslimitações,jánãocaminhavatanto,oscremesjánãoevitavamasrugas,melhorterrugasderisodoquecarafeitomáscaradegesso.

Comelaentendiqueacadafasedavidanósescolhemosalgumascoisas,quenemsempreosvelhosficamisoladosporteremumafamíliaindiferente,masporquesetornaramcompanhiasdesagradáveis.

Atiraniadovelho,comoadacriança,comoadodoente,podesercruel,eafasta.Se estamos num barco, é bom escutar as águas, apreciar as margens, tentar enxergar o porto de

chegada:nãocomânimosombrio,mascomoquem,emplenaviagem,avaliaopróximocaisetentaseabrirparaonovoquealinosaguarda.

—Eseforonada?—argumentam.—Bom,onadanãoincomoda.(Eutambémestavablefando.)

Hãode arquear as sobrancelhas,mas eu lhes digo que, se hojeme divirtomais do que aos trintaanos,quandochegaraosoitentaesperoacharaindamaisgraçademuitascoisasque,décadasatrás,mefariamarrancaroscabelosdedesespero.

Sealguémnavelhiceérealmentesó,semninguém,nemvizinho,nemconhecido,nemparente,nemmesmo o quitandeiro da esquina com quem falar, me perdoem: a não ser que uma tragédia tenhadevastadosuavidasemdeixarpedrasobrepedra,possivelmentefaltoucultivar interesseseafetos,emvezdeesperarporelescomoobrigaçãoalheia.

Avidanãonosdevenada.

Tanto se falana juventudeperdida. Sintomuito,nósnão aperdemos: elapassou, comopassamainfância,ajuventude,amaturidade—etudofoicomotudodeveser.

Porinseguroseambíguos,edominadospelospreceitosdanossacultura,somoscontraditóriosaténamaneira de lidar com nossos velhos.Ora os pressionamos: saia de casa, vá se divertir, vá dançar, vátransar, corra,ande,viaje!Quandoeleapenasquer finalmente fazeroquedeseja, epodeserdançar,andar, viajar, ou ficar quieto curtindo seu lugar, seus amigos, sua casa, seu jardim, sua janela, seusossego. Estar quieto não é sempre depressão: pode ser, como na infância, aquela contemplaçãoprazerosaquenaagitaçãoatualdificilmenteseentende.

Masnãodamosmuitosossegoaosvelhos:queremosquedancemouquefiquemquietos,tudo“paraoseubem”.

Ou, por outro lado, nós os cercamos de cuidados exagerados como algumasmães nervosas fazemcomfilhospequenos:nãosaia,nãoande,nãofiquesozinho,nãocomaisso,nãobebaaquilo,viajarnempensar,dirigircarronuncamais,fiqueimóvel,nãoviva.

Senossavidanão tiversidoaconstruçãodenossaprópriavontade,paraumladoououtro,vamossucumbirenuncamaissaberemosquemfomos,quemsomos,foradavontadedessesqueagoraqueremonossobem.

Nãohágarantiaparanada,então,assimcomoserbom,honesto,decente,trabalhardireito,seguirospreceitos todos não garante que sejamos felizes, recompensados, bem-sucedidos e saudáveis;amadurecer,envelhecercomopossívelotimismoecordialidadenãogarantenada.

Também em nosso refúgio da casa, da família, do trabalho, da rotina e dos afetos bons, omal épossível.

Éatéprovável.Obem,abeleza,oafeto,arelativaserenidadesãoprivilégiodedeuses?Sãoumbemdetodos,em

dosesquenãopodemosdeterminar,semdatamarcada,sembilhetedeentradacarimbado.Algonosfezperderainocência:doença,morte,desemprego,traição,asprimeirasrugasemanchas,a

indiferençadoparceiro,nãoimporta.Podemserapenasascruéisnotíciasdosmalesdograndemundo,quesaltamemnossosbraçosassimqueabrimosojornalouligamosatelevisãoouocomputador.

Masumacoisaagentepodeconstruirdepositivo,emqualquer fasedavida.EstaremParisou terumavastacontabancáriatambémnãoafiançacoisanenhuma.

(Nemporissoagentetempermissãodedesistir.)

