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~ 1 ~
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
FACULDADE DE MEDICINA
DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA COM ASSOCIAÇÃO DO IES AMPLA
MARIA IDALICE SILVA BARBOSA
O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DO BRASIL
FORTALEZA
2015
~ 2 ~
MARIA IDALICE SILVA BAROBSA
O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO
SISTEMA ÚNICO DE SÁUDE DO BRASIL
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva UECE/UFC/UNIFOR, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor. Área de Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em Saúde. Linha de Pesquisa: Avaliação em Saúde. Campo Temático: Avaliação Qualitativa de Programas e Serviços de Saúde.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Magalhães Bosi
FORTALEZA
2015
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MARIA IDALICE SILVA BARBOSA
O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO
DE SAÚDE DO BRASIL
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva UECE/UFC/UNIFOR, como requisito parcial para obtenção do Título de Doutor. Área de Concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em Saúde. Linha de Pesquisa: Avaliação em Saúde. Campo Temático: Avaliação Qualitativa de Programas e Serviços de Saúde.
Aprovada em: 22 / 12 / 2015.
~ 5 ~
Ainda que eu falasse A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria
É só o amor! É só o amor Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal Não sente inveja ou se envaidece
O amor é o fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer
Ainda que eu falasse A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria
É um não querer mais que bem querer É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente É cuidar que se ganha em se perder
É um estar-se preso por vontade É servir a quem vence, o vencedor
É um ter com quem nos mata a lealdade Tão contrário a si
é o mesmo amor Estou acordado e todos dormem
Todos dormem, todos dormem Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade Ainda que eu falasse
A língua dos homens E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria
(Monte Castelo, Legião Urbana)
~ 6 ~
Agradecimentos
À Vida, pela sua maravilhosa gratuidade e grandiosidade;
À Coordenação do Programa e a todos os professores, em especial, ao professor Diatahy Bezerra,
pelas agradáveis tardes de suas instigantes e inspiradoras aulas;
À minha professora orientadora Maria Lúcia Bosi pelo desafio aceito de empreender junto comigo esta
maravilhosa aventura do conhecimento;
Aos gestores de saúde de Tauá, a Dra Ademária Timóteo, secretária de saúde do município, e ao
amigo Moacir Soares, pela prestimosa colaboração com esta pesquisa;
Aos profissionais do Centro de Saúde da Família de Inhamuns que empreenderam comigo parte do
caminho que resultou nesta produção do conhecimento;
À Banca da defesa, pela presteza como atendeu ao convite em colaborar com este trabalho;
À Zenaide, por sua delicadeza e colaboração, sempre e a tempo em todas as solicitações que precisei;
Às amigas: Socorro Sousa, pelo incentivo e colaboração quando me candidatei ao Programa;
Vanira Matos, por ter se aventurado comigo, dialogando sobre as aulas que assistimos juntas e
compartilhando o mesmo sonho; e a Teresa Queiros pelos diálogos cheios de risos e soluções inéditas;
Aos amigos Carlile Lavor e Míria Lavor por fazer de suas vidas fonte de inspiração de sonhos no
caminho de construção de um Sistema Único de Saúde universal, integral e equânime;
Aos meus pais, Maria Selma e Vicente Paulo que sempre me apoiaram em meus estudos , minha tia,
meus irmãos e sobrinhos, pelo amor que me dedicam.
~ 7 ~
Dedicatória
Dedico este trabalho ao meu irmão Halyson Silva Barbosa (in memorian) que faleceu
tão cedo, mas deixou comigo a certeza de que o vínculo de Amor é eterno!
~ 8 ~
RESUMO
Este trabalho objetivou compreender o vínculo no espaço da atenção primária em saúde (APS) efetivada no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), tendo a complexidade como base epistemológica. A natureza do fenômeno exigiu um esforço reflexivo transdisciplinar em que constructos teóricos oriundos de diversos campos de saber, tais como psicologia, etologia, sociologia, antropologia, neurologia e estudos acerca da cognição humana confluíram fazendo emergir uma teia de conhecimentos e saberes na qual o vínculo se expressa em três níveis distintos e articulados: consigo, com o outro (alteridade) e com a sociedade (natureza/ambiente). A partir da visão complexa a ESF foi o contexto no qual adentramos para compreender os desdobramentos do vínculo interrelacionado às formas do cuidado, próprias da atenção primária em saúde. O caminho metodológico adotado tem inspiração na Sociopoética que reconhece, por princípio, o corpo como fonte de saber e legitima saberes oriundos da vivência e das práticas. Por meio do uso de dispositivos específicos, a sociopoética convida, reconhece e compromete os sujeitos da pesquisa como corresponsáveis pela produção do conhecimento promovendo um diálogo transdisciplinar pela fertilização mútua entre arte e ciência. O trabalho de campo não se apresenta como fonte empírica geradora de dados, mas como um Portal ao qual adentramos para, juntos com os profissionais da saúde, compreendermos o vínculo entrelaçado aos circuitos que compõe a ESF como sistema. O diálogo transdisciplinar foi o centro vivo da produção do conhecimento em que a arte e a imaginação se somaram à racionalidade cognitiva, dando vida e pertinência aos saberes produzidos. O vínculo apresentou-se como saber silenciado, ainda que vivido diariamente, formando um circuito mobilizador de ações e decisões, atuando como regulador das condutas. O vínculo toca o delicado circuito que tece a autonomia e a responsabilização, revelando que se inclui, dentre as tarefas dos profissionais na ESF, o posicionar-se frente aos variados graus de autonomia que as pessoas constroem ao longo de suas vidas para efetivar a longitudinalidade do cuidado. Tal posicionamento possui implicação direta com o nível de vinculação que ambos, profissionais e usuários, têm consigo próprio. Outro desdobramento do vínculo está na regulação de condutas éticas que interligam saber, afetividade e poder, relacionado ao nível de vinculação dos sujeitos com a sociedade, mobilizando tanto nossa capacidade de excluir o outro, dissociando vínculo e afetividade, gerando favoritismos e abuso de poder, como também, nossa capacidade de inclusão do outro, pela compreensão empática e altruísta, que entrelaça universalidade e equidade, efetivando a integralidade do cuidado humanizado em saúde. A humanização dos serviços de saúde está implicada na dialógica entre os três níveis de vinculação. A capacidade de vinculação consigo tem grande potencial de retroalimentar o circuito, mas não se desenvolve de forma espontânea numa sociedade em que o egocentrismo e o individualismo destituem nossa humanidade pela negação do outro. Compreender, mediante um percurso reflexivo-vivencial, os vínculos que nos interligam uns aos outros se mostrou um caminho para rever valores, revelando possibilidades de aperfeiçoamento das práticas em saúde, na medida em que as condutas éticas adquirem enraizamento afetivo pela religação de si com a humanidade de todos.
Descritores: Atenção Primária à Saúde, Vínculo, Estratégia Saúde da Família, Saúde Coletiva, Complexidade.
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ABSTRACT
This study aimed to understand the bond within the primary health care (PHC) managed in the Brazilian Unified Health System (SUS in Portuguese), having the complexity as an epistemological basis. The nature of this phenomenon required an interdisciplinary reflective effort in which different theoretical constructs from various fields of knowledge, such as psychology, etiology, sociology, anthropology, neurology and some studies about the human cognition, came together arising a network of knowledge and learning, in which the bond is expressed in three different and articulated levels: with ourselves, with the others (otherness) and with the society (nature / environment). From the complex view, the ESF was considered as the context in which we penetrate in order to understand the development of the bond that is related to all kinds of care that are commonly practiced in the primary health. The methodological approach adopted is inspired in social poetics, which recognize, in principle, the body as a source of knowledge and legitimize knowledge derived from experience and practice. Using specific devices, social poetics invite, acknowledge and commit the research subjects as co-responsible for the knowledge production, promoting an interdisciplinary dialogue for cross-fertilization between art and science. The field work is not only an empiric data generator source, it is also a doorway in which we enter in order to understand together with the health professionals the bond interlaced with the circuits as a part of the ESF system. The interdisciplinary dialogue was the vital center of the knowledge production in which the art and the imagination joined the cognitive rationality, giving life and pertinence to the generated knowledge. The bond was introduced as a silenced knowledge, experienced in a daily basis, constructing a dynamic circuit of actions and decisions acting as a conduct regulator. The bond touches the gentle circuit that weaves the independence and the accountability, revealing the professionals duties in the ESF, this includes facing the different levels of autonomy that people construct during their lives in order to accomplish the longitudinally of care. This implies the bonding between the professionals and the health users. Another development of the bond is the regulation of the ethical conduct that connects the knowledge, the affection and the power and this depends of the bonding level between the subjects and the society, that in one hand a subject can exclude the other, dissociating bond and affection, causing favoritism and abuse of power, and in the other hand a subject has the ability of accepting the others, by the altruistic empathic understanding, interlacing the universality and equality, making effective the integrality of the human health care. The ability of bonding with ourselves has a great potential and this feeds back the circuit, but this does not mean that is developed in a spontaneous way due our egocentric and individualist society. Understanding through a reflective course the bonds that interconnect us to the others are important to review values, and this opens the possibility to improve the health practices, by rooting ethical conducts.
Keywords: Primary Health Care, Bond, Family‟s Health Strategy (EFS), Collective Health, Complexity.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Planos intersecionais de análise 1
Figura 2 Amálgama Semântico em que se encerra o Vínculo
Figura 3 Vórtices
Figura 4 Ecosistema – Serviço de Atenção Básica do SUS
Figura 5 Taxonomia para efetivação da Integralidade da atenção à saúde
Figura 6 Princípios do SUS - Justaposição
Figura 7 Princípios do SUS - Interrelação
Figura 8 Princípios do SUS - Holograma
Figura 9 Estrela
Figura 10 Dialógica: pensar - sentir - agir- entorno
Figura 11 Dialógica dos Níveis de Vinculação Afetiva
Figura 12 Unidade Trinitária Indivíduo/Espécie/Sociedade
Figura 13 Serviços da ESF – relação de conjunto
Figura 14 Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS – Esquema I
Figura 15 Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS – Esquema II
Figura 16 Circuito Interrelacionado do vínculo na ESF do SUS – Esquema III
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Esquema representativo - Emoção/Sentimento/Consciência
Quadro 2 Fios que tecem Vínculos
Quadro 3 Publicações sobre atenção básica a saúde que tangenciam o vínculo relacionado a categorias do cuidado e organização do serviço de APS. (Apêndice)
Quadro 4 Publicações que Avaliam a Atenção Básica e Estratégia Saúde da Família e referem o tema vínculo. (Apêndice)
Quadro 5 Sistematização da Produção do Grupo Pesquisador- Lugares Geomíticos. (Apêndice)
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LISTA DE IMAGENS
Imagem 1 Enterro de um anjinho – Santa Quitéria – Ceará.
Imagem 2 Galeria de Quadros, de M. C. Escher
Imagem 3 Conjunto de Fractais
Imagem 4 Mãe e Criança, de Picasso
Imagem 5 Mamíferos
Imagem 6 Diversidade Humana
Imagem 7 Portinari, da Série Guerra e Paz
Imagem 8 Portinari - Catequese
Imagem 9 Tirinha da Mafalda
Imagem 10 Vista aérea do serrote Quinamuiú, cidade de Tauá
Imagem 11 Equipe de Gestores da Secretaria de Saúde de Tauá
Imagem 12 Mapa Ceará com localização de Tauá
Imagem 13 Pintura Vila São João do Príncipe dos Inhamuns
Imagem 14 Coronel Lourenço Alves Feitosa e suas filhas Edwiges e Maria de Lourdes
Imagem 15 Igreja Nossa Senhora do Rosário - Antiga
Imagem 16 Igreja Nossa Senhora do Rosário - Atual
Imagem 17 Entrada da cidade de Tauá
Imagem 18 Centro de Saúde da Família de Inhamuns – Distrito de Vera Cruz
Imagem 19 Cenário Oficina 1 - análise da Produção do Grupo Pesquisador
Imagens 20 Cenário Oficina 1 - análise da Produção do Grupo Pesquisador
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABS Atenção Básica à Saúde
ACS Agentes Comunitários de Saúde
AIS Ações Integradas de Saúde
APS Atenção Primária à Saúde
CEP Comitê de Ética em Pesquisa
CONASS Conselho Nacional de Secretários da Saúde
COSEMS/CE Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará
ESP-CE Escola de Saúde Pública do Ceará
EFSFVS Escola de Formação em Saúde da Família Visconde de Saboia
ESF Estratégia Saúde da Família
EPS Educação Permanente em Saúde
GP Grupo Pesquisador
MP Medida Provisória
NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família
NUCOM Núcleo de Psicologia Comunitária
OMS Organização Mundial da Saúde
OPAS Organização Pan-Americana de Saúde
OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
PACS Programa Agente Comunitário de Saúde
PSF Programa Saúde da Família
PNAB Política Nacional de Atenção Básica
PNH Política Nacional de Humanização
RAS Redes de Atenção à Saúde
RMSF Residência Multiprofissional em Saúde da Família
SESA Secretaria Estadual de Saúde
SESP Serviço Especial de Saúde Pública
SUS Sistema Único de Saúde
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
UFC Universidade Federal do Ceará
USP Universidade de São Paulo
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Sumário
Preâmbulo 15
PARTE 1
1.1. Introdução 25
1.2. O Vínculo nas Políticas Públicas do SUS 35
1.2.1. A Gênese. 46
1.3. Problematização do Vínculo como tema de pesquisa em Saúde Coletiva. 56
1.3.1. Dimensão Semântica. 58
1.3.2. Dimensão Metodológica. 73
1.3.3. Dimensão Epistemológica. 80
1.4. O Vínculo como fenômeno de investigação desta pesquisa. 89
1.4.1. Como conhecemos o que conhecemos? 92
1.4.2. O mundo em Holomovimento. 100
1.4.3. O vínculo, humano vínculo, pode ser objeto? 104
1.4.4. A Senda do método. 112
PARTE 2
2.1. A Saúde Coletiva e a necessidade de um Pensamento Complexo 125
2.2. O vínculo no campo da Saúde Coletiva – nexos desconexos 135
2.2.1. O Vínculo tem lugar no campo da Saúde Coletiva? 136
2.2.2. Que sujeito vincula? 145
2.2.3. O vínculo se manuseia? 158
2.2.4. Vínculo de quem com quem? 163
2.3. Vínculo, humano vínculo. 166
2.3.1. Filogênese e Ontogênese do vínculo entre os humanos. 170
2.3.2. Vínculo humano e a multiplicidade do uno. 186
2.3.3. Vínculo humano e a unidade na multiplicidade. 195
2.3.4. Níveis de vinculação afetiva. 208
2.3.5. Afetividade, fio que tece vínculos humanos. 215
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PARTE III
3.1. Vínculos Humanos no contexto da Atenção Primária à Saúde. 221
3.1.1. Vínculos humanos na contemporaneidade. 222
3.1.2. O circuito do vínculo na ESF do SUS. 237
3.2. Tauá – um lugar onde os vínculos me trouxeram. 260
3.2.1. Um pouco sobre Tauá: seu território, história e população. 265
3.2.2. A Travessia do Portal. 274
3.2.3. O Vínculo na ESF pelo olhar do Centro de Saúde da Família de Inhamuns - o Grupo Pesquisador.
278
3.2.4. Vínculos que tecem Identidade. 285
3.2.5. Vínculos Humanos na Estratégia Saúde da Família. 306
3.3. O Vínculo, humano vínculo, no Sistema Único de Saúde. 345
3.3.1. Vínculo, autonomia e responsabilização na ESF. 352
3.3.2. O vínculo como tessitura ética das relações. 360
3.3.3. O poder do vínculo e a Humanização dos serviços de saúde. 365
3.4. De volta ao começo. 374
Referência Bibliográfica. 383
Apêndices. 396
~ 15 ~
Preâmbulo Da curiosidade à pesquisa ou como este tema se fez necessidade de investigação para mim
“... e que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc.
Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”
(Manoel de Barros)
Este tema se tornou curiosidade para mim desde o tempo de minha
graduação em psicologia quando participava da extensão do Núcleo de Psicologia
Comunitária (NCOM), da Universidade Federal do Ceará (UFC), e desenvolvia
trabalhos em comunidades no interior do Estado e bairros da capital, como
estudante extensionista. O principal objetivo desses trabalhos era proporcionar um
aprendizado teórico-prático para nós estudantes de psicologia.
De acordo com Góis (1994) a atuação em psicologia comunitária segue, ou
busca cumprir, cinco fases. Uma primeira que consiste na chegada do profissional a
comunidade. Uma segunda fase dedicada a uma espécie de diagnóstico ação
realizado em parceria com a com os moradores, para em seguida desenvolver um
trabalho com as pessoas tendo em vista a autosustentabilidade. E ainda as duas
últimas fases que consiste em favorecer a continuidade do trabalho e sua possível
ampliação até que as ações que impliquem em um desligamento progressivo do
profissional em relação à comunidade. Na primeira, a chamada fase de inserção, um
ponto importante que me chamava atenção é que tínhamos a missão de construir
um vínculo com as pessoas da comunidade ou do bairro onde tínhamos firmado
parceria de trabalho. E disso dependia o desdobramento do trabalho e a relação do
profissional com a comunidade.
Aprendíamos em psicologia comunitária que há diferentes tipos de relação
do profissional com a comunidade, quais sejam: Assistencial, Técnica e
Comunitária. Na primeira, prevalece o saber de senso comum e, muitas vezes, o
objetivo é o controle social e político, efetivado pelo paternalismo, em que as
~ 16 ~
relações entre as pessoas se caracteriza geralmente pela submissão, ajustamento de
condutas e resolução de necessidades imediatas. O outro modo de relação, o
técnico, o foco do trabalho se volta para uma problemática específica, e há aqui, a
prevalência do saber científico sobre o popular. As relações continuam perpassadas
pela dominação, mas adquire um caráter “científico” em termos de enfrentamento
e resolução de problemas. O modo de relação que deveríamos, como psicólogos,
buscar construir, era o comunitário, em que o principal objetivo era transformar a
realidade vivida. Isso deveria ser buscado pela conscientização e pelo
reconhecimento da força e da capacidade das pessoas de transformar sua própria
realidade, aprofundando a consciência de si e do mundo. Eis o ponto em que
identifico a gênese que move a curiosidade desta pesquisa.
Como psicóloga eu deveria facilitar processos comunitários, e de acordo
com o que aprendíamos, isso se iniciava com o estabelecimento das bases do
vínculo com as pessoas da comunidade. Até então, tecer vínculos para mim era algo
natural. Não passava pela minha consciência como deveria ser, ou o que eu devesse
fazer para construí-los, até que a minha formação profissional prendeu meu foco
de atenção para isso.
Em outro ciclo de minha vida direcionei minha atuação como psicóloga
para a área da saúde. Trabalhei na Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE) na
formação técnica de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e, novamente, o tema
vínculo estava presente no meu trabalho, uma vez que aparecia como prerrogativa
do trabalho desse profissional do SUS. Muitos questionamentos e reflexões me
surgiram durante esse tempo. Percebia, entretanto, que esse assunto não era ponto
de reflexão por parte das equipes de saúde ou das pessoas que atuavam no campo
da formação. Isso ficou ainda mais evidente para mim quando atuei junto aos
profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) como tutora da Residência
Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF) da Escola de Formação em Saúde
da Família Visconde de Sabóia (EFSFVS), em Sobral. Observava a relação entre os
profissionais das equipes e a comunidade e percebia uma diferença marcante entre
~ 17 ~
o vínculo que cada um construía com as pessoas que atendiam, e o vínculo que o
ACS tinha com a comunidade. Observava também que estas diferenças eram
relevantes para organização dos processos de trabalho na Estratégia de Saúde da
Família (ESF). Apesar desse reconhecimento não ser apenas meu, mas algo
compartilhado pelos demais profissionais, o tema vínculo não era, de uma forma
geral, assunto de interesse no sentido de compreender estas diferenças e suas
implicações para o trabalho na ESF.
Minha atuação profissional continuou voltada para saúde, sobretudo, ligada
a processos formativos e Educação Permanente em Saúde (EPS) e, em 2011, decidi
participar da seleção para o doutorado em Saúde Coletiva com o propósito de
estudar o assunto, considerando ser este um tema presente no dia-a-dia da ESF,
embora com escassas reflexões nos debates em saúde.
Os percalços do caminho.
Você não sabe o quanto eu caminhei Pra chegar até aqui
Percorri milhas e milhas antes de dormir Eu nem cochilei
Os mais belos montes escalei Nas noites escuras de frio chorei, ei ei...
A vida ensina e o tempo traz o tom Pra nascer uma canção
Com a fé do dia a dia encontro a solução (Estrada, Cidade Negra)
Percorri um longo caminho na construção de um saber sobre o fenômeno
aqui em questão. Estudar e pesquisar sobre este assunto me abriu um grande leque
de questões exigindo uma ampla problematização do tema em função do campo de
saber ao qual apresentei como proposta de estudo: o campo da Saúde Coletiva.
Dividi este percurso de estudo e aprendizagem em três Partes. Na primeira,
introduzo o tema e me situo como trabalhadora da saúde expressando a forma
como compreendo o SUS, como cidadã brasileira e pesquisadora. Em capítulo
seguinte apresento o vínculo nas Políticas Públicas do SUS, abordando a Política
~ 18 ~
Nacional de Atenção Básica (PNAB) e a Política Nacional de Humanização (PNH).
E ainda, a partir da minha experiência de trabalho na saúde, abordo pistas de como
compreendo a gênese deste tema na Saúde Coletiva.
Estudar e pesquisar o assunto me trouxe questionamentos não apenas
conceituais, mas também, levantou pontos intrigantes e instigantes em termos
metodológicos e epistemológicos. Sigo o percurso no capítulo seguinte
problematizando o vínculo como tema de pesquisa no campo de saber da Saúde
Coletiva. Faço uma revisão de literatura sobre o assunto e reúno reflexões
relacionadas ao vínculo em três dimensões. Inicialmente, apresento questões
relacionadas à dimensão semântica, quando abordo o vínculo em termos
conceituais. Na sequência, abordo questões pertinentes aos métodos utilizados para
pesquisar o tema, refletindo sobre a dimensão metodológica dos estudos que tocam
este assunto na literatura. E, em decorrência disso, apresento em seguida, uma
terceira dimensão de análise com reflexões de cunho epistemológico decorrentes da
problematização do tema nas dimensões anteriores.
A partir daí me vejo na tarefa de apresentar o vínculo como fenômeno de
investigação para esta pesquisa, tocando relevantes questões epistemológicas e
metodológicas, a saber: como conhecemos o que conhecemos? Que visão de
mundo eu assumo como pesquisadora? O vínculo pode ser objeto de pesquisa?
Que caminho metodológico propor que se apresente em coerência com a natureza
deste fenômeno?
Na Segunda Parte deste estudo aprofundamos as questões que me surgiram
com esta revisão de literatura, agora à luz do pensamento complexo enquanto lugar
epistemológico em que me situo. Inicio esta parte com um capítulo em que abordo
a necessidade do pensamento complexo no campo da Saúde Coletiva, dialogando
com vários autores de referência nesta área. Considero que aqui inicio minha busca
por compreender este tema me movendo mais diretamente para aprofundar as
reflexões, organizar as questões e buscar respostas. Os capítulos da primeira Parte
deste estudo trouxeram múltiplas questões referentes ao vínculo, as quais, busco
~ 19 ~
organizar e aprofundar de forma sistemática. O tema vínculo na Saúde Coletiva me
trouxe nexos e desconexos que desafiavam o assunto tornando o caminho, tanto
nebuloso, quanto espinhoso.
Durante a revisão de literatura sobre o assunto percebi que o vínculo era
sempre abordado como uma das condições de efetivação da integralidade da
atenção à saúde. Constatei que o discurso do vínculo estava encerrado em um lugar
específico. A integralidade da atenção à saúde era a janela a partir da qual o tema
estava sempre enquadrado. Entretanto, seria somente esta, a janela em que
poderíamos nos debruçar para observar o fenômeno? Ou melhor, por que somente
a partir desta janela o discurso sobre o vínculo estava sendo construído? Havia para
mim a necessidade de compreender os motivos de ser esse, o lugar para o qual
convergiam os estudos sobre o vínculo na atenção primária do SUS, sobretudo,
porque isso não parece causar nenhum incômodo ou desconforto teórico para os
pesquisadores da área.
A noção de subjetividade inerente ao discurso sobre o vínculo também se
descortinava como pano de fundo a lhe conferir sentido. Que sujeito vincula? Que
fios de ideias tecem a trama que compõe a noção de subjetividade presente no
campo da Saúde Coletiva? Isso era um ponto crucial uma vez que, no fluxo figura e
fundo, é o fundo que fornece uma sustentação para a figura. Neste fluxo, a figura
se destaca a partir de um fundo, que a desvela, permitindo sua visão. E nem sempre
a subjetividade como fundo/moldura é assunto debatido nas pesquisas quando
abordam temas que tocam as questões relacionais humanas. Nesta perspectiva, a
tarefa decorrente foi buscar compreender que ideias teciam a trama do tecido que
se apresentava como pano de fundo para o discurso do vínculo, como figura. Em
outras palavras, que noção de subjetividade fornece sentido e sustentação ao
discurso do vínculo como figura desse fluxo figura-fundo no campo da Saúde
Coletiva? E mais, que noção de subjetividade seria para mim moldura-fundo a
partir da qual poderia desvelar algo sobre o meu tema de estudo?
~ 20 ~
Outro ponto que a mim causou estranhamento na literatura em que se
insere o discurso do vínculo é seu corrente uso na Saúde Coletiva conotando-o
como tecnologia, ferramenta e/ou dispositivo. E a pergunta inevitável era: vínculo
se manuseia? Para mim eram palavras que contrastavam com o vínculo enquanto
fenômeno de natureza relacional. O que me soa estranho é o emprego de tais
termos que conotam um uso manipulativo, para referir-se aos laços humanos. Esse
estranhamento me trouxe reflexões sobre a necessidade do seu uso. Qual a
necessidade de se utilizar tais termos como uma espécie de mediador, esboçando
uma tentativa de objetivar a relação entre os humanos, se, no caso, estamos falando
mesmo é da própria relação, subjetiva por natureza? E também ainda, que vínculo
humano é esse que há, deveria, ou poderia haver entre os profissionais e usuários
do SUS, e que aparece como questão? Era o vínculo de quem com quem de que
estamos falando? Ao vínculo humano que aí se apresenta, ninguém ousaria
equipará-lo ao vínculo que temos com nossos pais, irmãos e amigos da convivência,
mas ninguém discordaria, tampouco, que todos são vínculos humanos. Então, que
dimensões desse fenômeno surgem quando se refere ao vínculo humano no
contexto da Estratégia Saúde da Família do SUS?
Tais questões precisaram ser apuradas e precisadas como pontos de
reflexões cujas ideias, de certa forma, antecediam e davam base para uma
investigação desse complexo fenômeno. O vínculo como fenômeno relacional
exige como condição epistemológica de investigação um pensar complexo que
oportunize uma visão sistêmica dos fenômenos pertinentes ao viver humano. E foi
recorrendo ao pensar complexo, sobretudo, as ideias de Edgar Morin esboçadas em
seus Métodos1, que me deu fôlego para seguir.
E necessário se fez, neste percurso, compreender teoricamente o vínculo, o
humano vínculo, em função das lacunas conceituais que empobreciam o uso
1 Edgar Morin escreveu 6 livros com título O Método, em que trata, em cada um deles, um aspecto do conhecimento. O Método 1. Natureza da natureza; Método 2. A Vida da Vida; O Método 3. O Conhecimento do Conhecimento; O Método 4. As Ideias das Ideias; O Método 5. A Humanidade da Humanidade; e o Método 6. Ética.
~ 21 ~
semântico do termo e seus desdobramentos no contexto em que ele se apresentava
como questão para mim: a Estratégia de Saúde da Família do SUS.
O pensar complexo foi o chão epistemológico necessário em cuja base
calquei meus passos para seguir estudando e buscando compreender o tema que
apresento no capítulo chamado Vínculo, humano vínculo.
A complexidade do fenômeno me fez empreender um esforço reflexivo
transdisciplinar em que os diversos constructos teóricos, oriundos de diversos
campos de saber, tais como, a psicologia, etologia, sociologia, antropologia,
neurologia e os estudos da cognição humana para gerar uma reflexão aprofundada
sobre o vínculo no contexto da ESF do SUS. As múltiplas dimensões do fenômeno
exigiam também uma produção de conhecimento transdisciplinar como fonte para
gerar uma compreensão abrangente do fenômeno em seu contexto.
E na terceira e última parte deste estudo apresento os percalços da senda
do método que percorri. Reúno aqui saberes oriundos do diálogo por mim
empreendido com diversos autores, bem como, saberes cuja fonte foi a vivência e a
prática cotidiana na ESF, vividas não só por mim, mas por profissionais que atuam
na ESF. O vínculo traz em si um conhecimento tácito, a partir do qual construímos
nossos laços com a família, os amigos, os amores, os colegas de profissão, e até
mesmo, com conhecidos de um dia, com quem topamos numa viagem, por
exemplo, e ainda há os desconhecidos, humanos como nós. Esse conhecimento se
enlaça em todos os âmbitos de nossa vida e dá um colorido às relações que
estabelecemos em diversos espaços que ocupamos. Apresento nesta parte do
estudo as nuances de cores que assume o vínculo entre profissionais de saúde e
usuários dos serviços no âmbito da ESF do SUS, contexto específico em que o
vínculo se faz questão para esta pesquisa.
Nesta altura do caminho os constructos teóricos e metodológicos da
Sociopoética foram os degraus de inspiração que me permitiram seguir na senda do
método em razão de sua coerência epistemológica com a proposta desta pesquisa.
~ 22 ~
Os princípios que orientam este método de pesquisa aponta o corpo como fonte de
saber, legitimando os saberes oriundos da vivência e das práticas como elementos
de co-criação do conhecimento. O trabalho de campo desta pesquisa não se
apresenta como fonte empírica geradora de dados, sistematizados e categorizados
em função de um referencial teórico. O campo de pesquisa aqui aparece como um
Portal no qual adentrei para compreender os circuitos do vínculo na ESF. Embora
já tivesse entrado inúmeras vezes em diversos Centros de Saúde da Família (CSF) a
experiência aqui foi como em um Rito que me ajudou a adentrar uma dimensão
desconhecida, embora o lugar já me fosse familiar em outros aspectos.
O CSF de Inhamuns localizado no distrito de Vera Cruz na cidade de Tauá,
situada no interior cearense, precisamente, na região dos Inhamuns, foi o Portal
que adentrei como pesquisadora. O sentido que para mim se fez ao entrar no CSF
de Inhamuns como quem adentra um Portal se deve ao lugar do campo empírico
para esta pesquisa. Quando adentramos portais, na verdade, o fazemos em busca de
conhecimento. Há uma frase situada na porta do famoso Templo Grego de Delfos
escrita pelo oráculo: Conheça-te a ti mesmo! O oráculo revela, na verdade, que não
é possível construir conhecimento sem que este processo revele de si mesmo. A
natureza do fenômeno que desejava conhecer era também parte de mim como
humana, parte de todos nós humanos, conhecimento do qual não podíamos fugir
ou desconsiderar. O conhecimento que buscava também é parte do que sou, e
parte das pessoas que ali trabalhavam porque foi com elas que construímos luzes
para compreendermos mais de nós como trabalhadores da saúde em nossos laços
com as pessoas com as quais interagimos.
E para seguir neste caminho precisei ir de mãos vazias, ou melhor, de
mente vazia! Como dizem os místicos, “não se enche um copo que já está cheio!”
Junto com as pessoas que trabalhavam no CSF de Inhamuns percorremos um
caminho em que o saber da vivência foi adquirindo sentido, aflorado, (re)vivido,
resignificado, ampliado, tomando forma e sons, chegando à luz da consciência por
meio da arte e da imaginação. Era um saber silenciado, contudo, vivido
~ 23 ~
diariamente, formando um circuito interligado que moviam as ações e decisões
sobre os cuidados próprios da ESF no SUS.
Para compreender como o circuito do vínculo ali se configurava e se, de
alguma forma, contribuía para a organização do sistema SUS, eu precisava me
esvaziar, estar aberta para o encontro humano com as pessoas. Ali estava para, por
alguns momentos, fazer parte do sistema, se fosse aceita. Ser ou não inclusa no
sistema era o grande risco que corria. Nesta altura do percurso, eu e alguns
profissionais do CSF de Inhamuns formamos um Grupo Pesquisador2 que por
meio de um círculo de diálogo trocamos ideias sobre o que somos e como vivemos
nossos laços com as pessoas que moram no território no qual se oferta os serviços
na ESF. Assim, os sujeitos participantes da pesquisa também foram, junto comigo,
responsáveis pelos conhecimentos aqui produzidos.
O diálogo transdisciplinar foi o centro vivo da produção do conhecimento
gerado em um processo co-criador em que a arte, a intuição e a imaginação se
somaram à racionalidade cognitiva, dando vida e pertinência aos saberes
produzidos. Este diálogo foi fonte de saberes multirreferenciais, interculturais que
deram vozes a saberes silenciados.
Após esta experiência me encharcou a alma e então retornei do Portal com
um sentimento de gratidão pelo que vivi e compartilhei com o grupo pesquisador.
Impregnada de todas as ideias que fui encontrando no meu percurso redigi o
último capítulo, falando do vínculo, o humano vínculo na Estratégia Saúde da
Família. A multirreferencialidade me deixou muitos fios com os quais costurei as
ideias formando um tecido por uma bricolagem. E então, retornei ao início.
O caminho percorrido não foi linha reta. De volta ao começo resignifiquei
ideias que encontrei na revisão de literatura, e apresento algumas dimensões do
vínculo que para mim são vitais para dar sentido a este tema no campo da Saúde
Coletiva.
2 A constituição do Grupo Pesquisador é parte da metodologia Sociopoética, fonte inspiradora para este pesquisa.
~ 24 ~
PARTE 1
Olhar o céu e querer ver
Ver como seria tudo lá de cima
Enxergar em outra perspectiva
Os mesmos lugares, as mesmas montanhas,
as mesmas planícies, as mesmas florestas...
Mas, seriam os mesmos?!
O que poderia me levar até lá, no alto?
Que ventos poderiam fazer voar meus pensamentos?
Que brisas soprariam em meu olhar, outras perspectivas?
(Idalice)
~ 25 ~
1.1. Introdução Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país Quero a liberdade, quero o vinho e o pão Quero ser amizade, quero amor, prazer Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver (Coração Civil, Milton Nascimento)
O SUS no Brasil é uma valiosa experiência de construção de uma política
pública em que a saúde é seu fundamento de existir. Trata-se, todavia, de um
fundamento que não a reduz, mas aprofunda e questiona seu significado para vida
humana e a convivência social. Há uma pluralidade de lógicas que organizam o
funcionamento do SUS em termos de política pública de Estado que aponta para
perspectivas futuras com cenários diversos, e circulam em torno da relação saúde e
desenvolvimento democrático no Brasil.
Reflexões sobre o campo da saúde são profícuas em termos de experiência
coletiva para compreendermos a relação constitutiva da democracia e os limites e
avanços das políticas públicas em saúde para a reforma do Estado, tendo em vista o
cenário sócio cultural brasileiro em que convivem forças políticas conservadoras e
democratizantes, cuja coexistência, revela uma tensão entre público e privado, e
fazem da saúde, ora uma mercadoria, ora um direito e proteção à vida humana.
A experiência do SUS emerge de um contexto político paradoxal em que se
inova em termos de política democratizante e cidadã, que propõe e defende a
participação popular, não obstante convive com forças políticas conservadoras e
neoliberais. Tais políticas voltadas para o mercado impõem fortes pressões de
interesses privatizantes por parte dos planos de saúde, da indústria farmacêutica e
das indústrias que atuam no campo da saúde. Esse contexto desacelera o avanço do
SUS em termos de política pública de inspiração socialdemocrata e o reduz, muitas
vezes, de forma equivocada, a um plano de saúde para os pobres.
~ 26 ~
O SUS como política pública está permeado por ambas as lógicas que se
contrapõem. É o que também assegura a análise de Jairnilson Paim (2009) sobre o
SUS. Em seu livro intitulado com “O que é o SUS” ele fala que quando esta
pergunta se apresenta é comum deflagrar reações diversas porque sua conceituação
não é passível de redução ao significado justaposto das palavras: sistema, único e saúde.
Como ressalta Paim a definição de sistema de saúde não deve se restringir a um
conjunto de estabelecimentos, serviços, instituições, profissionais e trabalhadores
da saúde. O pensar de Paim amplia esse entendimento incluindo como parte dos
serviços de saúde as indústrias de equipamentos, os financiadores, a universidade, a
escola, os institutos de pesquisa e a mídia, esclarecendo uma distinção técnica entre
sistema de saúde e sistema de serviços de saúde. Estes últimos abrangem restritamente os
prestadores de cuidado, e representam um subsistema do sistema de saúde. Este, por
sua vez, possui caráter abrangente formado por todo um conjunto de agentes e agências,
públicos ou privados que se relacionam entre si, visando à atenção à saúde dos indivíduos e das
populações. (PAIM, 2009, p.17).
O SUS como sistema de serviços de saúde não se guia por um objetivo
único, como se poderia pensar de acordo com a Constituição de 1988. Como bem
observa Paim há diferentes e divergentes objetivos que atravessam o sistema que
apresenta como um dos grandes desafios a conciliação de interesses contraditórios,
não somente no Brasil, mas um problema presente no cenário mundial. O autor
destaca que o objetivo pode ser assegurar a saúde das pessoas, mas também o lucro dos
empresários e o emprego dos trabalhadores que atuam no sistema. (PAIM, 2009, p. 17). Nesta
perspectiva, a definição do tipo de sistema de saúde que queremos passa por um
conjunto de reflexões e indagações das quais não se pode fugir e que precisam de
posicionamentos. Paim faz uma série de perguntas que vale a pena como reflexão
que remete aos fundamentos de um serviço de saúde para uma sociedade, são elas:
Os serviços de saúde devem ser entendidos como um „bem‟ para aquele que necessita ou devem ser comprados no mercado por aqueles que podem pagar? Se a segunda opção for a correta, o que fazer com as pessoas que não podem comprar
~ 27 ~
os serviços? Seriam atendidas pela caridade dos prósperos, pelo Estado, por ambos? Convém organizar um sistema de saúde separando o atendimento dos pobres, da classe média e dos ricos? Se a saúde for considerada um direito e não uma mercadoria, a oferta de serviços não deveria ser igual para todos? Na hipótese de os serviços de saúde serem disponíveis para todos, seria justo oferecer mais para aqueles que mais necessitam? Como estabelecer prioridades em saúde diante de necessidades tão distintas, prementes e complexas? (PAIM, 2009, p.18).
É preciso reconhecer a complexidade que encerra o assunto que trata da
construção e efetivação de políticas em saúde. No Brasil, tradicionalmente,
identificamos duas lógicas que permeiam a construção do SUS, como identifica
Martins (2013). Uma delas é a lógica liberal mercantil que privilegia o indivíduo e o
torna cidadão consumidor de mercadorias, tendo as ações sociais reguladas pela
economia de mercado. A cidadania restringe-se à dimensão do mercado, a
participação popular na organização da esfera pública é desencorajada, vertentes
estas que obstruem relações de reciprocidade e de solidariedade social.
A outra lógica que refere Martins é denominada por ele como positivista
autoritária e se relaciona ao modo de funcionamento hierárquico, oligarca e colonial
do Estado, que tutela a população, considerada pelas elites, incapaz de participação
e de exercício da cidadania. Esta lógica não se coaduna com a democracia,
tampouco, com o mercado, mas se funda na tradição autoritária e burocrática da
sociedade brasileira. Esta lógica, como adverte Martins, não desaparece com o
advento da cultura de massa global, a democratização e o utilitarismo mercantil,
mas continua viva por meio das políticas assistencialistas.
É importante assinalar aqui a notória dificuldade com que se depara o
debate político e as ideias no campo das ciências sociais para formular alternativas
teóricas ao neoliberalismo com sua supremacia de mercado. É preciso ter em
mente, conforme ressalta Lander (2005), que tais dificuldades se devem ao fato de
que o neoliberalismo é debatido e entendido mais como uma teoria econômica
quando, de fato, se trata na verdade, de um discurso hegemônico de um modelo civilizatório.
~ 28 ~
Não é possível para a economia propor modelos alternativos às propostas
neoliberais, visto que a própria economia assume, enquanto modelo de ciência, a
visão de mundo neoliberal.
O que há de mais potente no pensamento cientifico moderno é a
naturalização das relações sociais que pressupõe as características da sociedade dita
moderna (neoliberal em sua hegemonia) como expressão de uma tendência
espontânea e natural do desenvolvimento histórico da sociedade. Isso faz dela uma
ordem social única, um modelo civilizatório único, globalizado, que dispensa a
política porque não há alternativas a esse modelo de sociedade. Como esclarece
Lander a naturalização da sociedade liberal como a forma mais avançada e normal de existência
humana não é uma construção recente que possa ser atribuída ao pensamento neoliberal, nem à
atual conjuntura política; pelo contrário, trata-se de uma ideia com uma longa história no
pensamento social ocidental dos últimos séculos. (LANDER, 2005, p. 8).
É preciso ter em mente, como defende Boaventura de Sousa Santos (2006),
que a compreensão do mundo excede muito a compreensão ocidental do mundo.
Alternativas a esse modelo civilizatório é possível mediante um esforço de
desconstrução da pretensão deste universalismo naturalizante. É preciso
reconhecer, conforme nos esclarece Lander, (2005) um esforço necessário para
elaborar um questionamento mais profundo dos instrumentos de naturalização e
legitimação dessa ordem social sob uma nova ótica de valores humanos. O uso dos
termos pós-colonial ou colonialismo fazem uma releitura da colonização inserindo-
a em um contexto global transcultural e transnacional e fazem uma releitura das
grandes narrativas imperiais eurocêntricas.
No caso brasileiro esta lógica oligárquica colonial se atualiza no discurso
neoliberal tendo em vista a relação promíscua que sempre permeou o público e o
privado aqui no Brasil, cujas elites oligárquicas sempre se ocuparam,
irrestritamente, em distribuir entre si os recursos coletivos, limitando a democracia
representativa a um jogo político oligárquico com objetivo único de assegurar o
~ 29 ~
poder dentro do sistema. Esta lógica colonial, oligarca e mercantil, presente no
contexto de construção do SUS, é responsável por descontinuidades em relação a
sua proposta original de construir-se como público, universal, integral e equânime
em suas práticas de saúde. É importante ter claro que, como programa, o SUS
ainda está sujeito às ambiguidades do direito republicano, que oscila entre público e
privado e, no geral, acaba por privilegiar o privado.
Em meio ao tensionamento entre estas duas lógicas que permeiam a
construção do SUS, deixando tanto as marcas de um autoritarismo estatal quanto as
do utilitarismo de mercado, surge uma outra lógica original como, felizmente, nos
evidencia a análise de Martins (2013). Trata-se da lógica erigida por um conjunto de
valores que coloca em pauta conflitos sociais profundos, tais como o direito à vida
e o livre acesso aos recursos naturais. Isto nos leva, como sociedade, a repensar e
propor novas formas de apropriação coletiva dos bens vitais, capaz de reconfigurar
a relação dos humanos com a natureza. Sobre isso Martins reafirma a necessidade
de retomar a discussão sobre os limites do direito nos regimes republicanos atuais e rememorar a
discussão sobre os direitos tradicionais referentes à nossa existência (direitos de respirar, amar,
viver, comer, dormir...). (MARTINS, 2013, 122). Tais valores são fundamentais para
viabilizar a consolidação do SUS e trazer para o debate pautas inéditas.
Em face da hegemonia desse modelo autoritário é com muitas dificuldades
que o SUS avança na concretização da participação democrática na saúde. Em que
pese sua significativa contribuição para o processo de redemocratização do Brasil, é
inegável que o SUS é fruto de um processo histórico contrahegemônico e seus
princípios doutrinários - Universalidade, Integralidade e Equidade – representam uma
ruptura com os valores vigentes. Apesar dos abalos, a sociedade brasileira, em geral,
tem sustentado esse sistema que coloca a saúde como direito de todos.
Muito avançamos na direção de construir um SUS como sistema de saúde
público universal. Mas é importante lembrar que, ao reconhecer as conquistas na
direção da construção deste sistema de saúde, não estamos isentos de retrocessos,
sobretudo, em função das forças antagônicas que compõem o SUS. Elas podem
~ 30 ~
nos levar na direção contrária do ideário original da saúde como um direito
universal, gratuito e de qualidade, que garanta acesso para todos independente de
cor, etnia ou classe social.
Para continuarmos na direção dessa conquista sem fugir do desafio
hercúleo que encerra essa tarefa é preciso avançar na formulação de perguntas
pertinentes que se assentem na lógica de preservação da vida, e avançar nas
reflexões que nos convidam à terceira lógica referida por Martins, que também se
presentifica na construção do SUS como parte de um projeto de sociedade.
Apresentar uma nova pauta de reflexão em que a vida surge como o bem mais
precioso, capaz de regular e refazer uma nova forma de relações dos humanos com
a natureza e dos humanos entre si, é tarefa importante na busca de respostas para
superarmos os desafios e avançar na construção do SUS que queremos.
Um dos pontos de partida para isso e que antecede a questão central desta
pesquisa é o debate sobre Atenção Primária à Saúde (APS). Que modelo de APS se
deseja construir para o SUS? Esta é uma pergunta crucial uma vez que são vários os
entendimentos que decodificam o uso deste termo na saúde e suas implicações para
a consolidação do SUS.
Há uma compreensão de APS como um programa específico destinado a
populações de regiões pobres economicamente, as quais os governos devem ofertar
um conjunto básico de tecnologias simples e de baixo custo que não oferece acesso
a tecnologias de maior densidade, a chamada APS Seletiva. Esta também pode ser
compreendida como o nível primário do sistema de atenção à saúde que funciona
como porta de entrada para o sistema e se propõe organizar e dar resolutividade
aos problemas mais comuns de saúde. E ainda, uma outra interpretação mais ampla
de APS decodificada como uma estratégia de organização para o sistema de atenção
à saúde responsável por reorganizar, reordenar e recombinar recursos para fazer
funcionar o sistema, tendo como direção e foco as necessidades de saúde da
população por meio de um funcionamento em rede de Atenção à Saúde (RAS).
~ 31 ~
Mendes (2015) ressalta que no SUS estas três vertentes de interpretação
sobre cuidados primários em saúde convivem, a despeito de o discurso oficial
apontar para APS como estratégia de funcionamento dos serviços de saúde.
Mendes argumenta em favor da consolidação da APS como estratégia para
organização do nosso SUS e destaca que já é tempo, e necessário se faz que se
consolide a transição de um modelo de gestão da oferta que se pratica no SUS, para
um modelo de gestão da saúde da população, caso se deseje realmente construir um
sistema de saúde baseado nas necessidades de saúde da população. Mendes
esclarece que o modelo da gestão da saúde da população move um sistema estruturado por
indivíduos que buscam atenção para um sistema que se responsabiliza, sanitária e
economicamente, por uma população determinada a ele vinculada.[...] A população das RAS não
é a população dos censos demográficos, mas a população cadastrada e vinculada às equipes de
ESF. (MENDES, 2015, p. 16).
Como prática social a APS tem várias interpretações que se explicam,
segundo Mendes, em função do processo histórico que a gerou e a fez evoluir,
contribuindo para isso, a ambiguidade conceitual com a qual se reveste o tema nos
foros internacionais, os diferentes usos do termo por parte das escolas de
pensamento sanitário, bem como, a hegemonia de uma concepção negativa de
processos saúde-doença, mesmo em face das tentativas de se operar com um
conceito positivo. Em que pese os diversos empregos para o termo APS, Atenção
Básica é o termo presente na redação das diretrizes políticas da PNAB. A nossa
compreensão, contudo, e os argumentos deste estudo se constroem em favor da
consolidação da ESF como modelo de APS para SUS efetivada como estratégia de
organização do sistema de atenção à saúde funcionando em rede.
Mendes identifica vários ciclos de desenvolvimento da APS no Brasil e
defende a superação do ciclo vigente da atenção básica em saúde, que se
caracterizou pela expansão do Programa Saúde da Família (PSF) em detrimento de
um novo ciclo de atenção primária que consolide a ESF.
~ 32 ~
Segundo a análise do autor, o primeiro ciclo surge por volta de 1924 sob a
influência do pensamento dawsoniano do Reino Unido no Brasil, exemplificados
pelos os Centros de Saúde da Universidade de São Paulo. A criação do Serviço
Especial de Saúde Pública (SESP) nos anos 40 demarca o segundo ciclo. Nos anos
60 surgem as ideias de prevenção, sobretudo, voltadas para a saúde materno-infantil
e as doenças infecciosas, que dão origem aos programas de saúde pública marcando
o terceiro ciclo da APS. O cenário internacional nos anos 70 começa a debater a
proposta de APS referendada pela Conferência de Alma Ata (1978) e um novo
ciclo se inicia no Brasil, sobretudo, com a expansão de programas de cobertura que
apontava para as concepções de APS seletiva. Os anos 80 fora marcado no Brasil
por uma grave crise na previdência. É quando se institui as Ações Integradas de
Saúde (AIS) levando para o sistema de saúde pública a cultura do INAMPS. O SUS
marca, então, um sexto ciclo, que se caracteriza pela municipalização das unidades
de APS gerando considerável expansão dos cuidados primários em saúde. Com a
implantação do PSF demarca-se, finalmente, o sétimo ciclo brasileiro do
desenvolvimento da APS, o qual vivemos hoje e que, de acordo com Mendes,
precisamos superar. É um modelo que muito foi influenciado pelos modelos de
medicina de família e comunidade, praticados na Inglaterra, Canadá e Cuba.
Contudo, destaca Mendes, em sua análise, que sua raiz mais significativa veio da
experiência do Programa de Agentes Comunitários de Saúde desenvolvida no estado do Ceará e
expandida com a incorporação de médicos e enfermeiros. (MENDES, 2015, 31).
O autor defende que precisamos avançar e consolidar um oitavo ciclo de
desenvolvimento da APS no Brasil que a efetive como estratégia de organização do
sistema de atenção à saúde, que aparece como a mais compatível com a proposta
das RAS. Ele aponta estudos relevantes e contundentes que têm sido produzidos
na literatura internacional em diferentes países, que permitem concluir com
robustas evidências, sobre os resultados positivos da APS nos sistemas de atenção à
saúde. Ele defende que, com base nelas, é possível afirmar que:
~ 33 ~
Os sistemas de atenção à saúde baseados numa forte orientação para a APS em relação aos sistemas de baixa orientação para a APS são: mais adequados porque se organizam a partir das necessidades de saúde da população; mais efetivos porque são a única forma de enfrentar consequentemente a situação epidemiológica de hegemonia das condições crônicas e por impactar significativamente os níveis de saúde da população; mais eficientes porque apresentam menores custos e reduzem procedimentos mais caros; mais equitativa porque discriminam positivamente grupos e regiões mais pobres e diminuem o gasto do bolso de pessoas e famílias; e de maior qualidade porque colocam ênfase na promoção da saúde e na prevenção das doenças e porque ofertam tecnologias mais seguras para as pessoas usuárias e para os profissionais de saúde. (MENDES, 2015, p. 37).
Para consolidarmos a APS como estratégia de organização do sistema,
advoga Mendes, é preciso caminhar na direção de incorporação dos atributos e
funções da APS. O acesso possibilitado pelo primeiro contato, a longitudinalidade, a
integralidade e a coordenação do cuidado são atributos essenciais dos quais se derivam os
demais: a focalização na família como centro de atenção, a orientação comunitária que
implica contextualizar as necessidades de saúde das famílias de acordo com seu
sistema cultural, econômico e social, e a competência cultural necessária para a equipe
estabelecer uma relação horizontal com a população, de maneira a respeitar suas
singularidades culturais e preferências.
Estes formam os sete atributos essenciais cuja efetivação depende uma APS
de qualidade funcionando de maneira a cumprir as três funções, conforme ressalta
Mendes. A resolubilidade, função que implica capacitação dos profissionais, tanto em
termos tecnológicos, como cognitivos, para atender aos problemas da população. A
função da comunicação com condições de ordenar fluxos e confluxos de pessoas,
produtos e informações, em seus diferentes modos de transitar pela rede. E a
responsabilização, cujo exercício implica o conhecimento e o relacionamento estreito
nos microterritórios da população adscrita, bem como, a gestão com base
populacional. É o exercício dessas três funções que institui a APS como estratégia
de organização do SUS, argumenta o autor.
~ 34 ~
Mendes reconhece a complexidade dessa tarefa quando afirma que a
demanda da APS do SUS nada tem de simples, como equivocamente se crê, mas ao
contrário, são processos de extrema complexidade, cujo modelo teórico requer uma
mudança paradigmática na gestão dos sistemas de atenção à saúde que impõe uma
análise profunda da estrutura de demanda. Não é intenção minha aprofundar essas
questões trazidas pelo autor, mas contextualizar o processo de construção histórica
do SUS que vivemos como brasileiros e me situar como pesquisadora nesta seara.
As três funções da APS como estratégia de organização para o SUS,
resolutividade, comunicação e responsabilização, não se efetivam apenas baseado
em um modelo operacional que proponha novas tecnologias de gestão.
Acreditamos que a mudança paradigmática que alude Mendes também passa por
uma mudança profunda na nossa visão de mundo e de fazer ciência. Quando
Mendes ressalta a necessária capacidade, não apenas tecnológica, mas também
cognitiva por parte dos trabalhadores da saúde para dar resolutividade ao sistema
em seus fluxos e contrafluxos coordenados pela APS e quando se propõe um
sistema operando em redes voltados para atender as necessidades de saúde da
população para além de uma leitura epidemiológica necessário se faz incorporar
uma visão sistêmica e um pensar complexo.
Essa perspectiva implica uma mudança paradigmática que não apenas toque
a gestão, como argumenta de Mendes, mas incorpore novas epistemologias que
traga novas formas de perceber e tecer relações no mundo nos âmbitos
institucionais baseadas na horizontalidade, reciprocidade e solidariedade, o que
inclui novas pautas de relações entre os humanos, e destes com a natureza, como já
apontou Martins anteriormente. Ante ao exposto, essa pesquisa busca contribuir
para operar dentro de um novo paradigma de compreensão do real que abarca a
interligação sistêmica dos fenômenos da realidade por um pensar complexo.
~ 35 ~
1.2. O Vínculo nas Políticas Públicas do SUS A única revolução possível é dentro de nós.
(Mahatma Gandhi)
Dentre as várias questões que se impõem para consolidação do SUS, uma
das mais instigantes para mim é a forma como se tece a relação entre os
profissionais e as pessoas que utilizam os serviços nos diversos níveis de atenção,
seja em hospitais, consultórios especializados, ou no âmbito da APS.
A relação entre os profissionais da saúde e as pessoas que usam os serviços
é um tema importante no âmbito do SUS e adquire uma linguagem especial quando
abordado pela Política Nacional de Atenção Básica do SUS, de 2012. Tais relações
substantivam-se na palavra vínculo, cujo significado expressa um compromisso a ser
garantido pelo processo de trabalho das equipes com a população adscrita. Segundo
o documento, trata-se de uma política que se efetiva no local mais próximo da vida
das pessoas. Deve funcionar como principal porta de entrada e centro de
comunicação de toda a rede de atenção à saúde. Possui alto grau de
descentralização capilarizando de forma extensiva suas ações. A política, em função
disso, deve orientar-se pelos “princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da
continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da
equidade e da participação social”. (BRASIL, 2012, p. 9).
A palavra vínculo é, pois, assumida pela PNAB como um princípio de ação
cujas diretrizes gerais abrangem um amplo espectro de ações: promoção de saúde,
prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e
manutenção da saúde. Uma vez que a política apresenta como sua razão de ser
possibilitar acesso universal e contínuo a serviços resolutivos e de qualidade,
apresenta a constituição do vínculo como condição de corresponsabilização pela
atenção às necessidades de saúde da população. É prerrogativa sua adscrever
usuários e desenvolver relações de vínculo e responsabilização entre as equipes e a
população. A partir de tais premissas apresenta o vínculo como algo que “consiste na
~ 36 ~
construção de relações de afetividade e confiança entre o usuário e o trabalhador da saúde,
permitindo o aprofundamento do processo de corresponsabilização pela saúde, construído ao longo
do tempo, além de carregar, em si, um potencial terapêutico.” (BRASIL, 2012, p. 21).
A palavra vínculo é mencionada ainda quando a PNAB aborda as funções
da atenção básica no que diz respeito à sua contribuição para o funcionamento da
rede de atenção de forma descentralizada, resolutiva, coordenadora do cuidado e
ordenadora da rede. Segundo consta, em termos de sua resolutividade, é um nível
de atenção à saúde que deve ser capaz de identificar riscos, necessidades e
demandas de saúde articulando diferentes tecnologias do cuidado por meio de uma
clínica ampliada capaz de construir vínculos positivos e intervenções clínicas e
sanitárias efetivas.
O vínculo também é lembrado quando a política aborda o processo de trabalho
das equipes que deve se caracterizar pelo “compromisso com a ambiência e com as condições
de trabalho e cuidado, a constituição de vínculos solidários, a identificação das necessidades sociais
e organização do serviço em função delas, entre outras.” (BRASIL, 2012, p. 42). Mais a
frente, quando expressa as atribuições comuns de todos os profissionais da equipe,
o vínculo é novamente mencionado como viabilizador da responsabilidade da
equipe pela continuidade da atenção: Participar do acolhimento dos usuários realizando a
escuta qualificada das necessidades de saúde, procedendo à primeira avaliação (classificação de
risco, avaliação de vulnerabilidade, coleta de informações e sinais clínicos) e identificação das
necessidades de intervenções de cuidado, proporcionando atendimento humanizado,
responsabilizando-se pela continuidade da atenção e viabilizando o estabelecimento do vínculo.
(BRASIL, 2012, p. 44).
O processo de trabalho das equipes, para estar de acordo com as
especificidades da ESF, é referido no documento ressaltando que a jornada de
trabalho dos profissionais das equipes e os horários de funcionamento das UBS devem ser
organizados de modo que garantem o maior acesso possível, o vínculo entre os usuários e os
profissionais, a continuidade, a coordenação e a longitudinalidade do cuidado. (BRASIL, 2012,
p. 59).
~ 37 ~
O documento aborda as especificidades da Estratégia Saúde da Família
(ESF) apontando-a como estratégia para reorganização da atenção básica do país de
acordo com os preceitos do SUS. A ESF é referida como estratégia que melhor
favorece a reorientação do processo de trabalho, apresenta importante relação
custo benefício, tem um potencial de aprofundar princípios, diretrizes e
fundamentos da atenção básica, bem como, ampliar sua resolubilidade e impactar
na situação de saúde da coletividade. O Ministério da Saúde, e os gestores em nível
estadual e municipal reconhecem, nestes termos, a ESF como estratégia de
expansão, qualificação e consolidação da atenção básica.
Em síntese, a PNAB, ao assumir como sua razão de ser o acesso universal e
contínuo a serviços resolutivos e de qualidade, enquadra o vínculo entre os
profissionais de saúde e a população adscrita como condicionante de sua efetivação,
uma vez que o apresenta como viabilizador da corresponsabilidade, continuidade e
longitudinalidade do cuidado. Tais fundamentos condicionam a concretização da
política, dentre outras coisas, na construção de um vínculo duradouro entre os
profissionais e usuários quando propõe linhas de cuidado efetivadas longitudinal e
continuamente.
A Política Nacional de Humanização (PNH) é outro mecanismo do SUS
em que o tema da relação entre os trabalhadores da saúde e as pessoas que usam o
sistema é pauta de debate. Criada em 2013 pelo Ministério da Saúde esta política
propõe o enfrentamento aos desafios relacionados à qualidade do cuidado, em
termos de gestão e organização do trabalho em saúde.
Em seu marco teórico-político a PNH reconhece grandes avanços no
campo da saúde no que diz respeito à descentralização e à regionalização da
atenção e da gestão em saúde, mas também, aponta problemas a serem
enfrentados. A fragmentação e verticalização dos processos de trabalho são
características que fragilizam as relações entre os diversos trabalhadores da saúde, e
destes, com as pessoas que recorrem aos serviços, comprometendo o trabalho em
equipe, que desconsidera a dimensão social e subjetiva das práticas em saúde. A
~ 38 ~
PNH reconhece um baixo investimento na qualificação de seus trabalhadores,
pouco fomento a cogestão, bem como, na valorização e inclusão dos trabalhadores
do setor nos processos de produção em saúde. A política reconhece que os
processos de gestão se restringem ao modelo queixa-conduta mecanizando a
relação dos profissionais com as pessoas que usam os serviços, agravado pelos
processos formativos, ainda distantes deste debate. Tal fato, segundo a PNH,
impede o estabelecimento do vínculo fundamental responsável pela efetivação da
responsabilidade sanitária que constitui o ato de saúde.
A PNH como política deve traduzir os princípios e modos de operar o
conjunto das relações que se estabelecem na rede, compreendendo desde a relação
dos profissionais e usuários, dos diversos trabalhadores da saúde entre si, entre as
diversas unidades e serviços, e entre todas as instâncias que constituem o SUS. O
modo de se relacionar que se opera nesta rede de relações deve, pois, confluir para
trocas solidárias e comprometidas com a produção da saúde. É justamente neste
ponto que a Humanização se define, segundo a PNH, e consiste em “aumentar o
grau de co-responsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede SUS, na produção da
saúde, implica mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho.
Tomar a saúde como valor de uso é ter como padrão na atenção o vínculo com os usuários, é
garantir os direitos dos usuários e seus familiares. (BRASIL, 2004, grifos nossos.).
A Humanização na PNH é apresentada, então, como um conjunto de
estratégias em função das quais se busca alcançar a qualidade na gestão por meio da
adoção de atitudes ético-estético-políticas que qualifique o vínculo entre usuários e
profissionais, e destes entre si. De acordo com a política isso seria possível em
função de uma ética de respeito à vida, numa estética capaz de inovação das
normas regulamentadoras das atitudes frente à vida, capaz de refazer a cena política
que marca as relações sociais no âmbito da saúde. Em suma, segundo as
prerrogativas da política, a humanização deve traduzir-se no incremento da
corresponsabilização dos diferentes atores da rede, e na mudança cultural no que
~ 39 ~
diz respeito a atenção aos usuários e a gestão dos processos de trabalho, refazendo
o vínculo que liga toda a rede.
Pasche, Passos e Hennington (2011) ao analisarem uma trajetória de cinco
anos da PNH indicam a convergência de 3 objetivos centrais, são eles: (1) enfrentar
desafios enunciados pela sociedade brasileira quanto à qualidade e à dignidade no cuidado em
saúde; (2) redesenhar e articular iniciativas de humanização do SUS e (3) enfrentar problemas no
campo da organização e da gestão do trabalho em saúde que têm produzido reflexos desfavoráveis
tanto na produção de saúde como na vida dos trabalhadores. (PASCHE; PASSOS;
HENNINGTON, p. 8).
Os autores remetem sua análise ao ideário da Reforma Sanitária que vai
além de um processo tecnoburocrático, e se caracteriza como um marco na direção
de um aprimoramento da experiência civilizatória humana, e alça a construção do
SUS como um aspecto de consequências importantes para construção de uma
sociedade democrática. O SUS resulta de consensos mínimos e provisórios sendo,
portanto, uma obra aberta, incompleta que se reveste plasticamente em função de
interesses que atravessam a sociedade brasileira.
A PNH e a PNAB são as duas principais políticas do SUS que abordam a
relação entre profissionais de saúde e usuários como eixo central de sua efetividade,
conforme sintetizei acima. Um ponto interessante é perceber em que termos estas
políticas se articulam no sentido de apurar de que forma o funcionamento de uma
pressupõe e/ou complementa a efetividade da outra.
O conceito de humanização da PNH tem sido alvo de análises críticas em
face da fragmentação das práticas de humanização relacionadas a diferentes
programas, e também, em razão de crescente banalização do tema. De acordo com
Passos e Benevides (2005) a humanização das práticas em saúde implica em
princípios de ação capazes de operar a gestão do SUS, o que requer um confronto
com o tema do humanismo na contemporaneidade.
~ 40 ~
Estes autores analisando a PNH traz para o foco de atenção a questão do
poder presente na relação Estado/sociedade na contemporaneidade, mais
especificamente, do biopoder, a partir de uma leitura foucaultiana. Segundo analisa
Benevides e Passos (2005) a PNH se propõe a operar no limite entre a máquina do
Estado e o plano coletivo, defendendo a aposta de que são as políticas públicas que
devem prevalecer na orientação das ações governamentais. Os autores
problematizam o papel dos coletivos em sua relação com o Estado
problematizando qual conceito de humano se forja neste processo de controle de
massas, realizado pelo Estado. Os autores consideram que a força emancipatória se
sustentaria na medida da inseparabilidade entre os processos de produção de saúde
e de subjetividades protagonistas e engajadas em novos modos, não só de cuidar e
agir em saúde, mas também, de geri-la, em seus processos de trabalho.
(BENEVIDES; PASSOS, 2005).
A aposta dos autores na efetividade da humanização como política de
Estado, considerando a mediação do poder na relação Estado/sociedade, incide
sobre a experiência concreta em que a dimensão coletiva do processo de produção
de sujeitos autônomos e protagonistas se expressa, considerando, é claro, a inscrição
moderna em que se enquadra aqui, a semântica da palavra sujeito. A humanização
do SUS para os autores configura-se como um processo de subjetivação que se efetiva com a
alteração dos modelos de atenção e gestão em saúde, isto é, novos sujeitos implicados em novas
práticas de saúde. Pensar a saúde como experiência de criação de si e de modos de viver é tomar a
vida como seu movimento de produção de normas e não de assujeitamento a elas.
