O Trauma Come Inseguranca0_cap_2

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    2A segurana e as emoes: significados em perspectiva

    O corao tem razes que a prpria

    razo desconheceBlaise Pascal

    Conflitos tnicos marcados por prticas genocidas so eventos que tm

    promovido forte instabilidade no sistema internacional contemporneo e

    representam um dos maiores desafios para decisores polticos e estudiosos das

    relaes internacionais na atualidade. Sua complexidade tem motivado profundas

    reflexes e transformaes em segurana internacional principalmente por

    promoverem a desestabilizao de determinados significados e premissas as quaispredominaram no estudo e na prtica de segurana at bem pouco tempo. Ainda,

    sua ocorrncia tem assim como o terrorismo aberto espao para a publicizao

    e internacionalizao de temas que eram usualmente tratados como questes

    pertinentes ao mbito privado das relaes entre os indivduos dentro de suas

    sociedades. No que tange a segurana, as reflexes atuais capitaneadas

    sobretudo pelos chamados estudos crticos buscam enfatizar a falta de clareza e

    de anlises mais aprofundadas sobre o prprio conceito de segurana de acordo

    com um duplo movimento de ampliao e aprofundamento.

    Quanto publicizao e internacionalizao de temas para alm do mbito

    domstico dos Estados, vale ressaltar o mais amplo e renovado espao que as

    emoes tm ocupado nos estudos e na poltica de segurana contempornea2.

    Dentro desse duplo contexto, o presente captulo buscar - a partir de uma leitura

    construtivista - evidenciar que significados de segurana prevaleceram na

    academia e na prtica poltica internacional desde o entre guerras ao mesmo

    tempo em que pontuar como as emoes foram consideradas pelos estudos de

    poltica e segurana internacional nesse mesmo intervalo de tempo.

    2 Os conflitos civis de carter tnico e religioso que passaram a ocorrer a partir da dcada denoventa colaboraram significativamente para colocar as emoes em evidncia nos debates desegurana e poltica internacional em vrios sentidos. O estudo de suas causas levou muitos auto-res a atribuir sua ocorrncia existncia de antigos dios tnicos irreconciliveis(Kauffmam,1998) e a reforar interpretaes das emoes como elementos que potencializam as posturas deagresso e violncia. (Lake & Rothchild, 1996) A partir de 2001, as emoes passaram a ganharnovo flego nos debates em segurana internacional tambm em decorrncia dos atentados de 11

    de Setembro. Nesse caso, as discusses se desenvolvem em torno do medo global e acentuadodecorrente da percepo de que o inimigo da atualidade entendido como um amalgamento deforas referidas como terrorismo onipresente. (Debrix & Barber, 2009)

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    Epistemologicamente, portanto, acatamos o entendimento de que os

    significados bem como o conhecimento so social e intersubjetivamente

    construdos3. Desse modo, ao escolhemos enfatizar, ao longo do captulo, uma

    leitura reflexiva sobre a segurana e as emoes, procuraremos entender como

    construes sociais do conhecimento podem afetar a construo da realidade

    social e vice-versa. Como observa Stephano Guzzini, conceitos so parte da

    linguagem e a linguagem no pode ser reduzida a algo subjetivo ou objetivo. No

    subjetiva porque existe independente de ns na medida em que a linguagem

    mais do que seus usos individuais e os antecede; no objetiva porque no existe

    independentemente de nossas mentes e de nossos usos a linguagem existe e

    muda atravs de nossos usos. (Guzzini, 2005, p.498)

    A leitura construtivista buscar aqui se contrapor, portanto, s analises

    conceituais positivistas tradicionais as quais procuram reconstruir os significados

    dos conceitos de forma puramente descritiva e com pretenses de neutralidade

    terica com o intuito de evitar incoerncias e equvocos em seus usos.

    Concordamos com Guzzini, no entanto, que virtualmente impossvel isolar

    conceitos das teorias nas quais elas se encontram inseridas e as quais constituem

    parte de seus verdadeiros significados. Por isso, muito mais do que investigarmos

    os diversos significados que foram atribudos ao conceito de segurana e s

    emoes ao longo do tempo, tambm buscaremos perceber o que esses

    significados alcanaram em termos de comunicao em seus respectivos

    3Autores que integram o construtivismo identificam-se explicitamente como tericos crticos eestabelecem suas razes intelectuais no Terceiro Debate dos anos 80 bem como em figurasproeminentes da teoria crtica social como Anthony Giddens, Jrgen Habermas e Michel Foucault,alm de intelectuais predecessores como Karl Marx e Friedrich Nietzsche. Como observamRichard Price e Christian Reus-Smit, a teoria crtica internacional que d corpo ao Terceiro Debate

    apresenta formas modernas e ps-modernas e o construtivismo em si tambm engloba autores deorientao moderna e ps-moderna. No entanto, caracterstica geral dos construtivistas acatartrs proposies ontolgicas sobre a vida social e seus impactos em aspectos da poltica mundial, asaber: 1. A importncia das estruturas ideacionais e normativas ao lado das estruturas materiais; 2.A considerao de que as identidades constituem os interesses e as aes, ou seja, o processo deformao das preferncias dos atores analisado a partir da avaliao das identidades sociais dosatores; 3. Agentes e estruturas so mutuamente constitudos, i.e, os construtivistas enfatizam osmodos segundo os quais estruturas normativas e ideacionais definem o significado e a identidadedo ator individual e os padres apropriados das atividade econmica, poltica e cultural das quaisos indivduos tomam parte. No que concerne s diferenas entre essas duas orientaes, os autoresobservam que (t)he principal difference between modernist and postmodernist constructivismtends to be analytical, with the former concentrating on the sociolinguistic construction of subjectsand objects in world politics, and the latter focusing on the relationship between power and

    knowledge.(1998, p. 267-268) Como observamos com maior detalhe ao final do presente captuloe tambm no captulo quatro, a presente tese se encaixa dentro das leituras construtivistas que seconcentram na construo scio-lingustica dos sujeitos e objetos na poltica mundial.

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    contextos, ou seja, investigaremos o papel que esses significados exerceram nos

    discursos polticos, em termos de justificativas para a ao poltica. O resgate

    desses mltiplos significados nos importa na medida em que nos ajuda a

    demonstrar que os entendimentos predominantes de segurana e das emoes

    decorrem de um processo de construo social altamente especfico o ocidental-

    e igualmente enraizado em uma metafsica especfica ocidental. Como veremos

    mais adiante, a metafsica ocidental construiu o significado de segurana com

    base no Estado e em um determinado entendimento de poder e violncia que

    trouxe limitaes para os estudos da rea e para o entendimento de segurana, e as

    quais s passaram a ser mais severamente questionadas a partir da dcada de

    oitenta. (Haftendorn,1991; Katzenstein, 1996) No que tange s emoes, elas

    foram predominantemente tomadas como auto-evidentes e permaneceram no

    problematizadas dentro dos estudos e da prtica de segurana, embora tenham

    sido institucionalizadas em estruturas e processos de poltica mundial, como o

    caso do medo que d substrato ao conceito realista de dilema de

    segurana.(Crawford, 2000)

    O propsito final do captulo ser argumentar que embora os atuais avanos

    nas reflexes sobre os significados de segurana tenham contribudo para a

    considerao da segurana de forma mais aprofundada, o estudo da dimenso

    subjetiva da segurana humana ainda permanece no teorizado, bem como pouca

    tem sido sua abertura para as novas leituras sobre o papel das emoes na

    segurana e na poltica internacional. As relaes internacionais - como evi-

    denciaremos mais adiante - tm seu desenvolvimento marcado pela prevalncia de

    uma concepo biolgico-determinista das emoes- subjacente ao pensamento de

    realistas e liberais desde meados do sculo XX que toma as emoes como

    estados fisioqumicos do organismo humano interpretados como distintos dosestados cognitivos e opostos razo. Em outras palavras, essa concepo

    reverbera o entendimento de que as emoes no so estados produzidos na

    mente, esto fora do controle dos atores e separadas da cognio, devendo,

    portanto, serem sempre submetidas a controle.4

    4 Como deixaremos claro ao longo do presente captulo, partilhamos do entendimento de que

    emoes so experincias que contam com componentes fisiolgicos, intersubjetivos e culturais.Ou seja, embora os sentimentos sejam experincias internas, os significados atribudos a essessentimentos, os comportamentos a eles associados e o reconhecimento das emoes nos outros so

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    Isto posto, iniciamos nossa empreitada hermenutica observando que

    questes de segurana sempre estiveram no centro das atenes dentro dos

    estudos de relaes internacionais e da prtica poltica internacional. Desde a

    concepo das relaes internacionais enquanto disciplina com a criao da

    primeira cadeira de poltica internacional na Universidade de Wales, em 1919,

    questes de guerra e paz, equilbrio de poder, dilemas de segurana, corridas

    armamentistas, etc, tm sido temas centrais a atrair a ateno de estudiosos e

    tomadores de deciso. (Bull, 1977; Deustch, 1978)

    Dado o espao e a importncia que foram conferidos s questes de

    segurana dentro da disciplina, era de se esperar que o conceito de segurana

    estivesse mais do que debatido e analisado com o passar das dcadas. Contudo,

    esse no foi o caso, pois at o incio da dcada de oitenta poucas foram as

    contestaes sobre seus possveis significados. Como demonstraremos mais

    adiante, a razo para a falta de maiores debates sobre o conceito foi sobretudo o

    fato de o significado de segurana ter sido tomado como dado dentro dos

    discursos tericos predominantes em relaes internacionais, algo que deixou a

    explorao de interpretaes alternativas para o conceito em segundo plano. Dessa

    forma, os estudos sobre segurana foram construdos em torno de um consenso

    no reconhecido em relao ao que constituiria conhecimento legtimo sobre o

    mundo social e que em grande medida definiu como as polticas de segurana

    seriam desenvolvidas e implementadas. (Sheehan, 2005, p.02)

    No entanto, a segurana, assim como todos os conceitos utilizados nas

    prticas sociais humanas, uma construo social cujo significado decorre de um

    processo intersubjetivo estabelecido entre os indivduos de uma determinada

    comunidade. Isto implica considerar que com o tempo o termo pode ser entendido

    de diferentes formas medida em que re-avaliado e discutido, nopermanecendo, portanto, preso a um nico significado fixo e atemporal. Ainda, ao

    percebermos a natureza socialmente construda do termo podemos observar mais

    claramente que contextos culturais deram forma s conceitualizaes de segurana

    as quais prevaleceram entre os principais atores do sistema internacional ao longo

    do tempo, e assim entendermos melhor os debates do momento presente. (Fierke,

    2007)

    em boa medida embora no exclusivamente- cognitiva e culturalmente construdos. (Armon Jones, 1986)

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    Retomando os significados atribudos ao conceito de segurana, ento,

    percebemos que grande parte dos estudos de segurana, realizados durante o

    sculo XX, foram desenvolvidos segundo as premissas hegemnicas do

    pensamento realista. Com o fim da Primeira Guerra Mundial5, diversos lderes

    polticos e acadmicos da poca se sentiram impelidos a refletirem sobre meios de

    evitar que uma guerra de tamanhas propores voltasse a ameaar a humanidade.