(Sopra, soprao ventoque encrespaas águas e impele o barcodo tempoque é sonho, do tempoqueprecisaseratravessadodeolhosabertosparanadasedesperdiçardissoque,afinal,vamosnostornando.)

Todasasnaturaistransformaçõesvêmacompanhadasdenovasqualidadesqueantesnãotínhamos.Navelhice, a capacidadede amarmelhor,por exemplo: filhos criados, amizades consolidadas, velhoscasamentos sendo uma parceria tranquila e tempo disponível são grandes privilégios. Podemos amarcom mais tranquilidade, pois não precisamos educar netos, apenas curtir, querer bem, deixar quegostemdenossa companhia,não sendoos chatos cobradores, exigentes, a reclamarque as visitas sãopoucas,quemerecíamosmaisatenção.

Temos tempo para curtir coisas que passavam despercebidas na correria anterior, como uma belapaisagem, um bom filme, um bom livro, uma boa conversa (valem até um filmemedíocre, um livroruim, uma paisagem bem banal), memórias felizes, prova de que nada de verdade perdemos, poiscontinuamaqui,porqueficaramemnóssefomosatentosenãofúteisdemais.

Sou pouco simpática com essa distorção da realidade devido ao preconceito: envelhecer é feio, édegradante, por isso vamos ser eternamente jovens, seguindo aos pulinhos até o fim, fantasiados dePeterPan.Disfarçamosrealidadesnaturaisporqueasvemoscomoalgo inadmissível, ignorandoqueénormal,edigno,ebom.

Queremosasmiragens,ainfância,ajuventude,asriquezas,asvantagens,figurasdenévoaque,seasquisermostocar,desaparecem,seassegurarmoscomforçaemdedosaflitos,esfarelam-seenosdeixamvazios.

Encaramos o tempo como um conjunto de gavetas compartimentadas nas quais somos jovens,madurosouvelhos—porémsóemumadelas,adajuventude,comdireitoaalegriaserealizações.Poisapossibilidadedetersaúde,planoseternuraatéosnoventaanoséreal,dentrodaslimitaçõesdecadaperíodo.

Quando não pudermos mais realizar negócios, viajar a países distantes ou dar caminhadas,poderemos ainda ler, ouvir música, olhar a natureza; exercer afetos, agregar pessoas, observar ahumanidadequenoscerca,eventualmentelhedarabrigoecolo.Paraissonãoénecessárioserjovem,belo(significandocarnesfirmesepeledeseda)ouágil,masaindalúcido.Todosqueremosvivermuito,esquecendo que viver muito é inevitavelmente envelhecer. E que envelhecer não é doença, não édeterioração:éapenasmaisumainevitávelfase.

Quesejaboa.Quesejavivida,nãosuportada:isso,sim,dependedenós.

3 | Aembocaduradorio

Avidaéumpasseio(quenãoplanejamos)numriodeenseadascalmas,escurascavernas,vertigensfatais.

Somosnáufragooutimoneironessaságuasquetudolevam:estrelas,escolhas,destroçoseabraços.

Umdiavamosdescobrirnossodestino:quenãosejamsócinzasouossos,masumoceano,umapraia—umregaço.

Alguémtinhaescritoem letras enormes— foi antesdaspichações—nummurobrancoe imaculadopertodenossacasa:FIMDANOITE.

Passamos,eficamoscomentando:quemteriaescritoaquilo,queontemnãoestavaali?Arrisquei:umbêbadovoltandoparacasadepoisdeumanoitada,atordoadoeinfeliz,quemsabeao

encontrodamulherqueiriareclamar,osfilhoscomolhardedesgosto,ouumacasavazia.Ooutrodisse: quemsabeumaprostituta aliviadaporquevolta a serhumana, elamesma,mulher,

mocinha,quasemenina,epode irparasuacasa, seuquartinho,ondeaesperaumfilhopequenoqueela sustenta assim, ou o cafetão brutal que ainda vai lhe dar umas bofetadas na hora de pegar odinheiro?

Ou,concluímos,apenasummeninonumdessesgruposquevoltaparacasadepoisdealgumashorasdeforçadasalegrias.(Drogaaindaeracoisaremota.)

