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O TRAÇO ASPECTUAL NO AGRAMATISMO: REFORMULANDO A
HIPÓTESE DA PODA DA ÁRVORE
Marcela Magalhães Braga
Dissertação de Mestrado em Lingüística
apresentada à Coordenação dos Cursos de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Orientador:
Prof. Dr. Celso Vieira Novaes
Rio de Janeiro
2004
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................1
1 AS CATEGORIAS FUNCIONAIS NO INDIVÍDUO NORMAL...................1
1.1 A faculdade da linguagem..........................................................................7
1.2 O status da flexão.......................................................................................8
1.3 A proposta da flexão cindida.....................................................................11
1.4 A eliminação de AGR como um nódulo sintático.......................................13
1.5 Propostas a respeito da existência da categoria funcional ASP.................17
2 AS CATEGORIAS FUNCIONAIS NO AGRAMATISMO............................22
2.1 Caracterização do agramatismo.................................................................22
2.1.1 As bases biológicas da linguagem............................................................22
2.1.2 Afasiologia lingüística e agramatismo.....................................................24
2.1.3 Abordagens estruturais e abordagens processuais na caracterização do
agramatismo.....................................................................................................27
2.2 A produção agramática..............................................................................29
2.2.1 A hipótese da poda da árvore..................................................................30
2.2.2 Reações à hipótese da poda da árvore.....................................................33
3 METODOLOGIA..........................................................................................37
3.1 Tipo de estudo.............................................................................................37
3.2 Seleção do paciente.....................................................................................39
3.2.1 Primeiro critério de seleção – local da lesão...........................................39
3.2.2 Segundo critério de seleção – aplicação do teste de Boston....................40
3.2.3 Terceiro critério de seleção – classificação do agramatismo.................40
3.3 Testes.........................................................................................................42
3.3.1 Teste oral de preenchimento de lacuna..................................................44
3.3.2 Teste escrito de preenchimento de lacuna..............................................46
4 RESULTADOS.............................................................................................49
4.1. Desempenho na fala espontânea...............................................................49
4.2 Desempenho da paciente no teste oral de preenchimento de lacuna.........50
4.3 Desempenho da paciente no teste escrita de preenchimento de lacuna.....53
4.4 Semelhanças e diferenças entre a fala espontânea e os testes....................53
5 DISCUSSÃO..................................................................................................55
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................60
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................63
8 ANEXOS........................................................................................................67
Anexo 1.............................................................................................................67
Anexo 2.............................................................................................................72
1
INTRODUÇÃO
O interesse pela relação mente/linguagem tem crescido muito nesses últimos
cinqüenta anos. Um grande número de pesquisas tem se concentrado na questão de como a
linguagem está representada na mente do indivíduo normal. Uma preocupação crescente,
nessas investigações, tem sido a definição de uma teoria lingüística que possa dar conta dos
dados lingüísticos provenientes da aquisição, uso e perda da linguagem.
Os estudos recentes em neurolingüística têm tido um grande papel nessa discussão,
principalmente as pesquisas com indivíduos afásicos. Geralmente, o dano causado por um
tumor, derrame ou trauma cerebral é seletivo, ou seja, pacientes afásicos apresentam
problemas específicos no módulo da linguagem, preservando outras habilidades cognitivas.
O agramatismo tem sido a síndrome mais estudada até hoje na afasiologia
lingüística. Esse déficit é um sintoma da afasia de Broca, que resulta de uma lesão no lobo
frontal esquerdo do cérebro e é, tradicionalmente, caracterizado pela omissão no discurso
de itens funcionais como auxiliares, pronomes, determinantes, algumas preposições e
afixos flexionais.
Vários estudos têm procurado caracterizar essa gramática “desviante” do indivíduo
agramático na tentativa de poder estabelecer um paralelo com as teorias lingüísticas
propostas para o indivíduo normal. Recentemente, as categorias funcionais passaram a ser o
foco de investigações nas mais diversas línguas, tanto com indivíduos normais como com
indivíduos afásicos.
Investigações mais recentes em afasiologia colocaram em evidência a questão da
representação sintática da morfologia flexional dos verbos e o inventário de categorias
funcionais envolvidas nessas representações. Esses estudos tiveram como ponto de partida
o trabalho pioneiro de Pollock (1989) onde foi proposta a cisão de INFL em duas categorias
2
funcionais. Antes desse trabalho, a flexão estava representada em único nódulo na árvore
sintática, contendo os traços de tempo e concordância. Pollock propôs que esse nódulo
fosse cindido em dois nódulos funcionais, um para Tempo (T) e outro para Concordância
(AGR).
O status de AGR como nódulo funcional, no entanto, não tem sido consensual,
tendo em vista que, na última versão do programa minimalista, foi proposta a eliminação de
AGR como uma categoria funcional. Várias propostas têm sido feitas no sentido de
solucionar essa polêmica.
Entretanto, poucos estudos têm tratado da questão da representação de outras
categorias que fazem parte da flexão como Aspecto e Modo.
Esta dissertação tem dois principais objetivos. Primeiro, investigar a expressão
lingüística de Aspecto em um indivíduo afásico agramático nativo do português do Brasil.
Segundo, discutir o status de ASP como uma categoria funcional, à luz da hipótese da poda
da árvore (Friedmann e Grodzinsky, 1997), segundo a qual os indivíduos agramáticos têm
dificuldade de acessar os nódulos funcionais mais altos da árvore sintática. A fim de
verificar os objetivos acima, aplicaremos testes de produção nesse indivíduo e discutiremos
os resultados segundo a teoria minimalista (Chomsky, 1995).
Para tanto, no capítulo 1, apresentamos alguns pressupostos teóricos desta
dissertação, tais como a modularidade da mente e da linguagem, um histórico do nódulo
flexional e o status de categorias funcionais nas teorias propostas para o indivíduo normal.
No segundo capítulo, caracterizamos a síndrome agramatismo e apresentamos a principal
proposta para uma caracterização do déficit de produção no agramatismo – a hipótese da
poda da árvore. No capítulo 3, descrevemos a metodologia utilizada nesta dissertação para
a testagem de um paciente agramático, para, no quarto capítulo, apresentarmos os
3
resultados. Finalmente, no capítulo 5, apresentamos a discussão, e no 6 as considerações
finais.
4
1 AS CATEGORIAS FUNCIONAIS NO INDIVÍDUO NORMAL
1.1 A faculdade da linguagem
A linguagem é a mais distinta e notável característica da espécie humana e o seu
estudo sempre esteve em evidência. Porém, a partir da década de 50, as idéias propostas por
Chomsky para os sistemas mentais de conhecimento revolucionaram o estudo da
linguagem. Chomsky se opôs às propostas behavioristas desenvolvidas na época, que
defendiam que o comportamento lingüístico deveria ser explicado apenas em termos de
estímulos e respostas. Para ele, a mente humana possuía uma capacidade inata para a
aquisição de conhecimento (c.f. Chomsky, 1976).
A investigação de Chomsky surgiu no contexto da chamada "revolução cognitiva."
A partir dela, as perspectivas do estudo da linguagem e de outros sistemas de conhecimento
mudaram: do estudo dos produtos do comportamento para os mecanismos internos mentais
que o regem. Os produtos serviriam apenas para fornecer evidências sobre os mecanismos
internos da mente e o modo como esses mecanismos operam ao executar ações e interpretar
a experiência.
Baseado nessa visão, Chomsky propôs um estudo mentalista da linguagem na
tentativa de fornecer insights para o entendimento das capacidades cognitivas humanas e de
entender alguns dos problemas relacionados à aquisição de uma língua. Como as crianças
adquirem tão bem uma língua sem nenhuma instrução formal? Como construímos um
número infinito de sentenças a partir de um número finito de regras?
Apesar de as línguas apresentarem um nível alto de complexidade, uma criança
facilmente domina esse sistema de conhecimento antes de chegar aos seis anos. Como isso
pode ser feito sem um treinamento específico e com estímulos empobrecidos? Segundo
Chomsky (op. cit.), é razoável considerar que sabemos o que sabemos, pois de algum modo
5
a informação já existia para nós. Haveria, então, um conhecimento lingüístico
predeterminado geneticamente, uma "gramática" da linguagem, que seria desenvolvida a
partir da exposição da criança ao meio lingüístico.
O fato de uma criança poder adquirir diversas línguas em sua fase de aquisição
levou Chomsky a defender que esse conhecimento mental não seja específico de uma
língua apenas e, sim, subjacente à linguagem humana. Portanto, seria plausível propôr que
as línguas humanas se desenvolvem a partir de um sistema de princípios, condições e regras
comuns a todos os seres humanos. Chomsky chamou esse sistema de Gramática Universal
(doravante GU).
A hipótese adotada por Chomsky e seus seguidores é a de que a GU seja inata à
espécie humana, dessa forma todos nascemos equipados com um conjunto de princípios
lingüísticos, alguns universais e outros parametrizáveis, que nos permitem adquirir
qualquer língua. Porém, esse conjunto de princípios não é suficiente para a aquisição de
uma determinada língua. É necessário também que haja exposição aos dados da língua. A
criança precisará dos dados para construir a sua gramática interna e a GU servirá de guia na
interpretação e organização desses dados. As propriedades que são específicas nessa
determinada língua (parâmetros) serão fixadas através das opções disponíveis na GU. Desse
ponto de vista, seria razoável propôr que a aquisição de uma língua consiste na fixação de
parâmetros. (c.f. Haegeman, 1991)
Segundo Chomsky (1998), a aquisição de uma deteminada língua se daria da
seguinte maneira: suponhamos que o órgão da linguagem parta de um estado inicial 0 e que
após a exposição aos dados de uma determinada língua os parâmetros seriam fixados e o
léxico começaria a se formar. O falante nesse momento possuiria a competência para gerar
6
expressões que fornecem instruções para os sistemas de desempenho: o sistema
articulatório e o sistema conceptual.
Portanto, a aquisição de uma língua se desenvolve a partir de um certo sistema de
conhecimento representado de alguma maneira na mente/cérebro do falante. O estudo da
linguagem, visto a partir dessa proposta, gerou algumas questões que se tornaram a base do
programa de investigação da teoria gerativista. (c.f. Chomsky, 1988).
1. Que conhecimento nos permite falar e entender uma língua?
2. Como esse conhecimento é adquirido?
3. Como esse conhecimento é posto em uso?
4. Quais são os mecanismos físicos envolvidos na representação, aquisição, e
uso desse conhecimento?
A primeira questão lida com o conhecimento da linguagem. Segundo Chomsky (op.
cit.), só será possível responder a essa questão com o desenvolvimento de um estudo
descritivo da GU. Será preciso descrever como cada língua atribui representações mentais
específicas a cada expressão lingüística, determinando, assim, sua forma e significado.
A tentativa da construção de uma teoria da GU nos levaria à investigação dos
princípios fixos e invariantes que constituem a faculdade da linguagem humana e dos
parâmetros variáveis associados a eles. Após essa investigação, seria possível explicar por
que sentenças de uma determinada língua têm a forma e o significado que têm, partindo dos
princípios da GU.
A segunda questão está intimamente ligada à construção da teoria da Gramática
Universal. O processo de aquisição da linguagem envolve a fixação dos parâmetros que não
estão especificados na GU, a partir da exposição ao meio lingüístico que determinará essa
7
fixação de parâmetros. É preciso investigar de que forma ocorre essa fixação e quais são os
mecanismos envolvidos no processo.
A terceira questão envolve dois aspectos: a produção e a compreensão. Seria
interessante entender como o conhecimento é posto em uso ao entendermos algo que
ouvimos e ao expressarmos nossos pensamentos. Segundo Chomsky (op. cit.), a
compreensão tem sido contemplada em alguns estudos, porém a produção ainda continua
um mistério.
A última questão foi muito pouco explorada devido às limitações experimentais nos
estudos de sujeitos humanos. Uma saída possível para essa questão foi a análise lingüística
de sujeitos afásicos, porém Chomsky reconhece que é muito difícil estudar os mecanismos
cerebrais da linguagem sob essas condições.
Entretanto, a contribuição dos estudos em afasia não se restringe apenas à procura
pelas bases físicas da linguagem. É importante ressaltar a contribuição que a afasiologia
pode trazer para validar a teoria lingüística proposta para o indivíduo normal. Segundo
Grodzinsky (1990), esse tipo de estudo é essencial para validar ou refutar os princípios
gramaticais propostos para o indivíduo normal.
O primeiro item do programa de investigação gerativista, qual seja, “que
conhecimento nos permite falar e entender uma língua?” tem recebido maior atenção por
parte dos lingüistas. Os estudos têm tido como foco principal a determinação das
propriedades universais das línguas e aquelas que são específicas ou parametrizadas. Esses
estudos têm revelado que as diferenças paramétricas entre as línguas são derivadas
principalmente de propriedades morfológicas.