    Nesse perodo, duas ticas surgiram e ajudaram a fundar o primeiro debate da

    disciplina de relaes internacionais: o realismo e o idealismo.6

    Edward H. Carr, em sua obra Vinte Anos de Crise: 1919-1939, foi um dos

    autores a refletirem sobre os impactos das guerras e a contribuir para o

    entendimento dessas duas correntes de pensamento que permeavam a prtica e a

    reflexo poltica daquele perodo. Segundo Carr, realistas e idealistas desejavam

    evitar a guerra, mas buscavam fazer isso de diferentes formas. Os realistas

    enfatizavam a defesa dos interesses nacionais e buscavam entender a dinmica da

    poltica internacional a partir do mundo como ele , enquanto que os idealistas

    enfatizavam a busca de harmonizao de interesses entre os Estados e priorizavam

    uma leitura do mundo a partir de como ele deveria ser. Sua obra, na verdade, no

    um texto de teoria internacional, mas um esforo de crtica ao conhecimento

    sobre poltica internacional prevalecente at o momento e um ataque ao

    liberalismo utpico e suas premissas de defesa da diplomacia, da idia de

    segurana coletiva e da auto- determinao dos povos como formas de promoo

    de um ambiente internacional mais pacfico.(Carr,1985)

    No entanto, o pensamento realista viria a ganhar consistncia terica algum

    tempo mais tarde com Hans Morgenthau e sua obra Poltica entre as Naes.

    Nessa obra o autor estabeleceu seis princpios que norteariam o entendimento e a

    anlise das relaes internacionais, diferenciaria o realismo enquanto perspectiva

    5 Brian Schmidt em sua obra The political discourse of Anarchy: a Disciplinary History ofInternational Relations, faz ressalvas importantes sobre a contextualizao das origens dos debatesem relaes internacionais a partir da I Guerra Mundial, considerando que j havia autorescontribuindo para o entendimento do internacional no sculo XIX. No entanto, para os fins dopresente captulo, escolhemos tomar os debates do entre guerras como ponto de partida para noestendermos demasiadamente nosso exerccio hermenutico. Para maiores discusses ver Schmidt,The political discourse of Anarchy: a Disciplinary History of International Relations, Albany StateUniversity of New York Press, 1998.

    6 Por conta de suas fortes repercusses para o desenvolvimento do primeiro significado de

    segurana dentro dos estudos de relaes internacionais, escolhemos aqui priorizar a anlise datica realista. No entanto, logo em seguida retomaremos esse perodo histrico para tratar dasorigens e contribuies do pensamento idealista/ liberal utpico.

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    terica das relaes internacionais e ajudaria esse campo de estudos a se separar

    das demais cincias sociais. Para ns aqui importa dizer que Morgenthau

    argumentava que o Estado seria o ator responsvel por definir o interesse nacional

    e que esse interesse deveria se traduzir em termos de poder. Assim, a existncia de

    uma anarquia internacional imporia ao estadista o acatamento de uma tica da

    responsabilidade traduzida pelo entendimento de que o nico interesse nacional

    relevante seria eminentemente a sobrevivncia do Estado. (Morgenthau, 2002)

    No que concerne rea acadmica de relaes internacionais, os autores

    procuravam reforar a demarcao das fronteiras dos estudos de relaes

    internacionais em relao s demais reas das cincias sociais em busca de

    autonomia e legitimidade e, por isso, muitos de seus esforos voltavam-se para a

    tentativa de estabelecimento de razes e influncias intelectuais que confirmassem

    que o internacional no era algo recente e contingente. (Kahler,1997) Assim,

    inmeros autores procuraram relacionar as origens dos estudos de relaes

    internacionais a partir da linguagem de autores clssicos como Tucdides,

    Maquiavel e Hobbes. Essa busca foi realizada eminentemente por autores realistas

    e, por isso, a leitura feita desses autores clssicos seguiu a orientao do

    pensamento realista cujos autores procuraram adaptar os conceitos e contextos dos

    clssicos ao seu prprio tempo e arcabouo terico. Por essa razo, conceitos

    considerados basilares do pensamento realista - e ligados ao mbito da segurana -

    como poder, sobrevivncia, auto-ajuda e estado de natureza - foram esboados a

    partir da leitura peculiar que os realistas fizeram dos clssicos.

    Ainda, algumas das premissas comuns a todas as vertentes realistas que se

    desenvolveram com o passar das dcadas encontram bases nas tradies herdadas

    por Tucdides, Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes. Entre essas premissas esto

    a centralidade do Estado e seu objetivo primordial de busca de sobrevivncia, oapoio no poder como meio de garantia dessa sobrevivncia, quer de forma

    independente (seguindo a lgica do self help) quer via alianas, e a anarquia

    internacional. Hans Morgenthau, j mencionado acima, e Reinhold Niebuhr,

    responsveis entre outros pelo desenvolvimento das premissas realistas, viam os

    escritos de Tucdides como cruciais para indicar que h padres de

    comportamento humano recorrentes e passveis de serem identificados em todos

    os momentos histricos. Tucdides considerado o fundador da perspectivarealista por, entre outras coisas, apontar o medo e a incerteza como elementos

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    promotores da guerra e por reconhecer que os mais fracos inevitavelmente tero

    que aceder aos desgnios dos mais fortes. (Tucdides,1989) No que se refere a

    Maquiavel, a herana resgatada a valorizao que o autor confere

    sobrevivncia do Estado enquanto ator. Na tica de Maquiavel, o lder ou prncipe

    so dependentes da existncia de um Estado, o que o faria ser fundamental. O

    poder, as alianas e a balana de poder seriam elementos cruciais para enfrentar os

    desafios de segurana. Maquiavel priorizava a leitura ctica e amoral das relaes

    entre as cidadesEstado, considerando que s aes do prncipe no se aplicariam

    moralidade que guia as aes dos indivduos comuns. (Maquiavel, 2008)

    Hobbes, por sua vez, representou um marco no pensamento realista por sua

    concepo de estado de natureza a qual serviu de parmetro para o pensamento da

    anarquia internacional. A impossibilidade de se estabelecer um soberano que

    tenha o monoplio do uso legtimo da fora em mbito internacional (ou seja, a

    ausncia de um Leviat) faria a anarquia internacional ser uma caracterstica

    indelvel das relaes internacionais. Todas essas leituras favorecem um olhar

    negativo da natureza humana que seria guiada por medo, ambio e busca de

    poder7, elementos que foram transportados pelos autores realistas para as relaes

    internacionais para explicar tambm o comportamento dos Estados e o prprio

    sistema internacional.

    Vale notar, contudo, como as emoes foram tomadas como parte

    importante dessas leituras clssicas sobre a natureza humana e como a prpria

    teoria realista ao estabelecer suas definies e entendimento sobre o

    internacional as absorveu fortemente, embora de forma no problematizada e

    reducionista. Como salienta Neta Crawford, teorias sobre as emoes, seu

    funcionamento, fontes e conseqncias tm sido desenvolvidas em vrios campos

    de estudos, tendo por marco inicial o interesse dos gregos. (Crawford, 2000) Nasrelaes internacionais e em segurana internacional, no entanto, essas teorias

    encontraram espao bastante reduzido e as emoes, ao serem consideradas pelos

    realistas, foram interpretadas em termos estritamente biolgicos, por influncia,

    7Segundo Hobbes, O direito de natureza, a que os autores geralmente chamamjus naturale, aliberdade que cada homem possui de usar seu prprio poder, de maneira que quiser, para apreservao de sua prpria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqentemente de fazer tudo aquilo

    que seu prprio julgamento e razo lhe indiquem como meios adequados a esse fim. ( cap. XIV,p. 78)

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    sobretudo, das leituras de alguns filsofos clssicos os quais foram tomados como

    base para a construo do arcabouo terico realista.8

    Entre todas as emoes resgatadas pelos realistas a partir dos clssicos o

    medo ocupa posio primordial. Para Tucdides,os homens so motivados por

    honra, ganncia e, acima de tudo, medo.(p.49, 1986) De fato, Tucdides explica

    a ocorrncia da Guerra do Peloponeso a partir do crescimento do poderio

    ateniense e do medo que o mesmo teria causado em Esparta. No entanto, ao longo

    do texto podemos perceber que o autor tambm valorizava outras emoes e no

    necessariamente de contedo negativo, como o amor ptria e a honra.

    O medo igualmente central nos escritos de Hobbes, para quem as

    paixes eram apetites animais. Em O Leviat, Hobbes argumenta que as

    paixes so naturais e inescapveis e o medo possui papel fundamental na sua

    concepo de poltica, uma vez que ele seria o responsvel por conduzir os

    homens da condio de guerra de todos contra todos para a ordem: The Passions

    that encline men to Peace, are Feare of Death; Desire of such things is necessary

    to commodius living; and a Hope by their Industry to obtain them. (Hobbes,

    1986 p.118) As paixes, assim, so entendidas por Hobbes como incontrolveis e

    como as responsveis por tornar os indivduos inseguros e incapazes de confiar

    nos outros ou na possibilidade de paz.