Ouapenasummoradorderua,quesealegraumpoucocomofimdatarefaeachegadadodiaquelhetraráacompanhiadostranseuntes,dosmotoristas,doscachorrosvadios,dameninadaindoparaaescola?

Alguémarriscou:—Decertoquemescreveu isso estava tão infeliz quepara ele, ou ela, a vida era anoite, emorrer

acabariasendoodia?Agentenãotinhacomodescobrir.Afraseecoavaummistodealívioeenormemelancolia,efalamos

nelaaindaalgunsdias.Fimdanoite,daviagem,dainsônia,dohorror,oudaalegria,edailusão?Comonavida,fimdotrajeto,agoranovocais,ouumnovomaraliondetodososriosdeságuam?

Seaságuascorrem,emalgumlugarhãodechegar:afoz,aembocadura,dissolverem-senograndemar. Nós os peixes, galhos e folhas caídos das margens, nós o barco, os marinheiros, passageirosclandestinossembagagem,oumercadoriainconscienteepassiva.

Seimaginarmosqueonebulosomarchamadomortepodenãoserofimdetudo,equeesconderorostonadobradobraçonãoadiantanada,emlugardenosdeixarmos levarcomdesesperosilenciosopodemos ter mais consciência da construção disso que somos. E escrever partes desse roteiro, comdecisões,comcoragem,commedoeterror,acertosetantosenganos—tudofazparte.

Inventamostodasortededistrações,ounosescondemosamedrontadosembaixodascobertas.Nossavida mais real é o tablet. Nossa única morte é a do game. Nossas alegrias correm o risco de seremapenas virtuais, o amor virtual, milhares de amigos virtuais, a maioria ilusões como bonecos nasprateleiras.Quemquerpensaremdestino,decisões,compromissos,atémesmopodereglóriasreaisqueexigemtrabalho,eperdas,edores?

Ninguémquerarriscar.Ninguémquermorrer.Eunãoqueromorrer.

Mas, assim como a cada hora inventamos (em parte) o dia que começa e transcorre, tambémpodemos(emparte)criaranoitequechega.

—Porquevocêescreve“emparte”?—perguntaram.—Porquenadaéperfeito—respondi.

Quandoeumenosesperava,alguémdisseaomeulado:—Porquevocênãoescrevesobreamorte?—Masjáescrevitantosobreela—respondi—,algunsatéreclamamquenelaeufalodemais.Tem

sidoumdemeustemas,epersonagemminha.Emumdemeusromances,Oquartofechado,amorteépersonagem:umamulhercobertadevéus,

que conduz o adolescente suicida nos primeiros passos em sua nova vida, como numa dança, numpalco.Euandavapensandoemmudarde tema,sairdapolítica,daeducação,daética,echamarparadentrodestelivroessavelhasenhoraquepalitaosdentesenquantonosespreitae,nasombra,preparaobote.

Não tenhocomrelaçãoà velhadamaumpensamentomórbido,nãoa esperodeitandona camaecruzandoasmãosnopeito,nãocurtoessaquejámetirouotapetededebaixodospés.

(Oqueficarádenósnosespelhosatemporaisquandoterminarotrabalhodasagulhastecendoosfiossutis,fazendooscortesbrutais,esse,essa—issoquedançanasombraenosaguarda?)

Nocomeçodaminhahistóriapessoal, “morte”pertenciaà linguagemdosadultos.Ficavamcomarsériooutriste,masninguémmeexplicavanada.Possivelmente,seeuindagasse,minhamãediria,comodecostume:

—Nãoéassuntopracriança.(Ascoisasinteressantesemgeralnãoeram.)Masaospoucos,comonoepisódiodo“agora”narradonasprimeiraspáginas,fuipercebendoqueas

coisas,osbichos,osmomentos acabavam(aindanão imaginavaqueaspessoas tambémse incluíssemnesseacontecimento).