As categorias funcionais, em especial, aquelas que constituem o nódulo flexional,
têm recebido atenção especial tanto nos estudos em lingüística teórica como nos estudos em
8
afasiologia lingüística. Entretanto, Haegeman (1997) aponta que não há unanimidade em
relação ao inventário das categorias funcionais na literatura. É necessário discutir, segundo
ela, se as categorias funcionais são universais ou se fazem parte da variação paramétrica
entre as línguas. Um outro ponto importante apresentado pela autora é a questão das
projeções máximas. Se as categorias funcionais são essencialmente definidas pelos traços
abstratos que mantêm, então faz-se necessário investigar quais traços podem nuclear a sua
própria projeção máxima e quais traços projetam em conjunto.
Para investigarmos essas questões, partiremos das propostas iniciais para a
representação sintática da sentença na gramática do indivíduo normal, para depois
apresentarmos as propostas para a representação da flexão como nódulo funcional na árvore
sintática e alguns estudos que contribuíram para essa questão.
1.2 O status da flexão
A teoria responsável pela organização da estrutura dos sintagmas é a teoria X-barra
que foi desenvolvida a partir de propostas de Chomsky (1970 apud Haegeman, 1991). Essa
teoria procurou organizar a análise das sentenças e dos constituintes sentenciais de diversas
línguas, a sua intenção, a ordem em que ocorriam, como interagiam para formar os
sintagmas, etc.
Nas propostas iniciais da teoria, uma sentença (Poirot will abandon the
investigation) era representada da seguinte forma. (figura 1a) (cf. Haegeman, 1991)
9
1a. Poirot will abandon the investigation. (Poirot vai abandonar a investigação)
S'
S
NP AUX VP
Poirot will abandon the investigation
Entretanto, essa estrutura não sustentou as bases propostas para a teoria X-barra de
que uma projeção máxima fosse uma projeção de um núcleo, unidades do tipo N, V, etc.1 A
projeção máxima S' é uma projeção de S e não de um núcleo que, geralmente, é um nódulo
terminal. Além disso, S possui três constituintes imediatos: dois que são lexicais e um
auxiliar. Qual dos três, em princípio, pode ser qualificado como núcleo? Poderíamos
considerar AUX como núcleo, porém AUX não aparece em sentenças sem auxiliar como:
Poirot abandoned the investigation (Poirot abandonou a investigação). Após uma análise
mais cuidadosa, foi proposto que o elemento flexional de tempo da sentença não faria parte
de VP, e deveria ser gerado independentemente dele. Esse nódulo terminal, que dominaria
o morfema de tempo, ficou conhecido como INFL. (c.f. Haegeman, 1991)
A partir dessa análise, pensou-se que INFL dominaria o auxiliar flexionado (figura
1.b) e também os morfemas flexionais que seriam realizações dos traços presentes em INFL
(figura 1.c).
1 Esta dissertação fará uso da terminologia do inglês, tendo em vista que as siglas do inglês estão consagradas
na literatura. Sendo assim, para o sintagma verbal, adotarei a sigla VP; para o sintagma nominal, NP; para o
sintagma adjetival, AP; para o sintagma preposicional, adotarei a sigla PP e, finalmente para o sintagma
determinante, DP. O sintagma flexional será representado por INFL e as categorias funcionais de tempo e
concordância serão representadas como TP e AgrP, respectivamente.
10
Figura 1.b S
NP INFL VP
Poirot will abandon the investigation
Figura 1.c S
NP INFL VP
[past]
Poirot -ed abandon the investigation
Posteriormente, a flexão passou a ser vista como núcleo da sentença. S passou a ser
denominado IP, tendo como núcleo INFL e tomando como complemento VP. INFL passou
ao status de categoria funcional que dominava a morfologia flexional do verbo, os afixos e
a partícula infinitiva to do inglês (figura 1.d).
Figura 1.d
IP
NP I
I VP
V’
V NP
. Poirot will abandon the investigation
11
A incorporação da flexão, até esse momento, era concebida como parametrizada.
Em línguas como o inglês, a flexão se movia para baixo para se incorporar ao verbo. Já em
línguas como o francês o verbo se movia para cima para I, o núcleo de INFL, para que
houvesse a incorporação (Emonds, 1976).
Na próxima seção, veremos como Pollock (1989) interpretou os dados encontrados
por Emonds e propôs a cisão da flexão.
1.3 A proposta da flexão cindida
A proposta anterior de que a incorporação da flexão se dava de maneira diferente
em línguas como o inglês e o francês gerou muita discussão e modificações na árvore
sintática.
A partir do trabalho desenvolvido por Emonds (op.cit.), que propôs que no francês
os verbos lexicais alçariam à INFL enquanto que no inglês eles abaixariam, Pollock (op.cit)
desenvolveu um estudo comparativo entre o inglês e o francês para oferecer uma
explicação para essa dissociação no movimento dos verbos nas duas línguas descritas
acima.
Um dos problemas encontrados por ele foi alcançar uma explicação adequada para o
fato de a GU permitir abaixamento no caso do inglês. O princípio da categoria vazia
preconiza que há um requerimento para traços e seus antecedentes: de que o antecedente C-
comande o seu traço, e isso não ocorreria com o movimento do verbo em inglês.
Na tentativa de resolver essa questão, Pollock se propõe a investigar as posições
ocupadas pelos verbos na árvore sintática, tanto no inglês como no francês. Para tanto, ele
usa a presença dos advérbios e dos marcadores negativos como indicadores da posição do
verbo.
12
No que diz respeito ao advérbio como indicador, Pollock nota que, no francês, todos
os verbos lexicais e auxiliares aparecem à esquerda de advérbios tipo often/souvent em
orações finitas. Em inglês, auxiliares aparecem à esquerda, enquanto verbos lexicais
aparecem à direita dos advérbios. Segundo Pollock, essas diferenças se originam de
diferentes operações nas duas línguas. Enquanto no francês, o verbo obrigatoriamente se
move para INFL, no inglês o verbo permanece na posição onde ele é gerado, ou seja, dentro
do sintagma verbal.
Em relação ao marcador negativo como indicador da posição do advérbio na
sentença, Pollock observa que, em francês, o verbo lexical finito sempre precede pas em
orações finitas, permanecendo à direita da negação em orações infinitivas. Enquanto os
auxiliares aparecem obrigatoriamente à esquerda do elemento negativo em orações finitas,
podendo permanecer à direita do elemento negativo em orações infinitivas.
Tendo em vista a posição dos verbos do francês em relação a esses indicadores,
Pollock conclui que parece haver, aparentemente, dois sítios de aterrissagem para o verbo
que se move: um à esquerda do nódulo de negação e um à sua direita (precedendo os
advérbios do tipo souvent). Pollock propõe que essas duas posições nucleares sejam
posições flexionais que representam cada uma Tempo e Concordância. Segundo essa
proposta, o nódulo flexional IP se decompõe em TP e AgrP, cada um tendo T e AGR como
núcleos sintáticos. O especificador de AgrP seria o sítio de aterrissagem do movimento
curto do verbo infinitivo em francês, enquanto o especificador de TP seria o sítio de
aterrissagem para o movimento longo dos verbos lexicais.
A proposta apresentada por Pollock foi de que TP dominasse NegP, que, por sua
vez, dominaria AgrP na árvore sintática (figura 1.e). A questão da ordem dos constituintes
tornou-se, posteriormente, tema de discussão na literatura.
13
Figura 1.e
CP
C TP
NP TP’
T NegP
Neg AgrP
Agr VP
Adv V
A proposta de Pollock é que a diferença encontrada entre o francês e o inglês no que
diz respeito ao movimento do verbo se origina da natureza de AGR nas duas línguas. AGR
em inglês, por não ser morfologicamente rico, torna-se opaco à transmissão de papel
temático. Portanto, se um verbo atribuidor de papel temático se movesse para AGR, não
poderia atribuir papel temático e assim violaria o critério teta. Já em francês, AGR,
morfologicamente rico, é transparente à transmissão de papel temático e isso permite o
alçamento de qualquer verbo.
1.4 A eliminação de AGR como um nódulo sintático
Pollock propôs que TP dominasse AgrP na árvore sintática, enquanto outros autores
propuseram o oposto, que AgrP dominasse TP. Entre os últimos, está Belletti (1990), que
propôs que AgrP dominasse TP, baseada na idéia de que a posição das categorias
funcionais na árvore sintática deveria refletir a seqüência dos morfemas do verbo. Seus
exemplos foram retirados da língua italiana, em que a ordem linear dos morfemas sugere
que AgrP domine TP. Como exemplo, podemos citar leggevano 'liam'. O afixo temporal -
14
eva-, que expressa passado, está mais perto da raiz legg- e, portanto, seria incorporado
primeiro, enquanto o de concordância –no-, que indica 3ª pessoa do plural, seria
incorporado por último. Dessa forma, justifica-se a proposta de que o nódulo de AGR
dominaria o nódulo de T na árvore sintática.
A posição de Belletti foi apoiada por Chomsky2 (1995). Ele tentou conciliar as
propostas de Belletti e Pollock, propondo a existência de dois tipos de concordância
sintagma nominal/verbo, uma com o sujeito e outra com o objeto. Para tanto, ele propõe
que haja dois elementos para AGR na árvore sintática: Agrs e Agro. Agrs seria responsável
pela concordância do verbo com o sujeito e Agro com o objeto. O AgrP da estrutura de
Pollock seria o Agro de Chomsky, a posição intermediária para o alçamento do verbo. Após
a proposta de Chomsky, a árvore sintática ficou mais articulada como em (1.f), onde Agrs é
igual a I, o núcleo de IP, e F é [+- finito].
Figura 1.f
IP
NP I'
Agrs FP
F (NegP)
Neg AgrP
Agro VP
(Adv) VP
V ...
2 Essa proposta de Chomsky foi originalmente publicada em 1991, para depois aparecer como capítulo 2 do livro de 1995
15
Em relação à questão da restrição do movimento dos verbos lexicais do francês e
auxiliares do inglês, Chomsky assume a proposta de Pollock de que essa diferença se reduz
à teoria teta: AGR "forte" permite que o elemento adjungido seja o núcleo de uma cadeia
teta, porém o AGR "fraco" não permite.
Contudo, com a introdução do programa minimalista, Chomsky3 (1995) revisa essas
propostas para o nódulo flexional e decide reestruturar a árvore sintática em termos de
economia e simplicidade.
Chomsky (op.cit.) defende a idéia da linguagem como um objeto biológico, e
portanto analisável a partir da metodologia das ciências naturais. A visão de que a
linguagem é passível de investigação, como outros fenômenos naturais, é central no
trabalho de Chomsky. Para uma análise mais completa da linguagem sob a ótica das
ciências naturais, tornou-se necessário o desenvolvimento de uma teoria lingüística que
tivesse poder explanatório e que estivesse de acordo com as noções de economia,
simplicidade e não-redundância, noções essas já utilizadas pelas ciências naturais. (c.f.
Freidin & Vergnaud, 2001)
Uma das assunções básicas que fazem parte do programa minimalista (doravante
PM) é de que a Faculdade da Linguagem está inserida dentro da arquitetura mente/cérebro
e interage com outros sistemas (de desempenho) que impõem condições que a língua deve
satisfazer. Essas condições são condições de legitimidade, no sentido de que outros
sistemas devem ser capazes de ler as expressões de uma língua e usá-las como instruções
para o pensamento. Sistemas de interface ligam a Faculdade da Linguagem aos sistemas de
desempenho, que são: o sistema articulatório-perceptual, que interpreta e regula as
propriedades fonéticas, e o sistema conceptual, que interpreta e regula as propriedades 3 Estamos nos referindo aqui às propostas apresentadas no capítulo 4 do livro de 1995
16
semânticas. O PM elimina outros níveis que não os de interface. Não há níveis internos à
língua, como a estrutura-D e a estrutura-S, presentes em modelos anteriores. Todos os
fenômenos devem agora ser descritos em termos de condições de legitimidade no nível de
interface.
A Faculdade da Linguagem é constituída de dois sistemas. O léxico, uma coleção de
itens, cada qual com a sua mínima associação de som-significado; e o sistema
computacional, onde os itens retirados do léxico são transformados em expressões
complexas.