    Concepes naturalistas ou biolgicas sobre as emoes como essas tm

    sido mesmo com o advento das teorias cognitivistas na psicologia ao longo do

    sculo XX as predominantes e as mais persistentes em vrias reas de estudos

    (incluindo as reas de segurana e poltica internacional) at o momento,

    reverberando ainda o entendimento de que as emoes so uma questo

    fisioqumica sem conexo com a conscincia e cognio, e um fenmeno que

    deve ser controlado.

    8 Importa observar aqui que nem todos os filsofos gregos desconsideravam a dimenso cognitivadas emoes. Aristteles um caso que comprova essa exceo, na medida em que ele, porexemplo, acreditava que o medo era uma certa expectativa de uma experincia destrutiva emandamento. No caso do realismo, no entanto, a leitura que favorece a dimenso biolgica dasemoes prevaleceu sobretudo porque os autores tomados para fundamentar suas construestericas acatavam essa leitura, bem como pelo fato de que ela no foi problematizada e simcontornada, na medida em que os realistas desenvolveram a concepo de racionalidade como

    forma de conter os efeitos das emoes na prtica poltica. Como observa David Ost, (e)motionshave been presented as a problem that power has to deal with, not something with which power isitself intimately involved ( 2004, p.229)

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    No caso dos realistas, no entanto, vale ressaltar o papel por eles conferido s

    emoes em sua definio de natureza humana. Como mencionamos mais acima,

    Morgenthau fundamenta sua concepo de poltica em leis objetivas enraizadas na

    natureza humana a qual estaria baseada em um desejo constante de poder. Como

    salienta Crawford, this human nature is characterized by the tendency to be

    hostile, aggressive, fearful and distrustful.(...) (2009, p.276) Essa concepo, por

    sua vez, no s corrobora a interpretao biolgica das emoes, como tambm

    ajuda a reforar o entendimento de fixidez dessa natureza. O prprio termo

    natureza em si j indica essa interpretao biolgica, embora no responda pela

    escolha normativa dos realistas em definir essa natureza como eminentemente

    agressiva, gananciosa e egosta. Contudo, para os realistas, essa natureza definiria

    tambm a cultura e as instituies polticas as quais incorporariam a mesma

    natureza e sua fixidez. Crawford observa que (t)his view of human nature has

    become so taken for granted that it is hardly questioned as the rock bottom of

    world politics. There is little research on human nature in world politics because

    most of us think we know all we need to know.(2009, p.276) Ainda, vale

    ressaltar que as emoes dentro desse quadro analtico foram interpretadas de

    forma predominantemente negativa e consideradas sobretudo como fatores

    disruptivos a serem controlados ou evitados.

    E nesse contexto que a idia de racionalidade se desenvolve para os

    realistas de forma a promover o controle das paixes e a garantir que os atores

    alcancem seu objetivo de poder. O pensamento iluminista desenvolvido a partir do

    sculo XVIII, ao preconizar a autonomia individual e a capacidade natural dos

    homens de aprender, influencia os realistas na medida em que favorece a

    racionalidade como forma de alcance do conhecimento e de realizao de

    objetivos. Ainda, o racionalismo iluminista estabelece que o homem, ao serdotado de conscincia autnoma, deve ser livre no s em relao autoridade

    externa, poltica e religiosa que o domina e o oprime, como tambm deve ser livre

    em relao as suas prprias paixes, emoes e desejos.9Ou seja, o homem livre

    9Como analisa Albert O. Hirschman, o sentimento que surgiu durante a Renascena e tornou-seuma firme convico durante o sculo XVII foi o de que a filosofia moral e o preceito religiosono mais bastavam para controlar as paixes destrutivas dos homens. Investigaes sobre anatureza humana foram empreendidas a partir de ento com o propsito de descobrir modos de dar

    forma ao padro de aes humanas mais eficazes do que as exortaes moralistas ou ameaas dedanao eterna. A primeira alternativa pensada, segundo o autor, foi a coero ou a represso. E atarefa de controlar ou reprimir, pela fora se necessrio, as piores manifestaes decorrentes das

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    senhor de si sobretudo quando exerce o controle de si mesmo e age de acordo com

    sua vontade e deciso racional. Essa influncia transportada para o pensamento

    realista em sua premissa de que os que buscam por poder agem como atores

    racionais em seus esforos para alcanar seus objetivos. A partir desse prisma, os

    realistas construram a pressuposio do Estado10 como ator unitrio a qual o

    resume a uma unidade coesa que age e toma decises de forma coerente em busca

    da consecuo de seus interesses de poder. Essa compreenso representa uma

    simplificao terica que no reconhece os interesses dos diversos atores que

    compe a rbita domstica do Estado e presume que o objetivo maior do Estado

    seja o interesse nacional, embora esse interesse seja de difcil definio. Por

    conseqncia, o desenvolvimento desse modelo racional acabou gerando a crena

    predominante nas Relaes Internacionais de que as emoes apenas causam

    erros, o que compromete significativamente o entendimento da rea sobre a

    relao entre a racionalidade e a psicologia.

    Como observa Jonathan Mercer, imaginar o comportamento racional como

    independente da mente um mito, embora consistente com a proposta dos

    racionalistas de entendimento da psicologia como a responsvel pela explicao

    de erros ou desvios. O autor, assim, aponta para o fato de que os racionalistas so

    normativos na medida em que eles buscam explicar como se deve exercer a razo

    para o alcance de determinado resultado e no como efetivamente a mente

    funciona porque para eles seria impossvel saber qual o papel que os

    fenmenos mentais exercem no comportamento dos atores. (Mercer, 2005, p.80)

    Como veremos mais adiante, esses pressupostos conduziram at mesmo os

    autores de recorte liberal os quais, embora tenham se amparado na psicologia para

    explicar processos decisrios, tambm entendiam a racionalidade sob esse mesmo

    prisma.Retomando o desenvolvimento do conceito de segurana, observamos que,

    com o passar das dcadas, os conceitos de anarquia e poder foram sendo

    largamente aceitos e suas implicaes passaram a ser objeto de investigao de

    diversos autores alm de Hans Morgenthau. Entre eles merece destaque John

    paixes caberia ao Estado. Essa era a viso de Santo Agostinho e Calvino, por exemplo. Noentanto, essa alternativa passou a ser criticada por atribuir a um ato de vontade do soberano atarefa de eliminar as misrias e danos decorrentes das paixes dos homens. (Hirschman, 1979)

    Mais adiante, em momento que consideramos mais apropriado, mencionaremos outras alternativaspensadas por intelectuais para o tratamento das paixes.

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    Herz. Como Carr e Morgenthau, Herz no negava a existncia de uma dimenso

    tica nas relaes internacionais, mas como os outros dois autores ele tambm

    sustentava que essa dimenso estaria submetida s questes do poder e da

    sobrevivncia.O grande legado de Herz, contudo, central para os estudos de

    segurana, o conceito de dilema de segurana. De acordo com o autor, o dilema

    de segurana ocorreria quando um Estado ao investir em sua prpria segurana

    acaba sendo percebido pelos demais Estados como uma ameaa, dado o medo e a

    incerteza sobre as intenes que motivaram os investimentos do primeiro Estado.

    Em conseqncia, os demais Estados passam tambm a se protegerem e so

    igualmente percebidos como ameaa pelo primeiro Estado a tomar a iniciativa de

    proteo, fato que gera uma escalada armamentista a qual acaba produzindo o

    efeito oposto ao pretendido por todos, dado que todos passam a se sentir mais

    inseguros do que antes. Para Herz, o dilema de segurana caracterstico do

    sistema internacional e um trao incontornvel do mesmo, por conta da ausncia

    de uma autoridade supra-estatal que garanta a segurana de todos. (Herz, 1950)

    Nesse sentido, percebemos que o medo passa a ser institucionalizado e

    adotado como um instrumento de poltica externa. A institucionalizao ocorre

    quando um grupo incorpora uma crena, prtica ou um sentimento em seu

    repertrio de conhecimento naturalizado sobre o mundo e sobre as rotinas

    comportamentais. No caso do pensamento realista, o processo de

    institucionalizao do medo ocorreu de modo a orientar o comportamento dos

    Estados e de suas escolhas de poltica externa em termos militaristas e a partir da

    crena de que a produo deliberada do medo no adversrio uma forma eficaz

    de promoo de capitulao ou compliance. Dentro desse arcabouo terico,

    assim, as emoes continuam sendo ponto importante na elaborao de seus

    conceitos basilares, embora nele no se questione o fato de que sistemas polticosassentados em medo e desconfiana no so inevitveis e de que o processo de

    institucionalizao do medo pode ser conduzido de outra forma, inclusive com

    apoio em outras emoes como a confiana. (Crawford, 2009)

    O advento da Segunda Guerra Mundial, todavia, refora as concepes

    cticas sobre a dinmica poltica internacional as quais passaro a ter forte

    presena na prtica poltica internacional das prximas quatro dcadas. Assim,

    ainda no imediato ps Segunda Guerra Mundial, criou-se a expresso segurananacional para descrever a rea da poltica pblica voltada para a preservao da

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    independncia e autonomia do Estado. A segurana passou a ser relacionada com

    a necessidade dos Estados de manter sua independncia poltica e a autonomia

    nacional em seu processo de tomada de deciso. Essa concepo realista de

    segurana encontrou no contexto internacional do ps II Segunda Guerra um

    terreno bastante frtil, dado que muitos pases estavam saindo de uma realidade de

    guerra e forte depresso econmica, algo que contribuiu para a tendncia dos

    acadmicos e formuladores de poltica externa- sobretudo os norte-americanos - a

    assumirem uma perspectiva terica e um discurso que enfatizavam a necessidade

    de proteo dos Estados. O que se seguiu, portanto, foi o reforo dos estudos de

    segurana em linhas realistas, cujas concepes permearam a prtica da poltica

    externa e as vises de mundo em torno da insegurana e do medo.