(BENEVIDES; PASSOS, 2005, p. 570). Nesta altura os autores se deparam com
um paradoxo, qual seja, o do funcionamento de uma máquina de Estado em seu
tensionamento em relação à coisa pública, onde o plano do coletivo aparece como
espaço em que a saúde se apresenta, espaço este, fora do âmbito do Estado.
Seguindo o fio desta análise, isso requer, segundo os autores, repensar a
relação entre Estado e política pública, quando tratamos de humanização das
práticas de saúde. Passos e Benevides defendem uma não coincidência entre o
~ 41 ~
domínio do Estado e do Público. Este último refere à experiência concreta dos
coletivos, que estaria em um plano diferente do Estado, compreendido nos termos
da figura de transcendência que o Estado assume na modernidade. A humanização,
segundo eles, se daria, pois, em função deste plano coletivo que se efetivaria em razão
das frestas da relação Estado/sociedade, enquanto espaço que escapa da
capilarização do biopoder do Estado Moderno, em função de forças
emancipatórias. Como resultado, haveria uma tarefa, sempre inconclusa, de
reinvenção da humanidade realizada no trabalho constante da produção de outros
modos de vida e de novas práticas em saúde. Estas se efetivariam, conforme os
autores, quando nos organizamos coletivamente em movimentos de resistência ao já dado, como
assistimos no processo constituinte do SUS ou na proposta/aposta da PNH. É preciso manter
vivo este processo afirmando seu não esgotamento. O fato de o SUS ter se constituído como um
texto legal, sua dimensão „de direito‟, não pode esgotar o que na experiência concreta se dá como
movimento constituinte e contínuo da reinvenção do próprio SUS. (PASSOS &
BENEVIDES, 2005, P. 570).
A questão que surge aqui é pensar até que ponto apostar nesta reinvenção
das práticas em saúde em direção à humanização como política pública, se tais
práticas permanecem quase sempre à margem ou na periferia? Como tais práticas,
“imprensadas” nas frestas que escapam ao biopoder do Estado Moderno, poderiam
se efetivar como política pública capaz de renovar e humanizar as práticas em saúde
do SUS? Se o movimento é sempre de resistência ao já dado, não estaria, pois
instaurado uma resistência, de antemão, às próprias políticas de humanização como
política de Estado? Isso não enfraqueceria a aposta que fazem os autores? Por
outro lado, será que podemos equiparar a força emancipatória que animou a
construção do SUS, à força que anima a efetivação da PNH, uma vez que o
processo social que contribuiu para construção do SUS como política é fruto de um
contexto histórico, econômico, cultural e político, que em muito difere do atual
cenário?
~ 42 ~
Como sabemos, a década de 60 marcou o século XX não somente no que
diz respeito às transformações sociais embaladas pelo o espírito revolucionário
juvenil. A importância dos acontecimentos históricos desta época em termos
globais redimensionou, não somente, as questões políticas, sociais,
comportamentais e sexuais, mas repercutiu também no campo da saúde, quando
testemunhamos amplo debate sobre os determinantes da saúde com vistas a
superar a estreiteza conceitual da polaridade saúde/doença e as limitações do
modelo hospitalocêntrico.
O cenário hoje em muito difere do panorama comentado rapidamente. Que
chances teria uma aposta desta natureza considerando os atores que hoje
constroem a cena política no âmbito da saúde, onde o privado é sinônimo de
qualidade e as grandes indústrias da saúde é que mais influenciam e orquestram sua
gestão? A banalização que o tema humanização assume hoje não seria o próprio
reflexo da fragilidade desta aposta?
E por fim, é importante pensar que ações precisam ser feitas, em termos de
gestão e de formação de profissionais para o SUS, que poderiam contribuir para
humanizar a relação entre os trabalhadores da saúde e as pessoas que usam os
serviços do SUS, e pensar mais clara e objetivamente, o que poderia de fato ser um
fiador desta aposta. Isso é importante considerando justamente o biopoder do
Estado em sua configuração moderna.
~ 43 ~
A questão do poder aparece também nos argumentos que tecem outros
autores quando analisam o vínculo em termos de relação dos usuários e
trabalhadores de saúde, voltando-se para a atenção básica nas peculiaridades que
lhe são inerentes. Um estudo feito nesta linha com o objetivo de analisar o vínculo
como estratégia das práticas de cuidado no âmbito da atenção básica, também
amparado nas proposições de Foucault, tece reflexões interessantes sobre o modo
de vinculação das políticas, ou seja, na forma de relação entre governo e sociedade
na micropolítica da vida cotidiana. (BERNARDES, A. G.; PELLICCIOLI, E.
C.; MARQUES, C. F., 2013)
Os autores do estudo enquadram a atenção básica como o primeiro contato
da população com o sistema de saúde e chamam atenção para a criação de um
escopo de ações, cujas formas de intervenção se voltam não mais para as práticas
tecnológicas, e sim, para os requisitos necessários que tornam tais intervenções
possíveis, isto é, o vínculo. A saúde, doravante, é que migra até o sujeito, e não
mais o contrário, como nas tecnologias hospitalares. O vínculo entre o setor saúde
e a população adquire aqui outra conotação em sua mediação de poder entre
Estado/sociedade. Isso significa dizer, segundo esclarecem eles, que o vínculo sairia
de uma região de interioridade do sujeito, passando a ser condição básica para o
estabelecimento de formas de cuidado, sendo as estratégias vinculatórias pensadas em
detrimento das terapêuticas. Isso significa que as práticas de cuidado devem, então,
ser qualificadas em termos vinculativos, e não apenas tecnicistas. Disso resulta uma
capilarização da governabilidade biopolítica que chega ao nível da vida cotidiana,
quando focaliza o vínculo que se deveria construir entre população e serviços de
saúde, tendo nas práticas de cuidado um instrumento privilegiado para o exercício
de poder, cada vez mais descentralizado e sutil.
O que é interessante na análise desses autores é a perspectiva de pensar o
vínculo no âmbito da atenção básica trazendo reflexões em termos das relações de
poder que se estabelecem entre governo e população. Entretanto, esta perspectiva
enquadra o vínculo entre os profissionais de saúde e a população na relação de
~ 44 ~
poder, em função mesmo do quadro conceitual ao qual referencia o estudo. Apesar
de ser um aspecto importante relacionado ao tema, tendo em vista o exercício da
cidadania e o acesso ao direito à saúde, fruto de uma conquista árdua em meio a
disputas em torno de diferentes projetos de sociedade, se ater apenas a este aspecto
acaba sendo uma visão reducionista para pensar o vínculo em termos de
humanização.
Quando consideramos o contexto da atenção básica, as estratégias
vinculatórias são referendadas pela PNAB. No entanto, o modelo
hospitalocêntrico, como processo de gestão centrado na relação mecanizada
queixa-conduta ainda é predominante nas formas de cuidado, inclusive na atenção
básica, embora não responda as necessidades de saúde neste nível de atenção.
Somado a isso, há uma distância entre os serviços e o contexto social e cultural do
território com seu modo próprio de produção de saúde-doença desconfigurando o
significado que encerra a noção de território para Atenção Básica. O tecnicismo
aparece como resposta única e suficiente para responder aos processos saúde-
doença dos territórios destituídos de suas peculiaridades e de suas marcas culturais
capazes de conservar ou transformar os modos de viver e de produzir saúde.
As estratégias vinculativas de que falam os autores se configuram para
viabilizar o técnico em termos de produtividade na atenção básica. Claro que as
relações de poder aí se instauram, há um biopoder sendo exercido, mas isso não é
tudo. É relevante ter em mente o poder que perpassa tais estratégias de vinculação,
mas é importante ter claro a finalidade de tais estratégias e seu modo de construção
e cuidar para não reduzir o vínculo apenas à mediação de poder Estado/sociedade.
Quando pensamos e refletimos sobre a necessidade de uma política de
humanização, uma questão de fundo se apresenta: a deshumanização. Há um
pressuposto de uma ausência de humanidade nas políticas, mais especificamente,
nas relações sociais que tecem a rede no âmbito da saúde e adquirem uma
expressão singular no contexto da atenção básica como porta de entrada no
sistema. Reconhecemos a impossibilidade de pensar as relações entre os serviços de
~ 45 ~
saúde e a população sem incluir reflexões sobre o poder que perpassa a relação
Estado/sociedade, e o vinculo não escapa de tais enlaces. Há um plano macro onde
a questão do poder assume características próprias na formulação e efetivação de
políticas públicas sociais. Há também, o espaço das microrrelações, onde o
biopoder se espalha de forma sutil, como já denunciou o pensamento de Foucault. ,
Não obstante, é importante pensar de que forma se entrelaçam o micro e macro em
termos de relações entre Estado/sociedade, entre serviços de saúde, como política
pública, e população, entre profissionais da saúde, e pessoas que usam os serviços,
sem cair em reducionismos, ora para um lado, ora para o outro.
A necessidade de humanização em todos os âmbitos que compõem a rede
de relação e gestão em saúde no SUS é consenso. Há, entretanto, um impasse que
se apresenta no risco de se colocar vinho novo em odres velhos, sob o risco dos
odres se partirem, como já salientou o saber de um dos grandes mestres da
humanidade. Há um paradoxo que nos convida a aprofundar as reflexões sobre as
relações humanas que se tecem, formam e amoldam toda a rede que compõe os
diversos níveis de atenção à saúde do SUS.
Um ponto que considero relevante para se somar a estas reflexões é buscar
compreender em que contexto surge a palavra vínculo no âmbito do SUS,
sobretudo, quando se trata da atenção primária à saúde, e o significado que adquire
no âmbito das políticas de humanização no cenário atual.
~ 46 ~
1.2.1. A Gênese A teoria sem a prática vira „verbalismo‟,
assim como a prática sem teoria, vira ativismo, no entanto, quando se une a prática com a teoria, tem-se a práxis,
a ação criadora e transformadora da realidade. (Paulo Freire).
O modelo de atenção primária centrado na ESF resultou de um processo
lento e contínuo de tensão e confronto com o modelo hegemônico de saúde. Sua
construção social e política, tal como se apresenta hoje, não resultou
grosseiramente de uma replicação de modelos internacionais de atenção à saúde,
como bem apresenta Andrade, Barreto e Bezerra (2012). Em suas análises os
autores reconhecem a importância das experiências exitosas em equipes de saúde
da família operadas em diversos municípios brasileiros, bem como, do Programa
Agente Comunitário de Saúde, implantando no Ceará em 1986, como fontes de
inspiração para formulação do modelo atual da ESF no Brasil. Foi com base em
tais experiências que se construiu a formulação de conceitos que hoje formam o
escopo da política, definindo a ESF como “um modelo de atenção primária,
operacionalizado mediante estratégias/ações preventivas, promocionais, de recuperação, reabilitação
e cuidados paliativos das equipes de saúde da família, comprometidas com a integralidade da
assistência à saúde, focado na unidade familiar e consistente com o contexto socioeconômico,
cultural e epidemiológico da comunidade em que está inserido”. (ANDRADE; BARRETO &
BEZERRA, 2005, p. 804).
Claro que tal modelo surge embalado pelas ideias relacionadas à promoção
de saúde presentes na segunda metade do século passado. A promoção de saúde
começa a ser debatida a partir das concepções do movimento de saúde comunitária
da década de 60, legitimando seu discurso a partir da realização de vários
Congressos Internacionais sobre Promoção de saúde. (BRASIL, 2001). O cenário
mundial evidenciava as limitações do modelo hospitalocêntrico. Aos poucos, as
ações de promoção de saúde foram sendo incorporadas em diversos países,
inclusive o Brasil. E quando o Ministério da Saúde iniciou a implantação do
~ 47 ~
Programa de Saúde da Família (PSF) em 1994, na verdade, institucionalizava
experiências de práticas em saúde que se desenvolviam de forma isolada nos
estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e, particularmente, no Ceará, onde o PACS
era adotado como política estadual. Conforme relata Viana & Dal Poz o PACS é um
antecessor do PSF, pois uma das variáveis importantes que o primeiro introduziu e que se
relaciona diretamente com o segundo é que pela primeira vez há um enfoque na família e não no
indivíduo, dentro das práticas de saúde. (VIANA & DAL POZ, 2005, p. 230).
A médica pediatra Anamaria Cavalcante3 que participou da construção do
PACS no Ceará, formula a seguinte metáfora que traduz as colocações de Viana e
Dal Poz para falar da ESF: “Do PACS veio a costela de adão que deu origem à Estratégia
de Saúde da Família”. As ideias que orquestravam o PACS adquirem substância
política no movimento da implantação do SUS com seu modelo regionalizado,
hierárquico e descentralizado, possível no bojo do processo de redemocratização
do país. Tais ideias são os primeiros esboços de ações que privilegiam a abordagem
de família em detrimento do indivíduo, centra-se no território, e tem o vínculo,
como marca da relação dos profissionais de saúde e comunidade.
O PACS ganhou notoriedade internacional ganhando, em 1991, as páginas
do The Economist Londrino com um suplemento especial sobre o Brasil, sendo
em 2003 agraciado com o prêmio Maurice Pate, do UNICEF. Tendler (1998) em
sua análise crítica sobre o bom governo em países em desenvolvimento dedica um
capítulo ao Programa de Medicina Preventiva do Ceará.
O Brasil, no final da década de 80, vivia um processo de descentralização
da saúde e de municipalização. No Ceará, o PACS, despontava como um caso de
descentralização bem sucedida, segundo análise do Banco Mundial, conforme
analisa Tendler (1998). As razões do sucesso eram contrárias às concepções
predominantes sobre o que acontece na descentralização. Os enfoques da literatura
sobre desenvolvimento voltam sua atenção para o âmbito local, tanto para os
3 Anotações pessoais por ocasião de aula de Anamaria Cavalcante no curso de especialização em Educação Comunitária em Saúde, curso promovido pela Escola de Saúde Pública do Ceará em que eu era aluna.
~ 48 ~
governos como da sociedade civil organizada, e a ordem da descentralização era
reduzir a supercentralização e fortalecer os governos locais. Prevalecia a visão de
que os governos locais são os mais próximos da população, suposição amplamente
aceita e sustentada na literatura sobre desenvolvimento, ressalta Tendler.
Em sua análise a autora constata justamente a presença marcante do Estado
em todo o processo de implantação e acompanhamento do PACS, fato que ia de
encontro aos enfoques sobre a descentralização em países em desenvolvimento,
cuja diretriz usual é o governo central recuar e fazer menos que antes, assumindo
tarefas que exigem mais capacidade financiadora e regulação. Ocorre que o PACS,
conforme análise da pesquisadora era um misto de local e central, e o governo estadual
não estava simplesmente fazendo menos do que vinha fazendo no setor saúde. Ele estava fazendo
mais, e fazendo algo bastante diferente. (TENDLER, 1998, p.41).
Um ponto a ser ressaltado deste processo é o impacto causado na relação
governo/sociedade com a implantação do PACS em termos da mudança da relação
clientelista predominante. Havia o risco da não adesão dos municípios, porque a
implantação do PACS estava condicionada a decisão política municipal e sua
adequação às diretrizes do programa. Embora houvesse um descontentamento e
relutância por parte dos prefeitos em relação ao PACS, justificada pelo fato que não
teriam sob seu controle a seleção e contratação de um número considerável de
funcionários, houve uma total adesão de todos os municípios em um contexto
fortemente marcado pelo clientelismo na relação Estado/sociedade. Tendler
aponta razões que resultou na adesão dos prefeitos ligada à pressão pública. A
expansão do programa não obedecia a um plano pre-estabelecido, e seu ritmo e
padrão de expansão ficavam à mercê da anuência dos prefeitos. Ocorre que os
limites geográficos dos municípios não impediam que notícias sobre o novo
programa se espalhassem rapidamente esboçando um padrão de expansão tipo
“colcha de retalhos” que gerava pressão pública para os prefeitos aderirem ao
programa. Outra forma de pressão era por efeito da enorme publicidade que o
governo Estadual dava ao PACS à época. E a outra razão de indução da adesão ao
~ 49 ~
programa era que colocar um exército de 30 a 150 funcionários se constituía como
uma forte presença do setor público na municipalidade. Os agentes de saúde
trabalhavam de casa em casa, e eram facilmente identificados pelo seu fardamento.
Conforme ressalta Tendler representavam uma força de peso considerável por
serem pessoas queridas na comunidade para a qual trabalhavam, força essa que não
podia ser ignorada por nenhum prefeito.
A autora afirma que de acordo com a visão da literatura hegemônica sobre
desenvolvimento, tendo em conta o clientelismo como marca histórica da relação
governo/sociedade no Ceará, a contratação de milhares de trabalhadores pelo
governo apontava a possibilidade de um pesadelo de clientelismo e interesses
privados. Os resultados da implantação do PACS, porém, foi o oposto. Em sua
análise a autora busca compreender as razões por que um grande exército de
funcionários sub-remunerados e pouco qualificados lograram resultados tão bons
em termos de medicina preventiva. Segundo relata Tendler
O estado iniciou uma dinâmica [...] que contribuiu para substituir a velha dinâmica de distribuição de cargos por outra, mais voltada para prestação de serviços. Ao manter um controle muito rigoroso exercido de fora do município sobre a contratação de uma força de trabalho com fortes vínculos sociais na comunidade, as ações do estado representavam uma feliz combinação de controle centralizado e inserção local. (TENDLER, 1998, 41).
O perfil do agente comunitário de saúde como profissional do SUS surge
nesse contexto histórico e tem seu escopo de ações voltado para promoção da
saúde, sendo a educação e a mudança de estilo de vida fator preponderante. Logo
no início do programa, como relata sua coordenadora na época, Miria Lavor4, para
ser um bom agente de saúde era indispensável que este profissional fosse referência
local compromissada com a melhoria da vida das pessoas do lugar, apresentar
habilidade de comunicação e ter um vínculo sócio-afetivo com a comunidade. Isso
4 Anotações pessoais do Seminário ministrado por Míria Campos Lavor por ocasião Módulo IX do Curso de
Especialização em Educação Comunitária em Saúde, da Escola de Saúde Pública do Ceará cujo tema abordava o trabalho educativo do ACS.
~ 50 ~
era importante porque era justamente esse vínculo que possibilitava ao setor saúde
ter acesso a uma leitura sociocultural da comunidade como fator indispensável para
o êxito das ações de saúde. Tal saber era o que credenciava o agente de saúde como
profissional pela vivência que tinha em função de seu perfil de acesso ao PACS.
O perfil de seleção dos ACS tinha como critério um saber incomum nos
processos seletivos. De acordo com Lavor, entre as mulheres pobres responsáveis pelo
sustento da casa forram selecionadas aquelas que melhor se comunicavam e bem se relacionassem
com seus vizinhos [...] essas mulheres tinham pouco estudo, sendo algumas delas analfabetas.
(LAVOR, e col. 2004, p.122). Isso era importante porque era esse vínculo que
possibilitava ao setor saúde ter acesso a uma leitura sociocultural da comunidade,
sendo que tal saber o que credenciava para alinhar-se ao perfil de acesso ao PACS.
Este saber da vivência era fundamental para o enfrentamento dos desafios
da promoção de saúde centrado na educação que se distanciavam de
procedimentos e protocolos técnicos, comuns ao modelo hospitalocêntrico. No
início do PACS, no Ceará, o desafio maior era convencer as mães a vacinar os
filhos e cultivar novos hábitos de higiene, comportamentos esses, uma vez
adquiridos, mudariam rapidamente o cenário da mortalidade infantil cearense,
como de fato, mudou. Era um trabalho inserido em um contexto sócio cultural e
econômico com um modo próprio de produção de saúde-doença. Uma passagem
do clássico Os Sertões compõe a imagem de uma cena comum no interior cearense,
bem como, o modo como as pessoas viviam e compreendiam o acontecido:
"...o falecimento de uma criança é um dia de festa.
Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos
entre lágrimas; referve o samba turbulento; vibra nos
ares, fortes, as coplas dos desafios; enquanto a uma
banda, entre duas velas de carnaúba, cercado de flores, o
anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a
felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade
eterna." (Os Sertões de Euclides da Cunha).
Enterro de bebê no Cemitério de Anjinhos da
comunidade Primavera, Santa Quitéria, Ceará5
~ 51 ~
Euclides da Cunha expressa com aguda sensibilidade como a cultura
cearense se relaciona(va) com a morte, sobretudo, com a morte de crianças. Eram
chamadas de anjinhos, morriam antes de completar 1 ano, e as famílias tinham sua
forma própria de lidar com a dor e o sofrimento da perda frequente dos filhos,
vitimados pela diarreia, a má nutrição e demais doenças comuns na primeira
infância.
É preciso ter em mente que o sucesso do PACS não foi apenas mudar o
quadro epidemiológico da mortalidade infantil. Outra questão chama atenção no
cenário de fundo, expresso na literatura de Euclides da Cunha; o modo como esses
profissionais venceram o desafio de mudar comportamentos e transformar o
cenário cultural do interior do Ceará. A oferta da vacina não era suficiente para, por
si só, gerar estas mudanças profundas em termos culturais. O ponto chave era o
convencimento das mães em mudar hábitos relacionados ao modo de cuidar dos
seus filhos que passavam de geração em geração, bem como, dar crédito à vacina
como ação eficaz de prevenção de doenças.
O perfil dos agentes de saúde como mulheres que desfrutavam de um
prestígio, por serem referência na comunidade, o seu vínculo com o lugar em que
atuavam/moravam foi o diferencial para mudança do cenário epidemiológico da
época. Era o saber da vivência que possibilitava o manejo dos fatores sociais e
culturais da comunidade, expresso na palavra vínculo, que tornava este profissional
capaz de se fazer entender pelas pessoas e possibilitar uma mudança
comportamental e cultural na comunidade, pelo convencimento e pelo exemplo, e
não por uma imposição moralista e/ou normatizadora, como era próprio do setor
saúde, sobretudo, quando se trata da saúde pública tradicional, fortemente marcada
por relações verticalizadas, autoritárias e paternalistas. Uma nova visão forjava-se
em função do trabalho de um profissional que tinha certo modo de agir em saúde e
um modo de se relacionar com a comunidade, mudando rapidamente o perfil
epidemiológico no que refere aos desafios de vencer a mortalidade infantil.
~ 52 ~
De acordo com Lavor (2004) as ações dos agentes de saúde foram além dos
limites da saúde, ele afirma que os agentes estabeleceram sua comunicação solidária com as
famílias, visitando-as casa a casa, e fortalecem seus laços de vizinhança ao mesmo tempo que
ganham a confiança da equipe de saúde. (LAVOR et. al., 2004, p.125). Em sua análise
Lavor afirma que o vínculo do agente de saúde com o serviço de saúde ainda não
despertou tanto o interesse dos pesquisadores e lacunas permanecem em aberto
para compreendermos melhor a relação agente de saúde com o sistema, e para ele,
algumas perguntas permanecem em aberto, tais como: o que faz o agente manter-se fiel a
sua comunidade participando de um serviço fortemente hierarquizado? E Como garantir esta
fidelidade? (LAVOR et. al., 2004, p.125).
De que modo isso ocorreu? E ainda, por que as mães passaram a demandar
um serviço que antes rechaçavam, e sequer lhe davam crédito? Em que pese a
influencia dos meios de comunicação, penso que talvez um novo circuito de inter-
relação entre profissionais de saúde e as pessoas que procuram os serviços foi
forjado, mudando gradativamente o contexto social, cultural e simbólico,
configurando um novo padrão cultural em termos de produção saúde-doença
materno-infantil. O trabalho do Agente Comunitário de Saúde trouxe a
comunidade para “dentro” do serviço, ao mesmo tempo, em que levou o serviço,
para “dentro” da comunidade.
Historicamente, o ACS se fez elo entre a população e os serviços de saúde
esboçando um novo modo de articulação entre profissionais de saúde e serviços.
Um dos pontos importantes da atuação deste profissional foi, e ainda é, a pessoa
que faz o elo entre a comunidade e os serviços/profissionais de saúde da ESF.
Bom, e de onde nasce essa necessidade de haver um profissional que faça esse elo
entre a população e os serviços de saúde?
Para o exercício dessa função-elo era imprescindível um determinado perfil
profissional. O trabalho do ACS certamente não se restringe simplesmente em
dirimir as barreiras de comunicação que existia entre a população e os serviços de
saúde em função do fosso de comunicação que havia e há entre a linguagem
~ 53 ~
popular e a científica, resolvendo uma suposta ignorância da população sobre os
modos “corretos” de tratar de sua saúde. Toda essa mudança cultural está
implicada em algo mais amplo que se relaciona com um saber da vivência que os
agentes de saúde tinham sobre os modos de vida da comunidade, bem como, do
usufruto do respeito e prestígio que gozavam como moradores, sendo referência na
busca de resolução dos problemas de saúde por parte da comunidade.
A promoção de saúde era debate em termos de estratégia de atenção
primária no mundo. No Ceará, este processo se configurou de forma particular em
função de um contexto sociocultural específico. É neste cenário mundial macro,
que se singularizava no micro, que uma nova categoria profissional da saúde vem se
construindo e adquire visibilidade em termos sociais e políticos no Brasil: o agente
comunitário de saúde. E apesar de atuarem na atenção básica desde a década de 80,
somente em 2002, esta profissão passa a ser reconhecida em termos legais com a
Lei 10.507/02.
A contratação dos agentes comunitários de saúde, desde a criação do PACS
até Estratégia Saúde da Família, tem sido alvo de debates em função da
especificidade da profissão. Não me alongando neste tópico, mas a título de
ilustração, é importante esclarecer alguns pontos sobre os processos seletivos desse
profissional para tecer algumas considerações sobre o vínculo do ACS com a
comunidade exigido nos processos seletivos.
Em função da lei o Ministério da Saúde traça um perfil profissional e
competências necessárias para formação deste profissional em nível médio. Os
municípios passaram, desde então, a contratar os ACS de forma temporária ou
mediante convênios e parcerias com entidades privadas, principalmente, as
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP. Acontece que o
Programa já não tem mais caráter temporário, ainda que o repasse do recurso
continue sendo feito por meio de transferências de recursos federais para os
municípios. Como os processos seletivos de ACS ficaram sempre a cargo dos
próprios municípios, que o faziam, geralmente, de forma terceirizada, a polêmica
~ 54 ~
continuou. No final de 2005, o Ministério Público do Trabalho, por meio de
notificação recomendatória nº 0013/05, resolve suspender as transferências
obrigatórias dos recursos à saúde aos municípios que não realizassem concurso
público para contratação desse profissional. Ora, tal medida, levaria a saúde pública
ao caos, caso fosse cumprida. Aproximadamente 200 mil profissionais deixariam de
receber seus salários acarretando uma grande desordem ao sistema de saúde
municipal, sobretudo, os de pequeno porte, que assumem a atenção básica do SUS.
A solução foi a Ementa Constitucional 51 que permite aos estados e municípios
admissão de ACS e de agentes de combate às endemias por meio de processo
seletivo público, mas admitindo, a permanência no serviço, dos ACS que tenham
sido submetidos à anterior processo de seleção pública, reconhecendo o vínculo
empregatício dos ACS contratados, por interposta pessoa jurídica.
Em junho de 2009 foi editada uma Medida Provisória 297 que revoga a Lei
10.507/02 no que diz respeito à contratação de ACS e agentes de endemias, e a
reproduz quase integralmente, inovando apenas alguns aspectos referentes a
contratação. Havia uma polêmica referente à contratação do ACS que tinha, por
exigência, ser morador da comunidade, já que a lei só exigia o cumprimento de tal
critério posteriormente ao concurso. Isso invalidava a exigência porque a razão de
ser de tal critério era a garantia de que o ACS a ser contratado tivesse
conhecimento das pessoas e modo de vida da comunidade onde vai trabalhar. A
MP 297 buscou dá um fim nesta polêmica ao dispor em seu artigo sexto que o ACS
deverá residir na área da comunidade em que for atuar, desde a data de publicação
do edital do processo seletivo.
Não é intenção aqui nos determos nesta polêmica que envolve o
reconhecimento jurídico da profissão do ACS. O ponto que chamo atenção são as
raízes desta discussão. O critério de seleção para ACS era o candidato morar no
lugar em que vai atuar. Isto fere o principio Constitucional que defende a igualdade,
na medida em que impedia qualquer pessoa se candidatar a vaga no serviço público.
O fundamento de tal critério era o profissional conhecer a comunidade, mas não se
~ 55 ~
trata de conhecimento técnico, pois isso se resolveria tomando pé de dados sociais
e demográficos sobre o lugar.
Há um ponto importante aqui, algo que até então, era natural para a
humanidade, os vínculos sociais com pessoas e lugares, passou a ser foco do pensamento
jurídico e político do setor saúde. Ter vínculo com a comunidade e ser liderança
local eram critérios que traçavam um perfil que expressa a relevância do saber
oriundo da vivência. Competências requeridas para operar uma abordagem
educativa que objetive, sobretudo, uma mudança comportamental.
Penso que isso talvez integre um cenário que explicita alguns aspectos da
gênese do uso do termo vínculo como um princípio da PNAB. Esta genealogia
talvez forneça algumas pistas para adentrarmos à semântica que envolve seu uso no
âmbito da ESF e os significados que adquire hoje, tanto na PNAB como na PNH
como duas principais políticas do SUS que abordam a relação entre profissionais de
saúde e usuários como eixo central de sua efetividade, conforme sintetizei
anteriormente.
~ 56 ~
1.3. Problematização do Vínculo como tema de pesquisa em Saúde Coletiva. Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na dúvida,
não aprendo nem ensino. (Paulo Freire)
Após apresentar um panorama geral do cenário histórico, político e
cultural que configurou a gênese do uso da palavra vínculo no âmbito da APS no
Brasil até ser inserida como princípio da PNAB, focalizamos agora, o uso do termo
no âmbito da produção acadêmico-científica, apresentando como o vínculo é
abordado em pesquisas, tendo em vista os desafios inerentes às investigações
qualitativas no campo da Saúde Coletiva.
No intuito de fazer um levantamento sobre a literatura relacionada ao tema
pesquisamos nas bases Scielo e Lilacs a palavra vínculo associando-a aos seguintes
descritores: Atenção Primária à Saúde, Atenção Básica à Saúde, Sistema Único de
Saúde, Saúde da Família, Estratégia Saúde da Família, Saúde Coletiva, Saúde
Pública. A leitura atenta destas pesquisas me suscitaram muitas reflexões tomando
em conta a coerência que requer a postura qualitativa que refere Bosi. A seleção dos
artigos foi feita buscando nas bases de dados incluindo quaisquer dos descritores
mencionados nos campos assunto ou título. Localizamos 52 trabalhos que tocavam
a dimensão do vínculo na atenção em saúde, e destes, apenas dois apresentaram
conceitualmente o termo. Os demais o colocavam junto com outras palavras, tais
como, responsabilização, acesso, autonomia, longitudinalidade, acolhimento sem
fazer qualquer distinção para os termos da investigação pretendida.
Apresentamos inicialmente uma dimensão de análise que busca
compreender os conceitos em que se amparam, e os referenciais teóricos aos quais
se filiam os artigos. Trata-se de uma análise que foca o tema a partir de um ponto
de vista semântico. Em seguida retornamos às pesquisas com outro olhar, voltado
para as suas proposições metodológicas. Todos os estudos encontrados assumem o
enfoque qualitativo em seus desenhos de pesquisa. Neste sentido, é importante
compreender também os desenhos das pesquisas e o emprego das técnicas usadas
~ 57 ~
em sua articulação com o referencial teórico proposto. Trata-se aqui de uma
dimensão de análise metodológica, tendo em vista a complexidade do fenômeno. E
ainda, como terceira dimensão de análise, apresento algumas considerações no que
diz respeito ao plano epistemológico comentando os desafios inerentes a esse
enfoque em pesquisa, no campo da Saúde Coletiva.
Estes três planos de análise que faço não apresentam apenas um
levantamento sobre a literatura publicada sobre o assunto, mas agrega uma
problematização do tema em termos de sua produção conceitual, suas proposições
metodológicas, bem como, seus fundamentos ontológicos e epistemológicos. A
problematização é empreendida em um plano tridimensional em que agrego três
dimensões de análise que se intercruzam. A análise em cada plano referencia-se na
leitura dos mesmos artigos, refeita no sentido de apresentar novas
problematizações a partir de outro plano de análise. Como mostra a figura abaixo:
1 – Planos Intersecionais de análise
~ 58 ~
1.3.1. Dimensão Semântica.
Inicio este tópico comentando de forma especial dois artigos porque ambos
fazem uma Revisão das publicações relacionadas ao tema vínculo, em seguida
retomo a análise dos demais em conjunto. O primeiro é uma Revisão Integrativa
que tem como foco a relação entre profissionais de saúde e usuários do SUS que
inclui o termo vínculo. (SCHIMITH, M. D et al. 2011). A pesquisa examinou nas
bases Lilacs e Pubmed os descritores: acolhimento, relações profissional-família,
relação profissional-paciente, humanização da assistência e a palavra vínculo
associada ao descritor Sistema Único de Saúde, selecionando 290 estudos
publicados entre 1990 e 2010.
O recorte temporal de 20 anos do estudo aponta a relação entre
profissionais de saúde e usuários como uma preocupação recente dos
pesquisadores. Há um destaque em termos quantitativos para a produção brasileira
comparada à internacional. Em termos gerais, segundo os autores, o estudo aponta
uma produção científica centrada no hospital como campo de investigação desse
fenômeno. No caso brasileiro, tal concentração é explicada pelos autores em
função do lançamento do Programa Nacional de Humanização da Assistência
Hospitalar, pelo Ministério da Saúde em 2001, embora também se considere a
Política Nacional de Humanização, do Ministério da Saúde, lançada em 2003.
Em sua análise os autores apresentam cinco núcleos de sentido: a relevância
da confiança na relação profissional-usuário; sentimentos e sentidos na prática do cuidado; a
importância da comunicação nos serviços de saúde; modo de organização das práticas em saúde; e,
(des)colonialismo, (SCHIMITH, M. D et al. 2011, p.479), destacando a dimensão
transformadora das relações estabelecidas nas práticas de saúde. O estudo conclui
como tônica principal a necessidade urgente de um reconhecimento dos usuários
dos serviços de saúde como sujeitos de direito de cidadania, digno de respeito e
singularização.
~ 59 ~
Os autores deste estudo caracterizado como uma Revisão Integrativa,
declaram em suas conclusões que a transformação das práticas de saúde só é
possível na medida do reconhecimento do usuário como sujeito do processo de
saúde por parte dos profissionais, e que o campo das práticas em saúde é ainda
organizado e efetivado, predominantemente, em função de uma visão biologicista e
fragmentada dos serviços. Em relação, especificamente, ao termo vínculo, o estudo
conclui que é algo essencial para tomada de decisões compartilhadas, sendo
fundamental para adesão e continuidade do tratamento, mas nada aponta no que
concerne a uma demarcação conceitual..
Uma dimensão interessante que este estudo destaca é quando evidencia o
colonialismo das relações como obstáculo para emancipação e para esta tomada de
decisão compartilhada para a qual o vínculo é considerado importante. Ancorados
no pensamento de Boaventura de Sousa Santos o estudo defende que é preciso
descolonizar as mentes para que seja possível distinguir as hierarquias,
reconhecendo que a luta pela igualdade pressupõe um reconhecimento das
diferenças, sem homogeneizações.
O segundo estudo (BRUNELLO, M. E. F et al, 2010) teve como objetivo
realizar um levantamento das produções científicas brasileiras relacionadas ao
vínculo na atenção primária, também utilizou como fonte as bases de dados Lilacs
e Scielo destacando as seguintes palavras-chave: atenção primária à saúde, acolhimento,
tuberculose (indexados), vínculo, adesão, saúde, atenção básica, longitudinalidade e abandono (não
indexados). Foram selecionados 50 artigos no período de 10 anos. Em suas
conclusões os autores afirmam que o vínculo é fator importante para a atenção à saúde e
tende a melhorar o conhecimento dos reais problemas da população atendida pelos serviços, além de
facilitar o relacionamento dos usuários com os profissionais que os atendem. (BRUNELLO, M.
E. F et al, 2010, p.131).
Em síntese, os dois artigos que fazem uma revisão de literatura sobre as
publicações que abordam em seus descritores o tema vínculo, apontam que esta é
uma preocupação recente dos pesquisadores, impulsionada pelo advento das
~ 60 ~
políticas de humanização em saúde do SUS. Ambos os estudos reconhecem a
importância do vínculo para melhorar as relações entre profissionais da saúde e as
pessoas que usam os serviços. E em termos gerais, caracterizam o vínculo como
algo que melhora, facilita alguma coisa, ou mesmo, teria uma tendência para tal.
Esta importância adquire relevo em função da necessidade de reconhecimento do
outro como sujeito de direito e cidadania.
Passamos agora a analisar as demais pesquisas que abordam a palavra
vínculo em seus descritores, focalizando a atenção para a semântica que envolve a
palavra. O uso do termo é sempre conotado, ora como sendo um dispositivo, seja de
atenção integral à saúde, seja um dispositivo do cuidado; ora como uma tecnologia
leve, fazendo referência à caracterização feita por Merhy (2005), quando diferencia
tecnologias, duras, leves-duras e leves. É uma palavra também referenciada como
tecnologia relacional ou ferramenta relacional, e até mesmo, um instrumento de trabalho
relacional.
No geral, o vínculo é compreendido ou mencionado como parte ou
exemplo do que se convencionou chamar de tecnologia leve, no dizer de Merhy
(2005). No bojo que sinaliza tal compreensão, vínculo é uma palavra que sempre
vem junto com acolhimento e autonomia. Nesta perspectiva a literatura aborda a
palavra formando uma espécie de amálgama semântico com algumas outras,
próprias do campo da saúde coletiva, sempre escritas lado a lado em diversos
artigos, como destaco abaixo:
Acesso-acolhimento-vínculo,
Acolhimento–vínculo–responsabilização,
Acesso–acolhimento–vínculo–responsabilização,
Responsabilização–vínculo–autonomia,
Acolhimento–vínculo–diálogo,
Acolhimento–vínculo–acesso, e ainda,
Longitudinalidade–vínculo-autonomização.
~ 61 ~
O uso do hífen não é referido na literatura. Usei-o aqui para esboçar o
sentido de amálgama semântico, já que as palavras são sempre expressas em
conjunto, e sempre lado a lado. Não há uma diferenciação entre elas e seu sentido
esboça seu uso como sinônimos.
As palavras que abarcam o amálgama semântico referem sempre, em seu
conjunto, as categorias: ferramenta, instrumento, dispositivo e ou tecnologia, ou seja, todas
elas, inclusive o vínculo é compreendido a partir destas categorias. Os artigos não
apresentam nenhuma reflexão que justifique tais categorizações e/ou classificações,
ou uso em conjunto das palavras.
As referências ao vínculo que denotam o uso da palavra categorizada como
ferramenta, instrumento, recurso terapêutico, dispositivo de cuidado, revelam
algumas formas de sentido que a palavra encarna. Um primeiro seria a
compreensão de vínculo como uma ferramenta capaz de aumentar a eficiência e a
eficácia dos serviços, sendo a referência aqui a um serviço específico da atenção
básica. O vínculo aludido como dispositivo do cuidado sugere uma relação de
Vínculo
Acesso
Responsabili-zação
Longitudi- nalidade
Diálogo
Autonomia
Acolhimento
2 – Amálgama Semântico em que se encerra o Vínculo
~ 62 ~
condicionamento, isto é, sem vínculo não é possível o cuidado, ou este fica
comprometido.
Outro uso do vocábulo é feito para referenciar a importância da dimensão
subjetiva das pessoas que usam os serviços para as ações de cuidado. É um sentido
que expressa a valorização do vínculo em sua negatividade, isto é, em função de sua
suposta fragilidade ou ausência nos serviços. Por outro lado, tal relevância denota
um reconhecimento da subjetividade das pessoas que usam os serviços, quando se
foca as relações entre os profissionais de saúde e a população.
O vínculo é também referido nestes estudos de forma recorrente como
sinônimo da palavra confiança. Sua definição é sempre feita com referência a
dicionários que a definem como elo, ligação. É uma definição a partir da qual se
entende, ou talvez se confunde, vínculo com a ideia de relação estreita, fortes laços
interpessoais, afinidade, cumplicidade, amizade, cuidar.
O mais frequente é o uso da palavra sem quaisquer diferenciações entre os
termos. O estudo do tema é sempre tangenciado e a palavra é amiúde apresentada
como condição para algo ou alguma coisa. Assim, vínculo se apresenta como
condição para a autonomia, para longitudinalidade do cuidado, para a confiança.
Esta última explicada, até mesmo, no sentido de expressar a permissão ao paciente
em superar sua vergonha de contar algo para o profissional da saúde.
É comum o vínculo ser confundido ou identificado com um simples
contato, qualquer que seja, por meio de consultas, grupos, visitas domiciliares,
momento em que acontece um encontro entre profissional da saúde e as pessoas
que usam os serviços de atenção primária à saúde.
Em suma, o uso do termo vínculo denota um sentido que ora favorece,
facilita, condiciona, amplia, cria e fortalece “quase tudo”. O quase tudo aqui
entendido como autonomia, participação longitudinalidade, confiança, etc. Este é o
polo positivo. Em decorrência disso, por outro lado, este “quase tudo” se fortalece
~ 63 ~
e/ou se fragiliza em função de como “esteja” esse vínculo entre os profissionais de
saúde e as pessoas que usam os serviços.
Após esta análise geral foram emergindo a partir da leitura algumas
categorias com as quais a palavra vínculo é relacionada, são elas: gestão dos serviços
da Atenção Básica, Ações específicas da Atenção Básica, Assistência, Terapêutica,
Participação e democratização dos serviços, competência/formação profissional e
práticas educativas na atenção básica. Identificamos para cada categoria uma lista de
aspectos aos quais, a literatura associa com o vínculo, ora em um polo positivo, ora
negativo. O polo positivo se expressa quando os estudos constatam a presença do
vínculo como favorecendo determinado aspecto da categoria em questão. O polo
negativo está as pesquisas que referem a suposta ausência do vínculo um fator,
dentre outros, responsável por desfavorecer os aspectos importantes ligados a
categoria em questão. Assim, em sua via positiva, as pesquisas abordam o vínculo
como algo que facilita, promove, permite, amplia o “quase tudo”. Na via negativa,
não o vínculo, mas a sua ausência suposta, não permite, não facilita, não cria, não
amplia o “quase tudo”.
Importante esclarecer que, mesmo no polo positivo, os verbos que indicam
sua suposta presença se conjugam em um futuro do pretérito, na forma de um
dever ser normativo. O vínculo, então, acaba sempre referido em função de sua
ausência pressuposta, já que o futuro do pretérito é um tempo verbal usado para
indicar hipótese, incerteza ou irrealidade. Então, seja na via positiva ou negativa, a
referência ao vínculo denota sempre uma ausência, é quase sempre não visto.
As palavras referentes a cada categoria identificada, tanto podem ser
encaixadas na via positiva, quanto negativa, ou seja, em termos de leitura. Um
aspecto importante para facilitar a compreensão do leitor é quando, por exemplo, o
vínculo se relaciona à gestão dos serviços da atenção básica, pela via positiva, a sua
suposta ausência não permitiria uma gestão participativa. Pela via negativa, se
existisse, ou se fizesse presente, o vínculo permitiria uma gestão mais participativa.
Como podemos ver, não há uma diferenciação de ausência ou presença. O polo
~ 64 ~
positivo ou negativo denota apenas o modo como a pesquisa referencia o termo. É
um discurso que encerra uma confusão semântica, relacionada provavelmente a
metodologia de investigação utilizada.
Para evitar repetições nas categorias, em termos positivos e negativos,
esclarecemos que sua leitura pressupõe ambos os polos. Ressaltando ainda, que a
via positiva integra um dever ser no futuro de pretérito. O vínculo, portanto, é algo
que favorece ou favoreceria, evita(ria), contribui(ria), aumenta(ria) melhora(ria) o
que refere todas as categorias identificadas. Essa é chave de leitura para
compreender as categorias abaixo:
Gestão dos serviços da Atenção Básica
Categoria que agrega estudos relacionados à melhoria da gestão dos serviços de
saúde na atenção básica em vários aspectos: participação, eficácia de ações, acesso,
resolutividade, etc. Em relação a esse tema os estudos referem o vínculo como algo
que:
Favorece(ria) a Gestão participativa;
Evita(ria) ações desnecessárias;
Contribui(ria) para eficácia das ações em saúde;
Aumenta(ria) a resolutividade dos serviços e/ou programas (Saúde Mental, Saúde do Trabalhador, Saúde do Adolescente, Acompanhamento de pacientes com TB, HA, Dia, Pré-natal, Programa Família Saudável, etc)
Melhora(ria) o acesso aos serviços;
Diminui(ria) a rotatividade de profissionais médicos e enfermeiros na ESF;
Favorece(ria) o uso racional de medicamentos.
Ações da Atenção Básica
Sugerimos esta categoria, a despeito de ter apresentado a categoria anterior porque
os estudos relacionados aqui tem outra nuance relevante que se afasta de uma
forma de gestão. O que é ressaltado são as ações próprias deste nível de atenção à
~ 65 ~
saúde, tendo o vínculo, como condição para sua efetivação. Aqui o vínculo
favorece(ria):
Ações de promoção de saúde;
Ações intersetoriais;
Formação de grupos;
Intervenções coletivas;
Visita domiciliar;
Capacitações em geral na comunidade (oficina e cursos os mais diversos).
Assistência
Esta categoria reúne estudos referentes às práticas de assistência, bem como, ao
modo como tais práticas são realizadas visando êxito ou resultados. O vínculo aqui
é algo que contribui(ria) para melhorar, ou tem ou teria efeitos de correlação
positiva no(a):
Acolhimento;
Atendimento humanizado;
Responsabilização;
Autonomia;
Clínica Ampliada;
Abordagem e cuidados de vítimas da violência doméstica;
Dá permissão para que o profissional supra necessidades, intervenha, aconselhe, partilhe opinião, promova suporte psicológico para alívio da ansiedade;
Terapêutica
Esta categoria refere, especificamente, a terapêutica ligada à assistência na APS. A
literatura refere uma série de estudos sobre adesão aos diversos programas próprios
dos pacotes da atenção básica. Em todos eles, o vínculo é referido como algo
~ 66 ~
condicionante para adesão das pessoas. Aqui o vínculo aumenta(ria) ou
melhora(ria) a(o):
Adesão à terapêutica e/ou continuidade do tratamento;
Adesão aos programas (Tuberculose, Hipertensão, Diabetes, Pré-natal, às ações de promoção de saúde etc);
Acompanhamento de recém-nascidos de baixo peso;
Confiança entre profissionais e usuários.
Participação e democratização dos serviços
Esta categoria está relacionada aos estudos específicos sobre gestão participativa no
SUS. São estudos que avaliam práticas na atenção básica que devem fomentar a
democracia. O vínculo aqui é também algo condicionante para o fomento de
práticas como:
Cidadania;
Participação da comunidade;
Criação de espaços de convivência.
Competência/Formação Profissional
Esta categoria congrega estudos sobre a competência e a formação profissional
para atenção básica. Também, neste caso, o vínculo é condicionante no sentido de
favorecer o aprendizado, ou mesmo, a prática profissional na atenção básica no
tocante a: competência profissional, a Atividade Clínica.
Práticas Educativas na Atenção Básica
Os estudos que referem vínculo relacionado a esta categoria apontam as
metodologias utilizadas nas práticas educativas da atenção básica. Tais estudos
ressaltam que o uso de metodologias tradicionais, não favorece(ria) o vínculo.
~ 67 ~
Essas categorias de análise nos permitem pensar que há uma compreensão
geral do vínculo no discurso da Saúde Coletiva como algo que condiciona o
trabalho na APS tornando-o algo para o qual tudo converge ou deva convergir.
Recorro a uma imagem que facilita uma compreensão disso. Uma espécie de
vórtice traduz bem o uso da palavra vínculo no âmbito da atenção básica. Algo que
gira em torno de si mesmo e para o qual tudo converge, e não se sabe o que está
causando a força centrípeta. Nesta perspectiva, tudo que trata de assuntos
relacionais converge para a palavra vínculo. Essa imagem é interessante, e revela
também, um reconhecimento da sua importância no âmbito da atenção básica,
mesmo, que seu significado seja tão nebuloso, considerando seu poder de
convergência.
Conforme procuramos evidenciar a literatura é escassa em abordar vínculo
em termos teórico conceituais, algo sempre tangenciado. Sua expressão como
amálgama semântico dificulta e/ou escamoteia sua conceituação. Em suma, quando
conotado no âmbito da atenção básica o vínculo é percebido como requisito do
modelo de Saúde da Família, algo que favorece(ria) as ações de integralidade da
atenção à saúde, que permite(ria) agir sobre os condicionamentos de saúde,
3 - Vórtices
~ 68 ~
possibilita(ria) o conhecimento das necessidades de saúde da população, sendo por
fim, essencial para longitudinalidade do cuidado.
Há um tangenciamento conceitual que se limita ao uso de sinônimos, quase
sempre referindo confiança, elo, relação interpessoal estreita. Não há uma lapidação
semântica em termos conceituais que o diferencie, por exemplo, do vínculo
terapêutico, vínculo de amizade, vínculo profissional, ou mesmo, vínculo
institucional. Como na imagem do vórtice, tudo a ele converge.
Os demais artigos que tem como tema de investigação o vínculo, mesmo
que inserido, neste amálgama semântico, que já é o lugar comum da palavra no
âmbito acadêmico, fazem referência, seja de forma direta ou indireta, citando de
forma mais recorrente, os seguintes autores Ellias Merhy, Gastão Wagner e Túlio
Franco. O vínculo quando definido fora do amálgama, em alguns artigos, tem uma
conotação polissêmica e adquire diversos significados, e fazem referência ao
discurso desses autores que citei. Assim, ora aparece ligado à clínica, e no caso,
pode ser caracterizado como o vínculo terapêutico. Em outros casos também é
abordado como princípio de ação, um dever ser normativo que preconiza as
políticas PNAB e PNH. E também, por vezes, aparece conotando um núcleo de
sentido que se referencia numa relação de confiança e amizade.
Por fim, destaco de modo especial outro estudo pelo fato de, apesar de
inserir o vínculo no amálgama semântico que referi anteriormente, apresenta um
conceito para referir-se ao termo. Trata-se de uma pesquisa que objetivou
compreender a utilização do acolhimento, vínculo e a corresponsabilização na
construção do cuidado direcionado aos usuários com hipertensão arterial. Os
autores definem vínculo da seguinte forma: um instrumento relacional que permite a
circulação de afetos entre pessoas, além de se constituir em ferramenta eficaz na horizontalização e
democratização das práticas de cuidado, pois favorece a negociação entre os sujeitos envolvidos nesse
processo. (LIMA, L. L.; MOREIRA, T. M. M.; JORGE, M. S. B., 2013.).
~ 69 ~
Este conceito apresentado neste artigo se referencia em outro estudo
(SILVA JÚNIOR, A.G.; MASCARENHAS, M.M, 2004), cujo objetivo é refletir
sobre conceitos e abordagens metodológicas com intenção de contribuir para
aumentar a capacidade de análise das pessoas envolvidas no trabalho da atenção
básica à saúde. Para conceituar o vínculo os autores apresentam inicialmente, a
definição do dicionário Aurélio “tudo que ata, liga ou aperta; ligação moral; relação.” E
mais a frente, define-o recorrendo a um autor chamado Chakkour. Assim
escrevem:
Chakkour (2001, p.6), a partir de Pinchon-Rivière (1982), conceituou vínculo como „o desenvolvimento de circularidade de afetos entre trabalhador e usuários, construindo a interação entre duas pessoas criando uma maneira particular de se relacionarem, a cada caso e a cada momento‟. Criar vínculos, na visão de Merhy (1997), é ter relações tão próximas e tão claras que a equipe possa se sensibilizar com o sofrimento ou demanda dos usuários ou da população adscrita. (SILVA JÚNIOR; MASCARENHAS, 2004, p. 248).
O estudo, portanto, cita outro que, por sua vez, cita um outro autor
chamado Chakkour que definiu o vínculo referendado numa publicação de Pichon-
Rivière (2007) intitulada Teoria do Vínculo. A partir da ideia Chakkour os autores
propõem pensar o vínculo em três dimensões: a afetividade, a relação terapêutica e a
continuidade. A afetividade referida na primeira dimensão foca, não a relação entre
profissional e a pessoa que utiliza o serviço, e sim, trata do gostar que o profissional
deve(ria) ter em relação à sua profissão, e em decorrência disso, ter um interesse
pela pessoa do paciente, e só assim, construir um vínculo firme e estável que se
torne um valioso instrumento de trabalho.
A dimensão terapêutica está ligada ao ato de dar atenção, uma nova forma
de cuidado. Para expressar isso o autor refere Boff (1999) em sua publicação Saber
cuidar: ética do humano, compaixão pela Terra, onde o teólogo defende o cuidar como
atitude numa relação de interação e convivência, zelo e desvelo. O artigo destaca
ainda, em relação a este ponto, as diversas publicações ligadas à corrente de atenção
~ 70 ~
centrada no paciente quando enfatizam a potência do vínculo para compreensão do
sofrimento; referenciam também as publicações que apontam a relação profissional
paciente, fundamental para as intervenções e a maior adesão, tanto à terapêutica
quando as medidas de prevenção e promoção. E a terceira dimensão, a de
continuidade, é compreendida como responsabilização que, segundo os autores, é o
profissional assumir a responsabilidade pela vida e morte do paciente, dentro de uma dada
possiblidade de intervenção, nem burocratizada nem impessoal. (SILVA JÚNIOR;
MASCARENHAS, 2004, p. 250).
De forma geral, estas três dimensões se caracterizam como um apelo-
exortação para um dever ser; expressam fatores que condicionam o vínculo
exortando que o profissional deve(ria) gostar da sua profissão, para então assumir
uma postura de cuidado que expresse uma atitude de compreensão, empatia e se
responsabilize pela vida e morte de quem cuida, guardando as devidas limitações de
contexto. Há um pano de fundo que justifica a postura de distanciamento entre os
profissionais e os pacientes sendo explicado pela falta de gosto do profissional em
relação à profissão que escolheu.
Um ponto central do conceito está na palavra afeto, sendo o vínculo algo
que supostamente permite que o afeto circule, para então, ser uma ferramenta
eficaz nas práticas de cuidado. Sem o vínculo, parece que supostamente o afeto
estagnaria de alguma forma, impedido de circular. É preciso indagar neste conceito:
de que forma o vínculo faz circular o afeto entre as pessoas? Pensar o vínculo
como condição de circulação de afeto nos faz pensar em afetos estagnados. O que
seria um afeto que circula e um afeto que não circula? Não seria razoável pensar
também que o próprio afeto favoreceria o vínculo? Que relação há entre vínculo e
afeto? Surgem muitas perguntas intrigantes a partir desta definição de vínculo e
uma sugestão contundente de uma fragilidade conceitual.
É interessante ressaltar que a dimensão afetiva implicada no conceito é
centrada no profissional, e só depois, direcionada a pessoa que está sob seus
cuidados. A afetividade fica condicionada ao dever ser por parte do profissional,
~ 71 ~
isto é, se tal dever não se esboça, não é possível o interesse do profissional em
relação à pessoa que cuida e, por consequência, não haveria vínculo. E se isso não
ocorre seria, pois em função de uma não identificação do profissional com sua
profissão que o afeto não circularia e o vínculo não se faz presente! Será que seria
mesmo assim? Há alguns equívocos em torno da compreensão da relação entre
afetividade e vínculo que deve ser apurada em termos conceituais.
Uma conceituação atende a uma finalidade científica. É uma necessidade
que nos auxilia em uma aproximação e/ou uma compreensão mais profunda sobre
os fenômenos da realidade. A conceituação de primeiro estudo que referi sobre
vínculo no início, que se embasa na linha de pensar foucaultiana, atende a
finalidade de pensar o vínculo em termos das relações que se estabelecem entre os
governos, na forma de Estado, e a população, relacionando-o aos constructos de
verdade e liberdade, tal como propõe o pensar de Foucault. Já este segundo estudo
que se embasa na visão de Pichòn-Rivière, vai buscar outro para tecer
considerações sobre o vínculo que trata como assunto central a patologia do
vínculo, embasado no referencial teórico da Psicanálise.
É importante esclarecer melhor do que trata o livro A Teoria do Vínculo de
Pichòn-Rivière, ao qual referenciam os autores direta e indiretamente. O autor
argentino propõe seu estudo esclarecendo seu uso em três dimensões de
investigação: a do indivíduo, a do grupo e a da instituição ou sociedade. Cada uma
permite um tipo de análise: a psicossocial, a sociodinâmica e a institucional que se
inter-relacionam e se integram. Para Pichon-Rivière:
Uma Psiquiatria concebida a partir das relações interpessoais, da relação do indivíduo com o grupo e/ou com a sociedade, nos dará dados para construir uma psiquiatria que podemos denominar Psiquiatria do Vínculo, quer dizer, a psiquiatria das relações interpessoais. Uma psiquiatria concebida desse modo é uma psiquiatria dinâmica construída com os postulados da psicanálise. Historicamente, podemos dizer que o último passo da psicanálise foi o estudo das relações de objeto. Isso nos leva a tomar como material de trabalho e observação permanente a maneira particular pela
~ 72 ~
qual cada indivíduo se relaciona com os outros, criando uma estrutura particular a cada caso e a cada momento, que chamamos vínculo. Vamos então estudar a patologia do vínculo. (PICHON-RIVIÈRE, 2007, p.2).
Em função do seu referencial teórico o autor vai discorrer sobre as
alterações do vínculo focalizando seu estudo no vínculo patológico classificando-o em:
paranoico, depressivo, obsessivo, hipocondríaco, histérico, etc. Ao final, Pichòn-
Rivière se pergunta o que seria o vínculo normal. Para que possamos compreendê-
lo, diz ele, é preciso analisar as principais características das relações de objeto: o
objeto diferenciado e o indiferenciado. Com isso, parte das relações de dependência
e de independência. Na relação adulta normal, o pressuposto é que de que a relação
de objeto esteja diferenciada, isto é, tanto o sujeito quanto o objeto faz uma eleição
livre de objeto.
Aprofundando a reflexão, o autor menciona os extremos desta relação à
máxima não-diferenciação (está referindo a relação humana mãe-bebê em seus
primórdios) e sua progressiva diferenciação, em que sujeito e objeto não estão mais
confundidos, e sim, diferenciados. Então, finalmente, o autor pergunta: de que modo
se estabelecem vínculos entre objetos totalmente diferenciados? Ele mesmo responde dizendo:
“É provável que não seja possível defini-lo, porque tais vínculos não existem e isso nos leva ao
paradoxo de que o sujeito mais maduro alcançaria uma diferenciação total em relação aos outros
objetos; por conseguinte, criar-se-ia para ele uma situação de distanciamento que nós, do ponto de
vista de nossa posição não-madura, poderíamos qualificar de indiferença. (PICHON-
RIVIÈRE, 2007, p.15).
Um ponto interessante é pensar a distancia que tomou o conceito de
vínculo usado no campo da Psiquiatria por Pichòn-Rivière, cujo núcleo de
significado é a patologia do vínculo em sua expressão paranoica, histérica, obsessiva
etc, e o seu uso no campo da saúde coletiva nas publicações que se referenciam no
autor, direta e indiretamente, e traz o afeto como núcleo de significado. Um recorte
é feito de um campo de saber a outro sem uma compreensão mais precisa do
~ 73 ~
contexto do qual emerge as ideias do autor argentino. Isso, por vezes, desfigura o
conceito e compromete o estudo.
Considero de fundamental importância não perder de vista a relevância de
um referencial teórico para construção de conceituações, ou mesmo proposição de
uso de conceitos quando se transpõe de um campo a outro. Dependendo do
referencial as conceituações nos levam para determinado rumo. Se o referencial é o
pensamento de Foucault as categorias analíticas serão bem diferentes daquelas cujo
referencial é a Psicanálise. É necessário, pois um posicionamento ético e uma
clareza do lugar a partir do qual se constrói uma posição teórica e epistemológica.
1.3.2. Dimensão Metodológica.
Bosi (2011) quando traça um panorama geral referindo-se ao enfoque
qualitativo no campo da Saúde Coletiva destaca os desafios que precisam ser
enfrentados. Ela delineia instigantes reflexões entre os planos epistêmico, ético e
operativo em suas interrelações com o estatuto cientifico deste enfoque de
pesquisa. A autora ressalta três problemas advindos de posturas que se estendem
entre a confusão e o reducionismo e que se relacionam com o emprego dos
conceitos, o uso indiscriminado de termos, e o debate ou embate entre enfoques
qualitativo e quantitativo.
Transladando essas proposições para o exercício aqui desenvolvido é
importante relembrar que a dimensão metodológica abordada neste tópico é outra
visão a respeito dos mesmos estudos que referi na dimensão semântica. O que
acrescento aqui é outro ponto de vista para enriquecer o olhar. Focalizo doravante
o desenho da pesquisa em sua articulação teórico-metodológica, bem como, as
~ 74 ~
técnicas e instrumentos utilizados nas pesquisas que abordam o vínculo direta e
indiretamente.
Um dos aspectos chaves do SUS é pensar práticas de atenção à saúde que
se embasem nos princípios da universalidade, integralidade e equidade. Um
primeiro aspecto que me chama atenção é relacionado à coerência com o plano
epistêmico, e diz respeito a uma fragmentação do olhar. As pesquisas que abordam ou
tangenciam o vínculo, tendo-o como foco, ou como parte do amálgama semântico
referido anteriormente, com raras exceções, integram o escopo de investigações
sobre o princípio da Integralidade do SUS, e tem como preocupação central avaliar
em que medida os serviços se caracterizam em termos da integralidade da atenção.
A fragmentação do olhar que me refiro especificamente no tocante as
investigações que tem o vínculo como descritor se relaciona com uma busca de
investigar, em termos avaliativos, a Integralidade. Além de uma compartimentação
que isola um dos princípios do SUS, há outra que isola o tipo de serviço oferecido.
O que em geral se busca com essas pesquisas é investigar se os serviços oferecidos
da atenção à saúde, como por exemplo, os cuidados voltados para a gestante, ou
aos hipertensos, ou a pessoas com tuberculose, ou a quaisquer outros, podem ser
ou não, caracterizados como serviços integrais.
As pesquisas elencadas no Quadro 3, no Apêndice, ao final, as pesquisas
identificadas, em sua maioria, tem desenhos que se propõem a avaliar os diversos
serviços da atenção básica em termos de integralidade da atenção. São artigos
publicados sobre gestantes que focalizam o pré-natal, avaliando-o em termos de
integralidade. Outros investigam a integralidade da atenção relacionada,
especificamente, ao acompanhamento de pessoas com tuberculose, sobretudo
investigando a adesão ao tratamento. Outras ainda se voltam para os serviços de
cuidados com a diabetes ou com a hipertensão. Uma produção mais expressiva
aborda a saúde mental, também em termos de integralidade da atenção, relacionada
aos doentes mentais. Uma produção menos expressiva, está ligada à Saúde Bucal,
Saúde do Trabalhador, Saúde do Adolescente, Saúde da Criança, este último
~ 75 ~
focaliza, exclusivamente, ações de vacinas ou as doenças prevalentes na infância.
Todas estas pesquisas tangenciam a questão do vínculo compreendendo-o como
algo importante seja para adesão às terapêuticas, para as práticas de prevenção e de
promoção de saúde relacionadas aos serviços que mencionei, em separado, cabe
enfatizar.
Há ainda as pesquisas que avaliam os serviços de atenção básica após a
implantação do PSF. Estas, agrupei no Quadro 4, conforme mostra o Apêndice ao
final. São estudos que fazem um recorte de contexto focalizando o período após a
implantação do PSF. Também focalizam isoladamente o princípio da integralidade
do SUS buscando investigar a distancia que tais práticas se encontram do que
preconiza a integralidade da atenção a saúde de acordo com as políticas. Todos
também tangenciam o vínculo e apresenta-o como algo que favorece e condiciona a
qualidade da atenção à saúde em termos de integralidade no âmbito da atenção
básica.
Os desenhos metodológicos das pesquisas que intencionam investigar a
integralidade da atenção à saúde, geralmente, isolam um tipo de serviço oferecido a
um determinado público, quando não vão mais longe ainda, fragmentando o olhar
e focando apenas um determinado aspecto do serviço, como, por exemplo, a
adesão ao tratamento (quase sempre tuberculose), ou o pré-natal, quando aborda a
saúde da mulher. Em geral no esboço do desenho da pesquisa não há nenhuma
justificativa ou análise que problematize os recortes feitos relacionando com o
significado da palavra integralidade, escopo de suas investigações.
Uma pergunta salta em função destas reflexões: a integralidade da atenção à
saúde pode existir no serviço de acompanhamento à gestante, por exemplo, e
deixar de existir quando trata do acompanhamento de pessoas com tuberculose, em
se tratando do mesmo contexto e dos mesmos atores? Poderíamos responder
rapidamente que não! Porém, não seria tão simples assim, posto que a integralidade
da atenção pode ser compreendida, tanto como uma atitude por parte do profissional,
como também uma marca dos serviços, como defende Mattos (2009). Esse serviço
~ 76 ~
pode ser organizado de uma determinada forma e efetivar-se de forma diferente, a
depender do alvo. Pode se efetivar de uma forma quando trata do
acompanhamento das pessoas com doenças crônicas, e de outra ainda, quando se
volta para o acompanhamento das gestantes, ou de adolescentes, ou do doente
mental, etc. Isso vai interferir na efetivação da integralidade como marca e/ou atitude
nos serviços.