Até o final dos anos 80, a idéia proposta para a formação dos verbos era de que eles
fossem criados através da incorporação de afixos. A raiz do verbo seria gerada em Vº,
enquanto o morfema flexional seria gerado em Iº. Na abordagem minimalista o núcleo
funcional I° ou T° domina um feixe de traços abstratos, cujo papel é checar os traços
morfológicos dos itens lexicais. Os traços presentes nas categorias funcionais são a
motivação para o movimento do verbo. Núcleos funcionais, cujos traços verbais são fortes,
atrairão elementos antes de Spell-out (movimento aberto), que é o caso do francês;
enquanto, os verbos, cujos traços são fracos, só se moverão após Spell-out (movimento
coberto), que é o caso do inglês.
No PM, Chomsky propõe que os itens lexicais venham do léxico já
flexionados. A construção da árvore sintática consistiria, portanto, na escolha de um item
lexical e na combinação desse item com outros itens vindos do léxico através da operação
de merge. Para que haja a Interpretação Completa (Full Interpretation) da estrutura, todos
os traços abstratos fortes devem ser eliminados através do processo de checagem antes de
Spell-out.
17
A checagem de traços é uma propriedade central do sistema computacional.
Chomsky distingue dois tipos de traços lexicais: aqueles que recebem interpretação na
interface fonológica e aqueles que recebem interpretação na interface lógica. Entre os
traços que aparecem na entrada lexical de um item, podemos citar aqueles que são formais,
ou seja, acessíveis durante a computação, e os que não são formais.
Os traços formais ganharam uma maior importância na computação, segundo a
visão minimalista. Eles são responsáveis pelas operações Attract/Move dentro da
computação. Traços como "passado", "não terminativo" ou "indicativo" são considerados
traços [+interpretáveis], pois são legitimados pelos sistemas de desempenho e podem ser
núcleos de uma projeção máxima, ao passo que traços como "primeira pessoa" ou
"singular" não são conceptualmente necessários e fazem parte apenas do estabelecimento
de uma relação gramatical entre dois ou mais itens lexicais. Esses traços são considerados
[-interpretáveis] e especificamente gramaticais, ou seja, não são lidos pelos sistemas de
desempenho e fazem parte das propriedades particulares da Faculdade da Linguagem.
Segundo Chomsky, as categorias funcionais Tempo (T), Complementizador (C) e
Determinante (D) contêm traços [+interpretáveis], que fornecem instruções para os níveis
de interface, enquanto que a categoria funcional AGR contém somente traços [-
interpretáveis]. AGR estaria presente na computação apenas por razões internas à teoria.
Tendo essa distinção em mente, Chomsky propõe a eliminação de AGR, como nódulo
funcional, da árvore sintática e sugere que as relações de concordância entre itens lexicais
sejam estabelecidas através de uma relação especificador-núcleo em TP.
1.5 Propostas a respeito da existência da categoria funcional ASP
18
A eliminação de AGR da árvore sintática gerou algumas questões referentes ao
movimento do verbo. Como vimos, Pollock (1989) propôs que haveria duas categorias
funcionais na árvore sintática para dar conta do movimento dos verbos em francês.
Segundo ele, uma seria a categoria funcional Tempo e a outra seria a categoria funcional
Concordância. Com a eliminação de AGR, proposta por Chomsky, tornou-se importante
discutir qual categoria funcional tomaria o lugar de AGR na árvore sintática, tendo em vista
a proposta de Pollock (op.cit.) de que haveria pelo menos dois núcleos funcionais na
camada flexional.
O estudo de Giorgi & Pianesi (1997) apresentou algumas questões referentes à
proposta de Pollock e discutiu o status de Tempo e Aspecto na árvore sintática. Os autores
concordam com Pollock quando afirmam que apenas uma categoria funcional I não daria
conta das posições do verbo em francês, italiano e inglês. Eles também observam que a
hipótese da cisão de IP gera algumas questões que precisam ser investigadas: a natureza e
as propriedades sintáticas das categorias funcionais AGR e T e a representação da
interpretação temporal e aspectual associada à categoria funcional T.
Os autores tinham como objetivo conectar o nível morfossintático à representação
semântica de Tempo e Aspecto. Segundo eles, as línguas exibem diferentes informações
temporais e aspectuais, pois os morfemas que expressam Tempo e Aspecto exibem
diferentes propriedades. A hipótese formulada pelos autores é que as diferenças trans-
lingüísticas na interpretação temporal e aspectual podem ser explicadas através de
diferenças no sistema morfológico das línguas.
Em relação à projeção de traços, Giorgi e Pianesi (op.cit.) defendem a idéia de que a
arquitetura sintagmática varia de língua para língua e sentença para sentença. Segundo os
autores, a aquisição de uma língua se dá através da associação de traços a morfemas. Essa
19
associação pode ser de um para um em línguas aglutinativas ou o mesmo morfema pode
estar associado a um ou mais traços como é o caso do italiano. Cada traço pode nuclear
uma projeção, porém o número final de projeções é definido de acordo com noções de
economia, ou seja, a derivação mais curta é selecionada.
Os autores citam como exemplo o caso do pretérito simples e imperfeito em
italiano. As duas formas expressam o valor temporal PASSADO, apesar de contrastarem
em relação ao valor aspectual. Porém, em italiano não há um morfema separado para
expressar essa distinção aspectual e esse fato faz com que os autores proponham que no
italiano, há uma categoria funcional sincrética, colapsando Tempo e Aspecto.
Giorgi & Pianesi acreditam que a estrutura da árvore sintática varia de língua para
língua e que o sistema morfológico de uma língua determina quais categorias funcionais
estarão presentes na árvore sintática, através da associação de traços a morfemas. Os
autores não fazem referência explícita à categoria funcional que deve substituir AgrP na
árvore sintática, além disso, preferem dar ênfase às propriedade inerentes do verbo – os
traços, sem tratar de questões estruturais.
O estudo de Cinque (1999) vai de encontro às propostas apresentadas por Giorgi &
Pianesi no que diz respeito a diferentes questões. Primeiramente, ele considera que todos os
traços conceptualmente interpretáveis devem ser núcleos de uma projeção máxima.
Segundo essa proposta, seria razoável considerar que o traço aspectual possa ser núcleo de
um nódulo funcional aspectual. Em segundo lugar, Cinque propõe que cada uma dessas
projeções esteja especificada com um valor default e um valor marcado. A evidência
apresentada pelo autor vem de estudos com advérbios e da proposta de que os advérbios
estejam na posição de especificadores de núcleos funcionais distintos.
20
O autor, ao contrário de Giorgi & Pianesi, propõe uma hierarquia universal de
categorias funcionais na árvore sintática que estejam estruturalmente presentes nas
sentenças de todas as línguas mesmo que não haja manifestação morfológica. Além disso,
Cinque não faz referência ao trabalho de Pollock (op.cit.) e à questão da eliminação de
AGR.
O único estudo que faz referência explícita ao trabalho de Pollock e que propõe uma
categoria funcional para o lugar anteriormente preenchido por AgrP na árvore sintática é
aquele desenvolvido por Bok-Bennema (2001).
A autora desenvolveu um estudo muito similar ao de Pollock, usando os advérbios
como indicadores da posição do verbo em espanhol e francês. Assim como Pollock, ela
assumiu que o alvo do movimento longo é TP. Porém, a segunda categoria funcional, alvo
do movimento curto, ela definiu como sendo ASPP
Após a análise dos dados, ela propõe que o alvo do movimento longo dos verbos
finitos no francês seja o mesmo para os verbos infinitivos do espanhol, TP. Enquanto ASPP
seria o alvo do movimento curto dos verbos infinitivos do francês e dos verbos finitos do
espanhol. Segundo a autora, essa diferença se origina da força dos traços do verbo. Em
espanhol, o verbo infinitivo teria o traço forte e se moveria abertamente, enquanto o finito
teria o traço mais fraco. Em francês, ocorre o oposto.
O nódulo TP estaria especificado para [± tempo], enquanto, ASPP estaria
especificado para [± perfectivo], e seria dominado pelo nódulo de Tempo. O nódulo ASPP
teria traços fortes nas duas línguas, atraindo verbos finitos e infinitivos quando especificado
para [-perfectivo] e particípios ativos quando especificado para [+perfectivo].
As propostas de Cinque e Bok-Bennema para a existência de um nódulo funcional
ASPP vão ao encontro de estudos anteriores. Belleti (1990) propôs que a morfologia de
21
particípio seria checada em um núcleo de particípio, que projetaria um nódulo aspectual.
Assim como Belletti, Koopman e Sportiche (1991) consideraram a existência de uma
categoria funcional ASPP cujo núcleo seria os verbos auxiliares aspectuais como o have e
be do inglês e o avoir e être do francês.
É importante ressaltar que o termo aspecto abrange duas coisas diferentes na teoria
lingüística, o aspecto lexical e o gramatical. Nesta dissertação estamos nos referindo ao
aspecto gramatical, ou seja, a maneira como o falante apresenta um evento ou uma situação
através de meios gramaticais (e.g. uso do pretérito imperfeito para expressar um hábito no
passado). A questão do aspecto lexical dos verbos não será discutida aqui.
Esta dissertação se propõe a elucidar as questões apresentadas acima, observando o
status do traço aspectual imperfectivo na produção lingüística de uma paciente agramática.
No próximo capítulo, investigaremos o status das categorias funcionais em estudos
de afasiologia lingüística, em especial no agramatismo. Para tal, caracterizaremos a
síndrome agramática e faremos um breve histórico dos estudos com pacientes afásicos.
22
2 AS CATEGORIAS FUNCIONAIS NO AGRAMATISMO
2.1 Caracterização do agramatismo
2.1.1 As bases biológicas da linguagem
A faculdade da linguagem, assim como qualquer outro sistema do nosso corpo, é
um sistema complexo. Para entender esse sistema, é preciso investigar as partes que o
constituem e como elas interagem. Uma importante ferramenta nessas investigações tem
sido as lesões cerebrais localizadas.
Esse tipo de estudo se iniciou com Paul Broca em 1861. O paciente estudado por
Broca, Leborgne, era quase mudo - sua produção linguística estava reduzida à sílaba “tan”.
Entretanto, ele não apresentava nenhuma outra deficiência aparente e parecia compreender
tudo que lhe era dito. Broca examinou o cérebro de Leborgne logo após a sua morte e
constatou que havia uma lesão cerebral no lobo frontal esquerdo. A análise da lesão e do
déficit de linguagem apresentado por Leborgne levou Broca a concluir que a área
responsável pela faculdade da linguagem articulada era a base da terceira circunvolução do
lobo frontal do hemisfério esquerdo do cérebro. E essa área passou a ser conhecida,
posteriormente, como “área de Broca”.
Foi a partir dos estudos de Broca, que os déficits de linguagem se tornaram tema
central da neurologia. Em 1874, Carl Wernicke tratou de dois pacientes que apresentavam
uma síndrome de linguagem diferente daquela descrita por Broca. Eles apresentavam um
déficit de compreensão de linguagem, ambos não entendiam o que lhes era dito e seus
discursos não possuíam sentido algum. Ao fazer a autópsia, Wernicke notou que a lesão
estava situada no primeiro giro do lobo temporal no hemisfério esquerdo e se estendia até o
lobo parietal. Ele propôs, então, que essa área fosse responsável por uma função específica
– compreender língua falada.
23
A partir da conclusão de que uma lesão na área de Broca causava uma síndrome
motora e de que uma lesão na área de Wernicke causava um impedimento na compreensão
de linguagem, Wernicke prôpos um modelo de fluxo de informação de linguagem no
cérebro. As áreas de Broca e de Wernicke estariam conectadas e cada qual seria
responsável por uma atividade lingüística. Com base nessa proposta, Wernicke ainda previu
um terceiro tipo de afasia resultante de lesão nas fibras que ligam a área de Broca à de
Wernicke. Essa sua abordagem ficou conhecida como “conexionista”, pois, para ele, as
funções da linguagem eram construídas a partir da conexão de áreas específicas do
cérebro. (c.f. Caplan, 1987)
Segundo Caplan (op.cit.), a contribuição de Broca e Wernicke para os estudos
modernos de afasiologia foi imensa. A partir do estudo de Broca, levantou-se a hipótese de
que as funções lingüísticas estavam localizadas nos giros cerebrais. Com o estudo de
Wernicke foi introduzida a noção de fluxo de informação em nossos conceitos de
representação e processamento de linguagem no cérebro. E ainda, a noção de que a
linguagem normal envolve a cooperação de duas áreas cerebrais, com a informação fluindo
entre as áreas posterior e anterior do hemisfério esquerdo do cérebro.
Entretanto, Caplan ressalta que para essas abordagens a linguagem era considerada
um conjunto de atividades posto em uso através da conexão de certas áreas do cérebro.
Além disso, essas observações clínicas apresentam algumas limitações. A falta de detalhes
e precisão nas descrições dos casos pode criar problemas para a construção de uma teoria
coerente para a relação linguagem/cerébro.