Na minha mais remota memória está a pomba-rola que encontrei num canto do pátio naquelamanhãgeladaenquantomeupaipegavaocarronagaragemparamelevaraojardimdeinfância.Estavaimóvelsobrealaje,equandoapegueisuacabecinhadescaiu,nãosemovia.Coloquei-ajuntodopeitoembaixo do casaco, ela iria se aquecer e se reanimar, e voar de novo. Eu lhe devolveria a suamaravilhosaliberdade.

Masobichinhonãosemexia.Meupaidesceudocarroeveioveroquehavia.Entreabriocasacoemostrei meu tesouro. Ele a pegou cuidadosamente nas grandesmãos firmes, queme davam toda asegurançadestemundo:

—Filha,elanãovaimaisvoar.

Maseujáamavademaisaqueleseragoratãomeu.—Nuncamais? (Eunão faziamuita ideiadoqueaquilosignificava,mas jáescutaraaameaça: “Se

vocênãosecomportar,nãovaiganharbrinquedos,nuncamais.”)— Nunca mais. Morreu. Vamos fazer assim: você deixa aqui na garagem, a mamãe bota numa

caixinha,navoltadaescolaagenteenterranojardim.Vendomeusolhoscheiosdelágrimas,eletentoumeconsolar:—Vocêmesmaescolheumlugarbembonitoparaelaficar.Mas eu não queria. Não aceitava, como um pai não aceita a doença fatal do filho. A pomba era

minhafilhinha.Nãolembroseaenterramos,sefuiparaaescola,seesperneei,seleveicastigoporgritarechorartanto, issoeuesqueci.Maslembrodela, tãopequena,parasempreida,apenugemmaciaeocoração desaparecido, e eu impotente apesar de toda a minha ternura e de minha feroz precocematernidade.

Vãodizerqueinventohistóriasparameconsolareconfortarosleitores.Nãocreiamnisso.(Dizemcoisasdemaisameurespeito.Averdadeemgeralébemmaissimples.)Tudo que pareço inventar eu vivi, senti, seja emmimmesma, seja nos personagens criados pela

minhafantasiaounascidosdomeuinconsciente—sejanaobservaçãodetantosanosdaspessoasedascoisas, humanas, sociais, culturais. Estão também em todos os livros lidos, os filmes assistidos, asreportagensvistas,enessasentrelinhassingularesmasreaisdequemcontemplamaisdoquecorreouseagita,pornaturezaeprofissão.

Assim também minha visão do tempo, que nem é divertida nem é simplória ou fácil, mas queprocuroaproximardarealidade.Emboraeudigaseguidamentequearealidadenãoexiste:cadaumdenósinventaasua.

Também quanto ao tempo que rói e corrói e precisa ser reinstaurado, quem conta contos podesobrepor muitas camadas de imaginário e real, pois sabe que os limites são tênues, e poderosa aliberdadecomtodososseusperigos.

Inclusive a poderosa, onipotente, indesejável e inevitável senhora Morte, nossa desde sempreenamorada,quenãoqueremosver,nemouvir,nemaceitar:elaéquevaiterdenospegarnosbraços.Seremossubmetidos,seremosdomados,seremosabsorvidos.

(Nãoescrevidestruídos.)

Acadadia,mesmosemsaber,esemquerer,estamosnoscriando.Ninguémpodenosdizerqueseráfácil. O fácil pode ser desinteressante, e merecemos ao menos alguma vez fazer, querer, ser, ointeressante,oaudacioso,apesardessaincrívelsensaçãodefragilidadequenosacompanha.

Foimeupaiquemplantouesseálamonomeujardim.Podouseusgalhos,edesdeentãoseusdedossemultiplicaram,suavozseperpetuouemfolhasdepoisdecadainverno.

Equandooventoperpassaosaltosramosdoálamogeneroso,otemposedáporvencido,adorrecolhesuasasas:meupaiconversacomigo,andandopelacalçadaentreomeucoraçãoeasuamorte.

A ideia de que meu pai acima de tudo amado pudesse um dia não estar mais conosco foi o meuprimeirodramapessoal,ecomeçoumuitoantesdeserconsumado.Ovislumbredequeafinitudenãoatingia sóumpassarinhomorto,umaboneca estragadaouum livroperdido,mas tambémaspessoasqueeuamavaemeeramessenciais.