Se a integralidade tal como define Mattos (2009) enquanto marca do serviço
e/ou atitude dos profissionais, como construir desenhos de pesquisas que nos
permitam ver um e outro? A que se voltam os desenhos de pesquisa em sua
investigação, para integralidade como marca do serviço ou como atitude dos
profissionais? O que se avalia realmente em termos de integralidade da atenção, seja
como marca do serviço ou atitude, quando se focaliza apenas um determinado
aspecto de um dado serviço na atenção básica? Isso é importante porque tais
estudos partem do conceito de integralidade apresentado por Mattos (2009).
Por outro lado, levando em conta a coerência com o plano epistêmico, é
importante refletir em que medida realmente se avalia e/ou analisa a resolutividade
ou efetividade da integralidade da atenção à saúde no âmbito da atenção básica com
uma visão fragmentada, compartimentada e disjuntiva. Importante esclarecer que
um recorte é relevante, mas é preciso ter clareza se o foco pretendido é fruto de um
recorte que aponte suas potencialidades e limites para os resultados, ou resulta de
uma visão compartimentada a priori, que isola o fenômeno e empobrece sua
compreensão.
Em síntese, a partir da constatação que a maioria dos estudos que tratam da
integralidade da atenção à saúde no âmbito da atenção básica e que tangenciam, ou
mesmo, focam o vínculo, raramente o conceituam, e quando o fazem, não
delineiam com clareza o que justifica sua opção teórico-metodológica em sua
coerência com o desenho proposto e com as técnicas de que fazem uso.
Tampouco, esclarecem ou depuram com clareza o porquê ou as razões em função
~ 77 ~
das quais o vínculo aparece, ou se articula, ou se insere no escopo da integralidade
da atenção à saúde.
Há uma complexidade inerente quando se intenciona investigar os
fenômenos da realidade em sua interface subjetiva que se apresenta como um
grande desafio para os desenhos de pesquisas com enfoque qualitativo. Como
destaca Bosi (2012) este caráter complexo dos objetos de que se ocupa este
enfoque de pesquisa nos convida à flexibilidade, não apenas reconhecendo uma
necessária interdisciplinaridade, mas uma inter(trans)culturalidade. A autora ressalta
esta transculturalidade na pretensão de operar um deslocamento nesta discussão do âmbito
científico estrito ampliando-a para outras arenas sociais. Nestas são produzidas, se não
conhecimentos disciplinados pela racionalidade científica moderna, saberes „nativos‟ que precisam
formar alianças, religarem-se a outros, processo de importância primordial para o campo da Saúde
Coletiva. (BOSI, 2012, p.7).
De fato, há pouca permeabilidade no quadro conceitual da saúde coletiva.
Na análise das pesquisas sob o ponto de vista metodológico percebo que falta um
diálogo mais abrangente com outras áreas de saber das ciências humanas. A
psicologia, por exemplo, tem uma ampla literatura sobre vínculo, grupos, relações
interpessoais que podem subsidiar as investigações no âmbito da Saúde Coletiva.
Exemplo desse escasso diálogo, como vimos, está na referência à Teoria do
Vínculo de Pichon-Rivière, cujo conceito é referenciado por citações de citações de
citações, correndo o risco de subsumir o conceito em seu constructo original. As
pesquisas não apresentam uma justificativa, ou mesmo, uma indagação sobre as
escolhas conceituais que fazem, situando-as em seu contexto de origem, sua
finalidade e proposições, e em que medida, ou que aspectos, se relacionam com o
objeto que investigam.
Ainda como reflexões pertinentes ao ponto de vista metodológico no que
concerne aos métodos e instrumentos de investigações, as pesquisas citadas com
enfoque qualitativo, apontam como instrumentos utilizados grupos focais e/ou
entrevistas. Raramente saem dessas clássicas técnicas para fazer uso de observação
~ 78 ~
em campo, observação participante e/ou diário de campo, para citar as mais
comuns em ciências humanas. Raramente incorporam contribuições de outras áreas
de saber fazendo uso das artes, literatura, fotografia, etc.
Fica evidente que, apenas por meio do emprego dos instrumentos clássicos,
que se obtêm as informações das pesquisas. Somente a partir do discurso e do
recorte de falas é que se analisam as percepções, ou as (in)satisfações e/ou
representações sociais, relacionadas ao fenômeno em foco. Os resultados das
análises, geralmente, expressam constatações, presenças ou ausências de determinado
fenômeno, sobre a resolutividade deste ou daquele serviço; percepções, sejam por
parte dos profissionais, ou das pessoas que usam os serviços, bem como, satisfações e
insatisfações relativas à oferta de algum serviço.
As análises das falas (“achados”) são feitas no sentido de revelar e/ou
desvelar isso ou aquilo do fenômeno investigado. Porém, os resultados se
expressam sem ir muito além das constatações. Há um pressuposto de que a fala
sempre conota algo que existe concretamente na realidade, e raramente refere e/ou
articula o sistema de significados que o contexto daquela linguagem pode
representar. Os resultados correm o risco de supor que as falas expressas na
linguagem dos sujeitos conotam alguma suposta “verdade” encontrada ou achada
sobre o fenômeno que se investiga. As falas, geralmente, são tomadas como um
dado empírico do real, um suposto dado objetivo que revela, denota, confirma ou
desconfirma isso ou aquilo.
É preciso levar em conta também o alcance e limite dos instrumentos de
pesquisa como uma entrevista, por exemplo. Em que pese toda sua contribuição
inequívoca para a pesquisa, uma entrevista guarda o pressuposto de que o sujeito
entrevistado tenha um pensamento elaborado verbalmente sobre o que se fala.
Sabemos que isso nem sempre é possível. É preciso considerar os limites de
quaisquer instrumentos para ter clareza em que medida esse instrumento contribui
para elucidação do estudo em questão.
~ 79 ~
Em geral, desconsidera-se a linguagem em seus aspectos antropológicos,
culturais e psicológicos, bem como a sua relação com a realidade que se investiga.
Geralmente, o discurso dos profissionais da saúde, oriundo das entrevistas e/ou
grupos focais, refere o que diz a política em termos do que deveria ser isso ou
aquilo em termos normativos. As investigações raramente confrontam as falas com
observações em campo. Ocorre que, no geral, as falas são consideradas um dado
empírico. Não fica claro em que medida a linguagem é considerada e analisada
como uma mediação, um sistema de significação próprio, ou um sistema abstrato
cujo significado refletiria realidade tal qual é. Em função disto, as constatações
e/ou conclusões daí resultantes são conclusões de pesquisa que apresentam
limitações nem sempre expressas.
A constituição da Linguagem para espécie humana é requisito de
humanização. Somos seres inscritos na linguagem, seres falantes, mais que
mediação, somos seres feitos de histórias. Em termos da atividade humana de
produção cientifica não podemos desconsiderar o viés antropológico, sociológico,
cultural e psicológico que isso acarreta para a produção das ciências, sobretudo
quando se trata de pesquisas qualitativas.
Os resultados de uma pesquisa deve se articular ao arcabouço teórico
conceitual ao qual se filia. Tal articulação é que direciona os resultados. Uma
pergunta de pesquisa tem pressupostos teórico-conceituais que devem ser
explicitados, porque é justamente em função deles que os resultados se delineiam
quando se analisa as falas dos sujeitos. É a pergunta e seu referencial teórico
conceitual que permite visualizar nos discursos os significados que fazem sentido
como respostas para aquilo que a investigação intenciona desvelar.
Os desafios apresentados por Bosi (2012) em pesquisa qualitativa no campo
da Saúde Coletiva chamando a atenção para uma necessária coerência e
consistência nos níveis ontológico, metodológico e ético precisam urgentemente
ser enfrentados. Como ressalta a autora o que se processa nas pesquisas qualitativas
pertence ao plano das construções intersubjetivas, imersas em relações sociais, e não a mera
~ 80 ~
aplicação de técnicas. Aceitando-se tal concepção impõe-se considerar a dimensão ético-política nas
decisões de pesquisa, entendendo-as como critério de qualidade sob a ótica aqui defendida. (BOSI,
2012, p. 8).
1.3.3. Dimensão Epistemológica.
Um olhar na dimensão epistemológica inclui questionamentos que
perturbam, isto é, provocam tanto as nossas formas de pensar o mundo, como
nossas crenças a respeito. Envolve reflexões sobre em que acreditamos quando
afirmamos algo sobre a natureza da realidade. Podemos nos fiar naquilo que nossos
sentidos nos dizem sobre a natureza das coisas? O que é a natureza da realidade?
Como é possível conhecer o que conhecemos? Qual a natureza do conhecimento?
Talvez por essa característica perturbadora a tomada de posição em relação a tais
perguntas, ocupe, por vezes, o lugar do silêncio ou da ausência em publicações de
pesquisas.
Este lugar de silêncio e ausência, no entanto, se revela, uma vez que não há
construtos teóricos conceituais que se firmam no espaço silenciado de tais
questões, que por vezes, podem passar despercebido de seus autores, mas estão
pressupostos em suas crenças em termos ontológicos e epistemológicos do seu
fazer científico, mesmo que silenciosamente ou silenciadamente. Digo
silenciadamente porque tais crenças pertencem às ideias que constroem um
paradigma de compreensão de mundo. Em se tratando de ciências há um
paradigma hegemônico que é pressuposto, e dispensa(ria) um discurso a respeito.
Contudo, como vivemos um momento de crise de paradigmas, tais questões
requerem posicionamentos. Há campos de saber em disputas na seara das ciências,
sobretudo, no Campo da Saúde Coletiva.
~ 81 ~
Retomo as pesquisas analisadas para acrescentar esta dimensão de olhar
com o crivo ontoepistemológico. A análise que faço aqui não diz respeito, claro a
uma epistemologia específica para pesquisas com o tema vínculo, mas aborda um
análise crítica do lugar da epistemologia nas pesquisas com enfoque qualitativo que
trazem a subjetividade como aspecto crucial na construção do conhecimento.
A maioria das pesquisas publicadas nas bases de dados onde investiguei
silenciam sobre o paradigma ao qual se filia, ou o referenciam de forma indireta
quando adota construtos teóricos de outros autores para fundamentar seus estudos.
Há um padrão que consiste basicamente em introdução - espaço dedicado a
abordagem ao problema e sua justificativa - objetivo, metodologia adotada, seguida
da apresentação de resultados e conclusões.
Na introdução, geralmente, apresenta-se o contexto da investigação e os
argumentos que justificam a pesquisa, seja com dados epidemiológicos ou
normatizações de alguma Política de Saúde, bem como, também, sintetizam os
conceitos chave que embasam a discussão dos resultados. Como comentei, os
resultados e discussões são sempre referentes a recortes de falas oriundas de um
discurso, obtidos por meio de entrevistas e/ou grupos focais. Raramente há alguma
referência à Teoria ou Escola de pensamento ao qual se filiam para a análise das
falas. Esta análise, no geral, é feita fazendo uma articulação com os conceitos
apresentados na introdução. Desta forma, a análise dos resultados responde, em
geral, questões a respeito de como tal ou tal política tem se efetivado no âmbito dos
serviços da atenção básica, ou de que forma este ou aquele conceito está presente
em determinado serviço, podendo ser qualificado ou enquadrado, por exemplo,
como integral, ou humanizado no sentido do “acolhimento-vínculo-responsabilização-
acesso-longitudinalidade-autonomia”, tal como preconiza esta ou aquela política e ou
construto teórico que a fundamenta.
Há raras exceções a esse padrão. Encontrei dois estudos que explicitaram
seus construtos teórico-conceituais, um já comentado, está amparado no pensar
crítico social de Foucault. A título de ilustração sobre esta análise comentamos
~ 82 ~
agora outro estudo (VIEGAS, S. M. F. at al, 2010) que adota o enfoque qualitativo
e declara adotar os constructos conceituais da sociologia compreensiva, destacando
o pensamento do sociólogo Michel Maffesoli. Em seus resultados, destacamos a
seguinte assertiva:
(...) o cuidado como fazer cotidiano‟ e „acolhimento, vínculo e acesso‟ foram temas incorporados pelos profissionais no desenvolvimento do seu trabalho. (...) o processo de produção do cuidado deve ser pensado em seu microespaço, ressaltando-se o acolhimento, o estabelecimento de vínculo e a responsabilização no sentido de se garantir uma rede de cuidados pertinente e acessível àqueles que necessitem transitar por ela. É preciso que se eliminem as fragmentações presentes tanto na forma de organização dos serviços de saúde quanto nas práticas cotidianas dos profissionais, para se oferecer uma assistência integral, resolutiva e para se humanizarem essas práticas, visando sempre à qualidade de vida da população e à saúde enquanto direito de cidadania. (VIEGAS, at al, 2010, p. 769, grifos nossos).
A questão que se coloca em termos ontológicos e epistemológicos a
respeito desta afirmação é pensar o que significa esta incorporação de que fala os
autores. Do que se fala quando se afirma que tal ou tal coisa foi incorporada no
cotidiano de trabalho do SUS? Incorporar um tema significa incluir no discurso ou
nas práticas? Incluir no discurso garante sua efetividade em termos de ações
cotidianas? A leitura do texto deixa margem para dúvidas a esse respeito. Esta
incorporação aludida está, todavia, provavelmente, presente no discurso dos
profissionais em função da sua fala, captada pelo uso da entrevista, técnica utilizada
pela pesquisa. A questão que se apresenta aqui é sobre a possibilidade de se analisar
mudanças no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde somente em função
do discurso, uma vez que a metodologia utilizada recorreu à entrevista.
Certamente acolhimento-vínculo-acesso são temas presentes no discurso dos
profissionais que atuam no âmbito do SUS, sobretudo na atenção básica, em
função mesmo das políticas que preconizam o SUS. Mas até que ponto é possível
afirmar que acolhimento, vínculo e acesso sejam incorporados no cotidiano, se se
~ 83 ~
tratam de três constructos teóricos distintos, mas que estão colocados juntos,
indistintamente? De que forma um pesquisador deve propor “observar” de maneira
que possa identificar no cotidiano de trabalho dos profissionais de saúde, algo que
expresse ou denote, por exemplo, o vínculo destes com os usuários? O discurso de
tais profissionais seria suficiente? Identificar a presença de tais palavras no discurso
já é algo importante, é preciso reconhecer, mesmo sendo dito de forma indistinta
com outras palavras. Entretanto, a palavra incorporar tem várias conotações, cuja
precisão de significado deve ser exposta com mais clareza e fundamentação
epistemológica.
Esse tipo de compreensão da realidade que denota o plano epistemológico
que fundamenta o artigo em questão não difere dos demais. Os artigos que li, no
geral, esboçam um modo de apreensão da realidade com um viés positivista, apesar
de, alguns, recorrerem a constructos teóricos da sociologia crítica.
Recordo aqui observações feitas em sala de aula pelo professor Eduardo
Diatahy5 em seus comentários sobre o Positivismo quando advertiu que a tradição
positivista do século XIX tem um peso enorme em nossas cabeças. Concordo com o
professor, e compreendo que podemos até citar teorias, e assumirmos uma
ontologia sobre o real, mas o que realmente acreditamos como visão de mundo é
aquilo que traduz o lugar epistemológico em que me firmo para perceber e dizer
sobre o real. Este lugar não pode ser retirado ou trocado como quem troca de
roupas, mas é parte de nós como humanos, como nossas demais crenças o são, e
como tal, faz parte dos nossos esquemas cognitivos de apreensão do mundo de que
somos parte.
Assim, como pesquisadores, acreditar que o real existe fora e independente
de nós, faz parte de um modo positivista de pensar o mundo em que a abstração
formal do pensamento, por vezes, se confunde com a própria realidade, e o que
5 Professor titular da Disciplina: Novas perspectivas em Ciências Humanas, ministrada pelo professor Eduardo Bezerra Diatahy, ofertada pelo Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Anotações pessoais de sala de aula.
~ 84 ~
não pode ser captado por meio da empiria, passa a não existir como verdade para
esse paradigma de ciência.
Denise Gastaldo (2012), pesquisadora da Universidade de Toronto,
fazendo uma análise sobre a pesquisa qualitativa no tocante ao mundo anglo-saxão
ressalta que, apesar do domínio da vertente pós-positivista nas ciências da saúde, a
pesquisa qualitativa vem ganhando espaço. O desafio que a autora apresenta para o
contexto anglo-saxão é o que ela chama de colonização dos métodos quantitativos pela
abordagem pós-positivista. Isso ocorre, esclarece a autora, porque:
Ao entender a relevância da pesquisa qualitativa para explorar e explicar fenômenos sociais em saúde, muitos investigadores quantitativos passaram a utilizá-la como ferramenta metodológica desvinculada das suas origens teóricas (crítico-social ou interpretativista). Esse fenômeno resulta em estudos 'mixed methods', nos quais o qualitativo é descritivo, em geral pouco sofisticado analiticamente, e subordinado a corroborar resultados quantitativos. Outros estudos - o que eu denomino pesquisa qualitativa pós-positivista - são integralmente qualitativos, mas não se vinculam a nenhuma teoria para explicar os processos ou os padrões que constituem o fenômeno do estudo. Em princípio na América do Norte, e agora em muitos países, tais estudos são apresentados com frequência como 'grounded theory' (teoria fundamentada). (GASTALDO, 2012, p. 592-593).
Creio que esta colonização que refere Gastaldo é também uma realidade
presente no contexto latino-americano em muitos aspectos. Digo isso porque a
impressão que resulta após a leitura atenta das pesquisas, não difere dos pontos
levantados pela autora. No geral, as pesquisas nos passaram a ideia de que há uma
busca por parte dos pesquisadores em constatar se a realidade se encaixa ou não, ou
a que distancia esta(ria) o real de uma ideia normativa ou construto teórico aos
quais deveriam ou poderiam se enquadrar. A análise dos resultados não vai além da
descrição, e a pergunta que sempre me faço é o que fazer com tais constatações.
Não compreendemos a produção do conhecimento sem o pressuposto ético de
transformação da realidade. Neste aspecto é preciso refletir até que ponto a
~ 85 ~
realidade pode ser transformada mediante a elaboração de leis ou teorias que,
automaticamente, as pessoas passa(riam) a seguir pelo simples fato delas existirem
como normas ou diretrizes.
As pesquisas que se propõem a avaliar se esta ou aquela proposição,
inserida nas políticas, ou em algum construto teórico, se efetiva ou não, se
incorpora ou não, no âmbito dos serviços, não apresentam questionamentos sobre
o que tem sido feito para que tais políticas sejam incorporadas. No meu
entendimento penso ser necessário saber, ou mesmo, se perguntar pelo o que tem
sido feito tem alguma validade no sentido de incorporação desta ou daquela
premissa ou princípio normativo no âmbito dos serviços de saúde. Um exemplo
para clarear este pensamento seria uma pergunta do tipo: a promulgação da PNAB
ou da PNH em si tem alguma força de transformação da realidade?
Talvez seja importante refletir sobre o entremeio. O que se tem feito para
incorporar esta ou aquela premissa princípio, norma, teoria? Penso que isso seja
algo relevante e válido como um passo anterior para creditar com mais rigor as
pesquisas avaliativas com objetivos similares. Ocorre que uma pergunta desta
natureza não cabe quando se assume posturas epistemológicas que partem do
pensamento formal abstrato para pensar a realidade. É comum no plano
epistemológico, posicionamentos frente ao real que pressupõem uma relação linear
entre teoria e prática, em que primeiro elaboramos as teorias, para depois as
colocamos em prática, seguindo um curso linear e abstrato, e que ainda
desconsidera a subjetividade humana presente, encarando-a como viés ao qual se
credita as falhas do processo.
Muito embora possamos reconhecer o papel histórico fundamental que o
Positivismo assumiu em libertar a consciência humana da religião, e buscar a
liberdade da razão, embora ainda, reconhecendo que o modo de apreensão da
realidade oriundo deste paradigma teve e tem, inegavelmente, relevante
contribuição para a construção das ciências e seus resultados, com um valor
inestimável no campo da saúde, é preciso reconhecer também, seu alcance e
~ 86 ~
limitações em face às críticas que lhe pesam como paradigma científico no atual
contexto.
Não tenho aqui a pretensão de trazer respostas para tais indagações. Tal
assunto, contudo, não desmerece atenção quando se trata do ponto de vista
epistemológico. Para comentar recorro as Notas de Aula6 de uma das disciplinas que
cursei durante as aulas do doutorado, chamada Novas Perspectivas em Ciências
Humanas, ministrada pelo professor Diatahy Bezerra, na pós-graduação da
Sociologia, da Universidade Federal do Ceará.
Este curso foi bastante válido em termos de proposta de estudo e
bibliografia para situar a crise da Sociologia e das Ciências Humanas em geral.
Trabalhamos em sala de aula com um conjunto de Notas de Aula escritas pelo
próprio professor que contribuíram para enriquecer minha compreensão no campo
da sociologia. Transcrevo uma passagem do texto chamado “Constatação da „Crise‟:
dissipação da Poeira”, em que o professor reflete sobre paradigma:
Um paradigma, na sua origem lingüística, significa um modelo ou padrão de flexão do nome, do verbo ou de outra parte flexível da fala. Mais de quarenta anos depois da publicação da obra de Thomas S. KUHN [The Structure of Scientific Revolutions, 1962], que difundiu esse termo no discurso da comunidade científica, ele padece de uma utilização cada vez mais confusa e superficial. Mas o próprio Kuhn, ao longo do seu livro, é hesitante em seu emprego e conceituação. Margaret MASTERMAN, que analisou os múltiplos significados que Kuhn atribui ao termo „paradigma‟, identifica nele pelos menos 21 acepções [«The nature of paradigm», in LAKATOS and MUSGRAVE (ed.): Criticism and the Growth of Knowledge]. Como quer que seja, um paradigma é um misto de pressupostos filosóficos, de modelos teóricos, de conceitos-chave, de resultados prestigiosos de pesquisas que compõem um universo habitual de pensamento para pesquisadores num dado
6 Em suas notas de aula o professor escreve um rodapé esclarecendo o seguinte: “Toda a exposição dos 3 primeiros
tópicos ou capítulos desta IIª Parte destas minhas anotações [pp. 8-21] seguiu quase literalmente o texto de Richard BROWN [A poetic for sociology: a logic discovery for the human sciences.]. De meu, só resta o esforço de traduzir, adaptar, resumir e ordenar, e, às vezes, acrescentar um ou outro comentário pessoal sobre algum pormenor. Seguirei o mesmo procedimento no capítulo seguinte sobre os pontos de vista como distanciamento, como instrumento e como método de reflexão dialética nas Ciências Sociais.”
~ 87 ~
momento do desenvolvimento de uma área de conhecimento ou disciplina. Numa palavra, um paradigma constitui uma Weltanschauung que orienta a atividade da comunidade científica num período de sua história.
Diante das críticas, Kuhn reformulou sua concepção, desdobrando „paradigma‟ em duas noções: exemplares, que são soluções acolhidas como “paradigmáticas” por uma comunidade, em certo momento; e matrizes reguladoras, que são elementos partilhados pelos integrantes da comunidade e que dão caráter “não-problemático” à comunicação entre cientistas (entre elas: generalizações simbólicas, adesão a certas crenças, aceitação de certos valores, receptividade em face de certos exemplares). Se historicamente constata-se a existência de momentos “revolucionários” no desenvolvimento da ciência, isso supõe os momentos de ciência normal, que ocorre quando a comunidade adota uma matriz reguladora: o treinamento por meio de determinados livros-texto, mediante a pesquisa supervisionada, por meio de “normas” de publicação de artigos, etc., proporciona exemplares a cada membro da comunidade, os quais por sua vez condicionam o pesquisador, fornecendo-lhe a imagem do que seria “boa ciência”. A habilidade que o pesquisador adquire ao interpretar e aplicar teorias leva-o a acolher uma concepção do mundo, uma Weltanschauung, que constitui a matriz reguladora (do paradigma). (DIATAHY, E. B. Notas de Aula).
A configuração histórica da Saúde Coletiva como um campo de saber
requer que se aprofunde o debate sobre paradigmas, exigindo, por isso, um
posicionamento epistemológico por parte do pesquisador. Como ressalta o
professor, exige uma habilidade para interpretar e aplicar teorias de forma coerente
com uma concepção de mundo que se constitua como uma matriz reguladora.
Com efeito, estas considerações em torno da noção de paradigma aludem ao
desafio de pesquisar no campo da Saúde Coletiva, uma vez que os seus três núcleos
de saber - Epidemiologia, Ciências Humanas e Sociais em Saúde e as Políticas da
Planificação e Gestão de Sistemas de saúde - demarcam, cada um, uma Weltanschauung
própria.
~ 88 ~
Compreendo que fazer ciência hoje exige uma ética em dupla expressão.
Primeiro não é possível prescindir de uma honestidade intelectual e um profundo
respeito pela construção do saber que se expressa numa postura assumida e
expressa epistemologicamente e ontologicamente na relação do pesquisador e seu
fenômeno de investigação. O contexto atual da ciência em que o modelo cartesiano
não figura como referência hegemônica na construção do conhecimento, convoca
o pesquisador a situar-se epistemológica e ontologicamente.
Em síntese, apesar do necessário intercruzamento dos três aspectos
analisados, como inerentes ao fazer cientifico, o que parece ocorrer na prática, é um
paralelismo entre eles. O plano epistemológico raramente é mencionado. O
semântico carece de densidade e clareza. E o metodológico não logra interligar os
demais na proposição de um desenho de pesquisa que se aproxime do fenômeno
investigado com uma linguagem que faça dialogar os três planos.
Após esta análise uma pergunta é inevitável. É possível o vínculo se
constituir como objeto de pesquisa? Abordo no capítulo seguinte as questões que
se desdobram desta pergunta, apresentando, por conseguinte, a minha posição
epistemológica como pesquisadora deste fenômeno.
~ 89 ~
1.4. O Vínculo como fenômeno de investigação desta pesquisa
UM CONTO PARA COMEÇAR... Os cinco Sábios do Reino de *, de volta depois de larga permanência na República de **, estavam quietos e temerosos ante sua soberana a Rainha: estavam a informar a Rainha sobre a Coisa Rara que existe naquela república. “Dize-nos, ó sábio Prótos, que aspecto tem a Coisa Rara?” perguntou a Rainha ao sábio mais ancião. “A Coisa Rara a que chamam Ciência, ó Majestade, pode registrar e comprimir todos os fatos. Na realidade, a Ciência é um enorme Registro.” Assim falou Prótos. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha roxa de ira. “Como podemos crer que a Coisa Rara seja uma máquina sem pensamento, quando até Nós temos idéias?” Após o que dirigiu-se a Deúteros, o mais velho dos sábios que restavam: “Dize-nos, ó sábio Deúteros: que aspecto tem a Coisa Rara?” “A Coisa Rara, Majestade, não é um registrador passivo, mas sim um atarefado moinho de informação: absorve toneladas de dados brutos e os elabora e apresenta ordenados. Minha decisão é que a Ciência é uma
enorme Calculadora.” Assim falou Deúteros. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha verde de ira. “Como podemos crer que a Coisa Rara seja um autômato se até Nós temos caprichos e fraquezas?” Após o que dirigiu-se a Trítos, o de meia idade: “Dize-nos, ó sábio Trítos: que aspecto tem a Coisa Rara?” “Na há tal Coisa Rara, Majestade. A ciência é um jogo esotérico. Os que o jogam estabelecem suas regras, e as modificam de vez em quando de um modo misterioso. Ninguém sabe por que jogam nem com que fim. Admitamos, pois, que a Ciência, como a linguagem, é um Jogo.” Assim falou Trítos. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha amarela de ira. “Como podemos crer que a Coisa Rara não leva as coisas a sério, quando até Nós somo capazes de fazê-lo?” Após o que dirigiu-se a Tétartos, sábio maduro: “Dize-nos, ó sábio Tétartos, que aspecto tem a Coisa Rara?.” “A Coisa Rara, ó Majestade, é um homem que medita e jejua. Tem visões, tenta provar que são erradas e não se orgulha quando não o consegue. Creio que a Ciência – e repto a todos que me refutem – é um Visionário Flagelante.” Assim falou Tétartos. “Cortem-lhe a cabeça!”, gritou a Rainha roxa de ira. “Este informe é mais sutil que os outros, porém como podemos crer que a Coisa Rara não se preocupa com justificação ou gratificação quando até Nós podemos fazê-lo?” Após o que dirigiu-se a Pêntos, o jovem sábio. Todavia Pêntos, temendo por sua vida, já havia fugido. Fugiu sem parar por dias e noites, até que cruzou a fronteira do Reino de * e chegou ao meu escritório, no qual tem estado a trabalhar desde então. Pêntos terminou de escrever seu volumoso Informe sobre a Coisa Rara, sua Anatomia, sua Fisiologia e seu Comportamento, que eu traduzi para o inglês. Ainda acossado por suas dolorosas recordações dos rudes costumes vigentes no Reino de *, Pêntos deseja permanecer no anonimato. Teme, talvez com razão, que esta exposição acerca da Coisa Rara será pouco apreciada, visto que as pessoas preferem simplificados credos em preto e branco, nos quais possam crer com certeza. A impressão de Pêntos sobre a Coisa Rara é, de fato, muito mais complicada do que os modelos do Registro, do Computador, do Jogo ou do Visionário Flagelante, ainda que reconheça sua dívida para com seus quatro desgraçados e defuntos colegas. Tudo isso explicará ao leitor a razão pela qual o quinto informe sobre a Coisa Rara aparece com um título diferente e sob o nome de outro autor. Esperemos que este expediente salve Pêntos da ira dos zelosos seguidores de
credos simplificados.7
7 Nota acrescentada nas provas: Os quatro Sábios do Reino de * continuam vivos. Prótos e Deúteros sobreviveram porque o carrasco não achou cabeça neles para cortar. Trítos, porque após a execução conseguiu que lhe crescesse um novo crânio por convenção. Tétartos, porque inventou para si um cérebro novo enquanto lhe refutaram o que possuía. [Conto extraído de BUNGE, Mario: La Investigación Científica: su estrategia y su filosofía. Barcelona: Ariel, 1969, pp. 13-14.].
~ 90 ~
A leitura deste conto marcou a primeira aula da disciplina “Novas
perspectivas em Ciências Humanas”, ministrada pelo professor Diatahy, do
Departamento de Sociologia da UFC, e o escolhi para iniciar este capítulo. A
Ciência, “Coisa Rara”, assunto a ocupar as mentes com conjecturas que tentam
defini-la de uma vez por todas é um assunto que perpassa a linha do tempo
humano. E ela, a Coisa Rara, sempre escapa. O tempo é seu aliado, e faz dela nova,
a cada passagem em que a humanidade se renova e se conserva, refazendo-se,
recriando-se.
Em certa passagem do tempo, os olhos dos que passavam o tempo
conjecturando sobre o conhecimento do mundo, depois de muito pensar sobre,
concluíram que faziam ciência, essa “coisa rara”. Houve um consenso entre os
privilegiados que participavam do debate sobre a ciência. A verdade, doravante, não
teria mais um caráter de revelação divina. A ciência seria a tarefa por excelência de
tudo registrar, catagolar, classificar, objetivar, para assim, se chegar à “Verdade”
sobre o que se estivesse buscando. Para obtê-la bastava obedecer a um método,
então, eis a Verdade. Tudo solidamente sustentado pela Razão, faculdade humana
superior.
Os privilegiados que faziam ciência, coisa muito rara, se diziam
Racionalistas. Porém, perguntas são formuladas, e algumas, abalam consensos. Será
que podemos confiar em nossa razão? Como chegamos ao conhecimento
verdadeiro? Todo conhecimento provém do objeto, ou seria o sujeito, que a partir
de uma capacidade inata pode chegar ao conhecimento acerca do objeto? Não
houve consenso! Porém, entre ambas as posições, havia algo em comum. Embora
eles preferissem ver somente suas diferenças, havia a crença comum na existência
de um mundo real, objetivo, em que o sujeito observador, observa o objeto e o
define. Postulavam um Realismo Metafísico equiparando a realidade à ideia que se
constrói do mundo.
~ 91 ~
Todavia, perguntas inquietantes continuaram gerando dissenso. Talvez
possamos conhecer algo porque a nossa experiência dos sentidos codetermina
nossa visão de mundo. A razão humana opera dentro de categorias dadas a priori
de causa e efeito, espaço e tempo. Talvez nunca possamos saber o que são as coisas
em si, mas podemos saber como as coisas se mostram para nós. Restabelecia-se
assim a posse da verdade para quem sabe lidar com a coisa rara.
O tempo começou a dar voz a outras conjecturas. O conhecimento é
construído em nossa ação sobre o mundo, ou seja, quando agimos, nos
construimos ao construir o mundo, incluindo nossas capacidades cognitivas de
espaço, tempo, número. A gênese do conhecimento não provém nem das
estruturas de um sujeito conhecedor, e nem de um objeto que se apresenta ao
sujeito. A elaboração do conhecimento estaria na relação entre o sujeito
conhecedor e o objeto cognocente em função de sua ação no mundo.
E assim, o tempo mostrou que, a depender das perguntas inquietantes, a
coisa rara se redefine. A aliança entre ciência e tempo preserva-se. Mas, e se o que
vemos depende da estrutura do olho que temos? Novas perguntas inquietantes
põem o mundo em muitas perspectivas, e coloca verdades em perigo.
O fazer científico é uma atividade humana complexa. Além do
posicionamento epistemológico é preciso também uma postura ética. Durante as
agradáveis aulas do professor Diatahy, ele comentou o seguinte: O que institui um
saber é um ato de poder8. Para mim, esta assertiva instiga a pensar sobre a coisa rara
compreendendo que a produção da ciência não é separada da sociedade que a
produz. Como qualquer outro fazer humano, a ciência é perpassada pelo mundo
valorativo e histórico dos humanos. Somos filhos de um tempo histórico que
molda nossa percepção do universo e da vida cotidiana.
Durante o curso, em outro interessante artigo e com o sugestivo título
Nietzsche, ou como se livrar do „dogma‟ da Imaculada Percepção, o professor Diatahy nos
8 Anotações pessoais da aula do professor Diatahy “Novas perspectivas em Ciência Humanas”, do Departamento de
Sociologia da UFC.
~ 92 ~
apresentou o pensamento de Nietzsche salientando que a busca do filósofo não se
detinha na formulação de críticas em relação ao conhecimento, no que diz respeito
ao verdadeiro ou falso. A novidade do pensar de Nietzsche não é a crítica aos maus
usos do conhecimento, mas incide no próprio valor que se atribui à verdade,
revestindo-a de uma superioridade, evidenciando assim, a sua posição na hierarquia
de valores. Para o filósofo a oposição verdade/mentira tem origem moral, e aqueles
que defendem arduamente sua posse, na verdade, anseiam pelo usufruto dos efeitos
de tal posse. Por outro lado, aqueles que têm a vida como um valor máximo,
seguem indiferentes, ou apenas hostilizam essas querelas. Para Nietzsche o
conhecimento é um instrumento, dentre outros, que não deve se sobrepor ao valor
da vida, uma vez que seus efeitos residem no engano.
Livrar-se do dogma da imaculada percepção é realmente uma frase muito
pertinente, sobretudo, quando mergulhada no pensamento de Nietzsche que
reposiciona o valor da verdade. A percepção humana revestida de poderes de
chegar à verdade assume realmente características dogmáticas e nos convida a
heresia. As contribuições do biólogo Maturana e do físico David Bohn nos trazem
outras contribuições para nos livrarmos do dogma da imaculada percepção do
ponto de vista da biologia e da física. As contribuições desses dois autores
comentadas na sequência, trazem fundamentos para uma epistemologia, e
colaboram para situar o vínculo como um fenômeno de investigação nesta
pesquisa.
1.4.1. Como conhecemos o que conhecemos?
Em nosso cotidiano temos a tendência de querer viver em um mundo de
certezas e de solidez. Adotamos cotidianamente a crença de que as coisas são
exatamente como as vemos. E para alguns, somente há uma alternativa correta,
uma perspectiva de visão verdadeira. Mas, como conhecemos o que conhecemos?
~ 93 ~
Maturana e Varela pensaram sobre esta questão em seu clássico A Árvore do
Conhecimento, livro em que defendem a tese que o mundo não nos é pré-existente,
nós o criamos à medida que interagimos com o mundo de forma coletiva. Os
autores argumentam que não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse „fatos‟ ou
objetos lá fora, que alguém capta e introduz na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é
validada de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível „a coisa‟ que surge
na descrição. (MATURANA & VARELA, 2001, p. 31).
O conhecer depende da estrutura do sujeito que conhece, e o modo de
conhecer se enraíza no ser, em função de sua organização. Embora os seres vivos
sejam diferentes em suas estruturas, são iguais em temos de sua organização
autopoiética, que os caracterizam como seres autônomos. O que é peculiar para os
seres vivos, afirmam eles, é sua organização ser tal que seu único produto são eles mesmos.
Donde se conclui que não há separação entre produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade
autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo específico de organização. (MATURANA
& VARELA, 2001, p. 57).
Uma Teoria do conhecer para os autores deveria ser aquela em que o
próprio fenômeno do conhecer gera a pergunta que leva a conhecer. A Teoria de
Santiago, como ficou conhecida a tese de Maturana e Varela, dispensa ponto fixo ou
qualquer ancoragem para afirmações de validade. Os autores explicam que não é
possível entender o funcionamento do nosso sistema em sua dinâmica estrutural
quando supomos, simplesmente, que há um mundo fixo e objetivo. Por outro lado,
quando não afirmamos a objetividade do mundo corrremos o risco do puro
relativismo, e fica complicado compreender como a nossa experiência se acopla ao
mundo.
Os biológos chilenos se afastam tanto do idealismo como do objetivismo,
afirmando a regularidade do mundo sem quaisquer referências independente de nós
mesmos, que forneçam garantias de estabilidade absoluta. Para eles o mundo que
construimos cotidianamente é uma mistura de regularidade e mutabilidade, típico
da experiência humana. Segundo afirmam, o conhecer não se dispõe como uma árvore como
~ 94 ~
um ponto de partida sólido, que cresce gradualmente até esgotar tudo o que há para conhecer.
Assemelha-se mais à situação do rapaz na „Galeria dos Quadros de Escher‟9, que reproduzo
abaixo:
2 - Galeria de Quadros, de M. C. Escher
Se abrimos mão da atitude de simplesmente aceitar nossa capacidade de
conhecer como algo dado a priori, e nos perguntamos como isso é possível, então
adentramos na possibilidade ou não das explicações sobre a experiência. É o que
propõem Maturana e Varela. Para eles o conhecimento do conhecimento nos
obriga a abrir mão das certezas e da crença de que elas são provas de verdade
obrigando-nos a pensar o mundo que cada um vê, como um mundo, e não, como o
mundo.
Habitualmente nos acostumamos a traduzir a percepção como capacidade
de captarmos uma realidade externa a nós, mediante um processo representacional.
Em geral, tanto a neurologia como a psicologia conotam a percepção como a
9 Maurits Cornelis Escher nasceu no final do século XIX e foi um artista gráfico holandês e era conhecido pela execução de transformações geométricas (isometrias) nas suas obras e por suas xilogravuras, litografias e meios-tons que tendem a representar construções impossíveis, preenchimento regular do plano, explorações do infinito e as metamorfoses - padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maurits_Cornelis_Escher.).
~ 95 ~
capacidade do sistema nervoso de um organismo computar objetos externos, a
partir da captação de informações por seus órgãos sensoriais, em sua interação com
o meio. Para Maturana esse modo de compreender a percepção, para além de um
valor metafórico ou didático, revela uma postura epistemológica implícita com
alguns pressupostos. Primeiro, a existência de uma realidade externa e
independente do organismo; segundo, o observador é capaz de conhecer essa
realidade como resultado de suas interações com ela; e terceiro, as categorias
descritivas utilizadas em suas explicações, tais como: objetos, relações, estrutura,
pertencem a essa realidade, e não ao que o observador faz ou diz.
Ocorre que se alteramos a biologia do organismo, se alteramos a sua
estrutura, também alteramos a sua percepção. Daí é que Maturana se pergunta: se a
captação de informação depende do instrumento, que base temos para afirmar que aquilo que o
instrumento mostra é algo que podemos dizer ser uma característica de um objeto independente
desse mesmo instrumento? (MATURANA, 1999, p. 69). Para Maturana o operar de um
sistema nervoso capaz de captar informações e formar uma representação do meio
revela um paradigma explicativo inadequado em termos biológicos e
epistemológicos, porque pressupõe que as mudanças sofridas por um organismo
em sua interação com o meio são determinadas pelo meio.
Segundo afirma Maturana, o meio não especifica o que acontece em um
sistema vivo, e sim, desencadeia, em sua estrutura, mudanças determinadas por sua
própria estrutura. Há uma congruência estrutural do organismo com o meio, de
cuja conservação depende a própria vida do organismo. Ora, se o organismo é um
sistema determinado estruturalmente, então, é o próprio organismo quem
determina qual configuração estrutural do meio desencadeia ou não, em si próprio,
alguma mudança estrutural, em sua interação com o meio. Portanto, é impossível
para um observador caracterizar tal configuração estrutural, independentemente, ao
que se passa ao organismo, em consequência de sua interação com o meio. Um
observador somente pode caracterizar alguma contingência como sendo algum
objeto para o organismo, isto é, algo independente dele, através das mudanças de
~ 96 ~
condutas que ocorre em função de alguma perturbação. Para Maturana, a palavra
percepção consiste na configuração que o observador faz de objetos perceptivos, mediante a
distinção de cortes operacionais na conduta do organismo, ao descrever as interações desse
organismo no fluir de sua correspondência estrutural com o meio. (MATURANA, 1999, p.
72).
Há uma harmonia entre o organismo e o meio configurada no fluir de
mudanças estruturais do organismo na conservação de sua adaptação, da qual
depende essa correspondência estrutural organismo-meio. Esse fluir se aplica
também a nós humanos! Para Maturana a explicação da percepção no contexto do
determinismo estrutural dos sistemas vivos invalida qualquer tentativa de dar conta do fenômeno
da cognição (incluindo a linguagem) com noções que implicam a denotação ou conotação do domínio
da realidade independente das distinções do observador. (MATURANA, 1999, p. 67).
Por fim, Maturana nos apresenta algumas implicações dessa noção de
percepção em termos epistemológicos. A primeira é a impossibilidade da distinção
que comumente fazemos sobre ilusão e percepção. Se concebemos a percepção
como capacidade de captar a realidade fora e independente do observador, decorre
disso, que a ilusão seria uma experiência que se vive como se fosse uma percepção
decorrente de uma conexão inadequada com a realidade externa. Ocorre que,
constitutivamente, não há essa captação. A distinção entre ilusão e percepção se dá
somente em referência a uma outra experiência, diferente da que se qualifica com
essa distinção, argumenta Maturana.
Na verdade, a segunda implicação disso, é que o mundo dos objetos
perceptivos que flui na convivência dos organismos, incluindo o próprio
observador, somente são objetos perceptivos quando são configurados pelas
condutas dos organismos, quando operam conservando sua correspondência
estrutural mútua. Tanto é assim, argumenta o biólogo, que o mundo em comum
surge na e pela comunidade do viver. Esse mundo de objetos perceptivos se
configura em função da linguagem, que por sua vez, implica em um modo de viver
na recursividade de coordenações de condutas, próprias da comunidade do viver.
~ 97 ~
Em função disso é que Maturana afirma que o mundo das descrições e explicações do
observador é um mundo de modos de convivência gerador de objetos perceptivos, o qual o observador
surge como um deles ao surgir na linguagem. (MATURANA, 1999, p. 73).
E por fim, ainda, o biólogo esclarece que o fato de cotidianamente
manejarmos na linguagem objetos como sendo entidades estruturalmente
independentes do observador, não contradiz essa explicação dada à percepção. Isso
porque os objetos surgem com a linguagem, e em função disso, consistem em
coordenações de ações em uma comunidade de observadores, configurando uma
espontaneidade do fluir das nossas experiências em sua coerência operacional
intrínseca. Nestas circunstâncias, esclarece ele, o determinismo estrutural que respeitamos e
utilizamos em nossa explicação pertence ao operar com objetos perceptivos como expressão das
coordenações operacionais da experiência do observador, e não viola as condições epistemológicas de
nossa explicação, nem valida um acesso a uma realidade independente. (MATURANA, 1999,
p. 74).
Para responder à pergunta “como é que conhecemos?” é preciso, pois reconhecer
que nós humanos somos o que somos, ao sermos seres humanos, argumenta
Maturana (2009). Ora se aceitamos que nossa capacidade de conhecer não é algo
dado a priori, então, precisamos de uma explicação. Explicar implica propor uma
reformulação da experiência que queremos explicar de forma aceitável para o nosso
interlocutor. É o que nos diz o autor acrescentando que nenhuma proposição
explicativa é uma explicação em si, mas depende da aceitação do observador, que
pode aceitar ou rejeitar uma explicação.
Com essas argumentações Maturana busca separar duas atitudes em relação
ao observador e sua capacidade de conhecer, que para ele, se mostram como dois
caminhos de reflexão, bem como, dois caminhos de relação humana. Diz ele, se não
nos fazemos a pergunta pela origem das capacidades do observador, nos comportamos, na verdade
como se tivéssemos a capacidade de fazer referência a entes independentes de nós, porque não
~ 98 ~
dependem do que fazemos.(MATURANA, 2009, p. 42). A este caminho explicativo, o
chileno chama de Caminho da objetividade-sem-parênteses.
Por outro lado, quando aceitamos a pergunta pelas origens da possibilidade
de conhecer estamos, no caso, aceitando as perguntas: como é que posso, como
observador, fazer as afirmações que faço? Como é que posso dar-me conta, se é que me dou conta,
do que realmente é, e também equivocar-me? Maturana esclarece que ao aceitarmos tais
perguntas, reconhecemos que se alteramos a nossa biologia, também alteramos
nossa capacidade cognitiva de conhecer. Em sua explanação do assunto o biólogo
distingue o erro da mentira. Quando dizemos: cometi um erro, no momento em que
afirmei o que agora considero um erro, aceitava a afirmação honestamente como
válida, algo que agora reconheço que não é assim. Dessa forma, o erro ou o
equívoco, são sempre a posteriori. Isso ocorre porque o erro é, na verdade, uma
experiência desvalorizada em função de outra que se considera, indubitavelmente,
válida.
Nesta altura Maturana se pergunta como se dá o erro. Essa é uma questão
interessante em função da hipótese de se considerar que temos a capacidade de
acesso a uma realidade independente de nós, na observação ou reflexão. O biólogo
argumenta que não é possível para nós distinguirmos entre ilusão e percepção na
experiência. Diz ele, Ilusão e erro são qualificativos que desvalorizam uma experiência a
posteriori por referência a outra experiência que se aceita como válida: a pessoa não se equivoca
quando se equivoca. (MATURANA, 2009, p. 44). E se assim o é, a questão sobre o
que conotamos quando falamos de conhecer, se torna premente.
Com essa indicação da impossibilidade de distinguirmos entre erro e ilusão
na experiência humana Maturana nos convida a colocarmos a objetividade entre
parênteses no processo de explicar. Com isso ele apresenta um segundo caminho,
distinto do primeiro – a objetividade-sem-parêntese. Neste caminho explicativo
operamos na aceitação que existe uma realidade independente de nós que valida
~ 99 ~
nosso conhecer e nosso explicar, e que fundamenta a universalidade e objetividade
do conhecimento.
No caminho explicativo da objetividade-sem-parêntese sou sempre irresponsável na negação do outro, pois é „a realidade‟ que o nega, não eu; no caminho explicativo da objetividade-entre-parêntese ninguém está intrinsecamente equivocado por operar num domínio de realidade distinto do que eu prefiro. Se outro ser humano opera num domínio de realidade que não me agrada, posso opor-me a ele ou ela, posso inclusive fazer algo para destruí-lo ou destruí-la, mas o farei não porque o mundo que ele ou ela traz consigo esteja equivocado num sentido absoluto ou transcendente, mas porque este mundo não me agrada. (MATURANA, 2009, p. 50).
Quando, ou talvez seja melhor, se operamos no caminho explicativo da
objetividade-entre-parêntese não há verdades absolutas, nem verdades relativas, e muitas
verdades convivem em domínios distintos. Contudo, isso instala desconforto ao
destituir-nos a posse de um saber como verdade objetiva irrefutável. E retorno ao
comentário do professor Diatahy em sala de aula sobre a ciência quando afirmava
que “o que institui o saber é um ato de poder”. Ao comentário, poderíamos acrescentar:
um ato de poder que se firma em suposta posse da verdade. O professor fala de
instituição de saber, cujo condicionante é a “posse” da verdade que será sempre
uma suposta posse. Neste ponto, a postura epistemológica em coerência com o seu
fazer, é imprescindível para um agir ético. Para o biólogo o fato de saber que
sabemos nos leva a uma ética, cujo ponto central é:
(...) assumir a estrutura biológica e social do ser humano equivale a colocar no centro a reflexão sobre aquilo de que ele é capaz e que o distingue. Equivale a buscar as circunstâncias que permitem tomar consciência da situação em que se está – qualquer que seja ela – e olha-la a partir de uma perspectiva mais abrangente, a partir de uma certa distância. Se sabemos que nosso mundo é sempre o que construímos com os outros, cada vez que nos encontrarmos em contradição ou oposição com outro ser humano com o qual desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser reafirmar o que vemos do nosso próprio ponto de vista. Ela consistirá em apreciar que nosso ponto de vista é o resultado de um
~ 100 ~
acoplamento estrutural de domínio experiencial, tão válido quando o de nosso oponente, mesmo que o dele nos pareça menos desejável. Caberá, pois a busca de uma perspectiva mais abrangente, de um domínio experiencial em que o outro também tenha lugar e o qual possamos construir um mundo juntamente com ele. (MATURANA & VARELA, 2001, p. 267-268).
O fazer científico é uma atividade humana exigente, não somente em
termos cognitivos, mas em termos sócio-afetivos porque se trata não só de
construir, elaborar, criar algo, mas também envolve se deparar com perguntas do
tipo, por que faço, para quem faço, em benefício do quê, ou de quem, faço.
Maturana nos apresenta ricas ideias sobre o conhecimento e sua
possibilidade em termos da nossa biologia argumentando que o mundo que temos
resulta de uma cocriação, em que o ser e o fazer, em função de nossa organização
autopoiética, são inseparáveis porque se fazem em acoplamento estrutural entre o
nosso organismo e o meio em que vivemos. Logo, o conhecimento não tem
nenhum ponto de partida sólido que se expande e se acumula. Maturana nos trouxe
valiosas contribuições para nos compreendermos como humanos no processo de
construir conhecimento, mas o que dizer deste mundo que co-criamos? Como
compreender um mundo em que não nos separamos dele? Como conceber a
realidade de maneira a não fragmenta-la nos separando dela? Não se trata como
vimos de negar a objetividade do conhecimento, tampouco, cair no relativismo.
1.4.2. O mundo em holomovimento.
O atomismo tem sido uma ideia estruturante para o pensamento cientifico.
Doutrina elaborada pelos gregos no século V a.C. e retomada por Demócrito (460
a.C. -370 a.C.) acredita que a matéria é formada por átomos, partículas minúsculas,
indivisíveis e eternas, que unindo-se e separando-se por meio de forças mecânicas
~ 101 ~
determinam o nascimento e desagregação de todos os seres. Esta ideia central teve
consequências para a forma como compreendemos o real e nossa relação com o
mundo, sobretudo, com a era moderna da hegemonia do pensamento cientifico.
O atomismo gera uma visão de mundo mecanicista em que o relógio, com
sua precisão e predição mecânica, é sua grande metáfora explicativa. Tudo que há
no universo, inclusive os humanos, são entendidos na perspectiva de maquinário. A
consequência dessa visão de mundo é a fragmentação generalizada da realidade que
divorciou ciência, arte, ética, espiritualidade, bem como, dividiu o conhecimento
em disciplinas que não se interligam.
David Bohm em seu livro A Totalidade e a Ordem Implicada tece valiosas
contribuições sobre a realidade em holomovimento, ideia que se distancia da
metáfora maquínica. Segundo ele a fragmentação da realidade nos leva a uma
espécie de confusão mental e se torna um problema que interfere na nossa
percepção da realidade, que se torna ilusória na medida em que a compreendemos
de forma fragmentada. Esta forma de ver o mundo leva os humanos a agirem e a
fracionar a si mesmos e ao mundo, adverte Bohm.
Tal fragmentação, todavia, encontra-se difundida no nosso modo de
pensar. O físico pondera que sempre fora adequado um pensar que divide e separa
as coisas de maneira a reduzir os problemas em proporções controláveis.
Entretanto, esclarece ele, o processo de separabilidade foi levado além dos limites
sobre o qual este tipo de pensamento pode operar de forma adequada.
Bohm (1980) argumenta que produzimos a fragmentação em função do
hábito quase universal de equivaler o conteúdo do pensar à descrição do mundo
como ele é, isto é, consideramos o nosso pensar em direta correspondência com a
realidade objetiva. Bohm defende a existência de uma totalidade ininterrupta como
um movimento fluente, indiviso e sem fronteiras, na qual não cabe uma relação
mecanicista. Para ele, a ideia de uma substância fundamental separada e
independente, é uma abstração útil somente até um certo domínio limitado. Ele
~ 102 ~
defende que o universo inteiro deve ser entendido como um todo indiviso, sendo
que a análise de partes separadamente não deve ter qualquer valor fundamental. O
holograma é segundo ele, a melhor analogia que se aproxima do real. Vejamos o
que ele nos argumenta em relação a isso:
A ordem implicada tem sua base no holomovimento, o qual, como já vimos, é vasto, fecundo e se acha num estado de fluxo interminável de dobramento e desdobramento, com leis a maioria das quais apenas vagamente conhecidas, e que talvez sejam, em última análise, até mesmo incognoscíveis em sua totalidade. Logo, ele não pode ser apreendido pelos sentidos (ou por nossos instrumentos) como algo sólido, tangível e estável. Não obstante, como foi indicado anteriormente, a lei global (holonomia) pode ser suposta tal que, numa certa subordem, dentro de todo o conjunto da ordem implicada, há uma totalidade de forma que possuem um tipo aproximado de recorrência, estabilidade e separabilidade. Evidentemente, essas formas são capazes de aparecer como os elementos relativamente sólidos, tangíveis e estáveis que elaboram o nosso “mundo manifesto”. A subordem especial e distinta acima indicada, que é a base da possiblidade desse mundo manifesto, é então, com efeito, aquilo que se entende por ordem explicada. (...) A ordem implicada [é] um processo de dobramento e desdobramento que ocorre no espaço tridimensional ordinário. (...) Tudo o que é importante aqui é que se descobre, mediante um estudo das implicações da teoria quântica, que a análise de um sistema total num conjunto de partículas independente existente, mas interagente colapsa descortinando uma via inteiramente nova. (BOHM, 1980, p. 245-246).
A noção de totalidade e de ordem implicada nos oferece uma explicação
mais coerente com as propriedades quânticas da matéria do que a visão
mecanicista. Bohm coloca que precisamos abandonar a visão de um mundo
constituído por objetos, algo do tipo “blocos de construção”, e passarmos a ver o
mundo em termos de eventos e processos. Isso requer um novo modo de olhar
para as partículas subatômicas, que inclua na própria matéria, também, os humanos,
com seus cérebros e instrumentos de observação.
~ 103 ~
Bohm defende uma nova forma de insight, uma nova teoria que chama de
Totalidade Indivisa em Movimento Fluente. Esta visão consiste em olhar para o mundo como
um todo indiviso, no qual todas as partes do universo, incluindo o observador e seus instrumentos
se fundem e se unem numa totalidade. (BOHM, 1980, p. 31). Não haveria, portanto, uma
separação sujeito-objeto, de forma que o observador humano se encontra
radicalmente imbricado neste processo.
Assim é que mente e matéria são apenas aspectos diferentes de um mesmo
movimento total e ininterrupto. Esta ideia do físico se coaduna com a ideia de
acoplamento estrutural apresentada por Maturana. Para o físico é preciso ter claro
que o atomismo ainda é uma forma válida de insight, considerando que há vários
padrões que podem ser abstraídos desta totalidade indivisa no movimento fluente,
e que tais padrões possuem uma autonomia e estabilidade relativa, fornecidas pela
lei universal do movimento fluente. Ocorre que a partir dessa forma de insight há
mais nitidez sobre os limites dessa autonomia e estabilidade. E podemos assim, em
contextos específicos, simplificar certas coisas, tratando-as como se fossem
autônomas e estáveis, mas em momentos específicos e para fins específicos. Isso
nos permite livrar-nos da armadilha de olharmos para nós mesmos e o mundo de
forma separada.
Em função dessa forma de ver o mundo Bohm alerta para a necessidade de
considerarmos qualquer teoria como uma forma de insight, dentre outras. As
nossas teorias não são descrições da realidade como ela é. Argumento válido
inclusive para sua própria teoria, esclarece o físico. Ele defende que as teorias são
formas de insight sempre em transformação e que cabe ao leitor ver por si mesmo
se tal forma de insight é claro ou obscuro, e quais são seus limites e contribuições.
Considero de fundamental importância os argumentos e conclusões do
físico em favor de uma percepção de mundo como uma totalidade indivisa em
holomovimento, que certamente tem implicações científicas, sociais e políticas. Seu
pensamento, construído do ponto de vista da física se coaduna com o modo de
pensar de Maturana que constrói suas ideias a partir da biologia. Os autores nos
~ 104 ~
convidam a uma perspectiva de perceber e tecer ideias, formas de insight sem cair
na ilusão que há um mundo fora de nós e que podemos apreendê-lo
irrefutavelmente. E isso é possível em função de um acoplamento estrutural
próprio de nossa organização biológica em sua relação com o meio como uma
totalidade em holomovimento cujos desdobramentos produz tudo o que há
inclusive a nós mesmos.
As ideias de Maturana e Bohm nos permitem a possiblidade de um diálogo
genuíno com o outro porque nos convidam mais a comunhão de ideias do que à
sua defesa; possibilitam mais a construção de novos insights pela inclusão, do que
argumentação e refutação as ideias de outrem. Permitem lidar com o erro, a
verdade, a objetividade e a subjetividade em uma perspectiva mais ampla, sem
precisar excluir ou negar, e sim, co-criar. A exclusão e/ou negação de ideias do
outro é próprio da ilusão a respeito de um mundo inteligível que existe
independente de nossa estrutura bio-psico-socio-cultural, que podemos apreender,
ter a posse de alguma verdade e usufruir do lugar de poder gerado por tal
apropriação.
1.4.3. Vínculo, o humano vínculo, pode ser objeto?
Para uma visão mecanicista do mundo baseada no atomismo e na separação
sujeito/objeto o vínculo é invisível, obscuro, incognoscível. Afortunadamente, a
visão complexa de mundo, de um mundo em holomovimento, nos permite
perceber os fenômenos em (inter)relação, compreender nossa percepção em co-
criação com uma realidade que não contém fragmentos, e sim fluxos.
A ciência clássica fincou suas bases na objetividade, na crença de um
universo constituído de objetos isolados submetidos a leis universais. Nesta
perspectiva, o objeto existe de maneira positiva e, como esclarece Morin, não há
~ 105 ~
aqui participação do observador/conceituador com as estruturas de seu
entendimento e as categorias de sua cultura. Ele [o objeto] é substancial; constituído de
matéria, tendo plenitude ontológica, ele é auto-suficiente no seu ser. O objeto é então uma entidade
fechada e distinta que se define isolando em sua existência, suas características e suas propriedades,
independentemente de seu ambiente. Quando mais o isolamos experimentalmente, melhor
determinamos a sua realidade „objetiva‟. (MORIN, 2003, p. 124). A partir desta visão se
impõe uma explicação, para alguns, científica, para outros, reducionista, esclarece
Morin.
Como sabemos, esse modo de fazer ciência que impulsionou a física foi
inspiração para outras ciências que seguiram o mesmo caminho, de igualmente
isolar seu objeto do ambiente e do observador, e tentar explica-lo a partir dos
elementos mais simples que o constituem, e das leis gerais às quais se submete.
Assim fez a biologia fazendo da célula sua unidade elementar. A Genética elegeu o
genoma. A Sociologia, a família como célula da sociedade... Contudo, Morin nos
fala que a “partícula” não sofre apenas uma crise de ordem ou de unidade, mas de
identidade, uma vez que não mais se pode isolá-la retirando-a de suas interações,
ela pulsa hesitante, ora como onda, ora como partícula. Ela perdeu toda substância,
clareza e distinção, e até mesmo, toda a realidade. Não se pode defini-la sem aludir
para as interações das quais ela participa, e nenhum caractere ou qualidade sua pode
ser induzido em função de características próprias. Com efeito, tais caracteres, que
configura traços próprios, só podem, no átomo, por exemplo, ser compreendidos
quando, e se, referimos à organização do sistema. Por conseguinte, argumenta
Morin, a ideia de sistema vivo herda simultaneamente parte da animação do ex-princípio vital e
parte da substancialidade da ex-matéria viva. Enfim, a sociologia tinha, desde a sua fundação,
considerado a sociedade como um sistema, no sentido forte de um todo irredutível a seus
constituintes, os indivíduos. Sendo assim, em todos os horizontes, físicos, biológicos,
antropossociológicos, se impõe o fenômeno-sistema. (MORIN, 2003, p. 128).
O vínculo é um fenômeno complexo, relacional, multidimensional,
sistêmico e, irredutível à substancialidade. Só pode ser compreendido na e pela
~ 106 ~
relação a partir de uma visão sistêmica. Como humanos, se abrangemos toda a
comunidade em termos planetários, estamos todos interligados, e há aqui, uma
relação dialógica de oposição/complementaridade. Em face dessa elasticidade
extrema, de que maneira, ou mesmo seria válido, compreender o vínculo entre os
profissionais de saúde e as pessoas que usam os serviços na atenção básica do SUS?
Recorro à ideia de sistema de Morin. Bem, o fenômeno que investigo se
torna questão em um contexto específico: a atenção básica do SUS. Contexto em
que devo (re)inserir o fenômeno em termos de ecossistema. Isso é diferente de
retirá-lo do contexto em termos de objeto. E mais diferente ainda de perceber um
conceito/fenômeno presente ou não na realidade empírica. Não se trata da
impossível tarefa de fazê-lo objeto nos moldes da ciência clássica, e sim,
compreendê-lo em seu movimento fluido interrelacionado com o contexto que o
gera. Trata-se aqui de buscar compreendê-lo a partir de uma visão sistêmica e não
fragmentada da realidade no sentido de separação sujeito/objeto.
O conceito clássico de objeto nos abre apenas dois caminhos: ou somente
ao real, ou somente ao ideal. O conceito de sistema marca uma diferença em
relação a essa conceituação. A noção de sistema nos remete tanto ao real, como ao
sujeito, porque o coloca, ele próprio, imerso no sistema. É um conceito construído
na e pela transação sujeito/objeto, e que não resulta na eliminação de um pelo
outro. Para isso, é preciso alguns cuidados, como adverte Morin. Tomar o sistema
por objeto real elimina o sujeito, e acaba por desembocar em um realismo ingênuo.
Por outro lado, tomar o sistema por um esquema ideal acaba por eliminar o objeto,
e também o próprio sujeito, uma vez que, no modelo ideal se considera, não a
estrutura subjetiva do sujeito, e sim, seu valor de eficiência na manipulação e na
previsão. Morin quando afirma que,
O sistema remete profundamente ao real, ele é mais real porque muito mais enraizado e ligado à physis que o antigo objeto, quase artificial no seu pseudo-realismo; ao mesmo tempo, ele remete muito profundamente ao espírito humano, ou seja, ao sujeito, ele próprio imerso, culturalmente, social e
~ 107 ~
historicamente. Ele requer uma ciência física e também uma ciência humana. (...) Por esta via sistêmica, o observador, excluído da ciência clássica, e o sujeito, enucleado e jogado no lixo da metafísica, voltam ao próprio coração da physis. Daí tal ideia cujos rastros seguiremos: não há mais physis isolada do homem, ou melhor, isolável de seu entendimento, de sua lógica, de sua cultura, de sua sociedade. Não há mais objeto totalmente independente do sujeito. A noção de sistema assim entendida conduz o sujeito não apenas a verificar a observação, mas a integrar a auto-observação ao sistema. (MORIN, 2003, p. 177-179).
Segundo Morin (2002) tudo que era objeto tornou-se sistema. Tudo que
era, até mesmo, uma unidade elementar, inclusive e, sobretudo, o átomo, virou
sistema. Na verdade, todos os objetos-chaves das ciências, seja a física, a biologia, a
astronomia, a sociologia constitui um sistema. Fora dos sistemas, há apenas a
dispersão particular, constata Morin quando afirma que o nosso mundo organizado é um
arquipélago de sistemas no oceano da desordem. (MORIN, 2003, p. 128). O autor, porém,
ao ressaltar que tudo o que é matéria (o átomo, a molécula) virou sistema, e tudo o
que é social também foi concebido como sistema, chama atenção para a noção de
que essa generalidade não é o bastante para se compreender o lugar epistemológico
da ideia de sistema, e alerta para o cuidado de não se cair numa visão reducionista e
simplificadora. Para Morin, o universo organizado tem um caráter polissistêmico e
se define como:
(...) uma impressionante arquitetura de sistemas se edificando uns sobre os outros, uns entre os outros, uns contra os outros, implicando-se e imbricando-se uns nos outros, com um grande jogo de concentrações, plasmas, fluidos de microsistemas circulando, flutuando, envolvendo as arquiteturas de sistemas. Assim, o ser humano faz parte de um sistema social, no seio de um ecossistema natural, que está no seio de sistema solar, que está no seio de um sistema galáctico: ele é constituído de sistemas celulares, que são constituídos de sistemas moleculares, que são constituídos de sistemas atômicos. (MORIN, 2003, p. 128).