Com a introdução do programa gerativista, que tem como objetivo entender o que
seja conhecimento lingüístico, tornou-se relevante uma descrição mais cuidadosa das
síndromes afásicas baseada em princípios e parâmetros gramaticais. Essas síndromes
24
passam a ter dois grandes papéis no estudo da lingüística teórica, a partir do programa
gerativista. Em primeiro lugar, a afasiologia pode contribuir imensamente na procura pelas
bases físicas da linguagem, relacionando áreas lesionadas ao tipo de problema lingüístico
apresentado. Em segundo lugar, os estudos em afasia podem trazer uma grande
contribuição para validar as teorias lingüísticas propostas para o indivíduo normal.
Na próxima seção, apresentaremos uma caracterização da síndrome afásica que tem
sido mais investigada nos estudos de afasiologia lingüística.
2.1.2. Afasiologia lingüística e o agramatismo
A síndrome afásica que tem sido mais estudada na tentativa de entender a relação
linguagem/cérebro é a afasia de Broca, em particular o agramatismo. O termo agramatismo
foi originalmente proposto por Pick (apud Grodzinsky, 1990), ao notar que os padrões de
produção de afásicos de Broca eram aberrações do ponto de vista gramatical. Ele então
concluiu que esses pacientes não conseguiam construir sentenças gramaticais, daí a origem
do nome agramatismo.
O agramatismo tem sido tradicionalmente caracterizado como um distúrbio na
produção linguística de alguns afásicos de Broca que omitem itens funcionais, como
auxiliares, pronomes, determinantes e algumas preposições e afixos flexionais em contextos
obrigatórios. Alguns traços clínicos também são reconhecidos no agramatismo, como
discurso lento e não-fluente e dificuldade na repetição.
Até os anos 70, acreditava-se que a afasia de Broca resultava apenas em distúrbio de
produção, mantendo a compreensão intacta. Entretanto, o estudo desenvolvido por
Caramazza e Zurif (1976) mostrou que, em situações de teste de compreensão, os pacientes
apresentavam algum tipo de impedimento. Os autores apresentaram a afásicos agramáticos
25
uma tarefa de correspondência entre sentenças e gravuras contendo dois tipos de sentenças
na língua inglesa. O primeiro grupo consistia de sentenças semanticamente irreversíveis,
em que somente um sintagma nominal poderia ser o agente, como em “A bola que o
menino está chutando é vermelha”; o segundo grupo consistia de sentenças semanticamente
reversíveis, em que tanto um quanto o outro sintagma nominal podiam servir de agente para
o verbo ao se reverter a sentença, como em “A menina que o menino está empurrando é
loura”. Os pacientes tiveram um bom desempenho com as sentenças semanticamente
irreversíveis, enquanto a compreensão de sentenças semanticamente reversíveis foi no nível
da chance (50%).
Os autores interpretaram esses resultados como sendo uma indicação da
impossibilidade do paciente de usar processos algorítimicos sintáticos. O bom desempenho
com sentenças irreversíveis viria de uma estratégia heurística para atribuição de papel
temático.
A proposta defendida pelos autores era de que a afasia de Broca resultava em um
impedimento nos processos sintáticos usados tanto na produção quanto na compreensão, e
que os afásicos só conseguiam compensar esse impedimento através de estratégias
heurísticas.
Essa proposta transferiu o foco anterior de que a afasia de Broca resultava em um
distúrbio na produção, para a hipótese de que a síndrome afetaria a sintaxe propriamente
dita em todas as atividades linguísticas. Segundo Grodzinsky (2000a), após essa proposta,
foi preciso redefinir os centros cerebrais da linguagem, rejeitando a abordagem clínica do
século XIX e aceitando a abordagem lingüística, em que a área de Broca passa a ser
responsável pelos recursos sintáticos usados na produção e na compreensão.
26
Uma outra preocupação crescente de estudiosos nessa área é investigar quais
recursos sintáticos estão preservados no agramatismo. Acreditou-se por muito tempo que
um paciente acometido dessa síndrome perdia todo o seu conhecimento sintático. Diversos
estudos têm apontado na direção de que o déficit agramatismo não atinge a sintaxe como
um todo. Uma parte do conhecimento sintático parece estar preservado, tem em vista os
resultados encontrados nesses estudos.
Grodzinsky (1984) notou que o desempenho do paciente agramático poderia ser
caracterizado não apenas através da omissão, mas também da substituição de itens
flexionais. Além disso, os pacientes de seu estudo seguiam as regras de boa formação
lexical da língua em questão e nunca produziam uma não-palavra ou pedaços de palavras
em seu discurso. No inglês, a forma infinitiva de um verbo poderia ser produzida por se
tratar de uma palavra fonológica, já no hebraico isso não seria possível pois toda forma
verbal necessita de afixos flexionais.
Em um estudo desenvolvido por Kolk e Heeschen (1992), afásicos agramáticos
demonstraram conhecimento da relação entre a posição do verbo infinitivo e finito no
holândes e no alemão (línguas V2). Isso se explica pelo fato de que ao produzir um verbo
no infinitivo, o agramático o produz na posição final da frase, onde é permitido. Já o verbo
finito é sempre colocado na segunda posição da frase, onde é o seu lugar.
As informações encontradas por Kolk e Heeschen foram confirmadas no estudo de
Avrutin (2001). Nesse estudo, o autor investigou o uso da forma infinitiva no agramatismo
e notou que havia certas restrições na escolha da posição do verbo. Os pacientes pareciam
demonstrar conhecimento sintático da relação entre o movimento do verbo e a finitude.
A omissão de determinantes e sujeitos também parece estar relacionada com a
preservação do conhecimento sintático. Em relação aos determinantes, Avrutin e Manzoni
27
(2000) notaram que o número de omissões é mais alto em sentenças não-finitas e que os
agramáticos italianos omitem mais o sujeito do que o objeto, isso seria consistente com o
cárater pro-drop do italiano.
Assim como no caso do italiano, os agramáticos nativos do português do Brasil
respeitam o cárater pro-drop do português, omitindo sujeitos apenas em contextos onde a
omissão é permitida (Novaes e Braga, 2003). Além disso, nesse estudo, também notamos
que os agramáticos não produzem sujeitos em sentenças que contém verbos não-finitos.
Portanto, o que fica claro desses estudos é que parte do conhecimento sintático está
preservada no agramatismo. Na próxima seção, veremos as diferentes abordagens propostas
para uma caracterização da síndrome agramática.
2.1.3 Abordagens estruturais e abordagens processuais na caracterização do
agramatismo
As abordagens para uma descrição do agramatismo e dos fenômenos envolvidos na
síndrome têm variado ao longo dos anos. Segundo Grodzinsky (1990), as abordagens
podem ser classificadas através das dimensões abaixo:
1) Modalidade: Se a descrição apresentada vê o déficit como limitado à produção ou
se ele se estende à compreensão.
2) Tipos de dados: Se a descrição trabalha com enunciados completos ou se está
restrita à palavra ou a outros tipos lingüísticos produzidos ou compreendidos pelos
agramáticos.
3) Foco: Se a descrição se preocupa com as propriedades estruturais da linguagem
do agramático ou com os mecanismos processuais cujo impedimento é a causa do
déficit, ou ambos.
28
4) Quadro teórico: Se a descrição utiliza a gramática estruturalista tradicional ou a
teoria gerativa.
5) Objetivos: Clínico ou teórico.
Nesta dissertação, investigaremos a produção lingüística de um paciente agramático.
Não discutiremos aqui se o déficit é limitado à produção ou se ele se estende à
compreensão, pois não aplicamos testes para investigar a compreensão. Nossa descrição
parte do nível da sentença e temos como foco as propriedades estruturais da linguagem do
agramático. O quadro teórico que serve como base para essa dissertação é a teoria gerativa,
em particular, o programa minimalista.
Segundo Grodzinsky (op.cit.), as abordagens que têm como foco os mecanismos
processuais envolvidos no agramatismo não conseguiram caracterizar o déficit em si.
Algumas propostas tentaram explicar fenômenos lingüísticos através de conceitos não-
lingüísticos e outras foram rejeitadas por motivos conceptuais. Segundo o autor, uma
caracterização formal do agramatismo só pode ser feita através de uma descrição estrutural
do déficit.
As caracterizações que têm como foco a estrutura procuraram distinguir entre os
elementos lingüísticos que estão preservados e aqueles que estão impedidos no
agramatismo. Entretanto, Grodzinsky afirma que é necessário propor explicações para dar
conta dos elementos preservados e perdidos. Para tanto, é necessário partir da gramática
proposta para o indivíduo normal e modificá-la a partir dos dados encontrados em estudos
com indivíduos agramáticos.
Esta dissertação se propõe a fazer um estudo, com enfoque sintático, baseado nas
propriedades estruturais da produção lingüística de um afásico agramático. Na próxima
29
seção, veremos as hipóteses propostas para dar conta da produção agramática, foco deste
estudo.
2.2 A produção agramática
O agramatismo, até o início da década de 80, era descrito como um distúrbio na
produção lingüística de alguns afásicos de Broca que gerava a omissão de itens funcionais,
como auxiliares, pronomes, determinantes, algumas preposições e afixos flexionais em
contextos obrigatórios.
Essa visão do agramatismo foi questionada por Grodzinsky (1984), que considerava
“omissão” uma previsão muito forte para a fala agramática. Dados do hebraico e do italiano
revelaram uma seleção flexional equivocada, resultando em algumas substituições. A
proposta de Grodzinsky era de que os elementos terminais de nódulos, como os
responsáveis pelas flexões, artigos, complementizadores e advérbios estivessem apagados
na Estrutura-S. A forma zero seria produzida em línguas que permitissem tal forma, como
no inglês, talk por talked. Em línguas como o italiano, haveria o preenchimento da posição
com outra flexão, o que resultaria em uma substituição.
Hagiwara (1995) observou que nem todas as categorias funcionais estavam afetadas
igualmente na gramática de indivíduos agramáticos falantes de japonês.
Complementizadores e construções envolvendo esses elementos estavam mais afetados do
que elementos de negação e morfemas flexionais que, por sua vez, estavam mais afetados
do que artigos, numerais e possessivos. Esse fato levou Hagiwara a propor que os nódulos
não-lexicais mais altos da árvore sintática estariam mais afetados ou menos acessíveis do
que os nódulos mais baixos.
30
A partir desses estudos, Friedmann e Grodzinsky (1997) desenvolveram a hipótese
da poda da árvore, que servirá de base para esta dissertação e será descrita na próxima
seção.
2.2.1 A hipótese da poda da árvore
O estudo de Friedmann e Grodzinsky (op.cit.) teve início com a análise da produção
verbal de uma paciente agramática nativa do hebraico. Procurando obter uma análise mais
detalhada do sistema flexional da paciente, os autores aplicaram uma série de testes
estruturais e os resultados revelaram uma dissociação na produção de itens flexionais dessa
paciente. A paciente apresentava problemas com as flexões de tempo, mas não com as de
concordância. Nos testes estruturais, a porcentagem de erro para as flexões de tempo ficou
em torno de 50%, enquanto para concordância ficou em torno de 2%.
Esse impedimento temporal, segundo Friedmann e Grodzinsky, não se restringiu
apenas à flexão de tempo. Outros fenômenos lingüísticos relacionados ao nódulo de TP,
como omissão de sujeitos, dificuldade com cópulas e problemas com a ordem das palavras
foram observados no discurso da paciente. Enquanto isso, as propriedades relacionadas ao
sistema de concordância permaneceram intactas. Além disso, os autores investigaram
outros fenômenos lingüísticos relacionados a partes mais altas da árvore sintática, como a
produção de palavras –QU e complementizadores. A paciente apresentou problemas com
ambos os fenômenos.
Os autores propõem uma abordagem sintática, assumindo um impedimento
mínimo. A distinção encontrada no sistema flexional da paciente foi analisada à luz da
hipótese desenvolvida por Pollock (1989) de que Tempo e Concordância são categorias
funcionais estruturalmente diferentes e cada um é núcleo de um nódulo funcional da árvore
31
sintática. A estrutura sugerida por Pollock oferece uma maneira de capturar a dissociação
entre concordância e tempo apresentada pela paciente. A partir dessa assunção, os autores
propuseram que nódulos mais altos da árvore estejam inacessíveis ao afásico agramático.
No caso da paciente estudada, o nódulo impedido seria TP e todos os nódulos acima deste
estariam inacessíveis à paciente (figura 2).
Figura 2.
CP
TP
T
T° NegP
AgrP
Agr'
Agr° VP
... ...