Eudeviaterseteanos,enumcomentáriobemtrivialdemeupaidescobriqueeleeracardíaco,eaexplicaçãodadafoiqueocoraçãoeraumamáquinaqueaqualquermomentopoderiaparar.

(Odeletambém.)Odeleespecialmente,porqueseucoraçãoeradoente.Abombaerafrágil,nãosepodiaconfiar.Isso

nuncame foi bemexplicado,ninguémavaliouo estragoque essa afirmação causounomeuuniversoinfantil atéalidominadopelo lúdico,pelo fantasioso.Aquiloeraumrecadode realidadequeeunãoestavapreparadaparadigerir:pedrainarredávelnaminhagarganta.

(Eunãopodiamaisconfiarnasegurançaquemeupairepresentava:eleseriacapazdemedeixar?)Lembro-medeacordarcomverdadeiroterrordemadrugada,meupaitinhamorrido?Saíadacama,

doquarto,ajoelhavanocorredor,ouvidoencostadonaportadoquartodemeuspais,querendoescutararespiraçãodele.

Décadasdepois,comoumfilmesurreal,opesadeloerafato.Umaviagemdelirantenanoite, na chuva, no frio, e finalmenteno saguãoda faculdadeonde era

diretor,pertodameia-noite,oesquife,ocaixão:meupaideitadoimóvel,branco,nomesmoternocomque eu tantas vezes o vira. Para meu estupor, incredulidade e sofrimento, ele não levantou umapálpebra,nãoveiocomosempremeconfortar:elenãomedavanenhumaimportância.

Parameupaieujánãoexistia;paramim,eleseagigantava.Emborasabendodesuafragilidade,eunãoestavapreparada.Nuncaestamospreparados.Nenhum

de nós imaginava nossa família sem a presença dele. Atualmente se diria que estava no auge damaturidade,dacapacidadeintelectual,dasabedoriaedagenerosidade,masocoraçãoestavadoente,eelesabiaqueiamorrerembreve.

Nadameconsolava.Porqueninguémpodiamedaropaiqueeuhaviaperdido,poralgumtempomeisoleidaspessoas:apenascumpriaobrigações.

Só algumas semanas depois, começando a me recuperar, lembrei que numa das minhas últimasvisitas eleme levou a caminhar lentamente pelo caminhode lajes no jardimonde eu tinha crescido,ondeconheciacadacantoecanteiroepedraearbusto.Agoraeleandavadevagar,eapoiava-seemmeubraço—elequesempretinhameconduzido.

Esemnenhumalamentaçãooudramaticidade,nemmesmosolenidade,mascomasimplicidadedosverdadeiros grandesmomentos, e dos grandes homens,me disse que sabia que seu tempo agora erabreve.(Queeunãoointerrompesse!)Quetinhatidoumavidaboa,eplena.Que,quandosefosse,nãoqueriaescândalosemseuvelórioouenterro,masquesofrêssemosatristezanaturaletocássemosnossasvidaspensandonelecomboaslembranças,asalegres,asamorosas.

Euorespeitavademais,eàquelemomentodele,paralhepedirquenãotocassenoassunto:paraele,paranós,eraimportante.

Eeledisse:—Lembre,filha,queSócrates,condenadoabebervenenopelasautoridadesdeAtenas,rodeadode

amigosediscípulosquechoravameselamentavam,dissemaisoumenosisso:“Semorrerforumsonosemsonho,quecoisaboa.Massemorrerforreencontrarpessoasamadasqueforamantesdemim,quecoisaboatambém.Então,nãosedesesperemassim.”

Nadadissodiminuiuaminhador,massaberquemeupaipensavaassimpassouaserumaformadeconsolo.

Seperderospaisédoloroso,seaconsciênciadasúbitaorfandadeemqualquermomentodavidaédifícil, uma criança que se vai, sugada pelo funil do grande enigma, é a dor maior. É o horror, aescuridão.

Eu nunca tinha visto uma criancinha morta, mas não pude me esquivar de prestar minhahomenagemàquelamenininhaquetinhasofridomuito,deixandoumafamíliadilacerada.

Todos chorávamos, por ela, por nós, pelas nossas crianças de repente tão vulneráveis, nós tãovulneráveis.