~ 108 ~
O autor esclarece que não é o caso de se conceber uma teoria geral
abrangendo átomo, a molécula, a estrela, a célula, o organismo, o artefato, a
sociedade, mas, à luz de uma complexidade sistêmico-organizacional, considerar o
átomo, a estrela, a célula, o organismo, a sociedade..., enfim, todas as realidades,
sobretudo, a nossa. A partir disso, conclui Morin, o sistema não é uma palavra-chave
para totalidade, mas uma palavra-raíz para a complexidade. (MORIN, 2001, p. 274). Em
um sistema, ao invés de objetos, essências ou substâncias, temos a organização; ao
invés de unidades simples ou elementar, temos unidades complexas; ao invés de
agregados formando corpos, temos sistemas de sistemas de sistemas...
Morin apresenta também algumas distinções que permitem categorizar os
sistemas, para em seguida fazer alguns esclarecimentos importantes. Assim,
podemos usar a palavra sistema dos seguintes modos:
- sistema, para todo sistema que manifeste autonomia e emergência com relação ao que lhe é exterior;
- subsistema, para todo sistema que manifeste subordinação em relação a um sistema no qual ele é integrado como parte;
- suprasistema, para todo sistema controlando outros sistemas, mas sem integrá-los em si;
- ecossistema, para o conjunto sistêmico cujas inter-relações e interações constituem o ambiente do sistema que aí está englobado;
- metassistema, para o sistema resultante das inter-relações mutuamente transformadoras de dois sistemas anteriormente independentes.
O autor esclarece que as fronteiras entre tais termos não são nítidas e
podem ser substituíveis entre si de acordo com a focalização ou o recorte que o
observador quer fazer na realidade sistêmica em consideração. Assim o caráter
sistêmico ou subsistêmico ou metasistêmico vai depender da escolha do
observador. Dessa forma introduz-se aqui a incerteza que pode dominar a
caracterização. Sempre vai haver na extração de um sistema algo de incerto e
arbitrário, isto é, sempre há uma decisão, uma escolha que é do sujeito que observa.
~ 109 ~
Morin lembra que o sujeito intervém na definição de sistema através e por seus interesses, suas
seleções e finalidades, ou seja, ele traz ao conceito de sistema, pela sua determinação subjetiva, a
superdeterminação cultural, social e antropológica. (MORIN, 2003, p. 176).
As ideias de Maturana e Bohn nos retiraram da ilusão de poder nos
posicionar como sujeitos frente ao real, ou perante algum objeto a ser apreendido
em um mundo existente fora e independente da nossa existência. E Morin nos
apresenta um método para lidar com a realidade complexa que co-criamos, e na
qual estamos imersos como parte do(s) sistema(s).
Esta ideia de sistema nos auxilia pensar que no ecossistema em que o
vínculo é questão, ele não possui um ponto de partida ou início, mas pertence a
uma realidade em holomovimento, cujo desdobramento surge em função de nossa
interrelação com ela, como parte do sistema que somos.
Reitero a ideia de que não se trata aqui de torna-lo objeto a partir do
conceito clássico de ciência; verificando a pertinência do conceito à realidade, ou
buscando apreendê-lo na realidade empírica. Trata-se de colocar uma espécie de
contorno no sistema. Quando Morin nos fala de sistema, subsistema, supra-
sistema, ecossistema e metassistema esclarece que não há fronteiras nítidas entre
estes termos, que são intercambiáveis entre si de acordo com o ângulo de visão, a
4 - Ecosistema – Serviço de Atenção Básica do SUS
~ 110 ~
focalização e o recorte que se quer imprimir. O caráter do que é sistêmico ou
subsistêmico resulta de seleções, escolhas e autonomia de decisões, bem como, de
condições culturais e sociais no qual se insere o observador/conceituador. Para
Morin, o mesmo „holon‟ pode ser considerado ecossistema, sistema, subsistema, de acordo com a
focalização do olhar do observador. (MORIN, 203, p. 176).
Há sempre algo de arbitrário no recorte do sistema, sendo justo aí que se
insere o sujeito com suas escolhas, interesses e decisões. O sistema requer,
portanto, a presença de um sujeito que o isole do burburinho polissistêmico, como
denomina Morin. Desta forma, o sistema não remete apenas à realidade empírica
no que ela pode ser irredutível para o sujeito, mas também, alude às estruturas do
próprio sujeito e ao contexto cultural e social em que se insere e, também, aos
interesses do conhecimento científico.
Assim, para caminhar nesta senda duas consequências decorrem deste
caráter subjetivo de recorte do sistema, segundo adverte Morin. A primeira é o
princípio da incerteza em relação à determinação do sistema ao seu contexto, e a
segunda, é o princípio da arte. Sobre isso diz o autor,
O recorte do sistema pode ser um talhamento no universo fenomenal, que será dividido em sistemas arbitrários, ou, ao contrário, a arte do açougueiro que corta seu boi seguindo o traçado das articulações. A sensibilidade do sistemista será como a do ouvido absoluto que percebe as competições, simbioses, interferências, sobreposições dos temas na mesma corrente sinfônica em que um espírito brutal conhecerá apenas um tema rodeado de barulho. O ideal sistemista não poderia ser o isolamento do sistema, a hierarquização do sistema. Ele está na arte aleatória, incerta, mas rica e complexa como toda arte, de conceber as interações, interferências e encadeamentos polissistêmicos. As noções de arte e ciência, que se opõem na ideologia tecnoburocrática dominante, devem aqui, como por todo lugar onde há realmente ciência, se associar. (MORIN 2003, p. 177).
Para mim, esse talhamento no universo fenomenal implica pensar o vínculo
buscando compreendê-lo em termos de recursão, retroação e co-produção com
~ 111 ~
outros elementos que compõem o (eco)sistema de que é parte. Isso evidencia outro
modo de pensar e perceber o entrelaçamento da rede em que o profissional da
saúde e as pessoas que demandam, ou não, os serviços, se inserem, exigindo que
ambos se coloquem como tecelões dos nós que compõem as inter-relações e
consubstanciam o vínculo se desdobrando em função do ecossistema em que se
insere. Enfim, talhar o vínculo como um circuito deste ecossistema não significa
isola-lo, ao contrário, significa compreendê-lo em suas inter-retro-relações com os
demais subsistemas, cuja organização faz do (eco)sistema o que ele é, em um dado
contexto em que se apresenta.
Morin nos ensina que para operarmos o pensar complexo não basta
associar noções antagônicas percebendo o que elas têm de concorrente e
complementar, é necessário ainda considerar o próprio caráter da associação,
porque não se trata somente de relativizar estes termos entre si. O que é crucial,
segundo as palavras do autor, é a sua integração no seio de um metassistema que transforma
cada um desses termos no processo de um circuito retrativo e recursivo. (MORIN, 2003, p. 460).
O vínculo aqui em foco se torna questão em função de um contexto, ou
melhor, do (eco)sistema de que é parte. Fora deste sistema, provavelmente,
adquiriria outras características que o reconfiguram em função de suas inter-retro-
relações, e se reorganizam configurando outros (eco)sistemas com características
próprias.
E, ainda, em função dessa visão sistêmica, uma vez operado um recorte no
(eco)sistema, para que faça sentido, necessariamente, implica a inclusão do sujeito
observador/conceituador no sistema, uma vez que o sistema remete não só a
realidade empírica, mas alude, concomitantemente, à empiria em sua co-produção
com o sujeito e a realidade de que é parte. Concordo com Morin (2003) quando diz
que o método se torna crucial apenas quando reconhecemos a presença de um
sujeito pensante, quando se considera que o conhecimento não resulta de
acumulação de dados ou informações, mas de sua organização viva; quando a
~ 112 ~
lógica se destitui de seu valor absoluto; quando a sociedade e a cultura, em vez do
tabu da crença, permitem a dúvida da ciência; quando se entende que a teoria estará
sempre aberta e inacabada, e que no conhecimento haverá sempre incertezas,
ignorâncias e interrogações. A teoria é possibilidade de tratar o problema, e só
ganha vida com a plena atividade mental do sujeito. E é justamente essa
intervenção/inserção do sujeito que dá ao termo método, o seu papel
indispensável.
1.4.4. A Senda do Método.
Há uma frase do poeta espanhol de Sevilha, Antonio Machado,
recorrentemente, referida pela comunidade científica para dizer do método:
caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar. Geralmente, apesar de tal frase
ser bastante utilizada, e até concordarmos com ela, exigimos certezas ou pelo
menos algo que nos dê alguma segurança para se por a caminho. Apresento um
pouco mais dos versos do poeta:
Caminante, son tus huellas el camino y nada más;
Caminante, no hay camino, se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino, y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino sino estelas en la mar.
Cuatro cosas tiene el hombre que no sirven en la mar: ancla, gobernalle y remos,
y miedo de naufragar. (Antonio Machado10)
10 Dois versos do poeta espanhol Antonio Machado, XXIX e XLVII, que integram os Proverbios y cantares em Campos de Castilla.
~ 113 ~
O desafio, primeiramente, foi enfrentar o medo do naufrágio sabendo que
velas, remos, âncoras, bússolas e o próprio medo, não me serviriam no percurso
desta senda. E depois, foi necessário seguir sem fazer do medo obstáculo
intransponível, mantendo a esperança de que, tendo aceitado fazer o caminho ao
caminhar, talvez, ao chegar ao final da estrada, eu pudesse olhar para traz e
perceber o caminho percorrido, identificando as estrelas que antes não via, quando
a estrada estava à minha frente, e que delas nada saberia, se pelo caminho, não
tivesse afundado meus pés.
Os versos do poeta traduzem muito bem o meu espírito ao percorrer a
senda que se descortinou para mim ao escolher este tema de pesquisa. Sim, fui com
medo! O pouco que tinha comigo, que talvez pudesse me servir de bússola, tive
que largar no meio do caminho para seguir. A frase do poeta não foi retórica, foi
literalmente vivida por mim. Com os ventos da incerteza soprando frio segui,
apenas com a esperança de ver alguma estrela ao entrar no sistema para percorrer
seus circuitos.
Morin em seu primeiro livro da série O Método I. A Natureza da Natureza
afirma que não traz um método, e sim, parte em busca dele com uma recusa
consciente da simplificação disjuntiva e com a vontade de não ceder ao
pensamento simplificador. Percorrendo a senda, também me esforcei para isso.
Em seu caminho do Método, o filósofo confessa que parte com um
princípio de conhecimento que respeita e reconhece o não-idealizável e o não-
racionalizável, e o que escapa às regras. Ele defende que precisamos de um princípio de
conhecimento que não respeite, mas revele o mistério das coisas. (MORIN, 2003, p. 36). Morin
nos alerta para inutilidades de algumas coisas ao percorrer o caminho, e fala da
necessidade de nos livrarmos delas. Primeiro, ele diz ser preciso deixar as idealizações
que nos fazem crer que a realidade pode ser absorvida pela ideia, e que o real é
inteligível. Segundo, é necessário abrir mão da racionalização, convite sedutor que
~ 114 ~
nos move a encerrar a realidade na ordem e na coerência de um sistema,
dispensando quaisquer transbordamentos e buscando justificativas racionais para a
existência dos fenômenos da realidade. E as normatizações com suas sugestões
acalentadoras de eliminar o estranho, o irredutível, o mistério. Também elas, devem
ficar pra traz.
Para seguir precisei me livrar de tais coisas reconhecendo sua inutilidade em
mim. Livrar-se de coisas como essas das quais Morin fala não significa,
simplesmente, se desfazer de algo como quem se livra de roupas ou objetos que
carregamos conosco. Equivale sim, a arrancar a própria pele, raspar a cabeça,
exorcizar fantasmas, caminhar sem proteção nos pés...
O que levaria eu comigo para percorrer esta senda? Não havia instrumentos
pré-formulados, não era o caso desta pesquisa. Olhando hoje para o caminho que
percorri, considero que contei com duas coisas muito valiosas.
A primeira foi o pensamento complexo que me ajudou a me repensar o
tempo todo, reformulando o meu pensamento por meio dos operadores cognitivos
que propõe, e que me auxiliaram, desde o início, tecer, revisitar e amadurecer as
ideias aqui apresentadas. O pensar complexo me ajudou a perceber o caminho que
se descortinava para mim como um novo cheio de possibilidades inspiradoras, me
ajudando a seguir apesar das incertezas do caminho. Algo que aprendi em minha
existência como estudante e aprendiz da vida foi que o saber é algo que nos
transforma, quando nele, nos implicamos. Nesta perspectiva o pensar complexo faz
todo o sentido para mim nas palavras de Morin, quando nos diz que nunca é
afastando o conhecente que se vai rumo ao conhecimento complexo (...) É a partir da ideia de
circuito e de metassistema que precisaríamos conceber um conhecimento que produza ao mesmo
tempo auto-conhecimento. (MORIN, 2003, p. 467).
O modo de conhecer e de pensar a partir da complexidade é também,
necessariamente, um novo modo de agir com possibilidades de auto-conhecimento
que reconhece a desordem, o caos e o mistério das coisas, e advoga um princípio
~ 115 ~
de ação que não ordena, mas organiza, não manipula, e sim, comunica, não dirige,
anima. O método que construí durante a pesquisa se volta ao começo em um
movimento espiralado do aprender a aprender e do aprender aprendendo. E o que
sou agora é mais, e é menos do que era quando iniciei a jornada. Tudo isso acalmou
o medo natural que emerge em nós frente ao desconhecido.
A segunda coisa valiosa que me auxiliou seguir nesta senda foi a
Sociopoética que me serviu de inspiração e me ajudou a fabricar escadas e pontes
que precisava para prosseguir no caminho. Foi durante o meu mestrado em
Educação pela UFC, que por ocasião de um curso/vivência oferecido pelo
Programa, ministrado por Jaques Gauthier, que conheci a Sociopoética. Considerei
a metodologia muito interessante em seus princípios. E durante aqueles anos do
mestrado tive outra oportunidade de vivenciar a metodologia quando acompanhei a
pesquisa sociopoética de uma colega como auxiliar voluntária no intuito de auxiliar
e aprender. A vivência da metodologia ficou na minha memória e me retornara
como inspiração nesta pesquisa de doutorado. Retomei as leituras e percebi a
coerência da proposta sociopoética com o caminho que precisava seguir.
A Sociopoética é uma metodologia de pesquisa que nasceu na encruzilhada
entre a Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire), a Análise Institucional (Renè
Lourau) e a Educação Simbólica ou Escuta Mito-poética (Renè Barbier). Segundo
Gauthier, a Pedagogia do Oprimido fez brotar o coração da sociopoética quando se
propõe trabalhar com o grupo-pesquisador. Da Análise Institucional a Sociopoética
herdou a análise, a auto-análise e a auto-crítica como dispositivos de pesquisa para
tornar visível o que está escondido no cotidiano, sempre por meio de uma análise
crítica da realidade social, trazendo à tona desejos e poderes que agem de maneira
velada na vida social. Da Escuta Mito-poética ou Educação Simbólica referenda a
poeticidade da existência humana porque reconhece que criamos a vida social
incessantemente. Cabe ao pesquisador escutar falas e silêncios que dão ritmos e
cores aos processos de criação em cada ser, pois são deles que se derivam os
processos de conhecer. Segundo Gauthier:
~ 116 ~
Na poética (tal como existe na palavra „sociopoética‟) da pesquisa e da aprendizagem encontramos a diferença do outro sob a forma de criação imaginária. O outro é realmente sujeito da pesquisa, uma vez que ele cria uma realidade que não existia antes da sua expressão-criação poética. A nossa hipótese é que os seres humanos estão sempre se fazendo e desfazendo, que a humanidade neles é precisamente este perpétuo fazer e desfazer. A sociopoética, ao considerar todos e cada um como poeta, pesquisa o que é humano no ser humano, sua plasticidade, seu poder de devanear, de encontrar-criar, cada dia, a realidade. (GAUTHIER, 1999, p. 14).
O que encontrei de muito valioso na Sociopoética e que me serviu de
inspiração foi os cinco princípios que a fundamentam. Gauthier apresenta-os em
seu livro “Sociopoética. Encontro entre Arte, Ciência e Democracia na Pesquisa em Ciência
Humanas e Sociais, Enfermagem e Educação”. Para esta pesquisa busquei respeitar estes
princípios em função de sua coerência com a proposta desta pesquisa.
O primeiro princípio da Sociopoética consiste em reconhecer todo o corpo como
fonte de conhecimento. O corpo pensa! De acordo com Gauthier (1999) é na
comunidade que esse corpo pensa, é em interação com as pessoas e com o entorno
que ele pensa, se pensa e se (re)pensa. A sociopoética reconhece o corpo e no
corpo em interação uma preciosa fonte de conhecimento. É um conhecer
relacional que considera a emoção e o sentimento encarnado como forma de
conhecer o mundo. Nas palavras de Gauthier a emoção é a raiz vital de todo
pensamento. Assim, a ideia mais abstrata, o conceito mais distanciado, a teoria mais crítica,
sempre existem sob dois aspectos: uma emoção, no lado físico, corporal, do nosso modo de estar no
mundo, e uma imagem dinâmica no lado mental. (GAUTHIER, 1999, p. 23).
Estas ideias da Sociopoética corroboram com esta pesquisa e se coadunam
com o pensamento de Dalmásio (2011) quando define e diferencia emoções e
sentimentos. Emoções são complexos programas de ação, e os sentimentos que
sempre decorrem das emoções são percepções compostas, relacionadas com o que
ocorre no corpo e na mente, quando tem uma emoção em curso. Sentimentos são
~ 117 ~
imagens de ações, e não as ações propriamente ditas. Tal distinção instaura um
diálogo entre os autores confluindo para a ideia de que o corpo pensa e se constitui
como rica fonte de conhecimento. Gauthier defende que é preciso usar nossa
potência emocional como potência de pensar, e assim, nos tornarmos mais artistas
em processos de pesquisar e aprender. Para ele o momento da emoção corresponde
ao momento em que tocamos nossa força vital e reencontramos a nossa origem
expressa na nossa história coletiva e individual.
Reconhecer o corpo como fonte de conhecimento traduz um modo de
pesquisar coerente com esta investigação. Os vínculos humanos por sua raiz afetiva
se instauram na memória do corpo, estão encarnados, e por isso, podem adquirir
substancialidade consciente com nossa capacidade de representação simbólica.
Considerar o corpo como fonte de conhecimento é algo muito pertinente para o
que buscava compreender. Para compreender o vínculo é importante considerar
este registro corporal, nem sempre acessível à consciência por meio da fala
elaborada.
O segundo princípio da Sociopoética apresentado por Gauthier (1999) é
pesquisar com categorias e conceitos oriundos das culturas dominadas e de resistência. O interesse
sob o qual se erige a metodologia sociopoética é buscar encontrar o que foi
silenciado, o saber que está nas raízes e que dorme. Des-cobrir o pensamento
silencioso e silenciado, vivo, intenso e rico de significados. Como nos diz Gauthier,
há os saberes da luz, já consagrados na luz da Razão. E os saberes escuros, da lama,
reconhecidos somente por culturas antigas, culturas dominadas (africana, indígena)
e obrigadas, em função da colonização, a não reconhecer seus saberes como
válidos, a considerar sua expressão cultural como inferior em relação à cultura
dominante europeia ocidental. São os saberes práticos das mulheres, vistos e não-
vistos como saberes, porque misturados de afetividade e confinados a mero fazer;
saberes de sobrevivência das culturas africanas, saberes populares marginalizados e
desqualificados. Gauthier reconhece a emoção como um canal pelo qual, também,
~ 118 ~
geralmente, se expressam tais saberes. A pesquisa é sempre uma troca de saberes
entre o pesquisador e o grupo-pesquisador no qual se insere.
A produção de sentido para sociopoética é sempre contextualizada e
desvirtuada de quaisquer abstrações sem vida. O conhecimento produzido propõe
outro tipo de abstração, mais contextualizado, dita abstração por sobre-contextualização.
Isso porque propõe cada um mergulhar no contexto de sua vida, da sua experiência
singular, da sua memória e desejos inscritos no seu corpo. Tal abstração é possível
em função da escuta sensível da fala do outro sobre si mesmo, da fala do outro
sobre o que ele mesmo expressou de sua própria fala, de sua própria experiência.
Isso é possível, graças também, à criatividade artística, onde cada um expressa, e
escuta, também, do outro, o sentido de sua expressão, numa escuta plural, por
vezes, contraditória, pela visão e integração das diferenças, e pela polifonia da vida.
Uma escuta que inclui os saberes não apartados de outras fontes de saber, não
restritos somente à razão, mas inclui a emoção, o sentimento e a intuição como
suas fontes.
Este segundo principio também se coaduna a esta investigação direcionada
para busca de compreender o que está silenciado, adormecido. Há os saberes não
reconhecidos, relegados e destituídos de sua legitimidade, como bem reconhece
Gauthier. Ora, não são assim os saberes oriundos do sentir? O que há de mais
negado em função da cisão mente/corpo que instaura a modernidade ocidental?
Neste aspecto todos vivemos a opressão que nega a legitimidade do sentir. Como
afirma Toro a afectividad es una de las funciones psicológicas más perturbadas y reprimidas
dentro del mundo relacional, social, educacional e político actual. (TORO, 2012, p. 31).
Na perspectiva aqui delineada a opressão, o silencio que aqui se alude não é
“privilégio” de classe social, cultura, etnia ou gênero etc. A legitimidade do sentir
como expressão da identidade humana, como um dos aspectos mais negados e
silenciados no mundo ocidental, se apresenta como uma enfermidade da
civilização. E a opressão aqui também tem a face da modernidade colonialista que
~ 119 ~
mascara a relação opressor/oprimido tornando-a mais complexa porque não a
reduz aos aspectos econômicos e de escolaridade. Este princípio da pesquisa
sociopoética adquire legitimidade quando refiro ao contexto desta pesquisa e os
sujeitos que dela participam, quais sejam, os profissionais de saúde e usuários da
atenção básica do SUS.
O terceiro princípio da sociopoética segundo Gauthier (1999) é considerar
os sujeitos pesquisados como responsáveis pelos conhecimentos produzidos. O centro-vivo da
sociopoética, como defende o autor, é o grupo-pesquisador que se torna uma exigência
ético-política da sociopoética. As pessoas pesquisadas são convidadas a compor um
grupo-pesquisador. Isto vai além de compreendê-las somente como sujeitos
produtores de dados e/ou informações, para quem o sentido final da pesquisa,
acaba, por vezes, escapando-lhes quase que totalmente. Sobre esse ponto Gauthier
apresenta importantes reflexões. O que esta pesquisa trará para esses sujeitos? Que
efeitos, favoráveis, úteis trará ou não? Ficará nas gavetas? Sua utilidade se restringe
ao uso acadêmico do pesquisador e se prende à lógica individualista utilitária? A
pesquisa terá um sentido partilhado, dialogado com o grupo produtor dos dados?
Estas eram questões também muito cara para mim.
A partir de seus princípios a sociopoética busca criar dispositivos para
romper com estas práticas ao transformar os sujeitos da pesquisa em grupo-
pesquisador, outorgando-lhes poder na produção e realização da pesquisa até o seu
final, com a socialização, que assume a forma criativa que o grupo sugerir. Os
pesquisados são co-pesquisadores, parceiros dos facilitadores da pesquisa, tanto em
termos de construção, como de decisões sobre a pesquisa. Isso implica um planejar
cuidadoso sobre a entrada no grupo sujeito da pesquisa. A escolha do tema que
gere interesse por parte do grupo em aprender e/ou gerar conhecimento, a
produção, a análise e a interpretação dos saberes que serão gerados pela pesquisa,
sua socialização e teorização. Na sociopoética importa, pois uma co-construção ou
co-produção, ou ainda, co-criação de conhecimentos.
~ 120 ~
Este princípio, embora à primeira vista, pareça não ter coerência com a
proposição desta pesquisa, em função do tema previamente escolhido, adianto aqui
que, ao longo do seu percurso metodológico, o tema passou a ser também de
interesse para o grupo pesquisador. Reconheço aqui que a proposição e o desejo de
saber sobre o tema foi meu, inicialmente, até compor o grupo pesquisador.
Entretanto, reconheço que passou a ser curiosidade também do grupo pesquisador.
Primeiro porque era um tema inerente ao seu processo de trabalho e, segundo, por
tratar de um assunto nunca antes debatido entre eles.
O quarto princípio de acordo com Gauthier é a criatividade de tipo artística no
pesquisar, no conhecer e no aprender. Para o autor a sociopoética transgride a linha
divisória entre arte e ciência. Ela solicita as pessoas sua expressão sobre o não dito,
o escondido, seja no pensar, seja no sentir por sob a camada da pele, e presente no
corpo. Durante o processo de pesquisar o grupo pesquisador é sempre convidado a
um relaxamento que propicia baixar o nível de controle consciente para que possa
ter espaço para expressão de saberes imersos, congelados, enterrados na história
coletiva e individual do grupo-pesquisador. Esse relaxar é o caminho para
expressão da imaginação que também fez parte do nosso caminho como grupo
pesquisador. A criatividade também faz parte da sociopoética na criação e
proposição de dispositivos com potencial capaz de mediar a produção de
conhecimento por parte do grupo pesquisador.
O quinto e último princípio da sociopoética é o sentido humano e espiritual da
pesquisa e da construção do conhecimento, como apresenta Gauthier (1999). Esse
princípio é o que afirma o posicionamento ético da sociopoética sintetizando os
anteriores. Para a sociopoética o grupo-pesquisador é construído e o pesquisar
junto é um aprender mútuo em que o pesquisador facilita o processo de
aprendizagem criando dispositivos e proporcionando um espaço-tempo para
construção de conhecimento.
~ 121 ~
As experiências vividas se constituem como troca em que a visão crítica e
autocrítica, em um espaço de autonomia e liberdade, desvela novos saberes e abre
para construção de outros. Gauthier esclarece que a espiritualidade no pesquisar toma
uma forma iniciática através da descoberta de que nosso saber é abertura para um não saber
radical. Já, o respeito fiel, carinhoso, da palavra dos outros, nas nossas análises e experimentações,
era uma preparação para este não saber. (GAUTHIER, 1999, p. 71). Para o autor esse
não saber é duplamente crítico. Primeiro porque essa atitude respeitosa, imbuída de
uma escuta sensível, proporciona distanciamento crítico em relação às demais falas.
E assim, ele não se deixa abusar por estes conhecimentos novos, alvo de críticas e
questionamentos, tanto em termos institucionais como espirituais.
Estes cinco princípios da pesquisa sociopoética foram fundamentos e
inspiração para os passos do caminho que aqui trilhei. Reconheço como
pesquisadora que ciência, arte, filosofia e espiritualidade não se separam. E mais, há
uma preocupação em (re)criar a democracia na produção do conhecimento.
Gauthier afirma que a sociopoética não é uma nova teoria científica, inclui uma
teoria da pesquisa e do ensino/aprendizagem. Sobre isso, ele declara que:
A sociopoética é uma construção, talvez feita de pedras, talvez de águas, talvez de lama, talvez de chamas, talvez de magmas, talvez de ventos e nuvens e relampados, mas uma construção sim, explicitamente filosófica. Instituir um grupo-pesquisador, convidar culturas de resistência para participarem da leitura de dados produzidos pelo corpo inteiro, a partir de técnicas artísticas intensificando as potências do inconsciente, da emoção, das sensações, de intuição e da razão, questionar o sentido da pesquisa, todo isso é, além de um posicionamento filosófico, uma prática específica da filosofia. Assim torna-se o grupo-pesquisador um filósofo coletivo, um pensador consciente de si, um fragmento de espaço-tempo na vida popular, que participa da criação filosófica. (GAUTHIER, 2005, 25).
O filosofar para sociopoética não é tarefa reservada somente para
especialistas, mas deita suas raízes no “plano da imanência”. Este, segundo o autor,
é o plano em que mergulha o grupo-pesquisador, tendo na escuta sensível e na
~ 122 ~
escuta-fala sensível dos facilitadores e dos membros do grupo, a condição para um
desvelar e analisar os problemas da vida social no plano do pensamento.
Os cinco princípios apresentados permitem um modo de tradução de
problemas formulados do plano da imanência para o plano de consistência, explica
Gauthier. O plano da consistência é um lugar onde os conceitos filosóficos são
(re)criados, (re)formulados, destruídos, (re)organizados em redes e nós, tecendo
uma composição artística criadora, desveladora da realidade. A produção de
conhecimento pelo grupo pesquisador ocorre justo na passagem do plano da
imanência para o plano da consistência em que se dá a criação dos confetos -
conceitos misturados com afetos, explica Gauthier. Os confetos se constituem como
crítica aos conceitos instituídos. Isso porque traçam linhas de desterritorialização,
linhas de fuga que expressam novos desejos e desvelam a atividade filosófica.
Para Petit e Adad (2009) a elaboração do pensamento pelo grupo-
pesquisador mediante a produção de confetos é um diferencial da sociopoética e
convergem para o objetivo de potencializar o grupo pesquisador para ser capaz de
criar pensamento. Nesta perspectiva a sociopoética se constitui como criadora,
potencializadora, reveladora e analisadora de confetos. Os confetos, que podem ser
inéditos ou não, são elaborados mediante a transferência do grupo-pesquisador do
plano da imanência para o da consistência; plano em que não dependem mais do
seu contexto de nascimento, e passam a se relacionar com outros conceitos.
Gauthier esclarece que podemos dizer que raramente, antes, a não ser em experiências
literárias e artísticas radicais, encontrou-se tal possibilidade de criação de confetos. Expressamos
isso ao dizermos que “o corpo pensa”. Talvez seja esse momento a mais rica e específica
caracterização da sociopoética. (GAUTHIER, 2005, p. 56).
A auto-análise e a análise coletiva das implicações de cada participante do
grupo-pesquisador com o tema da pesquisa tem potencial para gerar processos de
conscientização, um conhecimento crítico de si e da instituição em que se inserem.
Desse modo, a pesquisa sociopoética implica criar e proporcionar momentos em
~ 123 ~
que a imaginação possa entrar em cena. Para tanto recorre a diversas técnicas e/ou
dispositivos que instigam a imaginação do grupo pesquisador e fazem brotar os
mitos coletivos e individuais, que dão significado ao cotidiano e desvelam os
saberes submersos.
A arte e a imaginação foram os mediadores a que recorri como quem usa
redes de pescar ideias/pensamentos, ideias/sentimentos silenciados. O pensar
complexo e os princípios da sociopoética se constituíram como o jeito de caminhar
com coerência por esta senda que me serviram ora como bússola, ora como escada,
ora como barco para percorrer a trilha para a qual me direcionei.
~ 124 ~
PARTE 2
São as perguntas que nos movem,
bem mais que as respostas.
São os ventos da dúvida
que alçam voos aos pensamentos
E a imaginação são as asas
que os conduzem a planar pelos ventos
E, então, tudo se mostra
em outras perspectivas.
(Idalice)
~ 125 ~
2.1. A Saúde Coletiva e a necessidade de um Pensamento Complexo.
É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. (Edgar Morin)
A Saúde Coletiva, como vimos, configura-se como campo de saber em
meio a querelas e contradições de ideias e ideais. Bourdieu (1976) desnuda a
produção científica como uma atividade humana mergulhada em um campo
marcado por disputas. Trata-se, na verdade, de uma arena em que se desenrola um
jogo político em que se busca o prestígio do poder social cujo usufruto confere
monopólio de determinadas competências científicas, outorgadas por agentes que
legitimam socialmente tal autoridade. Esse campo, segundo Bourdieu, produz suas
formas específicas de interesses que afastam, desde logo, do equívoco de confundir
competência científica com a pura capacidade técnica destituída do poder
simbólico, ou seja, a legitimidade da competência científica não se deve a pura
competência técnica.
Bem, se na produção científica a legitimidade não se equipararia à
competência técnica, certamente é preciso compreender os fatores que legitimam as
pesquisas como um saber válido voltando-se para a conduta ética dos que
trabalham na produção científica. A pesquisa qualitativa no campo de saber da
Saúde Coletiva não desfruta de total legitimidade, mas certamente, menos por falta
de competência técnica na produção científica com enfoque qualitativo, do que pela
(in)compreensão epistemológica da subjetividade como parte inerente da produção
do conhecimento como um processo subjetivo e objetivo ao mesmo tempo.
A crise de paradigma datada do início do século passado anuncia hoje que
já não se pode produzir conhecimento reduzindo-o somente ao que é quantificável,
com base em certezas absolutas e postulados de verdades. Segundo Bourdieu
(1976) há uma predisposição em relação às teorias das ciências em preencher
funções ideológicas no campo científico quando universalizam propriedades
~ 126 ~
próprias de estados particulares desses campos. É o caso do Positivismo segundo
relata o autor, afirmando que este “confere à ciência o poder de resolver todas as questões que
ela coloca (desde que cientificamente colocadas) e de impor, pela aplicação de critérios objetivos, o
consenso sobre suas soluções; inscreve assim, o progresso na rotina da „ciência normal‟ e age como se
pudesse passar de um sistema para outro − de Newton a Einstein, por exemplo − pela simples
acumulação de conhecimentos, pelo refinamento das medidas e pela retificação dos princípios.
(BOURDIEU, 1976, p. 21).
Em face das críticas já não é possível o pesquisador se manter numa
posição de neutralidade, expressa pela impessoalidade do discurso científico
clássico, do qual o sujeito desaparece e, ao fazê-lo, se instala como portador da
verdade e, por meio de uma posição de “faz-de-conta-que-não-estou-aqui”, investe-se de
um espírito ptolomaico que se acredita no centro, ao identificar-se com a
objetividade soberana.
A ideia de sistema se impôs na Biologia já no final do século XIX e
intensificou-se na década de 60 do século passado com a noção e ecossistema que
opera com uma ideia de conjunto das interações entre populações vivas, que
inserida no mundo geofísico, constitui uma unidade complexa em sua organização.
A Biologia se amplia e enriquece hoje com as contribuições da ecologia profunda.
Os atuais conhecimentos da Física nos apontam que todos os elementos
subatômicos apresentam um comportamento dual apresentando-se, ora como
onda, ora como partícula. Tais concepções esclarecem a impossibilidade de apartar
observador e fenômeno observado, tanto numa realidade microfísica como
cosmofísica. O observador humano está tão intimamente inserido em todo o
processo do conhecimento que é, ele próprio, que contribui para determinar a
natureza dos fenômenos. Não há, portanto, uma separação sujeito-objeto, e o
observador humano se encontra radicalmente imbricado neste processo.
O fazer científico neste século já não pode ignorar a presença do caos e da
desordem e, tampouco, o fato de que tudo o que há no universo constitui sistemas
~ 127 ~
bem articulados, e menos ainda suas posições ideológicas. É inegável hoje que a
complexidade se apresenta como infra-estrutura do universo, e que precisamos
elaborar novas formas para pensar que articulem o geral e o específico.
Segundo o biólogo Maturana (1998, 1999, 2004) nossa condição humana é
decorrente do modo como nos relacionamos uns com os outros e com o mundo
que construímos enquanto vivemos. Na origem, tudo se conecta, e o mundo tal
como o percebemos, é uma coautoria dos humanos em suas relações recíprocas
entre as demais espécies, vivas e não vivas. Em seu livro clássico A Árvore do
conhecimento, escrito em parceria Francisco Varela, defende como tese central de co-
construção do mundo ao longo da coexistência humana e com os demais seres
vivos com os quais compartilhamos nosso processo vital. A argumentação central
do livro é que o mundo não nos é pré-existente, nós o construímos, e por ele
somos construídos de forma compartilhada com os demais seres vivos em um
movimento de co-dependência, que não exclui a autonomia, mas coloca autonomia
e dependência em relação dialógica e circular.
É preciso reconhecer como o faz Mariotti que a complexidade não é um conceito
teórico e sim um fato da vida. (2002, p. 87). Tudo está em relação com tudo, nada está
isolado e coexiste com tudo. Os fenômenos existem intricados em suas
circunstâncias e a dualidade se insere na totalidade e lhe confere dinamismo e
elegância. Reconhecendo a complexidade como um fato da vida é necessário, pois,
um pensar complexo. Mas do que trata isso? O que seria um Pensar Complexo, e em
que medida se relaciona com a Teoria da Complexidade?
Edgar Morin em seu livro Cabeça bem feita. Repensar a Reforma. Reformar o
Pensamento apresenta ideias que articulam o Pensar Complexo às Teorias da
Complexidade. Morin reconhece de início que a hiperespecialização nos impede de
ver o global porque o fragmenta e, também, o essencial, porque o dilui. As ciências
compartimentadas em disciplinas trouxeram a vantagem de divisão do trabalho, e
também a inconveniência da superespecialização, que produz, junto com o
~ 128 ~
conhecimento, ignorância e cegueira. Um mundo globalizado com problemas
multidimensionais e planetários torna seus problemas impensáveis, sem uma
inteligência capaz de perceber o contexto e a complexidade dos fenômenos.
É necessário, segundo Morin (2003a), um conhecimento pertinente, um
modo de conhecer que situe a informação em seu contexto, uma capacidade de
pensar que ao invés de separar e compartimentar, articule os saberes para propor
explicações, novas compreensões e soluções. Como defende o autor é necessário
integrar os saberes, primeiro em função de sua gigantesca produção, cuja expansão
escapa ao controle humano e, segundo, porque a limitação do conhecimento
fragmentado restringe seu uso, ao técnico, e assim, se perde da essência da vida
humana, se tornando estéril para lidar com os problemas globais.
Morin defende que a necessidade do pensamento complexo se desenha em
função de três grandes desafios: o desafio do global, o do complexo e o da
expansão descontrolada do saber (MORIN, 2003a). Em função deste cenário o
autor francês argumenta que ao invés de acumular o saber é necessário desenvolver
uma aptidão geral para tratar os problemas e dispor de princípios organizadores que nos
permitam ligar os saberes conferindo-lhes sentido. E o que seria essa aptidão geral de
que fala Morin? Ao contrário do comumente aceito, quando mais se desenvolve a
inteligência geral, maior será sua capacidade de tratar problemas específicos, pois as
aptidões gerais da mente é que permitem um desenvolvimento de competências
específicas. Para Morin uma cabeça bem feira é uma cabeça apta a organizar os conhecimentos
e, com isso, evitar sua acumulação estéril. (MORIN, 2003a, p. 24).
Para enfrentar a fragmentação dos saberes e a separação dual
sujeito/objeto, corpo/mente, objetivo/subjetivo é preciso conceber o que os une,
recolocar os objetos em seu contexto natural de onde foi isolado. A progressão do
conhecimento, de acordo com a psicologia cognitiva, salienta Morin, resulta menos
da sofisticação, formalização e abstração do que da aptidão para integrar o
conhecimento em um contexto geral. Isso não apenas favorece a progressão do
~ 129 ~
conhecimento, como também, nos ajuda a perceber que o contexto modifica o
objeto e/ou ajuda a explicá-lo de outra maneira. Esse modo de pensar é que
configura um pensar complexo.
Morin nos esclarece que o pensamento complexo é aquele que não apenas
descobre novas perspectivas de explicação em função da articulação que resulta da
aptidão geral, mas também, é capaz de operar com inter-retro-ações entre os
fenômenos e o contexto no qual se inserem, e compreender como as partes se
relacionam com o todo em reciprocidade, reconhecendo a unidade na diversidade,
e vice-versa. Com esse modo de pensar é possível então perceber a unidade
humana em meio à diversidade cultural, bem como, perceber as diversidades
culturais em meio à unidade humana em suas individualidades.
Para seguir nesta senda, Morin deixa claro que o problema a ser enfrentado
não é abrir as fronteiras entre as disciplinas, e sim, transformar o que gera as
fronteiras. Daí a necessidade de reformar o pensamento a partir de novos
princípios organizadores. Segue o autor com sua linha de argumentos a partir das
questões: quais são os princípios que poderiam elucidar as relações de reciprocidade entre partes e
todo, bem como reconhecer o elo natural e insensível que liga as coisas mais distantes e as mais
diferentes? Quais são as maneiras de pensar que permitiriam conceber que uma mesma coisa possa
ser causada e causadora, ajudada e ajudante, mediata e imediata? (MORIN, 2003a, p. 25-
26).
Para reformar o pensamento é preciso reformar os princípios que
organizam o nosso pensar. Morin aborda esse ponto recordando o Discurso sobre o
Método, de Descarte, em seu segundo e terceiro princípio, quais sejam: Divisar cada
uma das dificuldades, que examinarei em tantas parcelas quanto seja possível e requerido para
melhor resolvê-las... e conduzir meus pensamentos por ordem, começando pelos assuntos mais
simples e mais fáceis de conhecer, para atingir, pouco a pouco, como que degrau por degrau, o
conhecimento dos assuntos mais complexos... (MORIN, 2003a, p. 87).
~ 130 ~
Tais assertivas desvelam, segundo Morin, os princípios da separação e da
redução, princípios com os quais operam a consciência científica. O segundo
princípio que se traduz na segunda assertiva, o da redução, comporta ainda, duas
ramificações: a primeira que reduz o conhecimento do todo ao conhecimento
adicional de suas partes, e a segunda, que limita o conhecimento ao que é
quantificável. Tal redução condiciona a validade conceitual apenas ao que pode ser
mensurável.
Sabemos que tais princípios hoje se revelam insuficientes face à
planetarização e à globalidade dos problemas que enfrentamos como humanidade.
É preciso então, defende Morin, substituir um pensamento disjuntivo e redutor por
um modo de pensar que distingue e une, ou seja, é preciso um pensamento capaz
de pensar o sentido original do complexus, como aquilo que é tecido junto. Morin aponta
sete diretivas complementares e interdependentes para um pensar capaz de unir e
religar, que apresento suscintamente:
1. Princípio Sistêmico ou Organizacional - ligação das partes ao todo;
2. Princípio Hologramático - evidencia que o todo está parte e vice-versa;
3. Principio do Circuito Retroativo - permite conhecer processos auto-
reguladores;
4. Principio do Circuito Recursivo - circuito gerador em que os produtos e os
efeitos são, eles mesmos, produto e causa do que os produz;
5. Princípio da autonomia/dependência (auto-organização) - auto-produção dos
seres vivos que se auto-produzem na dependência de energia do meio
ambiente para manutenção da vida;
6. Princípio Dialógico - união de dois fenômenos que apesar de excluírem-se
reciprocamente, são ao mesmo tempo, indissociáveis. Exemplo: a
dialógica entre ordem/desordem/organização.
7. Princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento - restaura o
sujeito desvelando que tudo saber é feito por uma mente/cérebro
contextualizada e datada na história.
~ 131 ~
Estas imagens fractais nos ajudam a compreender de forma imagética
alguns desses conceitos.
Morin explica ainda que a reforma do pensamento não pode ser
programática, mas é de natureza paradigmática porque, justamente, refere a nossa
maneira de organizar o pensamento. Como diz Mariotti (2000), corroborando
Morin, a complexidade diz respeito a um entrelaçamento múltiplo de uma
infinidade de sistemas que fazem parte da composição do mundo natural. Estamos
inseridos em uma complexidade que precisamos compreender para conviver com
ela, já que não é possível reduzir a multidimensionalidade a explicações simplistas,
com fórmulas simplificadoras e esquemas fechados de ideias.
A partir dos princípios apontados por Morin, Mariotti propõe um pensar
complexo com ajuda do que ele chama de operadores cognitivos do pensamento
complexo, traduzidos como instrumentos epistemológicos úteis para colocar em
prática esse modo de pensar, são eles: o pensamento sistêmico, a circularidade, a noção de
circularidade produtiva, o operador hologramático, o operador dialógico e a transacionalidade
3 – Conjunto de Fractais
~ 132 ~
sujeito-objeto. (MARIOTTI, 2000, p. 89). O interessante nesta proposição do autor é
apresentar tais princípios alçados à qualidade de operadores cognitivos porque nos dá
uma visão prática de tais princípios apresentados por Morin.
Um saber de fronteira exige um pensamento complexo e a Saúde Coletiva
vem se aproximando deste modo de pensar em função da difusão das Teorias da
Complexidade, que adquirem significativa expressividade neste início de século.
Esta aproximação se evidencia em uma publicação no campo da Saúde
Coletiva intitulado: Complexidade e Metodologia: um refinado retorno às fronteiras do
Conhecimento apresenta como desafio para esse campo de saber situar a ideia de
complexidade. O estudo apresenta o complexo a partir de sua etimologia, que o
define como entrelaçado, abraçado, intricado em suas circunstancias, e o reconhece
como uma das formas de apreensão do mundo pela mente humana. Neste estudo a
autora explicita que A Saúde Pública tem-se interessado pela investigação do conceito de
complexidade e daqueles que lhe são estreitamente aparentados, como o de transdisciplinaridade,
ora esmiuçando a sua pertinência para o nosso campo teórico ou o seu estatuto epistemológico, ora
explorando as vantagens das metodologias a que ele remete, em termos de sua utilidade para uma
mais efetiva intervenção na realidade. (ALEKSANDROWICZ, 2002, p. 57).
O texto comenta as contribuições de autores da Nova Ciência, destacando
a Teoria da Auto-organização de Henti Atlan, a Teoria do Caos e a contribuição de
diversos outros nomes da ciência para pensar os campos limítrofes da Física,
Química e Biologia, reunindo por fim construtos da filosofia espinosana para
pensar a ética e os desafios das ciências e seus dilemas no século XXI. Ao final do
estudo a autora afirma que o proposto retorno ao pensamento moderno com um
olhar centrado na complexidade constitui-se em um esforço de renovação que vem
se refinando e consolidando o termo complexidade como uma significação cultural mais
ampla, intermediária às várias conotações correlatas a sua utilização por esse ou aquele autor, que
nos parece ter mais aspectos positivos do que negativos, em especial quando fazendo parte da defesa
de uma atitude audaz diante dos saberes instituídos. (ALEKSANDROWICZ, 2002, p. 71).
~ 133 ~
Outra publicação no campo da Saúde Coletiva de Helena Oliveira em
parceria com Maria Cecília Minayo refere, especificamente, um texto com o título
Complexidade e Mortalidade Infantil em que a autora aborda os conceitos de auto-
organização da vida, da Cibernética, referindo também os conceitos de Entropia da
Termodinâmica e de acoplamento estrutural proposto por Maturana e Varela
(1995) para descrever, de um modo inovador, a interação dos organismos vivos
com o meio. Elas referem tais conceitos para problematizar a morte, sobretudo, a
morte precoce, e se pergunta o que é a vida. A partir desses fundamentos as autoras
reconhecem que a vida e a morte são aspectos de um mesmo processo. A partir
disso ela tece argumentações explicitando que não há uma determinação de vida ou
de morte, de saúde ou de doença. Ela conclui o artigo ressaltando que a história
mostra trajetórias de pessoas que nasceram em condições totalmente desfavoráveis e conseguiram, a
partir da desordem e do ruído, construir sua expressão social. A imagem do caleidoscópio é de
grande valia para se compreender a relação complexa que estabelecem os vários fatores na
determinação do viver e morrer das crianças. (OLIVEIRA; MINAYO, 2002, p. 45).
Tais publicações que remetem à complexidade a que me referi no campo da
Saúde Coletiva integram uma publicação organizada por Minayo e Deslandes
(2002) com o título Caminhos do Pensamento. Epistemologia e Método, que reúne textos
que buscam novos fundamentos para pensar velhas questões da saúde coletiva
como, por exemplo, a mortalidade infantil, e o faz de maneira tal que torna possível
escapar dos circuitos deterministas ambientais ou individuais para explicação do
fenômeno. Acredito que além de fundamentar-se em teorias que compõe a Nova
Ciência, é preciso reformar o pensamento buscando um modo de pensar em
função dos operadores cognitivos para usar os termos de Mariotti.
Reconheço que não é uma questão de simples desejo ou escolha a opção de
reformar o pensamento. Não é uma simples decisão em que nos propomos de
agora por diante usarei somente os operadores cognitivos do pensar complexo.
Reconheço que nosso modo de pensar está condicionado por séculos de
~ 134 ~
construção da ciência clássica. É preciso questionamentos desconfortáveis que nos
tirem de nossas crenças e façam rachar o nosso chão.
Mariotti (2002) adverte sobre os condicionamentos do pensar e apresenta
interessantes comentários a partir da pergunta: como começou a unidimencionalização de
nossa mente pelo raciocínio linear? O autor tece longos comentários sobre os
condicionamentos culturais oriundos da cultura hegemônica patriarcal que marcou
o início de um longo processo de moldagem da mente humana em função do
modelo mental linear. Portanto, não seria uma simples decisão, mas uma constante
auto-vigilância, porque se trata de condicionamentos de pensar.
Marriotti segue suas considerações sobre as culturas patriarcal e matrística,
para esclarecer os condicionamentos da nossa mente. Trata-se de
condicionamentos porque o nosso cérebro está naturalmente preparado para o pensamento
complexo, seus neurônios funcionam não apenas em termos de binariedade zero/um, sim/não,
mas estão também preparados para lidar com situações complexas, nas quais é preciso pensar em
termos de „talvez‟ ou “e se‟? Após apresentar os modos de pensar das culturas patriarcal
e matrística, que não me deterei aqui, o autor esclarece, que ao contrário do que
comumente poderíamos pensar, a cultura matrística não excluía os valores
masculinos e não se trata, portanto, de substituir uma cultura pela outra. O que está
em jogo é, segundo argumenta o autor, o que hoje vemos em várias partes do
mundo, é um movimento que busca as complementaridades, que se traduz pelo
entrelaçamento dos modelos linear e sistêmico de pensar. Trata-se, portanto, de
convivência e, segundo adverte Mariotti, esta não é uma possibilidade garantida,
tampouco, se poderia afirmar o contrário, concebendo-a como impossível.
Procurando ser vigilante com meus condicionamentos assumo minha
escolha, ancorada no meu desejo de produzir conhecimento sobre a realidade e
fazê-lo apostando na possibilidade de operar com um modo de pensar capaz de
unir, já que me proponho a pensar sobre o vínculo, que tem por definição
etimológica a ideia de elo, ligação, tudo que ata, liga ou aperta.
~ 135 ~
2.2. O vínculo no campo da Saúde Coletiva – nexos e desconexos. Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa,
mas dialogar com a incerteza. (Edgar Morin)
Toda referência ao vínculo no âmbito da Saúde Coletiva aparece, como
vimos, inserida em um amálgama semântico junto com outras palavras:
acolhimento, responsabilização, autonomia, longitudinalidade do cuidado... Todas
elas aludidas no discurso da Integralidade do SUS. Há nexos que unem
indistintamente o vínculo com outras palavras, e há também, desconexos de sua
semântica e o contexto em que se inserem.
Para mim, mais importante do que retirar a palavra do amálgama semântico
em que se encerra é buscar compreender os nexos que possibilitaram esta
construção, tal como se apresenta. Isso porque acredito que são os nexos que a
constituiu desse modo que nos dará a visão do discurso em termos de seus
fundamentos ontológicos e epistemológicos.
A tarefa que me proponho agora é buscar explicitar o que fundamenta este
modo de compreensão no âmbito da produção do saber em saúde coletiva e
problematizar o discurso no intuito de ampliar e aprofundar a questão. Recorro
agora aos operadores do pensamento complexo - sistêmico, hologramático,
retroativo, recursivo, dialógico e auto-organizativo - para refletir sobre o vínculo e
problematizar o discurso no qual se insere. Farei isso explicitando alguns eixos que
considero importantes para problematizar o tema a partir de perguntas.
~ 136 ~
2.2.1. O vínculo tem lugar no campo da Saúde Coletiva?
Por que a palavra vínculo se enquadra no discurso da integralidade como
princípio do SUS? Por que as práticas de saúde são analisadas e pensadas referindo
os princípios em separado, ou isolado uns dos outros, a depender da natureza das
práticas de saúde que se investiga? Em que medida tal separação aprofunda e/ou
empobrece nossas análises? Estas são as questões as quais vamos nos ater neste
primeiro eixo de problematização.
Se observarmos bem, há um discurso particular que se ancora com ênfase
neste ou naquele princípio do SUS. Assim, por exemplo, se o discurso aborda as
políticas de Humanização o princípio chave é a Integralidade da atenção à saúde. Se
o discurso refere o acesso e/ou a inclusão de minorias, tais como da população
negra, indígena, etc, o princípio aludido é a Equidade. A Universalidade já não é tão
referida em função de análises que constatam seu avanço como conquista de
relativo avanço no SUS, sendo pouco referida como tema de pesquisa. Como já
nos referimos anteriormente, há aqui uma fragmentação do olhar.
Como ilustração desse modo de pensar fragmentado, destacamos o pensar
de Cecílio (2009) quando tenta se afastar deste foco e aborda os princípios do SUS
se propondo a toma-los em sua interrelação. Para o autor os princípios do SUS
Universalidade, Integralidade e Equidade formam um conceito tríplice entrelaçado,
apresentando-se como um signo poderoso capaz de expressar o ideário da Reforma
Sanitária no Brasil.
Seguindo esta linha de pensar, Cecílio se propõe a refletir sobre isso
tomando como princípio analisador as necessidades de saúde reconhecendo a
incontornável complexidade do conceito, mas ao mesmo tempo, buscando
conceituá-la de maneira tal que possa ser apropriada pelos trabalhadores de saúde
com vistas à humanização e a qualificação dos serviços.
~ 137 ~
O autor assume essa difícil tarefa aceitando um pressuposto que reconhece
as necessidades de saúde em sua determinação histórica e social sendo, por isso,
captadas em sua dimensão individual, mas que, por outro lado, trata-se de uma
conceituação que, em sua operacionalização, não pode suprimir a dialética
individual/social. Cecílio propõe então uma taxonomia em que as necessidades de
saúde poderiam ser apreendidas de forma abrangente em quatro conjuntos.
O primeiro deles aponta para o usufruto de todos de “boas condições de
vida”. Cecílio chama atenção aqui para o fato de compreendermos isso tanto em
termos funcionalistas quanto marxistas. Ele justifica isso afirmando que os fatores que
determinam processos de adoecer são tanto ambientais, ou seja, externos, mas
também, são relacionados aos lugares que os humanos assumem nos processos
produtivos das sociedades capitalistas. O que é importante reter aqui é considerar
que para o autor é preciso abraçar ambas as ideias no que elas trazem de consenso,
qual seja “a maneira como se vive se „traduz‟ em diferentes necessidades de saúde”
(CECÍLIO, 2009, p. 118).
O segundo conjunto da taxonomia que destaca o autor é a necessidade “de
se ter acesso e se poder consumir toda tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida”
(CECÍLIO, 2009, p. 118). Aqui o autor abandona toda pretensão de hierarquizar as
tecnologias. Auxiliado pelos conceitos de Merhy (1997) das tecnologias leve, leve-duras e
duras que permite compreender mais apuradamente que o valor de uso de cada
tecnologia é definido em função da necessidade de saúde da pessoa em momento
singular de vida, e não apenas do ponto de vista técnico.
O terceiro conjunto de necessidades apontado por Cecílio é a
“insubstituível criação de vínculos (a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou
um profissional – vínculo enquanto referência e relação de confiança, algo como o
rosto do sistema de saúde para o usuário” (...) o estabelecimento de uma relação contínua
no tempo, pessoal e intransferível, calorosa: encontro de subjetividades. (CECÍLIO, 2009, p.
119). Construir o vínculo nesta perspectiva vai além da adscrição formal da clientela
ao serviço, ressalta o autor.
~ 138 ~
Por fim, o quarto conjunto de necessidades de saúde relaciona-se com
crescentes graus de autonomia que o ser humano tem ou adquire no seu modo de
levar a vida. Cecílio reconhece aqui que a saúde e a educação são apenas parte nesse
processo de construção e autonomia dos sujeitos. Em síntese, a taxonomia de
Cecílio pode ser melhor visualizada no esquema a seguir:
É importante refletir sobre o porquê da proposição de uma taxonomia das
necessidades de saúde para reconceituá-las. Taxonomia deriva da junção de algumas
palavras gregas, táksis cujo significado está ligado à palavra classificação e nómos, que
significa regra, lei, uso. Segundo o dicionário taxonomia seria então uma teoria ou
nomenclatura das descrições e classificações científicas. Percebo que o uso da
taxonomia pode nos conduzir facilmente para a ideia própria da natureza da
proposição das grades taxonômicas em hierarquizações. No caso, as necessidades
de saúde aqui podem ser tomadas em seus condicionamentos lineares do tipo: isso
primeiro, para depois aquilo. Em outras palavras, tal uso da taxonomia poderia
fundamentar discursos, muito em voga, de que se não há boas condições de vida
como saneamento, emprego, etc. (primeiro conjunto da taxonomia) e não há acesso
ou disponibilidades de todas as tecnologias, não é possível, então, construir um
vínculo e autonomia que condicionam as práticas integrais de saúde.
A linha pensar de Cecílio, apesar de partir do conceito tríplice segue
focando somente o princípio da integralidade a partir de sua taxonomia
1
•Boas condições de vida; •A maneira como se vive se traduz em diferentes necessidades de saúde.
2
•Ter acesso e consumir tecnologia de saúde capaz de melhorar e prolongar a vida; •Valor de uso de cada tecnologia (leve, leve-duras, duras) definido em função da necessidade de saúde da pessoa no momento singular da vida.
3 •Criação de vínculos afetivos entre usuário e equipe de saúde
•Vínculo – além da adscrição de clientela
4 •Crescente graus de autonomia que o humano tem ou adquire no seu modo de levar a vida.
~ 139 ~
apresentando-a em duas dimensões. A primeira, a Integralidade Focalizada, que como
o próprio nome sugere, é a dimensão trabalhada por uma equipe de saúde que atua
em seu espaço delimitado, seja em um hospital ou em um Centro de Saúde da
atenção básica. A segunda é a Integralidade Ampliada que decorre do reconhecimento
de que a integralidade nunca será plenamente exitosa se depender apenas dos
espaços singulares dos serviços. É preciso também pensar em termos “macro” e
visualizar os serviços em rede. Nas palavras do autor, a integralidade ampliada é
fruto desta articulação em rede, institucional, intencional, processual, das múltiplas
„integralidades focalizadas‟ que, tendo como epicentro cada serviço de saúde, se articulam em fluxos
e circuitos, a partir das necessidades reais das pessoas – integralidade do micro, refletida no macro.
(CECÍLIO, 2009, p. 123).
Embora o próprio autor não explicite isso em seu texto, é fácil perceber
que os dois primeiros conjuntos da taxonomia tem relação estreita com as
exigências da integralidade em sua dimensão ampliada. Seguindo a mesma lógica, a
integralidade focalizada depende de uma sensibilidade para os dois outros
conjuntos de necessidades, vínculo e autonomia. Como forma de efetivar a
integralidade o autor propõe o uso de uma taxonomia como forma de reconceituar
as necessidades de saúde. Segundo afirma, os temas integralidade podem ser
trabalhados com as equipes a partir da adoção de uma taxonomia quando diz que a
adoção de uma taxonomia de saúde é o primeiro passo para isso, mesmo que „enquadrar‟ um tema
tão complexo em alguma forma de classificação acabe sendo sempre, um risco de reducionismo ou
simplificação excessiva. (CECÍLIO, 2009, p. 127). A figura abaixo é uma síntese minha
sobre a linha de pensar de Cecílio:
Conjunto 1
Condições de Vida Integralidade Ampliada
A que é pensada em
rede
Integralidade Focalizada
A que é trabalhada em equipe de CSF
Conjunto 2 Acesso a
tecnologias
Conjunto 3
Graus de autonomia
Conjunto 4
Vínculo
5 – Taxonomia para efetivação da Integralidade da atenção à saúde (Cecílio, 2009)
~ 140 ~
Esta perspectiva de pensar os Princípios do SUS partindo das necessidades
de saúde tem um peso considerável do pensamento linear e hierárquico. A
proposição de uma taxonomia, no meu entendimento, teria pouco ou nenhum
efeito para efetivação do conceito tríplice, uma vez que há um direcionamento de
partida de operar o pensamento de forma linear e disjuntiva. Para ampliar a visão
creio ser importante uma mudança de perspectiva. Ao invés de um pensar
hierárquico, um modo de pensar recursivo e sistêmico.
Cecílio defende pensar a integralidade tomando em conta a ideia de rede
com múltiplas entradas, múltiplos fluxos, porque reconhece a integralidade como
objetivo de rede, e não apenas de um serviço. Todavia, apesar de Cecílio
reconhecer que a imagem modelo de um sistema de saúde piramidal hierárquico e
racionalmente organizado dá conta apenas parcialmente para efetivar o tríplice
conceito-signo do SUS, sua forma de pensar em rede recorrendo a uma taxonomia
pouco ajuda nesta ideia de fluxo com múltiplas entradas, pois remete mais a lógica
de pensar linear e hierárquico do que a ideia de rede. Apesar reconhecer a
importância de pensar em rede é a dualidade que prevalece em seu modo de pensar
a realidade quando hierarquiza as necessidades de saúde e busca operar a
integralidade a partir do binômio: integralidade focalizada e ampliada, onde a ideia
de rede só se apresenta na parte ampliada do binômio.
Acredito que os operadores do pensamento complexo nos auxiliam a
compreender de outro modo esta questão contribuindo na elucidação dos nexos
que articulam os princípios do SUS, trazendo outra forma de pensar o tipo de
relação que pode nutrir as partes e o todo. Para isso é necessário uma perspectiva
de pensamento sistêmico que seja capaz de perceber e operar as inter-retro-relações
a partir da compreensão de como ocorre a articulação do todo com as partes em
termos hologramáticos, cuidando para não tomar o todo pelas partes ou, ao
contrário, a parte pelo todo.
O ponto central para pensar a efetivação dos princípios dos SUS é menos
compreendê-los em termos duais em função de categorias tais como micro/macro
~ 141 ~
presença/ausência, viabilidade/inviabilidade, limitações/potencialidades,
individual/coletivo, do que pensar sobre os nós ou pontos que articulam estes
conceitos em termos práticos. Isso porque tal articulação não se caracteriza de
forma mecânica, hierárquica e/ou justaposta. Sua efetivação não segue uma ordem
cronológica ou hierárquica, porque há entre eles uma relação de coprodução que os
efetivam de forma recursiva, não linear. Creio que essa forma de compreender
possibilita visualizar uma substancialidade prática aos princípios que fundamentam
o SUS na direção da superação de reducionismos.
Vou recorrer a algumas imagens para ajudar a pensar os princípios do SUS,
cada uma esboçando o modo de compreender suas interrelações. Apresento a
primeira figura a seguir:
Esta figura apresenta os princípios do SUS esboçando partes que se juntam
para formar um todo. A relação entre as partes é mecanizada, ou seja, sua
justaposição forma um todo. Esse modo de compreensão nos leva a crer que as
ações e políticas dos princípios do SUS podem se efetivar em separado, de forma
gradativa e hierárquica priorizando-se um princípio depois outro, considerando o
que seja mais prioritário, importante ou urgente. Passemos para a segunda figura:
Universalidade
7 - Princípios do SUS - Interrelação
Integralidade
Equidade Universalidade
SUS
Figura 7 – Princípios do SUS em justaposição
SUS Integralidade
Equidade Universalidade
6 - Princípios do SUS - Justaposição
~ 142 ~
Esta já expressa um modo de compreensão do SUS a partir da interrelação
de suas partes. Colocar as partes em relação não mecânica muda o jogo. Esse modo
de compreensão nos leva a crer que as ações e políticas dos princípios do SUS
devem ocorrer de forma concomitante. A pergunta que surge é que tipo de relação
há entre as partes, e destas com o todo. De que forma podemos intervir em uma ou
outra de forma a mexer no todo. O pensamento de Cecílio tenta ir nesta direção
quando se propõe a ver os princípios do SUS como um conceito tríplice. Porém
sua análise focaliza a relação das partes com o todo em termos duais de
micro/macro, ou seja, ora focalizo o todo, ora as partes.
Podemos pensar os princípios do SUS a partir de uma relação sistêmica
entre as partes e todo como na figura de um. A inter-relação entre os princípios do
SUS seria mais de recursividade do que de complementariedade. Como mostra a
figura 3:
Esta imagem hologramática nos possibilita pensar de forma sistêmica de
modo a conceber uma relação de recursividade dialógica entre as partes que
compõem o todo. Penso que a recursividade pode mover a efetivação destes
princípios dando sentido para uma visão sistêmica. Esta recursão consiste em
atentar e reconhecer que a universalidade (acesso de todos) sem a equidade (tratar
os diferente os diferentes) é injusta, e só a integralidade (visão integrada do ser em
Universalidade Universalidade Universalidade
Universalidad
e
8 – Princípios do SUS - Holograma
SUS
~ 143 ~
seu ambiente) nos permite efetivar a universalidade e equidade, ao mesmo tempo.
É a efetivação da integralidade que revela as iniquidades e faz-nos avançar em
direção da equidade, e ambas se efetivam na mesma medida da universalidade.
Quando o serviço de saúde não reconhece e/ou considera as diferenças a partir de
uma visão integral dos sujeitos, isto se transforma numa barreira que impede
determinadas pessoas do acesso aos direitos, se distanciando tanto da equidade
como da universalidade. Portanto, se ferirmos um princípio, sistemicamente,
ferimos a todos, ou seja, há uma relação de coprodução recursiva que dá
substancialidade ao SUS. Isso é algo sutil que exige refinar a percepção de suas
inter-relações de maneira tal a repercutir em sua praticidade no SUS.
