O uso da informação quantitativa_Heitor Pinto de Moura Filho

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O u s o d a in fo r m a o q u a n t ita tiv a e m H ist r ia 1 T p ic o s p a r a d is c u s s oThe use of quantitative information in History Topic for discussionHeitor Pinto de Moura Filho*Artigo recebido e aprovado em maro de 2008

Resumo:Este texto trata da informao quantitativa enquanto instrumento historiogrfico: suas caractersticas individuais e as que apresenta quando em conjunto, sua capacidade de descrever os fenmenos histricos e os usos que lhe do os historiadores. Examina em especial o sentido e os limites da preciso quantitativa na prtica historiogrfica. Aborda diversos aspectos sobre o objeto da informao quantitativa, o processo de sua gerao e o padro em que expressa. Utiliza o conceito de foco do historiador, que combina as escalas temporal, espacial e conceitual, alm do conjunto de fontes empregadas. Analisa conseqncias da homogeneidade e da heterogeneidade de sries temporais e dados sincrnicos.

Palavras-chave:mtodos quantitativos; estatstica; argumento historiogrfico

Abstract:This paper discusses quantitative information as a historiographic instrument: its individual characteristics 1 Dedico este texto memria do Professor Rio Nogueira (1922-2005), idealizador, nos anos 60, de estrutura atuarial inovadora para os fundos de penso brasileiros, cuja preciso vocabular e facilidade de expresso lgica foram meu primeiro contato com as potencialidades da matemtica. Esta a primeira parte de texto mais longo, que discute, ainda, a composio e o tratamento de informaes quantitativas, bem como a argumentao sobre esses dados. Uma verso preliminar desses tpicos foi apresentada no 52 Congresso Internacional de Americanistas, Sevilha, 17-21 julho de 2006, no Simpsio EST 13-Historiografia, Metodologia y Anlisis, com o ttulo "Quantitative information in writing history notes for discussion". Economista (FEA-UFRJ) e Mestre em Histria Social (IFCS-UFRJ).

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and those it shows in sets of data, its capacity to describe historical phenomena and the uses historian give to them. It specially examines the sense and limits of quantitative precision in historiographic practice. It also discusses various aspects of the object of quantitative information, its process of generation and the standard in which it is expressed. The paper makes use of the concept of a historians focus, which combines time, space and conceptual scales, as well as the set of sources employed. It analyses the consequences of homogeneity and heterogeneity in time series and synchronic data.

Keywords:quantitative methods; statistics; historiographic argument

Em primeiro lugar, preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida cientfica os problemas no se formulam de modo espontneo. justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro esprito cientfico. Para o esprito cientfico, todo conhecimento resposta a uma pergunta. Se no h pergunta, no pode haver conhecimento cientfico. Nada evidente. Nada garantido. Tudo construdo2.

Examinamos, neste texto, caractersticas e usos da informao quantitativa enquanto instrumento historiogrfico. Optamos por uma exposio em tpicos, talvez mais taxonmica do que terica, porm que consideramos mais incentivadora de discusses coletivas. Os tpicos so reunidos em dois grupos: caractersticas de uma informao quantitativa isolada e em conjunto. Propomos discutir, distribudos por esses ttulos, aspectos variados da informao quantitativa, que passaremos a notar resumidamente como IQ. Os aspectos escolhidos seguem o que poderamos chamar de ciclo vital da IQ: partindo do objeto contado ou medido, definimos o padro comparativo dessa contagem ou medio; esclarecemos a representao numrica dada IQ; explicitamos o processo dessa mensurao (a includo o agente que realiza tal processo); chegamos aos conjuntos de IQs resultantes; discutimos o tratamento a que submetida a IQ e a retrica quantitativa na qual empregada dentro de uma argumentao3. Sendo o temaLocus: revista de histria, Juiz de Fora, v. 14, n. 1 p. 41-90, 2008

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Gaston Bachelard, A formao do esprito cientfico, 1967 Decomposio analtica semelhante j era proposta em 1865, por Thodore Mannequin, que, alm de alguns dos elementos que

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muito amplo, o principal objetivo desse trajeto expor conceitos e armadilhas que afetam o entendimento historiogrfico das IQs, apontando limites e dificuldades ao seu uso. Procuraremos seguir um formato semelhante para cada tpico, composto por seu enunciado e um rpido comentrio, eventualmente acompanhado por exemplos e citaes. Embora alguns dos tpicos abordados possam parecer bastante bvios, simplesmente descritivos do quotidiano do historiador, cremos que seu enunciado nos explicita caractersticas nem sempre compreendidas ou respeitadas pela prtica profissional. Apesar da expresso propositadamente afirmativa dos tpicos, rechaamos uma inteno dogmtica, buscando antes o mais claro entendimento do leitor para cada aspecto focado. Esperamos que tais afirmaes possam ressoar na experincia de cada um ou, alternativamente, sejam capazes de motivar crticas, qualificaes, comentrios e sugestes.

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Caractersticas de uma informao quantitativa isoladaEsse primeiro grupo de tpicos trata de caractersticas intrnsecas a cada informao quantitativa, isto , independentes de outras IQs a que esteja associada, do tratamento a que foi submetida e, tambm, do raciocnio em que se quer empreg-la. Com este recorte analtico, queremos explicitar entidades, caractersticas e relacionamentos freqentemente tomados como um bloco, mas cuja individualizao deve nos oferecer uma percepo mais clara da complexidade implcita no vocabulrio e nas prticas historiogrficas.

1 Uma IQ referenciada a um objetoO primeiro e essencial elemento da IQ seu objeto, o que se quer contar ou medir. Tal objeto ser o fulcro do raciocnio deabordamos aqui (o objeto medido, o instrumento da medio e seu resultado numrico), considerou tambm o motivo racional para se realizar a medio, o que podemos associar aos tpicos sobre argumentao. MANNEQUIN, Thodore. Ides relatives la msure conomique. Contradictions et consquences. Journal des conomistes, v.2e. Srie XLVI, n.15 avril, p.17-35. 1865.

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senvolvido pelo historiador com auxlio dessa IQ. Podemos associar a cada objeto sua definio, suas fontes e, mais indiretamente, o sentido que o historiador lhe deseja conferir em sua argumentao. Conforme veremos adiante, til distinguirmos o conceito de objeto das pessoas ou coisas contadas (ou medidas), que ficam mais bem individualizadas se vistas como instncias deste objeto.Para qu...reunir e classificar dados numricos, se no for para responder a uma pergunta precisa?... Se o fato mensurvel, deve tambm ser ao mesmo tempo qualificado e apreciado4.

A questo primordial associada a uma IQ qualitativa: antes de contar ou medir necessrio classificar, afirmar que certa pessoa ou coisa pertence a uma classe. Afirmar, alm disso, que os elementos desta classe exibem certa propriedade comum, que exatamente o objeto que poder ser contado ou medido5. Num passo adiante, Humberto Maturana lembra que quantificar no sinnimo de fazer cincia.O que torna cientfica uma explicao ou teoria cientfica no a quantificao ou a possibilidade que ela cria, para o observador, de predizer algumas de suas futuras experincias (...) Quantificaes (ou medies) e predies podem ser usadas na gerao de uma explicao cientfica, mas no constituem a fonte de sua validade6.4

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SOBOUL, Albert. Descrio e medida em histria social. In: GODINHO, Vitorino Magalhes (Ed.). A histria social. Problemas, fontes e mtodos. Lisboa: Edies Cosmos, 1973. p.25-52. (Colquio da ENS de St.Cloud, 15-16 de Maio de 1965) [1967] Segundo Amsterdamski, a medio pressupe trs tipos de conceitos: classificatrios (de incluso em alguma classe), comparativos (que permitem ordenar os elementos segundo certa propriedade) e quantitativos (que atribuem a cada elemento uma medida expressa num nmero inteiro ou real. AMSTERDAMSKI, Stefan. Experimentao. In: Romano, Ruggiero (Ed.). Enciclopdia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, v.33 Explicao, 1996. p.449-477 MATURANA R., Humberto. Cognio, cincia e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2001. 203 p.

Um dos principais objetivos deste texto explicitar atributos e limites dos objetos mensurados, para auxiliar o historiador e seus leitores nas avaliaes de fontes, tratamentos e argumentos sobre IQs, com que se deparam no correr de seu trabalho cientfico.

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1.1 Os objetos medidos evoluram historicamente, tornando-se mais abstratos e mais complexosComo um primeiro grupo de objetos que foram mensurados, podemos identificar as entidades naturais, atavicamente reconhecidas por exemplo, homem, mulher, animal, terra, planta, tempo, esforo. Esses conceitos surgiram e se desenvolveram, sem dvida, acompanhando a evoluo humana. Podemos colocar num patamar logo em seguida os conceitos decorrentes da vida em sociedade e da evoluo institucional do humem tribo, pas, propriedade, entre outros. Os objetos escolhidos pelo Estado (em todas as suas transfiguraes), como organizador dessa vida social, constituem o principal conjunto de objetos contados e medidos. Esse esforo do Estado logo se estruturou em recenseamentos (demogrficos, militares, tributrios ou simplesmente estatsticos), que permanecem como uma das importantes fontes coevas de IQs....o que nos chama ateno, nesta diversidade de civilizaes, a generalizao do processo. Por toda parte onde o poder se constitui, conta-se. E, quando o Estado adquire certo tamanho, recensea-se. Os dirigentes so levados a se interessar pelo nmero de seus sditos, no somente por orgulho, mas por razes fiscais e militares. Recensear torna-se indispensvel a governar7.

A evoluo desse panorama de objetos considerados mensurveis se confunde com o prprio desenvolvimento das faculdades intelectuais do homem e com a histria da humanidade. No havia porque medir com preciso glebas de terra se no existisse

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DUPQUIER, Jacques e DUPQUIER, Michel. Histoire de la dmographie. La statistique de la population des origines 1914. Paris: Librairie Acadmique Perrin. 1985. 462 p. (Pour lHistoire).

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um vizinho disputando o campo ou um senhor a exigir trabalho sobre aquele pedao, embora no se possa precisar quando o agricultor, ao dizer (ou pensar) Hoje colhi mais do que ontem, tenha ficado curioso em saber quanto mais? Ou, ao perceber o inverno chegando mais cedo, teria pensado Ser que o que colhi at agora vai agentar at o fim desse inverno? Mediu-se, de incio, o que se tinha volta, o que interessava diretamente a cada um, no seu ambiente mais imediato. Com o aparecimento de relaes sociais mais complexas, surgem novos objetos de medio: por exemplo, o tempo de trabalho devido ao senhor, o tamanho das terras do senhor a serem cultivadas e as tarefas dirias a serem cumpridas. O historiador pode valer-se do paralelismo entre a evoluo intelectual do homem e de suas instituies sociais, seja para entender a sociedade atravs das IQs que esta produziu ao longo de sua evoluo, seja, em sentido contrrio, para criar objetos e buscar suas respectivas IQs a partir das condies que reconhece numa sociedade8.