Lembrei a última vez em que a vi, já consumida pela doença.Me olhou com seus grandes olhosescuros,sériosdemaisparaasuaidade.Pelomenosnaminhaimaginaçãosemprealerta,elameolhavacomoadizer:“Euseiquelogovoumorrer,vocêtambémsabe,masagentenãofalanisso.”

Então, para quebrar aquele estranho clima, perguntei, sabendo que ela tinha lido meus livrosinfantis,sobreumabruxaboaquesedisfarçadeavó:

—Vocêquerdarumavoltanaminhavassouradebruxa?Elanãopestanejou,nãosorriu,apenascontinuoumeolhando.Edissenumtommuitograve:—Euquero.Fiqueilhedevendoessepasseio.Seguidamentelembroaquelaúltimaconversacomumamenininhatãodoente,masquelogodepois

dessebrevediálogo correupelo gramadoe tentou fazer estrelinhas:naquele instante era apenasumameninadivertida,leve,luminosa—queamortelogohaveriaderecolher.

Essaavepousadaemnossoombro,pálpebrasbaixadasparaqueseuolharnãonosamedronte,estádizendo:“Brinquem,dancem,riam,enquantominhahoranãochega.Paguemascontas!Transemou

bebamouchorem,ousimplesmentefiquemencolhidosàminhaespera,fazendoquenão,quenão,comacabeça,comocriançasnegandoqueeuexisto.”

Estáali,estáalerta.Masagentenãoquernemsaberquandoelavaibaterasasas,sairdoseusossegoerecolherquem

amamos.Ounosdarosinal:suavez,suahora,seufim.Talvezdeoutromodonãoconseguíssemosnemrespirar.

Ninguém quer ir, ninguém quer partir: mesmo gentemuito doente oumuito velha apega-se aosfiaposdevida.Emclínicasgeriátricas, viboquinhasmurchas sorvendoavidamenteomingauou sopaquelheseraoferecidanumacolher,quandoparecianãosobrarquasenadadevidanaquelecorpo,eaalmaseapagaranamemória:somosapegadosaestecaminho,estetrajeto,estapaisagemfamiliaraindaqueefêmera.

Mas em certo momento não caberá a nós decidir: apenas iremos. Com medo, com dor, comindiferença, com alguma tranquilidade, quem sabe curiosidade: o que existe e quem está na outramargem?

(Otemposãotambémasareiasdaquelaampulhetaquebradarindodenós.)

Quantas vezes, num convívio longo ou breve, nos demos conta de que não era eterno? Quantasvezes na lida diária sentimos que era passageiro?Quantas vezes pensamos que atrás dessa superfíciealguma coisa mais espera, imóvel, paciente — concreta e real ainda que apenas névoa? Poucodisponíveis estamos para o inquietante.Mas ele está lá, o avesso de tudo, como passos no corredorembora não haja ninguém, um tumulto sutil no ângulo da sala vazia indicando que acima dasfrivolidadespairaumsegredosemtamanho,quetornatudopreciosoesingular,eterrível.

Transitamospor tudo issocomocrianças inconscientes,comumaleviandade invejávelealegre,atéqueessa realidadenosatinge,nosenfiaa facanopeito, enosderrubacomaquele socodeumamãopoderosananucadeumacriançaquenãocompreendenada.

Cada um de nós deve inventar o seu próprio jeito de sobreviver: para alguns isso será deixar aspálpebrasbemfechadas,apertarosolhoscomospunhoseandarfeitocegoscomoagentebrincavaemcriança.

(Sempreacabávamosbatendoemalgummóvel:lágrimasehematomas.)

Quandofoibomoamor,osmortospedemmemóriasdocesquenãoosperturbem,equeagentevivasemmuitodesgosto:maisnada.

(Pedemsilêncioequeosdeixemosempaz.)

Osmortosprecisamdemaisespaçodoqueemvida:nesseseunovoposto,nãodevemolharparatrás.

(Osmortosqueremlicençaparamorrermais.)