Considerando o princípio sistêmico com suas relações de recursividade é
possível escapar do risco de tomar a parte pelo todo, e fazer opção por algum deles
de forma isolada. Relembrando agora a tarefa de compreender o porquê da palavra
vínculo se encontrar inserida no discurso da Integralidade reitero a importância não
de retira-la deste lugar, mas de compreender os nexos de relações que resultam
neste enquadramento. No meu entender de nada adiantaria retornar ao amálgama
que a encerra dentro do discurso das palavras que efetivam a integralidade da
atenção à saúde para defini-la com melhor precisão conceitual, para aí coloca-la
novamente. Isso no meu entendimento seria colocar o vinho novo em odres
velhos. Algo que talvez resultasse na quebra dos odres.
Considero como tarefa urgente e necessária pensar as políticas e as práticas
de saúde que efetivam os princípios do SUS superando um modo de compreendê-
las de forma isolada e fragmentada.
É próprio da ciência clássica separar o fenômeno em partes na tentativa de
explica-lo. Como apresenta Morin (2000) a ciência clássica opera com 4 pilares de
certezas. O da ordem, que postula um universo regido por leis imperativas de caráter
absoluto, tendo o mundo como máquina perfeita. Um outro pilar que opera com o
princípio da separabilidade, segundo o qual para se resolver um problema é preciso
decompô-lo em elementos simples. Um terceiro, a redução, em suas duas vertentes
~ 144 ~
que assume que conhecer os elementos de base dispensa o conhecimento do
conjunto, e reduz o conhecimento àquilo que é passível de mensuração. E o quarto
pilar é a lógica indutivo-identitária identificada com a Razão, que assume o postulado
da indução, dedução e dos três axiomas identitários aristotélicos como forma de
assegurar a validade das teorias e axiomas aos quais defendem.
O problema da separação no processo de produção do conhecimento é o
isolamento que resulta em disjunção e apaga os nexos que compõe a complexidade
dos fenômenos. A reforma do pensamento é de natureza paradigmática e nos
convida a compreender os fenômenos em suas inter-retro-relações inseridas em um
determinado contexto em que as partes e o todo se relacionam em reciprocidade.
Acredito que pensar em práticas de saúde com potencial para efetivar os
princípios do SUS tem como exigência considerar a relação sistêmica e não
disjuntiva entre eles, e deles com o SUS. Propor sua efetivação significa pensar em
práticas de saúde universais, equânimes e integrais ao mesmo tempo. Até que
ponto um serviço pode ser caracterizado como integral sem incorporar a equidade?
Até que ponto um serviço pode ser equitativo sem ser universal? Isso acontece
somente na abstração formal própria de um certo modo de compreender a
realidade. Mas a realidade é complexa, tudo se tece em conjunto. E a complexidade,
como nos ensina Morin é muito mais uma noção lógica do que uma noção quantitativa.
(MORIN, 2000, p. 47). Logo, separar o emaranhado de coisas que se tecem junto
não resolve o problema.
Colocar o vínculo dentro ou fora da efetivação das práticas integrais em
saúde adquire um sentido ou outro a depender da forma como compreendemos a
interrelação das partes com o todo, isto é, da integralidade em sua relação sistêmica
com os demais princípios e o SUS. Daí é que não importa se retiramos ou
colocamos a palavra em tal ou tal lugar. Considero que o importante é
compreender do que falamos quando aludimos efetivar os princípios do SUS por
meio de práticas, políticas ou serviços de saúde compreendendo a lógica que une os
nexos que compõem o todo.
~ 145 ~
Em síntese, no meu entendimento creio que o importante é compreender o
vínculo em sua relação sistêmica com as práticas que organizam os serviços de
saúde do SUS em termos universais, equitativos e integrais.
2.2.2. Que sujeito vincula?
Neste eixo busco compreender e explicitar qual noção de subjetividade
ampara as reflexões no campo das relações humanas em saúde, isto é, quem é o
sujeito que vincula. Os autores que tocam a questão subjetiva no campo da saúde
coletiva têm como fonte de referência recorrente Emerson Merhy, Gastão Wagner
e Tulio Franco, dentre outros. Estes autores, por sua vez, trazem uma compreensão
de subjetividade depositária das ideias dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix
Guatarri. Apresento a seguir de maneira sucinta as ideias que abordam a noção de
subjetividade defendida pelos filósofos.
Duas publicações de Deleuze e Guatarri “O Anti-Édipo” e “Mil Platôs”
marcam o contexto dos anos 70. As ideias defendidas por eles se apresentam como
uma reação à Psicanálise e desenvolve uma crítica ao Inconsciente de Freud, se
opondo a clássica interpretação freudiana do desejo como falta. Deleuze e Guatarri
fazem uma inversão do conceito e apresentam um inconsciente como produção
desejante, isto é, instância responsável pelo desejo como algo cuja intensidade
produz a realidade. Eles propõem a Esquizoanálise como forma de resistência ao
modelo edipiano clássico.
Resumidamente a Esquizoanálise regula-se por três tarefas. A primeira é a
destruição do “eu normal” cuja intenção é desneurotizar o indivíduo, retira-lo de
seu entorpecimento de se entender pela falta que lhe impossibilita criar, e o faz
reprodutor de modelos. A segunda tarefa consiste em fazer o indivíduo descobrir-
se como máquina desejante fazendo com que o desejo retome o seu lugar e
~ 146 ~
potencialize o indivíduo a criar coisas por meio de novas territoliaridades e linhas
de fuga. O indivíduo deve afastar-se da esfera do interpretar e aproximar-se do sentir
na produção de si mesmo, aumentando assim a sua potência, criando para si um
corpo sem órgãos. E a terceira tarefa consiste em subordinar o social às máquinas
desejantes, isto é, trata-se de inserir o corpo individual como peça de uma máquina
social na micropolítica das relações que subordinam o campo social às máquinas
desejantes que são.
A proposição da Esquizoanálise é interferir na produção da realidade se
afastando de interpretações do tipo “o que significa isso” para abraçar o “para que serve
isso”. Um esquizoanalista não diz em que mundo devemos viver, ou se interessa em
como o mundo deveria ser. Considera o desejo em si como revolucionário, algo
que por nada espera para realizar-se; o desejo só quer a si mesmo. A Esquizonálise
se apresenta como o processo de retirar do indivíduo sua sujeição a normas,
despertando-lhe o desejo. O sujeito, como máquina desejante, adquire a potência
necessária para subordinar o social e recriá-lo à imagem e semelhança do seu
desejo.
A Esquizoanálise se detém na micropolítica das relações desejantes e de
poder. Traça uma relação entre Capitalismo e Esquizofrenia, e não mais entre Família e
Neurose como na psicanálise. O inconsciente é visto como uma usina intensiva e o
desejo é produção, não falta. Tal arquitetura de ideias traz novos conceitos, tais como
o de rizoma, corpo sem órgãos, linhas de fuga.
A Esquizonálise também se afasta de leituras marxistas e busca apreender o
político relacionando-o aos fenômenos psíquicos. Para Deleuze e Guatarri o capital
agenciou a todos numa mentalidade que o reproduz, do operário ao rico
empresário, tornou a todos servos prisioneiros, situação em que a luta de classes
perde sentido para dar lugar a luta pelo acúmulo do capital. O micropolítico em que
se insere a produção de novas subjetividades não tem relação com um macro, em
termos reduzidos, mas relaciona-se com a análise dos agenciamentos desejantes do
campo social. A arena micropolítica é palco para o encontro entre as máquinas
~ 147 ~
desejantes e o campo social. A política nesta arena refere às forças do desejo que
atuam na configuração do poder instituído, e resultam na produção da vida e de
subjetividades.
Nesta perspectiva de compreensão dos processos subjetivos delineados por
Deleuse e Guatarri os autores Tulio Franco, Emerson Merhy e Ricardo Ceccim
analisam os processos de produção do cuidado em saúde. Apresentarei
suscintamente a linha de pensar desses autores para em seguida tecer alguns
comentários e problematizações.
Inspirados nas ideias de Deluse e Guatarri os autores acreditam no desejo
como força motriz revolucionária para invenção da realidade social e a criação de
um novo devir na produção subjetiva do cuidado em saúde. A noção de
subjetividade encara o desejo como a força motriz para tornar os sujeitos
protagonistas dos processos de mudança social. Nas palavras dos autores a força
motriz de construção da sociedade é o desejo, que se forma em nível inconsciente, é constitutivo das
subjetividades, que no plano social torna os sujeitos protagonistas por excelência de processos de
mudança. (FRANCO & MERHY, 2013, p. 155).
Franco e Merhy (2013) advogam a inclusão da subjetividade como
dimensão de análise nos processos de avaliação qualitativa e seus modos de
produção em saúde. Incluir a subjetividade implica compreender a micropolítica no
cotidiano de trabalho no sentido de desvelar os modos de produzir o cuidado, ao
mesmo tempo em que revelam a produção de si mesmo como sujeitos do trabalho.
Inspirados na ideia do Rizoma os autores defendem que o modo de
produção do cuidado se revela na micropolítica das relações cotidianas sendo
marcada por uma constante construção e desconstrução de territórios existenciais.
A ideia de rizoma significa um movimento em fluxo horizontal e circular ao mesmo tempo,
ligando o múltiplo, heterogêneo em dimensão micropolítica de construção de um mapa, que está
sempre aberto, permitindo diversas entradas e ao se romper em determinado ponto, se refaz
~ 148 ~
encontrando novos fluxos que permitem seu crescimento, fazendo novas conexões no processo.
(FRANCO & MERHY, 2013, p.152).
Na microfísica do trabalho em saúde o lugar da produção do cuidado passa
a ser visto como um platô, lugar em que ocorrem encontros de intensidades que
afetam os sujeitos em interação. O encontro dos trabalhadores da saúde entre si, e
destes com os usuários, formam um campo energético que funciona como fluxos
circulantes que envolvem o cuidado em ato. Esse fluxo pode, segundo os autores,
se configurar como linha de vida, caso resulte em acolhimento, vínculo, autonomia,
satisfação, ou linha de morte, quando o modo de agir é preponderantemente
burocrático, gerando heteronomia e insatisfação, aumentando ou reduzindo a
potência de agir, conforme a linha para qual se direciona o resultado.
Franco e Merhy apresentam, então, a Cartografia como método de análise do
processo subjetivo de produção do cuidado em saúde. Segundo eles, numa
cartografia há processos de formação e desconstrução de territórios existenciais,
que são formas singulares de significar e interagir com o mundo. A cartografia
delineia o percurso dinâmico de produção subjetiva da realidade revelada pela
multiplicidade da ação humana na micropolítica de sua interação social.
A complexidade da tarefa de se avaliar os serviços de saúde por meio de
uma cartografia que revele os processos de produção de subjetividades faz dela um
método ad hoc, reconhecem os autores. Isso porque ela não teria e nem poderia ter
alguma pretensão de verdade ou funcionar como um modelo a ser seguido. Os
autores esclarecem, contudo, que a realidade social pode se manifestar não na produção,
mas na reprodução, em processos de captura subjetiva dos sujeitos, em que a ética do cuidado está
aprisionada pela normatividade da vida e do trabalho, pela repetição de sentidos, a desfiguração
dos signos. (FRANCO & MERHY, 2013, p. 160).
Na visão dos autores uma mudança nos processos subjetivos de produção
do cuidado se opera mediante uma desterritorialização das subjetividades que deve
~ 149 ~
ocorrer nos limites do atual modelo, ainda agenciado pelos modos de produção
capitalísticos.
Uma transição tecnológica que resulte numa reestruturação produtiva deve
ser capaz de romper com as atuais estruturas do modelo biomédico, cujos
processos de trabalho centram-se no ato prescritivo. Nenhuma ruptura á possível,
advertem os autores, se a dimensão relacional do cuidado em saúde é vista como
secundária em relação ao consumo das tecnologias duras. Uma mudança estrutural
duradoura nos processos de trabalho pressupõe a produção de novas subjetividades
que sejam ativas na produção do cuidado e tenham como centro o campo
relacional, em que o encontro com os usuários seja um espaço aberto para uma
comunicação que faça sentidos para usuário e trabalhador que, juntos, formam o
centro dos processos de trabalho.
Em síntese é em função de encontros-acontecimentos transcorridos na
micropolítica do cotidiano, que se criariam linhas de fuga para invenção de novas
práticas em saúde e produção subjetiva do cuidado em saúde.
Em outra publicação, essas ideias são reafirmadas por Merhy e Ceccim
(2009) como aposta para as Políticas de Humanização do SUS. Como primeiro
ponto os autores falam dos encontros micropolíticos que, por serem abertos,
apresentam distintas possibilidades de subjetivação. Esses encontros podem seguir
um caminho que sairia de uma ordem biopolítica, serializadora, para a ordem da
biopotência e singularização. Eles defendem que tais encontros são intensamente
pedagógicos, operam, ante as práticas inculcadoras/homogeneizadoras, com trocas entre domínios
de saberes e fazeres, construindo um universo de processos educativos em ato, em um fluxo contínuo
e intenso de convocações, desterritorializações e invenções. (MERHY & CECCIM, 2009 p. 8).
Um segundo ponto que eles levantam é compreender que em um mundo marcado
por uma fragilização da vida há o paradoxo de que os processos de mudanças são,
como sempre, estratégias de resistência e criação. Assim há um confronto não
muito explícito entre os vários modos de subjetivação capitalísticos, que convivem
com seu contrário, como paradoxo. Contudo, onde há captura, há também,
~ 150 ~
disruptura e processos de singularização. O paradoxo, defendem eles, seria
oportunidade de invenção de novas práticas no plano individual e coletivo em cada
lugar onde se produz saúde, seja no hospital, nos serviços básicos ou
especializados.
Os autores trazem para a cena um aspecto que quase sempre está no
escuro, embora presente nas práticas de saúde: a subjetividade humana. Afirmam
que a transformação das práticas em saúde em direção da humanização depende de
novos processos de subjetivação que recriem os sujeitos em interação no ambiente
de trabalho. Trazem para cena o aspecto relacional implicado nos processos de
trabalho em detrimento dos aspectos técnico normativos.
A subjetivação implicada nestes processos tem no desejo sua força motriz
para criar um novo devir na produção do cuidado em saúde. Há uma crença que
aposta numa transformação das pessoas em seu cotidiano de trabalho mediado por
tais encontros-acontecimento. Não estou convencida dessa possibilidade em função de
um relativismo que se mostra na aposta em linhas de fuga, que pode apontar em
toda e qualquer direção. Importa é fugir do que está dado, afastar-se da ordem do
biopoder normatizador e serializante que dita modos de produção do cuidado.
Cada coletivo, em sua co-gestão, guiados pela força revolucionária de seus desejos,
criariam novas práticas em saúde, mediante novas formas de subjetivação baseadas
em encontros acontecimento. A solidariedade, no caso, se apresenta como algo
importante no processo. Mas aonde se quer chegar com tais linhas de fuga?
Quando acendemos ou direcionamos a luz para a subjetividade implicada
nos processos sociais, institucionalizados ou não, não quer dizer que tais processos
não estejam presentificados desde sempre. As práticas normatizadoras e
serializantes da ordem do biopoder é um modo de produção subjetiva da qual se
quer fugir em função do seu resultado em termos da produção do cuidado em
saúde. O resultado seria a superação dos desafios que se apresentam, como por
exemplo, a deshumanização dos serviços revelada na desresponsabilização dos
profissionais em relação a produção do cuidado, no descompromisso com seus
~ 151 ~
processos de trabalho, e também no descaso e despersonalização que marcam a
relação do trabalhador da saúde com os usuários. Ora, tal resultado não seria,
justamente, já as linhas de fuga dos processos de produção subjetiva do cuidado,
quando centrados em normatizações da ordem do biopoder? É possível construir
quais linhas de fuga apostando no desejo dos trabalhadores e usuários implicados
nesse processo?
Tais formas de encarar os processos subjetivos se coadunam com a
Esquizoanálise que em sua proposta não menciona ou se interessa na defesa de
qual mundo devemos viver ou como o mundo deveria ser, e colocam no desejo, a
força motriz de transformação sem, no entanto, se ater que transformação se quer.
Para o esquizoanalista o que interessa é retirar o indivíduo de seu entorpecimento
neurótico que o torna reprodutor de modelos, e fazê-lo descobrir-se como máquina
desejante capaz de subordinar a máquina social para tecer realidades à imagem e
semelhança de seus desejos. Há um pressuposto da neurotização de todos em
função dos agenciamentos capitalísticos.
O modo como a produção do cuidado se dá hoje no cotidiano de trabalho
é sustentado pelo desejo de grande parte das pessoas implicadas, tanto usuários
quanto trabalhadores da saúde. A situação tal qual se apresenta em sua
normatividade serializante, certamente, é benéfica e realizadora para o desejo de
muitos que o sustentam. Se assim não o fosse, tais linhas de fuga já teriam traçados
novos rumos para processos sociais que se institucionalizam na produção do
cuidado em saúde.
Há toda uma rede invisível de privilégios que atende aos desejos e
justificam posturas normatizantes, despersonalizadas e burocráticas na produção do
cuidado em saúde. A desvalorização do público somada às condições de trabalho
precarizadas do SUS criam limites e ditam as formas de agir na produção do
cuidado, gerando processos de trabalho em que toda desresponsabilização e
descaso têm justificativa plausível traduzidas em frases do tipo: “com estas condições de
trabalho a gente faz o que pode”, “recebe o serviço de graça e ainda deseja ser bem tratado?”
~ 152 ~
Outro ponto para refletir é como transformar práticas de cuidado em saúde
em direção da humanização imerso em um cotidiano social em que a justiça é vista
e sentida como privilégio de alguns em termos de processos subjetivos em questão.
A injustiça se torna lugar comum e esperado para processos sociais em que o
direito à saúde é encarado como favor; um serviço de “graça” oferecido para os que
não podem pagar. Que compromisso com a qualidade é possível criar em
processos subjetivos de produção do cuidado em que a oferta de serviços é
compreendida e sentida como benesse ou favor, e não como um direito humano
que se presta àqueles que recorrem aos serviços? Como os encontros-acontecimentos
solidários impulsionariam uma renovação das práticas de cuidado em saúde? A
biopotência e as singularidades seriam os meios ou os fins para produção de novas
subjetividades? Que novas subjetividades seriam estas? Ficaria a mercê do desejo de
cada processo social? Que solidariedade é essa que se fala como necessária? É
aquela pautada no favor que se concede aos que não podem recorrer aos serviços
privados, encarados sempre como melhor e mais qualificados? O desejo seria a
força motriz revolucionária para quem?
Tais apostas em processos de produção subjetiva do cuidado centradas nas
micropolíticas do cotidiano revelam um modo de compreensão do tencionamento
entre o individuo/coletivo. Parece que o crédito da aposta incide sobre o individuo
com o trunfo da força do desejo que carrega, como fenômeno inconsciente.
Em que pese a importância dos trabalhadores em saúde se sentirem capazes
de transformar seus cotidianos de trabalho pela força de seu desejo e qualificar os
processos de produção do cuidado, a questão a se pensar é: até que ponto estas
linhas de fuga criariam realmente novos processos subjetivos com potência de
transformação na efetivação das políticas públicas, ou apenas trariam uma ilusão de
poder aos indivíduos que participam de processos de mudança com tais
pressupostos?
As experiências individuais de se sentir capaz de influir e mudar processos
nem sempre se relaciona com a real habilidade e possibilidade de ser influente para
~ 153 ~
gerar uma transformação social e política com capacidade para criar novos
processos de subjetivação. Até que ponto não há uma confusão instalada entre as
habilidades de poder e influência de cada um no processo de produção do cuidado,
e o real poder dos indivíduos circunscritos aos seus espaços de trabalho? Claro que
isso não significa que os indivíduos não experimentem algum poder de influência
embalado pelo seu desejo, e até possam mudar algo aqui e ali em seu cotidiano.
Acredito que isso de fato ocorra. Até que ponto tais transformações, que de fato
podem acontecer no espaço das micropolíticas, não se encerrariam justo aí, ou
teriam alguma força de transformação mais ampla em termos macro? Isso se torna
delicado porque há uma aposta que incide no desejo dos indivíduos de forma
isolada, embora se reconheça que a força de transformação esteja na interação e no
tencionamento que ela gera. A relação desejo e poder expressa pelo poder do
desejo, ou pelo desejo de poder tenciona por conservação ou transformação, a
depender dos processos sociais em jogo.
Há certamente um avanço nas ideias pós-estruturalistas em que o poder
não está mais identificado com a figura do Estado, como na tradição moderna que
tende a confundir relações de poder com relações de dominação. Há um avanço
em retirar as relações de poder do âmbito macro para compreendê-las na
microfísica das relações sociais em cotidianos diversos de interação humana, e
trazer à tona o desejo imbricado na micropolítica cotidiana. O poder é algo que se
presentifica em quaisquer âmbitos de relações humanas, desde o ambiente familiar,
amoroso até o institucional, e passa a ser visto mais como prática social do que
como algo natural da posse de alguns. O poder compreendido de forma difusa e
com capacidade de tecer uma complexa teia de relações sociais traz a vantagem de
refletir sobre sua positividade e capacidade de produção de novas subjetividades e
domínios de verdade, bem como, permite explicitar melhor as estratégias e
mecanismos que se usam para manipular e governar coletivos sociais.
Entretanto, o que gostaria de ressaltar neste ponto é o modo de
compreender a relação indivíduo/coletivo que está por traz destas questões do
~ 154 ~
poder e do desejo imbricados. Há um dualismo que resulta em tencionamentos que
desembocam em paradoxos. As apostas são feitas creditando as transformações,
aos paradoxos, vistos como oportunidade de invenção de novas práticas de
produção subjetiva do cuidado em saúde. E a aposta transformadora incide ou
acontece nos espaços micro, embalada pela força do desejo dos indivíduos. O olhar
se volta mais para os indivíduos e seus desejos no espaço micropolítico das relações
sociais e a relação indivíduo/coletivo é tomada por um tencionamento excludente
que tende para um dos lados. O micropolítico no caso não se relaciona com um
macro, mas com os agenciamentos desejantes do campo social, e a política se reduz
as forças desejantes que atuam na configuração do poder instituído. Há um silêncio
para falar do coletivo e dos âmbitos macrossociais de formulação de políticas que
parece, simplesmente, desaparecer de vista, em função das três tarefas magnas da
Esquizonálise. Tais processos de subjetivação tende para um lado, o do individual,
e parece reduzir o humano à máquina desejante.
Algumas ideias de Morin (1996, 2002, 2003a, 2003b) em seus escritos
sobre a identidade humana nos permitem compreender a articulação complexa que
se tece entre o individual e o coletivo. Para o autor, o indivíduo não deve ser
entendido como noção primeira, nem última, mas está no nó górdio da trindade
humana indivíduo/sociedade/espécie. Aqui o indivíduo é um termo desta trindade, e
cada termo contém os demais.
A relação indivíduo/sociedade/espécie é dialógica, o que significa que são
antagônicos e complementares ao mesmo tempo, são meios e fins uns dos outros.
Cada um dos termos é irredutível ao outro, ainda que deles dependam. É isso que
constitui a base da complexidade humana que, segundo explica Morin, o indivíduo é,
ao mesmo tempo, o fim da espécie e o fim da sociedade, permanecendo meio para ambas. Contudo,
as finalidades do indivíduo humano não se reduzem nem ao viver para a espécie nem ao viver para
a sociedade. O indivíduo aspira viver plenamente a sua vida. Finalidades individuais desenvolvem-
se ao longo da história: felicidade, amor, bem-estar, ação, contemplação, conhecimento, poder
aventura... (MORIN, 2003a, p. 52).
~ 155 ~
Há aqui uma concepção particular do humano imbricado da relação
espécie/indivíduo/coletivo que nos permite acessar a complexidade desta tensão
individual/coletivo sem dualismos excludentes. Morin explica que
O sujeito é egocêntrico, mas o egocentrismo não conduz somente ao egoísmo. A condição de sujeito comporta, ao mesmo tempo o princípio de exclusão e um princípio de inclusão; este nos permite nos incluirmos numa comunidade, um Nós (casal, família, partido, igreja) e incluir esse Nós no centro do mundo. Enfim, por apego intersubjetivo, o sujeito pode, por amor, dedicar-se a outro (...) Portanto, o egocentrismo do sujeito favorece não somente ao egoísmo, mas também ao altruísmo, pois somos capazes de dedicar o nosso eu a um Nós e a um Tu (...) Assim há na situação do sujeito uma possibilidade que vai até o sacrifício de tudo para si, e uma possibilidade altruísta que vai até o sacrifício de si. (MORIN, 2003b, p. 75-76)
A nossa relação com o outro está na origem, esclarece Morin, pois o outro
é virtual em cada um em termos do princípio de inclusão (amor). Este é necessário
ao princípio de exclusão que ao nos colocar no centro do mundo nos permite aí
situar o outro. Na intersubjetividade está a possibilidade de compreensão do outro
como sujeito, por processos intuitivos e de ressonância psíquica. Na
intersubjetividade também não se separa a necessidade humana de reconhecimento
da de auto-afirmação. Desprezado, o sujeito sente aniquilado, ferido mutilado
porque a necessidade do outro é radical porque se origina na incompletude do
Eu/Ego sem reconhecimento do outro.
Nestes termos não há aqui uma visão egocentrada do sujeito, tampouco,
um modo de compreendê-lo antes de tudo e somente na relação com o outro, mas
um modo de compreender que engloba estas duas visões por meio do duplo
programa que reconhece na origem a simultaneidade da auto-afirmação do Eu e da
sua relação com o outro.
Os processos intersubjetivos serão humanizados tanto quanto for a
capacidade de inclusão do outro em nosso site egocêntrico, processo que possibilita
~ 156 ~
a integração de outras subjetividades na sua. Há um delicado processo de auto-
afirmação e reconhecimento do outro que cria humanidades. Como explica Morin,
O indivíduo pode encontrar-se incluído num anel transubjetivo e, se este anel é duradouro, constitui uma comunidade, isto é, uma organização solidária inter e transubjetiva. (...) o princípio de exclusão que funda o sujeito egocêntrico não é só compatível mas correlativo com um princípio de inclusão do sujeito numa comunhão ou comunidade. (MORIN, 2002, p. 230).
Sem essa capacidade de inclusão do outro e do coletivo em meu espaço
egocêntrico, não haveria possibilidade de conjugar os verbos na primeira pessoa do
plural e nos sentirmos partes de um “Nós”. O indivíduo pode viver para si e para o
outro, dialogicamente, isto é, ora pode prevalecer o egocentrismo, ora o altruísmo;
entretanto, tal processo, por vezes, situa o indivíduo na zona de tensão em meio a
duas forças poderosas, impondo ao indivíduo uma decisão dolorosa ou deixando-o
paralisado. A subjetividade comporta, assim, a afetividade. Segundo Morin, o
sujeito está também potencialmente destinado ao amor, à entrega, à amizade, à
inveja, ao ciúme, à ambição, ao ódio. Fechado sobre si mesmo ou aberto pelas
forças de exclusão ou de inclusão. (MORIN, 2003b, p. 79).
Os princípios de inclusão e exclusão da identidade humana que retrata
Morin são inseparáveis um do outro e possibilita pensar um “nós” como uma
propriedade emergente da integração de subjetividades. Estas noções permitem
compreender a relação complexa entre indivíduo/sociedade/espécie e entender
com maior nitidez a humanidade em grupo e em sociedade. Morin fala que,
Muitas vezes se produzem conflitos entre o princípio de inclusão e o princípio de exclusão. (...). Há, pois, uma ambivalência que nós mesmos experimentamos, conforme as condições, a respeito de nossos próximos, de nossos parentes, da gente a que estamos ligados subjetivamente. O mesmo ocorre a respeito da pátria, nos momentos de perigo. Prontamente esta sociedade na qual vivemos de maneira egocêntrica, guiando-nos pelo interesse, se vê em perigo, e então, de repente, nos sentimos tomados por uma onda
~ 157 ~
comunitária, somos ´nós´, somos irmãos, somos os filhos da pátria, a pátria é nossa mãe, o estado é nosso pai. Devemos obedecê-lo: Adiante!... Mas alguns fogem. Dizem: `eu quero salvar a minha vida`. Desertam. Aqui também há uma luta entre o princípio de inclusão e o princípio de exclusão. Assim, pois o sujeito, e em particular o sujeito humano, pode oscilar entre o egoísmo absoluto, ou seja, o predomínio do princípio de exclusão, e a abnegação, o sacrifício pessoal, de inclusão. (MORIN, 1996, p. 51).
Morin também acrescenta que a qualidade essencial do sujeito está em sua
aptidão para objetivar. Ele nos diz que a frase “Eu sou eu” que pode ser
compreendida como uma tautologia, revela na verdade a possiblidade de auto-
objetivação. Diz ele, o Ego é uma objetivação do Eu para si mesmo que permite ao Eu
‟refletir-se‟ e reconhecer-se objetivamente. (...) Paradoxo: a objetividade só pode vir de um sujeito.
Ideia inacreditável para quem subjetivamente nega toda existência ao sujeito. O ponto capital é
que cada sujeito humano pode considerar-se, ao mesmo tempo, como sujeito e como objeto e
objetivar o outro enquanto o reconhece como sujeito. (MORIN, 2003a , p.80).
É justamente essa dupla capacidade de auto-objetivação e de objetivação do
outro que também nos torna como humanos capazes de desumanidades quando
olhamos para o outro somente como objetos e ignoramos sua subjetividade. A
humanidade e sua humanização dependem tanto do desenvolvimento de um
conhecimento objetivo do mundo quanto um conhecimento intersubjetivo do
outro, adverte Morin. O sujeito humano é, pois complexo por natureza e por
definição, precisa ser incorporado à trindade humana e situar-se ainda na cultura e
na história.
Neste modo de compreensão que Morin nos apresenta está também a
possibilidade de autonomia, sem excluir modos de sujeição. Para ele ser submetido
não necessariamente significa uma dominação a partir de fora. A submissão
acontece também quando uma potência subjetiva mais forte impõe-se no centro do
programa egocêntrico subjugando o indivíduo, que acaba como escravo de si
mesmo. O sujeito em sua autonomia pode se tornar sujeito, no sentido de assujeitado,
~ 158 ~
dependente. Desta forma podemos ser possuídos por um Deus, um mito ou uma
ideia que nos comanda imperativamente nos fazendo crer que servimos
voluntariamente.
Para compreendermos a relação indivíduo/coletivo sem cair em dualismos
excludentes que desembocam em reducionismos que mutilam o conhecimento é
preciso pensar a complexidade que abarca esta relação em termos dos operadores
complexos. Há uma dialógica que une e reúne indivíduo/espécie/sociedade em
delicadas e intricadas interrelações que conformam as subjetividades em as colocam
em transubjetividades. Os coletivos humanos são mais que agrupamentos ou
indivíduos isolados em disputa em nome daquilo que desejam para criar a realidade
que querem. O desejo humano pode aniquilar e produzir desumanidades se
compreendido em termos de satisfação de necessidades do ego.
2.2.3. O vínculo se manuseia?
Como terceiro eixo de problematização gostaria de tecer algumas reflexões
em relação a semântica que aglutina o amálgama em que se insere o vínculo no
discurso da saúde coletiva. Esta semântica converge seu sentido para o que se
convencionou chamar de Tecnologias Leves, fazendo referência a classificação de
Merhy. Tudo que refere ao campo das relações humanas no âmbito da saúde, seja
em termos da clínica ou dos processos de trabalho, é aludido recorrendo a palavras
como tecnologia, ferramenta, instrumento ou dispositivo relacional, sendo este
bojo, o lugar da palavra vínculo.
A primeira estranheza que me assalta é o uso da palavra tecnologia para
falar sobre as relações humanas em que o vínculo passaria a ser considerado como
uma ferramenta, dispositivo, ou instrumento para manuseio No cotidiano, estas são
palavras que se referem a objetos usados normalmente no trabalho, algo que
~ 159 ~
precisamos como meio para um determinado fim. No vocabulário de uso da saúde
uma ferramenta pode ser um estetoscópio; um dispositivo pode ser aquele
intrauterino, que se usa para determinada finalidade; um instrumento pode ser uma
caneta, maca, etc. Penso que talvez haja aqui uma necessidade de objetivar algo
próprio da subjetividade humana na tentativa de evidenciar sua importância, ao
equiparar tais palavras no mesmo campo ontológico.
O uso de tal vocabulário remete a uma postura utilitarista e pragmática,
própria do campo da saúde, que adquire um sentido quando falamos de relações
humanas. No que diz respeito ao vínculo, ou a qualquer outro aspecto relacional
entre os humanos, até que ponto é válido apresenta-lo ou abordá-lo como algo para
se chegar a um fim? Uma ferramenta ou instrumento uma vez que serviu para
alcançar a finalidade que se propôs, perde sua utilidade. Essa característica se
aplica(ria) ao vínculo entre os humanos? De que forma podemos colocar algum
mediador na relação entre os humanos se estamos falando mesmo é da própria
relação? A perspectiva pragmática e utilitarista se aplica(ria) às relações entre as
pessoas? Se somos humanos inscritos na Linguagem, que repercussão tem o uso de
tais significados no cotidiano de trabalho e de relações entre as pessoas que atuam
na saúde e as que usam seus serviços?
Morin (1999) no terceiro volume da série O Método 3. O conhecimento do
conhecimento nos fala que o espírito humano produz um duplo pensar: um
simbólico/mitológico/mágico, e outro racional/lógico/empírico. A tradição
científica sofre da tendência de só perceber antagonismos e antinomias entre essas
formas de conhecimento. O conhecimento humano do mundo, porém, vai além da
explicação, e inclui a compreensão.
Para Morin (1999) a relação explicação/compreensão comporta tanto
complementaridades quando oposições. A compreensão diz respeito a capacidade
humana de apreender sentimentos, valores, intencionalidades do outro por meio da
empatia/simpatia. É um modo de conhecer que comporta projeção e identificação
num duplo movimento circular, que vai de si para o outro, e retorna. Por meio
~ 160 ~
deste ciclo de projeção-identificação compreendemos de forma espontânea
sentimentos, desejos, temores uns dos outros.
Compreendemos o que sente o outro por projeção, isto é, sabendo o que
nós mesmos sentiríamos em seu lugar, estando nesta ou naquela situação. Com
efeito, a compreensão não é uma confusão de mim com o outro, mas comporta
uma distinção entre o Eu e Tu em conjunção. Morin exemplifica isso nos romances
e filmes quando projetamos e nos identificamos com a vida dos heróis e
compreendemos até as lágrimas a vida do vagabundo, do bandido, da prostituta, do
herói. É quando essa capacidade de compreensão está mais aflorada do que na vida
real.
Morin explica que na esfera psíquica humana a compreensão tem na
projeção/identificação sua força voltada para as relações e situações humanas. Em
nosso cotidiano nossa atividade psíquica funciona na dialógica
compreensão/explicação. Contudo, esclarece ele, é aí que reside uma importante
questão. A compreensão não tem sua validade apenas no modo privado das
relações intersubjetivas, que a coloca fora da esfera do conhecimento sério,
adjetivando-a de pré-racional ou não-científica enquanto forma de conhecer. A
compressão vale como conhecimento psicológico, sociológico e antropológico,
defende Morin.
Para Morin a compreensão é o conhecimento que torna inteligível para um sujeito não
somente outro sujeito, mas também tudo o que é marcado pela subjetividade e pela afetividade.
(MORIN, 1999, p. 162-163). No entanto, se entregue as forças de projeção-
identificação é também passível de erros. Quando concentrada nos fenômenos
humanos a compreensão comporta limites uma vez que a compreensão só pode
compreender aquilo que compreende, e aí, corre o risco da incompreensão. O
estranho, o diferente e o estrangeiro dificilmente estarão inclusos no circuito de
projeção/identificação. Daí, em um mesmo grupo ou sociedade pode haver
barreiras de incompreensão em função das diferenças de sexo, raça, classe, etnia,
~ 161 ~
cultura, etc. Morin segue em frente e acrescenta que a compreensão da
compreensão necessita, então, da explicação da compreensão.
Morin chama atenção para a dialógica presente no circuito
compreensão/explicação. Enquanto a compreensão se faz por projeção e
identificações, a explicação se dá em razão de demonstrações lógico-empíricas
pertinentes. Diz ele, enquanto compreender significa captar os significados existenciais de uma
situação ou um acontecimento em relação à sua origem ou modo de produção, partes ou elementos
constitutivos (...) a explicação refere-se por princípio à objetivação, à determinação à racionalidade.
(MORIN, 1999, p. 162-164). O quadro abaixo, apresentado por Morin, situa bem
esta questão:
COMPREENSÃO EXPLICAÇÃO
Concreto
Analógico
Apropriações globais
Predominância de conjunção
Projeções/identificações
Implicação do sujeito
Pleno de emprego da subjetividade
Abstrato
Lógico
Apropriações analíticas
Predominância da disjunção
Demonstrações
Objetividade
Dessubjetivação
Fonte: (Morin, 1999, p. 164)
Entre a compreensão sem explicação não há apenas antagonismos, mas
uma dialógica, ou seja, uma relação complexa que contem complementaridade,
concorrência e antagonismos. A própria Linguagem humana é metafórica e
proposicional, e como tal, é potencialmente compreensiva e explicativa. A
compreensão contém a explicação e vice-versa. Em nosso pensamento, que se
opera por meio da linguagem, há uma necessidade dessa dialógica explicação-
compreensão. Se nos referimos a fenômenos humanos, e os humanos não são
objetos, tais fenômenos podem e devem ser referidos como tais. Sabiamente,
Morin fala que,
~ 162 ~
(...) considerando a condição humana, deveríamos menos temer as insuficiências da compreensão do que os excessos da incompreensão. Reservamos a nossa compreensão apenas para alguns confrades, correligionários, compatriotas, congêneres, e a estendemos somente a alguns animais e familiares. Ora, a compreensão deveria e poderia abrir-se a todos os nossos congêneres, nossos „irmãos humanos‟; deveria poder superar não apenas a face negra da subjetividade, feita de desprezo e de ódio, mas também a face cinza da objetividade, a indiferença, ambas nos impedem de compreender; ora recusar a compreensão a outro significa recusar-lhe a subjetividade e assim recusar-lhe o direito à autonomia, ou mesmo à existência. (MORIN, 1999, p. 166).
A compreensão não saberia compreender-se a si mesma do mesmo modo
que a explicação não explica a si mesma, ambas ajudam-se mutuamente a conhecer-
se. Para além de algum metanível que as supere, o circuito compreensão-explicação
pode funcionar como um estratégia de correção mútua, esclarece Morin.
Todas as palavras que compõem o amálgama semântico pertencem ao
campo relacional humano e diz respeito a um modo compreensivo de conhecer.
Reportar-se ao vínculo, ao acolhimento, à autonomia das pessoas como um
instrumento, uma tecnologia (leve) encerra as relações numa pragmática que faz do
outro objeto do conhecimento e não alvo da compreensão. E talvez a leveza do ser
se torne insustentável, pela pragmática utilitarista.
Compreender é um modo de conhecer em que há uma implicação daquele
que conhece. E tal modo de conhecer não é menos científico. Concordo com
Morin que erraremos menos se o objetivismo não obscurecer nossa capacidade de
compreender o outro. Se nos reportamos a relações humanas não há mediadores
que a objetivem, e sim, outro modo de conhecimento implicado e implicante.
~ 163 ~
2.2.4. Vínculo de quem com quem?
Após problematizar o que orbita no entorno da palavra vínculo
comentando o lugar de discurso em que se insere (Integralidade da atenção à
saúde), a compreensão de sujeito e subjetividade implicada, a semântica que confere
sentido ao amálgama em que se encerra (tecnologia, ferramenta, dispositivo), passo
agora a problematizar o aspecto relacional nele implicado.
O vínculo humano sem dúvida, como o próprio significado alude, é algo
que liga, une, ata. No entanto, por uma compreensão empática, sabemos que o
vínculo que nos liga, por exemplo, a nossa mãe tem qualidade diferente do vínculo
que nos liga aos nossos irmãos, aos nossos amigos, aos nossos professores, aos
nossos colegas de trabalho, e também, aos profissionais de saúde aos quais,
eventualmente, interagimos. E terá uma qualidade diferente ainda, se referimos a
um profissional médico, psicólogo, fisioterapeuta, agente comunitário de saúde, etc.
E ainda, podemos pensar no vínculo que temos com pessoas que não conhecemos,
mas nos sentimos vinculados por partilhar algo em comum como o lugar de
nascimento, um time de futebol, uma profissão. Com efeito, de partida, já não
podemos colocar os vínculos que há entre os humanos no mesmo patamar, embora
saibamos e reconheçamos que haja vínculos.
Se estivermos no âmbito da saúde, e o vínculo a que estamos nos
reportando refere-se à relação entre os profissionais da saúde e as pessoas que usam
seus serviços, ele pode ter um caráter terapêutico ou não. Se nos reportamos ao
ambiente clínico, certamente esse caráter estará presente. Não obstante, se nos
reportamos ao nível de atenção primária à saúde, em que a relação entre
profissionais e usuários se estabelece não, necessariamente, em função de alguma
doença, mas adquire outro caráter em função das ações de promoção e prevenção
da saúde, o traço terapêutico que reverte o vínculo, perde sua premência, em
detrimento do pedagógico.
~ 164 ~
Por conseguinte, o vínculo é, conforme sua referência. E ainda se ele
reportar a relação entre profissionais de saúde no ambiente da clínica terá um
caráter eminentemente diferente se o ambiente referido for a
comunidade/território, e outro ainda, se fizer referência ao vínculo dos
profissionais de saúde entre si, em seus processos de trabalho. Acontece que tudo
isso se mistura no discurso. Daí, então, é preciso adentrar profundamente no
vínculo, o humano vínculo, para desvelar as facetas que o reveste em cada uma
dessas circunstâncias em que se desdobra.
******
Considerando esses eixos em função dos quais problematizei o vínculo no
campo de saber da saúde coletiva à luz de um pensar complexo, algumas
conclusões são importantes para seguir:
A. Sobre o lugar que ocupa no discurso da saúde coletiva. Inserir ou não a palavra no
discurso da integralidade da atenção à saúde não é o mais importante. Importa
compreender os nexos de sentido que faz desse âmbito, um lugar profícuo ou
adequado para situa-lo. Com efeito, o que é importante aqui é ter em mente
que vínculo não é algo que aí se encerra por uma questão disjuntiva, ou que diz
respeito somente à integralidade da atenção, e não teria relação com a equidade,
tampouco, com a universalidade, e menos ainda, com a participação, enquanto
princípios doutrinários e operativos do SUS.
B. Sobre o amálgama semântico em que se encerra importa dizer que não está amarrado aí
em função de uma indistinção com as demais palavras com as quais,
geralmente, se hifeniza para se aludir ao vínculo na ESF do SUS. É preciso
diferenciar e conceituar. Com efeito, não se constrói conceitos sem
fundamentos ontológicos e epistemológicos. E, a depender da fundamentação
~ 165 ~
em que se ampare, direcionamos o modo de pensar e compreender sobre o
vínculo, o humano vínculo.
C. Sobre o uso do termo em si é indispensável fazer referência sobre qual vínculo me
refiro no universo em que esta palavra cabe para referir-se aos laços humanos.
Se me situo no campo da saúde, é importante não confundir ou equipara-lo aos
vínculos familiares, maternos, paternos, fraternos. Isso porque podemos nos
reportar a eles, transferencialmente falando, para usar uma linguagem
psicanalítica. E ainda, é claro, não se trata também de vínculos de amizade,
amorosos e/ou apaixonados. E por fim, não se trata, ou melhor, não se reduz a
vínculos institucionais em que o poder é a liga, embora tal dimensão aqui não
se exclua.
Há que separar os grãos se quisermos compreender mais do fenômeno.
Vamos em frente agora focando o vínculo, o humano vínculo, em termos
conceituais.
~ 166 ~
2.3. Vínculo, humano vínculo.
Cuando amamos,
nos asciende a los brazos
una sabia inmemorial y remota... esto que nosotros amamos
no es sólo uno,
un ser que ha de venir,
sino la innumerable fermentación;
no una criatura individual,
sino todos los antepasados que,
como ruinas de montañas,
reposan en el suelo profundo de
nuestra existencia.
(Las Elegias de Duino, 1922 de Rainer Maria Rilke)
O vínculo humano é um fenômeno de natureza complexa, justamente por
se tratar de algo humano e humanizante. É algo a respeito do qual todos nós temos
um conhecimento tácito, oriundo da vivência e inscrito em nossa história de vida.
Não é algo sobre o qual normalmente costumamos refletir, simplesmente o
vivemos. Comumente nossos vínculos apenas se tornam centro de nossas reflexões
quando, por algum motivo, se rompem, se enfraquecem ou se desgastam, gerando
intenso sofrimento. Do contrário, os vínculos que tecemos ao longo da vida são
fonte apenas de bem-estar, alegria e prazer, e talvez, por isso, não ocupam nossos
pensamentos. Com efeito, o que sabemos sobre o fenômeno, isto é, o
conhecimento formal que produzimos a respeito dele, geralmente, tem seu ponto
de partida e seu foco de atenção mais voltado para o rompimento dos vínculos.
~ 167 ~
Fazer um levantamento bibliográfico sobre o tema apresentando um
panorama da literatura sobre o assunto é tarefa relevante, mas não é a proposta
aqui. Como fenômeno, o vínculo possui múltiplas dimensões conexas, cujo
entrelaçamento compõe histórias de vida. Com efeito, abordarei o tema em sua
multidimensionalidade articulando a contribuição de diversos campos de saber,
recorrendo a diversos olhares, a partir de um pensar complexo. A tarefa que
assumo é de entrelaçamentos para formar uma ideia mais rica do fenômeno em seu
todo, tecendo diálogos com diversos campos de saber.
Nesta perspectiva apresento inicialmente um olhar da psicologia. Escolhi,
para isso, as contribuições de John Bowlby, pesquisador e estudioso do assunto.
Em seguida, acrescento e articulo um ponto de vista da Etologia11 amparada no
pensamento de Elbl-Eilbesfedt em sua publicação Amor e Ódio. Esses dois
campos de saber, creio eu, nos permitirão adentrar na compreensão do fenômeno
em termos de sua ontogênese e filogênese.
Acrescento em seguida contribuições da psicologia sócio-histórica e da
sociologia buscando compreender o fenômeno a partir do pressuposto que o
indivíduo humano não o é, isoladamente, mas se constrói na e pela sociedade, e se
insere na cultura. Com efeito, amplio um pouco mais a visão do fenômeno em sua
ontogênese e filogênese entrelaçada à diversidade sociocultural humana.
Mesmo a despeito de sua natureza quase inefável, buscarei também
compreender o vínculo humano em sua substancialidade, focando a atenção em sua
natureza afetiva. Recorrerei, para isso, à psicogenética e a neurologia, porque são
11
No prefácio do livro Amor e Ódio de Irenaus Eibl-Eibesfeldt tece longos comentários sobre a Etologia, ramo da
ciência desenvolvida no século XX. Interessante assinalar que a Etologia, como estudo do comportamento animal, tão desconfortavelmente evocador do nosso próprio comportamento, se propõe a descortinar os universais de comportamento específicos do humano, invariáveis com a cultura, emergentes da unidade da espécie, impressos nas três instâncias articuladas do seu ser: genes, sistema nervoso central, comportamento. Mesmo de encontro a objeções ideológicas, contra motivações éticas e interdições religiosas que de certo atrasaram suas pesquisas, a etologia segue e propõe uma metodologia de estudo que lhe confere legitimidade e seriedade. Renè Zazzo, estudioso da psicologia
infantil com base na etologia afirma que a oposição radical entre a natureza animal e humana é falsa porque, tanto em uma como em outra, funcionam operando com sistemas inatos, e o vínculo é um desses sistemas. Para mais esclarecimentos é importante ler as obras de Konrad Lorenz, prêmio Nobel de Medicina, autor que popularizou a etologia e obras de seu discípulo Eibl-Eibesfeldt, cujas ideias fecundaram o campo da psicologia tendo como expoentes John Bowlby e Réne Zazzo.
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campos de saber que apresentam uma produção significativa sobre a natureza das
emoções e sentimentos humanos.
Em função de sua multidimensionalidade abordarei o fenômeno
articulando as contribuições de diversos autores com diferentes pontos de vistas
que se coadunam em termos epistemológicos, isto é, considero a raiz
epistemológica a partir da qual as multidimensões se apresentam, para tecer o
diálogo entre autores de diferentes campos de saber.
Em termos didáticos, como forma de facilitar a compreensão do que
proponho apresentar, recorro a uma imagem-metáfora. Apresento o vínculo
representado por uma estrela de diversas pontas, cuja articulação lhe confere
densidade e tamanho. Cada lado, ou ponta, representa as contribuições de um
campo de saber e abrange uma articulação com os demais. A estrela, em si,
representa o fenômeno vínculo. A sua forma é hologramática, ou seja, a parte
contém o todo, e o todo contém as partes. Somente o conjunto das partes é que dá
sentido ao todo conferindo-lhe forma, densidade e expressão, de maneira que o
fenômeno vai adquirindo mais luz à medida que cresce em densidade e tamanho,
como mostra a figura abaixo:
Biologia
Psicologia
9 – Estrela
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Metaforicamente a estrela (vínculo) se torna mais nítida, mais densa e maior
à medida que articula e integra ideias oriundas de diversos campos de saber. Cada
ponto de vista agrega algo importante ao tema, enriquecendo e alargando a
compreensão do fenômeno. Como diz o poeta:
Do ponto de vista da terra quem gira é o sol
Do ponto de vista da mãe todo filho é bonito
Do ponto de vista do ponto o círculo é infinito
Do ponto de vista do cego sirene é farol
Do ponto de vista do mar quem balança é a praia
Do ponto de vista da vida um dia é pouco
(...) Às vezes o ponto de vista tem certa miopia,
Pois enxerga diferente do que a gente gostaria
Não é preciso por lente nem óculos de grau
Tampouco que exista somente
Um ponto de vista igual
(Ponto de Vista, Casuarina)
Nesta perspectiva é preciso dialogar a partir de diversos pontos de vista na
tentativa de articular e compreender de forma mais profunda. Vou dialogar com
diversos autores com ideias oriundas de diversos campos do saber, e assim, tecendo
ideias, sobre o vínculo buscando compreender sua filogênese e ontogênese. Como
se trata compreender humanidades, cuja diversidade é a marca, busquei reunir
ideias para compreender a multiplicidade do uno e a unidade da multiplicidade que
encerra o fenômeno. Ao final retorno à estrela (ao tema) para delinear uma nova
compreensão sobre ele, juntando as ideias para além do conhecimento tácito que
todos temos sobre o vínculo, buscando delinear uma ideia conceitual do fenômeno.
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2.3.1. Filogênese e ontogênese do vínculo entre os Humanos.
Um ponto de vista da Psicologia.
Não se pode negar a relação íntima entre Psicologia e vínculo Humano, isto
é, não se pode falar de um sem, necessariamente, remeter ao outro. Considero
então esse como um bom começo. Antes, porém, de iniciar o assunto creio ser
relevante um comentário geral sobre a Psicologia.
O rótulo de psicologia pode ser atrelado a uma diversidade de linhas
teóricas. Podemos perguntar: o que poderia haver de comum entre a Psicanálise e o
Behaviorismo? Que fio pode ligar estes, à epistemologia genética de Piaget ou às
teorias Humanistas de Carl Rogers? O que dizer da psicologia sócio-histórica e a
Psicologia da Libertação de Martin Baró? O que elas teriam a dizer sobre o vínculo,
o humano vínculo? Reconheço que é com essa tal diversidade que tenho que me
ater e me situar para abordar esse assunto, considerando a raiz epistemológica que
funda esse estudo.
Tal diversidade se deve certamente a fatores históricos, sociais e
epistemológicos que produzem modelos explicativos distintos sobre o
comportamento e/ou humana e sua natureza psíquica, a partir de concepções
idealistas ou materialistas, racionalistas ou empíricas, que ora privilegiam aspectos
orgânicos, mentais, estruturais e/ou funcionais.
Um ponto de partida em psicologia que considero promissor neste assunto
são os estudos sobre o vínculo de John Bowlby, autor referência no assunto neste
campo de saber. Segundo analisa Bowlby (1990), até a metade da década de 50
predominava uma concepção sobre a natureza e origem dos vínculos. Tanto Freud
e seus discípulos quanto os teóricos da psicologia da aprendizagem compartilhavam
explicações que remetiam ao alimento e ao sexo como explicações para o
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comportamento de vínculo. Essa concepção teórica propunha duas espécies de
impulsos: os primários, ligados ao alimento e ao sexo; e os secundários, ligados à
dependência e outras formas de relações pessoais. As explicações sobre o porquê
uma criança se liga a sua mãe ou uma figura substituta giravam em torno do fato da
sua dependência em termos de satisfação de necessidades fisiológicas. Em relação à
ligação dos adultos, o sexo era considerado uma explicação óbvia e suficiente.
Entretanto, segundo informa Bowlby, esse modelo tradicional de
explicação foi colocado em questão por estudos sobre a privação dos cuidados
maternos e seus graves efeitos no desenvolvimento da personalidade. Dois estudos
clássicos citados por Bowlby contribuíram para pensar a inadequação desse modelo
explicativo. No início dos anos 50 os trabalhos do etologista Konrad Lorenz sobre
o Imprinting tornam-se mais conhecidos e suas pesquisas colocaram em cheque a
importância da alimentação na formação de vínculos entre mãe e bebê. Lorenz
(1935) demonstrou em suas pesquisas que durante os primeiros dias de vida,
algumas espécies de aves desenvolvem fortes vínculos com a mãe, somente com a
exposição do filhote à figura materna ou a figura com a qual se familiarizou, sem
nenhuma referência ao alimento.
Outro estudo importante no campo da etologia, também mencionado por
Bowlby, são os estudos de Harlow (1958). O resultado de suas pesquisas com
filhotes de macacos Rhesus criados com mãe-boneco substituta demonstram que o
bebê se agarra de forma preferida à mãe substituta que não o alimenta, desde que
seja um boneco macio e confortável.
A partir destas pesquisas e de numerosos outros estudos empíricos com
crianças, bem como de suas próprias pesquisas, Bowlby amplia sua teoria e se afasta
dos conceitos que propunham as chamadas Teorias da Dependência. Assim,
fenômenos que, antes compreendidos em termos de necessidade de dependência, ou
relações objetais ou simbioses e individuação, adquirem uma nova compreensão à luz dos
estudos etológicos, que segundo o autor, são mais compatíveis com as concepções
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da neurofisiologia e da biologia do desenvolvimento. Bowlby apresenta sua teoria
da ligação definindo-a como:
Um modo de conceituar a propensão dos seres humanos a estabelecerem fortes vínculos afetivos com alguns outros, e de explicar as múltiplas formas de consternação emocional e perturbação da personalidade, incluindo ansiedade, raiva, depressão e desligamento emocional, a que a separação e perda involuntárias são origem. (...). O comportamento de ligação é concebido como qualquer forma de comportamento que resulta em que uma pessoa alcance ou mantenha a proximidade com algum outro indivíduo diferenciado e preferido, o qual é usualmente considerado mais forte e (ou) mais sábio. Embora seja especialmente evidente durante os primeiros anos da infância, sustenta-se que o comportamento de ligação caracteriza os seres humanos do berço à sepultura. (BOWLBY, 1990, p. 122).
Para o autor o comportamento de ligação pertence a uma classe distinta do
comportamento de alimentação e do comportamento sexual, colocando-os com igual
significado na vida humana. O contraste com o conceito da dependência é
esclarecido pelo autor em função do fato de que nenhuma função biológica lhe é
atribuída, não se relaciona com nenhum indivíduo específico ou com a manutenção
de proximidade, tampouco se associa a emoções fortes. Além disso, há implicações
de valor que opõem a teoria da dependência ao conceito de ligação, esclarece o
psicólogo, ao afirmar que enquanto que qualificar uma pessoa como dependente tende a ser
depreciativo, descrevê-la como ligada a alguém pode muito bem ser uma expressão de aprovação.
Inversamente, ser uma pessoa desligada em suas relações pessoais é considerado, usualmente, como
um comportamento que nada tem de admirável. (BOWLBY, 1990, p. 124). Para o autor
esse elemento depreciativo não favorece o uso clínico do conceito. Dependência e
independência para ele são mutuamente excludentes, ao passo que terminologias,
tais como, confiar em, ligado a, contar com, autoconfiança guardam entre si uma relação de
complementaridade. E mais, o conceito de ligação subentende uma ou mais
ligações a pessoas amadas, e o de dependência tende a ser anônimo, e não implica
um tal relacionamento.
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Bowlby apresenta as seguintes características para o comportamento de ligação:
1. Especificidade: refere-se a um ou mais indivíduos específicos em ordem de
preferência;
2. Duração: ligação que se estende pelo ciclo vital humano, embora sejam
mais vívidos na infância e adolescência;
3. Envolvimento Emocional: relaciona-se com as intensas emoções que surgem
durante a formação, renovação e/ou rompimento de vínculos;
4. Ontogenia: refere-se aos vínculos formados nos primeiros meses de vida
do bebê;
5. Aprendizagem: relacionada ao aprender distinguir o familiar do estranho,
aprendizado que persiste em situações de repetidas punições
ocasionadas pela figura de ligação;
6. Organização: criação de vínculo por meio do refinamento de sistemas
comportamentais que adquirem maior complexidade pela incorporação
da capacidade de representação;
7. Função Biológica: refere o valor de sobrevivência do comportamento para
espécie, cuja função é a proteção, especialmente contra predadores.
Com base em seus estudos Bowlby formula o conceito de Base Segura.
Amparado em evidências que o ser humano em todas as idades serão mais felizes, e
se sentirão mais capazes quando sabem e acreditam que podem contar com a ajuda
de outro ser humano, caso precise. Tal pessoa definida como figura de ligação, é aquela
que fornece ao companheiro ou companheira uma base segura a partir da qual poderá atuar.
(BOWLBY, 1990, p. 97).
Tal figura de ligação não se
limita, contudo, a fase infantil da
vida humana, esse é o ciclo da vida
em que isso se torna mais evidente,
entretanto, tal necessidade existe até
a fase adulta da vida humana. 4. Mãe e Criança - Picasso
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Bowlby defende a hipótese de que a autoconfiança é alicerçada em paralelo
com a confiança em um dos pais ou figura de ligação que proporciona a criança
uma base segura a partir da qual ela pode realizar explorações. O alimento
desempenha apenas um papel secundário no comportamento de ligação que se
manifesta com seu máximo vigor nos primeiros anos de vida, e persiste, menos
intensamente, por toda a vida, a partir de sua função originária de proteção.
Relacionado ao padrão do comportamento de ligação, o psicólogo faz
alusão a outros padrões, tais como, o comportamento de exploração e o de cuidar.
A atividade exploratória é algo imprescindível na vida animal, inclusive a humana,
porque ajuda ao animal e/ou ao humano a formar um quadro das características
ambientais que podem significar sua sobrevivência. Com efeito, esses padrões de
comportamentos são antitéticos um do outro, e se alternam em indivíduos
saudáveis, acrescenta o autor. Por outro lado, o comportamento de cuidar, que assume a
figura de ligação, é complementar ao comportamento de ligação e atende a duas funções:
estar disponível quando solicitado e pronto para intervir caso a criança ou pessoa a
quem se dispensa cuidados, que pode ser um idoso, esteja em apuros. Tais funções,
a depender de como sejam desempenhadas pela pessoa que cuida, podem
determinar, em grau considerável, se a criança será mentalmente saudável em seu
desenvolvimento.
A partir de tais pressupostos Bowlby ainda esclarece o equívoco comum
das teorias psiquiátricas e da psicopatologia em relação ao medo. Tradicionalmente,
tais teorias defendem que o medo só pode manifestar-se em situações que
realmente representem perigo. Fora disso, tal expressão de comportamento é
considerada neurótica. Isso leva a uma conclusão erronia baseada no fato de que a
separação da figura de ligação não ser considerada realmente perigosa, e que a
ansiedade gerada por tal separação, ser compreendida como neurótica. O exame de
tais questões, segundo o autor, evidencia que tanto o pressuposto, como a
conclusão, é falsa.
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Embora a situação de separação não represente um perigo real, a reação de
temor por parte dos indivíduos frente a tais situações podem ser explicadas,
segundo as teorias de Bowlby, porque situações como essa envolvem
potencialmente um risco que ameaça a sobrevivência. Assim, por exemplo, ruídos,
estranhamentos, isolamento, e para muitas espécies, a escuridão, são situações que
potencialmente significam o prenúncio de um risco real. Como o comportamento
de temor e alarde frente a tais situações tem valor de sobrevivência para muitas
espécies, o comportamento é tal como se o risco de fato estivesse presente. Assim,
esclarece o psicólogo “respostas de medo suscitadas pela ocorrência natural de tais indivíduos
de perigo fazem parte do equipamento comportamental básico do homem.” (BOWLBY, 1990,
p. 127). Tal explicação deixa claro que a ansiedade, produto de separação
involuntária da figura de ligação, pode ser indício de uma reação normal e
perfeitamente saudável. O que ainda causa indagações são as diferenças individuais
em termos de grau de intensidade que tal ansiedade causa em diferentes indivíduos.
Em síntese, Bowlby com seus estudos, defende a tese de que a capacidade
humana para estabelecer vínculos saudáveis possui estreita relação com as
experiências vividas com os pais ou a figura de ligação, e o modo de desempenho
desse papel de cuidador. Em termos ontogenéticos a capacidade humana para
vincular-se surge desde a infância a partir de seu comportamento de ligação com a
mãe ou figura de ligação responsável pelo cuidado. Uma pessoa adulta
autoconfiante resulta da confiança da criança depositada em um dos pais ou na
figura de ligação capaz de proporcionar uma base segura a partir da qual a criança
possa realizar explorações. O vínculo humano e a autoconfiança e autonomia que
dele derivam, é uma capacidade humana que inicia com o nascimento e perdura por
toda a vida humana.
A compreensão de Bowlby sobre o vínculo se ampliou a partir dos estudos
e pesquisas oriundas da etologia. A partir daí, o psicólogo direcionou seus estudos
para o campo da psiquiatria, embora sua teoria sobre o vínculo humano não se
restrinja a idade infantil ou a patologias. Creio, contudo, que seguindo seu percurso,
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e ampliando nossa visão do vínculo no campo da etologia e da biologia, é possível
elucidar ainda mais a compreensão sobre o vínculo humano.
Assim, seguindo na esteira de pensar de Bowlby buscarei um diálogo com a
etologia para pensar o vínculo como capacidade humana para relacionar-se com os
demais seres humanos e outras espécies animais.
Um ponto de vista da Etologia
Antes de iniciar o assunto propriamente a partir deste ponto de vista,
tecerei alguns comentários importantes para situar os estudos etológicos.
A Teoria da Evolução de Charles Darwin datada do século XIX nos
arrebatou, como humanos, de um lugar privilegiado na criação e nos colocou como
mais uma, dentre outras espécies animais. Tal fato, ainda hoje é um tema polêmico
para humanidade. Desde a publicação da primeira edição da Origem das Espécies, em
1859, a divulgação das ideias darwinistas, como em qualquer campo de saber,
possui tendências ideológicas, que ora fundamentam crenças que somos produtos
do meio, ora seres programados geneticamente, cuja evolução é regida pela lei do
mais forte.
A Teoria Evolucionista de Darwin fora o marco para outras formas de
compreender os humanos para além das ideias criacionistas de que somos a
imagem e semelhança de Deus. As ideias de Darwin, tanto quanto as de Freud,
reposicionaram nossa compreensão sobre o humano descentrando-nos do centro
superior da hierarquia animal no que diz respeito a nossa biologia e a nossa
racionalidade. Na modernidade, onde a máquina é a metáfora que explica o
universo, nos sentimos mais confortáveis sendo comparados a máquinas que aos
animais, sobretudo, em função da herança teológica que coloca o humano no topo
da hierarquia nos seres vivos.
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Entretanto, seja qual for nossa origem - divina ou animal - é anterior, e
permanece a polêmica em torno de nossa natureza humana que longe está da
máquina em termos de similitudes, embora, na modernidade, fiquemos mais a
vontade e agimos com mais naturalidade sendo comparados à máquinas do que aos
animais. Há correntes de pensamentos que fazem uma leitura das ideias darwinistas
e sustentam a crença de que somos seres antissociais, competitivos e que
sobrevivemos em função da lei do mais forte e do mais apto, tão amplamente
divulgada na sociedade contemporânea, e já tão apropriada no senso comum,
quanto a ideia criacionista. segundo a qual, somos imagem e semelhança de um
Deus. A polêmica sobre nossa verdadeira natureza prossegue em ambas as
convicções com defesas implacáveis, matizadas por diversas correntes ideológicas.
A questão chave permanece polêmica e pontos de vistas extremos ainda
prosseguem em suas defesas. O ser humano é bom por natureza e a sociedade é
que o corrompe, assim como o apresentava Rousseau (1712-1778), um dos
principais filósofos Iluministas. Ou, ao contrário, o ser humano é possuidor apenas
de instintos de conservação e avidez de poder, como assim acreditava Hobbes
(1588-1689). Entre tais posições extremas, é preciso um pensar sereno que se
interrogue para onde nos levam tais convicções.
Feito essas considerações, passo agora para a contribuição da Etologia cuja
produção de saber é generosa em apresentar estudos e fundamentos que
apresentam nossa natureza humana como possuidora tanto de instintos de
agressividade como instintos gregários e altruístas. É nessa senda que se situa uma
produção de conhecimento significativa que ultrapassa as matizes ideológicas e
maniqueístas sobre a natureza humana e nos oferece uma valiosa contribuição para
compreensão do vínculo humano em sua filogênese.