    Como podemos ver, essas concepes apresentam uma interpretao

    bastante restrita e limitada do termo segurana e a dinmica subseqente - a

    Guerra Fria - contribuiu ainda mais para que a segurana fosse pensada em termos

    militaristas, inibindo a considerao de interpretaes alternativas. No entanto,

    no se pode dizer que no existiram tentativas nesse sentido ao longo desse

    perodo. Em 1952, Arnold Wolfers, por exemplo, apesar de ser um autor de

    recorte realista, apontava para o fato de que a concepo realista de segurana no

    era menos idealista do que as concepes propostas por seus crticos, dado que,

    segundo o autor, a busca por uma poltica de segurana nacional tem um carter

    originariamente normativo. (Wolfers,1952) Ou seja, a busca de estabelecimento

    de polticas militaristas reflete julgamentos de valor e a existncia de um conjunto

    de prioridades a serem concretizadas em termos de defesa as quais demonstram

    que as concepes tradicionais de segurana so em si guiadas por valores, ainda

    que esses valores no sejam apresentados como tal. O ponto de partida dos

    realistas, em geral, o de que nunca ser possvel assegurar a um Estado ou a umindivduo segurana absoluta, dado que sempre existiriam ameaas. Por isso, a

    questo para eles seria definir a que ameaas conferir ateno e em que medida.

    Ao tratar a evoluo dos estudos de segurana, Stephen Walt observa a

    prevalncia da academia norte-americana ao longo do perodo referente Guerra

    Fria e aponta os diversos matizes que o realismo adotou nesse decurso de tempo.

    O perodo da Segunda Guerra Mundial at meados dos anos 60 definido pelo

    autor como a poca dourada e se caracteriza por estudos voltados para a busca deentendimento das implicaes da revoluo nuclear. A questo central dos estudos

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    desse perodo foi descobrir como os Estados poderiam usar armas nucleares de

    destruio em massa como instrumentos de poltica, dado o risco de resposta. Os

    estudos desse perodo eram bastante interdisciplinares e voltavam-se para

    problemas especficos da realidade mundial daquela poca, alm de possurem um

    entendimento de interesse nacional bastante militarista em decorrncia da

    proximidade dos pesquisadores de think tanks - como a RAND- com o

    departamento de defesa norte-americano. As crticas do autor so as de que os

    estudos desse perodo careciam de dados e comprovaes empricas, algo que se

    explicava pela dificuldade de acesso a documentos mantidos em sigilo pelo

    governo e pela escassez de compilao de informaes histricas sobre o conflito

    nuclear. A conseqncia foi a predominncia de estudos baseados em tcnicas

    dedutivas como a teoria de jogos e o uso de uma definio restrita de poltica,

    dado que a rea tendia a ignorar fontes no militares de tenso internacional.

    Esse foi o caso da teoria da deterrncia, que se concentrava em descobrir

    como tornar ameaas retaliatrias crveis sem questionar porque o oponente

    desejaria mudar seu status quoem primeiro lugar. Nesse ponto h que se pontuar

    novamente o carter poltico-psicolgico do conceito de deterrncia dado que seu

    sucesso dependia das percepes e avaliaes de um potencial agressor. Contudo,

    a institucionalizao do medo para fins estratgicos aqui foi avaliada como uma

    boa medida promotora de segurana sem que se percebesse o quo arriscada essa

    medida podia ser uma vez que o medo, como salienta Neta Crawford, pode se

    tornar um clima auto-sustentado e quase independente do seu gatilho inicial, o que

    dificultaria sua desativao diante das evidncias de que a ameaa tenha

    diminudo. Ainda, segundo a autora,

    Initial fear may be institutionalized in the adoption of an emotional attitude about theother and the world (that is threatening), which affects the intelligence-gathering andassessment functions of organizations. Fear may be institutionalized in the adoptionof technologies (), rules of procedure and military doctrines that are intended toreduce the subjective sense of threat and fear, but which may simultaneously andinadvertently heighten fear. Fear determines perceptions and the responses toperceived threats (whether actual or anticipated). (2009, p. 282)

    Walt da mesma forma reconhece que a grande limitao da teoria da

    deterrncia foi ter se distanciado dos fatores organizacionais, psicolgicos e de

    poltica domstica que tambm compem e moldam o comportamento do Estado

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    sobretudo por conta da viso tradicional do ator racional. Nesse sentido, importa-

    nos observar que mesmo com a revoluo behaviorista que se desenvolveu nas

    cincias sociais do perodo - e se espalhou para os estudos de segurana-, as

    interpretaes das emoes em termos biolgicos (subjacentes na concepo de

    natureza humana) prevaleceram, apesar de a revoluo ter inovado ao considerar a

    dimenso cognitiva. Isso porque a inovao era em si bastante limitada na medida

    em que sua leitura cognitivista exclua a dimenso mental de suas anlises para

    concentrar- se apenas nos estmulos observveis. Como comenta Mercer,

    (b)ehaviourists study behavior, not the mind. People respond to incentives, and

    to understand incentives is to understand behavior. Ou nas palavras de Skinner,

    We do not need to try to discover what personalities, states of mind, feelings,

    traits of character, plans, purposes, intentions, or other prerequisites of

    autonomous man really are in order to get on with a scientific analysis of

    behavior. (apud Mercer, 2005, p.82) Assim, para os behavioristas, o foco estava

    no estudo dos comportamentos dos atores e dos incentivos, e as emoes ou a

    dimenso mental eram marginalizadas por serem consideradas de difcil acesso ou

    determinao.

    Na segunda metade da dcada de 60 os estudos de segurana vivenciaram

    um perodo de declnio que s superado com o que Walt chama de renascena

    dos estudos de segurana, em meados da dcada de 70. Nesse novo momento,

    embora o campo tenha se mantido multidisciplinar e bastante ligado a questes de

    poltica internacional, a inovao se deu em decorrncia da abertura de espao

    para o desenvolvimento de estudos com apoio na histria. O maior acesso aos

    arquivos permitiu aos historiadores investigaes detalhadas sobre a poltica de

    segurana nacional e os pesquisadores passaram a apoiar-se mais fortemente em

    casos histricos como forma de gerar, testar e refinar teorias. Ainda, o uso dahistria permitiu - assim como a psicologia e a teoria organizacional- o

    questionamento das premissas da teoria de deterrncia sobre informao perfeita e

    o clculo racional. Outras inovaes foram o desenvolvimento de estudos sobre os

    efeitos das polticas domsticas, erros de percepo e da estrutura sobre as

    probabilidades de guerra. No entanto, como mencionamos acima, o tratamento

    das emoes permaneceu nos mesmos termos, apesar das inovaes cognitivistas

    do behaviorismo.

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    Ao longo da dcada de setenta, outras dinmicas continuaram a impactar os

    estudos de segurana e levar ao questionamento das premissas realistas,

    principalmente o desenvolvimento da globalizao e da transnacionalidade, o

    declnio do poder econmico norte americano e os choques do petrleo nos anos

    de 1973 e 1979. Nesse momento, as questes econmicas e seus impactos na

    dinmica das relaes internacionais passaram a ser importante foco de ateno e

    debates relativos a processos de interdependncia ganharam significativo espao

    dentro dos estudos de segurana.11 Diante dos desafios apresentados pelos

    tericos liberais, no entanto, o realismo se reformula a partir dos escritos de

    Kenneth Waltz, com a obra Teoria da Poltica Internacional, de 1979.

    Kenneth Waltz compartilha do argumento dos realistas tradicionais de que a

    poltica internacional pode ser pensada como um sistema com uma estrutura bem

    definida. No entanto, Waltz observa que o realismo clssico no capaz de

    conceitualizar o sistema internacional dessa forma porque ele limitado por sua

    metodologia que procura explicar os resultados polticos atravs do exame das

    partes constituintes dos sistemas polticos. Ou seja, para ele os realistas clssicos

    eram incapazes de explicar o comportamento em nvel acima dos Estados

    naes. Por isso, Waltz se prope a trazer maior rigor cientifico e metodolgico

    para o estudo da poltica internacional para superar as limitaes que ele

    visualizava na produo do conhecimento realista desenvolvida at aquele

    momento bem como para responder aos desafios apresentados pelas dinmicas

    econmicas do perodo. A sofisticao de suas proposies tericas acaba

    conferindo aos seus estudos uma posio de proeminncia dentro da disciplina de

    relaes internacionais e na prtica poltica internacional. (Burchill, 1995, p.83)

    Assim, Waltz argumentava que o dilema de segurana no deveria ser

    explicado pela natureza humana, assim como fizeram Morgenthau ou Nieburhr,mas sim atravs da estrutura do sistema internacional e dos constrangimentos que

    esse sistema exerceria sobre o comportamento e as escolhas dos Estados. Para

    esse autor, as relaes internacionais estariam caracterizadas por padres e

    10Da mesma forma, por questes de melhor organizao do argumento do captulo,apresentaremos a leitura liberal em momento subseqente.

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    eventos recorrentes. Esses padres, traduzidos na idia de sistema seriam to

    poderosos que elidiriam as intenes dos Estados enquanto atores individuais12.

    Neta Crawford, em seu artigo Human nature and World Politics:

    Rethinking man (2009), traz uma contribuio analtica sobre Waltz e sua

    considerao sobre a natureza humana que merece ser mencionada aqui. Como

    observamos mais acima, realistas estruturais argumentam que apelos natureza

    humana so dispensveis uma vez que a estrutura determina caractersticas

    recorrentes da poltica internacional. Mas, para a autora, embora Waltz na obra

    Teoria da Poltica Internacional argumente nesse sentido, ele, no entanto, adota

    uma viso implcita da natureza humana que se coaduna com a viso dos realistas

    clssicos. O ponto de partida de anlise de Crawford foi a obra Man, the State

    and War, na qual Waltz conclui que a natureza humana a mesma tanto em

    11H pontos de contato entre os realistas clssicos e os realistas estruturais, no entanto. Entre essespontos esto a considerao de que a anarquia a caracterstica definidora do sistema internacionale de que o objetivo primordial dos Estados a sobrevivncia. Importante notar, contudo, oentendimento de ambas as vertentes no que concerne a segurana. Para ambas, o sistemaanrquico, por suas caractersticas intrnsicas, no fornece proteo aos Estados, o que os fazestarem em constante ameaa e em busca de segurana. Nessas condies, ou seja, em um sistemaorientado pelo princpio do self help, as unidades estatais so compelidas a funcionarem de formasemelhante, independente de seus tamanhos ou capacidades. Os Estados so, portanto, obrigados a

    buscar por sua segurana a partir de seus prprios recursos e esforos, quer atravs deinvestimentos em sua fora militar, quer desenvolvendo estratgias que lhes concedam vantagenssobre os demais Estados no sistema. Em resumo, a necessidade de se conformar com a realidadedo funcionamento do sistema internacional seria o elemento que justificaria a priorizao dasquestes de segurana na agenda dos Estados. (Waltz, 1979)

    No que concerne a questo da balana de poder, existem consideraes que tambmdiferem o realismo clssico do realismo estrutural. Na concepo do realismo clssico, as balanasocorrem em conseqncia de polticas governamentais direcionadas dos Estados que compem osistema os quais no desejam que o sistema seja dominado por apenas um Estado ou aliana quealcance a posio de imposio sobre os demais. Para Waltz, a balana de poder se forma apesardos esforos dos Estados que a compem e, na verdade, mesmo que suas buscas estejam voltadaspara a maximizao de seu poder e de hegemonia sobre o sistema, a tentativa de um cancela atentativa de outro. (Waltz, 1979, p.160) E nos clculos do poder, o poder militar o mais visado.