Osqueameiemorreramvivemnamedidadasminhaslembranças:comoseeufosseumespelhovivo— não feito alucinação ou espíritos invocados, mas como realidades. O poderoso tempo não éonipotente. Nada do que houve se destruiu, tudo está emmim para que eu preserve o que quiserpreservar.

(Equandonemeuestivermaisaqui,tudooqueeuguardavaintactovaidesaparecertambém?)Posso acreditar em quaisquer teorias. Posso escolher a queme confortamais. Por exemplo, quem

morreusereintegrounanatureza;preservou-senosseusgenes,emnossos filhosenetos; fazpartedaenergiamaior;enveredouporoutradimensão;éumaalma.

Nãoimportaemqueacredito.Importaqueeuacreditemaisnavidaquenamorte,maisnapresençaquenaausência:éomelhor

quepossofazerporessesque,semosperder,perdi.

Essa singular companheira nossa, a memória, nos ajuda a suportar as despedidas: ainda sou amenina assombrada pelas curiosidades e inquietações de décadas atrás, meu pai ainda dá corda norelógio sobre a lareira, minha mãe ainda se enfeita para uma festa diante do seu toucador com oespelho em forma demeia-lua brotando do chão, enquanto eu,maravilhada, encolhida na cama decasal,observava.

—Mãe,vocêvaiseramaisbonitadafesta.—Mãe,vocêéamãemaisbonitadaescola.—Mãe,quandoeucrescerquerosercomovocê.Nessashoraselaera sóalegria, sóbeleza,nunca sezangavanemperdiaapaciência, eeu ficavaali

imóvel,commedoatéderespirarparanãoquebraroencantamento.Quandootempoeadoençaconsumiramsuaenergia,alegriaebeleza,e lheroubaramamemória,

elacontinuouemtodososespelhosdomundocomaquelabeleza,eaquelaalegria:bastavasaberolhar.

Amadurecer,envelhecer,trazváriascoisasboas,mastambémsignificaquemaisamigoscomeçaramamorrer.

(Pormaisliteraturaqueeufaçasobreotema,contraissovoumerebelar,aindaqueinutilmente,atéomeuúltimoalento.)

Omeuamigoiamorrer.Todossabíamosdisso,eletinhasabidoantesdenósenãoescondia,tinhamesmoescritoarespeito.

Enfrentava sua tragédia pessoal com coragem, com fúria, com desespero, medo e horror. Estava já

muitofraco,seusofrimentofísicoeraindizível.Nãoqueriamaisverninguém,morriadolorosamentenohospital.

Então alguém me disse que ele queria falar comigo, pedia que lhe telefonasse. Não havia comorecusar,assimligueieaenfermeiralhepassouotelefone.Avozdeleeraadesempre,bela,profunda,umpoucomaisfraca,nadamais.Eelemeperguntoudireto,namedidadesuaconfiançaemmim:

—Oque você achaque vai acontecer comigoquando eume libertar deste corpo?—numaóbviaalusãoaseusofrimentofísico.

Olhei pela janela de meu pequeno escritório em casa. Chovia forte, o que sempre me dá umasensação de aconchego e permanência. Respirei fundo, comomentir para alguém tão querido numahoradaquelas?Entãofaleioqueachava.Acabavadeficarviúvapelasegundavez,aSenhoraMortenãomeeraestranha:

— Acho que vai te acontecer o que deve ter acontecido com essas duas pessoas que amei emorreram:numdeslumbramentovocêvai entender todasascoisas, todososmistériosquenos fazemrefletir,eescrever.

Brevesilêncio,sóseescutavaachuvanaslajes.Eelereagiucomoutrapergunta:—Mas...esenãoforassim?Espontaneamente,instintivamente,respondi:—Olha,senãoforassim,sedepoisdestavidaqueébemdifícilagenteencontrarumvelhosevero

comfitamétricadizendonossoserrosmaisqueosacertos,nósvamosvirardoisdiabosbemperversosefazerummontedemaldadenestaterra.

Eleentendeuminhabrincadeiraséria,esuareaçãofoiumarisadatípica,naquelavozinconfundível.Nãohaviamaisoquedizer.Nosdespedimosbrevemente.Poucosdiasdepoiselemorreu.