Eibl-Eibesfeldt, discípulo de Konrad Lorenz, em seu livro Amor e Ódio, de
1970, defende a tese que, tanto o comportamento agressivo como o altruísta, são
pré-programados através de adaptações genéticas processadas ao longo da história
das espécies. Para o etólogo nossos impulsos agressivos são equilibrados por uma
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tendência, também inata, de sociabilidade e de cooperação. Segundo compreende o
autor nós humanos somos capazes de viver em grupos, mesmo em face à
agressividade que nos é inerente. A partir dessa premissa o autor se propõe em seu
estudo responder a várias questões. As perguntas chaves que trata seu livro são:
Com que meios constituímos e mantemos vínculos com os nossos semelhantes, ultrapassando a
barreira da agressividade? Haverá instintos vinculadores inatos que se oponham ao instinto
agressivo? Que papel desempenha neste caso o instinto sexual? Como se desenvolveram a
sociabilidade e o amor no processo histórico de evolução das espécies e durante o período evolutivo
da juventude (ontogenético)? Como se desenvolveu o ódio? (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p.
27). A leitura é bem instigante, entretanto, para fins deste capítulo, vou reter apenas
algumas ideias chaves do autor, focando aquelas relacionadas à origem dos vínculos
humanos.
Para Eibl-Eibesfeldt o vínculo pessoal nasce concomitante aos cuidados
dispensados à prole. O autor refere o conceito de amor em seu livro esclarecendo
que não o utiliza em referência ao amor sexual, mas o aborda, de um modo geral,
como um vínculo emocional e pessoal que une um ser humano a outro ou ao vínculo resultante
da identificação com um grupo determinado. O contrário do amor é o ódio, enquanto rejeição
emocional individualizada, e o ódio de grupo daí resultante. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p.
28).
Em capítulo mais a frente quando aborda a agressividade e os rituais
vinculadores o etólogo afirma, conforme apontam suas pesquisas, que
filogeneticamente não poderia haver a amizade sem os cuidados maternais. O amor
entre os humanos resulta, em termos da filogênese, dos cuidados e defesa das crias,
e como o grupo pode ser considerado uma ampliação da família, a defesa do grupo,
com suas emoções correspondentes, também tem derivação da defesa da prole e da
família.
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O cuidado da prole condiciona precocemente associações individuais em
função dos cuidados individualizados em relação às crias, esclarece o autor. É isso
que vai oferecer condições para uma vida social diferenciada. A defesa da prole e
do grupo é a força de coesão. Os répteis e anfíbios, esclarece ele, são espécies cuja
agressividade se distingue comparada às espécies que cuidam de seus filhos. Em
espécies que não dispensam cuidados as suas crias não se observa quaisquer
indícios de camaradagem de luta ou defesa de grupo. Eibl-Eibesfeldt afirma que:
não conheço nenhum vertebrado terrestre que se una para atividade comum, como a caça ou a luta,
desenvolvendo aí um vínculo pessoal com membros da mesma espécie, e que entre seus antepassados
não tenha comprovada alguma forma de cuidados para com a prole. (EIBL-EIBESFELDT,
1970, p. 152).
Em relação ao instinto sexual, o etólogo afirma dele resultar forte
motivação para estabelecer contato. Por ser um instinto tão ou mais ancestral que a
agressividade, uma vez que até os organismos monocelulares a ele se submetem, é
pertinente pensar se através dele, poderá se estabelecer uma vinculação duradoura
entre congêneres. O etólogo adianta que este é um caso mais raro do que se
poderia supor. Apenas os humanos e alguns símios estabelecem vinculação
duradoura através dele. O instinto sexual é raramente utilizado na criação de
vínculos, embora, entre os seres humanos, desempenhe um papel importante. De
5 - Mamíferos
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acordo com o etólogo o amor não radica na sexualidade para o fortalecimento secundário do
vínculo. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 153).
Segundo Eibl-Eibesfeldt há duas raízes principais de sociabilidade entre os
vertebrados. A primeira resulta da procura pelo contato motivada pelo instinto de
fuga. O congênere adquire um valor de lar, pois em grupo, há segurança. Isso vale
dos peixes, que vivem em cardumes, até os primatas superiores. A segunda raiz de
motivação para sociabilidade é o instinto de cuidados paternos que une os pais à
prole, e que se presta para uma consolidação da vinculação entre adultos. Segundo
o etólogo apenas os animais que cuidam de suas crias são propensos à criação de
vínculos ultrapassando a barreira da agressividade.
Para o etólogo as observações e pesquisas de Korand Lorenz, de quem foi
discípulo, não há dúvidas de que o amor é um filho da agressividade. Explica ele,
que esse pensar de Lorenz a partir de suas meticulosas observações justifica-se
porque a agressividade intra-específica é muito anterior, em termos evolutivos, do
que a amizade e o amor. O vínculo pessoal só aparece nos teleóstos, uma subclasse
de peixes; nas aves e mamíferos, que são grupos animais que só aparecem depois
do período mesozoico tardio. O autor acrescenta que há uma agressividade intra-
específica sem o seu contrário, o amor, mas por sua vez não há amor sem agressividade.
Contudo, Eibl-Eibesfeldt acrescenta suas ideias às de Lorenz afirmando que a
função da agressividade reorientada é, justamente, fortalecer o vínculo por meio das
cerimônias de apaziguamento e que, certamente, podemos verificar que não pode
haver amizade sem agressividade. Não obstante, salvo raras exceções, o autor
acrescenta que não haveria amizade sem os cuidados maternais. De acordo com
suas pesquisas e observações nenhum caso foi registrado de união entre animais
exclusivamente por meio da agressividade. Em suas palavras de um modo geral o amor
não é primordialmente um „filho‟ da agressividade, mas que nasceu com o desenvolvimento dos
cuidados maternais. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 27).
A ontogênese “repete” a filogênese em termos hologramáticos. Em função
disso, nossa capacidade de amar está profundamente relacionada com a experiência
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vivida no seio da família, em particular, na relação mãe/bebê, que nos habilita
como seres de sociabilidade, como bem nos mostrou as pesquisas de Bowlby.
Como defende o etólogo “A capacidade de estabelecer um vínculo pessoal evolui
filogeneticamente e em conjunto com os cuidados para com a prole e que isso se repete, até certo
ponto, no período ontogenético. A criança adquire a faculdade de amar o próximo através do amor
para com a mãe. Sem passar por esta fase seria difícil, senão impossível, para a criança identificar-
se com o grupo.” (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 28).
Em sua origem, nós humanos evoluímos para uma vida em grupos
individualizados. Entretanto, com a vida moderna, formaram-se comunidades
anônimas, e com elas, a dificuldade de identificação. Se temos impulsos inatos para
estabelecer vínculos com estranhos, também temos a tendência para fecharmo-nos
em grupos isolados. Tais circunstâncias geram padrões de comportamentos de
atribuir papel de inimigos a membros de grupos estranhos. Os seres humanos
sentem-se menos vinculados a estranhos, e dessa forma, esclarece o autor, estamos
mais propensos e menos inibidos em nossa agressividade em relação a
determinados grupos que consideramos estranhos. Eis a razão para o aumento de
conflitos intragrupais, explica o etólogo. Caberia a nós, defende ele, descobrir se
isso acontece de forma involuntária, a depender da associação de determinadas
ideias. Tal ponto é relevante para colaborar no caminho de construção e
manutenção da paz mundial, sobretudo, com nossa vida em sociedades anômimas
como, por exemplo, na contemporaneidade com a vida urbana, completa o autor.
Em todo seu livro Eibl-Eibesfeldt defende a tese que, tanto o
comportamento agressivo como o altruísta são pré-programados por adaptações
genéticas processadas ao longo da história das espécies. O etologista busca
esclarecer pontos de vista que ideologicamente servem a visões maniqueístas e
pragmáticas sobre a natureza humana que justificam, desculpam e defendem a
agressividade como algo inato a serviço da seleção e sobrevivência dos mais aptos,
sendo o controle a única saída. A declaração da agressividade como um instinto de
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sobrevivência que explica e naturaliza uma cultura de violência só se justifica em
função de uma visão reducionista e unilateral sobre a biologia humana.
Os etologistas, em geral, defendem que referir um comportamento como
uma disposição inata não significa de modo algum que tenha que ser aceito como
imutável e inacessível a uma influência pedagógica. Segundo o Eibl-Eibesfeldt
Qualquer comportamento desenvolvido no decurso da história genética das espécies (filogênese) pode
perder de um momento para o outro a sua função primitiva. Assim, é possível compreender que,
outrora, um forte instinto agressivo tenha contribuído para impulsionar o desenvolvimento
intelectual do homem (...) e tenha forçado a difusão do homem por toda a terra. Hoje, um excesso
de agressividade pode perfeitamente conduzir à sua auto-destruição. (EIBL-EIBESFELDT,
1977, p. 25-26). É preciso reconhecer que, não obstante toda a agressividade
humana, tecemos e mantemos vínculos como nossos semelhantes ultrapassando a
barreira da agressão. Lorentz aborda os instintos, na verdade ele fala de um
parlamento dos instintos, esclarece Eibl-Eibesfeldt, e que em função disso o repertório
comportamental humano compõe-se de um complexo sistema de condutas, muitas
vezes, de ação contrária.
Creio que é nesta relação dialógica de oposição e complementaridade entre
padrões de comportamento inatos que estabelecemos condições para criar e manter
vínculos com nossos semelhantes. Em suas conclusões o autor defende que:
A nossa análise biológica do comportamento humano mostrou, em primeiro lugar, que o instinto da agressividade, que nos é inato, tem opositores naturais. Com a sua ajuda estamos em condições de estabelecer e manter vínculos com os nossos semelhantes. Na verdade há um forte impulso para a sociabilidade, que nos é inato. Todos esses mecanismos de vinculação ao grupo são filogeneticamente muito antigos e tudo parece confirmar que se desenvolveram mão em mão com os cuidados para com a prole. Com esta „invenção‟ as aves e os mamíferos adquiriram, independentemente uns dos outros, a capacidade de prestar apoio mútuo e, assim, de formarem agrupamentos altruístas que disputam em conjunto a luta pela sobrevivência. O apoio mútuo adquire deste modo um papel cada vez mais significativo na evolução dos organismos
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superiores. Dos agrupamentos familiares nasceram as grandes famílias, as hostes, e por fim os agrupamentos anônimos fechados dos mamíferos e dos seres humanos. Os meios de vinculação permanecem, no fundo, sempre os mesmos e derivam quanto à sua origem essencialmente do repertório dos tipos de comportamento que vinculam mãe e filho. A relação mãe-filho foi filogeneticamente, e é no desenvolvimento individual, o centro cristalizador de toda a vida social. (...) encontra-se aqui a raiz para a nossa tendência visível para o estabelecimento de vínculos pessoais, tendência que nos é inata. Através da relação pessoal mãe-filho desenvolvem os seres humanos a confiança original sobre a qual se desdobra a nossa atitude sociável fundamental. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 268-269).
Em face às sociedades anônimas se coloca como questão crucial pensarmos
em maneiras de despertar um novo sentimento de unidade social, arremata o
etólogo em suas reflexões. A hostilidade e a educação sem o amor aniquilam, em
nós humanos, nossa capacidade inata para o vínculo e o amor. Quando optarmos
por dar mais relevo aos aspectos vinculares de nossa natureza humana, aí então,
podemos nos assegurar de proporcionar um futuro mais feliz para as próximas
gerações, defende o etólogo.
Ele tem razão em suas observações porque testemunhamos um fazer
humano voltado para preservação da vida em todos os aspectos. Há pessoas e
cientistas que produzem conhecimento e dedicam suas vidas na preservação da
diversidade da vida, da saúde humana e ambiental. Entretanto, há também ações
humanas cujas consequências são a destruição e o aniquilamento de diversas
formas de vida. Lamentável é que somente essa segunda classe de ações tem amplo
espectro em termos de divulgação.
Construir modos de vinculação saudável é uma tarefa humana urgente se
quisermos apostar em um futuro feliz para a humanidade, é o que conclui Eibl-
Eibesfeldt em seus estudos etológicos.
Michel Chance, outro etologista, em seus estudos sobre as sociedades de
macacos (chipanzés, babuínos, rhesus, símios e gorilas) classifica as sociedades
~ 184 ~
constituídas por esses primatas em dois tipos. O primeiro é a sociedade agonística,
termo utilizado para descrever a tensão constante entre fuga e agressão vivenciado
intermitentemente pelos membros de uma sociedade, que devem permanecer
juntos para beneficiar-se da proteção de um macho dominante, em que este mesmo
é uma constante fonte de ameaça para os próprios membros do grupo. Tal modo
de comportar-se gera uma constante fonte de tensão que domina os movimentos
dos membros do grupo. Este modo de vida se caracteriza por uma separação, e a
agressão e a ameaça são constantes nas relações entre os membros do grupo.
O segundo tipo é o modo de vida hedonístico dos grandes chipanzés que
se caracteriza pelo modo sensível de contato (beijos, toques, apertos de mão,
abraço) e as relações entre os membros são controladas pelo contato, e não pela
agressão e ameaça. O contato constante tranquiliza o grupo impedindo o aumento
da tensão e excitação, e suas relações sociais estão ligadas por uma fonte recíproca
de cuidado e atenção.
As sociedades agonísticas se caracterizam por sua estrutura fechada, rígida e
de permanente vigilância, com relações de distanciamento provocadas por ameaças
e agressões. As sociedades hedonísticas se estruturam em função da relação
sensível, do contato e da atenção entre seus membros.
Pelo exposto, com as contribuições da etologia podemos compreender que
em nossa natureza humana somos tão propensos ao auto-aniquilamento quanto à
convivência amorosa. Somos capazes de construir um modo de conviver em uma
sociedade agonística ou hedonística em função da plasticidade do nosso
comportamento. Contudo, é preciso construir processos de consciência e
inteligência que direcione nossa liberdade em direção à convivência amorosa.
Afirmar que o amor e o afeto é uma propensão inata do humano não
significa de modo algum a ideia romântica que exclui nossa tendência agressiva e
sua propensão à guerra, homicídios, genocícios e infanticídios. Isso porque como
vimos em termos de filogênese é da agressividade que se desdobra o padrão de
~ 185 ~
comportamento vinculador. O que é importante em termos de construção de
conhecimento sobre a natureza humana é retirar o amor e o afeto de um lugar
metafísico inalcançável e compreendê-lo em nosso cotidiano, tanto em termos
filogenéticos, quanto da ontogênese humana.
As pesquisas de Bowlby contribuem para nossa compreensão sobre o
vínculo e sua importância na vida humana em todos os ciclos da vida. Seus estudos
demonstram claramente que a autoconfiança na vida adulta resulta de uma base
segura proporcionada pelo modo de vinculação saudável da criança com seus pais.
Em contrapartida, Eibl-Eibesfeldt também nos aponta luzes para compreensão da
natureza humana no que temos de comum, esclarecendo a unidade que há na
diversidade humana expressada pela afetividade que nos vincula uns aos outros
como espécie.
Em síntese, vínculo, o humano vínculo, é um fenômeno gerador da
humanidade em termos da filogenia, e também de humanidade, em termos da
ontogenia. Somos uma espécie capaz de aprender o amor a partir, e em função de
nossa biologia.
A afetividade é o fio que nos vincula uns com os outros e diz respeito a
nossa capacidade de se emocionar e sentir. Isso é o que temos em comum como
espécie humana, a despeito da diversidade social, histórica e cultural pela qual se
forja e se expressa nossa humanidade. Por outro lado, como nos adverte Morin, o
indivíduo, como o nó górdio da trindade indivíduo-sociedade-espécie, não se reduz à
espécie. Tampouco, pode ser dissolvido na sociedade. Como nos convida o pensar
complexo de Morin é preciso operar com um pensamento capaz de perceber a
unidade em meio à diversidade e, ao mesmo tempo, captar as diferenças sem,
contudo, subsumi-las no diverso.
~ 186 ~
2.3.2. Vínculo humano e a multiplicidade do uno.
Separar as partes do todo e analisar as partes separadamente é essencial
para o pensamento clássico científico. Entretanto, é preciso ir além e não perder de
vista aquilo que une, isto é, não perder o todo, e com isso, correr o risco de tomar a
parte pelo todo. É justo neste ponto que devemos perceber a unidade na
diversidade e a multiplicidade do uno, reconhecendo como diz Morin (2003a) que a
diversidade criadora é nosso tesouro, mas a unidade geradora é a fonte da nossa
criatividade.
Seguindo na senda dessa lógica complexa de pensar e no intuito de alargar e
clarear mais o fenômeno que me ocupo, agregarei ao tema algumas contribuições
oriundas da psicologia sócio-histórica e da sociologia, buscando compreender agora
a multiplicidade do uno.
Um ponto de vista da Psicologia Sócio-histórica.
A afetividade é o fio que nos vincula a todos como espécie, todavia, nossa
humanidade não se reduz à espécie, somos humanos como cultura e história, nos
humanizamos na e pela sociedade. Os estudos da psicologia sócio-histórica
inserem o indivíduo, nó górdio da trindade, na cultura, evidenciando a diversidade
inerente aos processos de vinculação entre os humanos.
Sheila Daniela Medeiros dos Santos (2009) da Universidade de Campinas
traz uma contribuição interessante em seu artigo intitulado A natureza do vínculo na
vida humana. Ela propõe uma reinterpretação do vínculo em uma perspectiva
histórico cultural, e avança por outras sendas a partir dos pressupostos apontados
~ 187 ~
por John Bowlby. Para ela a necessidade de criar vínculos surge entre a natureza e a
cultura, cruzamento responsável pela sociabilidade humana.
Segundo analisa Santos em seu artigo as diversas teorias que abordam o
vínculo do bebê humano com a figura de ligação apresentam diversos pontos de
inconsistência e, por isso, se apresentam como objeto sistemático de reflexões.
Segundo ela, a ideia intrigante e nebulosa não é o fato em si do estabelecimento
desta união mãe/bebê, e sim, a origem deste vínculo e suas implicações para
existência humana.
Após apresentar os principais conceitos da teoria da ligação de Bowlby e
sua aproximação dos estudos etológicos de Konrad Lorenz, Santos se propõe
agregar à noção de vínculo alguns constructos da psicologia sócio-histórica para
compreender mais amplamente a natureza do vínculo na vida humana.
Com base na afirmação de Renè Zazzo12 (1974) segundo a qual tanto as
proposições psicanalíticas quanto as derivadas das teorias da aprendizagem são
insuficientes na explicação sobre a origem do vínculo na vida humana. A autora
afirma que, embora os teóricos das relações objetais e da aprendizagem
reconheçam a importância chave do vínculo na vida humana, ainda não há uma
abordagem científica que forneça uma compreensão mais adequada sobre a criação,
manutenção e rompimentos dos vínculos afetivos.
A partir disso a autora apresenta a perspectiva sócio-cultural em psicologia
que compreende as funções biológicas como os substratos sobre os quais se
constroem as funções sociais. Com base nessa premissa a autora defende que as
relações sociais se sustentam numa sociabilidade cuja base é a necessidade de criar vínculos.
(Santos, 2009, p. 192). Os humanos somos sociais por natureza, em função disso,
argumenta a autora, há uma natureza biológica da sociabilidade que poderá ser
entendida no processo de conversão da função biológica, em função simbólica,
desde que se diferenciem claramente as noções de vinculação e de sociabilidade
12 Renè Zazzo é estudioso da psicologia infantil e direcionou seus estudos com base nas pesquisas em etologia.
~ 188 ~
para evitar armadilhas etiológicas. Tal afirmação converge com as proposições de
Eibl-Eibesfeldt, embora a autora não lhe faça referência e baseie seus estudos
somente nas ideias de John Bowlby.
A autora segue sua argumentação apoiada na relação dialética que a
psicologia de base sócio-histórica estabelece entre as funções biológicas e culturais
na constituição do psiquismo humano, e ressalta que a função cultural jamais poderá
substituir uma função básica; afinal, nenhum tipo de relação interpessoal substitui aquela relação
básica que é sentir que o outro o reconhece enquanto espécie, seja quem for. Isso quer dizer que não
se pode construir uma sociabilidade em cima de princípios abstratos, metafísicos. (SANTOS,
2009. p. 19). A sociabilidade humana, explica a autora, não é simplesmente dada
pela natureza como ocorre com a sociabilidade animal. Os humanos a assumem
concretizando-a de formas diversas, a partir de seus processos de significação. A
função biológica que permite, tanto aos humanos quanto a algumas espécies
animais, identificar e reconhecer o familiar e o estranho, especificando do que deve
se afastar, e do pode se aproximar, se reveste de uma mediação simbólica nos
humanos, que a engloba e ultrapassa. O ser humano como produtor do real
transcende o plano biológico e inscreve sua natureza no plano simbólico.
Com efeito, a sociabilidade humana não pode ser explicada por modelos
animais a não ser por analogia, jamais por semelhança ou redução. Os princípios
que estão na origem da sociabilidade humana são outros que vão além do
biológico, embora neles tenham sua base. A partir disso a autora argumenta que o
problema fundamental é procurar saber quais processos, e em que condições o
vínculo dá origem a sociabilidade humana, isto é, como conceber a passagem do biológico
ao cultural?
A autora vai buscar na Teoria de Vygotsky, principal referência da vertente
sócio-histórica em psicologia, os subsídios para suas proposições. Para Vygotsky
são as relações sociais que originam as funções psicológicas superiores e estruturam
a natureza psíquica humana. Embasada na proposição do autor soviético segundo a
qual a criança passa de um estado biológico a um estatuto de ser cultural na medida
~ 189 ~
de constituição de suas primeiras interações sociais, Sousa afirma que, sendo o
outro e as relações sociais constitutivas do ser humano, é “evidente que a necessidade de
criar vínculos não pode ser explicada apenas no mundo animal, uma vez que é essa mesma
necessidade, imersa no mundo simbólico ou da significação, que leva a sociabilidade humana.”
(SANTOS, 2009, p. 196).
Segundo defende a autora a necessidade de criar vínculos é um ponto de
intersecção entre a sociabilidade biológica e a sociabilidade humana, uma vez que
sem a necessidade biológica do vínculo não haveriam as relações sociais, e ao
contrário, se não houvesse relações sociais não haveria como se instituir os
vínculos. Se a vida humana, em termos de sua natureza psíquica, possui a marca
das relações sociais, a vida humana é que imprime um sentido de dramaticidade às
relações sociais, defende Santos.
A autora conclui em seu artigo que as proposições da psicologia sócio-
histórica trazem uma nova gama de possibilidades para compreendermos o vínculo
humano, fenômeno de fronteira entre o mundo natural, biológico e o mundo
cultural, o que nos abre o desafio de perceber os enlaces e as intersecções de tais
fronteiras. Desafio que a autora deixa em aberto!
Compreendo que as contribuições são relevantes aqui porque ela amplia o
discurso sobre o vínculo e o coloca para além do lugar eminentemente clínico ao
qual tem se limitado o discurso no campo da psicologia. Ela amplia a visão e traz o
simbólico e o cultural como nuances importantes dos vínculos em termos da
sociabilidade humana. Em termos da ontogênese e filogênese o vínculo humano
tem sua unidade ancorada na afetividade como algo comum à espécie. No entanto,
tal natureza afetiva dos vínculos humanos tem inscrição simbólica.
Há certamente uma forma particular e singular de cada cultura expressar
sua capacidade inata para formar e manter vínculos, propiciada por outra
capacidade humana: a de representação simbólica. É justo neste ponto que
devemos nos atentar para a multiplicidade do uno que inscreve o fenômeno
~ 190 ~
vínculo na diversidade cultural e histórica em termos de sociabilidade humana. De
que forma as emoções e sentimentos que compõe a afetividade humana que
consubstancia o vínculo adquirem expressividade?
Um ponto de vista da Sociologia.
Um interessante ensaio escrito pelo sociólogo Eduardo Diatahy Bezerra de
Menezes (2002) da Universidade Federal do Ceará, intitulado A modelagem
Sociocultural na Expressão das Emoções, traz contribuições interessantes para
pensarmos neste assunto, oferecendo valiosas contribuições nesta perspectiva em
que adentramos agora.
O sociológico em seu ensaio inicia sua linha de pensar assinalando que o
ser humano possui uma amplitude de horizonte que lhe confere um vasto campo
fenomenológico e existencial, que abriga um tempo histórico com uma magnitude
significativa de alcance, tanto para o passado, como para o futuro, que se apoia
numa memória individual e coletiva. O autor chama atenção que um dos pontos
mais significativos neste vasto horizonte humano é sua capacidade de se tornar
objeto para si mesmo. Ele afirma que o ser humano não apenas sente emoções e
necessidades externas, em relação aos outros seres humanos e ao real, mas também percebe, sente e
pensa sua vida interior. (MENEZES, 2002, p.7). É esta capacidade que cria
subjetividades e nos proporciona assumir uma posição de pessoa no mundo,
arremata o autor.
Menezes reitera que a sociedade humana, tal como a conhecemos hoje,
resultou, dentre outros aspectos, de um grau de organização na captação de fatos e
relações pelo desenvolvimento de estruturas cognitivas complexas, em ausência das
quais, nenhuma sociedade humana, com seu complexo sistema organização e
ordenamento de relações sociais, seria possível. Ele explica que essas capacidades
~ 191 ~
cognitivas, articuladas com as motivações e os sentimentos e afetos mais elaborados, que propiciam
a passagem do modo de vida bio-societário para modalidade do viver humano-social.
(MENESES, 2002, p. 8).
Há uma unidade psíquica básica como já bem demonstraram as pesquisas
em epistemologia genética que não se restringe aos processos cognitivos, uma vez
que a nossa estrutura emocional também possui similitude generalizada. Em termos
cognitivos há uma lenta maturação na construção de noções de espaço, tempo,
número, e demais categorias fundamentais do entendimento humano. Por outro
lado, também é certo, que as nossas estruturas emocionais, também passam por
transformações, tão complexas quanto as cognitivas.
Meneses segue seu pensar explicando que quase todas as emoções humanas
ocorrem em função da presença ou ausência dos outros. Em termos de expressão
das emoções humanas estas são sistemáticas e não episódicas, ou seja, se organizam
em torno de objetos permanentes (pessoas e grupos assimilados por um complexo
jogo de códigos sociais) e incorporam objetos sociais, grupos, instituições, até
incluir a sociedade, a humanidade. Em última instância, somente em sociedade nos
humanizamos e/ou também nos deshumanizamos, esclarece o autor.
Com base nestes pressupostos é que Menezes tece interessantes reflexões
sobre a contribuição das expressões emocionais para compreendermos a vida
social. Ele nos esclarece que a forma humana é o objeto mais expressivo do
ambiente que vivemos. A captação de tais expressões em suas formas mais sutis
amplia nossa compreensão do outro na mesma medida que aumenta, em rapidez e
complexidade, a interação social. Há mutações sutis e infinitamente ricas na forma
humana de se expressar que integra uma escala mais ampla de atributos expressivos
que povoam nosso ambiente e que condicionam nossa forma de nos aproximar das
pessoas e dos ambientes para captar formas, jeitos, gestos, símbolos e que, por sua
vez, modulam nossa interação no mundo. Há uma linguagem expressiva que é bem
mais ampla que a linguagem verbal e a antecede. E mais, até mesmo a linguagem
verbal é dotada de tal grau de sutileza, finura e acuidade, que reveste a comunicação
~ 192 ~
humana, que torna o modo de apreensão das emoções dos outros, uma
problemática importante e crucial para o estudo da vida social, arremata o autor.
É neste ponto que Meneses apresenta o coração de suas reflexões e indaga:
existiria uma expressão específica para cada tipo de emoção? Isso é fundamental
para esclarecer se o que liga a experiência emocional a sua forma de expressão
ocorre pela via inata, ou por aprendizagem sociocultural, pondera Meneses. O
autor lembra que há um ponto de vista clássico sobre essa questão já apresentado
por Darwin quando tratou da expressão das emoções nos seres humanos e animais.
Nesta obra o naturalista britânico defende que os movimentos expressivos são, em
sua origem, partes de atividades práticas, como, por exemplo, arreganhar os dentes,
cerrar os punhos, estremecer com um ruído, cuja permanência, tem valor de
sobrevivência para espécie em face a situações análogas. Com base nesta ideia,
Meneses explica que:
Na expressão emocional, existe uma relação de isomorfismo entre a experiência interna e a ação exterior, que constitui condição necessária para a compreensão recíproca, isto é, esta não é subproduto daquela. Em resumo, as funções da expressão emocional são, primeiramente, uma ação externa de tensões que provêm de situação que provoca emoção, ampliando a resposta emocional. Num plano simbólico, elas servem à liberação de tendências impedidas de se completarem em determinadas condições. É a expressão, finalmente, que serve para comunicar a outros a qualidade de nossas experiências emocionais e de nossos sentimentos. (MENESES, 202, p. 18).
Para concluir suas reflexões sobre a modelagem sociocultural das emoções
o autor exorta um espírito crítico capaz de nos salvaguardar da sedução que
convida a crer que quando nossa consciência se deixa absorver por expressões de
dor, gozo, tristeza, etc, encontramos, enfim, o “homem universal”. Há uma ampla
gama de estudos etnológicos, lembra o autor, que comprovam, com abundancia de
fatos seguramente registrados, uma intensa variedade de expressões emocionais.
Assim, choro, lágrima, beijo, riso, raiva, evitação, agressão, associados a situações
~ 193 ~
de alegria, separação, ciúme, morte, perda, disputas, conflitos, que, por sua vez,
inseridos em diversos contextos culturais, ou diferentes épocas históricas, se
revestem de ampla variedade.
Meneses destaca que há três pontos de vistas que tornam relevantes os
fatores socioculturais do comportamento afetivo. Primeiro, quando eles representam
quase sempre um papel saliente na determinação das situações que provocam esta ou aquela
emoção; segundo, quando condicionam também o nível do comportamento emocional
manifesto que se produzirá em tais situações. E por fim, quando eles tendem a influenciar
poderosamente o modo como as emoções se manifestam. (MENESES, 2002, p. 19). A
expressão das emoções é uma linguagem e, portanto, possui seus códigos a partir
dos modelos que lhe fornece a cultura na qual se manifesta. O sociólogo apresenta
vários exemplos disso. Um deles, que gostaria de destacar, é o riso e sua variedade
de significações. Diz ele que,
(...) os Cafres e os Dayaks de Bornéu costumam sorrir para exprimir seu desdém; já no Japão tradicional, não se costuma sorrir por júbilo, mas antes para exprimir embaraço, quando por exemplo um superior passa uma reprimenda ou quando traz má notícia; quando uma mãe de samurai sabia da morte do marido ou do filho em combate, ela sorria. (MENESES, 2002, p. 20).
As situações vividas pelos humanos exigem expressões e reações emocionais que
variam amplamente e que, em limites amplos, destaca o autor, podemos afirmar
que há uma modelagem cultural das emoções e de suas expressões. É na e pela
afetividade, reconhece o autor, que os humanos tomam conhecimento dos valores
que incorporam e transformam em crenças. Não há sociedade que não se interesse
pelo comportamento afetivo porque é justamente aí que reside suas manifestações,
podendo, até mesmo, se tornar perturbações de difícil gestão com capacidade de
comprometer a ordem coletiva. Esse é o motivo, segundo aponta Menezes, para a
sociedade sempre intervir com definição de valores e regulação de condutas a
ponto de institucionaliza-las. O sociólogo finaliza suas conclusões apontando a
~ 194 ~
importância de uma teoria dos sentimentos humanos e da relevância da
contribuição da sociologia e da antropologia neste debate.
Em síntese, o vínculo humano em sua filogênese e ontogênese tem a
afetividade como unidade singular da espécie. Todavia, a compreensão do humano
em termos da complexidade que entrelaça indivíduo-espécie-sociedade insere a
unidade, na diversidade. Com efeito, a afetividade adquire uma expressão cultural
em função da representação simbólica que caracteriza o indivíduo, e a multiplicidade
do uno se revela na sociedade em sua diversidade cultural.
A afetividade é o que consubstancia o vínculo nos permitindo compreender
sua unidade na diversidade. Com efeito, perguntas e inquietações daí se desdobram.
Se falando de vínculo pressupomos afetividade em seu colorido de emoções e
sentimentos é preciso clarear esta noção amplamente polifônica, tanto para o
pensamento científico quanto para o pensamento do senso comum. É importante
ampliar a estrela agora buscando clarear o que conotamos quando nos referimos a
6 - Diversidade Humana
~ 195 ~
emoção que, por vezes, pode ser referida como sinônimo de sentimento, e ambos,
podem ser reduzidos aos afetos. A psicogênese e a neurologia trazem importantes
contribuições para aclararmos estas questões.
2.3.3. O Vínculo Humano e a unidade na multiplicidade.
Seguimos adentrando a estrela que apresentei inicialmente como metáfora
para compreender o vínculo em sua complexidade que se desdobra em diversos
pontos de vistas, cada um agregando algo e enriquecendo a compreensão. A partir
das contribuições da psicogênese e da neurologia vamos adensar nossa
compreensão sobre o vínculo focando sua raiz afetiva, cujos fios, consubstancia-o
conferindo-lhe unidade.
Os estudos psicogenéticos abordam a estrutura cognitiva humana, sua
gênese e maturação em direção da construção de categorias fundamentais para o
entendimento humano, como as noções de tempo, espaço, número. Todavia, um
aspecto pouco referido neste ponto de vista é a influência afetiva nos processos de
aprendizagem. Embora não seja uma influência negada, os estudos psicogenéticos
apontam, mas não aprofundam esta questão. Hoje, entretanto, diversos estudos
relacionados à Educação fazem uma releitura de autores clássicos da psicogênese
como Vygotsky, Piaget e Wallon, dentre outros, revendo a referência aos afetos no
processo de aprendizagem, tecendo novas relações entre afeto e cognição.
Um ponto de vista da Psicogenética
Compreendendo a afetividade como algo que consubstancia o vínculo
humano agregarei ao diálogo autores do campo de saber da psicogenética que
~ 196 ~
trazem uma importante contribuição sobre o tema correlacionando-o com os
estudos sobre a cognição humana. Para isso destaco uma publicação organizada por
Valéria Amorim Arantes (2003) chamada Afetividade na Escola. Alternativas Teóricas e
Práticas em que vários autores oriundos da educação, psicologia, neurologia
linguística e matemática fazem uma releitura das principais teorias ligadas à
cognição humana, tendo como questão central sua dimensão afetiva.
Em termos gerais os autores de diferentes disciplinas teóricas convergem
para o consenso de que os sentimentos modificam os pensamentos, a ação e o
entorno. Este, por sua vez, influi nos pensamentos, nos sentimentos e na ação,
bem como, os pensamentos influem os sentimentos, no entorno e na ação. Creio
que tal relação pode ser expressada em suas interrelações dialógica e recursiva com
ajuda da figura abaixo:
Essa figura representa o meu modo de ver a ideia geral do livro que
apresenta uma serie de estudos a partir de diversas disciplinas. Vou me ater, porém
aos artigos que destacam as Teorias de Piaget, Vygotsky e Wallon, principais
referências das teorias psicogenéticas.
A Teoria de Piaget é leitura clássica para os estudos da cognição humana
em termos epistemológicos e psicológicos. Sua obra, contudo, nunca foi associada
ao tema da afetividade. Embora não tenha escrito sobre os afetos de forma
ostensiva não significa que o assunto não tenha tido uma dimensão importante para
Pensar Agir
Sentir
Entorno
10. Dialógica: pensar - sentir - agir - entorno
~ 197 ~
o aprendizado no pensar de Piaget. É o que diz Maria Thereza Souza em seu artigo
O desenvolvimento afetivo segundo Piaget em que busca demonstrar o rompimento da
dicotomia inteligência/afetividade na Teoria Piagetiana.
Segundo ela o psicólogo suíço apresenta o desenvolvimento de forma una
em suas dimensões afetivas e cognitivas. A autora se ampara em um curso
ministrado por Piaget na Sorbonne nos anos de 1953-54 que trata das Relações
entre afetividade e inteligência no desenvolvimento mental da criança. Neste curso
Piaget demonstra o desenvolvimento genético da afetividade em paralelo com os
estágios do desenvolvimento da inteligência. O “curso da Sorbonne”, como ficou
conhecida as aulas de Piaget sobre o tema.
A autora esclarece que o autor de Genebra não restringe a afetividade às
emoções e sentimentos, mas inclui as tendências e a vontade. Quando fala do papel
da afetividade e da inteligência na conduta humana Piaget refere a sua ideia de
adaptação em seus componentes de assimilação e acomodação em que o desequilíbrio
se traduz em função da consciência de uma necessidade, isto é, de uma impressão
afetiva particular. A conduta finda quando a necessidade é satisfeita e há um
retorno ao equilíbrio, sentido como um sentimento de satisfação.
De acordo com a autora quando Piaget defende uma correspondência entre
o desenvolvimento afetivo e cognitivo, ele busca elementos centrais relacionados à
afetividade que equivalem aos elementos centrais do desenvolvimento da
inteligência, tais como os esquemas e operações. Ela diz que Piaget utiliza a expressão
esquemas afetivos para designar a construção equivalente sobre a base de sentimentos iniciais da
criança, ligados à satisfação de suas necessidades. (SOUZA, 2003, p. 60). A autora
esclarece que Piaget usa o temo “vontade” ou “força de vontade” referindo o
campo afetivo em equivalência ao conceito de operações, do campo cognitivo. Ele
reveste o termo vontade com a mesma força reguladora descrita para construção do
pensamento lógico.
~ 198 ~
Seguindo o pensar de Piaget a inteligência se desenvolve a partir da ação, da
interação do individuo e seu meio, surge, em função disso, os afetos perceptivos. São
os prazeres e às dores ligadas às percepções de agrado e desagrado do bebê. A
correspondência entre desenvolvimento afetivo e cognitivo é genérica, neste início
do desenvolvimento humano, com regulações elementares acompanhadas de
sentimentos de êxitos e fracassos. Quando o indivíduo atinge uma inteligência
verbal ou socializada, com a aquisição da representação por meio da linguagem, e
constrói os esquemas pré-operatórios e operatório da inteligência Piaget considera
as interações entre as pessoas, do ponto de vista afetivo. Às representações pré-
operatórias que caracterizam as ações destituídas ainda de reversibilidade,
corresponde aos afetos intuitivos, sentimentos sociais elementares e aos primeiros
sentimentos morais (amor, temor, respeito, obediência). Tais sentimentos estão
ligados ao que Piaget identifica como moral heterônoma, fruto de relações sociais
assimétricas da inteligência pré-lógica, e dos sentimentos relacionados à autoridade.
Em função da gênese do novo esquema da inteligência operatória concreta que
opera com as classes e relações, corresponde aos afetos normativos, (os
sentimentos morais autônomos, respeito mútuo e justiça), com a intervenção da
vontade que age como reguladora de forças.
Em função da capacidade de reversibilidade do pensamento surge a moral
autônoma, de acordo com Piaget, decorrente de relações sociais simétricas e dos
sentimentos ligados à reciprocidade que permite ao sujeito colocar-se no lugar do
outro, tornando possível a cooperação. A vontade é responsável por uma
hierarquização dos sentimentos e valores e corresponde, no plano afetivo, ao papel
das operações no plano cognitivo, porque regula as forças que estão em jogo nas
tomadas de decisões no estabelecimento de metas a serem atingidas etc.
Por fim, os esquemas formais das operações cognitivas com sua lógica
proposicional e o raciocínio hipotético dedutivo permitem ao sujeito tornar, como
conteúdo dos seus pensamentos, os seus próprios sentimentos, elevando-os a uma
categoria abstrata. As operações formais exigem instrumentos afetivos e cognitivos
~ 199 ~
em que o sujeito é capaz de elaborar planos de reformas sociais políticas e
ideológicas articulados aos sentimentos que escolhem ideais como objetivos a
serem atingidos. Há um movimento que vai da adaptação da realidade ao “eu”, no
início da adolescência, para a adaptação do “eu” à realidade da vida adulta, que
permite ao jovem passar de reformador a realizador, diz Piaget.
Todo o desenvolvimento, de estágio a estágio, ocorre em função de uma
equilibração progressiva e possui um aspecto afetivo, energético, e cognitivo
estrutural, de forma a romper com a dicotomia afetividade e inteligência no
desenvolvimento humano. É o que conclui Piaget no seu “Curso da Sorbonne”.
Para Piaget não é possível explicar a inteligência pela afetividade nem o contrário,
mesmo que as teorias enfatizem a um ou outro aspecto, os dois, estão imbricados
na gênese do intelecto humano para o autor de Genebra.
Os Estudos que tratam da Teoria de Vygotsky são de autoria de Marta
Kohl de Oliveira e Teresa Rego. Elas buscam evidenciar a intricada relação
cognição e afeto na perspectiva sócio-cultural. Elas contextualizam o estudo
esclarecendo que as ideias do autor soviético, datadas do início do século passado,
se contrapunham ao cartesianismo em seu dualismo corpo-mente. Tal cisão
influenciou o nascimento da psicologia separando os estudos sobre o afeto e a
cognição tornando-os, equivocadamente, dimensões isoláveis do funcionamento
psicológico humano. O autor se opõe a uma tendência mecanicista da explicação
das emoções humanas e defende que o desenvolvimento da consciência, de um
modo geral, se conecta com a vida emocional em uma relação dialética.
De acordo com Oliveira e Rego para a psicologia histórico-cultural o
sujeito é produto do desenvolvimento de processos físicos e mentais, cognitivos e afetivos, internos
(constituídos na história anterior do sujeito) e externos (referentes às situações sociais de
desenvolvimento em que o sujeito está envolvido). (2003, p. 19). O autor aponta uma
diferença qualitativa entre as emoções humanas e animais, bem como, a que há nos
adultos e nas crianças, e distingue as emoções primitivas originais, tais como a
alegria, o medo, a raiva, das emoções superiores complexas: o despeito, a
~ 200 ~
melancolia, postulando que as emoções primitivas se desenvolvem em emoções
superiores mais sofisticadas.
As emoções vão se afastando de sua origem primitiva e se constituindo
como fenômeno histórico cultural. Dessa forma, o entendimento segundo o qual as
emoções são consideradas inatas e, por isso, imutáveis, e assim, cabe, em relação a
elas o controle, foi substituído por outro entendimento. O papel da Razão em
Vygotsky não se reduz ao controle de impulsos emocionais ou se confunde com
um papel repressivo para anulação dos afetos. Em seu desenvolvimento a razão se
põe a serviço da vida afetiva na medida em que se transforma em um instrumento
de elaboração e refinamento dos sentimentos. De acordo com o autor soviético o
ser humano adulto tem a possibilidade de construir um universo emocional
complexo e sofisticado (em comparação com os animais e as crianças) se
distanciando da ideia de ausência, controle e/ou negação das emoções suprimidas
pela razão.
A vida afetiva tem uma gênese social mediada pelos significados do
contexto cultural em que o sujeito vive. Nós humanos aprendemos em função do
legado da cultura de nossos antepassados na interação com outros seres humanos
em seu agir, pensar e falar. Os modos de pensar e sentir são pertinentes a uma dada
cultura, e carregados de conceitos que os constitui como fenômenos históricos e
sociais. A afetividade humana é, portanto, construída culturalmente, os significados
que possibilitam um sujeito acessar emoções como ternura, inveja, ciúme adquirem
relevo na e em função da cultura em que vive, e na forma como interagimos e
falamos nesta cultura. Assim nomear as emoções nos permite identifica-las,
compreendê-las, torna-las consciente e compartilha-las com os outros.
Outra referência importante para psicologia cognitiva é Henri Wallon
(1879-1962). Segundo Izabel Galvão sua leitura psicogenética supera as visões que
compreendiam as emoções como acessório da ação humana ou elemento
perturbador delas. Wallon adota uma abordagem que busca compreender a
imbricação entre fatores de origem orgânica e social dos fatores ligados às emoções
~ 201 ~
em suas relações de complementaridade e oposição com os campos do
desenvolvimento humano.
Wallon diferencia emoções das manifestações afetivas, cuja gênese está
ligada a representação simbólica, tais como, os sentimentos e as paixões. As
emoções são compreendidas pelo francês como atividades proprioplásticas que
precedem ao surgimento da representação e da consciência de si. Sua gênese está
nos primeiros contatos entre a mãe e o bebê, interação em função da qual
desenvolvemos aptidões de expressão voltadas incialmente para as pessoas e não
para as coisas. O bebê demonstra uma preferência pelas pessoas em detrimento de
objetos e dispõe de competências para interação, mediadas pela emoção que o
torna capaz de mobilizar pessoas no seu entorno numa espécie de contágio afetivo.
Há uma ênfase para autor relacionada ao caráter expressivo das emoções. Segundo
Galvão uma originalidade dessa abordagem é chamar atenção para o fato de que o gesto,
estabilizado em postura, em atitude corporal, desempenha outro papel que não de executar: ele
exprime as disposições afetivas do sujeito. (SOUZA, 2003, p. 75).
Em função do desenvolvimento psíquico as emoções se ampliam e se
complexificam. A preponderância de sua expressividade orgânica vai sendo
gradativamente substituída pelas imagens e impressões subjetivas, e o processo
ideativo possibilita ao indivíduo experimentar a emoção como um desdobramento
íntimo, por meio de imagens mentais. O pensamento e a linguagem aumentam as
possibilidades do indivíduo de ter o controle sobre suas próprias manifestações
emocionais balizadas pelos parâmetros culturais e singularizadas no jeito de ser
particular de cada um. Importante esclarecer que a progressiva cognitivização da
emoção não elimina seus componentes corporais. É uma atividade situada entre o
orgânico e o social, e se nutre permanentemente dos efeitos que causa no outro.
Em síntese, todos os estudos psicogenéticos convergem para ideia de há
uma relação estreita entre os afetividade e cognição. Piaget fala de uma enérgica que
define como vontade e não aborda a emoção em sua expressão orgânica, assim
como o faz Wallon. Vygotsky aborda o assunto e reconhece a implicação entre
~ 202 ~
afeto e cognição e apresenta as emoções como elementos volitivos que adquirem
sofisticação e refinamento no desdobrar do desenvolvimento cognitivo, cuja gênese
das funções psicológicas superiores se estende de um estagio primitivo para
estágios superiores, mediados pelo simbólico da cultura.
Esta releitura das teorias psicogenéticas trazem valiosas contribuições sobre
a relação afeto e cognição, fazendo uma releitura da importância dos afetos na
psicogênese humana no sentido de rever a dualidade a qual estava circunscrita tal
relação. Atualmente a psicognética supera a visão da afetividade como algo passível
de macular a racionalidade, sempre sujeito ao controle em nome de racionalidade
pura. Por outro lado, os autores da psicogenética não diferenciam claramente
sentimento, emoção, afeto e vontade que, por vezes, são palavras usadas como
sinônimos. Cada autor apresenta sua teoria e seu modo de compreender, sendo o
consenso geral que a afetividade tem uma relação co-produtiva com a cognição
humana.
Considero importante a necessidade de assinalar com clareza sobre o que
conotamos quando nos referimos a determinadas coisas. Por vezes falamos de
afeto quando nos referimos a emoções, falamos de emoções quando na verdade
estamos dizendo de sentimentos, e falamos sobre o que nos afeta para referir-se a
reações, e por aí vai. Penso que é necessário precisar melhor tais conceitos para,
então, compreender, mais apuradamente, a afetividade imbricada no vínculo
humano. As pesquisas no campo da Neurologia trazem valiosas contribuições
nesse sentido da diferenciação dos conceitos.
Um ponto de vista da Neurologia.
A distinção entre emoções e sentimentos implica uma compreensão nova
sobre a afetividade humana que não a reduz a um conjunto de reações emocionais
~ 203 ~
em relação ao entorno. O neurologista Antonio Dalmásio com seus estudos sobre a
consciência humana oferece valiosas contribuições para compreensão desse
fenômeno no sentido de distinguir sentimento e emoção. Em seu livro O Mistério da
Consciência. Do corpo e das emoções ao conhecimento de si, Dalmásio explica que, em uma
primeira vista, não há nada essencialmente humano nas emoções, uma vez que elas
são comuns a outros animais. Entretanto, é o modo como as emoções se vinculam
às ideias, aos valores e aos juízos complexos, que faz dela, a emoção humana, algo
especial. Com base em numerosas pesquisas empreendidas nocampo da neurologia
o autor distingue emoção e sentimento.
Segundo Dalmásio (2000) há um núcleo biológico comum que
fundamentam todos os fenômenos que costumamos rotular de emoções. Ele
classifica as emoções em primárias ou universais (alegria, tristeza, raiva, surpresa,
repugnância), secundárias ou sociais (embaraço, ciúme, culpa, orgulho) e emoções de
fundo (bem-estar, mal-estar, calma, tensão). Pois bem, há para todos esses
fenômenos um núcleo biológico comum que o autor descreve em cinco pontos
descritos, sinteticamente, a seguir:
1. As emoções formam conjunto complexo de reações químicas neurais
que formam um padrão. Todas elas têm um papel regulador que auxilia o
organismo a conservar a vida;
2. Embora o aprendizado cultural possa alterar sua expressão as emoções
são processos determinados biologicamente e dependem de mecanismos
cerebrais estabelecidos de modo inato provenientes de uma longa
história evolutiva;
3. Há mecanismos produtores de emoções que ocupam um grupo
razoavelmente restrito no cérebro que integram um conjunto de
estruturas que regulam e apresentam estados corporais;
4. Todos os mecanismos podem ser acionados de forma automática, sem
uma reflexão consciente, mesmo em face das variações individuais e do
~ 204 ~
papel indutor da cultura, tais mecanismos não modificam a natureza
estereotipada e automática, nem a função reguladora das emoções;
5. Todas as emoções acontecem no corpo como um teatro (meio interno,
vísceras, vestibular e musculo-esquelético) e afetam o modo de operação
de inúmeros circuitos cerebrais que modificam a paisagem do corpo e do
cérebro.
Para Dalmásio as emoções são parte dos mecanismos bioreguladores com os quais
nascemos visando à sobrevivência. (DALMÁSIO, 2000, p. 77). Há um propósito
biológico para as emoções que não são dispensáveis, mas adaptações singulares que
integram os mecanismos com os quais os seres vivos garantem sua sobrevivência.
Como parte da regulação homeostática as emoções conservam a integridade dos
organismos, e sua perda pode significar a morte, ou seu prenúncio.
O neurologista justifica seu extenso estudo sobre emoções esclarecendo
que os organismos equipados para ter emoções garantem um impacto sobre a
mente no aqui e agora. E mais, em organismos equipados com consciência, isto é,
capazes de saber que sentem existem outro nível de regulação mais refinado. A
consciência é que permite que os sentimentos sejam por nós conhecidos
promovendo um impacto interno sobre a emoção permitindo que ela, a emoção,
permeie o pensamento. Segundo ele, a consciência torna possível que qualquer objeto seja
conhecido – o „objeto‟ emoção e qualquer outro objeto – e, com isso, aumenta a capacidade do
organismo para reagir de maneira adaptativa, atento às necessidades do organismo em questão. A
emoção está vinculada à sobrevivência de um organismo, e o mesmo se aplica à consciência.
(DALMÁSIO, 2000, p. 80).
Em outra publicação com o título Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência
dos sentimentos, Dalmásio (2009) nos oferece mais claramente a distinção entre
emoção e sentimentos quando afirma que são os sentimentos que abrem a porta
para o controle voluntário daquilo que, até então, era automático. Segundo ele há
um processo evolutivo que vai da produção de reações a objetos e circunstâncias
~ 205 ~
que estruturam as emoções, até mecanismos que produzem complexos mapas
cerebrais que representam as reações e os seus resultados que estruturam os
sentimentos. Bom, e o que são os sentimentos?
Segundo Dalmásio o que justifica o uso do termo sentimento é a ideia de que
este se difere de qualquer tipo de pensamento, e tem a ver com uma representação
mental do corpo funcionando de uma certa maneira. Segundo sua compreensão os
sentimento emergem de variações homeostáticas que traduzem o estado da vida na
linguagem do espírito. Ele diz que sua proposta de definir os sentimentos é que as
diversas reações homeostáticas, das mais simples às mais complexas, são acompanhadas
necessariamente de estados do corpo que são bem distintos. (...) Um sentimento é uma percepção de
um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela
percepção de um certo modo de pensar (DALMÁSIO, 2009, p.93).
Segundo o autor a ideia tradicional que refere os sentimentos sem alusão
aos estados do corpo esvazia o conceito de emoção e de sentimento. Quando se
remove a essência corporal a noção de sentimento desaparece e não é possível, por
exemplo ,dizermos: “sinto-me feliz”. E mesmo que disséssemos penso-me feliz,
cabe perguntar por que razão os pensamentos são felizes. Ter a experiência de
sentimento para o neurologista, como o prazer, por exemplo, corresponde a ter
uma percepção do corpo em um certo estado. Isso requer a apresentação de mapas
sensitivos nos quais padrões neurais são executados, e em função dos mapas
imagens, são construídos. Trata-se de um complexo sistema em estreita cooperação
para fabricar o que chamamos, ao final, de sentimento.
O conteúdo essencial de um sentimento é sempre um estado corporal
mapeado em um sistema de regiões cerebrais em função do qual forma-se uma
imagem mental do corpo. Na sua essência, um sentimento é uma ideia, uma ideia do corpo,
uma ideia de um certo aspecto do corpo quando o organismo é levado a reagir a um certo objeto ou
situação. Um sentimento de emoção é uma ideia do corpo quando este é perturbado pelo processo
emocional, ou seja, quando um estímulo emocionalmente competente desencadeia uma emoção.
(DALMÁSIO, 2004, p. 93).
~ 206 ~
A capacidade de sentir está estreitamente ligada a alguns fatores, destaca o
neurologista. Primeiro é preciso um corpo com capacidade de representar esse
corpo dentro de si mesmo, e um sistema nervoso que faça um mapeamento de suas
próprias estruturas transformando padrões neurais desses mapas em padrões
mentais, gerando imagens. E por fim, para haver um sentimento é necessário que
os conteúdos de tais sentimentos sejam conhecidos pelo organismo, ou seja, é
preciso a consciência do sentimento. Com isso, Damásio defende a hipótese que o
que sentimos se baseia, na sua essência, num padrão de atividade de regiões cerebrais
somatossensitivas. Se essas regiões somatossentitivas não estivessem disponíveis nada seríamos
capazes de sentir, exatamente no mesmo modo que não seríamos capazes de ver coisa nenhuma se
estivéssemos privados das regiões visuais do cérebro. (DALMÁSIO, 2004, p. 121).
Ocorre que tais regiões somatossensitivas podem produzir um mapa
preciso daquilo que de fato está acontecendo no corpo ou não. Em algumas
circunstâncias o mapa pode perder sua fidelidade. Isso acontece, esclarece o autor
português, em razão de uma modificação ocorrida nas atividades das regiões que
executam o mapeamento, ou nos sinais vindos do corpo. É quando o mapeamento
do corpo e o estado do corpo deixam de coincidir. Dalmásio argumenta que esta
não coincidência de forma alguma compromete sua hipótese. Ele explica que isso
ocorre porque os sentimentos não, necessariamente, se originam no estado real do
corpo, mas tem sua origem no estado real dos mapas cerebrais que são construídos
pelas regiões somatossensitivas a cada circunstância. Qualquer interferência no
mapeamento acaba por criar mapas “falsos”. E tais interferências sempre ocorrem
porque a única fonte de imagem consciente sobre o corpo é construída pelos
padrões de atividade das regiões somatossensitivas, esclarece Dalmásio.
Como um exemplo da criação de tais mapas falsos o neurologista apresenta
a nossa experiência de dor, circunstância em que o nosso cérebro é capaz de
eliminar com eficácia a transmissão de sinais cujo mapeamento levaria a uma
experiência de dor. Outro exemplo ao qual o autor discorre longamente está no
~ 207 ~
sentimento de empatia, quando o cérebro simula certos estados emocionais do
corpo e a emoção de “simpatia” se transforma no sentimento de “empatia”.
Em síntese, as áreas somatossensitivas funcionam como uma espécie de
teatro em que as representações falsas e/ou verdadeiras do estado do nosso corpo
se apresentam. Os mapeamentos são transitórios e se modificam rapidamente em
função de influências mútuas e reverberativas da interação cérebro e corpo ocorrida
por ocasião circunstancial de um sentimento, em sua valência positiva ou negativa.
Por fim, Dalmásio junta o que separou, diz ele:
Uma das razões por que distingui emoção de sentimento tem a ver com uma estratégia de pesquisa. Para conseguir compreender a série completa de fenômenos afetivos é importante separar os seus componentes, estudar as suas operações, tentar compreender como esses componentes se articulam no tempo. Mas, uma vez conseguidos esses propósitos, ou pelo menos alguns deles, é também importante colocar tudo quanto separamos no seu próprio lugar para que possamos apreciar, mesmo que transitoriamente, o todo funcional que constituem. A apreciação do todo deve recordar Espinosa e a sua proposta de que corpo e mente são atributos da mesma substância. Separamo-los sob o microscópio da biologia porque queremos saber como é que essa substância única funciona, e como é que os atributos corpo e mente se constituem dentro dessa substancia. Depois de investigar a emoção e o sentimento de forma relativamente podemos, durante um pequeno intervalo, juntar os dois de novo, sob a forma de afetos. (DALMÁSIO, 2004, p. 144-145).
Após separar e explicar a natureza da emoção e o que a distingue do
sentimento com a ajuda de Dalmásio, retornamos para o fio que nos vincula todos,
a afetividade humana para juntar o que foi separado. Minha intensão em juntar
novamente é buscar compreender a afetividade em sua articulação com a
capacidade de vinculação humana.
~ 208 ~
2.3.4. Níveis de vinculação afetiva
El genio de la especie no es la inteligencia sino la afectividad orientada hacia la tolerancia, la compasión, la amistad y el amor.
(Rolando Toro)
Trago agora para diálogo Rolando Toro Araneda, cientista e poeta
chileno que nos oferece importantes contribuições para compreensão da
afetividade humana. Toro apresenta a afetividade também ressaltando sua distinção
das emoções e sentimentos. Ele compreende a afetividade humana como um
estado evolutivo superior que, não necessariamente, está relacionado à sensibilidade
e a inteligência. Há pessoas inteligentes e sensíveis, diz o autor, capazes de
inconcebíveis níveis de violência.
Toro (1991) apresenta as emoções/sentimentos como componentes
qualitativos da afetividade. Ele aponta que há padrões básicos de respostas
emocionais tais como o medo, a tristeza, a alegria que se combinam e alcançam
graus variados de complexidade. Como exemplo, o autor refere música, poesia e
pintura como elementos capazes de suscitar emoções/sentimentos numa
complexidade e sutileza de grande intensidade. Uma canção ou um poema pode
nos fazer chorar. Um conto pode nos provocar pavor, sensações de mistério. Toro
analisa sensivelmente obras artísticas ligadas à música, poesia e as artes plásticas e
afirma que podemos ver em Leonardo da Vinci, Rembrandt, Goya não somente
como gênios da pintura, mas suas obras traduzem uma profunda penetração
psicológica no humano.
As emoções/sentimentos para Toro devem ser vistos em sua
multidimensionalidade complexa. O ódio pode ser relacionado ao desespero. A
surpresa pode ser combinada com o pânico; o desejo com a timidez; o amor com o
ódio, etc. Um sentimento de alegria pode ter matizes ou qualidades diferentes.
Temos a alegria eufórica que pode nos acometer numa festa; a alegria íntima, muito
diferente da primeira, pode nos arrancar lágrimas de felicidade; a alegria extática,
~ 209 ~
suscitada por uma canção de Bach, que se diferencia da alegria que podemos sentir
frente à visão do oceano ao amanhecer.
Toro (1991) descreve uma riqueza do mundo dos sentimentos/emoções
que raramente são objetos de nossa reflexão. Para ele a psicologia tem uma visão
reduzida em relação ao tema. Entretanto, os grandes gênios literários, poetas e
pintores são quem melhor descrevem sobre essa dimensão humana. Ele cita um
poema de Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, para expressar a natureza
indiferenciada e primordial do amor:
Cuando amamos, nos asciende a los brazos una sabia inmemorial y remota... esto que nosotros amamos no es sólo uno, un ser que ha de venir, sino la innumerable fermentación; no una criatura individual, sino todos los antepasados que, como ruinas de montañas, reposan en el suelo profundo de nuestra existencia. (Rainer Maria Rilke, citado por Toro 1991).
Em consonância com os estudos etológicos Toro aponta uma gênese
biológica da afetividade relacionada aos instintos de solidariedade intraespécie,
impulsos gregários, tendências altruístas e rituais de vínculo. Os impulsos
biológicos de cooperação, integração e solidariedade culminam nos humanos com
sentimentos altruístas que constituem a gênese do amor. Porém, lembra que os
humanos, somos a única espécie animal que é capaz de se reunir para destruir sua
própria espécie.
Segundo define Toro (1991) a afetividade é um estado de afinidade
profunda entre os humanos capaz de originar sentimentos de amor, amizade,
maternidade, paternidade, companheirismo, e também, sentimentos opostos como
a ira, ódio, insegurança, inveja, ciúme, são parte do complexo fenômeno da
afetividade. É em função da afetividade que nos identificarmos com outras pessoas
e somos capazes de compreendê-las, amá-las, protegê-las, e também, rechaça-las,
agredi-las e odiá-las. Contudo, é o sentimento de amor à humanidade que se
relaciona a um processo evolutivo da espécie e se expressa em ações.
~ 210 ~
Para Toro, a afetividade, em sua positividade, se desdobra em duas
dimensões. Uma primeira que ele chama de Amor Diferenciado, direcionado as
pessoas significativas e o Amor Indiferenciado, direcionado à própria espécie e dirigido
a toda humanidade. E, no geral, se estrutura em função de alguns componentes.
Um primeiro componente que ele se refere é a Identidade de cada indivíduo
que inclui as funções orgânicas, o humor endógeno, a percepção e o sentido ético.
O indivíduo cuja identidade está alterada não é capaz de identificar-se com o outro,
e expressa uma conduta defensiva, intolerante e destrutiva. O medo do diferente ou
da diversidade é produto da insegurança que desperta o estranho, que não são
vistos como semelhantes em função de uma alteração do vínculo do indivíduo
consigo próprio. Tais indivíduos têm dificuldades de acessar sentimentos de
altruísmo e empatia, e os únicos sentimentos de coesão são patológicos, formando
grupos racistas, mafiosos, sectários em função de alteração do vinculo consigo
próprio que distorce sua vinculação com os demais.
Há um segundo componente da afetividade expresso pelo que Toro chama
de nível de comunicação. Neste ponto ele chama a atenção para um nível de
comunicação sutil que é acompanhada de um tom de sinceridade na linguagem. A
linguagem expressa uma compreensão íntima de tácito acordo que fala direcionado
não ao intelecto, mas ao campo afetivo que elevam o significado de gestos e
palavras. A comunicação por meio da linguagem, esclarece o autor, tem um sentido
geralmente preciso, porém pode se revestir de novos significados de acordo com a
tonalidade da voz e o componente afetivo que carrega. Há formas de comunicação
que transmitem intensidade, calor, sensações sutis que revestem o significado da
linguagem em seu comunicado essencial.
Em relação a esse componente Toro chama a atenção ainda para a
patologia da linguagem gestual que se caracteriza por uma patologia expressiva de
gestos que dificultam a aproximação. O sorriso e o olhar são as chaves para o
vínculo entre os humanos e a comunicação tem matizes expressivos que revelam se
há ou não um nível de receptividade e afetividade global, cujo formato pode ser
~ 211 ~
gestual, ou mesmo verbal. As emoções a cada instante atualizam padrões
expressivos que comunicam de forma sutil. Como exemplo comum há uma
patologia da convivência caracterizada por uma desqualificação do outro. É um
vício de comunicação que se reveste de uma crítica construtiva e é acompanhada de
uma gentil qualificação, que surge em frases do tipo: “você é um diamante bruto sem
lapidação” “És muito bonita, só falta emagrecer alguns quilos”. Toro nomeia essas
desqualificações de assassinato ontológico, um vício capaz de impedir uma
convivência feliz.
Toro identifica os Ecofatores, isto é, elementos do ambiente e também os
antecedentes biográficos como componentes estruturantes da afetividade e estão
relacionados ao entrelaçamento da história de vida individual do sujeito em seu
meio sociocultural. Em consonância com as ideias de Bowlby, ele afirma que as
experiências infantis são determinantes das tendências afetivas adultas de amor e
ódio. O chileno acrescenta que o contexto social - os ecofatores - pode desencadear
a agressividade nas massas humanas, uma vez que há uma agressividade latente que
pode ser expressa em resposta ao meio. Ele exemplifica tais momentos em
governos totalitários em que pessoas aparentemente afetivas são capazes de realizar
atos infames.
E por fim, a afetividade tem ainda um componente estruturante que Toro
denomina de nível de consciência. É o componente por meio do qual se expressa a
relação do indivíduo e seu entorno, vinculando-o à natureza de que é parte de
forma orgânica. O nível de vinculação com a natureza torna-o capaz de perceber
uma conexão profunda e sutil com todas as formas de vida e ampliar seu campo de
percepção da realidade e seu nível de consciência. Para o autor as pessoas cujo nível
de consciência é baixo, e não possui uma visão de totalidade, não percebem
conexões mais amplas de si com a natureza de que é parte são propensas a viver de
forma miserável girando em torno de conflitos miseráveis ligados ao ego.
Em síntese, para Toro, a afetividade humana em função desses
componentes desdobram-se três níveis de vinculação que expressa a complexidade
~ 212 ~
da natureza afetiva humana. O primeiro nível é a vinculação consigo, que permite ao
indivíduo dar conta de si, do que sente e pensa em relação ao meio em que se
insere. A vinculação com outro que se expressa por meio da história de vida particular
de cada um, na forma de comunicação gestual e verbal que estabelece com o outro.
E o nível de vinculação com a natureza que o torna capaz de perceber as conexões sutis
que o vincula com a natureza de que é parte alargando seu nível consciência e
percepção da realidade.