Os autores propuseram ainda que pacientes agramáticos podem apresentar uma
variação no que diz respeito ao impedimento dos elementos funcionais e que essa variação
seria resultado de níveis diferentes de severidade. Quanto mais severa a síndrome, mais
baixa será a poda da árvore. Segundo os autores, alguns pacientes podem apresentar
problemas apenas com o nódulo CP, mantendo o acesso normal a todos os nódulos abaixo
deste. Ainda não se encontrou na literatura pacientes que apresentassem problemas apenas
com Concordância.
32
Segundo Grodzinsky (2000b), a Hipótese da Poda da Árvore (doravante HPA)
apresentou novas previsões para o estudo de categorias funcionais em indivíduos
agramáticos, enumeradas a seguir:
1. O déficit de produção do agramático é fortemente e diretamente ligado às
variáveis gramaticais.
2. O déficit está restrito a alguns elementos funcionais acima de um determinado
nódulo da árvore sintática. O resto da representação continua intacta.
3. Uma descrição precisa do déficit deve ser desenvolvida em termos abstratos que
permitam uma variação gramatical trans-linguística.
Posteriormente, Friedmann (2000) analisou os tipos de erros que resultam do
impedimento temporal no indivíduo agramático em diferentes línguas. A forma verbal mais
utilizada por esses pacientes varia: o uso frequente do gerúndio e de formas nuas no inglês;
particípio no italiano (Miceli & Mazzucchi, 1990); infinitivo e gerúndio no português
(Novaes & Braga, in press). Para a autora, a única maneira de dar conta de todos os dados é
propor que os agramáticos usem como formas recorrentes as formas não-finitas, ou seja,
aquelas que não precisam ser checadas no nódulo TP.
Em Friedmann (2001), a autora testou um grupo de afásicos agramáticos do
hebraico e do árabe. A dissociação tempo/concordância também foi encontrada nesse
estudo. A porcentagem de erros ficou em torno de 41% para tempo em hebraico e 69% para
tempo em árabe. Neste mesmo estudo, Friedmann apresentou uma revisão da literatura que
aponta na mesma direção. Benedet et. al. (1998) testaram um grupo de agramáticos
espanhóis e acharam o mesmo tipo de padrão encontrado por Friedmann. Os pacientes
produziram tempo verbal correto em apenas 5.5% das ocorrências e produziram a
33
concordância verbo-sujeito corretamente em 63.8% das ocorrências. Pacientes nativos do
inglês apresentaram o mesmo padrão. A concordância foi produzida corretamente em 42%
das ocorrências, enquanto tempo foi produzido corretamente apenas em 15% das
ocorrências. O paciente nativo do francês investigado no estudo desenvolvido por
Nespoulous et al. (1988) também apresentou erros de tempo verbal no discurso espontâneo,
mas não apresentou erros de concordância.
Segundo Friedmann, esses resultados indicam que nem todas as categorias
funcionais estão impedidas na produção agramática. Além disso, servem como suporte para
a proposta de Pollock de que o sintagma flexional seja dividido em dois nódulos flexionais
e que esses nódulos estejam em uma ordem hierárquica na árvore sintática, com TP
dominando AgrP.
A proposta de Friedmann e Grodzinsky parte do seguinte pressuposto: o déficit de
produção dos pacientes agramáticos é seletivo e pode ser explicado através de uma
abordagem sintática unificada, a hipótese da poda da árvore. Segundo os autores, os
agramáticos estão impossibilitados de projetar a árvore sintática até o topo, o que causaria o
problema apresentado com fenômenos relacionados às partes mais altas da árvore.
Fenômenos como, flexões de tempo, relativas e sentenças encaixadas, palavras –QU,
perguntas tipo Sim/Não no inglês e verbos em posição 2 estão relacionados às partes mais
altas da árvore sintática e por isso estão ausentes do discurso agramático.
2.2.2 Reações à Hipótese da Poda da Árvore
A HPA foi a primeira hipótese estrutural que tentou englobar muitos dos fenômenos
lingüísticos presentes no discurso do agramático sob uma única explicação. A proposta de
que há uma dissociação entre AGR e T no discurso agramático foi investigada em
34
diferentes línguas. Em alguns estudos, o mesmo padrão de dissociação foi observado (De
Bleser e Luzzatti, 1994; Benedet et al., 1998; Nespoulous et al., 1988). Enquanto outros
estudos apontaram problemas com a HPA, como os que veremos a seguir.
Bastiaanse e van Zonneveld (1998) propuseram que a dificuldade dos agramáticos
do holândes (língua V2) com a produção de verbos flexionados corretamente não se origina
de um impedimento no nódulo temporal e sim de uma dificuldade com o movimento do
verbo para a posição 2. Essa dificuldade, em línguas que possuem tal movimento, causaria
problemas não só com a ordem das palavras mas, também com concordância.
O teste apresentado pelos autores aos pacientes agramáticos consistia na produção
de ora uma sentença matriz, ora de uma sentença encaixada (onde não há movimento do
verbo para posição 2). O verbo deveria ser recuperado pelo paciente e flexionado. Todas as
sentenças apresentadas aos pacientes estavam no tempo presente, portanto apenas erros de
concordância poderiam ser observados. Os resultados obtidos pareciam indicar que a
concordância estava mais impedida em orações principais do que em orações encaixadas.
Porém, alguns dos pacientes quase sempre falharam em recuperar o verbo. Se
considerarmos apenas os dados dos pacientes que conseguiram recuperar os verbos, a
produção da concordância se torna quase perfeita (7/7, 5/5, 6/8 e 4/5)
O estudo de Bastiaanse e van Zonneveld (op.cit.) não examinou tempo verbal e
falhou em confirmar a hipótese de que o problema dos afásicos agramáticos vem de uma
dificuldade com o movimento do verbo para a posição 2.
Halliwell (2000) investigou a produção lingüística de agramáticos do coreano
através de gravações de narrativas. O coreano, diferentemente do inglês, possui afixos
flexionais distintos em posições previsíveis. Os afixos se ligam ao verbo na seguinte
ordem: honorificação, tempo, aspecto, elemento final do verbo. Nem todo o verbo necessita
35
de todos os afixos, porém a presença do elemento final do verbo (VFE) que define o tipo de
sentença (e.g. declarativa, interrogativa, etc.) e o nível de educação (e.g. formal, educada,
etc.) é obrigatória.
Nenhum dos pacientes produziu os morfemas de honorificação e aspecto. Os
pacientes produziram apenas os morfemas de tempo e morfemas (VFE). Os erros
apresentados pelos pacientes envolviam substituição do morfema de tempo, ao invés de
omissão, apesar de existir a possibilidade da produção de um morfema zero em coreano.
A produção do morfema flexional (VFE) permaneceu intacta. Segundo o autor, esse
tipo de fenômeno não poderia ser explicado através da HPA, pois o morfema flexional VFE
do coreano seria checado na posição de complementizador. Os dados oriundos do coreano
fornecem suporte para a noção de que o impedimento não é o mesmo para todos os
morfemas gramaticais de uma língua. Porém, o autor não propõe uma abordagem diferente
daquela proposta por Friedmann, apenas limita-se a dizer que a HPA não dá conta dos
dados encontrados no coreano.
Wenzlaff & Clahsen (2002), ainda que, observando a mesma dissociação
encontrada por Friedmann e Grodzinsky no alemão, questionam a validade teórica da HPA.
Segundo os autores, Friedmann não considerou a proposta minimalista de eliminação de
AGR enquanto categoria funcional. Os autores propõem então uma abordagem alternativa
baseada nos traços formais envolvidos na produção dos morfemas de tempo. Eles defendem
a hipótese de que no agramatismo a categoria sintática T/INFL está especificada para modo
[± realis], e não especificada para tempo [± passado]. Para eles, o nódulo funcional TP está
acessível, porém os traços formais não estão especificados.
Arabatzi & Edwards (2002) discutem a proposta da HPA a partir de dados
encontrados na produção lingüística de sentenças negativas em um grupo de agramáticos
36
falantes do inglês. A proposta de Friedmann é de que em línguas do tipo inglês somente
formas nuas sejam produzidas. Entretanto, alguns participantes do estudo produziram
verbos flexionados, porém não corretamente, o que contradiz a proposta de Friedmann.
Segundo a proposta das autoras, o déficit na produção de verbos flexionados em sentenças
negativas pode ser explicado em termos de impedimento ou não funcionamento dos
processos e regras gramaticais envolvidos na produção lingüística.
37
3 METODOLOGIA
3.1 Tipo de estudo
A afasia agramática pode ser descrita como um conjunto de fenômenos patológicos
encontrados em indivíduos que sofreram algum tipo de dano físico na área de Broca e
adjacências. O agramatismo pode ser causado por um derrame, por hemorragia
intracraniana, por um tumor ou por outros agentes físicos. É uma síndrome multifacetada
no que diz respeito ao impedimento cognitivo; geralmente, mais de um domínio cognitivo é
afetado. Para alcançar uma definição precisa da síndrome, o pesquisador deve abstrair de
outros aspectos encontrados nos dados, e concentrar-se apenas no que é pertinente para a
teoria adotada. (c.f. Grodzinsky, 1990)
Desde sua descoberta, a afasia agramática tem sido investigada de diferentes
maneiras. Algumas vezes através de estudos de caso e outras através de estudos de grupo.
Segundo Grodzinsky, a única maneira de se estudar o "comportamento" lingüístico de
afásicos agramáticos é através de generalizações propostas após estudos de grupo. O
pesquisador deve olhar para um conjunto de comportamentos, descrevê-los seguindo uma
linha teórica e propôr uma teoria coerente que dê conta dos dados encontrados.
Por outro lado, o pesquisador também deve levar em conta os diferentes níveis de
severidade encontrados em pacientes agramáticos. Segundo Grodzinsky, esses diferentes
níveis resultam em uma variabilidade entre pacientes que são classificados como
agramáticos. Essa variabilidade só pode ser vencida se o agrupamento de pacientes para um
estudo fôr feito de maneira correta, e se o foco da descrição estiver nas similaridades e não,
nas diferenças.
38
Em oposição a aqueles que propõem estudos de grupo no agramatismo, existem
outros pesquisadores que defendem o estudo de caso no agramatismo por acreditarem que o
agramatismo, como síndrome, não existe.
Badecker e Caramazza (1985) propõem a abolição da categoria agramatismo,
baseados na variação encontrada nos padrões de desempenho dos pacientes classificados
como afásicos agramáticos. Para os autores, há uma arbitrariedade muito grande na seleção
de pacientes, classificados como agramáticos, em estudos de grupo. Além disso, segundo
eles, as caracterizações propostas por esses estudos mascaram a natureza dos déficits
individuais e também fornecem generalizações ilusórias. Eles defendem que os dados
provenientes de estudos de caso na afasia são relevantes para o propósito de se entender o
processamento lingüístico do indivíduo normal.
Esta dissertação vai ao encontro do que foi proposto em Novaes (in press), no que
diz respeito a questão apresentada acima. Novaes defendeu o uso de estudos de caso na
afasia, tendo em mente a riqueza da análise quando o desempenho de cada afásico é
observado separadamente. Além disso, as análises de desempenhos individuais nos
permitem testar hipóteses relacionadas a padrões específicos de dissociação dentro de um
grupo, cujo desempenho possa parecer homogêneo inicialmente. O autor ainda reconhece a
importância de estudos de grupo no agramatismo, porém ressalta que qualquer opção de
metodologia deve levar em conta que análises de casos individuais podem revelar
fenômenos que médias estatísticas não podem.
Nesta dissertação, optamos por fazer um estudo de caso, procurando selecionar um
paciente com um padrão bem definido de lesão e que apresentasse problemas de produção
e de compreensão. Esta escolha justifica-se pois estudos dessa natureza servem ao objetivo
geral desta dissertação: entender o sistema lingüístico do indivíduo normal através de
39
investigações feitas com indivíduos agramáticos, examinando o status da categoria
funcional Aspecto no sistema lingüístico desse indivíduo.
3.2 Seleção do paciente
A seleção de pacientes é extremamente importante em estudos de afasiologia
lingüística. Para dar confiabilidade aos dados de um estudo, é preciso haver acuidade na
seleção de pacientes, isso porque pacientes escolhidos por critérios diferentes mas
classificados sob a mesma síndrome não podem ter seus desempenhos agrupados nem
comparados (cf. Lima, 2003). No caso desta dissertação, a seleção foi feita seguindo três
critérios, quais sejam: o local da lesão, a classificação do tipo de afasia mediante teste e a
análise da produção lingüística.