Lembrodessediálogofrequentemente.Tudooqueeulhedissefoiissoemqueacredito:mascomoacreditar no insondável?Não sei. Sei que, blefando ou chorando, sendo estoicos ou desesperados, éparaláquevamos.RestaoconsolodasabedoriadovelhoSócrates.

Podenãoresolvernada,masnossentimosmenosdesamparados.

Amedusanofundodopoço(ondenãoseioqueperdi,masprocurotanto)mechamacomseuolhardenostalgia.

Sobemaságuasturvas,plenasdetudooquereceioemeseduz.

Sómerestamergulhar:primeiroasmãosempontacheiasdeencontroedeadeus,depoisorostodesmascarado,ocorpoexaustoqueseadia.

Eporfim,muitomaiscalma,issoquemesobroudealma.

Amorte pode ser o barco atracando em areiasmacias, ou o rio desaguando numoceano acolhedor.Comoninguémmeprovaocontrário,gostodepensarassim.

—Porqueteconsola—medizem.Euprecisodeconsolo.De algum modo ali estarão as explicações, todas as intuições reveladas, instaurada a harmonia,

enfim,aquelaSommaluce:asupremaluzdarealidadetranscendentalquenãocabenaspalavras,masmeatingemepenetramereveste,porque,semcompreender,doubraçadase luto, tentandomanteracabeçaàtonad’águanashorasnoturnas.

Issotambémsoueu.Oueusouapenasisso.

Emlugarde reclamar,podemosdialogar; emvezdenosmatar,podemosoutravez tentaravidaedesenrolaraalma;emvezderessecarpodemosanimaressacriaturasingularquesomos,comrisos,comgemidosdedor,comsussurrosnoescuro.

É preciso enfrentar isso que não controlamos, mas que não precisa nos destruir: a vidainevitavelmentefluindo.Poisnóstambémsomosisso.

Comooventodomarnãosabequenãoexistemaisomar—epodetrazerrumordeondaseodordemaresia adesertosonde tudo issopairouhámilhõesdeanos—, tambémopassadonão sabequenãoexistemaisahistóriavivida,seelafoireal,ouseopresenteédelírio,setudosefundenumrioquenoslevaparaoutraságuas,quenosaguardampacientementecomoamantesfiéis.

Tempode refletir: as vezes emque fomos egoístas, grosseiros, fúteis, infiéis.As vezes emquenãoestivemospresentes.

Asvezesemqueagentenãoestavanemaí.Mastodasasvezesemqueagentefezomelhorquepodianaquelemomento.As vezes emque tivemospenadenósmesmos, emquedeixamos que alguém se afastasse ounos

isolamos de quem nos queria bem; o tempo desperdiçado ignorando uma boa oportunidade, e nosboicotamos—oquaseimperdoávelpecado,tãocomum.

(E,maisumavez,cadahoraemquefizemosomelhorquepodíamos.)

As águas não interrompem seu curso quando dormimos ou comemos, quando amamos ou nosfrustramos, quando executamos projetos ou achamos que nossa força acabou. Não param quandocomemosohambúrguer,usamosocomputador,tomamosovinho,choramosnoescuro,pensamosem

nosmatar,pagamosdívidascommaisdívidas,traímosousomostraídos,ourimossemmotivoporquenossentimosbem.

Somos como uma dessas garças de beira d’água, que parecem meditar interminavelmente. Derepentemergulhaevoltacomobicoapontandoparaumsolquejánãocegamais.

Mergulha,mashádeemergir—comosímpetosdeumparto—,numaexplosãodeclaridade.

Estarãodispensadososconceitosferozeseaspalavrasatônitas.Todasas lágrimas,asbuscaseaflições,osêxtaseseas trivialidades todas,o raciocíniocirúrgicoeo

gestomaisdelicado,todasasindagações,estarãodispensados.Osespaçosembranconãoprecisarãomaisserpreenchidos.Issoquedançanonevoeironumanovapraiaounummarsemfimnosdaráabênçãodosilêncio.Ounemhaverásilêncio.Nemumafolhasemoveránobosquedetodasasquietudes.Ounemhaveráquietude.

(Nadaserábanal.)

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Metadados–Otempoéumrioquecorre

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