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O USO DAS CORES AZUL E ROSA SOB A PERSPECTIVA INFANTIL: UM ESTUDO DE CASO Bethânia Vernaschi de Oliveira Graduanda (UEM) [email protected] Lucilia Vernaschi de Oliveira Doutoranda (UEM) Solange Franci Raimundo Yaegashi Orientadora (UEM) Resumo: O presente estudo tem o objetivo de compreender de que forma a criança concebe o uso das cores azul e rosa, tradicionalmente associadas aos gêneros masculino e feminino. A fundamentação teórica baseia-se em estudos histórico- culturais de Vigotski (2000 e 2007), Ariès (1978) e em estudos culturais de Bauman (2001 e 2008). Para a parte prática, elaboramos uma imagem (Figura 1) com desenhos aleatórios, e solicitamos à participante para colori-los livremente, usando apenas as cores azul e rosa. No decorrer da atividade interagimos com a criança e registramos o diálogo. De forma geral, constatamos que desde a Educação Infantil o/a estudante é levado/a a relacionar que o azul é a cor que caracteriza os meninos e o rosa, as meninas. Nesse sentido, a preferência por uma das cores não tem uma explicação biológica, mas se expressa como simbolismo de gênero institucionalizado socialmente. Palavras-chave: Azul e rosa; Educação Infantil; Marca de gênero; Influência cultural. Introdução De forma geral, dependendo do posicionamento político e ideológico dos governos que estão no poder, as políticas públicas para as minorias, que historicamente foram desconsideradas, são implementadas em maior ou menor destaque. Partindo dessa premissa, o objetivo deste estudo de caso é compreender

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Page 1: O USO DAS CORES AZUL E ROSA SOB A PERSPECTIVA INFANTIL: … · O discurso de J. sobre a opção por azul ou rosa para colorir os desenhos está bem marcada com base na ideia de que

O USO DAS CORES AZUL E ROSA SOB A PERSPECTIVA INFANTIL: UM ESTUDO DE CASO

Bethânia Vernaschi de Oliveira

Graduanda (UEM) [email protected]

Lucilia Vernaschi de Oliveira

Doutoranda (UEM)

Solange Franci Raimundo Yaegashi Orientadora (UEM)

Resumo: O presente estudo tem o objetivo de compreender de que forma a criança concebe o uso das cores azul e rosa, tradicionalmente associadas aos gêneros masculino e feminino. A fundamentação teórica baseia-se em estudos histórico-culturais de Vigotski (2000 e 2007), Ariès (1978) e em estudos culturais de Bauman (2001 e 2008). Para a parte prática, elaboramos uma imagem (Figura 1) com desenhos aleatórios, e solicitamos à participante para colori-los livremente, usando apenas as cores azul e rosa. No decorrer da atividade interagimos com a criança e registramos o diálogo. De forma geral, constatamos que desde a Educação Infantil o/a estudante é levado/a a relacionar que o azul é a cor que caracteriza os meninos e o rosa, as meninas. Nesse sentido, a preferência por uma das cores não tem uma explicação biológica, mas se expressa como simbolismo de gênero institucionalizado socialmente. Palavras-chave: Azul e rosa; Educação Infantil; Marca de gênero; Influência

cultural.

Introdução

De forma geral, dependendo do posicionamento político e ideológico dos

governos que estão no poder, as políticas públicas para as minorias, que

historicamente foram desconsideradas, são implementadas em maior ou menor

destaque. Partindo dessa premissa, o objetivo deste estudo de caso é compreender

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de que forma a criança concebe o uso das cores azul e rosa, tradicionalmente e

culturalmente associadas aos gêneros masculino e feminino. Nossa reflexão é: qual

a relação que a criança estabelece entre sentido e significado dessas cores na

caracterização dos gêneros feminino e masculino?

Como referencial teórico-metodológico compreendemos o desenvolvimento

infantil com base nos estudos propostos pela Teoria Histórico-Cultural, apresentada

por Vigotski (2000; 2007) que concebe o desenvolvimento humano mediado pela

cultura da qual os sujeitos participam, além dessa, nos apoiamos em Ariès (1978),

para compreendermos que a categoria infância passou a ser reconhecida na

educação da criança, e, em consequência disso, as investigações sobre a formação

da identidade e das necessidades do infantil se intensificaram. Também nos

apoiamos nos Estudos Culturais de Bauman (2001; 2008) para entendermos a

influência da cultura majoritária na modelagem de comportamentos sociais e na

liquidez com que são representados.

Por meio da técnica de estudo de caso, participou desse estudo uma criança

de cinco anos e meio que será nominada por J., matriculada no infantil cinco, no ano

de 2019, numa escola privada de uma cidade localizada na região norte do estado

do Paraná. A criança frequenta essa escola desde os dois anos de idade.

Na parte prática de nossa pesquisa, analisamos alguns aspectos discursivos

decorrentes de atividades de colorir, nominar e explicar o motivo da opção azul ou

rosa por J., conforme apresentada na Figura 1 do presente estudo.

Para a realização da pesquisa criamos um protocolo (Figura 1), e solicitamos

à criança que pintasse a ilustração composta por grupos de famílias e amigos e por

roupas e acessórios. A participante J. foi orientada a colorir os desenhos livremente

usando apenas as cores azul e rosa. Apresentamos na sequência o resultado da

referida atividade.