    A guerra vista, por conseqncia, como um instrumento fundamental para alcanar e defender abalana, na medida em que ela deve ser usada para impedir a dominao do sistema por um Estadoou aliana. Assim, a questo da segurana aqui no interpretada como algo historicamentecondicionado pela cultura, mas sim como uma caracterstica objetiva determinada pela distribuiode capacidades militares.

    Waltz, portanto, argumenta que a busca da causa da guerra s faz sentido no nvel dosistema internacional, sendo qualquer explicao a nvel dos Estados uma explicao de carterreducionista. Isso porque embora o autor no menospreze as teorias produzidas ao nvel dasunidades (Estados), ele as considera limitadas quanto ao seu escopo.Waltz visualiza a anarquiacomo o princpio ordenador do sistema internacional no qual o exerccio de poder de um Estadosobre o outro, quando ocorre, no legtimo, como ocorre dentro dos Estados onde a ao dosoberano legitimada por sua autoridade. No sistema internacional, no h hierarquia deautoridade, mas h uma hierarquia de poder segundo a qual os Estados com mais recursos de poder

    influenciam e/ou obrigam os demais Estados a mudarem suas polticas segundo seus interesses.

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    tempos de guerra quanto em tempos de paz e que, por isso, sua importncia como

    fator em anlise causal de eventos sociais reduzida pelo fato de que a mesma

    natureza, embora definida, tem que explicar uma infinita variedade de eventos

    sociais. Dessa forma, se a natureza humana constante, e a histria varivel,

    ento a natureza humana no pode explicar a variao. Para Crawford, assim,

    embora Waltz desconsidere a importncia da natureza humana em suas

    explicaes sobre os resultados polticos mundiais, ele sustenta uma concepo

    implcita de natureza humana que fixa: (t)he assumption of a fixed human

    nature, in terms of which all else must be understood, itself helps to shift attention

    away from human nature because human, by the terms of the assumption,

    cannot be changed, whereas social-political institutions can be. (2009, p.273)

    Ao considerarmos esses argumentos percebemos, assim, que tambm dentro

    do realismo estrutural os termos de tratamento das emoes continuam sendo os

    elaborados segundo a perspectiva realista, ou seja, separados da cognio e

    interpretados como sinnimos de descontrole e irracionalidade.

    Em termos contextuais, o pensamento de Waltz encontra solo frtil nas

    dinmicas da poltica internacional dos anos 80, com a eleio de Ronald Reagan

    presidncia dos EUA e sua poltica externa agressiva, fatos que deram ensejo ao

    que ficou conhecido como a Segunda Guerra Fria. Nesse momento, os EUA

    defenderam o desenvolvimento de novas tecnologias nucleares para superar a

    alegada inferioridade militar em relao URSS e recuperar a hegemonia daquele

    pas no sistema internacional, em crise desde a dcada de 1970. A estratgia norte

    americana elaborada nesse perodo foi denominada Iniciativa de Defesa

    Estratgica (IDE)13, mas ficou mais conhecida como Projeto Guerra nas Estrelas e

    tinha como objetivo substituir a poltica de deterrncia que estava sendo

    implantada at ento. O grau de agressividade da poltica externa norte-americanaem relao URSS era tal que comeava a colocar em risco seus aliados no

    continente europeu, isso porque a reconfigurao dos arsenais americano e

    13 Esse programa se consubstanciava na criao de um escudo para regies norte-americanas quepudessem ser provveis alvos em ataques nucleares e buscava a eliminao das armas nucleares queestivessem direcionadas para o continente americano. Representava uma estratgia diferente daestratgia de Destruio Mtua Assegurada anteriormente adotada e que pressupunha que seriapossvel impedir que um Estado iniciasse um ataque contra outro atravs do entendimento de queum Estado, uma vez atacado procuraria ainda assim responder ao ataque, caso dispusesse de

    capacidade de retaliao para isso. Para maiores informaes ver Turner, John & SIPRI.(1985)Arms in the 80s. New developments in the Global Arms Race. London: Taylor & Francispublishers.

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    sovitico colocaria os povos europeus como alvos diretos, caso houvesse um

    conflito. Essa configurao de foras acabou forando, portanto, os pases

    europeus a reformularem sua posio em vrios mbitos, no s em relao aos

    EUA e a OTAN, mas em relao ao prprio sistema internacional.

    (Kissinger,1995)

    Os anos 80, no entanto, so, no que concerne s relaes internacionais em

    geral e aos estudos de segurana em termos mais estritos, um perodo

    extremamente complexo. Para melhor entendermos essa complexidade, nos

    deteremos, na prxima seo, nas influncias do pensamento liberal por ter ele

    representado o grande contraponto ao desenvolvimento do pensamento realista

    nas relaes internacionais e nos estudos de segurana, estimulando o

    desenvolvimento de alternativas interpretativas importantes segurana e

    apresentando outros debates que passaram a marcar a dinmica poltica

    internacional de forma indelvel. No que concerne questo das emoes, o

    espao se diversifica em alguns aspectos, mas continua, como veremos, bastante

    restrito e influenciado pela concepo das emoes como contraponto da

    racionalidade.

    2.1. A segurana e as emoes: significados nas leituras liberais

    As razes da perspectiva liberal se encontram nos sculos XVIII e XIX

    vindo ela a alcanar maior proeminncia ao longo do sculo XX, sobretudo aps a

    Primeira Guerra Mundial.No h, no entanto, um corpo uniforme e coerente a

    compor a tradio liberal, sendo ela formada por diversos autores com mltiplas

    preocupaes. O ponto comum a todos, no entanto, o pensamento inicialmentedesenvolvido por tericos liberais clssicos de inspirao iluminista para os quais

    o individuo o nvel mais importante de anlise e o Estado um ator de

    interferncia mnima, cujo papel seria apenas o de rbitro nas disputas entre os

    indivduos e o de mantenedor das condies que permitem aos indivduos gozar

    seus direitos em sua plenitude. O liberalismo enquanto ideologia contou com o

    suporte intelectual de diversos pensadores ilustres, dentre os quais David Hume e

    Jeremy Bentham e para os quais os indivduos eram racionais e capazes decalcular o que seria o melhor para eles sem a interferncia do Estado.

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    O esprito do liberalismo e sua nfase no indivduo permeou todas as

    esferas da vida e do pensamento - tanto cientfica quanto poltica, econmica,

    social e religiosa - e apenas sofreu alteraes com o advento da Revoluo

    Industrial, momento no qual foi permitido ao Estado um papel mais ativo no

    sentido de limitar os efeitos nocivos da competio econmica irrestrita que

    marcou o liberalismo econmico preconizado por Adam Smith e David Ricardo.

    Para os liberais o Estado mnimo era possvel porque eles partiam da presuno de

    que havia uma harmonia de interesses subjacente entre os indivduos. Por isso,

    enfatizavam o papel positivo desempenhado pela opinio pblica ao fornecerem

    orientao aos oficiais do Estado e na produo de boas polticas pblicas,

    inclusive de poltica externa. O Estado no era, ento, visto como um ator unitrio

    e sim um ator composto por diversos indivduos representando mltiplos

    interesses e as decises polticas eram informadas pela opinio publica e um

    consenso poltico derivado de uma contraposio de idias e interesses.

    Essa viso da poltica teve repercusses nas relaes internacionais, pois os

    liberais passariam a entender que mesmo em um ambiente anrquico seria

    possvel promover uma harmonia de interesses, da mesma forma que ela era

    possvel entre os indivduos. A base do pensamento dos liberais era a de que a

    expanso da economia internacional tornaria a guerra mais custosa para os

    Estados, ao mesmo tempo em que a expanso da democracia (ou de governos

    republicanos ou representativos) faria o clculo da guerra ser submetido ao

    escrutnio da opinio pblica domstica a qual refrearia decises de confrontao

    externas. Por fim, os liberais acreditavam que as instituies e o direito

    internacional contribuiriam para a resoluo pacfica de disputas e a promoo da

    cooperao.