Percebemos por seus desdobramentos que esses três níveis de vinculação se
entrelaçam de forma complexa, ou seja, há uma relação de co-produção recursiva
entre eles em função do qual a afetividade humana se expressa em amorosidade.
Quanto mais me vinculo com a natureza, mais sou capaz de vinculação comigo
mesmo e com o outro. Quando mais desenvolvo meu nível de vinculação comigo
mesmo, mais sou capaz de compreensão e empatia em relação ao outro e com a
natureza de que sou parte.
Penso que uma imagem nos ajuda a compreender a natureza imbricada
desses três níveis de vinculação. Cada alça representa um nível de vinculação do
qual se desdobra os demais e compõe a afetividade humana, como mostra a figura
abaixo:
10 – Dialógica dos Níveis de vinculação afetiva
~ 213 ~
Toro defende que, a partir de um estado ampliado de consciência, em que
aprofundo esses três níveis de vinculação, é possível uma regulação das condutas
humanas no sentido de transcender a agressividade, que também é inerente a
condição humana. Sendo assim, é um fator determinante na evolução completa do
humano desde a vida intrauterina até a sua maturidade.
Toro (2012) complementa estas ideias em outra publicação La Inteligência
Afectiva. La unidad de la mente com el universo. Ele defende que a ética como fruto da
integração da consciência e da afetividade. Não refere uma ética normativa que se
baseia em normas de comportamento impostas do exterior que se alimentam da
alienação e da coesão. A consciência ética, para ele tem componentes afetivos
como a empatia, a ternura, a compaixão, a misericórdia e o sentido de justiça. Está
intimamente relacionada com a Estética em sentido de co-produção, sendo a
afetividade o fator comum entre ética e estética.
Toro (2012) chama atenção para o fato de que a afetividade e a inteligência
ao longo do tempo tem sido estudados separadamente. Porém, ele defende que só
há um tipo de inteligência, a afetiva, que não é nenhum tipo especial, mas se
expressa em múltiplas dimensões, cujas formas diferenciadas de expressão motora,
espacial, mecânica, semântica, social provêm de uma fonte comum: a afetividade.
Para compreendermos esse enlace é preciso examinar as relações entre a
percepção a motricidade, a memória, a aprendizagem, a elaboração simbólica e a
linguagem com sua estrutura afetiva. O autor apresenta vários estudos que
examinam o assunto e nos informa que a percepção se organiza não apenas em
função de uma estrutura sensorial neurológica, mas a partir de um núcleo afetivo.
Também a motricidade possui núcleos afetivos de fundo e fornece o impulso a
ação. Do mesmo modo, a memória, possui filtros seletivos e se reorganizam em
torno das experiências afetivas e não se reduzem a padrões mnêmicos de ordem
neurológica. Por fim, a aprendizagem não se desenvolve apenas em função de
padrões cognitivos, mas depende de motivações afetivas. A partir disso o autor
conclui que a Inteligência em suas formas abstrata, semântica, social, estética
~ 214 ~
provém da afetividade. Existe uma inteligência afetiva responsável pela significação
existencial humana. Segundo ele La evolución del lenguaje en el niño es la creación
embriológica de una semántica amorosa primal. Aún en el orden y la regulación de los órganos se
encuentran como un holograma que tiene como centro la afetividad. (TORO, 2012, p. 82).
A percepção estética surge de uma integração entre a sensibilidade
cenestésica e a afetividade. O autor explica que no cérebro humano tais funções
possuem representações anatômicas separadas, porém se unem por circuitos de
retroalimentação córtico-diencefálicos. São funções que compartilham uma mesma
origem psicológica onde a ética é a forma inteligente e afetiva de agir consigo
próprio e com os outros, e a estética expressa uma participação na gênese da beleza
em ação. A ética e a estética para Toro (2012) são, portanto, formas de percepção
que induzem a evolução da vida até sua plenitude cujo fundo comum é a
afetividade que dimensiona a ação humana. Neste processo é a afetividade que está
na base estrutural da inteligência. De acordo com o autor:
La inteligencia tiene su base estructural en la afectividad. Todo el proceso de adaptación inteligente al medio ambiente y la construcción del mundo se organiza en torno a las experiencias primales de la relación afectiva. (…) La capacidad de aprendizaje, la memoria y la percepción están fuertemente condicionadas por la afectividad. (…) El estudio de la estructura afectiva constituye, a mi modo de ver, la más urgente y necesaria investigación actual, en nuestra sociedad cuya patología afectiva es ostensiva. El genio de la especie no es la inteligencia sino la afectividad orientada hacia la tolerancia, la compasión, la amistad y el amor. (TORO, 1991, p. 56).
Enfim, todas as emoções humanas são componentes qualitativos da
afetividade comunicada de forma sutil em termos verbais e gestuais. É por meio da
afetividade podemos nos vincular de forma saudável ao outro, ao mundo e nós
mesmos nos conectando ao significado essencial dos fatos, impregnando nossa
percepção de beleza, imaginação e compromisso.
~ 215 ~
2.3.5. Afetividade - fio que tece vínculos Humanos.
O amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. (Edgar Morin)
Em função da complexidade do fenômeno me ocupei até aqui de entrelaçar
ideias oriundas de diversos campos de saber, sem escolher um ponto de vista ou
eleger um autor, mas incluir as contribuições de cada um para aprofundar a
compreensão do fenômeno para além do conhecimento tácito vivencial que temos
a respeito e, sobretudo, com o cuidado de não tomar as partes pelo todo, e me
perder do todo.
Reapresento a imagem-metáfora da estrela
para clarear esta tarefa que me propus. Cada ponta
da estrela, representada por um campo de saber,
trouxeram ricas contribuições que enriqueceram,
adensaram e ampliaram a compreensão do
fenômeno. O brilho que agora clareia a minha visão
resultou do entrelace dialógico entre diversas
teorias para recompor o fenômeno em uma perspectiva nova, delineando uma
compreensão conceitual do tema sem perder de vista o todo em função das partes.
Conforme propõe Morin (2003a), a capacidade de pensar complexo está
em articular saberes para propor nova compreensão o que implica compreender
como as partes se relacionam com o todo reconhecendo a unidade na diversidade e
vice-versa. Sintetizo doravante as diversas ideias que me ajudaram a compreender o
vínculo a partir desta interligação complexa.
O comportamento humano é um sistema hipercomplexo interligado de
forma co-produtiva ao ambiente. Há uma relação dialógica de oposição e
complementaridade entre os padrões de comportamento inatos em função dos
quais se constrói nossa capacidade inata para tecer vínculos com os semelhantes.
Em nossa natureza somos tão propensos à agressividade quanto à convivência
Biologia
Psicologia
~ 216 ~
amorosa, em razão de que ambos os repertórios comportamentais foram
indispensáveis à sobrevivência da espécie. A tecedura de vínculos humanos em sua
filogênese é produto de um refinado sistema de comportamentos que se
complementam e se interligam adquirindo maior complexidade, sobretudo, com
nossa capacidade de representação simbólica.
A ontogênese repete a filogênese em termos hologramáticos. O vínculo
está na base do comportamento de ligação e se estende da figura de ligação (mãe ou
substituta) para família, congênere e espécie, proporcionando a identificação com o
grupo e fortalecendo laços que garantem a sobrevivência de todos. E no caso dos
humanos, não se restringe à infância e adolescência, mas se estende por todo ciclo
vital, do nascimento à morte. Estamos todos interligados em função de nossa
capacidade de vinculação natural de formar laços.
A afetividade é a unidade que consubstancia o vínculo, e se desdobra tanto
para criar e manter laços uns com os outros expressos pelo amor, amizade e
solidariedade, como também se desdobra em agressividade manifesta pelo ódio,
rechaço e hostilidade. Tais desdobramentos não são excludentes, ao contrário,
convivem em nós e formam uma complexa teia de emoções/sentimentos que
compõem o complexo fenômeno da afetividade humana. Podemos nos ligar ao
outro pelo amor e/ou pelo ódio, e entre um e outro, há uma miríade de variações
complexas em função das quais tecemos relações ao longo da vida que se renovam
e atualizam em função do contexto em que vivemos.
O pensar complexo nos convida a perceber a unidade em meio a
diversidade sem perder de vista a multiplicidade do uno. O vínculo tem na
afetividade sua unidade que se expressa de forma múltipla em sua diversidade
cultural. A natureza humana engloba e ultrapassa o biológico em direção ao
simbólico, inscrito na, e pela cultura. A afetividade humana possui uma modelagem
cultural assimilada em um complexo jogo de códigos sociais que organizam a vida
em sociedade e institucionaliza comportamentos. É na e pela sociedade que nos
(des)humanizamos.
~ 217 ~
A afetividade é o fio que tece os vínculos humanos adquirindo um alto
refinamento a partir de processos conscientes que vão se desdobrando e se
complexificando. Em suma, há uma complexidade crescente que se desdobra dos
níveis básicos de regulação da vida. A relação do organismo com o meio vai se
sofisticando. De uma reação simples e estereotipada (irritabilidade) o organismo
adquire maior complexidade para captar as mínimas variações do meio,
aumentando sua capacidade de sobrevivência (sensibilidade), conferindo-lhe maior
amplitude relacional. Surgem as emoções como sensações variadas e o organismo
adquire capacidade de adquirir informações sobre seu próprio estado interno frente
ao que lhe chega por meio de modificações fisiológicas e motoras, que formam um
padrão mais complexo de reações do organismo visando a sua sobrevivência. Este
processo adquire maior complexidade com a representação simbólica tornando o
organismo capaz de representar o próprio corpo em seus estados internos,
interligando o sentir e o pensar em processos altamente refinados que torna o
organismo capaz de saber que sente em processos conscientes. O quadro abaixo
sintetiza esse processo:
AF
ET
VID
AD
E
CONSCIÊNCIA
Relacionada a processos altamente refinados com a capacidade de saber que sente Envolve o pensar como instrumento de elaboração e refinamento dos sentimentos
SENTIMENTOS
Estrutura híbrida e multifacetada. Refere uma representação mental do corpo funcionando de certa maneira. Difere que qualquer tipo de pensamento
EMOÇÕES
Padrão de Reações, Complexo e Estereotipado. Conjuntos complexos de reações químicas e neurais que assume um papel regulador no nosso organismo visando à sobrevivência.
REGULAÇÃO BÁSICA
DA VIDA
Padrão de Reações Simples Estereotipados
• Regulação metabólica
• Reflexos
Quadro 1 – Esquema representativo - Emoção/Sentimento/Consciência
~ 218 ~
Afeto, afetividade, emoção e sentimento não se separam, mas se
distinguem. Os afetos relacionam-se com a nossa condição de ser afetado e se
ligam a respostas emocionais e fazem parte do mundo de reações, não tem
permanência. Os sentimentos são processos mais estáveis relacionados com nossa
refinada capacidade de decodificar o meio em relação a si mesmo. As emoções se
distinguem dos sentimentos e os dois tomam parte da afetividade, tanto em sua
positividade quanto em sua negatividade. Nomear emoções significa torna-las
conscientes e compreendê-las em termos de sentimentos na medida em que o
pensar atua no processo, esboçando uma complexa relação entre afetividade e
cognição. Este processo aumenta nossa capacidade de compreensão do outro e do
mundo, capacidade esta, estreitamente ligada à autocompreensão.
Saber o que sente e o porquê sente é fator humanizante. O alhear-se do
sentir é também um alhear-se do pensar, porque a consciência é que permite que
conheçamos os sentimentos em função dos impactos que nos causam as emoções.
Os sentimentos torna voluntário uma função automática reativa, e estão
relacionados com uma representação mental do corpo funcionando de certa
maneira, e engloba a consciência e o pensar, porque sentir é pensar-se.
Em suma, a afetividade humana em sua complexidade apresenta fatores
genéticos, fisiológicos, culturais e ambientais e se refere a um estado de vinculação
que perdura no tempo e pode ser compreendida por seu desdobrar-se em três
níveis: vinculação consigo, com o outro e com a natureza. Tais níveis tecem entre si
uma relação de co-produção recursiva que expressa o estado afetivo do sujeito em
sua relação entrelaçada em emocionar, sentir e pensar. Como humanos, estamos
todos, de antemão, interligados por vínculos que se qualificam em laços que nos
conectam uns aos outros como indivíduo/espécie/sociedade, como sintetiza a
figura abaixo:
~ 219 ~
Como exigência do pensar complexo é preciso compreender o fenômeno
inserindo em seu contexto para perceber de que forma o contexto modifica ou
ajuda a explicar/compreender o fenômeno, operando com as inter-retro-ações
entre contexto e fenômeno. A tarefa agora consiste em contextualizar esta
compreensão sobre vínculo inserindo-a em um contexto geral da sociedade
contemporânea, e também, em um contexto específico: a Estratégia Saúde da
Família do SUS.
Sociedade 12 – Unidade trinitária Indivíduo/Espécie/Sociedade
~ 220 ~
PARTE 3
Quando nas asas da imaginação
O meu pensamento voa
Há em mim Revelação.
Quando no compasso do desejo
O meu pensamento dança;
Há em mim, Epifania.
(Idalice)
~ 221 ~
3.1. Vínculos Humanos no contexto da Atenção Primária à Saúde.
Cada homem carrega a forma inteira da condição humana. (Montaigne)
Recolocar o fenômeno em seu contexto certamente pode modificar ou
trazer novas explicações e compreensões. Inicialmente vou reinserir o fenômeno
no contexto geral da contemporaneidade, para depois situa-lo, mais
especificamente, no contexto da atenção primária em saúde do SUS. Isso é
relevante no meu entendimento porque, embora o que interessa para esta pesquisa
sejam as relações tecidas no contexto institucional da ESF como modelo de APS
do SUS, tais relações se desdobram a partir do contexto mais amplo da sociedade
contemporânea.
3.1.1.Vínculos Humanos na contemporaneidade.
Imagem 7- Portinari – Da série, Guerra e Paz
~ 222 ~
Cândido Portinari em sua belíssima obra “Guerra e Paz” comove por sua
(des)humanidade. Esta pintura foi encomendada ao artista, por ocasião da
inauguração da nova sede da Organização das Nações Unidas, quando em 1950, o
secretário Geral da ONU solicitou aos países membros que doassem obras de arte
para a nova sede em Nova York. O Brasil designa Portinari que aceitou de pronto.
O artista não foi convidado para participar da cerimônia, por seu envolvimento
com o partido comunista, motivo que o impedia entrar nos EUA, mas declarou
sobre sua obra: Guerra e Paz representam sem dúvida o melhor trabalho que já fiz… Dedico-
os à humanidade…
Certamente a guerra e a paz em diversos graus são possibilidades de
convivência humana que marcam a humanidade não apenas no século XX, período
marcado por duas horripilantes guerras mundiais. Com efeito, períodos sangrentos
sempre marcaram a história humana de forma ininterrupta. A questão é que hoje,
com o avanço das tecnologias, somos capazes de autodestruição não só da espécie,
mas de todo o planeta. Frente a isso uma premente questão que emerge deste
cenário contemporâneo: quem somos nós?
Esta é uma pergunta de fundo inesgotável em termos de respostas e que
sempre se atualizará no tempo. Contudo, acredito eu, que as respostas devem
sempre encarar a complexidade que é o humano e compreender nossa natureza
desdobrando-se sempre em indivíduo/sociedade/espécie, constituindo a trindade
de que nos fala Morin para dizer do humano. Como vou me deter aqui sobre o
vínculo humano na contemporaneidade, e desejo agora acercar-me do contexto,
vou adentrar a trindade pela via da coletividade em termos de sociedade que
também nos define.
O sociólogo francês Alain Touraine nos traz um interessante ponto de vista
em duas publicações em que tece considerações interessantes sobre a noção de
sujeito no cenário da (pós)modernidade. No livro Crítica da Modernidade, publicado
em 1994 no Brasil, Touraine argumenta que o rompimento definitivo que separou a
Modernidade e a Pré-Modernidade foi uma ruptura da crença em um universo
~ 223 ~
supra-ordenado racionalmente por uma vontade divina. O desencantamento do
mundo pós-moderno não é o resultado do triunfo da razão instrumental, e sim da
cisão operada entre o divino e a ordem natural.
Para o sociólogo a ideia clássica de Modernidade equiparada ao
racionalismo, que exclui toda singularidade, desejo e emoção, é incapaz de dar
conta do que hoje chamamos de Modernidade. Ele alerta para o perigo de
limitarmos a visão moderna a um modo particular de modernização inerente ao
capitalismo, que se expressa na extrema autonomia de mercado. Tampouco, é ela a
unidade do mundo revelada pela Ciência. A Modernidade não se completa no
racionalismo instrumental nem na diferenciação trazida pela burguesia – figura
central da Era Moderna – entre a Política, a Economia e a Religião.
A condição moderna, segundo o sociólogo, está na regulação das condutas
humanas pela consciência, seja ela em relação à ciência ou à economia. A
modernização não se completa sem a subjetivação, pois é esta é que possibilita a
criação de uma ética da convicção oposta à visão tradicional, presa à contemplação
e à busca por conformação à ordem sagrada.
A angústia pós-moderna é oriunda de um indivíduo entregue a si mesmo,
cuja tarefa é produzir-se sem qualquer referência transcendente, seja Deus, a Razão
ou a História. O resultado deste corte é o abandono do indivíduo, doravante
entregue a si mesmo, inaugurando-se um processo de subjetivação do qual emerge
o sujeito. O desejo de ser sujeito é, pois, a ordem mais premente da Modernidade.
Tal desejo não se coaduna a uma determinação externa a ele. Com efeito, o sujeito
está sempre na contramão da ordem social vigente e se define como vontade,
resistência, luta e busca de libertação.
Touraine (1999) complementa sua visão em outra publicação que tem uma
pergunta no título: Podemos viver juntos? Iguais e diferentes. Neste livro ressalta outra
perspectiva menos otimista que quebra o equilíbrio entre a racionalização e a
subjetivação. Segundo autocrítica do próprio autor ele afirma que mantém esta
~ 224 ~
análise feita na Crítica da Modernidade, mas acrescenta que colocava o tema da
subjetivação no mesmo patamar da racionalização. Todavia, o sociólogo esclarece
que o conjunto que compôs a modernidade que forma o pensamento sociológico
clássico, qual seja, a racionalização, o individualismo moral e a comunidade dos cidadãos,
implodiu quando a sociedade de produção se transformou em sociedade de
mercado, e a identidade pessoal se fechou em identidade comunitária. Com isso a
noção de sujeito também se degrada e essa dupla degradação - a
desinstitucionalização e a dessocialização - é que faz emergir um sujeito situado no
universo da instrumentalidade e da identidade. O sociólogo não mais define sujeito
como uma das faces da modernidade, mas como única noção que permanece face a
degradação (pós)moderna. Como diz o próprio autor:
Não é mais o sujeito vencedor da Declaração dos direitos do homem que encontramos hoje em nosso universo estraçalhado por guerras civis, mas um sujeito que luta pela sobrevivência, única força de resistência diante da ruptura completa e definitiva entre o mundo dos mercados e o das comunidades. Força frágil, à mercê simultaneamente da cultura de massa e do autoritarismo comunitário e, no entanto, força a partir da qual, em toda parte, se vão esboçando tentativas de construção da vida pessoal e da vida social. (TOURAINE, 1999, p. 105).
Para o francês há muita continuidade entre as ideias de consciência moral,
que submete o indivíduo a deveres, e a consciência política, que provoca também
submissão a uma causa coletiva de natureza transcendente. Como escapar destas
forças que transformam o indivíduo ou em um consumidor, ou em um membro
fiel da comunidade? Para Touraine isto supõe a intervenção de uma ação coletiva, e
a emergência do sujeito não acontece fora da ação coletiva.
Neste ponto Touraine une a noção de sujeito e de movimento social, que
não existe sem a vontade de libertação do sujeito. Para o sociólogo o sujeito não se
constrói assumindo papéis sociais, na conquista de direitos e de participação, como
no modelo clássico, e sim, impondo à sociedade instrumentalizada, mercantil e técnica,
princípios de organização e limites em conformidade com o seu desejo de liberdade e sua vontade de
~ 225 ~
criar formas de vida social favoráveis à afirmação de si mesmo e ao reconhecimento do outro como
sujeito. (TOURAINE, 1999, p.102).
É a complementaridade de três forças que constrói a identidade do sujeito,
conforme Touraine: o desejo pessoal de salvaguardar a unidade da personalidade, dividida
entre o mundo da instrumentalidade técnica e do comunitarismo; a luta coletiva e
pessoal em duplo combate, que se opõe à transformação da cultura em comunidade
e à mercantilização do trabalho; e o reconhecimento interpessoal e institucional do outro como
sujeito. Vê-se que o sujeito é definido mais negativamente, em função de uma recusa
de identificação do humano com seus papéis sociais.
Os principais atores políticos do futuro próximo, segundo Touraine, não
serão nem o cidadão, como o fora na primeira modernidade, nem o trabalhador da
sociedade industrial, mas indivíduos ou grupos animados por um desejo de ser
sujeito, traduzido por um desejo de vida e defesa de uma identidade pessoal
estilhaçada pelo vazio do apelo ao consumo e pela fidelidade comunitária. Esse
desejo de vida substitui a defesa da sociedade ideal pela defesa da vida pessoal não
reduzida ao consumismo tampouco ao comunitarismo.
Se o sujeito se define na e pela ação coletiva em busca de sua liberdade,
como se efetiva esta passagem? Segundo o sociólogo francês, a subjetivação se
constitui em força de transformação na medida em que rompe com os mecanismos
de reprodução cultural e controle social por um duplo combate do sujeito que luta
por sua liberdade. Para Touraine sem esse reconhecimento do outro como sujeito
não seria possível a passagem de sujeito a ator social, uma vez que sua liberdade só
adquire substância em função desse reconhecimento.
As relações sociais estabelecidas entre os sujeitos não são baseadas num
princípio de similaridade por uma pertença a uma mesma cultura, ou ainda, por
uma partilha de relações profissionais e econômicas, mas por uma vontade comum
deste duplo distanciamento e busca de constituição de si mesmo. São relações
estabelecidas entre sujeitos que empreendem esforços comuns para se constituírem
~ 226 ~
como tais, com base na simpatia, na empatia e na amizade. São relações que,
sobretudo, exigem respeito e consideração do outro como igual a si-mesmo sem,
necessariamente, essa relação impor ou pressupor um conjunto que ambos
partilhem.
Essa necessidade de reconhecimento do outro como sujeito é presente
também na análise de Bauman (2003) em sua Modernidade Líquida em que também
nos fala sobre uma individualidade estilhaçada presa em um consumismo que se
expande e se diversifica e nos coloca, como humanos, invisíveis uns aos outros pela
desesperança de uma comunidade utópica. Tudo se liquefaz se não temos
visibilidade na legitimidade do nosso ser perante um outro que nos reconheça.
Vivemos um momento histórico em que mesmo no âmbito da sociologia
não é possível ignorar o sujeito que se desponta e emerge como questão. Gostaria
de focar um ponto central nas ideias sociológicas cujo discurso faz uma denúncia
geral de uma negação do sujeito como um sintoma de um mal estar geral da
modernidade em função do que o nega. Penso que este ponto precisa de foco no
sentido de aprofundar nossa compreensão neste sentido. Que sujeito é esse que
não está sendo reconhecido? Quem os nega? Do que se fala quando se aponta para
essa negação? Quem nega quem? E o quê, precisamente, se nega quando os sujeitos
são negados?
~ 227 ~
Modernidade e Colonialidade
“... Os ventos do norte não movem moinhos...
Minha vida, meus mortos meus caminhos tortos. Meu Sangue Latino13...”
A construção da modernidade em
termos materiais e epistemológicos
envolveu diretamente o contato do
europeu com o povo americano. Seria
necessário dar um passo mais atrás nesta
análise. Estudiosos e pesquisadores da
América Latina, tais como Edgardo
Lander, Aníbal Quijano, Enrique
Dusseal, Catherine Wash, dentre outros,
integram um grupo que investigam
sobre o tema Modernidade/
Colonialidade.
Tais autores sustentam que a modernidade não teve início no século XVIII
e XIX, com a Revolução Industrial, e sim, com as grandes navegações e invasões
do continente americano nos séculos XV e XVI, quando se deu início o circuito
comercial do atlântico.
Dussel (2005) chama atenção para um deslizamento semântico do conceito
de “Europa”. Ele argumenta que historicamente a Europa é filha de fenícios e que
a Europa Moderna (direção do norte e oeste da Grécia) não é a Grécia originária.
Ele esclarece que há uma diacronia unilinear Grécia-Roma-Europa e que na
verdade se trata de um invento ideológico de fins do século XVIII romântico alemão; é então
uma manipulação conceitual posterior ao „modelo ariano‟, racista. (DUSSEL, 2005, p. 24).
13 Música: Sangue Latino, Composição de João Ricardo e Paulinho Mendonça, canta Ney Matogrosso.
~ 228 ~
Dussel faz uma extensa apresentação da sequencia história do mundo
Grego à Europa Moderna fazendo uma demonstração da construção ideológica da
sequencia tradicionalmente aceita sem que ninguém pense que se trate de uma
“invenção” ideológica, que raptou a cultura grega como sendo exclusivamente
europeia e ocidental, e a apresenta como centro da história mundial. Segundo ele o
esquema abaixo é, na verdade, uma sequencia ideológica. A história fabrica,
também, um passado.
Para Dussel tal visão é duplamente falsa porque ainda não temos uma
história mundial e porque o próprio lugar geopolítico que ocupa impede de ser o
centro. Ele esclarece que o Mar Vermelho ou Antioquia, lugar de término do
comércio do Oriente, são o limite ocidental do mercado euro-afro-asiático, e que,
portanto, não ocupa o centro. O que temos é a Europa Latina do século XV, sitiada
pelo mundo mulçulmano, periférica e secundária no extremo oriental do continente euro-afro-
asiático. (DUSSEL, 2005, p. 26).
Dussel se opõe à interpretação hegemônica sobre a Europa Moderna e
afirma que há dois conceitos de Modernidade. Um, que equipara Modernidade e
Emancipação, um processo evolutivo amparado por um esforço racional que
proporciona a toda humanidade sair da imaturidade, processo esse ocorrido na
Europa do século XVIII. Trata-se de uma visão eurocêntrica, provinciana e
regional, cujos acontecimentos históricos essenciais que possibilitaram os processos
de subjetivação inerentes da modernidade foram a Reforma, o Iluminismo e a
Quadro do autor Fonte: DUSSEL, 2005, p.26.
~ 229 ~
Revolução Francesa. De acordo com o autor o tempo e o espaço deste fenômeno são
descritos por Hegel e comentados por Habermas (...) e são unanimemente aceitos por toda a
tradição europeia atual. (DUSSEL, 2005, p. 27).
O autor define esta visão de eurocêntrica porque tem como ponto de
partida exclusivamente fenômenos intra-europeus e sua expansão posterior é
explicada somente em função da Europa. Tal análise de Dussel coaduna-se com a
ideia de Santos (2006) quando alerta que a compreensão do mundo em sua forma
de criar e legitimar o poder social relaciona-se com as concepções de tempo e
temporalidade esboçando uma Razão Indolente em sua expressão de metonímia, que
toma a parte pelo todo e reivindica-se como única forma de racionalidade.
Dussel propõe uma segunda visão de Modernidade partindo do fato que
empiricamente antes de 1492 nunca houve História Mundial. Esta seria uma data
de início do que ele chama de operação do “Sistema Mundo”. Conforme o autor,
antes desta data, os impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão
portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no século XVI, e com o
descobrimento da América Hispânica, todo o planeta se torna o „lugar‟ de „uma só‟ História
Mundial. (DUSSEL, 2005, p. 27). O autor considera que a centralidade da Europa
Latina na História Mundial como determinante central da Modernidade em torno
do qual a subjetividade que lhe é constituinte, a propriedade privada e a liberdade
contratual, puderam substantivar-se historicamente como efeito, e não ponto de
partida, ao longo de mais de século de Modernidade.
A Revolução Industrial do século XVIII e o Iluminismo caracterizam uma
segunda etapa da Modernidade para Dussel. A Inglaterra substitui a França como
potência hegemônica até 1945 e comanda a Europa Moderna e a História Mundial.
A Europa Moderna, centro da história mundial a partir das grandes navegações,
constitui todas as demais culturas como sua periferia. O autor apresenta uma noção
distinta de Modernidade que inclui Portugal e Espanha do século XVI amparada
em outra concepção de racionalidade que se opõe tanto a ideia dos que imaginam
~ 230 ~
realizar a racionalidade moderna, quanto aos que a ela se opõem como pós-
modernos.
O eurocentrismo é, pois, uma confusão entre uma racionalidade abstrata e a
mundialidade concreta tornada hegemônica pela Europa. Ao ego cogito moderno se
antecede o ego conquiro (eu conquisto) prático luso-hispânico que impôs sua vontade
sobre os povos amerídios. A superioridade da Europa é fruto das riquezas
exploradas de suas conquistas, sobretudo, na América Latina. A modernidade para
Dussel é um mito justificado de uma práxis irracional de violência que ele descreve
sinteticamente em sete pontos, que sumarizo a seguir:
2. A civilização moderna autodescreve-se como mais desenvolvida e superior (o que significa sustentar inconscientemente uma posição eurocêntrica);
3. A superioridade obriga a desenvolver os mais primitivos, bárbaros, rudes, como exigência moral.
4. O caminho de tal processo educativo de desenvolvimento deve ser aquele seguido pela Europa (é, de fato, um desenvolvimento unilinear e à europeia o que determina, novamente de modo inconsciente, „a falácia desenvolvimentista‟.);
5. Como o bárbaro se opõe ao processo civilizador a práxis moderna deve exercer em último caso a violência, se necessário for, para destruir os obstáculos dessa modernização (a guerra justa colonial);
6. Esta dominação produz vítimas (de muitas e variadas maneiras), violência que é interpretada como um ato inevitável, e com o sentido quase-ritual de sacrifício; o herói civilizador reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador (o índio colonizado, o escravo africano, a mulher, a destruição ecológica, etcetera);
7. Para o moderno o bárbaro tem uma culpa (Imaturidade culpável, verschuldeten, de Kant) (por opor-se ao processo civilizador) que permite à „Modernidade‟ apresentar-se não apenas como inocente mas como „emancipadora‟ dessa „culpa‟ de suas próprias vítimas;
8. Por último, e pelo caráter „civilizatório‟ da „Modernidade‟, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou sacrifícios (os custos) da „modernização‟ dos outros povos „atrasados‟ (imaturos) (Para Kant, unmundig: imaturo, rude, não educado), das outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil, etcetera. (DUSSEL, 2005, p. 29).
~ 231 ~
Aníbal Quijano (2005) também alerta que a modernidade é uma narrativa
europeia, cujo lado complementar é a colonialidade, sendo esta, reverso inevitável
daquela. A modernidade naturaliza a crença da pretensa superioridade do europeu
em relação ao americano não-civilizado, não-crente, povo sem alma, e constrói o
mito da modernidade, como assim o denomina Dussel. A colonialidade foi o sustento
que permitiu e desenvolveu a modernidade europeia, e como substrato da
modernidade, manteve-se oculta em seu discurso, que a apresentou como algo
acidental e não constitutivo do desenvolvimento ocidental.
Dentro desse discurso da modernidade/colonialidade (LANDER, 2005)
há uma diferença marcante entre colonialismo e colonialidade. O colonialismo
compreende os processos coloniais relacionados à ocupação e à anexação de
territórios por um poder externo como uma derivação da modernidade. Já a
colonialidade descreve a lógica da ocidentarização e a contínua sujeição do povo a
uma herança colonial. Trata-se da colonização de ideias que capturam mentes, o
imaginário e a cultura. O colonialismo é um discurso que produz a colonialidade
como uma consequência da modernidade e carrega o pressuposto de que o
colonialismo foi superado nas Américas no início do século XIX.
Um olhar mais profundo, porém, revela que a colonialidade é constitutiva
da modernidade e se estamos ainda na modernidade, seja pós ou tardia, a
colonialidade também, se faz presente e segue viva no sistema reprodutor de
desigualdades da atual estrutura hegemônica neoliberal moderna. A forma como
representamos o mundo não é aleatória e as divisões norte/sul, acima, abaixo tem
um significado ideológico, já que a terra é redonda.
~ 232 ~
Se recolocamos o mundo em outra perspectiva de olhar diferente da que
estamos acostumados a ver e naturalizar, como aponta o ponto de vista da
personagem Mafalda14, algo acaba. O que certamente acaba é uma uniformidade de
ver e pensar. Catherine Walsh (2008) complementa essas ideias de
modernidade/colonialidade e tece considerações sobre o tema na perspectiva de
pensar seus significados em relação ao Estado e sua refundação e descolonização.
Ela apresenta quatro grandes áreas nas quais se expressam a colonialidade.
A primeira é a Colonialidade do Poder fundamentada nos estudos de Quijano
que refere um estabelecimento de uma classificação social baseada numa hierarquia
racial e sexual e uma formação de identidades sociais classificadas como superiores
e inferiores: brancos, mestiços, índios e negros. O uso do termo raça mantem, da
colônia aos dias atuais, uma escala de identidades sociais com o branco masculino
14 “Toda Mafalda”. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 385.
Imagem 9 - Tirinha da Mafalda
~ 233 ~
superior aos negros e índios identificados como identidades inferiores homogêneas
e negativas. Tal hierarquia é responsável pela instalação de um padrão conflitivo de
poder na sociedade que serve aos interesses do poder de dominação em termos
sociais e de exploração do trabalho sob a égide do capital.
A raça se constitui como instrumento de dominação e controle que foi
imposto a toda população do planeta em função da dominação colonial da Europa
mantido e apoiado pelas elites nacionais. Wash esclarece ainda que atualmente o
discurso da mestiçagem é renovado com o hibridismo da globalização que sustenta
que a racialização, o racismo e a injustiça racial não existem, negando o uso passado
e presente da raça como um padrão de poder que perpetua a colonialidade.
A segunda área que destaca a autora é a Colonialidade do Saber. Trata do
posicionamento do conhecimento europeu como perspectiva única descartando
outras racionalidades epistêmicas e outros conhecimentos que não advenham de
homens brancos membros da cultura europeia. Essa dimensão se evidencia
claramente em duas áreas: na educação, onde do ensino fundamental ao superior, o
conhecimento científico europeu se evidencia como marco-científico-acadêmico-
intelectual; e no modelo eurocêntrico de Estado-Nação fundamentado em
conceitos impostos e de pouca ressonância em face da pluralidade dos povos
amerídios.
Para Wash a Colonialidade do Ser é uma terceira área de efetivação do
colonialismo exercida por meio da inferiorização, subalternização e desumanização,
corresponde ao que Frant Fannon (2005) chama de não-existência. Os mais
humanos são os que integram a racionalidade formal clássica da modernidade
europeia concebida a partir do indivíduo “civilizado”. É justo em função desta
racionalidade que o Estado Nacional se erige, e em seu processo histórico
apresenta os povos ameríndios como bárbaros e não civilizados e os povos das
comunidades negras como não-existentes, ou como extensão dos povos indígenas.
Tal desenho racializado se reflete nas proposições das políticas públicas
direcionadas para grupos étnicos e especiais ante a norma (normalidade) branco-
~ 234 ~
mestiça. A categoria étnico coloca os brancos-mestiços em uma não etnicidade que,
por um lado, é vista como um direito de reparação das ações afirmativas que lutam
pela igualdade e pela inclusão de indivíduos e coletivos. Por outro lado, contudo,
ser reconhecido como seres étnicos e especiais é uma forma de perpetuar uma
colonialidade do ser caso não se aponte para mudanças de estruturas institucionais que
continuam mantendo e reproduzindo uma racionalidade moderna como norma
ontológica.
A última área referida por Walsh como sendo a de menos reflexão até o
momento é a Colonialidade da Mãe Natureza e da Vida. Esta encontra sua base na
divisão sociedade/natureza. Para os povos amerídios, sobretudo da América do
Sul, a Mãe-Natureza é a que estabelece a ordem e dá sentido para o universo e a
vida. Os mandatos de controle e exploração da Mãe-Natureza que funda a
modernidade e seu modo de produção nega esse modo de ser e de viver que
caracterizam os povos ancestrais, tanto das Américas como afrodescendentes. Tal
modo de ser hoje é ressaltado e supostamente valorizado por meio de políticas que
incentivam o etnoturismo e sua folclorização, que mais ressalta a diferença
hierarquizada entre o normal naturalizado da cultura branca-européia civilizada
moderna, que prima pelo bem estar individual neoliberal. Walsh nos diz que esta
matriz em seu conjunto tem estruturado e segue estruturando as sociedades da
América do Sul, diz ela:
Al crear un Estado y sociedad que parten de y dan razón a los grupos y a la cultura dominantes haciendo que lo «nacional» los represente, refleje y privilegie y no al conjunto de la población, se estructura la conflictividad y problemática persistentes y pervivientes de la colonialidad, algo que difícilmente cambia sin transformar de manera radical las mismas estructuras fundacionales y organizativas del Estado y sociedad nacionales (y por ende las condiciones de poder, saber, ser y de la vida misma). (WALSH, 2008, p. 139)
As ideias provenientes dos estudos e investigações da
modernidade/colonialidade me parecem fornecer preciosas pistas na busca do sujeito
negado que referi anteriormente. O colonialismo, outra face da modernidade, é
~ 235 ~
talvez a faceta que reinvindica o reconhecimento do outro e faz emergir a condição
moderna que refere Touraine quando fala do sujeito em termos de ação coletiva
construída somente em função do reconhecimento do outro. Talvez seja o
colonialismo um dos anteparos que nos torna invisíveis uns aos outros na
Modernidade Líquida de que nos fala Zygmunt Balman. Uma modernidade que
emerge a partir de uma abertura para as singularidades e individualidades em
liberdade de ação paradoxalmente se funda na negação radical do outro, expressa
pelo colonialismo e cria um paradoxo que reivindica o reconhecimento do outro
como condição de humanidade na contemporaneidade.
A necessidade de reconhecimento do outro como condição básica da
legitimidade do sujeito como ação coletiva da modernidade, como nos falou
Touraine, não pode ser reduzida a uma abstração em que é a “sociedade” que nega
o sujeito, quando o reduz ao consumismo ou ao comunitarismo. É provável que
essa negação resulte sempre como algo externo a mim. Se separamos indivíduo e
sociedade corremos o risco desta última não passar de uma abstração que redime
e/ou obscurece as relações de exclusão e negação. Quem nega quem efetivamente
e, também, o que negamos nessa relação é algo que precisa de resposta na ação
concreta dos humanos no mundo. A complexidade humana se define de forma
trinitária indivíduo-sociedade-espécie de maneira que a espécie humana não o é fora da
sociedade e os indivíduos só constituem em suas singularidades na e pela sociedade.
A modernidade fundada na negação do outro por sua face de colonialismo
revela o paradoxo, que impõe como condição moderna a alteridade, na exigência de
reconhecimento do outro como legítimo outro. Esta negação são formas de
vinculação humana que se expressam nas relações sociais de exclusão, racismo,
preconceito, sexismo, seja de forma institucionalizada ou não, que legitimam e
reproduzem os valores sociais de um colonialismo oligárquico presente na
sociedade brasileira. A condição moderna cria (des)humanidades que,
paradoxalmente, pressiona por humanização na proposição de políticas sociais.
~ 236 ~
Os valores que permeiam a construção do SUS expresso pela
universalidade equitativa em suas ações integrais de saúde, certamente implicam
relações sociais em que o reconhecimento do outro é condição. Quando Martins
(2013) sugere para o SUS a retomada de uma terceira lógica que também o
fundamenta e traz para pauta de diálogo os direitos tradicionais referentes a nossa
existência, tais como o direito de amar, viver, comer, na verdade, ele sugere
repensar e propor novas formas de apropriação coletiva dos bens vitais. O que aqui
se apresenta ao debate é o colonialismo, sobretudo, quando se refere a sua outra
face de descolonização, no caso, mais especificamente, a Descoloniação da Mãe
Natureza e da Vida, tal como alude Walsh.
Acredito que as políticas de humanização do SUS que trazem a pauta das
relações entre os profissionais de saúde e população se inserem no contexto da
modernidade, não podendo prescindir da (des)colonialização necessária das
relações sociais que marcam o modo de ser em nossas formas de vinculação uns
com os outros, como brasileiros.
Contemporaneamente, de um modo geral, vivemos em uma cultura
enferma, uma civilização adoecida, estruturada na negação do outro expressa em
vários desdobramentos do colonialismo, fruto da colonização que deu início a
sociedade globalizada. A nossa civilidade fundamenta-se em função de valores anti-
vida que nos adoece a todos. Sobre isso Toro nos alerta que Actualmente el vínculo
humano es egocéntrico, se caracteriza por la explotación y el asesinato. (…) Nuestra época se
caracteriza por la disociación del hombre con la naturaleza. Hay en la civilización actual un bajo
nivel de conciencia y una absoluta falta de reverencia por la vida. (TORO, 2014, p. 114).
Neste cenário da modernidade/colonialidade Toro (2012) tem razão quando afirma
que a afetividade é uma das funções psicológicas mais perturbadas e reprimidas
dentro do mundo relacional, social, educacional e político na atualidade. Vivemos
um processo civilizatório enfermo baseado em valores antivida que se relaciona de
forma catastrófica por uma afetividade ausente de amorosidade e transbordante em
agressividade.
~ 237 ~
Por outro lado, a convivência entre os humanos tem no amor sua base
social, mesmo a despeito da nossa propensão a altos níveis de violência, porque não
há aqui uma relação excludente, mas dialógica, distante de visões maniqueístas do
Bem ou Mal. O conceito de amor não se refere a algo transcendental ou metafísico,
mas diz respeito ao vínculo afetivo que une um ser humano ao outro e que resulta
da identificação com o grupo, tal como nos apresentou Eibl-Eibesfeldt. Nas
conclusões de seu livro amor e Ódio, o etólogo nos diz que a educação sem amor e a
hostilização tornam os homens duros e sepultam a sua tendência inata de amar o próximo. ...
quando começarmos a dar relevo aos aspectos vinculadores, então, poderemos estar seguros que
garantimos um futuro feliz aos nossos netos. As potencialidades do bem são biologicamente tão
nossas como as do auto-aniquilamento. (EIBL-EIBESFELDT, 1970, p. 270).
A pintura de Portinari Guerra e Paz comove justamente pelo contraste. É
uma bela imagem que, sensivelmente, nos indaga sobre qual rumo devemos tomar
como civilização, e qual relevo imprimimos à nossa natureza humana de homo-
sapiens-demens em nosso processo civilizatório na atual era de sociedade global.
3.1.2. O circuito do vínculo na ESF do SUS.
De tanto sacrificar o essencial em favor do urgente, acabamos por esquecer a urgência do essencial.
(Edgar Morin)
Como vimos incialmente, tanto da PNAB como da PNH reconhecem a
necessidade de humanização em suas diretrizes políticas e objetivam, de um modo
geral, operacionalizar uma rede de relações em termos de trocas solidárias e
comprometidas com a saúde como um valor de uso, em que o vínculo com os
usuários se qualifiquem em função da adoção de atitudes ético-estético-políticas.
Estas diretrizes se desdobram do paradoxo da modernidade/colonialidade em que
a condição moderna cria (des)humanidades, e ao fazê-lo, pressiona por
humanização. As formas de vinculação humana baseada no racismo, preconceito,
~ 238 ~
sexismo, presentes nas relações sociais de forma institucionalizada ou não, são
questionadas como modelo de relacionamento para a rede de serviços que integram
o SUS.
A PNAB apresenta o vínculo como uma necessidade para organização dos
serviços em função do qual condiciona suas práticas de saúde em razão do escopo
de suas ações, voltadas para a promoção de saúde e prevenção, que por sua vez,
impõem aos serviços, novas formas de relacionamento com a comunidade. A
organização da demanda acontece, não somente, em função do adoecer, mas deve
antecipar-se a episódios de saúde agudos e crônicos da população. Neste nível de
atenção é a saúde que vai ao sujeito, e com isso, torna o vínculo estratégia e
condição para o estabelecimento das formas de cuidado. E claro, tais vínculos entre
profissionais de saúde e população se delineiam desdobrando-se em função do
contexto mais amplo da modernidade/colonialidade.
Vamos tecer algumas considerações sobre o vínculo buscando inicialmente
problematizar seus desdobramentos na atenção primária à saúde a partir dos
operadores cognitivos, sistêmico e recursivo do pensamento complexo. É
importante buscar uma compreensão, tanto em termos da necessidade do serviço e
suas estratégias de vinculação para chegar à população, como também, das formas a
partir das quais a população se vincula e demanda esses serviços, compreendendo a
saúde como um direito e acesso a serviços de qualidade e humanizado. É
necessário levar em conta quem precisa de quem, isto é, de que forma o serviço
precisa e busca construir vínculo, e de que forma a população busca, ou não, se
vincular a eles e/ou aos profissionais de saúde.
Vou me deter, mais apuradamente, sobre os desdobramentos do vínculo na
ESF do SUS articulando-o às necessidades de saúde tendo em vista que isto inclui,
dentre outros aspectos, as estratégias de vinculação dos serviços com a população.
Apresento a seguir visões de alguns autores sobre o assunto, para em seguida,
apresentar uma visão sistêmica sobre a questão, a partir dos operadores do pensar
complexo.
~ 239 ~
Vínculo: necessidade ou vontade?
Para Shraiber e Mendes-Gonçalves (1996) as necessidades de saúde
relacionadas ao serviço tem haver com a assistência que, por sua vez, é o que
caracteriza a demanda e/ou o consumo, quando se trata de um serviço. Para os
autores, a origem de tudo seria um carecimento, algo que precisa ser corrigido no
estado sóciovital da pessoa que procura o serviço, que se sente doente ou em
sofrimento. Como é próprio da organização do serviço antevê soluções para tais
carecimentos, a demanda é “tratada”, e até certo ponto, satisfeita, tornando a
intervenção reconhecida, e também, entendida como necessidade. O resultado é
uma intervenção sempre reiterada.
Os autores apresentam um modo de operar o conceito de necessidade de
saúde a partir de um contexto instaurador e recriador de necessidades. Segundo
esclarecem, haveria aí um aspecto circular porque carecimentos são criados e
recriados na vida em sociedade. E o problema surge ao se desconsiderar as
desigualdades das necessidades sociais com a criação de demandas voltadas apenas
para um segmento da população. Isso resulta em uma demanda silenciada, e
também na inoperância do sistema como um todo em razão da coisificação das
necessidades, quadro agravado pela burocratização das práticas. Tal modo de
funcionamento tenderá sempre para uma reprodução acrítica dos „cardápios‟ das
necessidades e da definição de suas „respostas‟. (SHRAIBER E MENDES-GONÇALVES,
1996, p.33), arrematam os autores.
Nesta perspectiva de visão dualista o pensamento esbarra em um circuito
estéril, incapaz de rupturas, tanto em termos de intervenção técnica quanto em
termos ético-políticos, no que diz respeito à produção dos serviços. A meu ver as
necessidades de saúde colocadas nesta perspectiva tem um problema de partida que
reside justamente em focar a doença e atrelá-la, tão somente, à assistência.
Concordo com Shraiber e Mendes-Gonçalves quando afirmam que: Dos anos de sua
proposição original até hoje, a atenção primária vem progressivamente se tornando um complexo
~ 240 ~
assistencial que envolve difíceis definições de tecnologia apropriada. (SHRAIBER E
MENDES-GONÇALVES 1996, p. 43). Entretanto, percebo o nó górdio da
dificuldade em operar em função de um pensamento dual e que opera somente em
função da doença, que acaba por desembocar em um círculo vicioso em que não há
saídas.
Outros autores abordam o tema das necessidades em saúde ao referir a
construção social da demanda na atenção básica. Souza e Botazzo (2013) afirmam
que a ESF produz um ordenamento das práticas de saúde quando cria programas e
procedimentos. Embora isso defina suas ações também as limita, porque o
resultado é uma dificuldade de ofertar respostas adequadas às necessidades de
saúde das pessoas em função da fragmentação da oferta de ações e serviços,
desembocando em uma descontinuidade da atenção. O usuário fica impedido de
transitar na rede de atenção, ou sem saber qual direção tomar, e/ou ainda, sem
saber se sua necessidade será ou não sanada.
Os autores concluem afirmando que para se fiar numa aposta que
qualifique o cuidado centrado nas reais necessidades dos que procuram pelo serviço
e supere a produção centrada em procedimentos numéricos é preciso um modo de
produzir saúde construído de forma conjunta, tanto dentro da instituição, como no
território em que se insere. Os autores, no entanto, não apontam como fazer isso.
Em suma, a análise do conceito de necessidade de saúde, em sua
operacionalidade, geralmente, se atém a um consumo massificado que reiteram
demandas, voltadas para um perfil epidemiológico distanciado das reais
necessidades do território.
Tal perspectiva de análise se agrava ainda mais com a ideia de produção
imaginária da demanda apresentada por Franco e Merhy (2005). Os autores
comentam esse assunto esclarecendo três aspectos. O primeiro que afirma ser a
demanda construída a partir da oferta, já que não se demanda um serviço que não
se oferta; o segundo, que reconhece que a demanda relativa a um dado serviço é
~ 241 ~
construída em face da não realização de certas necessidades por outros serviços; e o
terceiro que constata que a necessidade de saúde é fruto de uma associação feita
pelo usuário entre a solução de seus problemas e certos produtos realizados pelos
serviços, o que resulta em um fetiche, ao se atribuir a um procedimento o poder de
satisfazer uma necessidade, colocando no procedimento, toda expectativa de ser
cuidado e protegido.
A produção imaginária da demanda é fruto da construção histórica dos
modelos técnico-assistenciais que associam, equivocadamente,
procedimento/tecnologia com a qualidade do cuidado. Tal associação faz aumentar
a demanda por exames, que cotidianamente são solicitados, embora, muitas vezes,
as pessoas não os realizem e/ou não se interessem pelos resultados. Há aqui
novamente um círculo vicioso que induz uma demanda por
procedimentos/tecnologias, ao invés de cuidados. Todavia a pergunta que fica é:
onde estaria a válvula de escape que permite sair do círculo vicioso no caso da
produção imaginária da demanda? De que forma romper isso?
Franco e Merhy defendem que para esse rompimento é preciso que se
instalem novos padrões de produção do cuidado capazes de desconstruir o
imaginário da demanda por procedimentos. A saída proposta pelos autores passa
por uma ressignificação da relação entre os usuários e os profissionais de saúde,
uma aposta em um novo modo de agir por parte dos profissionais que se ancore
em novos significados do cuidado, e assim, se transmita para os usuários, de
maneira tal que resulte em um empoderamento destes. Em última instancia
poderíamos dizer que o escape, no caso, estaria n a relação entre profissionais e
usuários no âmbito da ESF.
Segundo esclarecem os autores tal mudança se dá por processos de
subjetivação capazes de fazer com que os usuários se sintam em condições de se
cuidarem, aumentando sua autonomia diante dos serviços. O pressuposto que
impulsionaria tal mudança está, segundo Franco e Merhy, na força do desejo,
quando afirmam:
~ 242 ~
Um pressuposto para a mudança é tornar trabalhadores e usuários sujeitos do processo, isto é, capazes de um certo protagonismo que muda o sentido do trabalho e produção da saúde. O “desejo” tem sido apontado por Deleuze e Guattari como essa energia capaz de mobilizar os sujeitos em processos de construção do novo radical, isto é, mudanças sociais que apontem para um devir que signifique uma outra estrutura de funcionamento das instituições. (...) Os processos de mudança necessariamente devem reconhecer que está na fonte do desejo a energia motora capaz de produzir o instituinte, enunciar e construir o novo, resignificar o modo de fazer o cuidado. A mudança radical do modo de produzir saúde como tem sido sugerido aqui será um processo construído por sujeitos-desejantes-revolucionários, e o desafio é tornar os trabalhadores e usuários portadores desse sentido nas suas vidas. (FRANCO; MERHY, 2005, p. 16).
A meu ver há alguns pontos problemáticos nesta solução. O primeiro
ponto nodal é apostar que a mudança depende ou se inicia apenas a partir de um
polo da relação. Pensar em uma ressignificação implica raciocinar em mão dupla,
requer mudanças não no polo A ou B, mas no que está entre A e B. O segundo,
decorrente do primeiro, é considerar que o empoderamento dos usuários se inicia
graças à ação dos profissionais de saúde e seus serviços. Há uma crença equivocada
que coloca a autonomia das pessoas em seu mover-se no mundo e no cuidado de si
como algo que depende e/ou se inicia por obra e graça do cuidado dos
profissionais de saúde.
Outro ponto problemático na solução apontada pelos autores é sua
proposição de colocar o desejo como força motriz para transformação dos modos
de produzir saúde e romper com a produção imaginária da demanda. Quando se
fala de produção imaginária da demanda que associa qualidade do serviço à
procedimentos/tecnologias, como comentam os próprios autores, o que disso
resulta é que as pessoas atribuem ao procedimento/tecnologia o poder de sanar
suas necessidades. É onde o procedimento/tecnologia vira fetiche porque revestido
de um desejo. Isso ocorre como tudo o mais de produtos na sociedade baseada no
~ 243 ~
consumo em que tudo vira mercadoria, e para isso se cria necessidades, imaginárias
ou não.
Bom, como defendem Deleuse e Guatarri o desejo só quer a si mesmo. E,
se a tarefa da Esquizonanálise consiste em subordinar o social à máquinas
desejantes, e se um esquizonalista não se interessa em como um mundo deveria ser,
mas convida a todos para sair da sujeição às normas em nome do que desejam, tal
não seria o que acontece com a produção imaginária da demanda? A associação do
procedimento/tecnologia com a qualidade torna-se fetiche em função do desejo.
De que forma o desejo que, no caso, pulsa no outro polo da relação, (nos usuários)
pode lidar com tal frustração, sem abrir mão do próprio desejo? Como fazer um
polo da relação, no caso os profissionais de saúde, gerar mudanças no desejo do
outro? No caso no desejo dos usuários, levando em conta o contexto moderno
neoliberal, em que se insere o SUS, permeado pela lógica do consumo, em que não
só a saúde vira mercadoria, mas tudo o mais que constitui o cuidado?
Ora, não seria justamente a força do desejo que poderia ter criado esta
produção imaginária da demanda, uma vez que o desejo não tem limites nem
objeto, para usar termos psicanalíticos? Será mesmo que o desejo teria essa força
frente à realidade que, mesmo que oferte os melhores procedimentos/tecnologias,
não resultará sempre em frustração? Até que ponto o desejo de um (no caso, dos
profissionais da saúde) modifica ou influencia na mudança do desejo do outro (no
caso, da população usuária)? A produção imaginária da demanda não resulta de um
desejo que se cria em função de uma “falsa” necessidade? Como tornar realidade
um desejo que, em realidade, não se satisfaz? Até que ponto a tecnologia ou o
procedimento substitui o cuidado humano? Até que ponto seria possível escapar
disso pela via do desejo?
Talvez uma resposta poderia ser a de mudar o objeto do desejo criando
uma nova associação entre qualidade do serviço com os cuidados ofertados. O
desejo, em termos psicanalíticos, embora não tenha objeto definido, mesmo que
temporariamente, encontra e se volta para um objeto que o satisfaça. Contudo, há
~ 244 ~
um problema, um procedimento/tecnologia é algo bem mais fácil de transformar-
se em fetiche/desejo para satisfação de necessidades. Mas o que dizer quando
retiramos da relação o procedimento/tecnologia e deixamos somente a relação
revestida do cuidado? Algo se torna espinhoso quando o que resta para ser alvo do
desejo e satisfação de necessidades seja um outro, humano.
Em suma, o vínculo entre os profissionais de saúde e as pessoas que usam
os serviços se coloca entre o serviço e a população e se entrelaça como
desdobramento das necessidades de saúde como um nó górdio na ESF. As
categorias de análises das necessidades de saúde se enredam em um círculo vicioso
sem saída. O rompimento é uma aposta na força do desejo como força
revolucionária e foca somente um dos polos da relação. No caso, os profissionais
de saúde, que devem assumir como tarefa empreender a mudança a partir de novos
processos de subjetivação, o que acarreta pensar sobre a força do desejo enquanto
satisfação de necessidades, frente a frustrações que interpelam o próprio desejo.
Gostaria de analisar esta proposição relacional inicialmente com ajuda de
uma imagem gráfica que contém dois conjuntos: A (profissionais da ESF) e B
(população que utiliza os serviços do SUS). De acordo com a linha de pensar de
Franco e Merhy uma mudança poderia se operar de A para B, desde que, em A,
ocorra um rearranjo de seus componentes, isto é, um novo modo de agir da equipe
baseado em novos processos de subjetivação. Algo que pode ser representado pela
figura abaixo:
Novo modo de agir
Conjunto A Conjunto B
13. Serviços da ESF – Relação de conjunto
~ 245 ~
A aposta dos autores é pensar que uma mudança poderia acontecer entre os
conjuntos A e B, ao mudar a inter-relação dos componentes do conjunto A, isto é,
os modos de agir dos profissionais. A mudança depende, então, de um movimento
de A para B. No entanto, em que medida o padrão expresso no modo de agir do
conjunto em B, também influencia o padrão do modo de agir do conjunto A? O
padrão de agir do conjunto B também não influenciaria de modo a conservar e/ou
mudar o padrão que caracteriza os modos de agir do conjunto A?
Considero importante problematizar a relação entre os conjuntos A e B,
uma vez que a mudança envolve os dois conjuntos, entretanto, a partir da ideia de
sistema. Penso que uma visão sistêmica nos ajuda a compreender um pouco mais
da relação entre A e B como partes de um todo, e não mais como conjuntos em
separado.
Vínculo como um fenômeno relacional sistêmico.
O vínculo como fenômeno relacional sistêmico e de natureza complexa se
situa entre, se entrelaça às necessidades de saúde e se desdobra na relação entre
profissionais e pessoas que usam os serviços de saúde. Vou retomar a visão
sistêmica sustentada por Morin (2003) quando a relaciona a ideia de organização
para, em seguida, retomar a questão.
O filósofo chama atenção para formulação do conceito de sistema como
algo complexo que vai além de um conjunto de partes. Morin chama atenção é que
não basta associar uma inter-relação e uma totalidade, é preciso ligar à inter-relação
pela ideia de organização, e conceber o sistema como unidade global, organizada de
inter-relações entre elementos, ações ou indivíduos. É uma noção que requer algo
mais do que ligar o caráter global e o aspecto relacional, mas é preciso ligar totalidade à
inter-relação pela ideia de organização. (...) Assim que adquirem um caráter regular ou estável, as
~ 246 ~
inter-relações entre elementos, acontecimentos, ou indivíduos se tornam organizacionais e constituem
um trunfo. (MORIN, 2003, p. 132-133).
Morin esclarece que não há um princípio sistêmico que seja anterior, ou
mesmo exterior às interações entre os elementos. O que existe são condições físicas
de formação em que certos fenômenos, ao tomar forma de inter-relações, tornam-
se organizacionais. Para o autor o surgimento da inter-relação, da organização e do
sistema são três faces de um mesmo fenômeno. A organização é o encadeamento de
relações entre componentes ou indivíduos que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de
qualidades desconhecidas quanto aos componentes ou indivíduos. A organização liga de maneira
inter-relacional os elementos ou acontecimentos ou indivíduos diversos que desde então se tornam os
componentes do todo. (...) A organização, portanto: transforma, produz, religa e mantém.
(MORIN, 2003, p. 133).
O interessante aqui é a associação que Morin estabelece entre a ideia de
sistema e a de organização, em que a inter-relação liga os dois conceitos formando um
conceito trinitário de sistema. As inter-relações dos elementos, dos acontecimentos,
ou mesmo, entre os indivíduos, ao adquirirem um caráter regular ou estável,
tornam-se organizacionais, e então, produz um sistema. Em outras palavras, há
uma reciprocidade circular que liga os três aspectos: inter-relação, organização e sistema.
Morin continua esclarecendo que apesar de inseparáveis, os três termos
devem ser distinguíveis: A ideia de inter-relação remete aos tipos e formas de ligação entre
elementos ou indivíduos, entre esses elementos/indivíduos e o Todo. A ideia de sistema remete à
unidade complexa do todo inter-relacionado, às suas características e propriedades fenomenais. A
ideia de organização remete à disposição das partes dentro, em e por um Todo. (MORIN,
2003, p. 134, grifos meus).
Morin lembra que a natureza faz mais do que adições, ela integra. Ele
assinala que inter-relação, organização e sistema são termos indissolúveis e se
implicam, remetendo-se uns aos outros, sendo que a ausência de um mutila
gravemente o conceito. A problemática do sistema para Morin não pode, portanto,
~ 247 ~
ser reduzida à relação todo/parte, mas deve ser mediada pelo termo interações.
Isso é importante uma vez que se considera que um organismo não é constituído
por suas células, e sim, pelas relações estabelecidas entre estas. Há um circuito
relacional não redutível à visão holística, e que vai além da ideia globalizante que
envolve o todo. Há um circuito polirrelacional que envolve os elementos e suas
inter-retro-relações em que a organização desempenha um papel nucleador,
esclarece Morin.
Com isso Morin chega a um paradoxo: o sistema é ao mesmo tempo mais,
menos, e também, diferente da soma das partes. As partes que compõem o sistema
podem ser menos e eventualmente, podem ser mais. Mas o importante aqui é ter
clareza que as partes em interação no sistema são diferentes do que são, ou seriam,
fora do sistema em questão. Essa formulação paradoxal torna o sistema irredutível
a quantificações. Só podemos compreender a ideia de sistema por uma descrição
qualitativa e, sobretudo, complexa.
O todo não é tudo, ele é menos e mais que o próprio todo e há nele
qualidades novas, as emergências que desabrocham como qualidades fenomenais dos
sistemas, que se perdem caso o sistema se dissocie. Morin chama de a face emersa do
sistema que é associativa, organizacional e funcional. Por outro lado, há também
imposições organizacionais que imergem no sistema. Há uma face sombria, imersa,
virtual, há antagonismo latente com potencial de desorganização e desintegração. É
o que Morin chama de princípio de antagonismo sistêmico: a unidade complexa do sistema
simultaneamente cria e rechaça o antagonismo. (MORIN, 2003, p. 152).
A noção complexa de sistema poderia colaborar para buscarmos uma
compreensão do fenômeno que envolve a relação entre os serviços de saúde e a
população, e toca a questão do vínculo. Isso exige uma nova perspectiva de visão a
partir de outros operadores cognitivos, em especial o princípio do circuito retroativo
que nos permite conhecer os processos auto-reguladores, bem como, a noção de
circuito recursivo que nos ajuda a compreender como produtos e efeitos são, ao
mesmo tempo, produto e causa daquilo que os produz.
~ 248 ~
Conforme já esclareceu Morin, o ponto de vista da totalidade isolada é
limitado e mutilador. A ideia de totalidade se torna mais útil no policentrismo de
suas partes em autonomia relativa, do que no globalismo do todo. A partir disso
Morin apresenta a ideia de circuito como algo que instaura um jogo
retroativo/recursivo gerador de saber. Esta ideia supera o atomismo e o holismo
porque faz interagir de forma produtiva noções que seriam estéreis, se vistas
somente em seu antagonismo, ou em suas disjunções. O circuito nos afasta das
simplificações quando não o reduzimos a uma fórmula, mas o tomamos como um
convite a um pensamento generativo, como sugere Morin. Em suas palavras:
O circuito se gera ao mesmo tempo em que gera; ele é produtor-de-si ao mesmo tempo em que ele produz. Não é círculo vicioso porque ele busca seu alimento (informações) na observação dos fenômenos, ou seja, num ecossistema fenomenal (sua ecoteca) e que é animado pela atividade cognitiva do sujeito pensante (sua „genoteca‟). É um circuito aberto que se fecha, e assim pode se desenvolver em espiral, ou seja, reproduzir saber... Aquém do circuito, nada: não há essência, não há substancia, não há nem real: o real se produz através do circuito das interações que produzem a organização, através do circuito das relações entre o objeto e o sujeito. (MORIN, 2003, p. 461).
Uma compreensão/conceituação sobre o vínculo é indispensável para dizer
algo sobre o vínculo em qualquer contexto/sistema. Contudo, apenas abre
condições para isso. Para compreender o vínculo em um contexto específico,
necessário se faz buscar percebê-lo em suas interrelações singulares em função da
organização do ecosistema do qual é parte, uma vez que o real se produz por meio
das interações e interrelações entre os sujeitos que dela fazem parte.
Identificamos então um padrão de inter-retro-relação que liga dois
subsistemas. Temos assim um ecossistema formado por dois subsistemas que em
suas inter-retro-relações constituem outros circuitos no sistema, que os engloba.
Uma representação gráfica nos ajuda a compreender a ideia que apresento:
~ 249 ~
Poderíamos identificar outros circuitos que se inter-relacionam interligando
os subsistemas população e profissionais de saúde e formando um ecossistema
maior, o nível de atenção primária do SUS. As necessidades de saúde formam um
circuito, mas dele se forma e deriva outros circuitos. Há uma inter-relação entre
eles e a existência de um, é gênese para outros, que se retroalimentam, conferindo
uma funcionalidade organizacional para o ecossistema.
Como ensina Morin, as partes em interação no sistema seriam diferentes do
que são, fora do sistema em questão. Em outras palavras, estas inter-retro-relações
que criam tais circuitos com este padrão de organização, assim se apresentam, se
consideramos o nível da atenção primária à saúde, uma vez que as necessidades de
saúde adquirem características específicas que a diferenciam, quando focamos
outros níveis de atenção relacionando ao SUS. A partir da visão sistêmica podemos
compreender o padrão de relação que conforma o ecossistema com visão mais
complexa que possibilita analisar as inter-retro-relações que compõem os
subsistemas em co-produção.