As cores azul e rosa na representação de gênero

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Inicialmente acreditávamos que J. faria uso do azul para caracterizar as

ilustrações referentes ao masculino e o rosa, ao feminino. Entretanto, em algumas

situações sua representação apresenta outra justificativa, como observamos no

discurso decorrente da pintura da imagem a seguir.

Figura 1. Imagem colorida livremente por J. com as cores azul e rosa

Fonte: Protocolo elaborado pelas autoras e colorido pela participante da pesquisa (2019).

Após a explicação de que a pesquisada deveria usar apenas as cores azul e

rosa para colorir o desenho, ela prontamente iniciou a atividade e interagiu o tempo

todo com a pesquisadora (P), conforme o diálogo que se segue.

J.: Aqui tem mais meninas, olha tem dois meninos e três meninas. Eu sempre olho na figura, tipo pintei menina, menina, se for menina eu abro (se referindo à canetinha rosa usada para colorir), se for menino, eu abro o azul. P.: E se você pintasse um menino de rosa ou uma menina de azul, teria problema? J.: Hum, só um pouquinho. P.: Qual seria o problema? J.: Porque meninas gostam de rosa e meninos gostam de azul. J.: Agora vou pintar esse aqui (se referindo ao desenho usado em porta de banheiro). Aqui tem dois meninos e uma menina.

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J.: Sabia que aqui eu não entendi? P.: O que você não entendeu? J.: Porque tem duas crianças e um pai. Por que não tem uma mãe? Isso eu não entendi. P.: Onde você imagina que esteja a mãe dessas crianças? J.: Imagino que ela está no trabalho. Acho que ela trabalha numa agência de sacar dinheiro. P.: Explique esse desenho que você está pintando. J.: É uma família do desenho da Pepa Pig. Os meninos são azuis e as meninas, são rosa. J.: Na família da coruja vou começar pela mamãe. P: Por que essa (apontando para a coruja maior) não é a mamãe? J.: Porque ela é a média. J: Agora vou pintar a grama. Queria pintar de verde. P: Você se lembra do nosso combinado de que você só poderia usar o azul e o rosa? J: Vou usar o azul e o rosa porque não sei se é menino ou menina. J: Agora só falta pintar as roupas e sapato. J: Homem é que usa isso (se referindo ao cachecol). O lacinho é de mulher, elas são mais delicadas. J: E esses casaco, de quem será que é? P: Você é quem decide. J: (Pensativa). P: E daí, que cor vai usar? J: Nesse vou usar azul para ser de homem. E esse vou pintar de rosa porque é de mulher. P: E o chapéu, qual cor vai usar? J: Rosa. Olha que bonito vai ficar. J: As botas estou pintando de azul e o outro chapéu também. Aqui os homens venceram, tem mais coisas azul.

O discurso de J. sobre a opção por azul ou rosa para colorir os desenhos está

bem marcada com base na ideia de que o gênero masculino se caracteriza pela cor

azul, e o feminino, pelo rosa e pela padronização de ideias e de comportamentos.

Essa convenção no uso das cores para marcar homem e mulher é resultado de um

processo sócio-histórico, que segundo Paoletti (2012) se trata de uma construção

social. A autora pontua que já foi comum a cor azul vestir meninas pela relação com

o manto da Virgem Maria. Registra também que a cor rosa passou a compor mais

frequentemente o vestuário das meninas a partir da II Guerra Mundial.

De forma geral, o discurso de J. traz marcas do contexto cultural do qual

participa. Ela reflete sobre aspectos das convenções sociais de sua realidade

enquanto estudante da Educação Infantil e participante de atividades culturais junto

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a sua família. Suas funções mentais revelam como lida com abstrações e

convenções sociais (VIGOTSKI, 2000; 2007)

Outro aspecto assinalado por J. diz respeito à composição familiar, ao

demonstrar estranheza na cena entre pai e um casal de filhos. Indagada sobre sua

dúvida, explicou que a mãe deveria estar trabalhando. Bauman (2001 e 2008) ao se

referir à pós-modernidade ou modernidade líquida pondera sobre as demandas e as

relações sociais contemporâneas, em que se criam novas necessidades e outras se

esvaem facilmente.

Ao pintar a grama, J. apresentou dúvidas pois não sabia associá-la às cores

utilizadas, embora o artigo “a” a caracteriza como substantivo sobrecomum. Diante

de sua imprecisão usou alternadamente as duas cores, demonstrando que essa

decisão não alterou o significado e o sentido daquela paisagem. Considerações finais

A presente temática precisa ser melhor discutida na família, na escola e em

outras instituições sociais, como as igrejas. Um pequeno exemplo dessa realidade é

a ação de J. ao colorir de forma multicor a grama sem perder suas propriedades

fundamentais, o que se aplica à riqueza da diversidade a que as pessoas são

constituídas.

Diante da complexidade da presente temática afirmamos que outras

pesquisas dessa natureza devem ser realizadas, com o intuito de contribuir com a

desmistificação da divisão injustificável entre homens e mulheres. Reforçamos que

desde a Educação Infantil a criança precisa ser ensinada de que a atribuição de uma

cor para caracterizar um determinado gênero é uma convenção e ninguém deixa de

ser homem ou mulher por usar cores e realizar atividades comuns a ambos.

Referências

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ARIÈS, P. História social da infância e da família. Tradução: D. Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978. BAUMAN, Z. A Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. PAOLETTI, J. B. Pink and blue: Telling the boys from the girls in America. Bloomington: Indiana University Press, 2012. VIGOTSKI, L. S. Pensamento e Linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. VIGOTSKI. L. S. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.