3.2.1 Primeiro critério de seleção – local da lesão
O processo de seleção dos pacientes iniciou-se no ano de 2003 no ambulatório de
fonoaudiologia da UFRJ na Praia Vermelha. Inicialmente foram selecionados três pacientes
que haviam sido previamente diagnosticados pela equipe de fonoaudiologia do Instituto de
Neurologia Deolindo Couto – UFRJ, como sendo afásicos de Broca. Após essa primeira
seleção, procuramos definir a área lesionada em cada um dos pacientes através da
observação das tomografias computadorizadas. O paciente deveria apresentar lesão no lobo
frontal esquerdo, na área de Broca e/ou adjacências. Essa escolha justifica-se pois supomos,
assim como Grodzinsky (2000b), que a linguagem está localizada em áreas específicas do
cérebro e que, talvez, a área de Broca seja responsável por alguns dos aspectos da sintaxe.
Além disso, alguns estudos com neuroimagens têm evidenciado o envolvimento da área de
Broca na geração e processamento de verbos (Martin et al., 1995; Perani et al., 1999).
40
Dos três pacientes selecionados, um foi descartado, pois não foi possível verificar o
local lesionado tendo em vista a ausência de tomografia computadorizada. Os outros dois
pacientes foram submetidos a um teste que mede habilidades lingüísticas e não-lingüísticas
desenvolvido por Goodglass & Kaplan (1972), com o objetivo de verificar o tipo de afasia
apresentada por esses pacientes.
3.2.2 Segundo critério de seleção – aplicação do Teste de Boston
O Teste de Boston, Boston Diagnostic Examination of Aphasia (Goodglass &
Kaplan, 1972) foi proposto a fim de diagnosticar a presence e o tipo de síndrome afásica de
um paciente. O diagnóstico é atingido através da observação de vários componentes da
linguagem do paciente, segundo os parâmetros propostos nesse teste, que são: linha
melódica, tamanho de frase, agilidade articulatória, forma gramatical, parafasias – troca ou
uso errôneo de fonemas em uma palavra, acesso lexical e compreensão auditiva.
Os parâmetros são analisados a partir de uma entrevista de dez minutos conduzida
com o afásico. Nessa entrevista, o entrevistador deve tentar manter uma conversação
normal com o paciente, fazendo perguntas e eliciando respostas completas. Ao final da
conversa, o entrevistador deve apresentar uma gravura ao paciente e pedir a ele que
descreva de maneira mais completa possível. Após essa entrevista, a fala do paciente é
analisada e torna-se possível propor uma classificação.
Neste momento da seleção, um outro paciente foi descartado, pois não se mostrou
cooperativo, recusando-se a responder as perguntas. A paciente E., selecionada como
informante deste estudo, foi classificada como afásica de Broca segundo os parâmetros
propostos no Teste de Boston. No entanto, ainda era necessário verificar se a paciente E.
podia ser classificada como agramática.
41
3.2.3 Terceiro critério de seleção – classificação de agramatismo
Um afásico de Broca pode ou não apresentar a síndrome agramatismo. Para
classificarmos um paciente como agramático, é necessário analisar a produção lingüística
do paciente, que deve apresentar omissões de elementos flexionais, redução no tamanho das
sentenças, ou seja, uma fala quase telegráfica. Além disso, estudos como os de Caramazza e
Zurif (1976) e Grodzinsky (1986) mostraram que a compreensão agramática não está
intacta. Estruturas sintáticas, como sentenças passivas e relativas de objeto, seriam
problemáticas para o individuo agramático.
A produção lingüística da paciente E. foi analisada e ela foi submetida a um teste
piloto de compreensão de sentenças passivas. A análise da fala e o desempenho no teste
piloto nos levaram a diagnosticá-las como agramática.
É importante ressaltar que a paciente selecionada manteve a capacidade de leitura
preservada, o que foi de grande valia na realização de outros testes.
Apresentaremos a seguir um trecho de uma entrevista gravada com a paciente E., a
fim de exemplificar alguns dos itens que servem como indicação da síndrome agramática.
Legenda: Fono: fonoaudióloga E.: paciente
Fono: Dona E., me fala como foi o seu final de semana. E.: É..., sábado, é... não quis minha casa sábado. Aí depois... à noite... choveu. Tomei banho, depois eu fui ver a cozinha. A laje....molhado, molhado! Fono: Mas a laje estava molhada por que? Choveu, Dona E.? E.: Acho que é..., assim é, é, é....vasilho é o que mais, vasi...ladrilho. Fono: Mas o que tinha no ladrilho, Dona E.? E.: É...aí telefonei Ricardo. Fono: Mas, espera aí, a senhora estava falando do ladrilho. O que tinha no ladrilho? E,: Acho que é...choveu. Acho que sim. Fono: Mas o ladrilho estava o que? Estava molhado? E.: Molhado! Muito molhado! Muito molhado! Fono: Humm! E.: É...telefonei Ricardo.
42
Fono: Aí telefonou pro Ricardo? E.: É....Ricardo, Ricardo. Vem,...vem cá! “Mamãe é o que?” (fala do filho Ricardo). É....a laje, a laje...não sei falar ainda, tá? (dirigindo-se à terapeuta). A laje, é .... molhada, muito molhada, ladrilho. Assim, assim, paredes, xi (mímicas e sons) vem Ricardo! Vem Ricardo! “Eu vou mãe, eu vou” (fala do filho) vum, ele chegou, é ele coitado! Aí, pronto Ricardo. Aí ele....pedreiro, outro pedreiro, é... Fono: É o que? Pedreiro? E.: É...pedreiro foi lá, é...minha casa não é...a outra. Conjuntos sabe, né? Fono: O que foi Dona E., não entendi. O que aconteceu na sua casa? E.: Ele foi, foi....a laje. Fono: O pedreiro foi olhar a laje? E.: É...tá bom Ricardo, tá bom. É....a vizinha. Aí, ó....ele foi, a outra vizinha Fernanda também. Ih! Meu Deus! Aí...pronto.
3.3 Testes
Esta dissertação tem dois principais objetivos. Primeiro, investigar a expressão
lingüística de Aspecto em um indivíduo afásico agramático nativo do português do Brasil.
Segundo, discutir a existência ou não de uma categoria funcional Aspecto na representação
sintática proposta para o indivíduo normal. A fim de verificarmos esses objetivos,
analisamos a fala espontânea da paciente E. e aplicamos dois tipos de testes comumente
utilizados em estudos de afasiologia lingüística: teste oral de preenchimento de lacuna e o
teste escrito de preenchimento de lacuna. Ambos os testes são considerados testes de
produção.
Segundo Tesak (1992), a linguagem espontânea do agramático merece atenção
especial, pois é de grande valia na descoberta de impedimentos subjacentes. Além disso,
oferece uma visão realista dos aspectos lingüísticos que estão realmente afetados no
agramatismo. Por essa razão, analisamos a fala espontânea da paciente em duas situações
de entrevista previamente conduzidas por sua fonoaudióloga. Os dados da fala espontânea
foram obtidos através das transcrições feitas pela fonoaudióloga da paciente E., de duas
sessões diferentes de entrevista com a paciente. A primeira foi feita em junho do ano de
43
2003 e tinha como objetivo fazer com que a paciente descrevesse o trajeto percorrido por
ela desde sua casa até o ambulatório de fonoaudiologia. A segunda foi gravada em agosto
do mesmo ano e o contexto era a descrição do que havia acontecido no fim de semana da
paciente.
O primeiro teste aplicado na paciente é uma versão modificada e adaptada de outros
testes (e.g.Haarman e Kolk, 1992; Friedmann e Grodzinsky 1997, Bastiaanse e Van
Zoneveld, 1998). É importante ressaltar que testes como esses geralmente apresentam uma
carga processual grande para o paciente, resultando muitas vezes em omissões de fala. Por
esse motivo, preparamos o teste escrito de preenchimento de lacuna que tem uma carga
processual menor para investigar se os resultados obtidos no primeiro teste seriam reflexo
dessa carga ou não. Segundo Tesak (op.cit.), os sintomas apresentados por indivíduos
agramáticos variam entre os testes, pois alguns testes apresentam uma demanda maior para
o sistema processual lingüístico, envolvendo, em alguns casos, a memória de trabalho.
O fenômeno lingüístico investigado, nesta dissertação, foi o aspecto verbal, em
particular os traços aspectuais perfectivo e imperfectivo. Esses traços são encontrados em
dois tempos verbais no português do Brasil, respectivamente: o pretérito perfeito do
indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo. Segundo Costa (1997): “O pretérito
imperfeito representa aquilo que se pode chamar o presente do passado, no sentido de que
configura, em relação a fatos do passado, a mesma continuidade ou interação e, por vezes,
habitualidade que o presente tem em relação ao momento de enunciação.” Neste trabalho
investigaremos o imperfeito com valor de [+habitual], o valor [+durativo], expresso muitas
vezes pela perífrase verbal estar (pretérito imperfeito) + gerúndio no português do Brasil,
não será tratado aqui.
44
A escolha desse fenômeno lingüístico partiu de análises anteriores do discurso de
dois pacientes agramáticos nativos do português do Brasil (Novaes e Braga, in press).
Nesse estudo, os enunciados produzidos por esses agramáticos em situação de entrevista
foram transcritos e analisados em função das violações de tempo e aspecto verbal e de
concordância verbal (número/pessoa). Os dados neuropsicológicos encontrados nesse
estudo reforçam a idéia proposta para os indivíduos normais de que os diferentes elementos
da flexão estão representados em nódulos separados e não como um conjunto de traços
pertencentes a um mesmo nódulo. Além disso, a produção do aspecto verbal parece estar
afetada de alguma maneira no sistema flexional de um dos pacientes que encontrou muita
dificuldade na produção de pretérito imperfeito, substituindo esse tempo verbal pelo
presente do indicativo em todas as ocorrências. O outro paciente não apresentou a mesma
dificuldade com o pretérito imperfeito. Esta dissociação serviu como indicador para o
desenvolvimento dos testes para a produção de pretérito perfeito e pretérito imperfeito que
foram aplicados na paciente E., informante deste estudo.
3.3.1 Teste oral de preenchimento de lacuna
Diferentes técnicas têm sido usadas na literatura com o objetivo de analisar os traços
lingüísticos da produção agramática. Segundo Goodglass et al. (1993), essas técnicas têm
diferentes objetivos e diferem quanto à complexidade computacional. Os autores citam
como exemplo: conversação livre, eliciação de estórias através de gravuras, narrativas
baseadas em algum conto conhecido, descrições de eventos em uma sentença, repetição de
sentenças e a técnica de CLOZE (preenchimento de lacunas). A técnica de CLOZE foi
inicialmente proposta por Haarman e Kolk (1992) e teve como objetivo minimizar a
45
possibilidade do desenvolvimento de alguma estratégia para evitar a produção de certos
itens lingüísticos por parte dos pacientes.
Este primeiro teste foi desenvolvido a partir da proposta de Haarman e Kolk
(op.cit.) e da análise de outros testes posteriores ao deles. Nesse teste, apresentamos dezoito
gravuras ao paciente com o objetivo de eliciar dois tipos de tempos de verbos: o pretérito
perfeito e o imperfeito. A eliciação foi feita da seguinte maneira: a gravura era apresentada
ao paciente e o entrevistador lia a sentença descrevendo a gravura, porém omitindo o verbo.
Depois era pedido ao paciente que completasse a sentença com o verbo.
Antes de aplicar o teste, o entrevistador faz uma introdução ao teste apresentando
duas gravuras, uma de um menino e outra de um homem, e diz ao paciente que os dois são
a mesma pessoa em momentos diferentes de sua vida. A introdução é feita com duas
gravuras de “Mário”, desempenhando a mesma ação, quando criança e já adulto. Por
exemplo, o entrevistador mostra a gravura onde temos Mário criança com a sua mãe (anexo
1). A mãe está falando alguma coisa e ele está parado ouvindo. O entrevistador diz ao
paciente: “Quando criança, Mário ouvia a sua mãe.” Após essa gravura, o entrevistador
mostra outra gravura de Mário já adulto ouvindo música e diz: “Ontem, ele ouviu música”.
Após a introdução, o entrevistador descreve cada uma das outras 18 gravuras para o
paciente, sempre omitindo o verbo e pedindo para o paciente que ele complete a sentença.
As sentenças eram repetidas um ou duas vezes quando o paciente não apresentava resposta
alguma.
Os verbos usados nas sentenças eram constituídos pela estrutura temática <agente,
tema> com apenas um argumento ou dois, o interno e um externo. O estudo de Thompson
et al. (1997) demonstrou que o número de argumentos de um verbo e a opção de realizá-los
ou não influencia na recuperação dos verbos em situações de teste com pacientes afásicos.
46
As sentenças trabalhadas com as suas respectivas gravuras foram as seguintes:
EXEMPLO: Quando criança, Mario ouvia sua mãe./Ontem, ele ouviu música.