    No que tange s emoes, os tericos liberais tenderam - em geral- a tomaras paixes como ameaa poltica e, por isso, ou buscaram meios de elimin-

    las do espao pblico ou procuraram marginaliz-las ao ponto de exclu-las de

    seus debates. Embora tenha havido, no entanto, tericos polticos que ao longo do

    tempo se propuseram a criticar ou desafiar de diversas maneiras o foco excessivo

    dado razo dentro do liberalismo como foram os casos de Jean Jacques

    Rousseau, Edmund Burke, Friedrich Nietzsche e Herbert Marcuse pouqussimos

    foram os que se propuseram a investigar o papel das paixes na teoria polticaliberal ou que apresentaram vises positivas em favor das paixes na poltica. Em

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    suas anlises sobre os homens e a poltica, Max Weber, por exemplo, observou

    que todo homem que se entrega poltica aspira ao poder seja porque o

    considere como instrumento a servio da consecuo de outros fins, ideais ou

    egostas, seja porque deseje o poder pelo poder, para gozar do sentimento de

    prestgio que ele confere. (1967, p.57) Nesse sentido, suas anlises sobre o

    homem e a poltica so geralmente interpretadas como partidrias de uma viso

    racionalista que preconiza a indispensabilidade de uma administrao efetiva das

    emoes pelas lideranas polticas e organizaes mais amplas. Como observa

    Volker Heins,

    Webers fundamental distinctions between means-ends rationality, value-oriented

    rationality, and traditional and affective types of action, ensured from the outset thataffect-driven behavior would be regarded as something of an anomaly, a residual ordisruptive factor in successful rationalization processes. Emotional action is theextreme opposite of instrumentally rational behavior, as its sense is neither rooted inpositively evaluated consequences nor in the kind of systematic orientation towards

    values that distinguishes value-rational action. In its purest form, affect-driven actioneven negates itself since it is merely reactive, an uncontrolled reaction to someexceptional stimulus () A central maxim of Webers writings is that successfulpolitics, and especially successful democratic politics, are conducted with the head,- with a cool and clear head () The more politics is driven by unorganizedmasses, the more irrational, emotional and shortsighted it becomes. Affect driveninfluences must be confined to the pre-political realm of the street, but kept out

    of official politics.() According to Weber, a politics contaminated by strongemotions is not only notoriously ineffectual, it is ipso facto undemocratic. Weberperceives the paradox that a democracy of the streets is no democracy at allbecause it merely intensifies the influence of political speculators, putschists andchance demagogues of all stripes without contributing to the creation of rationalorganizations of any kind. (2007, p.717)

    Dentro desse contexto, assim, como salienta Cheryl Hall,(c)riticisms of

    rationalism in politics generally focus more on problems of technocracy or

    (phal)logocentrism or universalism, or on the dismissal of practical or customaryor perspectival knowledge, than on the disparagement of passion.(2002, p.728)

    Para os liberais, portanto, as paixes tambm so sinnimos de emoes e se

    contrapem razo, sendo a razo entendida como o meio capaz de promover o

    controle e o domnio das paixes dos indivduos. Um dos argumentos mais fortes

    dos liberais justamente o de que, para bem firmarem o contrato social, os

    cidados deveriam se apoiar em suas capacidades para a razo, entendida como

    um corretivo para as paixes individuais. Como observa Robert Solomon, inmany versions of (social contract) theory, justice becomes a matter of reason

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    whose purpose is to counter or control the unruly and usually selfish dictates of

    our natural passions. (1995, p.55)

    As alternativas para o controle das paixes, no entanto, no se restringiram,

    como observamos em nota mais acima, s estratgias de coero e represso. Uma

    segunda alternativa aventada por alguns tericos polticos foi a busca de

    mobilizao das paixes, tendo o Estado e a sociedade sido chamados a

    desempenhar essa misso, agora como agente de transformao e veculo

    civilizador. J no sculo XVII Blaise Pascal, por exemplo, argumentava em favor

    da grandeza do homem referindo-se ao fato de ele ter sabido extrair da

    concupiscncia uma regra admirvel e uma ordem to bela. (apud Hirschman,

    1979, p. 25) A idia geral era a de mobilizar as paixes dos homens, interpretadas

    como negativas e destrutivas transformando-as em virtude para, assim, faz-las

    trabalhar em favor do bem comum. Assim, segundo Giambattista Vico,

    (da) ferocidade, da avareza e da ambio os trs vcios que levaram toda ahumanidade a sua perdio (a sociedade) faz a defesa nacional, o comrcio e apoltica e, assim, ela produz a fora e a riqueza e a sabedoria das repblicas; desses trs

    vcios que seguramente acabariam por destruir o homem na terra, a sociedade fazdesse modo surgir a felicidade civil. Esse princpio prova a existncia da providnciadivina: por obra de suas leis inteligentes, as paixes dos homens inteiramente

    ocupados na busca de sua vantagem privada so transformadas em uma ordem civil epermite aos homens viver em sociedade humana. (idem)

    Autores como Bernard Mandeville e Adam Smith expandiram essa idia

    tendo Smith sido o responsvel por tornar a proposta de mobilizao das paixes

    ainda mais atraente ao substituir os termos vcio e paixo por expresses mais

    suaves como vantagem ou interesse. Nesses termos, a idia de mobilizao

    das paixes tornou-se capaz de sobreviver e prosperar no s como um dos

    principais dogmas do liberalismo do sculo XIX como um dos postulados centraisda teoria econmica. No entanto, essa alternativa tambm se mostrava falha na

    medida em que seus defensores a preconizavam sem, contudo, explicar como se

    daria essa transformao alqumica das paixes14. Por isso, uma terceira soluo

    14Os tericos polticos no ofereceram uma explicao para essa transformao, mas indicamque as paixes tomadas como interesses e interpretadas como virtudes eram aquelas que seapresentavam como convenientes ou teis segundo suas vises sociedade. Exemplos dessaspaixes foram a avareza, a ganncia e o amor de lucro. Elas poderiam ser empregadas de modo

    til para confrontar ou refrear outras paixes tais como a ambio, volpia de poder ou volpiasexual. O critrio de utilidade, no entanto, tambm no era claramente definido e era aplicado poraqueles que estavam no poder.

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    foi pensada a qual implicava o uso de um grupo de paixes contra outro ou como

    forma de sobrepor s paixes reputadas destrutivas outras interpretadas como

    inofensivas, ou como forma de enfraquecer as paixes destrutivas atravs de lutas

    internas. Entre os intelectuais que trabalharam sob esse prisma estiveram Baruch

    Spinoza e David Hume. Em sua obra A tica, Spinoza afirmou que

    Um afeto no pode ser controlado ou removido a no ser por um afeto mais forte eoposto.Nenhum afeto pode ser controlado pelo verdadeiro conhecimento do bem e do mals porque esse conhecimento seja verdadeiro, porm somente na medida em que eleseja considerado como um afeto. (ibidem, p.30)

    Essas passagens atendiam ao propsito do filsofo de sublinhar a fora e a

    autonomia das paixes de modo a demonstrar as dificuldades de se atingir adestinao final que o autor delineou na obra A tica e que se traduzia no triunfo

    da razo e do amor a Deus sobre as paixes. Spinoza foi o primeiro grande

    filosofo, segundo Hirschman, a conferir lugar de honra idia de que as paixes

    podem ser combatidas com sucesso somente atravs de outras paixes. David

    Hume, por sua vez, embora se contrapusesse fortemente filosofia de Spinoza,

    tinha concepes semelhantes s dele no que concernia as paixes e sua relao

    com a razo. Nesse sentido, para Hume em uma interpretao mais radical - aspaixes so impermeveis razo, i.e, a razo para ele e deve somente ser a

    escrava das paixes e, por isso, segundo ele, nada pode retardar ou opor-se ao

    impulso da paixo, a no ser um impulso contrrio. (ibidem, p.31)

    Por outro lado, dentro desse contexto de contraposio entre paixes, a

    razo assumia um papel fundamental para alguns tericos. Como salientou

    DHolbach:

    As paixes so os verdadeiros contrapesos das paixes; no procuremos destru-las,mas esforcemo-nos por dirigi-las: compensemos aquelas que so prejudiciais poraquelas que so teis sociedade. A razo (...) no seno o ato de escolher aquelaspaixes que devemos seguir em favor de nossa prpria felicidade (ibidem, p.33)

    Por fim, vale ressaltar a questo que permaneceu pendente para os que se

    propunham a contrapor paixes: como saber, de um modo geral, quais paixes

    assumiriam o papel de dominadora e quais seriam as que precisariam ser

    domesticadas? Segundo Hirschman, os significados atribudos a determinadas

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    paixes variaram segundo os contextos histricos e foi nesse processo de

    categorizao que surgiu a oposio entre os interesses em relao s paixes,

    com o uso do termo interesse para se referir aos sentimentos valorizados em

    contraste com os que deveriam ser repudiados. Interessante notar que o vocbulo

    interesse at o sculo XVI, no entanto, no se limitava ao significado econmico e

    englobava a totalidade de aspiraes humanas, diferenciando-se, contudo, por

    revelar um elemento de reflexo e clculo com relao maneira pela qual se

    deveria buscar atingir essas aspiraes. Foi essa dimenso de reflexo que passou

    a ser valorizada e associada a determinadas paixes de modo a facilitar sua

    aceitao como virtudes15quando consideradas em relao a sua possibilidade

    de promoo da ordem e do bem geral. (1979)

    Com Maquiavel o termo interesse tornou-se inicialmente sinnimo de razo

    de estado e representou uma declarao de independncia dos preceitos e regras

    moralizadoras que tinham sido o principal pilar da filosofia pr-maquiavlica. No

    entanto, a idia de interesse nesses termos tambm restringia a ao dos prncipes

    e os estudos sobre sua definio continuaram sendo longos e complexos. Por

    outro lado, a idia prosperou de forma notvel quando foi aplicada a grupos de

    indivduos dentro do estado, ajudando a cristalizar a idia de interesse como uma

    mistura de egosmo e racionalidade, e seu contedo - traduzido como um

    entendimento disciplinado do que necessrio para se avanar pessoalmente em

    poder, influncia e riqueza - logo passou a fazer parte do uso popular, tornando-se

    o novo paradigma de comportamento individual.

    Esse entendimento tinha, segundo seus formuladores, duas vantagens: a

    previsibilidade e a constncia. No que concerne ao primeiro caso, a interpretao

    do interesse como motivo dominante no comportamento humano favorecia sua

    tomada como a base para uma ordem social vivel, pois seria possvel extrair deuma pressuposio de uma natureza humana uniforme uma srie de importantes

    proposies acerca da poltica. Assim,(a) idia de que os homens (so)

    invariavelmente guiados por seus interesses seria capaz de conseguir aceitao

    muito mais ampla, e qualquer ligeiro desagrado que a idia pudesse provocar era

    assim banido pelo reconfortante pensamento de que, dessa maneira, o mundo se

    15

    Se analisadas isoladamente eram consideradas ainda vcios e no recomendadas por si mesmas.No entanto, ao serem pensadas quanto a sua utilidade para a promoo da felicidade civil, elaseram aladas condio de interesses e acatadas.