1.2 A definio nominal do objeto pode no corresponder s intenes analticas do historiador comum encontrarmos IQs repetidas, numa genealogia bibliogrfica, sem maiores preocupaes por parte de cada historiador, ao citar seus predecessores, de entender e avaliar o objeto original. Cabe a cada autor novamente verificar a coerncia entre o objeto mensurado no passado e o objeto que pretende discutir em seu texto. A coincidncia vocabular ou at mesmo de coisa fsica, em diferentes pocas, no implica necessariamente em objetos idnticos, nem em usos ou significados semelhantes em cada contexto social.8

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O prprio desenvolvimento da matemtica se inclui nessa evoluo intelectual. Pode-se dizer que a geometria e a aritmtica foram inventadas para os agrimensores egpcios e para os intendentes e astrlogos caldeus. Encaradas como tcnicas de medida e clculo, isto parece verossmil; mas a matemtica s comea verdadeiramente quando o medidor e o calculador se interessam pelo funcionamento da sua tcnica e a instituem como uma espcie de jogo cujas idias directrizes so a inveno e a demonstrao. GRANGER, Gilles-Gaston. Matemticas. In: ROMANO, Ruggiero (Ed.). Enciclopdia Einaudi v.21 Mtodo-Teoria/modelo. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1992. p.104-182

H sentidos diversos para palavras idnticas. Como exemplo recorrente, temos as unidades de medida, entre elas nossa antiga arroba, hoje metrificada em 15 quilos, mas que j teve diversos outros padres. Ao longo dos sculos, a qualidade de uma partida de acar tido como branco sofreu variaes que merecem avaliao ao organizarmos uma srie secular com quantidades movimentadas do produto. Afastando-nos em direo a comparaes mais problemticas, a noo, para pessoas em pocas distintas, do esforo envolvido em transportar mercadorias hoje em geral unicamente embutido no valor econmico do frete outro aspecto que o mero encadeamento de IQs, como preos cif e tempos de viagem, atemporais em sua expresso numrica, nem sempre consegue traduzir adequadamente. Os riscos envolvidos numa viagem transatlntica, o desgaste de escravos e animais em trazer produtos europeus do porto de Santos at uma fazenda no interior de So Paulo, toda a ebulio econmica resultante da passagem das tropas por um arraial serrano e at o benefcio subjetivo sentido pelo proprietrio da mercadoria, decorrente de usufruir deste valioso produto, trazido de origem to distante, so questes dificilmente abordadas na discusso de IQs e, alm disso, de estimao quantitativa efetivamente complicada. O que estaramos de fato comparando ao dizer que um frete custou tantos mil-ris e levou trs meses no incio do sculo XIX, enquanto hoje custaria tantos dlares e leva cinco dias? Para fechar esta lista de exemplos soltos, lembramos que a busca de um padro comparativo para expresses monetrias de diferentes pocas um problema econmico conhecido e cujas solues, embora convencionais e amplamente aplicadas, nem por isso se encontram adequadamente resolvidas. O que estaramos de fato medindo ao associar o valor de mercadorias ao longo do tempo ao de um metal ou de uma unidade monetria institucional? Voltaremos mais adiante a algumas dessas questes.

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1.3 A evoluo historiogrfica levou os historiadores a buscarem diferentes objetos de estudo, alm de produzirem, eles prprios suas IQs sobre objetos no necessariamente quantitativosAs prprias atividades historiogrficas e tericas nas cincias sociais passaram a gerar conceitos, eventualmente passveis de contagem ou medio sob alguns de seus aspectos sociedade, capital, foras produtivas ou agentes econmicos. As

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tendncias historiogrficas surgidas nas ltimas dcadas do sculo XX vieram acrescentar ainda outros objetos a esse conjunto: culturas, mentalidades, desejos etc. Nos ltimos dois sculos, as medies de certos temas restritos econmicos, demogrficos, antropomtricos e, mais recentemente, as opinies transformaram-se em especialidades acadmicas. Nesses mesmos sculos, os governos tomaram a si a tarefa de produzir estatsticas regulares sobre quase todos os aspectos da vida humana, atravs de pesquisas, censos e, hoje em dia, pela monitorao eletrnica. Na historiografia tradicional, as IQs mais encontradias foram simplesmente transcritas das fontes, onde j se apresentavam em forma numrica. Jos Honrio Rodrigues apontou o incio do processo de distanciamento cientfico que se seguiu:...passou-se a compreender que era impossvel aceitar uma verdade histrica at que a credibilidade do autor em geral e se sua determinao em particular fosse sistematicamente investigada. O documento que antigamente era chamado de autoridade adquiriu uma nova expresso e passou a chamar-se fonte, uma palavra que indica apenas que ele contm uma informao, sem que isso implique na determinao do seu valor9.

Um dos importantes cortes oferecidos pela histria serial e pela demografia histrica foi exatamente incentivar o historiador a, alm de buscar medies feitas no passado, fazer suas prprias contagens sobre fontes, no necessariamente quantitativas. Incentivaram o historiador, ainda, a buscar concluses sobre objetos outros que aqueles diretamente medidos por suas sries. Com isso, um conjunto de novos objetos passou a integrar o rol dos mensurveis e daqueles analisveis atravs de instrumentos quantitativos. Vale citar, entre tantos exemplos possveis, a tabulao que faz Pierre Goubert do local de nascimento dos cnjuges, segundo sua distncia da parquia em que se deu o casamento, comparando dois perodos, no final do sculo XVII e no final do sculo XVIII109

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RODRIGUES, Jos Honrio. Teoria da Histria do Brasil. So Paulo: Companhia Editora Nacional. 1957. 660 p. (BrasilianaGrande Formato) [1949] GOUBERT, Pierre. Cent Mille Provinciaux au XVIIe Sicle

e, mais recentemente, o clculo do Intervalo cronolgico entre a posse da comenda e o desempenho de mandatos na Cmara e na Misericrdia, feito por Mafalda Soares da Cunha com relao a fidalgos portugueses no sculo XVII11. Furet descreveu esse importante passo, dado inicialmente pela historiografia francesa na busca de novos objetos aos quais aplicar sua metodologia serial. Em conseqncia, tornou-se patente que os objetos histricos eram efetivamente criados pelos historiadores:A codificao dos dados pressupe sua definio; sua definio implica em certo nmero de escolhas e de hipteses... Assim cai definitivamente a mscara de uma objetividade histrica que estaria escondida nos fatos e descoberta juntamente com eles; o historiador no pode mais escapar conscincia que ele construiu seus dados e que a objetividade de sua pesquisa se deve ao emprego de procedimentos corretos na elaborao e no tratamento de seus dados, mas tambm a sua pertinncia s hipteses de sua pesquisa12.

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Trata-se de manter claro, portanto, o que se est medindo e o que ficou fora dessas medies, assumindo o historiador completa responsabilidade por seus objetos.

1.4 O objeto de uma IQ um conceito, que no contado nem medido. Instncias especficas deste objeto que so contadas ou medidas.Esta distino, metodolgica, fundamental, pois encerra muitas das dificuldades conceituais e tcnicas associadas s IQs. Um srie demogrfica pode ter habitantes como seu objeto; Joo e sua filha, Antnio e Pedro so instncias de habitantes, a serem contados nesta srie. Ao separarmos um objeto de suasBeauvais et le Beauvaisis. Paris: Flammarion. 1968. 439 p. CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragana, 1560-1640. Prticas senhoriais e redes clientelares. Lisboa: Editorial Estampa. 2000. 654 p. FURET, Franois. LAtelier de lhistoire. Paris: Flammarion. 1982. 314 p.

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instncias, podemos evitar a associao implcita entre eles: se desejamos contar habitantes, surge a associao imediata entre pessoa e habitante, e passamos a contar pessoas, talvez desconsiderando o requisito adicional que define habitante como uma pessoa que reside no local em certa data. Assim, alm dos bvios problemas de sabermos se todas as instncias do objeto foram contadas, se somente elas foram contadas e somente uma vez, h as dificuldades, freqentemente esquecidas, de se determinar se certa pessoa, coisa ou evento de fato uma instncia do objeto que desejamos contar ou medir. Discutimos, na seo 3.2, alguns problemas decorrentes dessa incerteza sobre a incluso ou no de instncias classe das instncias do objeto desejado.

1.5 O objeto de uma IQ apresenta atributos variados. estes atributos tomam valores diversos.Trata-se de outra distino importante, que nos ajuda a descrever dificuldades conceituais e tcnicas associadas s IQs. O objeto de um censo demogrfico so Habitantes, que tem (o objeto) como possveis atributos Sexo, Idade, Local de residncia, Renda no ltimo ano, Qualidade etc. Cada um desses atributos ser qualificado por valores. Os valores de Sexo, por exemplo, so [Masculino] e [Feminino]; valores para Qualidade no Brasil at a abolio seriam [Ingnuo], [Escravo] e [Liberto]13. H atributos cujos possveis valores, a menos de problemas de falta de informao, so claramente definidos, como Sexo14, Idade ou Local de residncia. H outros, tais como Ocupao ou mesmo Renda, que dependem fundamentalmente da escolha feita pelo historiador para seu conjunto de valores. Nesses casos, cabe discusso se o conjunto de valores selecionado exaustivo ou se o recorte mais adequado para fins de argumentao historiogrfica. Mesmo para valores com enumerao indiscutvel, como Idade, podem ocorrer dificuldades devido forma de apresentao dessa enumerao; a escolha de faixas etrias anuais, qinqenais ou decenais, por exemplo, poder afetar a solidez ou o entendimento de certa argumentao. Um exemplo recorrente o erro, comum a toda estatstica que inclui a varivel idade, inclusive nos censos contemporneos, de superenumerao de pessoas comLocus: revista de histria, Juiz de Fora, v. 14, n. 1 p. 41-90, 2008

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Inclumos em ingnuos todos os livres. Fora de contextos em que se discute sexualidade, sem dvida.

idades mltiplas de 10. Esse erro conseqncia de uma tendncia geral a arredondar a idade informada. Ao agruparmos os dados em conjuntos mais abrangente, por faixas pelo menos decenais, podemos reduzir parcialmente o erro embutido.