1. Quando criança, Mário almoçava ao meio dia.
2. Ontem, ele almoçou às três.
3. Quando criança, Mario tomava banho de manhã..
4. Ontem, ele tomou banho à noite.
5. Quando criança, Mario cantava na igreja.
6. Ontem, ele cantou no banheiro.
7. Quando criança, Mario comia muita bala.
8. Ontem, ele comeu um sanduíche.
9. Quando criança, Mario assistia desenho.
10. Ontem, ele assistiu o jornal.
11. Quando criança, Mario lia livros infantis.
12. Ontem, ele leu uma revista.
13. Quando criança, Mario falava muito.
14. Ontem, ele falou com seu pai.
15. Quando criança, Mario dormia muito.
16. Ontem, ele dormiu no sofá.
17. Quando criança, Mario bebia coca-cola.
18. Ontem, ele bebeu cerveja.
3.3.2 Teste escrito de preenchimento de lacuna
47
Este segundo teste foi proposto tendo em vista a dificuldade apresentada por
pacientes agramáticos com testes tipo CLOZE como o que foi descrito na seção anterior.
Nesse teste, vinte sentenças foram apresentadas ao paciente, sendo que as dez primeiras
eram comuns a ambos os testes. As sentenças eram apresentadas na forma escrita e havia
um espaço em branco no qual o paciente deveria utilizar um dos três pedaços de papel que
recebia. Os três pedaços de papel continham um verbo em três diferentes tempos verbais:
presente do indicativo, pretérito perfeito do indicativo e pretérito imperfeito do indicativo.
Os verbos eram colocados na mesa de forma aleatória e o paciente deveria escolher aquele
que completasse a sentença corretamente. Consideramos apenas a resposta final, pois às
vezes o paciente se confundia e decidia mudar a sua escolha.
As primeiras dez sentenças são comuns ao primeiro teste e as outras a seguir
completam o conjunto de vinte sentenças. O verbo que se encontra sublinhado estava
omitido da sentença e os verbos em itálico entre parênteses formam o conjunto de verbos
apresentados ao paciente (cf. anexo 2):
1. Quando criança, Mário almoçava ao meio dia. (almoça, almoçou, almoçava)
2. Ontem, ele almoçou às três. (almoça, almoçou, almoçava)
3. Quando criança, Mario tomava banho de manhã. (toma, tomou, tomava)
4. Ontem, ele tomou banho à noite. (toma, tomou, tomava)
5. Quando criança, Mario cantava na igreja. (canta, cantou, cantava)
6. Ontem, ele cantou no banheiro. (canta, cantou, cantava)
7. Quando criança, Mario comia muita bala. (come, comeu, comia)
8. Ontem, ele comeu um sanduíche. (come, comeu, comia)
9. Quando criança, Mario assistia desenho. (assiste, assistiu, assistia)
48
10. Ontem, ele assistiu o jornal. (assiste, assistiu, assistia)
11. Quando criança, Mario corria muito. (corre, correu, corria)
12. Ontem, ele correu no parque. (corre, correu, corria)
13. Quando criança, Mario desenhava bonecos. (desenha, desenhou, desenhava)
14. Ontem, ele desenhou uma casa. (desenha, desenhou, desenhava)
15. Quando criança, Mario lavava seus brinquedos. (lava, lavou, lavava)
16. Ontem, ele lavou os pratos. (lava, lavou, lavava)
17. Quando criança, Mario ia ao parque. (vai, foi, ia)
18. Ontem, ele foi ao trabalho. (vai, foi, ia)
19. Quando criança, Mario contava muitas histórias.(conta, contou, contava)
20. Ontem, ele contou uma piada. (conta, contou, contava)
Nesse teste, as sentenças foram apresentadas de modo aleatório para que o paciente
não desenvolvesse nenhum tipo de estratégia.
Para testar a validade e a aplicabilidade dos testes, aplicamos os testes a um grupo
de controle constituído de duas pessoas neurologicamente normais, a saber: uma mulher, 38
anos, com ensino médio completo e um homem, 26 anos, com nível superior de
escolaridade. Estas duas pessoas obtiveram 100% de acerto em ambos os testes.
49
4 RESULTADOS
4.1. Desempenho na fala espontânea
Os dados foram analisados em função dos tempos verbais produzidos pelo paciente.
Os enunciados produzidos pelo paciente E. refletem a dificuldade dos agramáticos com
verbos. O verbo é omitido na maioria dos contextos e a fala fica restrita a alguns tempos
verbais, tais como presente simples do indicativo, pretérito perfeito e a locução verbal ir +
infinitivo usada no português do Brasil para expressar futuro. Além disso, a paciente usa o
infinitivo em alguns contextos, como no exemplo 1 abaixo:
(1) Fono: Como é que a senhora vem pra cá?
E: vem é...é...Jardim Primavera....é....minha casa....pegar o ônibus...
Em relação ao fenômeno lingüístico que está sendo investigado nesta dissertação, o
uso do pretérito perfeito e do pretérito imperfeito, a paciente produz o pretérito perfeito
com facilidade, conforme podemos notar no exemplo 2:
(2) Fono: Como foi o seu final de semana?
E: É...sábado...é...não quis minha casa sábado. Aí depois... à noite... choveu. Tomei
banho, depois eu fui ver a cozinha. A laje.... molhado, molhado!
Houve apenas dois momentos na entrevista da paciente em que ela poderia ter
produzido um verbo no pretérito imperfeito, porém ela não o fez, o que mostra certa
dificuldade na produção de enunciados com verbos nesse tempo verbal. A paciente prefere
50
omitir o verbo, como no exemplo 2 onde ela poderia ter usado o verbo “estava” na sentença
em que ela descreve que a laje estava molhada.
A observação da fala espontânea da paciente sugere que há algum tipo de
dissociação entre os traços imperfectivo e perfectivo, uma vez que não há produção de
verbos no imperfeito.
4.2 Desempenho da paciente no teste oral de preenchimento de lacuna
Neste teste, a paciente deveria fornecer corretamente o verbo que estava ausente das
sentenças produzidas pelo entrevistador. O desempenho da paciente não foi o mesmo
demonstrado em situações de entrevista como aquelas descritas no item anterior. Foram
apresentadas dezoito sentenças à paciente, sendo que nove deveriam ser produzidas no
pretérito perfeito e nove no imperfeito, conforme descrito no item 3.3.1. Dentre as nove
sentenças que deveriam ser produzidas no pretérito perfeito, a paciente produziu
corretamente apenas duas delas. (exemplos 4 e 5)
(4) Sentença: Ontem, Mário dormiu no sofá.
A paciente produziu o verbo “sentou” e depois “dormiu”
(5) Sentença: Ontem, Mário bebeu cerveja.
A paciente produziu o verbo corretamente “bebeu”
Nas sete sentenças restantes, a paciente utilizou diferentes formas verbais quando
confrontada com a produção do verbo no pretérito perfeito. Conforme pode ser notado no
quadro a seguir:
51
Verbos Uso do Infinitivo
Ir + infinitivo (futuro)
Sem resposta
Almoçou x Tomou x Cantou x Comeu x Viu x Leu x Falou x
Conforme descrito no quadro, a paciente não apresentou resposta alguma em três
ocorrências. Ela produziu o verbo no infinitivo em duas ocorrências (exemplo 6), o que nos
remete ao fato discutido no item 4.1 de que a paciente utiliza o infinitivo também no
discurso espontâneo. Em outras duas ocorrências, a paciente produziu verbos na forma ir +
infinitivo que expressa futuro (exemplo 7)
(6) Ontem, Mário almoçou às três.
A paciente produziu “almoçar”
(7) Ontem, Mário tomou banho à noite.
A paciente produziu “vai tomar”
Das outras nove sentenças do teste onde o pretérito imperfeito era pedido, nenhuma
foi produzida corretamente. Apresentaremos a seguir um quadro com as formas verbais
utilizadas pela paciente quando confrontada com a produção do pretérito imperfeito.
52
Verbos Infinitivo Ir + infinitivo
Presente simples
Gerúndio sem auxiliar
Sem resposta
Almoçava x Tomava x Cantava x Falava x Comia X Lia x Via x Dormia x Bebia x
Como podemos notar no quadro acima, a forma mais usada pela paciente foi o
verbo na forma infinitiva, isso aconteceu em cinco sentenças (exemplo 8). As formas
verbais utilizadas pela paciente em substituição ao pretérito perfeito e imperfeito foram
diferentes. A paciente utilizou o presente do indicativo em uma ocorrência (exemplo 9);
forma essa, que não havia sido utilizada anteriormente. Em outra ocorrência, ela usou a
forma verbal no gerúndio sem auxiliar (exemplo 10). Em apenas uma das ocorrências, a
paciente não produziu verbo algum.
(8) Quando criança, Mário cantava na igreja.
A paciente produziu “cantar”
(9) Quando criança, Mário tomava banho de manhã.
A paciente produziu “toma”
(10) Quando criança, Mário falava muito.
A paciente produziu “falando”
53
4.3 Desempenho da paciente no teste escrito de preenchimento de lacuna
Este teste foi preparado com o objetivo de testar se a complexidade computacional
do primeiro teste influenciaria nos resultados obtidos ou não. Nesse teste, a paciente teve
mais tempo para pensar, além de manusear as sentenças na forma escrita e ter as opções de
verbo para que ela escolhesse.
Nas dez sentenças em que o pretérito perfeito deveria ser utilizado, a paciente
escolheu o verbo corretamente em oito ocorrências. Nas duas sentenças restantes, ela
escolheu o pretérito imperfeito ao invés do perfeito.
Nas outras dez sentenças, em que o pretérito imperfeito deveria ser utilizado, a
paciente escolheu o verbo corretamente em quatro ocorrências. As seis restantes foram
preenchidas com o verbo no pretérito perfeito.
Assim como no primeiro teste, a paciente apresentou mais dificuldade com a
produção do verbo no pretérito imperfeito do que no perfeito.
4.4 Semelhanças e diferenças entre a fala espontânea e os testes
A paciente apresentou melhor desempenho na produção de verbos no pretérito
perfeito na fala espontânea do que no primeiro teste. Já em relação ao pretérito imperfeito,
a paciente manteve a mesma dificuldade apresentada na fala espontânea nos testes. Esses
fatos podem indicar que a dificuldade apresentada pela paciente com a produção do
pretérito perfeito no primeiro teste pode ser resultado da carga processual do teste.
O segundo teste, por ter um caráter mais offline do que o primeiro, obteve resultados
mais compatíveis com os dados da fala espontânea. A dissociação encontrada na fala
espontânea da paciente entre a produção de pretérito perfeito e imperfeito se manteve nesse
teste. A paciente acertou mais ocorrências no pretérito perfeito do que no imperfeito. O fato
54
de a paciente não ter escolhido, em nenhum momento, a opção presente do indicativo para
completar as sentenças parece indicar uma preservação do conhecimento de Tempo. A
paciente parece manter a noção de tempo passado, encontrando dificuldade apenas com a
produção dos traços imperfectivos.
55
5 DISCUSSÃO Retomando os resultados descritos na seção anterior, notamos uma dissociação na
produção de verbos no pretérito perfeito e no imperfeito. A produção do pretérito
imperfeito mostrou-se mais problemática para a paciente do que a produção do pretérito
perfeito.
A forma mais utilizada pela paciente quando ela tinha dificuldade com algum tempo
verbal foi o infinitivo. Esta forma foi também a mais utilizada por um outro paciente
investigado em um estudo anterior (Novaes e Braga, in press). Os dados deste estudo foram
obtidos somente através de entrevistas, não tendo o paciente se submetido a nenhum tipo de
teste.
A produção do infinitivo em substituição a outras formas está de acordo com o que
propõe Friedmann (2000). Segundo essa autora, o infinitivo é a forma preferida pelos
afásicos de língua inglesa devido ao fato de que verbos nessa forma não necessitam se
mover para nódulos mais altos para serem checados.
É preciso salientar, no entanto, que no inglês o infinitivo é uma forma nua, ao
contrário do que ocorre no português. Entretanto, se considerarmos, como Chomsky (1995)
faz, que os verbos já vêm flexionados do léxico, o fato de ele possuir um afixo ou não
parece irrelevante. De todo modo, parece razoável pensar que o traço de finitude deve ser
checado e isso ocorreria na camada flexional, mais precisamente em Tempo. Acontece que,
segundo a hipótese original da poda da árvore (Friedmann e Grodzinsky, 1997), Tempo
estaria ausente da arvore sintática. A questão que permaneceria então é onde esse traço
seria checado.
Segundo os nossos dados, mostrados na seção anterior, o problema da paciente
parece ser em relação a Aspecto, mais do que com Tempo. Neste caso, nossos dados seriam
56
uma evidência a favor da idéia de que Tempo, onde o traço de finitude seria checado,
estaria preservado e dominaria imediatamente VP, como propõem Chomsky (1995) e
Belletti (1990).