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    tornava um lugar mais previsvel.(op.cit, p.50) Por outro lado, a previsibilidade

    representava uma forma de constncia, uma qualidade que foi central para o

    acatamento da idia de um mundo governado pelo interesse. O carter instvel e

    imprevisvel da maior parte dos comportamentos passionais foi freqentemente

    acentuado e apresentado como censurvel e perigoso. A partir da segunda metade

    do sculo XVII, no entanto, a viso excessivamente pessimista da natureza

    humana elaborada por Maquiavel e Hobbes passaram a ser amenizadas, o que no

    eliminou, contudo, o entendimento da inconstncia como uma dificuldade central

    para a criao de uma ordem social vivel. Nos contratos sociais propostos por

    Pufendorf e Locke a incerteza a qual os autores se referem relaciona-se com a

    inconstncia do homem. Nesse sentido, Hirschman observa que

    Embora Locke no recorra ao interesse para manter a inconstncia sobre controle,existe claramente uma afinidade entre a Comunidade de Naes que est tentandoconstruir e a imagem seiscentista de um mundo governado pelos interesses. Poisesperava-se ou supunha-se que os homens, na busca de seus interesses, fossem firmes,resolutos, metdicos, tendo esse propsito como nica motivao, em total contrastecom o comportamento estereotipado de homens fustigados e obcecados por suaspaixes. Esse aspecto da questo tambm nos ajuda a compreender a eventualidentificao do interesse, no seu sentido amplo e original, com uma determinadapaixo particular, o amor pelo dinheiro. As caractersticas que se percebiam nessa pai-xo, e que a distinguiam das outras, eram precisamente a constncia, teimosia e a

    imutabilidade de um dia para o outro e de uma pessoa para a outra. (op. cit, p. 54).

    Retomando o desenrolar dos debates sobre segurana, observamos que o

    advento da Primeira Guerra Mundial instigou os lderes polticos daquele perodo

    e estudiosos de diversas disciplinas a tentar compreender os motivos que levaram

    as grandes potncias a entrarem em guerra e a continu-la mesmo diante de tanta

    devastao e sofrimento humano. Enquanto os realistas assumiram uma postura

    de ceticismo em relao ao comportamento humano, muitos foram os que

    assumiram postura oposta, acreditando que valores democrticos liberais seriam

    um meio pacfico ou o nico meio de impedir uma nova guerra. Entre os que

    assumiam essa postura otimista estava Woodrow Wilson, o presidente norte-

    americano que ocupou a presidncia de 1912 a 1922. Seu pensamento sobre

    poltica internacional era fortemente influenciado pelo liberalismo e em razo

    disso essa forma de pensamento passou ento a contar com o slido suporte

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    poltico do Estado mais forte do sistema internacional daquele momento. (Claude,

    1984)

    O objetivo de Wilson era tornar o mundo mais seguro para a democracia e

    sua viso liberal foi o grande marco a orientar o programa dos 14 pontos

    apresentado ao Congresso norte-americano em 1918. Esse programa procurava

    ajudar a construir uma nova ordem internacional para o ps guerra e defendia -

    entre outras coisas - o trmino da diplomacia secreta, o livre-comrcio, a reduo

    de armamentos at o mnimo para manter a segurana domstica, a auto-

    determinao dos povos como forma de resoluo das reivindicaes coloniais e

    territoriais e a criao de uma associao geral de naes que fosse estabelecida

    com a finalidade de garantir a independncia poltica e a integridade territorial de

    grandes e pequenas naes de forma igualitria. Essa ltima proposta se

    consubstanciaria na criao da Liga das Naes, implementada pela Conferncia

    de Paris, em 1919. Dentre as idias de Wilson para um mundo mais pacfico, os

    dois pontos fortes eram, sem dvida, a crena de que a promoo da democracia e

    da auto-determinao seriam bases importantes para a consolidao da paz no

    mundo, e a criao de uma organizao internacional que estabeleceria as relaes

    entre os Estados em uma fundao institucional mais firme do que as experincias

    do Concerto Europeu e a dinmica da balana do poder, sustentadas pela

    perspectiva realista. No primeiro ponto, o entendimento era o de que Estados

    democrticos tenderiam a sustentar relaes pacficas entre si e que medida que

    o nmero de pases governados por esse modelo aumentasse, um certo tipo de

    espao de paz e prosperidade se formaria.

    Assim, segundo esse entendimento, o crescimento da democracia liberal na

    Europa colocaria um fim aos lderes autocrticos e tendentes guerra e os

    substituiria por governos democrticos liberais e pacficos. A equao eraestabelecida nos termos de que democracia liberal = paz. (Burchill, 1995, p.32)

    No que concerne o segundo ponto, Wilson acreditava que relaes internacionais

    reguladas por meio de um conjunto de regras comuns de direito internacional

    encampadas em instituies e organizaes internacionais subjugaria os Estados e

    seus polticos e garantiria uma paz permanente, o que refletia a grande influncia

    filosfica de Immanuel Kant e sua obra A Paz Perptua. Nessa obra Kant elaborou

    o conceito de federao pacfica para explicar a idia de um conjunto de Estadosdispostos a compartilhar uma forma republicana de governo.

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    Na concepo de Kant, as guerras decorreriam de formas de governo

    imperfeitas, ou seja, formas de governo que permitiam arbitrariedades por parte

    dos lderes ou soberanos cujos atos estariam voltados para a satisfao de seus

    interesses pessoais. Em formas de governo como as repblicas, no entanto, o

    poder estaria baseado na representao dos interesses coletivos, no consenso,

    transparncia e publicidade das decises polticas. Por conseqncia, seria muito

    mais difcil para esses lderes lanarem-se em guerras, porque tal deciso

    implicaria submeter a questo maioria, i.e, aos cidados, que procurariam avaliar

    se a justificativa para o risco de perda de vidas humanas e patrimnio em uma

    determinada guerra legtima e racional.

    Pontuemos aqui tambm a importncia de Kant para o debate sobre as

    emoes. O pensamento de Kant sustenta em vrios aspectos a dicotomia entre

    razo e as emoes, sendo as emoes classificadas por ele como apetites e a

    razo interpretada como a fonte imparcial de comportamento moral. No que

    concerne a justia, os objetivos centrais dos liberais de imparcialidade, rule of

    Law e tolerncia so todos concebidos como uma tentativa de reforo da razo

    como forma de proteger os indivduos de suas paixes. Segundo Nancy

    Rosenblum, traditionally liberalism has warded off everything affective, personal

    and expressive. That is the promise of impersonal government, and that is what

    the discipline of tolerance and impartiality requires(1987, p.4) Nessas leituras

    alm do favorecimento explcito da razo - permanecem implcitas vrias

    concepes de paixo como sinnimos de egosmo e instabilidade. No entanto,

    em nenhuma dessas leituras se discute o fato de que o compromisso com a justia

    em si mesmo uma paixo, se ela for compreendida como uma forma de apego

    promoo do bem comum.

    Ainda nesse perodo do entre guerras existiu outro proeminente defensor daperspectiva liberal. Norman Angell publicou em 1919 a obraA Grande Ilusona

    qual ele definia como iluso o fato de muitos polticos ainda sustentarem a crena

    de que a guerra serve a propsitos lucrativos e que seu sucesso eminentemente

    proveitoso ao vencedor. Para Angell, contudo, o que ocorreria seria exatamente o

    contrrio, pois em tempos modernos atividades como a conquista territorial

    seriam bastante custosas e politicamente desagregadoras dado que trazem grandes

    prejuzos para o comrcio internacional. Ainda, segundo o autor, a modernizaodemandaria dos Estados uma necessidade crescente de produtos oriundos do

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    mbito externo o que geraria um grau maior de interdependncia entre os Estados

    que foraria os mesmos a mudar as relaes entre si e sua viso sobre a guerra. A

    guerra, assim, perderia espao e importncia para as preocupaes dos Estados em

    investir em uma estrutura capaz de regulamentar os altos nveis de

    interdependncia. Em resumo: o progresso tornaria a guerra e o uso da fora

    prticas obsoletas. (2002)

    No entanto, embora essas concepes tenham logrado constituir a Liga das

    Naes, elas tiveram flego limitado ao longo dos anos 20, dado que os Tratados

    de Versalhes, que encerraram a Primeira Guerra Mundial, tinham um carter

    extremamente punitivo para os pases perdedores e, ao final das contas, no

    colocavam um fim nas tenses que deram origem disputa. Em conseqncia, o

    que se assistiu foi o fracasso da Liga das Naes em dirimir as intenes

    expansionistas do Japo e da Alemanha e a derrota da democracia liberal frente ao

    surgimento e crescimento de governos autoritrios em vrios pases da Europa.

    Sob os auspcios da Liga, um ato de guerra contra outro membro da Liga seria

    considerado um ato de agresso contra toda a comunidade internacional. Esse

    compromisso entre os Estados se traduz na aplicao do princpio da segurana

    coletiva e ele deveria garantir que os Estados renunciassem formalmente ao uso

    da fora como forma de resoluo das disputas internacionais.

    Contudo, a idia de segurana coletiva fracassa consideravelmente nos anos

    30. Para os pases perdedores da Primeira Grande Guerra, a Liga das Naes

    apenas serviria aos interesses das potncias vencedoras de preservao do status

    quo e no preservao da paz. Ao final, os Estados perdedores no se

    submeteram s normas da Liga e a Liga, por sua vez, no contou com poderes

    coercitivos e vontade coletiva para evitar os atos de agresso que se sucederiam.

    Ainda, paradoxalmente, a criao da Liga acabou provocando a consolidao dasconcepes de soberania nacional como um princpio que deveria ser

    universalmente aplicvel, o que apenas acabou transformando as disputas entre

    minorias nacionais e tnicas em disputas entre Estados, sem, no entanto, produzir

    a paz desejada. (Claude, 1984)

    Assim, com a ocorrncia da Segunda Guerra Mundial as chances de

    sobrevivncia do pensamento liberal utpico como paradigma durante esses anos

    conturbados ficaram ainda mais comprometidas e sua reconsiderao s veio aocorrer ao longo das dcadas de 50, 60 e 70 e por motivos diversos. Ademais, os

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    embates nacionalistas foram, para os liberais, o principal motivo de

    marginalizao e sufocamento das emoes dentro da prpria teoria e da prtica

    poltica nas dcadas subseqentes.