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1.6 Ao buscar quantificao para objetos criados pela prpria historiografia, o historiador aproxima-se das prticas das demais cincias sociaisEnquanto os historiadores pretendiam simplesmente reproduzir eventos e processos do passado, suas hipteses tericas e instrumentos analticos permaneceram mascarados. A partir do incio do sculo XX parte da historiografia francesa se distanciou desse modo de produzir histria, buscando um entendimento que englobasse conjuntos cada vez mais abrangentes de fatos, incorporando perodos tambm cada vez mais longos. Essa procura por explicaes, em oposio simples descrio, vem aproximando a historiografia das prticas das outras cincias sociais. Apesar da opinio de alguns historiadores radicalmente contrrios prtica historiogrfica como uma prtica cientfica15 e da avaliao de Claude Lvy-Strauss em meados do sculo XX, para quem a antropologia e a sociologia aglutinariam prioritariamente o potencial terico nas cincias humanas, diversas perspectivas tericas em histria se firmaram, muitas das quais apoiadas no uso de IQs16.15

David Fischer escreveu em 1970: O trabalho de demasiados historiadores fica diminudo por uma obsesso antiracional por um forte preconceito contra mtodo, lgica e cincia. (...) os historiadores no s cortaram suas amarras com as cincias naturais, mas tambm se afastaram da cincia no sentido maior de uma disciplina de pensamento estruturada, ordenada, controlada, emprica e racional.. FISCHER, David Hackett. Historians Fallacies. Toward a Logic of Historical Thought. New York: Harper Perennial. 1970. 338 p.[Nossa traduo]

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Robert Fogel e Ciro Cardoso, cada um de seu ponto de vista, consideraram que As marcas metodolgicas da nova histria econmica so sua nfase na medida e seu reconhecimento do ntimo relacionamento entre medio e teoria.. FOGEL, Robert W. The New Economic History: its Findings and Methods. In:

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A busca de sries quantitativas uniformes para objetos definidos pelo historiador abriu caminho para novos processos paralelos. As sries de IQs produzidas por historiadores passaram a ser usadas por acadmicos de outras especialidades. Surgiram debates entre historiadores e esses especialistas de outros ramos acadmicos. E o establishment historiogrfico reconheceu a IQ seriada ou no como instrumento convencional de pesquisa e de exposio, o que ocorreu principalmente a partir da aceitao mais generalizada da metodologia dos Annales. Alm disso, ao adotar tcnicas que permitem a experimentao dentro de modelos, a historiografia pde conciliar fatos histricos no repetveis com uma metodologia capaz de propor teorias testveis. Um dos primeiros exemplos de modelagem demogrfica histrica com auxlio de computao eletrnica so os estudos realizados por Kenneth Wachter, para analisar dados ingleses dos sculos XVII e XVIII. O autor parte de diversas composies familiares baseadas em sexo, idade e consanginidade, que combina com regras sobre os casamentos possveis e regras para determinao do chefe de cada tipo de famlia, para entender a formao da composio demogrfica geral17. Tais instrumentos analticos, tpicos do paradigma experimental, convivem, sem incompatibilidades, com a noo da unicidade dos fatos histricos. importante, no entanto, distinguirmos a modelagem em si de mtodos que usam modelagem acoplada a raciocnios contra-fatuais, como os conhecidos estudos sobre o que teria sido a economia norte-americana sem suas ferrovias. Os raciocnios contra-fatuais no deixam de serem gerados por algum modeSTERN, Fritz (Ed.). The Varieties of History. From Voltaire to the Present. New York: Vintage Books, 1972. p.456-473[1966] e (...) para mim a histria uma cincia social que, em seu estudo, ocupase das sociedades humanas privilegiando a dimenso temporal. CARDOSO, Ciro Flamarion. No Limiar do Sculo XXI. Tempo, v.1, n.2, p.7-30. 1996. O motor da evoluo recente da histria foi, pois e continua a s-lo o contato com as demais cincias do homem; menos estruturada, a histria tambm se mostra mais aberta, menos rgida, menos resistente mudana do que as outras disciplinas.. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana e BRIGNOLI, Hctor Prez. Os Mtodos da Histria. Rio de Janeiro: Graal. 1979. 530 p. (Biblioteca de Histria)

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17 WACHTER, Kenneth W., HAMMEL, Eugene A., et al. Statistical Studies of Historical Social Structure. New York: Academic Press. 1978. 229 p

lo, mas extrapolam amplamente tais modelos ao supor que toda uma sociedade (no caso, os Estados Unidos do sculo XIX) acompanharia o modelo (a ausncia de ferrovias, substitudas por canais e outros meios de transporte) sem qualquer reao a no ser aquelas previstas pelo modelo18.

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2 A contagem ou medio expressa num padro de mensurao, com representao numrica especfica.O padro de mensurao pode fazer-se ostensivamente presente ou no. Para o historiador mtrico, acostumado a unidades convencionais, cuja nica funo seria constituir um padro uniforme para que todos tenham certeza de quanto se fala, o padro de mensurao aparentemente um elemento incuo, mero instrumento entre uma realidade passada e sua informao histrica. No entanto, at no estudo de perodos to recentes quanto o final do sculo XIX, no podemos descurar de uma avaliao mais detalhada dos padres de mensurao, pois mesmo historiadores de renome tropearam em suas armadilhas.

2.1 Os padres de mensurao tm sua histriaWitold Kula lembra que...o primeiro perodo evolutivo das noes metrolgicas do homem o antropomtrico, no qual as unidades bsicas das medidas so partes do corpo humano. O perodo seguinte busca suas unidades de medio nas condies, objetos e resultados do trabalho humano19.

Esse referencial humano, individual, e em seguida humano tambm, mas social, traz importantes esclarecimentos e ajuda para a compreenso de sociedades organizadas fora dos cnones18

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O estudo que props esta abordagem contrafatual foi Fogel, R. Railroads and American Economic Growth: Essays in Econometric History. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1964. xv + 296 pp. Seguiu-se uma extensa bibliografia polmica. KULA, Witold.. Las medidas y los hombres. Madrid: Siglo XXI. 1980. 482 p.[1970]

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capitalistas. Ao contrrio do que comumente considerado, a conseqente multiplicidade de medidas empregadas por todas as sociedades, longe de ser um estorvo pesquisa, sugere e comprova regularidades e racionalidades na trajetria dessas sociedades. Um caminho de pesquisas interessantes por esse cipoal de termos, referenciais e prticas econmicas escondidas por seus respectivos sistemas metrolgicos diz respeito s comparaes entre medidas distintas para objetos semelhantes. A Europa foi um manancial de lnguas e territrios recortados, cada qual com suas prticas e padres, o que aparentemente traz dificuldades srias pesquisa, mas, ao fim, trata-se de uma bno disfarada, pois termos diferentes sero claramente reconhecidos como objetos distintos. O que ocorreu em Portugal e, conseqentemente, no Brasil, apresenta outro tipo de problema para a produo de IQs. Houve distintos padres metrolgicos, em Portugal, por distrito, e no Brasil, por provncia, vigentes at quase o final do sculo XIX e com muitos bolses de vestgios at meados do sculo seguinte, sem que houvesse, necessariamente, caracterizao lingstica desse fato, pois todos usavam a mesma nomenclatura, arrobas ou alqueires, por exemplo. 20(...) o cenrio metrolgico colonial, heterogneo, dev[e] ter desenvolvido-se por sobre as medidas portuguesas de Lisboa principalmente, vindo em seguida as de origem inglesa, cuja influncia remota resultaria da histrica proximidade entre as duas naes, e finalizando com a penetrao das unidades flamengas, holandesas e francesas, povos navegadores de contato estreito com a colnia portuguesa do Brasil21.20

Diversas tabelas com a equivalncia mtrica das medidas antigas, por distrito de Portugal, foram reunidas em (Mappas das Medidas do Novo Systema Legal, comparadas com as antigas nos diversos concelhos do Reino e Ilhas, 1861). Pesquisa do IBGE, em 1946, cita 173 padres metrolgicos ainda em uso no Brasil para pesos e capacidades. MACHADO, Cesar Augusto da Matta. Histria da metrologia no Brasil. Inmetro-Instituto Nacional de Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial. Rio de Janeiro, p.56. 1984 MACHADO, Cesar Augusto da Matta. Histria da metrologia no Brasil. Inmetro-Instituto Nacional de Metrologia, Normalizao e Qualidade Industrial. Rio de Janeiro, p.56. 1984

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A ateno aos aspectos metrolgicos no Brasil deve permanecer redobrada, mesmo com referncia ao sculo XIX. A aprovao legal, em 1836, de sistema brasileiro de medidas (referenciado ao sistema mtrico, com a vara igual a 1,1m) no eliminou as discrepncias existentes. Em parecer sobre a futura transformao para o sistema mtrico, um quarto de sculo depois dessa regulao, os notveis Giacomo Raja Gabaglia, Guilherme Schuch Capanema e Antonio Gonalves Dias explicitam a diversidade de padres ao citar o peso mtrico da libra, segundo a tarifa da Alfndega, em 458,92 gramas, enquanto, segundo Candido Baptista de Oliveira, esta seria de 471,82 gramas (uma diferena de 2,81%)22. Tivemos oportunidade de verificar que tais dificuldades nem sempre so reconhecidas, especificamente no que tange historiografia do acar, na qual muitos autores no dedicam a necessria ateno aos problemas metrolgicos em suas fontes. As atitudes encontradas nas principais referncias bibliogrficas variam da rpida meno equivalncia mtrica oficial da arroba poca da introduo do sistema mtrico, mistura numa mesma tabela de nmeros expressos em unidades claramente distintas, embora nomeadas semelhantemente23. As diferenas envolvidas so, por vezes, importantes, como nas medidas brasileiras de terra, nas quais umas podem demarcar o dobro de outras com o mesmo nome. Noutros casos, como o da arroba, as diferenas podem ser22

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GABAGLIA, Giacomo Raja, CAPANEMA, Guilherme Schuch, et al. Parecer dos Srs. Gabaglia, Capanema e Gonalves Dias acerca de um novo systema de pesos e medidas ao Ministro e Secretario de Estado Manoel Felizardo de Souza e Mello. Cear: 24-maio1860, p.4. 1860 er MOURA FILHO, Heitor Pinto de. Cento e vinte anos de produo de acar: comentrio sobre sries estatsticas tradicionais (1820-1940). Histria Econmica & Histria de Empresas, v.VII, n.1, jan-jun p.137-164. 2004. Como contra-exemplo, Jos Curto, no seu glossrio, define as diversas medidas que menciona, mas sempre acompanhadas de expresses de dvida Almude Unidade de medida lquida de cerca de 20 litros, Ancoreta Barril de madeira com capacidade de cerca de 36 litros e assim com outras 6 medidas. CURTO, Jos C. lcool e Escravos. O comrcio lusobrasileiro do lcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o trfico atlntico de escravos (c.1480-1830) e o seu impacto nas sociedades da frica Central Ocidental. Lisboa: Editora Vulgata. 2002. 402 p.[1997].