Segundo ainda a hipótese da poda da árvore, tal como formulada por Friedmann e
Grodzinsky, os dois nódulos da camada flexional seriam Tempo e Concordância. Se
considerarmos que Tempo esteja preservado, como propomos no parágrafo anterior, o
segundo nódulo seria representado por Concordância. Isto estaria de acordo com os nossos
dados, tendo em vista que a paciente não apresenta problema com a Concordância entre
sujeito e verbo. No entanto, segundo o proposto em Chomsky (1995), não existiria um
nódulo específico para Concordância, uma vez que o traço de Concordância não tem
interpretabilidade semântica e este seria um requisito para a existência de um nódulo na
árvore sintática (Cinque, 1999). A questão é então saber que traço ocuparia o segundo
nódulo da camada flexional.
Nossos dados apontam uma dificuldade da paciente em produzir o pretérito
imperfeito, em oposição ao pretérito perfeito, indicando uma dificuldade com noções
aspectuais. Sendo assim, poderíamos propor que, ao invés de um nódulo de Concordância,
teríamos um nódulo de Aspecto, que na nossa paciente estaria podado. Esta idéia está em
acordo com a hipótese de que os agramáticos têm problemas com traços que sejam
semanticamente motivados (Novaes 2004).
A idéia de que Aspecto seja um dos nódulos da camada flexional é compatível com
o proposto em Koopman e Sportiche (1991) e Bok-Benemma (2001). É preciso frisar, no
entanto, que estes trabalhos não têm nenhuma motivação neuropsicológica.
Considerando a existência de minimamente dois nódulos na camada flexional
(como proposto em Pollock (1989)), onde, na camada de Tempo, conforme dito
57
anteriormente, seria checado o traço de finitude, restaria a questão de onde seria checado o
traço de tempo propriamente dito. A hipótese que estamos propondo é que a camada
flexional seja constituída de pelo menos três nódulos. No nódulo dominando imediatamente
o sintagma verbal, o traço de finitude seria checado. O verbo, sendo finito, se moveria em
direção a uma segunda camada flexional, onde seu tempo seria checado – passado, presente
ou futuro, e só então o verbo se moveria para a camada mais acima, onde o traço aspectual
seria checado.
Segundo essa perspectiva, a nossa paciente teria a árvore podada entre o segundo
nódulo de Tempo e o nódulo Aspectual, conforme a apresentação abaixo.
ASPP
Camada Aspectual ASP’
ASP TP
T’
T TP
T’
T
Camada Tempo
Camada Finitude
VP
É interessante notar que a paciente E, analisada neste trabalho, e os paciente SS e
OL, analisados em Novaes e Braga (in press) não produzem o verbo auxiliar nos contextos
que demandam um auxiliar e um verbo no gerúndio. Isto parece ser conseqüência do fato
de os auxiliares ocuparem um nódulo na parte superior da árvore, provavelmente o nódulo
aspectual. Isto pode ser evidenciado pelo fato de em línguas como o francês e inglês, ser e
estar serem realizados por uma única palavra, être e to be, em francês e inglês,
respectivamente.
58
Resta explicar ainda a razão da preferência pelo aspecto perfectivo em relação ao
imperfectivo. A idéia é que determinados traços de aspecto, são cognitivamente mais
complexos do que outros, o que explicaria uma maior lentidão no processamento de
sentenças contendo verbos imperfectivos, em indivíduos normais (Perlak & Jarema, 2001).
Segundo essa idéia, o traço imperfectivo seria mais complexo do que o perfectivo.
Considerando que o nódulo contendo o traço aspectual seja especificado como mais
ou menos perfectivo, a hipótese da poda da árvore seria reinterpretada da seguinte maneira:
um nódulo podado seria aquele que torna inacessível o traço mais complexo ou marcado,
neste caso o imperfectivo. Esta idéia está de acordo com o proposto em Cinque (1999), para
quem cada projeção está especificada com um valor default e um valor marcado.
Resumindo: o verbo seria checado em três etapas. Na primeira etapa, seria checado
o traço de finitude. Sendo o verbo finito, o tempo verbal seria checado no nódulo acima,
para, em seguida, ser checado o traço aspectual.
Dentro do espírito que os nódulos são especificados de modo binário, por exemplo
[± finito] ou [± passado], restaria ainda a questão de saber como seriam as especificações
da camada intermediária. Talvez essa camada seja formada de várias subcamadas, onde
num primeiro momento teríamos algo como [± presente]. Sendo o verbo especificado para
[- presente], por exemplo, ele teria que ter os seus traços checados na camada mais acima,
que estaria especificada para [± passado].
Assim como na proposta original de Friedmann e Grodzinsky, nesta versão
modificada da hipótese da poda da árvore, podemos pensar que os afásicos podem ter a
árvore podada em diferentes pontos: entre Tempo (finitude) e Tempo(±presente), entre este
último e Aspecto, e entre Aspecto e CP, dependendo do grau de severidade da lesão,
conforme a representação a seguir.
59
ASPP
ASP’
ASP TP
T’
T TP
T’
T VP
V’
CP
C’
C
Uma vantagem das modificações propostas acima é que ela contempla a idéia da
inexistência de Concordância como um nódulo funcional e, além disso, contempla a
proposta de Pollock (1989) da existência de pelo menos dois nódulos na camada flexional,
de modo a dar conta dos dados do francês, conforme já salientado na seção 1.3. Excetuando
a crítica de Halliwell (2000) à hipótese da poda da árvore, tendo em vista a expressão de
morfemas do coreano, que, segundo o autor, seriam checados na posição de
complementizador, todas as críticas expressas nos trabalhos apresentados como reações à
hipótese da poda da árvore podem ser acomodadas nesta nova versão.
Para uma definição mais clara da existência de um nódulo aspectual, mais testes
devem ser aplicados e mais indivíduos devem ser testados. Além disso, a investigação de
outros traços flexionais, como Modo, por exemplo, faz-se necessária. Isso é o que
pretendemos desenvolver no doutorado.
60
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho deteve-se na pesquisa sobre o déficit de produção de verbos por parte
de uma paciente considerada afásica agramática. Foi verificado o desempenho da paciente
em testes específicos de produção e os resultados obtidos foram relacionados à hipótese da
poda da árvore proposta por Friedmann e Grodzinsky (1997). Essa hipótese é uma proposta
de explicação para o déficit de produção no agramatismo baseada na idéia de que nódulos
mais altos da árvore sintática estão inacessíveis ao afásico agramático.
Os objetivos deste estudo, conforme explicitados na introdução, eram: investigar a
expressão lingüística de Aspecto em um indivíduo afásico agramático nativo do português
do Brasil e discutir o status de ASP como uma categoria funcional, à luz da hipótese da
poda da árvore, segundo a qual os indivíduos agramáticos têm dificuldade de acessar
nódulos funcionais mais altos na árvore sintática.
Para cumprir o objetivo desta pesquisa, selecionamos uma paciente afásica
agramática segundo os critérios estabelecidos na metodologia, a saber: local da lesão,
aplicação do teste de Boston e classificação do agramatismo.
A despeito da discussão sobre a necessidade de estudos de grupo (cf. Grodzinsky,
1991), por um lado, e a defesa de estudos individuais em afasia agramática (Badecker e
Caramazza, 1985), por outro, acreditamos ter feito a escolha correta para fins desta
pesquisa. Desse modo, optamos por estudar o desempenho em tarefas de produção de uma
única paciente relacionando os dados obtidos à hipótese da poda da árvore.
Em relação aos testes, procuramos desenvolver e aplicar dois tipos de teste visando
a produção de verbos nos tempos verbais pretérito perfeito e pretérito imperfeito do
indicativo. Conforme pudemos observar, os resultados apontaram na direção de uma
dissociação entre os tempos verbais. Enquanto o pretérito perfeito foi produzido pela nossa
61
paciente sem maiores dificuldades, o imperfeito não foi produzido em situações de
entrevista e produzido com dificuldade em situações de teste.
Os resultados foram analisados à luz da hipótese da poda da arvore e interpretados
como evidência para um espichamento do sintagma flexional e por conseqüência da árvore
sintática.
Como vimos neste estudo, o agramatismo foi caracterizado por muito tempo como
uma síndrome que afetava somente a produção. A partir do estudo de Caramazza e Zurif
(1976), a compreensão agramática passou a ser o foco dos estudos em afasiologia
lingüística e o numero de estudos desse fenômeno chegou até a ultrapassar o número de
estudos de produção. Portanto, apesar de a produção afetada ser a característica mais
proeminente do agramatismo, estudos nessa área são poucos e as hipóteses propostas para
os problemas também. (cf. Lima, 2003)
Apesar de o agramtismo ter sido definido como uma síndrome que afeta todos os
elementos funcionais, estudos têm mostrado que nem todos esses elementos estão ausentes
da produção lingüística agramática. Porém, o problema que os agramáticos apresentam com
a produção de verbos, em particular com o morfema de tempo, tem sido quase um consenso
na literatura (Hagiwara, 1995; Friedmann e Grodzinsky, 1997; De Roo, 2000; Bastiaanse et
al., 1998; Benedet et al., 1998, entre outros).
Uma das hipóteses, de natureza estrutural, que tentou dar conta desse problema com
o morfema de tempo foi aquela desenvolvida por Friedmann e Grodzinsky (op.cit.),
descrita na seção 2.2.1 desta dissertação. Com a hipótese da poda da árvore, os autores
assumem que o nódulo de Tempo está inacessível ao paciente agramático. Essa
inacessibilidade pode ser entendida como uma não-especificação do nódulo ou uma
omissão do nódulo da representação sintática.
62
A hipótese da poda da árvore foi importante para os estudos de afasiologia
lingüística no que diz respeito à descrição do agramatismo como uma síndrome que afetava
todos os elementos funcionais de modo uniforme. O estudo desenvolvido por Friedmann e
Grodzinsky mostrou que Tempo parecia estar dissociado de Concordância na produção
agramática e esse fato serviu para reforçar a proposta de Pollock (op.cit.), que TP estava
dissociado de AgrP na estrutura sintática proposta para a gramática do indivíduo normal.
Vale dizer ainda que mais pesquisas com a finalidade de verificar o status de ASP
como categoria funcional necessitam ser realizadas. Além disso, é preciso investigar a
produção de outros traços aspectuais no agramatismo, o que pode vir a se tornar um
possível tema para um tese de doutorado.
63
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67
ANEXO 1 Quatro gravuras pertencentes ao primeiro teste: Exemplo: Quando criança, Mário ouviu sua mãe Ontem, ele ouviu música Quando criança, Mário almoçava ao meio dia. Ontem, ele almoçou às três
68
69
70
71 71
72
ANEXO 2 Exemplo do formato das sentenças conforme apresentadas à paciente no segundo teste.
Quando criança, Mário ......... banho de manhã. tomava toma tomou
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BRAGA, Marcela Magalhães. O traço aspectual no agramatismo: reformulando a hipótese da poda da árvore. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2004. 91 fls. Dissertação de Mestrado em Lingüística.
RESUMO Esta dissertação tem por objetivo investigar o status da categoria funcional Aspecto
na produção lingüística de um individuo agramático.
Toma-se como base, a hipótese da poda da árvore, proposta por Friedmann e
Grodzinsky (1997), segundo a qual nódulos mais altos da árvore sintática estariam
inacessíveis ao paciente agramático.
Para esse estudo, foram aplicados dois tipos de testes próprios em estudos de
afasiologia lingüística nesse indivíduo, selecionado através de três critérios, a saber: o local
da lesão cerebral, a classificação do tipo de afasia mediante teste e a análise da produção
lingüística.
Com os resultados obtidos, propomos a reformulação da hipótese da poda da árvore,
tendo em vista a existência de um nódulo funcional para Aspecto.
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BRAGA, Marcela Magalhães. O traço aspectual no agramatismo: reformulando a hipótese da poda da árvore. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2004. 91 fls. Dissertação de Mestrado em Lingüística.
ABSTRACT
The main goal of this thesis is to investigate the status of the functional category
Aspect in one agrammatic’s linguistic production.
The basis for our analysis is the tree pruning hypothesis proposed by Friedmann e
Grodzinsky (1997), according to which higher nodes in the syntactic tree are inaccessible to
aphasic patients.
Two types of tests proper for studies in linguistic aphasiology were applied to a
patient selected according to the following criteria: lesion site, Broca’s aphasic following
the Boston Test diagnosis and analysis of the linguistic production.
We propose the existence of a functional node for Aspect and a reformulation of the
tree pruning hypothesis based on our results.
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