    A construo mtica que compe o nacionalismo e que partilhada pela

    comunidade imaginada de indivduos os inspira a um sentimento de

    pertencimento que alimenta outras emoes entre elas o sentimento de amor

    prpria comunidade e amor de auto-sacrifcio. (Anderson, 1983) No entanto,

    desde que a idia de nao foi concebida e atrelada aos Estados16, esses

    sentimentos foram sucessivamente manipulados por elites polticas gerando

    efeitos mais disruptivos do que agregadores, tendo freqentemente resultado em

    16 Como observa Eric Hobsbawn, no perodo seguinte Revoluo Francesa os governantes e associedades da poca comearam a desenvolver preocupaes relacionadas nao e aonacionalismo. O novo arranjo poltico do Estado moderno oferecia considervel poder de voz aoscidados e, por isso, o Estado buscou se adaptar de modo a desenvolver agncias governamentaispara exercer controle sobre esses cidados e a se dedicar a promover elementos que garantissem alealdade e identificao dos cidados com o Estado. Com a democratizao dos Estados e aparticipao dos cidados em processos eleitorais, houve um empoderamento das classes maisbaixas que fomentou, entre outras coisas, o crescimento de movimentos trabalhistas e socialistas eas preocupaes das elites dentro dos Estados. Nesse contexto, o Estado passa a depender da naoe a buscar no patriotismo uma forma de proteo contra outras formas de identificao quefragmentassem o Estado ou enfraquecessem a identificao dos cidados com o Estado como

    sendo a primordial. No perodo do entre guerras, essa preocupao se traduziu no princpio danacionalidade defendido por Woodrow Wilson o qual se props a fazer as fronteiras dos Estadoscoincidirem com as fronteiras da nacionalidade e da lngua. Contudo, as implicaes desseprincpio foram bastante nefastas: diante da real distribuio dos povos que apenas permitiu aformao de Estados multinacionais o princpio da nacionalidade resultou na aplicao deestratgias de homogeneizao populacional que variaram desde a expulso macia at oextermnio de minorias e o genocdio em massa. (1990) O fato que a aplicao desse princpioreforou sentimentos de intolerncia em relao diferena dando ensejo ao uso da violncia emlarga escala.

    No momento contemporneo, as discusses sobre nacionalidade e outras formas deidentidade coletiva como a etnicidade passaram a ser alvo de discusso em relaes internacionaisde forma mais aprofunda por conta dos novos conflitos nacionalistas de contedo tnico ereligioso que marcaram a dcada de 90. Para maiores exploraes sobre o tema ver Ferreira,

    Renata B. A Guerra da Bsnia : 1992-1995 Fatores explicativos da prtica da limpeza tnicaperpetrada pelos srvios contra os muulmanos- bsnios, dissertao, PUC- Rio, 2001. No entanto,como salientamos mais acima, nem mesmo nesses debates houve uma preocupao em discutir ostermos segundo os quais as emoes estavam sendo interpretadas. Em um artigo publicado em1996, David A. Lake e Donald Rothchild, por exemplo, se propuseram a analisar as origens dosconflitos tnicos e observaram que a polarizao das sociedades eram intensificadas por fatoresno racionais como memrias poltica, mitos e emoes. Nas palavras dos autores,Emotions may also cause individuals and groups to act in exaggerated or potentially irrationalways that magnify the chances of conflict. Many analysts point to a deep psychological perhapseven physiological need for humans to belong to a group. In the process of drawing distinctions,however, individuals often overstate the goodness of their own group while simultaneouslyvilifying others. Where such emotional biases exist, groups are likely to interpret the demands ofothers as outrageous, while seeing their own as moderate and reasonable; to view the other as

    inherently untrustworthy, while believing themselves to be reliable;() ( p.56 ) Novamente, comopodemos observar, h um reforo da interpretao predominante das emoes como opostas razo e como elementos disruptivos e desagregadores das sociedades.

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    grandes guerras e milhares de mortos. Isso porque como Jack Snyder e Karen

    Ballentine observam, mitos nacionalistas podem

    overemphasize the cultural and historical distinctiveness of the national group,

    exaggerate the threat posed to the nation by other groups, ignore the degree to whichthe nations own actions provoked such threats, and play down the costs of seekingnational goals through militant means. Nationalist mobilization against alleged threatsfrom other national groups, whether within the state or abroad, heightens the risk ofconflict by stereotyping opponents as irremediably hostile, yet inferior and vulnerableto vigilant preventive attack. (1996, p. 11)

    Aps a atuao de Hitler ao longo da Segunda Guerra Mundial, as emoes

    foram avaliadas mais fortemente como sinnimo de irracionalidade17 e o

    Keynesianismo do ps- guerra passou a ser tomado pelos liberais como o remdioao problema de excesso de emocionalismo poltico-nacionalista que marcou os

    anos anteriores. Em sua dimenso poltica, esse perodo contou com o pensamento

    de Joseph Schumpeter que argumentava que as noes clssicas de democracia -

    17Vale mencionar aqui as reflexes de Hannah Arendt sobre o lugar e o significado das emoesna vida pblica. Embora ela seja anti-Weberiana em todas suas reflexes sobre a poltica, a autoratambm entende que a esfera racional pblica deve ser policiada contra as intruses emocionais.Segundo Arendt, as questes pblicas no podem ser verdadeiramente democrticas se foremgovernadas por sentimentos, ainda que nobres. Ao contrrio, a poltica para ela deveria ser

    comprometida com idias como a honra ou a dignidade, ainda que elas possam aparentar frieza ouabstrao. (1963) A autora se mostrava preocupada com a subverso de uma idia abstrata poremoes sem controle porque compreendia como essas emoes eram com freqncia no oresultado de um encontro entre indivduos, mas de discursos pblicos que se reproduzem naimaginao pblica e que, para ela, representam uma caracterstica catastrfica da polticamoderna em geral. Em sua anlise sobre a Revoluo Francesa ela de muitas formas perpetuou adiviso clssica entre emoo e razo ao favorecer a idia de comprometimento da esfera pblicacom a razo. Segundo Volker Heins, (i)n her account of the French Revolution,, she not onlyestablished a close link between the needy masses and disruptive collective emotions but alsoreduced both to the realm of nature and of the necessity of biological life itself, thereby re-animalizing both poor and the emotions. ( 2007, p. 725)No entanto, segundo Heins, a leitura dos textos de Arendt trazem dois elementos importantes quevalem ser mencionados aqui: reflexes sobre outros tipos de emoes como a vergonha, a culpa e

    o orgulho as quais refletem as circunstncias e o tempo por ela vivido, e uma preocupao aindamaior com o uso das emoes na poltica, i.e, a completa ausncia de emoes. Na anlise deVolker Heins,While her analysis of revolutionary pity suggests that Arendt champions something of a radicalde-emotionalization of the public sphere, other writings convey a different message. In her Reportfrom Germany, a few years after the end of the war, she expresses shock and bewilderment aboutthe general lack of emotion and the apparent heartlessness of many German she met. Sheclearly holds this type of civic heartlessness as a serious political pathology. () (S)he notices alink between the lack of emotion and the widespread escape from reality among Germans afterthe war. The inability not only to feel guilt but also to yield to grief about the catastrophicdestruction which came over Europe as a result of their action or inaction fostered deep socialconfusion by shielding people from acknowledging the basic facts of their recent history andcurrent situation. In this manner, Arendt anticipates the insight of recent cognitive psychologists

    who insist that emotions, far from always blinding us to reality, often help us to deal withunexpected junctures, when new goals must be formulated and our life must be reorganized.(idem)

    PUC-Rio-CertificaoD

    igitalN0610639/CA

  • 7/25/2019 O Trauma Come Inseguranca0_cap_2

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    entendida como participao popular - deveriam ser guardadas em favor de um

    entendimento de que seria aconselhvel que os cidados seguissem especialistas

    polticos eleitos. Os cidados (should) respect the division of labor between

    themselves and the politicians they elect e precisariam entender que once they

    have elected an individual, political action is his business and not theirs

    (Schumpeter, p. 256, 1986) Assim, a democracia passou a ser entendida como

    uma forma de auto-controle sobre as emoes e envolvia uma subordinao

    voluntria.

    Nas referidas dcadas de 50, 60 e 70, grande parte das relaes

    internacionais estavam intimamente imbricadas com dinmicas de comrcio e

    investimentos e interaes entre as democracias liberais ocidentais. Nesse

    contexto, os liberais se sentiram novamente estimulados a formular alternativas ao

    pensamento realista, procurando, no entanto, evitar o tom idealista que havia

    marcado o liberalismo dos anos 20. Esse novo liberalismo, ento, retoma as

    premissas liberais, mas se afirma na busca por progresso e mudana a partir da

    realidade do ps 1945 e na formulao de teorias com base em metodologias

    behavioristas. Cabe aqui lembrar tambm a importncia do behaviorismo para as

    relaes internacionais enquanto disciplina. O Behaviorismo comps o segundo

    grande debate nas relaes internacionais e se contraps aos tradicionalistas ao

    buscar conferir um carter cientfico aos estudos da rea, com foco nos fatos

    observveis, informaes determinveis, clculos precisos e no acervo de dados

    que ajudassem a identificar os padres comportamentais recorrentes. Para seus

    adeptos os fatos- ao contrrio do pensamento tradicionalista- estavam separados

    dos valores os quais eram menosprezados por no poderem ser estudados de

    forma cientfica.

    No que concerne ao campo da psicologia, os behavioristas estudam ocomportamento, mas no a mente. Para eles, as pessoas respondem a incentivos e

    entender esses incentivos entender o comportamento. Como observou John B.

    Watson em seu manifesto behaviorista, (p)sychology as the behaviorist views it

    is a purely objective experimental branch of natural science. Its theoretical goal is

    the prediction and control of behavior. (1913, p.158) Para eles, os psiclogos no

    deveriam estudar processos mentais, mas apenas comportamentos porqu