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de menor monta, variando entre 3% a 15%, o que no justificaria, contudo, considerar que no apresentam relevncia explicativa. Se o historiador se compraz na busca por fontes precisas e abrangentes, como desconsiderar tais variaes? Se, ao analisar suas sries, variaes desta grandeza sero necessariamente objeto de explicaes e comentrios, como partir de possveis erros equivalentes, sem um entendimento melhor de seus dados? Ao estudar as discrepncias metrolgicas no comrcio colonial do acar, John McCusker insiste neste ponto:A resposta bvia: 10 porcento uma margem de erro inaceitvel. Talvez sejamos obrigados a aceitla em dados coloniais, mas devemos trabalhar para reduzi-la. Certamente no devemos aument-la ao introduzirmos ns mesmos outra margem de erro da mesma magnitude24.

2.2 Os padres de medida tm funes sociaisKula exps claramente as possveis funes de medidas no homogneas em situaes pr-capitalistas (por exemplo, a retribuio de emprstimos evitando o pecado da usura ou a manuteno de margens de ganhos pr-estabelecidas em cadeias mercantis). A homogeneizao artificial de medidas, nessas situaes, transfere para os preos as margens anteriormente obtidas nas quantidades, alterando relaes de troca at ento estveis e tradicionais. O uso de medidas de capacidade, em substituio a medidas de peso, tambm pode gerar ganhos para comerciantes que compram no atacado por peso e revendem no varejo por volume, disfarando os preos mais elevados, quando transferidos aos pesos por preos inferiores, referidos a volumes25.24

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McCUSKER, John J. Weights and Measures in the Colonial Sugar Trade: the gallon and the pound and their international equivalents. William and Mary Quarterly, v.3rd series 30, n.4, p.599-624. 1973. Ktia Mattoso refere-se aos mercados baianos: ...a prpria composio do produto podia favorecer ou desfavorecer o consumidor. H, por exemplo, entre a farinha grossa de mandioca e a farinha fina de mandioca, uma diferena granulomtrica que favorece o vendedor quando a farinha grossa e pode encher ... 1 litro com uma quantidade menor do que quando fina e, por

H outro tipo de situao em que a diversidade de medidas existia com finalidades funcionais, socialmente orgnicas. So aquelas em que se usavam padres diversos para produtos diversos. Um exemplo tpico seria o das arrobas espanholas citados por Judson26, que medem 16,14 litros para vinhos e 12,56 litros para azeite, o que se compreende facilmente, pois o vinho muito menos denso que o azeite, donde volumes diferentes igualam os pesos da arroba de cada produto27. Supondo ter sido mais fcil medir lquidos por volume do que por peso, pela maior disponibilidade de vasilhames do que de balanas, encontramos um sentido prtico para essas diferenas. interessante registrar que Dom Sebastio, pela Carta de Lei de Almeirim, em 1575, ao procurar unificar os padres portugueses, j havia determinado a abolio de diferenas entre medidas de vinho e de azeite (PORTUGAL. Guimares, 1999:12). Outro exemplo, este do setor aucareiro cubano do sculo XIX, citado por Moreno Fraginals, que relata: Barricas, tercerollas, quartolas e barris tinham tamanhos diferentes conforme o produto que transportassem, acar mascavo, mel de purga ou aguardente.28 Essas relaes entre volumes-pesos e qualidade do produto s sero equacionadas de modo objetivo no sistema mtrico, com a considerao adicional de medidas de outras caractersticasisso, exige uma maior quantidade para encher o mesmo litro. Esta instabilidade nas medidas de capacidade usadas at 1873 devia ser altamente prejudicial ao consumidor, que freqentemente comprava por preo ainda mais alto os gneros de seu sustento. Para o vendedor, essa situao proporcionava a possibilidade de um lucro extraordinrio. A adoo a partir de 1874 do sistema mtrico deve ter aliviado um pouco a situao do consumidor. (MATTOSO, 1978:265-6) JUDSON, Lewis van Hagen. Weights and Measures. In: (Ed.). Encyclopdia Britannica. Chicago: William Benton, v.23, 1961. p.488-488H Fizemos um rpido exerccio a partir dos valores de densidade obtidas em (KEMP e YOUNG, 1982): os 16,14 litros de vinho, a uma densidade de 1,40 litros/kg (numa faixa possvel de 1,39 a 1,53), pesam 11,5 kg. Os 12,56 litros de azeite a 1,09 litros/kg (numa faixa de 1,06 a 1,09) pesariam os mesmo 11,5 kg, igualandose, portanto, em peso. MORENO FRAGINALS, Manuel. O Engenho. Complexo scioeconmico aucareiro cubano. So Paulo: Unesp-Hucitec, v.1. 1988. 411 p.

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como a densidade ou o teor de acares, o que iria requerer computaes ou tcnicas de medio mais complexas, muitas das quais desenvolvidas ao longo do sculo XIX.

2.3 Ao serem tratadas, as IQs adquirem novas unidades de medidaAo serem realizados clculos sobre IQs, suas respectivas unidades de contagem/medio se transformam segundo regras matemticas definidas. Se a produo de uma mercadoria estiver medida em arrobas por ano, o estoque dessa mercadoria existente ao final de certo ano estar medido simplesmente em arrobas. A produo anual mdia de uma dcada continuar a ser medida na mesma unidade da produo anual, enquanto a produo total dessa dcada ter por medida arrobas em 10 anos. Lembramos como um caso especial, os indicadores sem unidades, como a taxa de variao (o desvio padro dividido pela mdia) de uma distribuio, que apresentam a vantagem de poder serem usados na comparao de distribuies em medidas diversas, pois no interferem na comparabilidade desses diferentes objetos. Quando h combinao de unidades de contagem com unidades temporais ou espaciais, as possibilidades de erro ou confuso lgica se ampliam, principalmente com relao s diferenas entre valores de estoques (medidos em certo momento) e de fluxos (a expresso de uma quantidade que transcorreu durante certo perodo). Esta preocupao torna-se essencial ao trabalharmos com expresses matemticas mais complexas, em contextos de testes estatsticos ou de modelagem matematizada.

2.4 A representao numrica da informao deve manter coerncia com sua funo no argumento.Alm das caractersticas comuns a outras fontes histricas, a IQ embute um aspecto prprio, que sua preciso ou, mais corretamente, sua aparncia de preciso. Este aspecto intrnseco a qualquer representao numrica. Assim, 123 diferente de 120 e de 123,5. Cada qual desses nmeros tem um sentido aritmtico e uma conotao de preciso especfica. Nas cincias chamadas exatas, a cada uma dessas representaes corresponde um entendimento definido sobre sua respectiva preciso computacional. Na historiografia, esses padres da prtica numrica so

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pouco aplicados ou, mais comumente, desconhecidos pela grande maioria dos historiadores. Por outro lado, historiadores tendem a privilegiar a fidelidade de reproduo das fontes, o que, nesta seara, pode significar repetir extensos nmeros, sem que isto tenha qualquer significado quanto preciso da IQ. Poucos aplicam, tampouco, as regras computacionais bsicas que determinam o grau de preciso do resultado de uma operao, a partir da preciso conhecida dos operandos. (Como exemplo, ao multiplicarmos um nmero com 3 dgitos significativos por outro com somente 2, o resultado s ter 2 dgitos significativos.) Independentemente de todas essas questes, certo que dificilmente se possam aplicar critrios de preciso numrica vlidos para as cincias fsicas e biolgicas a IQs cujo significado histrico nem sempre guarda proporcionalidade com sua representao numrica. A representao numrica da IQ em histria suscita principalmente questes de correo das unidades em que est expressa e da didtica de apresentao, ficando os critrios de preciso a serem determinados pelo bom senso e pela esttica expositiva. Qual o sentido de taxas percentuais de variao expressas com 3 ou 4 casas decimais? Qual a informao que se agrega ao citarmos montantes oramentrios do Brasil imperial, de milhares de contos de ris, por extenso, at o ltimo real? Qual o entendimento visual que podemos ter de sries de taxas de cmbio do mil-ris expressas em pence e fraes de pence? Quase sempre a resposta est na simples reproduo do nmero constante em alguma fonte, sem maior ateno para seu sentido argumentativo ou clareza expositiva. Pode-se considerar que, por vezes, o assunto beira apreciao meramente esttica, sem maiores efeitos sobre a argumentao. No entanto, essencial para o historiador no se deixar levar pelo canto numrico da sereia, que aparenta preciso onde talvez nem haja tanta realidade assim. Seja como for, cremos que uma representao numrica condizente com a argumentao mais informativa do que a fiel e no lapidada reproduo da fonte29.29

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Quando David Eltis escreve Os mercadores efik ao final dos anos 1820 tipicamente aplicavam um gio de 67 porcento sobre os preos pagos pelo navio (...) ELTIS, David. Economic growth and the ending of the transaltlantic slave trade. New York: Oxford University Press. 1987. 418 p., certamente no pretendia distinguir 67% de 68% ou mesmo de 70%. Mais provavelmente deve ter colocado em formato percentual o que vinha expresso como 2/3 (66,66%) nas fontes ou em suas prprias estimativas.

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3 O processo de contagem ou mensurao est inserido num contexto histrico e metodolgico.O terceiro elemento, o processo de contagem ou mensurao em si, sob o ponto de vista das cincias nomotticas, deveria transmitir o mnimo de efeitos para os dados resultantes, mas, no mbito histrico, deve ser identificado e analisado, pois sempre traz importantes informaes sobre o grau de preciso da medida, sua abrangncia, as intenes do agente medidor e as eventuais reaes sociais obteno dessa medida. Cabe distinguir, nesse aspecto, mensuraes ou contagens realizadas no passado, cujo resultado o historiador recolhe numa fonte, daquelas realizadas pelo prprio historiador sobre objetos definidos em suas fontes.

3.1 Os interesses do promotor do processo de contagem ou mensurao so determinantes da qualidade das IQs produzidasO contexto da produo de uma IQ nos traz dados essenciais para seu entendimento: quem procurava saber o qu, com relao a quem e por qu meios. Esse contexto evolui ao longo dos sculos em diversos sentidos, quanto a seus mtodos, agentes e tcnicas de processamento. Adotou-se o termo perodo proto-estatstico para designar a poca anterior s prticas modernas de coleta e organizao de estatsticas, para a qual os dados so escassos e, alm do mais, h grande incerteza sobre seu significado. A institucionalizao dos processos de contagem e medio at os censos do final do sculo XIX requereu perodo varivel conforme o pas e, em cada pas, est possivelmente associada a um prazo de vrias dcadas, durante as quais ocorreram mudanas significativas nos mtodos de levantamento e organizao estatstica. Tal transformao decorreu de uma combinao de foras, entre elas as idias iluministas, as necessidades de informao dos governos e as necessidades econmicas dos seguradores desejosos de tcnicas mais precisas para avaliar sua cobrana de aplices de vida. No perodo que correu das Revolues Americana e Francesa at o final do sculo XIX, a constituio de novos regimes e de noLocus: revista de histria, Juiz de Fora, v. 14, n. 1 p. 41-90, 2008

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Isto obviamente no afeta o raciocnio, nem seu impressionante trabalho, mas transmite uma impresso quase subliminar de preciso maior do que talvez dispunha.

vos estados ofereceu ambiente propcio para esses experimentos e mudanas. No limite inicial desse intervalo, na dcada de 1770, a constituio norte-americana j impunha a efetivao decenal de censos populacionais; o Brasil imperial s realizaria seu primeiro recenseamento ao final deste perodo, em 1872. A primeira tentativa de recenseamento do Brasil no sculo XIX decorreu de deciso do governo portugus em 1808, possivelmente destinada a expandir a milcia30. Uma dcada depois, em 1819, o conselheiro Antonio Rodrigues Velloso de Oliveira encarregado de relatrio preliminar criao de novos arcebispados, em que se vale do tamanho e a distribuio da populao como varivel decisiva de argumentao. Em ambos os casos, o processo baseou-se na compilao sobre fontes secundrias, produzidas seja pela Igreja, seja pelas estruturas militar e judicial. Vrios dos levantamentos provinciais do incio do sculo XIX, o censo frustrado de 1850 e o prprio recenseamento de 1872, no entanto, contaram com organizao especfica para sua realizao31. At o primeiro censo, no entanto, foram muitas e srias as falhas na cobertura geogrfica e na abrangncia da populao residente32. No caso desses levantamentos provinciais, antes da poca censitria, o fato de serem executado distncia por um proco que contava de memria os moradores de sua freguesia ou pela compilao de lista nominativa, na presena dos chefes de fogos, poderia significar a diferena entre uma informao bastante aproximada e outra absolutamente falseada. Nas palavras de Jeronymo Figueira de Mello, secretrio da provncia, chefe de polcia e desembargador em Pernambuco na primeira metade do sculo XIX,...v-se que h grande desproporo no nmero de pessoas que se consideram fazer um fogo em cada freguesia, pois que elas variam de 2 a 5, em conseqncia30

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ALDEN, Dauril. The Population of Brazil in the Late Eighteenth Century: A Preliminary Study. The Hispanic American Historical Review, v.43, n.2, May, p.173-205. 1963. Disponvel em: Http:// www.jstor.org Tarcsio Botelho (1998) tratou da criao de estatsticas como parte de um projeto nacional. Uma histria geral das estatsticas no Brasil tem seu primeiro volume em SENRA, Nelson. Histria das Estatsticas Brasileiras, v1: Estatsticas Desejadas. Rio de Janeiro: IBGE-CDDI. 2006. 614 p.. (BRASIL. Ministrio do Imprio, 1848:36).

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de no quererem os procos dar o nmero exato de fogos de suas freguesias, com o temor de concorrer indiretamente para a diviso delas, como notara monsenhor Pizarro33...

Figueira de Mello falou ainda do temor que tm os pais de dar ao recenseamento os seus filhos, e os senhores os escravos que possuem, alm do pouco zelo e exatido com que tm procedido a to importantes trabalhos os indivduos que deles foram incumbidos. Este testemunho, do funcionrio que, para o correto desempenho de suas atribuies, desejava dispor de nmero os mais exatos sobre a populao pernambucana nos d a medida das dificuldades e da relevncia que os prprios envolvidos atriburam aos problemas em torno do ato de mensurao. Inversamente s dificuldades verificadas em Pernambuco at meados do sculo XIX, para a realizao de levantamentos populacionais desvinculados de coero efetiva, as contagens de escravos em Minas Gerais tornaram-se bem mais confiveis j no perodo de 1735 a 1750, quando vigorou a capitao, ou seja, quando o estado direcionou seu poder para obter levantamentos mais corretos, posto que instrumentais a uma valiosa arrecadao tributria.

3.2 Cada etapa do processo de criao da IQ traz novas incertezas a sua qualidadeSupondo que, apesar de desconhecidas as instncias originais do objeto cuja IQ encontramos numa fonte, pudssemos hipoteticamente separ-las em diversos conjuntos, segundo estivessem corretamente includas ou no no processo de contagem/mensurao, poderamos distinguir, na IQ, as quantidades corretamente includas, aquelas que esto em excesso e aquelas que foram indevidamente omitidas no processo de contagem e registro. A figura abaixo representa graficamente os possveis conjunto lgicos de IQs decorrentes da correta incluso ou no de instncias: a) no processo de contagem ou medio a partir do objeto efetivo e b) no seu registro na fonte a partir do processo de contagem ou medio.Locus: revista de histria, Juiz de Fora, v. 14, n. 1 p. 41-90, 2008

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MELLO, Jeronymo Martiniano Figueira de Ensaio sobre a estatstica civil e poltica da Provncia de Pernambuco. Recife: Conselho Estadual de Cultura-Estado de Pernambuco 1979. 309 p.[1852]

Os 2 conjuntos logicamente possveis no objeto original se duplicam a cada nova etapa de transmisso dessas IQs, pois as instncias includas em cada um desses conjuntos podem ser mantida ali ou retiradas dali, num movimento correto ou indevido, conforme o caso. Ao final desse processo, podemos distinguir, direita na figura, dois conjuntos de IQs corretamente includas na fonte, outros dois indevidamente includos, mais dois indevidamente excludos e, finalmente, outros dois que ficam corretamente de fora do objeto contado ou medido. Figura 1: Classificao das instncias na fonte relativamente s instncias no objeto efetivo.

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Sabendo que as IQs, conforme aparecem na fonte, sero tratadas e empregadas num argumento pelo historiador, podemos supor que, tambm nessa nova etapa, haja novos erros e recuperao de erros anteriores quanto correta incluso ou excluso de cada instncia no objeto. Os 8 conjuntos apresentados acima transformar-se-iam, a partir da interferncia do historiador, em 16 possibilidades lgicas. O historiador deve agir para entender tanto o processo de contagem/medio, quanto as condies de seu registro na fonte. Esse entendimento tem por objetivo conseguir avaliar as IQs, como aparecem na fonte, distinguindo nelas, na medida do possvel, os tipos de situaes representadas acima. A importncia de cada um desses conjuntos, bem como sua probabilidade de existncia so variveis. Trata-se, na maioria das vezes, de objetivo metodolgico dificilmente atingvel com certeza, mas que auxilia a direcionar as pesquisas e a avaliar a preciso de seu resultado.

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Caractersticas das informaes quantitativas em conjuntoAlm de satisfazerem individualmente aos requisitos discutidos at aqui, as IQs suscitam questes especficas ao serem manuseadas em conjunto. O critrio mais relevante para a avaliao desses conjuntos ser sua coerncia comum relativamente argumentao proposta. Pedro Leo Velloso, ento ministro dos Negcios do Imprio, j ressaltava a importncia dessa confluncia de referenciais:[A estatstica] como bem sabeis, applicada a qualquer facto social ou natural, no , em ultima analyse, outra cousa mais do que a expresso numerica do estado ou situao desse mesmo facto em certo e determinado tempo e logar34.

4 IQs tratadas em conjunto devem ter coerncia de focoO primeiro nvel de comparabilidade de IQs fica definido, sem dvida, pelos eixos-mestres do raciocnio histrico: o temporal e o espacial. Se nada humano escapa ao tempo, tampouco nada escapa ao espao35. Adicionamos a estes mais um "eixo", o conceitual. Da combinao desses pontos de vistas e do conjunto de fontes empregadas, isto , do que chamaremos foco da ateno do historiador, deve surgir uma definio precisa do objeto quantificado. Representamos esse foco graficamente como aparece na figura abaixo. Figura 2: Representao do foco do historiador.

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BRASIL. Ministrio do Imprio. Relatorio apresentado Assembla Geral Legislativa na terceira sesso da decima oitava legislatura pelo Ministro e Secretario dEstado dos Negocios do Imperio Pedro Leo Velloso. Rio de Janeiro. 1882 Disponvel em: http://brazil.crl. edu/bsd/bsd/u1749/000002.html

35 (CHAUNU, 1978)

4.1 O tempo cronolgico a primeira referncia historiogrficaDesde sempre, a noo de tempo foi o principal conceito trabalhado pelos historiadores. E.Hobsbawm deixa bem claro seu papel essencial em histria:A histria da sociedade histria; isto , tem o tempo cronolgico real como uma de suas dimenses. Estamos interessados no s nas estruturas e seus mecanismos de persistncia e mudana, e nas possibilidades e padres gerais de sua transformao, mas tambm com o que efetivamente aconteceu. Caso contrrio (como Fernand Braudel nos lembrou...), no somos historiadores36.

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Paul Ricoeur, citando Marc Bloch, insiste que a explicao historiogrfica existe em decorrncia de podermos reconhecer um encadeamento de sries de fenmenos37. Ciro Cardoso compara: ... certo...que a preocupao primordial da histria com a dinmica da evoluo, com o tempo, a pe em oposio no s antropologia estrutural como, tambm, s outras cincias sociais38. Mesmo assim, a onda desconstrutivista ps-moderna investiu, sem repercusses mais duradouras, verdade, contra o tempo histrico, seja criticando a noo de causalidade histrica39, seja ampliando essa crtica para rejeitar o tempo seqencial, sob argumentos dspares40.36

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HOBSBAWN, Eric J. From Social History to the History of Society. In: Gilbert, Felix e Graubard, Stephen R. (Ed.). Historical Studies Today. New York: W.W.Norton & Co.Inc., 1972. p.1-26 ...no h explicao sem constituio de sries de fenmenos... caso, de fato, no nos fosse possvel identificar uma mesma funo em outros eventos, no haveria nada a compreender; s h histria porque certos fenmenos continuam... (RICOEUR, 1967:30). CARDOSO, Ciro Flamarion Santana e BRIGNOLI, Hctor Prez. Os Mtodos da Histria. Rio de Janeiro: Graal. 1979. 530 p. (Biblioteca de Histria) O conceito de causalidade histrica ele mesmo somente um elemento na formao discursiva arbitrariamente construda da historiografia profissional. JENKINS, Keith. Re-thinking History. Londres, 1991, p.32-3, apud EVANS, Richard J. In Defense of History. New York: W.W.Norton & Co. 1999. 287 p. Evans cita, entre outros, Frank R.Ankersmit, History and Tropology: The Rise and Fall of Metaphor (Berkeley, 1994);

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O tempo cronolgico est indissoluvelmente incorporado vida humana atravs dos padres planetrios e biolgicos. Encontramos ritmos cclicos, que envolvem processos que se repetem com periodicidade regular, em geral acompanhando processos planetrios (dias, meses ou anos) ou biolgicos e sociais (ciclo vital de um organismo, de uma populao, de um sistema ecolgico ou de toda uma sociedade). A historiografia se pauta freqentemente nesses ciclos, no s por medirmos o tempo segundo os calendrios solar ou lunar, mas principalmente em decorrncia dos limites naturais de seus objetos: a vida do biografado ou o ciclo de crescimento, apogeu e declnio de um grupo social ou sociedade. As escalas temporais buscam abranger um perodo suficientemente longo para tornar compreensvel a dinmica do fenmeno estudado. interessante notar que, na historiografia atual, a ateno do historiador se fixa sobre perodos que podem correr de alguns dias (por exemplo, para os inmeros aficionados das batalhas de Gettysburg ou Waterloo) a dezenas de milhares de anos (para os historiadores do clima). Cada tipo de escala temporal acarreta, necessariamente, perodos de mensurao prprios e priorizam certos tipos de IQs.

4.2 A historiografia lida com diversos conceitos de tempoMais importante que a extenso do perodo estudado, contudo, distinguirmos os trs tipos de referenciais temporais trs diferentes conceitos de tempo que integram o quotidiano do historiador: a) a prpria extenso cronolgica, b) os referenciais tericos da historiografia associados noo de durao e c) os referenciais matemticos que representam o tempo cronolgico. O conceito de tempo cronolgico foi comentado acima. O segundo deles, associado principalmente ao nome de Fernand Braudel, situa-se claramente num ambiente terico, apesar do seu

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Pauline M. Rosenau, Post-modernism and the Social Sciences: Insights, Inroads, and Intrusions (Princeton, 1992); Joyce Appleby, Lynn Hunt e Margaret Jacob, Telling the Truth about History (New York, 1994); Robert Young, White Mythologies; Writing History and the West (Londres, 1990). EVANS, Richard J. In Defense of History. New York: W.W.Norton & Co. 1999. 287 p.

claro referencial cronolgico41, e tem como carro-chefe o conceito de longa durao, acompanhado de seus complementos, a mdia e a curta durao. No se trata mais da extenso de um perodo, mas do nome para um contexto, isto , uma situao terica durante a qual certas caractersticas de uma sociedade permanecem imutveis (ou que pouco se alteram). Neste caso, os recortes da escala braudeliana so contextos tericos (prazos hipotticos durante os quais certos tipos de eventos acontecem ou no), nomeados por um qualificativo temporal (a longa, mdia e curta durao) e inspirados em duraes cronolgicas efetivas. O critrio de ordenamento dos objetos a durao desses prazos hipottico. Tais escalas, no entanto, so discontnuas, no havendo estgios intermedirios e proporcionais entre cada escala. Conseqentemente, devemos frisar que a ordenao implcita nos qualificativos curta, mdia e longa no tem rgido referencial cronolgico ou numrico. Tratando-se de ambientes tericos distintos, sua caracterizao e contornos decorrem de outros conceitos que no o estritamente cronolgico. Esses conceitos j esto hoje incorporados ao instrumental da historiografia, embora nem sempre haja uma compreenso precisa de que longa durao no seja um perodo longo, o que inevitavelmente acarreta tratamento analtico pouco adequado. Como mencionado, o prprio F.Braudel trabalha a idia terica de longa durao, acoplando-a noo bem emprica de tendncia de longo prazo. Ao final do sculo XIX, Alfred Marshal (18421924) j havia introduzido, na teoria econmica, terminologia semelhante, de longo, mdio e curto prazo. interessante notar que, embora se tratassem de termos referentes a um contexto analtico de modelo lgico-matemtico e no de interpretao41

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F.Braudel associa a longa durao simultaneamente s estruturas (BRAUDEL, Fernand. Histria e cincias sociais. A longa durao. In: (Ed.). Escritos sobre a histria. So Paulo: Editora Perspectiva, 1992. p.41-78[1958])., entidades tericas, e tendncia secular ( BRAUDEL, Fernand. Le Temps du Monde. Paris: Armand Colin, v.3. 1979. 607 p. (Civilisation matrielle, conomie et capitalisme, XVe-VIIIe sicle)), conceito eminentemente emprico, cronolgico. Ao longo de sua obra, de fato dialoga com os dois conceitos, ora enfatizando o aspecto estrutural, terico, ora o aspecto cronolgico. O assunto torna-se mais complexo ao incluirmos a discusso das flutuaes econmicas: tendncia de longo prazo, movimentos cclicos e oscilaes conjunturais.

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histrica, os conceitos foram concebidos para nomear exatamente a mesma idia braudeliana o referencial terico no qual se consideram invariveis certos objetos, em oposio extenso do perodo ou ao perodo em si. Ao longo desses cento e alguns anos de sua existncia, esses termos extrapolaram os limites do vocabulrio tcnico de Economia, passando ao uso quotidiano, principalmente jornalstico, mas tambm informalmente dentro da prpria comunidade de economistas, para qualificar desgraadamente a durao de um perodo. Reforava-se, portanto, a confuso entre contexto terico e extenso do perodo. O terceiro uso do tempo refere-se a construes lgico-matemticas. a noo de tempo como varivel de um modelo lgicomatemtico. O eixo cronolgico, nesse caso, um conjunto matemtico de nmeros inteiros (no caso de um modelo com tempo discreto) ou de nmeros reais (em modelos de tempo contnuo), que so associados a datas. A escala seria a amplitude do subconjunto desse eixo sobre o qual recai a ateno do autor. Ou seja, os objetos da escala lgico-matemtica so intervalos numricos (discretos ou contnuos) e o critrio de qualificao da escala sua extenso (a amplitude entre a primeira e a ltima data). As escalas cronolgicas so intrinsecamente distintas entre si, isto , abordar uma dcada levanta problemas diferentes, para um historiador, dos que surgem ao abordar um sculo. As escalas temporais lgico-matemticas, ao contrrio, so essencialmente anlogas entre si, simplesmente variando sua extenso. Deixando de lado filigranas de modelagem, que no alteram esta concluso, pode-se dizer que um modelo lgico-matemtico no se torna diferente por ser aplicado a alguns anos ou a vrios sculos. Embora os resultados de uma modelagem sobre poucos anos seja certamente diferente daqueles decorrentes de sua aplicao sobre vrios sculos, a lgica do modelo, isto , seu funcionamento rigorosamente idntico. Mesmo que um modelo seja criado, por exemplo, para refletir situaes caractersticas de um perodo secular, ele apresentar os resultados para um nico ano atravs da mesma concatenao lgica empregada para o sculo inteiro, embora a varivel tempo (medida aqui em anos) variasse, no primeiro caso, no intervalo [0 100], e no segundo somente entre [0 1] 42.42

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Seria possvel construir-se modelos em que, efetivamente, o funcionamento seja dependente da amplido considerada em certa anlise, mas isto no acontece nos modelos logico-matemticos

Outra caracterstica essencial que distingue o conceito de tempo usado nas modelagens (uma seqncia numrica repetvel) do tempo cronolgico sua reversibilidade. Ao modelarmos o ciclo vital de uma famlia ou de uma sociedade, por exemplo, podemos fazer com que tal famlia ou sociedade terica aparea, desenvolva-se e desaparea quantas vezes seu criador deseja, sem vnculos com o tempo cronolgico, irreversvel e cumulativo. Nas anlises comparativas, tais repeties ou simulaes constituem importante recurso metodolgico. Por outro lado, o paradigma cientfico experimental exige tal repetio para a comprovao e reproduo dos resultados. Voltamos a insistir que tais repeties analticas nada tm a ver com criar uma histria contra-fatual. O modelo no pretende recriar a histria e, sim, entender pela exausto das possibilidades conceituais como os objetos analticos que criamos se relacionam e geram conseqncias diversas. Vale notar, ainda, que o gegrafo Milton Santos procurou inverter o ponto focal entre tempo e espao, esboando mais outro conceito terico para o tempo, agora como o simples fio condutor de processos que se verificam sobre regies distintas, essas sim, seu foco preferencial de ateno43.

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4.3 Deve haver coerncia nas referncias temporaisComplementando esses comentrios, mencionamos algumas dificuldades prticas em torno da comparao de IQs, no tocante a suas referncias temporais.nas cincias sociais e na cliometria. Nos modelos demogrficos, a forma de modelagem tem implicaes sobre a escala de representao, atravs das restries impostas pelos ciclos vitais das pessoas modeladas. O tempo como sucesso, o chamado tempo histrico, foi durante muito tempo considerado como uma base do estudo geogrfico. Pode-se, todavia, perguntar se assim mesmo, ou se, ao contrrio, o estudo geogrfico no muito mais essa outra forma de ver o tempo como simultaneidade: pois no h nenhum espao em que o uso do tempo seja idntico para todos os homens, empresas e instituies. Pensamos que a simultaneidade das diversas temporalidades sobre um pedao da crosta da Terra que constitui o domnio propriamente dito da Geografia. SANTOS, Milton. A Natureza do Espao. Tcnica e Tempo, Razo e Emoo. So Paulo: Edusp-Editora da Universidade de So Paulo, v.1. 2002. 384 p. (Coleo Milton Santos).

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comum ocorrerem discrepncias de referencial em sries cujos dados foram construdos sobre perodos de extenso desigual. Exemplos freqentemente encontrados envolvem as sries financeiras e comerciais do Brasil imperial nos momentos de passagem de agregao por ano-calendrio para ano-fiscal (ocorrida durante a Regncia) e de volta para ano-calendrio com a Repblica. O recorte administrativo irregular dos mandatos de presidentes de provncias, no sculo XIX, tambm traz dificuldades pela permanente troca de perodos de referncia. As informaes anuais referidas ao perodo administrativo anterior entrega do cargo, que ocorria comumente em maro ou abril, em geral cobrem os meses de maro do ano anterior a fevereiro do ano corrente, mas podem cobrir o ano calendrio anterior ou somente um semestre. Ao se coletar dados em relatrios sucessivos, torna-se importante dar ateno ao perodo efetivamente empregado em cada relatrio, de modo a construir uma srie homognea em seu recorte temporal. Como exemplo europeu, em meados do sculo XIX, as estatsticas econmicas francesas ainda se mostravam extremamente imprecisas neste aspecto. No tocante s informaes sobre a indstria de produo e refino de acar, os levantamentos industriais supostamente referentes a 1839-45 e a 1861-65 foram produzidos sobre dados parciais e incoerentes, pois muitos empresrios se recusaram a fornecer informaes ou mesmo passaram nmeros forjados. Com referncia s indstria de Marselha, o levantamento iniciado em 1838 ainda continuou at 1852, misturando, portanto, dados de vrios anos. Alm disso, as informaes por cidade no so agregveis num total nacional, pois a pesquisa em cada cidade foi realizada em anos diversos entre 1861 e 1865 (FIERAIN, 1977:4-5). A literatura econmica j sacramentou diversas expresses que trazem embutida um regra de transformao temporal: taxa anualizada, isto , a taxa mdia do perodo, extrapolada para 12 meses; ou valores desazonalizados, isto , valores (usualmente) mensais referenciados mdia daquele ms num perodo de vrios anos anteriores; ou ainda mdia mensal em dias teis, isto , a mdia mensal como se todo ms tivesse o mesmo nmero de dias teis. Todos estes clculos padronizam a referncia temporal sob algum aspecto julgado mais relevante para a argumentao e cada um incorpora restries nem sempre aparentes. No abordaremos aqui outro tema polmico e extenso relativo coerncia temporal, que diz respeito transposio, para poca distinta, de argumentos baseados em IQs de outro pe-

rodo. Sem dvida, trata-se mais de um recurso argumentativo do que de uma questo de tcnica historiogrfica.

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4.4 Deve haver coerncia nas referncias espaciaisNa organizao de um espao, h diferentes recortes possveis: fronteiras administrativo-polticas, topogrficas, lingsticas, de interao econmica, entre outras. Alm disso, cada um desse critrios certamente se alteraram ao longo do tempo. Embora livre para escolher seu critrio, o historiador fica em geral preso aos padres constantes nas fontes. Para possibilitar a coleta de conjuntos e sries de IQs compatveis sincrnica e diacronicamente, esses padres precisaro ser esmiuados e estruturados. Tornar coerentes as referncias geogrficas que lastreiam IQs pode ser bastante problemtico, at mesmo para pocas mais prximas. Construir uma srie histrica com dados provinciais ou municipais para o Brasil um exerccio trabalhoso at hoje, pois h quase dois sculos os limites administrativos se multiplicam e se reagrupam regularmente. A escolha de padres comparativos e a preparao adequada dos dados geram srios problemas de pesquisa e de organizao tabular44. De fato, as transformaes nas fronteiras administrativas, judiciais, eclesisticas e militares representam uma dificuldade tcnica de importncia fundamental para qualquer trabalho de reunio de IQs seriadas. Alm dos limites internos, referentes a comarcas e parquias, devemos atentar para a redistribuio de territrios entre capitanias e arcebispados, fato recorrente durante o perodo colonial e tambm durante o Imprio. Para muitos efei44

Voltamos a citar Leo Velloso, preocupado com critrios fidedignos para a produo de estatsticas: A attribuio que tm as assemblas Provinciaes de fixar os limites dessas circumscripes tem sido applicada em tal escala, que j se encontram varios exemplos de municipios e parochias creados e supprimidos alternadamente por legislaturas successivas, de maneira que, s vezes, chega-se a ficar em duvida sobre a sua existencia. Alteraes to frequentes da diviso territorial das provincias constituem em grande tropeo ao servio da estatistica (...) No se pde, portanto, desconhecer a difficuldade de descrever fielmente essa situao, quando variavel a base por falta de estabilidade na diviso do territorio (BRASIL. Ministrio do Imprio, 1882:116).

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tos, o recorte municipal do Brasil republicano tambm deve ser examinado minuciosamente, pois sempre traz surpresas ao pesquisador. Como exemplo do final do perodo colonial e incio do Primeiro Reinado, quando a Capitania Geral de Pernambuco teve sucessivamente desmembradas suas capitanias dependentes do Cear e da Paraba, em 1799, do Rio Grande do Norte e de Alagoas, em 1817, e a Comarca do So Francisco, em 1824, uma srie representando a populao de Pernambuco at 1824 dever cuidar dessas vrias modificaes administrativas para manter coerncia em seu objeto (a populao do atual territrio pernambucano ou deste em conjunto com o das capitanias e provncias vizinhas).

4.5 As relaes entre os fenmenos estudados e as referncias espaciais no so necessariamente fixas.Ao buscarmos reconstituir sries vitais sobre populao, mais dificuldades aparecem. A simples associao de uma referncia geogrfica a uma estatstica no garantia de um referencial fixo para o fenmeno que se deseja medir. Exemplifiquemos com as estatsticas de bitos. At a criao dos cemitrios pblicos, como os enterros eram em geral realizados nos campos santos prximos s igrejas ou mesmo dentro delas, tais informaes provm, embora de forma muito irregular, dos responsveis por cada parquia, podendo-se supor que a grande maioria dos falecidos morassem na parquia em que foram enterrados. Por outro lado, certo que tais referncias so esparsas e parciais, no podendo ser sempre consideradas como representativas do total de bitos de cada parquia. A partir do funcionamento dos cemitrios municipais, as referncias a totais de bitos adquirem maior representatividade, mas, em contrapartida, no podemos garantir que fossem somente de moradores da cidade, pois sabemos que muitos moradores de freguesias mais distantes eram enterrados nos cemitrios pblicos das capitais. Deve-se este fato no s inexistncia de cemitrios pblicos em muitas localidades, mas tambm existncia na capital de hospitais que atraam crescentemente a populao doente e que viria a falecer e ser sepultada ali. Problema assemelhado poderia ser considerado em funo das recorrentes migraes internas causadas pelas secas ou epidemias: como contar uma populao em flutuao permanente ? Sendo esparsos os levantamentos populacionais, a comparao de nmeros obtidos em intervalos de dcadas merece cuidados

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redobrados. Reverso da mesma questo a interpretao da distribuio demogrfica sincrnica, quando detalhada por regies, pois no h informaes sobre a permanncia dessa populao nos locais onde foram recenseadas. Essas flutuaes tornam-se particularmente relevantes com referncia a dados sobre mortalidade, anotados com maior freqncia do que os censitrios e tambm mais sujeitos a distores, j que morriam muitos migrantes e, por outra, doentes se deslocavam, vindo a morrer numa localidade diferente da sua residncia permanente. Todas essas dificuldades de coerncia das estatsticas do Brasil colonial ou imperial reforam a importncia dos estudos monogrficos sobre arquivos pontuais, de parquias ou fazendas.

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4.6 Deve haver coerncia no contexto conceitualA identificao do grupo social objeto de uma estatstica tarefa aparentemente simples e bem-definida. Entretanto, o que hoje em dia pode parecer bvio nem sempre o foi. Uma medida de populao, por exemplo, dever contar pessoas. Mesmo diante de pergunta aparentemente to clara como quantos somos?, os conceitos de hoje podem afastar-se significativamente dos conceitos do passado45. Alm dos conhecidos problemas de impreciso, os levantamentos demogrficos nas Amricas escravistas suscitam dificuldades de classificao diacrnica: os escravos recenseados num dado momento mantm sua condio de cativo noutro? aqueles que foram anteriormente recenseados, mas desapareceram no momento seguinte, morreram, foram vendidos para outra regio ou fugi45

Kula descreve assim a rejeio dos aristocratas poloneses aos censos populacionais: A aristocracia polonesa foi sempre inimiga acrrima de qualquer tipo de unidade-padro populacional... O agregado estatstico deveria constituir-se de unidades somveis que podessem ser reduzidas a um nico denominador comum. Segundo o conceito polons... o campons no poderia ser somado com o aristocrata, e o conceito de homem no constitua para a hierarquia deste pas um denominador comum suficiente. A comparao dos indivduos era uma afronta ao conceito aristocrtico da sociedade. KULA, Witold. Problemas y mtodos de la histria econmica. Barcelona: Ediciones Pennsula, v.100. 1973. 736 p. (Histria, Ciencia, Sociedad) [1963]

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ram? Nas listas nominativas de uma parquia, um indivduo classificado como negro num ano, pode reaparecer mais tarde como um chefe de famlia pardo. Quantas classificaes igualmente flutuantes ou contraditrias no teria havido nos levantamentos dos quais nos sobraram somente os resultados tabulados? A coerncia de conceitos pode tornar-se traioeira at na transcrio rotineira de grupos estabelecidos. Gostaramos de lembrar, como exemplo, a oscilao na classificao dos cidados portugueses no Brasil: cidados privilegiados do reino at 1822, quando se tornaram estrangeiros, pela boca de seu prncipe; logo, em 1889, viram-se forosamente nacionalizados brasileiros, a menos de iniciativa individual para manterem sua nacionalidade portuguesa. Durante todo esse perodo houve, alm disso, naturalizaes voluntrias. Em que medida as sries demogrficas com indicao de brasileiros e estrangeiros levam em conta tais flutuaes? Mesmo que os apuradores censitrios tenham classificado corretamente a populao lusa no Brasil, ser que, ao fazerem uso dessas sries, os historiadores atentam para a composio oscilante do grupo de estrangeiros e as correspondentes reclassificaes entre estrangeiros e brasileiros, ao longo do sculo? Como outro exemplo de quebra conceitual em conjuntos de IQs, podemos citar as sries sobre a produo mundial aucareira, que computavam qualquer tipo de acar at a virada do sculo XX, mas que, a partir da, passaram a incluir quase que unicamente os acares centrifugados, excluindo boa parte da produo indiana, uma das maiores do mundo. Encontraremos dificuldades anlogas com relao maioria dos produtos.

4.7 A noo de foco complementada pela de escala.Em cada um dos eixos que estrutura seu foco, o historiador escolhe uma escala, que definir o foco especfico de seu interesse. No eixo temporal, a escala usada pode variar de alguns dias at milhes de anos, mas a grande maioria dos estudos historiogrficos se concentra numa faixa de alguns anos at alguns sculos. No eixo espacial, as escalas partem de unidades locais, uma fazenda, at todo o planeta. As escalas espaciais podem manter uma associao com escalas de grupos sociais (famlia, tribo, nao, humanidade) ou no (classe social). Da combinao de escalas nos diversos eixos surgir o foco do historiador. As diversas formas historiogrficas nota de pesquisa, estudo monogrfico, trabalho

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de sntese apresentam justamente diferentes combinaes de escalas, focando desde ambientes geogrficos (ou sociais) restritos durante perodos restritos a ambientes mais amplos em duraes mais longas. A cada uma dessas escala corresponde um contexto de entendimento46. Nas palavras de um dos criadores da microhistoria, Carlo Ginzburg, a escala utilizada sempre determinante da construo historiogrfica:Considero Ecstasies principalmente como uma experincia em tamanho. A idia de combinar o menor e o maior num s livro micro- e macro-histria ao mesmo tempo, poderamos dizer me atraiu. H, contudo, uma inteno polmica por trs da forma em que o livro foi estruturado: pode ser lido como uma crtica do que poderamos chamar de histria intermediria, o tipo de histria que aceita sem crtica os nveis explicativos que temos por naturais em certo contexto uma nao, uma poca, um perodo etc. Quis mostrar, se pudesse, que o escopo do estudo nunca pode ser tido como dado. A escala que empregamos sempre determina a que respostas podemos chegar em cada caso, seja no nvel micro ou macro47.

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Com relao ao levantamento de IQs e a sua apresentao, importante termos em mente o referencial de escalas, pois a maioria das IQs surge numa escala micro (a classificao de um indivduo, de uma coisa) e v-se sucessivamente agregada at participar de uma IQ em nvel macro. As invitveis dvidas de classificao de um indivduo se multiplicam ao reunirmos muitos. Alm disso, surgem dvidas prprias s IQs em macro escala: todas as instncias deste objeto foram efetivamente contadas? h instncias erroneamente includas nesta IQ? os mesmos critrios de classificao e de agregao foram usados em todos os momentos citados?

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preciso esclarecer que o movimento da microstoria no se define exclusivamente pela reduzida escala geogrfica e social do foco do historiador, mas inclui outros recursos historiogrficos que buscam adensar a viso do ambiente escolhido . GINZBURG, Carlo. On the dark side of history. Carlo Ginzburg talks to Trygve Rser Gundersen: Eurozine 2003. Disponvel em: www.eurozine.com/article/2003-07-11-ginzburg-en.pdf

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5 IQs so agregadas por sua homogeneidade, mas tornam-se interessantes por sua heterogeneidadeWitold Kula abordou o problema da anlise de mltiplos dados numricos a partir da noo de que a estatstica trata de fenmenos coletivos: ...de tal definio resulta que o objeto da anlise deve ser alguma conjuno, algum agregado..., mas logo em seguida aparentemente se contradiz: Por outra parte, a coletividade ou o agregado analisado no deve compor-se de unidades similares ou ao menos similares do ponto de vista da pesquisa. Ou seja: Este agregado no pode compor-se de unidades sinnimas, nem tampouco de unidades heterogneas. As unidades que o compem, devem poder ser adicionadas em qualquer grau, devem possuir algum denominador comum 48. Procurando resumir a idia de Kula, preciso que haja suficientes semelhanas entre as entidades para que formem um conjunto reconhecvel e cuja agregao tenha significado lgico; mas que, ao mesmo tempo, os membros desse conjunto possam ser classificados ou ordenados segundo outras caractersticas que os diferenciem entre si. dessa oposio que dever surgir a anlise estatstica: semelhantes classificados, contados e ordenados segundo suas dessemelhanas....o quantitativo parece vlido essencialmente para a anlise dos grupos sociais. Ora, tanto quanto a contagem dos homens e das categorias e a avaliao dos seus rendimentos, interessa ao historiador o jogo dos mecanismos sociais. A descrio retoma aqui os seus direitos: preciso contar, mas contar no basta49.

5.1 - As sries histricas so compostas de IQs homogneas, mas referenciadas a perodos diferentesAs sries histricas pretendem reunir estatsticas referidas aos mesmos objetos em perodos sucessivos. Ao expor uma s48

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KULA, Witold. Problemas y mtodos de la histria econmica. Barcelona: Ediciones Pennsula, v.100. 1973. 736 p. (Histria, Ciencia, Sociedad) [1963] SOBOUL, Albert. Descrio e medida em histria social. In: GODINHO, Vitorino Magalhes (Ed.). A histria social. Problemas, fontes e mtodos. Lisboa: Edies Cosmos, 1973. p.25-52. (Colquio da ENS de St.Cloud, 15-16 de Maio de 1965) [1967]

ries histrica, o historiador prope um contrato implcito a seus leitores: Estas so as quantidades que apurei, nos perodos listados, referenciadas ao que me parece ser o mesmo objeto. No garanto nada alm desses nmeros e, mesmo assim, com as qualificaes que menciono aqui. Ao lado desses provisos, contudo, acena com as maravilhas que sua informao seriada promete no entendimento daquele objeto histrico: evoluo, oscilaes, crises e recuperaes, tudo com uma preciso que s nmeros emprestam. O historiador, no entanto, s consegue levar seu leitor at o mesmo ponto em que ele prprio parou: Consegui reunir esses nmeros, verifiquei as fontes na medida costumeira e agora vou trabalhar com eles. Afora o enunciado das fontes e eventuais comentrios de rodaps, raro encontrarmos uma discusso dos problemas identificados e, principalmente, do que teria permanecido margem daquela sries. A justificativa bvia: quase sempre difcil ou mesmo impossvel falar sobre o que no se conhece. Da a importncia de termos presentes os possveis percalos envolvidos nas argumentaes sobre sries estatsticas. Mesmo sem podermos identificar todos os problemas, podemos tentar dosar nossas inferncias s certezas obtidas50. Em geral ficam subentendidas ou mesmo esquecidas vrias dificuldades embutidas na promessa das IQs seriadas. Inicialmente, existe a questo de assegurar-se (o historiador que publica a srie e tambm seu leitor) de que os objetos contados ou medidos foram homogneos ao longo do perodo da srie. Quanto mais longa a srie, mais problemtica se torna esta assertiva. Mudaram as fontes? Mudou a definio do objeto? As instncias seriadas deste objeto mantm coerncia entre si? Os procedimentos de contagem ou medio se mantiveram ao longo do perodo? Os objetos contados/medidos mantiveram insero social semelhante com relao ao argumento a ser desenvolvido?50

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A crtica interna, antes ocupada em demonstrar a veracidade ou falsidade das afirmaes contidas nos testemunhos escritos, agora deve dedicar-se demonstrao da homogeneidade e da coerncia interna das sries de dados, recolhidas ou construdas pelo historiador, e de sua pertinncia em relao s hipteses de trabalho antecipadas; as extrapolaes ou interpolaes de dados tm de ser justificadas por esta perspectiva. CARDOSO, Ciro Flamarion Santana e BRIGNOLI, Hctor Prez. Os Mtodos da Histria. Rio de Janeiro: Graal. 1979. 530 p. (Biblioteca de Histria).

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Como exemplo do esforo requerido e dos problemas envolvidos na organizao de sries seculares referentes a objetos agregados, citamos o quadro de produo de acar em Pernambuco, Alagoas e Paraba, comparados produo cubana de 1800 a 1914, elaborado por David Denslow Jr. (1987:8-12). S para a srie relativa a Pernambuco, foram utilizadas cerca de 15 fontes secundrias diferentes, por sua vez compiladas de um nmero desconhecido de outras fontes. Os primeiros 35 anos no tm valores para Alagoas e Paraba e, nos anos seguintes h 44 anos sem informao. Ao somar as trs provncias brasileiras, para chegar a uma produo do Nordeste, essas lacunas e incertezas se transferem ao total, que comparado srie de produo de Cuba na discusso seguinte. Como exemplo contrastante, de sries homogneas obtidas de arquivos conhecidos, temos aquelas retiradas por P.Goubert das parquias do Beauvaisis referentes a registros de mais de um sculo, as quais, apesar das omisses anotadas pelo autor, ostentam uma uniformidade metodolgica que transmite srie resultante um significado quantitativo bem diferente, embora referida a mbito geogrfico bastante mais restrito.

5.2 Objetos em sries histricas se relacionam de formas distintas com suas instnciasCremos importante distinguir as sries de IQs segundo as relaes que se verificam entre o objeto e suas instncias. Esse aspecto raramente abordado nas discusses metodolgicas, mas traz conseqncias definitivas para a preciso e validade de IQs. Distinguimos quatro relaes entre instncias e objetos: a imutvel, a do ciclo vital, a de composio flutuante e a de referencial varivel. Existem, primeiramente, objetos cujas instncias seriadas permanecem claramente idnticas ao longo do tempo. Apesar das possveis questes tcnicas que podem ser levantadas quanto ao tipo de instrumento de medio empregado, a temperatura mdia mensal medida num ano ser sempre comparvel com aquela medida noutro ano. O conceito de temperatura num ano ou noutro, por mais distantes que estejam, mantm-se imutvel. Isto no significa que as conseqncias econmicas e demogrficas desta temperatura sejam padronizadas, como atestam os estudos de E.Le Roy Ladurie sobre a histria do clima.51

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LE ROY LADURIE, Emmanuel. O Clima. In: Le Goff, Jacques e Nora, Pierre (Ed.). Histria: Novos objetos. Rio de Janeiro: Livraria

Outros objetos, no entanto, mostram-se essencialmente dspares quando colocados numa perspectiva diacrnica. Um segundo tipo de relao entre objeto e suas instncias refere-se a instncias que surgem e desaparecem segundo um ciclo vital de indivduos, cuja soma a cada momento que nos d a IQ registrada: o tamanho de uma populao, representada pela soma das pessoas que se encontram na regio, ou o estoque de uma mercadoria, representado pela quantidade dessa mercadoria existente em certo momento no local. O desafio, neste caso, termos presente que estamos de fato medindo um objeto composto de unidades individuais, em constante fluxo, e no um objeto uniforme que aumenta ou diminui, qual balo com mais ou menos ar. Todas as anlises de composio e evoluo demogrfica decorrem desse fato. Podemos incluir numa terceira categoria objetos nos quais reconhecemos um alto grau de variedade em sua composio interna: as estatsticas sobre produo ou exportao de acar (ou de outras mercadorias), por exemplo, para as quais a variao a cada perodo na qualidade do produto computado praticamente significa que se medem objetos diferentes em cada perodo, tidos como homogneos somente por seu ttulo de acar. Ao compararmos sries sobre acar a sries sobre outras mercadorias, como tabaco ou couro, tais diferenas de composio talvez no cheguem a influenciar a direo e intensidade do argumento, mas ao buscarmos avaliar volumes de acares de vrias procedncias ou para compararmos preos ou resultados econmicos dessa produo tais diferenas podem tornar-se relevantes. A abrangncia e complexidade das tipologias de produtos qualquer produto comprovam este problema. Diferenas de material, de qualidade, de fabricante ou, mais recentemente, de certificao, significam grandes diferenas de preos, de aceitao comercial ou de classificao aduaneira. Modernamente, ainda sofremos com o problema: para