Ecosistema
ESF do SUS
Necessidades de Saúde
Serviços de Saúde
PROF ISSIONAIS DE SAÚDE POPULAÇÃO
Circuito 1
Circuito 2
14 – Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS –Esquema I
~ 250 ~
É a visão sistêmica é que integra os circuitos, e como vimos, as
necessidades de saúde formam um circuito que movimenta os serviços de saúde
funcionando de uma determinada maneira e gerando um padrão de organização
que, por sua vez, modela padrões de relação entre população e serviços. Todavia, é
preciso reconhecer que as necessidades de saúde é um dos circuitos que interligam
os sistemas, dentre outros. O vínculo entre profissionais e usuários dos serviços da
ESF forma outro circuito que também gera, influencia e é influenciado pelo padrão
de organização do ecossistema.
É com esta perspectiva de visão sistêmica compreendendo-o não como
totalidade, mas como palavra-raiz para complexidade que vou (re)inserir o vínculo
como mais um subsistema deste ecossistema em questão, lembrando que, como na
natureza não há adições, mas integração. Podemos visualizar agora alguns circuitos
que se retroalimentam configurando um padrão de organização para o ecossistema
em questão. Como mostra a figura a seguir:
Ecosistema
ESF do SUS
Serviços de Saúde
Necessidades de Saúde
Saúde
PROFISSIONAIS DE SAÚDE POPULAÇÃO
Circuito 1
Circuito 2
15 – Circuitos do Ecosistema da ESF do SUS – Esquema II
~ 251 ~
Reiterando o que disse Morin sobre o sistema, não há um princípio
sistêmico anterior, ou mesmo exterior, às interações entre os elementos, e sim,
condições de formação em que certos fenômenos, ao tomar forma, tornam-se
organizacionais. Ou seja, são as inter-retro-relações dos elementos que, ao
adquirirem um caráter regular, tornam-se organizacionais, e então, produz um
(eco)sistema.
Tendo em conta o vínculo como um fenômeno complexo que se desdobra
do entremeio entre o serviço de saúde e a população é preciso, por fim, operar um
recorte no sistema, tal como sugere Morin. Referindo agora ao ecossistema é
possível operar este recorte, sem isolar o fenômeno, para assim, buscar
compreender o vínculo como um dos circuitos em suas inter-retro-relações com os
demais, como mostra a figura abaixo:
Por fim, após esse talhamento no sistema, a tarefa é compreender o
vínculo, o humano vínculo, em seus desdobramentos neste (eco)sistema, em
específico. A metáfora da estrela que alude a uma compreensão complexa do
Ecosistema
ESF do SUS
Necessidades de Saúde
Serviços de Saúde
PROFISSIONAIS DE SAÚDE POPULAÇÃO
Circuito 1
Circuito 2
16 – Circuito interrelacionado do vínculo na ESF do SUS – Esquema III
~ 252 ~
vínculo humano, certamente, não diz respeito, de forma exclusiva, ao vínculo entre
os profissionais de saúde e as pessoas que usam seus serviços na ESF do SUS. É
uma compreensão elástica e com capacidade de abranger as relações humanas,
onde quer que haja humanos. Entretanto, certamente o ecossistema em que o
vínculo se torna questão, possui uma organização singular em seus circuitos inter-
relacionais que dão contornos singulares que caracterizam o fenômeno neste
contexto específico.
Algumas questões emergem em função desta visão sistêmica. O circuito do
vínculo se relaciona com os demais circuitos de maneira a conservar, transformar,
reiterar o modo de organização que compõe o sistema? Que padrão de
funcionamento organizacional confere o vínculo, ao ecosistema?
Bem, ninguém colocaria em questão que o vínculo entre os profissionais de
saúde e as pessoas que usam os serviços da ESF teria qualidades especiais que o
diferencie do vínculo, o humano vínculo. Contudo, quero aqui evidenciar uma
sutileza do fenômeno que investigo. Não é a qualidade ou a essência do vínculo que
muda ou não, mas o circuito gerador que o interrelaciona ao ecossistema,
instaurando um jogo retroativo/recursivo gerador de um saber, que só faz sentido
para o ecossistema em questão. É justamente esta reconfiguração que torna o
vínculo uma questão pertinente a este (eco)sistema. E são justamente as
interrelações novas que emergem a respeito do fenômeno, quando se desdobra
deste contexto específico, que interessa para esta pesquisa, e não o vínculo humano
em si.
A partir dessa visão sistêmica, conforme já assinalou Morin esclarecendo
que não há um princípio sistêmico que seja anterior, ou mesmo exterior às
interações entre seus elementos, e que são as interações entre os circuitos que
conformam suas interrelações e originam padrões organizacionais, podemos
aprofundar alguns pontos que tocam o cotidiano dos serviços de saúde na ESF.
~ 253 ~
Assim, por exemplo, é comum pensar a organização dos serviços de saúde
como um ponto de origem que ignora o que antes já existia, seja quando a
comunidade não tinha o serviço e este está sendo implantado, seja quando chega
um novo programa, uma nova equipe, ou uma nova gestão em um Centro de Saúde
que já existia em algum território/comunidade. É comum pensar a organização do
sistema como um padrão ideal que deveria funcionar independente do contexto em
que se insere. E mesmo que esse padrão seja compreendido relacionando suas
partes entre si, o ponto de vista da totalidade isolada acaba sendo mutilador.
A visão complexa de sistema enraíza nosso olhar porque nos enraíza na
physis, como diz Morin, e nos ajuda a pensar a totalidade no policentrismo de suas
partes em autonomia relativa. Isso permite compreender o sistema sem reduzi-lo a
um esquema ideal, e tampouco toma-lo por um objeto real, sem a participação dos
sujeitos, nos afastando assim tanto das concepções idealistas como do realismo
ingênuo.
Isso nos permite pensar, por exemplo, que uma população que vive em um
determinado território/comunidade tem em seu percurso histórico, formas de
sanar suas necessidades de saúde que, comumente, são ignoradas ou negadas pelos
serviços que chegam. É o que comumente acontece quando um serviço de saúde é
implantado em um território. O que, na verdade, ocorre é que a partir daí um novo
sistema começa a se configurar, mas se configura a partir do que já existia, novos
circuitos se desdobram. Desta forma, um novo elemento qualquer, seja a chegada
de uma Unidade com oferta de serviços de saúde, seja a implantação de uma nova
gestão ou programa, seja a saída ou chegada de profissionais, seja uma reforma na
estrutura do prédio, seja uma grande mudança na comunidade, etc, tudo isso, passa
a integrar o sistema, e o modifica. E isso, tanto pode reiterar o que antes já existia,
como, também, pode operar mudanças no sistema, simultaneamente.
Em relação ao modo de inter-retro-relação entre profissionais de saúde e
população tem um percurso histórico singular que configura padrões de
organização de acordo com as políticas públicas de saúde em sua relação com a
~ 254 ~
população e o território. Assim, por exemplo, se antes não havia um serviço de
atenção primária na comunidade e as pessoas costumavam se deslocar até um
hospital somente quando estavam doentes, isso configura um padrão de relação
que caracteriza um modo peculiar de inter-relação entre serviços de saúde e
população. Esse modo de relação não se reconfigura automaticamente com a
construção de um Centro de Saúde da Família, cujo modo de funcionar deve
efetivar ações peculiares e pertinentes a este nível de atenção à saúde. O que ocorre
é as pessoas procurarem os serviços do CSF da mesma forma, ou com a mesma
intenção que antes procuravam o hospital, ou seja, procuram, para sanar um
problema de saúde, buscar tratamento para alguma doença. Do mesmo modo, o
serviço de saúde de um CSF organiza-se, geralmente, com base no perfil
epidemiológico que homogeneíza territórios em função dos programas da PNAB e,
com isso, tem limitações para apreender as necessidades de saúde da população
adscrita de seu território.
Bem, os serviços de atenção primária incluem, não somente, o tratamento,
mas ações de promoção da saúde, de prevenção de doenças e reabilitação. É a
porta de entrada de um metassistema, no caso, o SUS. As práticas assistenciais e
preventivas que caracterizam os serviços de saúde se construíram historicamente
como um arranjo institucional dicotômico que separam as práticas assistenciais das
preventivas, não porque são dicotômicas em si. Tal arranjo assim se constrói em
função de um pensamento dual que, por natureza, dicotomiza. Ocorre que
assistência e prevenção não são práticas que guardam uma relação antagônica por
natureza, há uma dialogicidade neste antagonismo que precisa ser elucidada em
função de um conceito ampliado de saúde, e melhor compreendido em termos
históricos e a partir de uma visão sistêmica.
Os circuitos que compõem a inter-relação entre os subsistemas do
ecossistema em questão precisam ser reinventados, mas reinventados a partir do
que existe no contexto, e não partir de um dever ser que preconiza a PNAB,
embora possa incluir isso. É importante levar em conta, por exemplo, que o
~ 255 ~
vínculo entre a população e os profissionais de saúde já existem como padrão em
termos sociais, simbólicos, culturais, econômicos, históricos, etc. As pessoas tem
uma ideia (imaginação/expectativa) construída acerca do serviço e do profissional,
embora nunca tenha utilizado o serviço de saúde. São estas ideias que moldam sua
forma de relacionar-se com o serviço de saúde e seus profissionais. Os
profissionais, por sua vez, também guardam uma ideia em sua imaginação e/ou
expectativa sobre as pessoas que procuram os serviços, que conformam um padrão
de relação que se relaciona com sua compreensão sobre o nível de atenção primária
para SUS, sua visão de mundo, sua cultura, etc.
É preciso superar o equívoco de pensar que o vínculo se inicia quando o
profissional chega ao serviço de saúde e devem assumir uma tarefa de construir um
vínculo. É preciso superar a pretensão de que tudo começa com a chegada dos
profissionais e das normatizações das políticas que norteiam os serviços de atenção
primária para o território, e que toda mudança depende dos profissionais de saúde.
Focando o vínculo, seria pretencioso conceber que é deste vínculo que se
origina ou deveria se construir a autonomia dos usuários e a responsabilização dos
profissionais. É preciso superar a ideia de considerar a autonomia das pessoas em
função da relação com os profissionais da saúde, como pressupõe,
equivocadamente, a relação proposta para vínculo e autonomia, tão referida na
literatura. A autonomia dos sujeitos é algo que se expressa na vida das pessoas em
seus ciclos de vida, bem como, em relação ao contexto em que se inserem. Tal
modo de vinculação reitera, ou não, esse fator. Não é algo que se inicia, está
presente ou ausente, a partir e em função somente da relação das pessoas com os
profissionais de saúde.
A visão sistêmica nos auxiliar a pensar nas articulações entre os diversos
circuitos que compõe o sistema em sua co-produção. Um exemplo para ajudar a
esclarecer esta questão é o sistema de referência e contrarreferência e os
encaminhamos feitos. A integralidade da atenção é na prática cotidiana,
equivocamente, e supostamente solucionada por meio de encaminhamentos, tanto
~ 256 ~
para outros níveis de atenção, como também, para outras categorias profissionais,
dependendo da queixa. Digo equivocamente porque os profissionais, geralmente,
ao encaminhar, se desresponsabilizam do caso, e a contrarreferência é algo raro na
efetivação da rede que aponta a atenção primária como porta de entrada no
sistema. Bem, essa função de “encaminhador” gera ou faz surgir um complemento,
que podemos chamar de “peregrino sem rumo”, papel assumido pela pessoa que
demanda o serviço, configurando um padrão de relação que confere os contornos
da organização sistêmica. Isso ocorre porque, de um modo geral, as pessoas
desconhecem o SUS e não fazem ideia de seu funcionamento em rede em diversos
níveis de atenção e, portanto, não diferenciam as funções dos diferentes
profissionais dos serviços. Esse “não saber” da pessoa que demanda o serviço,
geralmente, não é considerado, e quando o é, grosso modo, é apreendido como
uma ignorância, “falta” tolerável ou não, a depender do profissional que atende.
A população em geral, e arriscaria incluir também os trabalhadores da
saúde, ignoram as proposições do SUS organizado em níveis de atenção, e julgam
como importante a disponibilidade de hospitais e procedimentos mediados por
tecnologias, porque esse foi padrão construído social e historicamente. O Centro de
Saúde da Família é geralmente visto e tratado pela população, e quiçá também pelos
trabalhadores da saúde, como um “mini-hospital”, isto é, um hospital que não dispõe
de muitos recursos, e que por isso encaminha.
Ocorre, por outro lado, que tanto há pessoas que chegam aos serviços de
saúde compreendendo-os como benesse ou favor que lhe fazem, e outras, que
chegam compreendendo-o como um privilégio que devem ter em detrimento de
outros, que também utilizam o serviço. E também, há profissionais que reiteram ou
não esse padrão de relação. Assim, é comum o assistencialismo e seus derivados
como o clientelismo, o privilégio, o nepotismo serem os elementos que configurem
o modo de relação Estado/Sociedade, que pode ser reiterado ou não no padrão de
relação que configura o vínculo das pessoas que utilizam os serviços de saúde, tanto
como trabalhador, quanto como usuário do sistema.
~ 257 ~
Há aqui um modo de ressonância que cria uma espécie de eco
complementar de ações configurando padrões de inter-retro-relações que amoldam
a organização e o funcionamento dos serviços de saúde. No exemplo aqui temos
um padrão: encaminhador/peregrino-sem-rumo. Contudo, inúmeros outros padrões de
relações se configuram no sistema.
Outro padrão comum se configura a partir das pessoas que frequentam o
CSF quase todos os dias e, geralmente, são denominadas pelos profissionais de
poliqueixosos, porque na compreensão deles, tais queixas não tem fundamento em
alguma dor física, e é “somente” emocional e, portanto, são pessoas que só querem
atenção. Esse padrão resulta de um modo de inter-retro-relação em que o serviço é
organizado em função do procedimento queixa-conduta, sendo queixa válida,
somente aquela enquadrada ao modelo biomédico, em que as doenças decorrentes
do stress cotidiano são desvalorizadas e desconsideradas.
Estes padrões de relação são gerados e mantidos em função da organização
dos elementos que constitui o sistema. Trata-se de um circuito recursivo. Na
relação entre a população e os serviços de saúde há uma co-produção de
atitudes/condutas que se complementam e se reiteram em função do contexto em
que se inserem. Tais padrões sustentam a organização do sistema em função das
vantagens que trazem para seu funcionamento. Certamente há vantagens nos
privilégios, nas queixas nunca satisfeitas e nos diversos padrões de relações
estabelecidos que constitui a organização do sistema.
Certamente o cotidiano de um Centro de Saúde da Família amolda, cria e
reiteram processos de subjetivação cujo padrão de relação se desdobra em
conformidade com o contexto da modernidade/colonialidade. É um contexto em
que o assistencialismo e a cultura do privilégio convivem com a solidariedade e o
acesso a direitos. São esses processos subjetivos que configuram padrões de relação
que tecem os vínculos entre profissionais e pessoas que usam os serviços.
Certamente abrir mão de privilégios não é algo que facilmente se deseje, tampouco,
desistir de uma queixa, em função da qual, se obtém vantagens. A produção de
~ 258 ~
novos modos de agir em saúde passa também por evidenciar o que não se deseja.
Passa pelo enfrentamento dos conflitos que permeiam naturalmente as relações
humanas e se enrijecem nos laços afetivos que a todos vinculam.
Acredito que um dos componentes da mudança seria investir em novos
padrões de relação que tenham como base novos valores, que nem sempre
coincidem com os desejos. Tais mudanças exigem coragem e esperança para lidar
com as incertezas e os desconfortos que causam. A criação de novos padrões de
relação que potencializem mudanças para efetivar práticas de saúde universais,
integrais e equânimes, é algo inédito, nunca vivenciado no padrão de relação no
cotidiano dos serviços de saúde. A questão é como tornar isso possível?
Uma questão pertinente quando refletimos sobre a humanização do padrão
de relações entre profissionais de saúde e população é como transformar um
sistema buscando torna-lo no que ainda não somos? Lembrando o que diz Morin,
o todo não é tudo porque há nele o que podemos chamar de emergências, qualidades
novas que surgem em função de novos padrões de organização, e também, podem
se perder, caso o sistema se dissocie. É preciso, então, estar atento ao potencial
latente do (eco)sistema que se releva em função do policentrismo de suas partes em
relativa autonomia. Há a face emersa do sistema que é associativa, organizacional e
funcional. Sempre vai haver algo de incerto e arbitrário na mudança que
configuram padrões de inter-retro-relações que conformam um (eco)sistema que
nos aponta para desconfortáveis incertezas. Contudo, a mudança não se instala sem
enfrentar as incertezas.
Em se tratando de processos subjetivos tal incerteza é inerente no processo
de gerar novos padrões a partir dos quais novas emergências (re)configurem a
organização do (eco)sistema e gerando novos padrões de relação que implicam
novos processos de subjetivação ainda não efetivados nos serviços. Contudo, em
função da plasticidade do que somos como espécie, é possível recriar padrões de
relação que renove o ambiente institucional, mesmo em face ao desconforto que
causa quaisquer processos de mudança, uma vez que, como humanidade, estamos
~ 259 ~
sempre nos recriando como indivíduos e como coletividade. A questão se volta
então apara o como mexer no sistema de maneira a criar esses novos padrões!
Após reinserir o fenômeno vínculo no contexto geral da sociedade
contemporânea e problematiza-lo no contexto específico da ESF no sentido de
evidenciar suas inter-relações articulada aos diversos circuitos que interligam os
subsistemas que compõe esse ecosistema, cabe agora compreender esses padrões
enraizados em um contexto mais específico. Por esse caminho avançamos para
buscar compreender o vínculo em seus desdobramentos na Estratégia Saúde da
Família do SUS.
~ 260 ~
3.2. Tauá – um lugar onde os vínculos me trouxeram.
Quem passa na minha terra bem ligeiro avistará Serrote Quinamuiú na cidade de Tauá beleza assim desse jeito em outro canto não há.
quem nasceu nessa terrinha conhece bem sua glória,
sabe de toda valia parte viva da memória patrimônio verdadeiro
e de Tauá grande história ... a essa imensa beleza
maravilha do sertão magnífica grandeza
Minha cidade é Tauá
Outra mais bela não há
Por esse imenso rincão
Digo sem tapeação
Para mostrar a verdade
...Chegar lá na Vera Cruz
No Distrito de Inhamuns
Encontrando ali alguns
Filhos de bastante luz
(Paulo de Tarso, poeta de Tauá)
Uma questão importante foi eleger Tauá como o lugar para propor esta
pesquisa. Após estudar a possibilidade de fazer o estudo na cidade de Fortaleza, a
vida mostrou outras possibilidades.
Imagem 10 – vista aérea do Serrote Quinamuiú, cidade de Tauá
~ 261 ~
Aconteceu que em setembro de 2014 a Fiocruz do Ceará, juntamente com
a Universidade de Brasília, por meio do seu Observatório da Política de Saúde Integral das
Populações do campo, da Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas15, estava firmando
uma parceria com o município de Tauá para realizar pesquisas no âmbito da
atenção básica, e me convida para apresentar minha proposta. Eu já havia
compartilhado sobre o meu tema de investigação com Vanira Pessoa, pesquisadora
da Fiocruz e minha colega de doutorado, por isso, o convite.
O interesse da Fiocruz era colaborar, por meio de pesquisas participativas
com metodologias inovadoras, na produção de conhecimento para a atenção básica
em saúde no sentido de produzir novas práticas em saúde. Ocorre que eu já
conhecia a cidade e os gestores de saúde porque já tinha atuado na formação dos
agentes comunitários de saúde durante o período de 2004 a 2007. E como havia
um interesse de conhecer as pesquisas, tanto por parte da Fiocruz, como por parte
da Secretaria de Saúde do município, e eu já conhecia a cidade, aceitei o convite e
considerei a possibilidade de lá realizar o trabalho de campo.
Tauá foi apontado para realizar a pesquisa da UNB16 no Ceará por ser uma
cidade localizada na região dos Inhamuns e ser o segundo maior município em
extensão territorial do Estado, e também, apresentar uma população significativa na
zona rural. Estas características faziam de Tauá um cenário importante para o
desenvolvimento de pesquisas voltadas para a população do campo e das florestas.
Por outro lado, considero que foi em função dos vínculos que eu já tinha com
algumas pessoas em Tauá, que o cenário do município se descortinou para mim.
Achei auspicioso aceitar o convite para apresentar minha pesquisa no município e
estudar a possiblidade de fazer a pesquisa na cidade, uma vez que foram os vínculos
que já tinha com as pessoas de lá, que haviam me levado ao município, dez anos
depois.
15 www.saudecampofloresta.unb.br 16 A pesquisa da UNB acontecia em todo Território Nacional.
~ 262 ~
Em 2014 a Fiocruz já havia realizado um total de 8 encontros para dialogar
sobre objetivos, perspectivas e metodologias para viabilizar as ideias que integrem
os interesses das diversas instituições envolvidas. Foi em um desses encontros, que
em setembro daquele ano, me somei à equipe aceitando o convite para apresentar a
pesquisa e estudar a possibilidade do município acolher a ideia, uma vez que meu
tema estava dentro do escopo da atenção primária à saúde do SUS.
No dia 10 de setembro, juntamente com pesquisadores da Fiocruz,
apresentei meu projeto de pesquisa para gestão de saúde do município. Estavam
presentes no encontro, além da equipe de pesquisadores, a secretária de saúde, a
Coordenação da Atenção Básica, Gerência de Educação Popular, Preceptoria da
Residência em Saúde da Família, as coordenações do Núcleo de Apoio à Saúde da
Família (NASF), da Residência em Saúde Mental, da Ouvidoria do SUS, do
Controle, Avaliação e Regulação, dentre outras. O encontro teve dois momentos, o
primeiro dedicado à apresentação da situação de saúde do Tauá, e o outro dedicado
às propostas das pesquisas.
Já se completara dez anos que havia trabalhado no município, muita coisa
havia mudado para melhor. Em relação à política de saúde percebi que Tauá possui
uma rede de serviços de saúde estruturada com 100% de cobertura em Saúde da
Família e oferece agora diversos serviços, tais como: Município Digital, Centro de
Atenção Psicossocial álcool e drogas, Casa de Parto, Policlínica, Centro de
Especialidades Odontológicas, Laboratório Central de Saúde Pública, Hospital. Em
relação a atenção básica em saúde também há os Núcleos de apoio à Saúde da
Família (NASF), e realiza investimento significativo em recursos financeiros para
capacitação de todos os profissionais envolvidos na atenção básica e provimentos
de insumos para qualidade da atenção. Destacam-se as seguintes iniciativas locais
de fortalecimento da atenção básica:
Realização do Curso de Planificação da Atenção Básica em parceria com o
Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Estadual
~ 263 ~
dos Secretários Municipais do Estado do Ceará (COSEMS/CE), Secretaria
Estadual de Saúde (SESA), Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP-CE) e
Fiocruz Ceará;
Pesquisas locais avaliativas sobre atenção básica viabilizadas por meio do
curso de planificação em parceria com a UNIFOR;
Piloto do E-SUS em parceria com Ministério da Saúde;
Residência em Saúde da Família;
Residência em Saúde Mental;
Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde;
Proposta de criação de uma Escola de Saúde Pública;
Telessaúde.
Em termos de indicadores, desafios e perspectivas da gestão a equipe de
coordenadores da Vigilância em Saúde, da Atenção Básica, do Controle, Avaliação
e Regulação e de Infraestrutura e Desenvolvimento Institucional da Saúde e da
Educação Popular apresentaram, cada uma, dados e informações sobre a situação
de saúde geral procedendo-se uma breve reflexão sobre o quadro de saúde geral
com todos os participantes. Em seguida o pesquisador da UNB apresentou a
pesquisa sobre Avaliação da Política Nacional da Saúde do Campo e da Floresta e
Águas, e em seguida, a minha. Os gestores municipais demonstraram interesse no
desenvolvimento das pesquisas e como encaminhamento já sugeriram possíveis
locais que poderiam acolher as propostas.
~ 264 ~
Após este encontro compartilhei com minha orientadora e decidimos que
Tauá seria o campo empírico para esta pesquisa. Apresentei o projeto ao Comitê de
Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Ceará, e após aprovação17, ,
iniciei o trabalho em campo no ano seguinte.
Em janeiro de 2015 fiz a primeira viagem a Tauá como pesquisadora e fui
visitar três Centros de Saúde da Família, os quais foram sugeridos pela gestão
durante o primeiro encontro em setembro de 2014. Eram eles: CSF de Bezerra e
Souza, CSF Alto Brilhante, ambos na sede, e o CSF Inhamuns, localizado no
distrito de Vera Cruz.
A receptividade em todos os CSF foi muito boa, sobretudo, por parte dos
agentes de saúde. Eu vivia alguns reencontros, pois já conhecia todos os agentes
comunitários de saúde de Tauá. Trabalhara na cidade de 2004 a 2007, época em que
o município era parceiro da Escola de Saúde Pública (ESP) e assumia a
responsabilidade de ser o piloto na formação técnica de seus ACS. Na época eu
trabalhava na equipe pedagógica da ESP e era responsável pela proposta
metodológica da formação técnica da categoria. A minha tarefa consistia em
elaborar a proposta e compartilhar os temas e a metodologia com os próprios ACS,
que eram parceiros na proposta. O contexto era do recente reconhecimento da
categoria como profissão, pela Lei 10.507/2002 e busca-se propor um curso para
17
O Projeto foi aprovação com o Parecer nº 4451831500005054
Imagem 11 - Equipe de Gestores da Secretaria de Saúde de Tauá e Equipe da Fiocruz
~ 265 ~
profissionais com larga experiência em serviço, embora sem a formação oficial. A
intenção da ESP era oferecer uma proposta curricular pertinente ao contexto e as
necessidades de aprendizagem dos ACS do Ceará.
Em função desse contexto, visitar os CSF foi um reencontro com muitos
ACS, e quando apresentava o tema da pesquisa havia um reconhecimento de sua
importância e pertinência para a equipe do CSF.
Após visitar os três, escolhi o CSF de Inhamuns porque, dentre as
possibilidades de agenda, era o CSF em que poderia contar com a presença e
colaboração de toda equipe mínima: médico, enfermeira, dentista, agente de saúde
auxiliar de enfermagem, além de também estar disponível para integrar a pesquisa a
atendente de Farmácia, o profissional da recepção do CSF e o fisioterapeuta da
equipe do NASF.
Compartilhei a escolha com a secretária de Saúde do município e a
coordenação local da Atenção Básica18 que assinou um Termo de Anuência da
pesquisa (em anexo) e fizemos um cronograma para um trabalho conjunto com o
CSF de Vera Cruz para a pesquisa sobre O Vínculo na Atenção Básica do SUS (título
inicial da pesquisa).
Tauá é um município que avançou muito em termos de política de saúde.
apresento a seguir um pouco sobre Tauá, como um município que integra a Região
do Sertão dos Inhamuns, na divisa com o Piauí.
18
Na época a Secretária de Saúde de Tauá era a Dra Ademária Timóteo que autorizou a pesquisa assinando o Termo
de Anuência, e também o coordenador da Atenção Básica, Mário Paresque.
~ 266 ~
3.2.1. Um pouco sobre Tauá: seu território, história e população.
Tauá é uma cidade que pertence ao
sertão dos Inhamuns, situada há 330km de
Fortaleza, no sudoeste do Ceará, vizinho ao
Piauí. A maior parte do território apresenta
ondulações pequenas. O serrote Quinamuiu se
eleva majestoso junto à cidade. As inclinações
das serras estão nas extremidades do
município, onde nascem os rios. A maior
altitude, 807m está a leste, no limite com o
município de Mombaça. As serras também
estabelecem os limites com Pedra Branca a nordeste, Independência ao norte,
Quiterianópolis ao noroeste, e Parambu ao oeste. No limite sul com Arneiroz, está
o ponto de menor altitude, 390m, onde o Jaguaribe penetra neste município.
Tauá é o segundo município mais extenso do Estado (superfície de
4.018km2) e sua pluviosidade média anual é de 597mm, com chuvas muito
irregulares. Em geral, as chuvas são poucas, suficientes para o crescimento das
pastagens bem adaptadas. A base de pedra, o cristalino, que está logo abaixo do
solo raso, dificulta a absorção da água para as camadas mais profundas, fazendo-a
escorrer rapidamente para os rios, que cessam de correr logo que as chuvas passam.
As grandes propriedades rurais, as sesmarias, doadas inicialmente aos
colonizadores pelo reino de Portugal no inicio do século XVIII, se dividem no
decorrer dos três séculos. Foi na primeira metade do século XVIII que a ocupação
dos Inhamuns se deu por conta dos criadores de gado que iam expulsando,
matando ou atraindo os índios para o trabalho nas fazendas. Por ser uma região de
clima semiárido e vegetação da caatinga com pastagens nativas a região atraiu a
Imagem 12- Mapa Ceará
~ 267 ~
atenção de criadores, que se estendiam pelo nordeste para o abastecimento de
carne e peles para as populações da zona da mata açucareira.
Assim surge a cidade às margens dos rios Jucá, Trici, Puiu, Carrapateiras,
Favela e Umbuzeiro, cujas águas de todos desembocam no Juazeiro, que no
percurso de 600km até chegar ao mar, em Aracati, torna-se o maior rio do Ceará,
que corre poucos meses no ano. A produção de carne, leite e peles ainda forma a
base da economia rural: vacas, ovelhas e cabras, lembrando A Civilização do Couro.
A povoação que deu origem à Tauá nasce de modo mais plural, com a
presença de comércio, e se desenvolve quando diferentes famílias ocupavam as
sesmarias dos Inhamuns.
Em 1802 é elevada à condição de vila, com o nome de S. João do Príncipe
dos Inhamuns, ligada ao município de Quixeramobim, com o qual passou a ter
maior ligação, e daí à Fortaleza de N.S. Assunção, que se tornara Capital da nova
Província do Ceará, três anos antes.
Imagem 13. Pintura Vila São João do Príncipe dos Inhamuns
~ 268 ~
Imagem 14- Coronel Lourenço Alves Feitosa e suas filhas Edwirges e
Maria de Lourdes
S. João do Príncipe dos Inhamuns tornou-se sede da Comarca de
Inhamuns em 1833, abrangendo Arneiroz e Maria Pereira (atual cidade de
Mombaça). Com a República em 1889, o nome Príncipe é retirado, e passa a ser S.
João dos Inhamuns; em 1892 é denominado Tauhá19. Em 1929 o município é
elevado a cidade.
A população rural continua dispersa nas fazendas. A cidade cresceu e já
concentra mais da metade da população do município. A vila de S. Teresa também
concentra a maior parcela da população daquele distrito. Nos demais distritos,
Trici, Marrecas, Marruás, Inhamuns, Carrapateiras e Barra Nova, as vilas têm pouca
expressão, com predominância da população rural.
Atualmente restam apenas duas famílias residindo na antiga cidade de
Cococi, que se encontra em ruinas. Foi o primeiro e principal núcleo da família
Feitosa, pioneira na colonização da região dos Inhamuns a partir de 1707.
Sua capela, construída em 1748 está conservada até hoje e ainda mantém viva a
tradição de celebração anual de N.S. da Conceição.
O historiador americano Billy Jaines Chandler
em uma publicação20 de 1980 intitulada “Os Feitosas e o
Sertão dos Inhamuns” descreve um período que vai da
chegada dos criadores de gado, em 1707, até o final
da Velha República em 1930. Ele nos conta que o
último Feitosa de grande poder foi o Coronel
Lourenço Alves Feitosa e Castro, nascido em Cococi
19 Dois livros podem ser destacados para os que se interessam pela história da região. Uma publicação com o título de “Retalhos do Passado” de Joaquim Pimenta, intelectual tauaense que se destacou nacionalmente, é um livro escrito em bem cuidada literatura, publicado em 1945, e reeditado pela Fundação Waldemar de Alcântara, de Fortaleza, traça um perfil da sociedade dos Inhamuns do início do século XX. O outro publicado em 1980 pelo historiador americano Billy Jaines Chandler, intitulado Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns, também encontrado nas bibliotecas e nos sebos, detalha os acontecimentos do período, com datas e nomes dos personagens que dominaram a região, especialmente dos Feitosas.
20 CHANDLER, Billy Jaines. Os Feitosas e o Sertão dos Inhamuns, 1980.
~ 269 ~
em 1844, teve o seu poderio até 1912, ano em que se encerrou o mandato do
Presidente do Ceará Antonio Nogueira Acioli, seu aliado.
Com o declínio dos Feitosas, o Coronel Domingos Gomes de Freitas, do
distrito de Flores (Trici), assume um papel destacado em Tauá, e até o final da
República Velha, disputam a liderança. Os Feitosas concentram o seu poder em
Arneiroz e Cococi, e o Coronel Domingos firma então sua liderança no município
de Tauá. Em conclusão em seu livro ele descreve que
(...) Os Inhamuns formavam uma sociedade tradicional num sentido bem real, pois as relações humanas básicas que foram iniciadas no século XVIII subsistiram praticamente intactas até o século XX. (...) Muito pouco havia realmente mudado em qualquer parte dos Inhamuns, desde que Francisco e sua família haviam se estabelecido na região, principalmente no que dizia respeito à maioria dos habitantes. Os membros daquela imensa classe de moradores viviam suas vidas como o fizeram seus antepassados, havendo pouca diferença entre os padrões da década de 1720 e os da década de 1920.
A publicação de Joaquim Pimente descreve com elegância a vida da região
na primeira década do século XX, quando saiu da sua Tauá em viagem de três dias
a cavalo para tomar o trem em Senador Pompeu, com destino a Fortaleza, onde foi
estudar e trabalhar.
Tauá, quando, em 1909, o deixei pela última vez, era apenas uma larga e tortuosa rua, com algumas dezenas de casas em derredor, quase na encosta da serra de Quinamuiú, á margem esquerda do Trici. (...) o seu velho templo... corria a versão que teria sido obra do braço escravo (...) Cococi, em uma planura de onde se avistava ao longe, como uma cinta azul, a serra da Ibiapaba, era uma próspera fazenda de gado onde poderia se escrever uma interessante página de sociologia sertaneja. Ali dominava um núcleo da família Feitosa, de costumes patriarcais. Os antigos escravos, depois de alforriados, continuaram com os filhos, a servir aos mesmos senhores, sob o mesmo regime do tronco. Nada de código penal ou autoridade policial. A justiça e a polícia eram privativas do chefe daquele feudo minúsculo...
~ 270 ~
Sobre a População
Segundo estimativas do IBGE para 2016 a população do município está em
57.914 pessoas, sendo que o saldo médio anual para a população, entre nascidos
vivos e óbitos é de, aproximadamente, 400 pessoas, a partir de 2010.
A Tabela 1 mostra a população de Tauá por faixa de idade e sexo.
Observamos um número maior de pessoas na faixa de 10 a 14 anos, menor na
faixa de 5 a 9 anos, e menor ainda nos menores de cinco anos. A redução da
natalidade acompanha o mesmo fenômeno do Ceará e de todo o Brasil. As
populações acima de 14 anos também apresentam números decrescentes, tanto pela
mortalidade das crianças nas décadas anteriores, como pela mortalidade de adultos
jovens, como pelas emigrações. Estas diminuíram muito a partir da década de 2000.
População de Tauá por Faixa de Idade e Sexo Censo de 2010
Imagem 16- Igreja Nossa Senhora do Rosário Atual
Imagem 15 - Igreja Nossa Senhora do Rosário Antiga
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Tabela 1
Idade (anos) Homens Mulheres Soma %
Menor que 1 383 352 735 1,32
1 a 4 1.697 1.574 3.271 5,87
5 a 9 2.460 2.476 4.896 8,79
10 a 14 2.970 2.863 5.833 10,47
15 a 19 2.674 2.696 5.370 9,64
20 a 24 2.329 2.431 4.760 8,54
25 a 29 2.016 2.097 4.113 7,38
30 a 34 1.881 2.073 3.954 7,10
35 a 39 1.697 1.763 3.460 6,21
40 a 44 1.668 1.808 3.476 6,24
45 a 49 1.574 1.580 3.154 5,66
50 a 54 1.272 1.446 2.718 4,88
55 a 59 1.020 1.242 2.262 4,06
60 a 64 1.039 1.129 2.168 3,89
65 a 69 868 884 1.752 3,14
70 a 74 689 776 1.465 2,63
75 a 79 437 519 956 1,72
80 a 84 369 356 725 1,30
85 a 89 283 197 410 0,74
90 a 94 68 96 164 0,29
95 a 99 27 35 62 0,11
100 ou mais 6 6 12 0,02
Total 27.357 28.359 55.716 100,00
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A Tabela 2 mostra a distribuição da população em áreas urbanas e rurais Os homens
são maioria na área rural, e as mulheres predominam nas urbanas e na soma do município.
Tabela 2
População de Tauá por Situação do Domicílio e Sexo Censo de 2010
Situação Homens Mulheres Soma
Urbana 15.251 17.008 32.259
Rural 12.106 11.351 23.457
Total 27.357 28.359 55.716
Fonte IBGE
Na Tabela 3 podemos observar a evolução da população do município a partir do
primeiro Censo Nacional de 1872. Entre este Censo e o de 1900, observamos uma grande
redução da população, provavelmente, em decorrência da grande seca de 1877 a 1879, de
1888 e 1889, e das secas que castigaram o nordeste brasileiro na década de 1890. Além da
grande mortalidade, a fome provocou uma corrente migratória para os Estados vizinhos do
Piauí e Maranhão, e para Fortaleza, muitos saindo daí para a Amazônia, que se desenvolvia
com o ciclo da borracha.
Muitos sertanejos regressaram com a volta das boas chuvas, e as grandes secas da
primeira década do século XX, e dos anos de 1915 e 1919, não impediram o repovoamento
dos Inhamuns. O Censo de 1960 mostra outra redução na população do município. Neste caso
foi a separação de dois dos seus distritos, que passaram a ser municípios isolados, Parambu e
Cococi. Este último foi incorporado posteriormente ao município de Parambu. Também no
Censo de 1960, o município de Arneiroz voltou a ter autonomia, após estar anexado a Tauá
por ocasião dos Censos de 1940 e 1950.
Tabela 3
Evolução da População do Município de Tauá. Censos de 1872 a 2010
1872 1900 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010
15.976 2.604 13.756 29.088 43.511 33.920 44.855 46.670 51.339 51.948 55.716
Fonte IBGE
Censo de 1872
População livre 14.703
População escrava 1.273
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Fonte IBGE
Na Tabela 4 podemos comparar a evolução das populações urbana e rural e vemos
que a partir do Censo de 1940, o IBGE diferencia as duas populações, caracterizando como
urbanos, os moradores das vilas e da cidade. Com uma população predominantemente rural a
urbanização acelera na década de 1960, e no ano 2000, os habitantes da cidade e das vilas
ultrapassam os que habitam a área rural.
Tabela 4
Evolução da População do Município de Tauá pela Situação do Domicílio Censos de 1940 a 2010
Situação 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 2010
Urbana 3.189 5.099 5.957 11.264 14.461 22.619 26.721 32.259
Rural 25.899 38.412 27.963 33.591 32.209 28.720 25.227 23.457
Fonte IBGE
A Tabela 3 acima nos mostrou os escravos identificados no Censo de 1872, antes da
Lei Áurea. Nas tabelas seguintes, apresentamos a população em termos de distribuição da
população por raça e cor. Na Tabela 5 vemos a distribuição da população por cor ou raça,
sendo que o número de pardos mostra a grande miscigenação havida nos três séculos após a
chegada dos colonizadores quando os negros foram escravizados e trazidos para o Brasil.
Tabela 5
População de Tauá por Cor ou Raça - Censo de 2010
Idade Indígena Amarela Preta Parda Branca
0 a 4 2 38 176 1.874 1.916
5 a 9 - 53 254 2.432 2.157
10 a 14 5 68 331 3.121 2.308
15 a 19 2 71 363 2.783 2.151
20 a 24 1 66 314 2.345 2.034
25 a 29 2 49 294 1.999 1.769
30 a 34 2 49 245 1.950. 1.708
35 a 39 3 51 257 1.658 1.491
40 a 44 2 47 247 1.668. 1.512
45 a 49 3 29 236 1.493 1.393
50 a 54 1 41 175 1.314 1.187
55 a 59 3 28 153 1.073 1.005
60 a 64 - 31 145 1.015 977
65 a 69 - 23 108 808 813
70 a 74 1 22 103 632 707
75 a 79 - 14 73 364 505
80 a 89 - 12 74 425 624
90 a 99 - 2 11 101 112
100 ou mais - - - 7 5
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Total 27 694 3.559 27.062 24.374
As Tabelas 6 e 7 apresentam as taxas de alfabetização por cor ou raça das
pessoas. A população negra está menos alfabetizada. Na tabela 7 quando
observamos o percentual de alfabetizados por faixa de idade e sexo, identificamos
um grave problema com um número muito grande de analfabetos, mesmo entre os
adolescentes, jovens e adultos jovens, situação mais grave ainda para os homens.
Certamente, esse analfabetismo é um dos fatores para a baixa renda de grande parte
da população, como mostra a Tabela 8.
Tabela 6 População de Tauá Alfabetizada por Cor ou Raça
(em percentuais) Censo de 2010
Cor ou Raça Alfabetizada
Indígena 77,8
Amarela 67,4
Preta 61,5
Parda 65,7
Branca 72,2
Tabela 7 População de Tauá Alfabetizada por Faixa de Idade (em
percentuais) Censo de 2010
Idade Homens Mulheres Soma
10 a 14 88,5 95,6 92,0
15 a 19 92,0 96,9 94,5
20 a 24 86,9 95,8 91,4
25 a 29 81,5 91,7 86,7
30 a 34 69,2 87,1 78,6
35 a 39 64,8 83,2 74,1
40 a 44 61,5 81,1 71,7
45 a 49 60,0 77,2 68,6
50 a 54 54,2 71,0 63,1
55 a 59 46,3 62,6 55,3
60 a 64 43,7 57,2 50,7
65 a 69 39,3 50,3 44,9
70 a 74 40,9 47,6 44,4
75 a 79 38,9 44,1 41,7
80 a 89 37,1 41,4 39,2
90 a 99 27,4 26,7 27,0
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100 ou mais 16,7 50,0 33,3
Total 69,2 80,5 75,0
Tabela 8
População de Tauá de 10 ou Mais Anos por Classe de Rendimento em Salário Mínimo, Cor e Raça
Censo 2010
Renda
Cor ou Raça
Indígena Amarela Preta Parda Branca Total
Até 1/4 4 83 444 3.081 2.007 5.619
>1/4 a 1/2
3 69 392 2.549 1.796 4.809
>1/2 a 1 6 159 924 5.741 5.858 12.688
>1 a 2 5 41 155 1.175 1.625 3.001
>2 a 3 - 10 26 231 396 663
>3 a 5 1 6 9 149 317 482
>5 a 10 - - 8 66 223 297
>10 a 15 - - 1 14 28 43
>15 a 20 - - - 9 27 36
>20 a 30 - - 2 6 16 24
>30 - - - 6 11 17
Sem rendimento
6 235 1.168 9.729 7.997 19.135
3.2.2. A Travessia do Portal.
Considero que percorri um longo caminho até aqui. E percebo que ir a
Tauá, chegar à Vera Cruz e passar pela porta do Centro de Saúde da Família de
Inhamuns foi um momento vivido por mim como um adentrar um Portal. Embora
Imagem 17- Entrada da cidade de Tauá
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eu já tivesse entrado inúmeras vezes em diversos CSF do SUS, aquele momento, e
aquela situação, tinham para mim, características especiais.
Uso a expressão passar por um Portal para marcar a diferença de atravessar
uma porta. O sentido aqui se aproxima da semântica dessa palavra quando, por
exemplo, é utilizada no âmbito da informática, em que se usa a expressão portal da
internet, definindo-o como um lugar que funciona como centro aglomerador e
distribuidor de informações. Eu não estava simplesmente entrando pela porta de
um CSF, como assim o fiz outrora, tantas vezes. Mas era como se eu estivesse
adentrado um portal em que, possivelmente, encontraria um aglomerado de
informações em circuitos. Informações codificadas, concentradas e utilizadas pelas
diversas pessoas, trabalhadores, profissionais e usuários dos serviços que ali
circulavam diariamente, fazendo daquele espaço um lugar; o lugar de efetivação dos
serviços da Estratégia de Saúde da Família do SUS.
Outro uso para a palavra Portal cujo sentido traz similitudes para mim é sua
semântica no âmbito do misticismo/esoterismo. Adentramos portais em rituais de
iniciação quando se busca um desconhecido que está do outro lado. Esta tradução
também é pertinente aqui para expressar o uso do termo, porque realmente eu não
sabia se o circuito de informações que procurava ver, teria eu, realmente permissão
para desvelar, ou teria êxito em enxergar.
Eu precisava decodificar informações que tinham a ver com a relação entre
as pessoas. Não eram informações que envolviam apenas o fazer delas, mas sim, o
ser de cada uma delas. Esse processo, por sua natureza, precisava de permissão.
Falo de uma permissão para além da assinatura do Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido - TCLE. Claro que esse momento não foi dispensado e a assinatura
do documento foi parte do procedimento da pesquisa. Eu sabia, contudo, que não
era a simples assinatura de cada um dos participantes que iria me permitir ver o que
buscava enxergar. Isso iria depender de se, e como, as pessoas iriam desvelar algo
para mim.
~ 277 ~
Foi com o sentimento do mistério que adentrei a porta que, para mim, se
fez um Portal. O sentimento de mistério também me era presente porque, para
compreender como o circuito do vínculo ali pulsava e de que forma contribuía para
a organização do sistema, eu precisava me esvaziar, estar aberta para o encontro
humano com as pessoas. Ali estava para, por alguns momentos, fazer parte do
sistema, se fosse aceita. Ser ou não inclusa no sistema era o grande risco que corria.
Mas os vínculos que já tinha com os agentes comunitários de Saúde de Tauá me
acenavam positivamente em relação ao risco.
Considero que circular e conversar com as pessoas do CSF não,
necessariamente, significaria aceitação no sentido de ser merecedora de
compartilhar dos sentidos que faz aquela organização ser e funcionar da forma
como se apresenta. Reconheço que ser incluída como alguém com esse nível de
aceitação e compartilhamento era condição que me daria permissão para
decodificar informações sobre o vínculo, pertinentes àquele sistema. Não há para
mim algo mais pertinente para traduzir o momento em que cheguei ao CSF de Vera
Cruz como esse de me sentir na travessia de um Portal.
~ 278 ~
Aprendemos com o fazer científico, que tudo ao nosso redor é objeto, e
assim, também, fazemos do outro, objeto. E é como objetos que olhamos para as
pessoas, e as observamos. Esse modo de estar no mundo já se naturalizou para nós
na vida cotidiana. É tão presente e óbvio dentro da Academia que, muitas vezes,
parece que não há outro modo de estar no mundo. Olhamos para tudo, das estrelas
ao nosso espelho, como objetos. Isso acaba reduzindo nossa compreensão do
mundo, reduzindo nossa compreensão do outro e, consequentemente, de nós
mesmos. Claro que observar o mundo, e ver os objetos que o compõem faz parte
da nossa maneira de interagir com o nosso entorno, e também de conhece-lo, mas
não se esgota aí as formas de conhecer para nós humanos.
Há uma revolução quando olhamos para o outro humano, como humano, e
vemos no outro, humanidade(s). Isso dificilmente acontece no olhar objetivo, e se
torna impossível se estamos somente neste nível de relacionar-se com o outro, e
com o mundo. Para enriquecer e ampliar nosso modo de perceber e estar no
Imagem 18 - Centro de Saúde da Família de Inhamus – Distrito de Vera Cruz
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mundo é preciso um olhar sensível, sensivelmente humano, sobretudo, para
perceber os laços que conformam vínculos.
Para minha pesquisa o olhar objetivo não seria muito útil, pois é justamente
o que tem de humano e de humanidade naquele lugar que gostaria de compreender
e decodificar. Era o modo como que ali se configuravam os circuitos do sistema,
sobretudo, o circuito do vínculo, que a mim interessava compreender. Mas não iria
nem poderia fazer isso sozinha. Então, a primeira tarefa foi propor a formação de
um Grupo Pesquisador.
3.2.3. O Vínculo pelo olhar do Centro de Saúde da Família de Inahmuns - o Grupo Pesquisador.
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito e o lance a outro; (...) e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos. (João Cabral de Melo Neto)
O passo seguinte foi convidar profissionais da equipe do CSF de Inhamuns
para, junto comigo, compor um Grupo Pesquisador. A respeito deste convite, tanto as
pessoas do CSF como os gestores e coordenadores da ESF comentaram que já
haviam passado alguns pesquisadores no município, que chegavam, faziam a
“coleta de dados” para suas pesquisas, e não mais voltavam para apresentar os
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resultados. Tendo em vista este cenário percebi que a proposta de formar um
grupo pesquisador foi bem acolhida por todos.
A visita seguinte que fiz ao CSF de Inhamuns teve como objetivo firmar o
compromisso do Grupo Pesquisador por meio da assinatura do TCLE21 e elaborar
um cronograma de encontros, que chamei de Oficinas, cujo material produzido
seria analisado pelo grupo. A seguir, a composição do Grupo pesquisador, com
total de 14 pessoas:
1 Pesquisadora UFC (Facilitadora); 1 Atendente/Recepcionista; 1 Preceptora de Território do CSF de Inhamuns; 6 Agentes Comunitários de Saúde; 1 Médico; 1 Enfermeira; 1 Dentista; 1 Fisioterapeuta; 1 Técnica de Enfermagem.
Durante este encontro também perguntei ao grupo: por que você aceitou
participar desta pesquisa? A intenção da pergunta era saber até que ponto as
pessoas tinham interesse em saber sobre o tema. Os profissionais expressaram que
reconhecem o vínculo como tema importante no trabalho do PSF e ressaltaram sua
relevâcia por ser um tema sobre o qual pouco se fala. Percebi que a motivação para
aceitar o convite, além da relevância do tema, foi também a possibilidade de
contribuir com uma pesquisa como participante. Havia uma curiosidade sobre a
metodologia utilizada.
(...) este tema é um dos princípios do SUS no dia-a-dia de trabalho da gente dentro do PSF é a relação de nós com os usuários do serviço. (Grupo Pesquisador - GP).
(...) e vínculo é de importância subjetiva que deveria ser mais, eu diria, escancarado, a gente fala pouco disso, como ele tanto pode aproximar como ele pode também pode distanciar, depende da forma como se trabalha. Então, isso daí foi o que me despertou. E também (...) sou altamente curiosa. (GP).
21 Em anexo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido utilizado nesta pesquisa.
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Pra mim a metodologia foi o que mais me motivou. (GP).
(...) O que me despertou também foi exatamente a curiosidade pela metodologia... então, saber o que é. (GP).
As pessoas sempre esperam participar de alguma pesquisa de forma passiva,
e até brincam dizendo que são “cobaias”. Convidar o grupo para participar como
pesquisadores era algo bem diferente, e foi muito bem aceito pelas pessoas. Pelo
relatos, percebi a ressonância do tema para o grupo, e apesar de ter sido escolhido
por mim, era algo que as pessoas também reconheciam como importante para o
trabalho na ESF.
Acredito que o manejo de qualquer técnica em pesquisa qualitativa deve
buscar coerência com o solo epistemológico no qual se planta e alimenta a
produção do conhecimento. Na visão de Morin, a teoria é engrama, e o método, para ser
estabelecido precisa de estratégia, iniciativa, invenção e arte. (MORIN, 2001, p. 335). Foi
nesta perspectiva que, ao atravessar o Portal, busquei uma inspiração na
Sociopoética que reconhece a imaginação e a arte como aspectos relevantes na
produção do conhecimento.
Ao revisitar as leituras de Sociopoética encontrei Lia Carneiro Silveira,
pesquisadora sociopoética, que escreveu um artigo intitulado Abrindo Coisas e
Rachando Palavras: a utilização dos Dispositivos na Sociopoética. Ela defende que a escolha
e utilização dos dispositivos na sociopoética passa, antes de tudo, por sua própria
conceituação, e consequentemente, pela concepção de pesquisa que se propõe. É
preciso, diz ela, se ater a questão do que, precisamente, estamos chamando de
pesquisa e aceitar que certamente, não estamos nos referindo ao modo convencional de
investigação que pretende apreender uma realidade preexistente e generalizável. (...) Entendemos o
ato de pesquisar como uma expressão criadora, como uma ação produtora do real. (SILVEIRA,
2005, p. 152).
~ 282 ~
Nesta perspectiva Silveira explica que antes de saber o que é um
dispositivo, seria mais importante perguntar: o que pode um dispositivo? Segundo ela
podemos conhecer um dispositivo muito mais por seus efeitos do que por sua
definição e o uso dos dispositivos em sociopoética tem relação com a própria
estruturação deste tipo de pesquisa. O que a autora apresentou de muito relevante
para mim foi o próprio Grupo Pesquisador como um dispositivo. Ela explica que a
abordagem grupal é apontada e utilizada por diversas correntes de pesquisa,
contudo, há para sociopoética, uma mudança significativa no conceito de grupo.
Silveira ressalta diversas correntes de pensamento que, apesar de
divergirem, guardam um ponto em comum. As concepções de Moreno, Kurt
Lewin, Bion e Pichon Rivière, para citar os grandes expoentes da abordagem
grupal, convergem na ideia de compreender o grupo como estrutura intermediária
entre o indivíduo e a sociedade, esclarece a autora. Ela segue explicando que não é
o caso para sociopoética, a cristalização do grupo como unidade abstrata que paira
acima dos indivíduos. Ao invés disso o grupo deixa de ser o modo como os indivíduos se
organizam para ser um dispositivo, catalisador existencial que poderá produzir focos mutantes de
criação. (SILVEIRA, 2005, p. 155). Neste entendimento há algumas rupturas,
ressalta ela. A primeira é a que rompe com a homogeneidade grupal uma vez que o
valor está nas diferenças, na heterogeneidade e na multiplicação do diverso. O
segundo rompimento é com a noção de equilíbrio, porque não se delimita papéis
fixos. O interesse foca o como cada um define seu território e a forma como entra
em contato com o território dos demais, para assim se formar uma configuração
grupal. E terceiro, há também uma ruptura com a noção de totalidade, pois o valor
se direciona para uma abertura do grupo, sua permeabilidade a tudo o mais que
possa perpassa-lo.
É em função desses rompimentos que a formação do grupo em
sociopoética pode funcionar como um dispositivo porque sua própria composição
já mobiliza todos em função do seu emaranhado. Esta ideia de grupo como
dispositivo me soou muito cara e apropriada porque nada mais diverso do que a
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equipe de saúde da família, que abriga e contém diversidades, seja de classe social,
nível de escolaridade, lugar de origem, ruralidade, urbanidade, etc.
Sem dúvida a composição do grupo já me trazia em si várias possiblidades.
Contudo, a interação entre as pessoas em torno do tema já era algo relevante,
embora também o uso de algum dispositivo fosse importante para produção de
conhecimento pelo grupo pesquisador. A autora ressalta tanto a importância da
escolha da técnica, como também a sua aplicação. E um ponto que ela chama
atenção é que um bom dispositivo é aquele capaz de provocar estranhamento no
grupo, aquele que tem potencial para suscitar outras respostas.
Silveira ainda comenta algo muito interessante quando afirma que a
sociopoética tem o objetivo ético-político de provocar os acontecimentos, promover devires.
Contudo a utilização dos dispositivos nesta proposta não visa promover a transformação
conscientizadora ou direcionada (seja lá em que sentido), pois o que cada pessoa fará depois com
eles nós nunca poderemos prever. (SILVEIRA, 2005, p. 161). Considero isso pertinente
para esta pesquisa uma vez que o tema envolve emoções e sentimentos, e
dificilmente, comporta regras ou condutas certa ou errada disso ou daquilo, bem
como de julgamentos, aos quais é comum se ater no espaço do serviço de saúde,
em que as normatizações e protocolos são a marca dos procedimentos. Em termos
ético-políticos a produção de um conhecimento sobre esta temática longe está de
estabelecer padronizações de comportamentos.
Percebi na Sociopoética uma coerência epistemológica que fazia de sua
proposta metodológica um caminho promissor para me servir de bússola nesta
pesquisa. Após as leituras inspiradoras a questão era: por onde começar? Eis a
pergunta que me latejava e que devia ser devidamente respondida até o próximo
encontro.
Foram muitas vivências ao longo de todo o trabalho com o Grupo
Pesquisador. Vivi com o grupo um percurso cujo caminho ia sendo traçado a cada
decisão, a cada pergunta que precisava responder para seguir. E eram muitas: que
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dispositivo poderia ser interessante e potente para esta pesquisa? De que forma
conversar sobre vínculos de maneira a sair do lugar comum? Como abordar o tema
evocando sentimentos de forma sensível, respeitosa e ética? Quais os limites éticos
que estariam implicados neste processo? Eram algumas perguntas que latejavam
meu espírito, mas com elas, eu teria que seguir.
Ao final, fiz um total de duas Oficinas Temáticas seguidas, cada uma, da
análise da produção realizada pelo grupo pesquisador. As oficinas foram gravadas e
transcritas por mim. A final de cada uma delas eu fazia uma primeira análise do
material produzido, e retornava ao grupo para uma nova análise. A partir desta
primeira categorização e sistematização do trabalho, o grupo fazia uma nova análise
em que concordava, acrescentava, discordava e/ou ampliava a primeira agregando
outros referenciais e produzindo um rico trabalho sobre o tema.
É importante agora antes de seguir, esclarecer alguns pontos
epistemológicos sobre esse trabalho de análise para esta pesquisa. Em seguida,
retomo o fio da produção do grupo pesquisador que resultou das Oficinas.
O Grupo Pesquisador (GP) assume nesta pesquisa a função de produzir
um saber sobre o tema. Esta é uma opção metodológica que julgo coerente com a
epistemologia que fundamenta esta investigação. Uma epistemologia que reconhece
que nenhum saber pode esgotar a realidade. A riqueza, então, consiste em se
aproximar dos fenômenos por uma multirreferência, como propõe a sociopoética.
O que pode causar estranheza numa multirreferencialidade é que ela não
pode, e nem mesmo se propõe a fornecer conclusões sobre os fenômenos da
realidade. Tal desconforto resulta da tentativa de equivaler ciências da natureza às
ciências humanas, em termos de desvelamento do real. Ninguém ousaria discordar
que, a uma explicação marxista, não se pode opor uma freudiana, no sentido de
refutação. Disso se conclui superficialmente que as ciências humanas equivaleriam
ou assemelhar-se-iam a certa forma de religião. A contra-argumentação é que a
riqueza está na complementaridade de tais referenciais para compreender os
~ 285 ~
fenômenos, e sua cientificidade tem a medida que tais leituras nos permitem
transformar a realidade.
A pesquisa Sociopoética amplia a multirreferencialidade com o Grupo
Pesquisador que neste processo de gerar conhecimento é emergente e insurgente,
vivencia um processo autopoiético com regularidades, bifurcações e mudanças de
fases. Gauthier (2005) esclarece que o que acontece no grupo pesquisador é que os
referenciais de cada um, sejam teóricos, políticos, éticos, sistematizados ou não,
intercruzam-se nas análises e reflexões do grupo sobre o que ele mesmo produziu.
Cada um contribui a partir de um lugar discursivo, onde o intercruzamento de
todos, compõe uma sinfonia que traduz o pensamento do grupo pesquisador. Eram
justamente esses referenciais das pessoas que atuam no CSF que fazem mover os
circuitos e estabelecem padrões de funcionamento. Evidencia-los e compreendê-los
era algo importante nessa perspectiva.
Além da multirreferencialidade há uma interferencialidade que se firma por
um anarquismo epistêmico, conforme explica Gauthier. Não há exclusão, não há
fala mestre. Há acolhimento do outro, porque de nada serviria uma
multirreferencialidade para cortar ou excluir o outro. Segundo Gauthier toda e
qualquer referencialidade, mono, multi ou pluri, é imaginação de acadêmicos, é orgulho panóptico
do poder, demonstração vã de um saber-falar que ninguém contesta. (GAUTHIER, 2005, p.
49). Dessa forma, no grupo pesquisador, além das referências de vida, fluem e
influem referenciais míticos, religiosos, políticos, acadêmicos etc. Todos eles,
saberes, seja sua fonte ética, estética, religiosa, acadêmica, mística. Nenhuma fonte é
desprezada ou considerada inferior. E no intercruzamento de todas elas acontece
uma desterritorialização e, felizmente, perdem-se de suas origens, tornam-se fluidas
e entram em novas composições imprevisíveis, que podem trazer o novo, isto é,
produzir/desvelar novas formas de perceber o real.
À multirreferencialidade e enterreferencialidade soma-se a
interculturalidade, característica essa, decorrente da implicação do pesquisador com
o seu estudo. A cultura aqui entendida não como algo já dado previamente no real
~ 286 ~
empírico do qual se poderia abordar ou falar, mas como um lugar de onde alguém
fala, lugar a partir do qual se constrói, delimita e possibilita esta fala. Nesta
perspectiva é preciso reconhecer a impossibilidade de falar da cultura dos outros no
sentido de que, ao fazê-lo, não se pode fugir de, primeiro, referenciar a si próprio.
É importante reconhecer que em ciências humanas é impossível escapar da
multiplicidade de referências. Toda prática e todo conhecimento é ao mesmo
tempo multirreferenciado e interreferencializado, justamente por sua característica
intercultural. Como ressaltou Bosi (2012) investigar os fenômenos em sua interface
subjetiva é um desafio que nos convida a uma necessária inter(trans)culturalidade que
inclua outras arenas culturais indo além do estritamente cientifico para incluir
saberes nativos no sentido de uma religação de saberes. Tal processo é de
importância fundamental para a Saúde Coletiva como já explicitou Bosi (2012). A
visão da ciência não pode esgotar a realidade, tampouco, substituir outras visões, e
há uma fecundidade no encontro de arte e ciência no sentido da produção de novas
formas de compreender e tecer a realidade. Esta foi a aposta que fiz.
Passo agora a relatar o processo de produção de conhecimento que
resultou do trabalho do grupo pesquisador ao longo do percurso que vivemos
juntos no Centro de Saúde da Família de Inhamuns. Trata-se de um percurso
vivido cheio de decisões e bifurcações que, ao final, já não éramos os mesmos.
3.2.4. Vínculos que tecem Identidade.
“...E aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas
das lições diárias de outras tantas pessoas” (Caminhos do Coração, Gozaguinha)
No ano anterior (2014) havia participado como acompanhante voluntária
de um trabalho com um grupo de professores em uma Escola em que a facilitadora
havia proposto uma Vivência Pedagógica em que utilizava a Visualização Criativa
~ 287 ~
como recurso. Lembrei-me dessa Vivência porque sua proposta consistia em um
convite ao grupo em evocar os professores que foram significativos ao longo de
suas vidas, e com isso, tocava sensivelmente, o tema do vínculo. Resolvi adaptar o
recurso e utilizar nesta pesquisa.
Esta decisão se justificou para mim porque, primeiro, já tinha vivenciado e
senti sua potência para tocar o tema dos vínculos, não por meio da fala, e sim, por
meio da imaginação e da memória. Eu sabia dos limites da fala para esse caso em
específico. Segundo, porque sua proposta convinha com meu objetivo de trabalhar
inicialmente com o grupo pesquisador no sentido de trazer à tona um
conhecimento vivencial sobre os vínculos que tecem nossa identidade,
possibilitando um reconhecimento dos significados e implicações deles para o que
somos como pessoas, para nossas escolhas e para as nossas vidas. Evocar os
vínculos trazendo o conhecimento da vivência era um ponto de partida promissor
para gerar um conhecimento a partir do qual buscaríamos compreender o circuito
do vínculo no serviço da ESF.
Dei à primeira Oficina o título de Vínculos que tecem a Identidade.
(Programação detalhada no Apêndice). Esta oficina aconteceu nos dois primeiros
encontros do Grupo Pesquisador (GP), seguindo a proposta abaixo:
Oficina 1 - Vínculos que tecem a Identidade
Encontro 1
Momento 1 – Linha do Tempo
Momento 2 – Visualização Criativa “Vínculos que tecem a Identidade”
Encontro 2
Momento 1 – Boas Vindas e Memória do encontro anterior
Momento 2 – Análise da Produção do Grupo
Cada um desses momentos foi rico em termos de produção de
conhecimento para o grupo e sobre o grupo perpassado pelo tema. Sigo então
~ 288 ~
apresentando o resultado da análise dessa primeira Oficina feita pelo Grupo
Pesquisador.
Momento 1 – A Linha do Tempo
Como todos, de certa forma, já se conheciam, e apenas eu não conhecia
todos, sugeri que poderíamos aprofundar o que sabemos uns sobre os outros
relatando o trajeto profissional que levou cada um a trabalhar na ESF do SUS. A
proposta foi que cada um, por meio do desenho de uma linha do tempo,
demarcasse acontecimentos em sua vida profissional, ressaltando eventos
importantes que julgam ter contribuído para se encontrarem hoje, todos juntos, no
CSF de Inhamuns. A intenção dessa proposta era conhecer um pouco da trajetória
profissional de cada um em termos de suas escolhas e motivações para atuar no
nível da atenção primária em saúde.
Para o grupo compartilhar da linha do tempo foi mais do que uma simples
(re)apresentação porque proporcionou conhecer o caminho singular de cada um até
aquele tempo vivido, que a todos juntou. Proporcionou também conhecer detalhes
da vida uns dos outros que não sabiam, contribuindo para o fortalecimento dos
laços entre pessoas, porque oportunizou um compartilhar dos percalços, lutas,
prazeres e dificuldades que cada um enfrentou para construir e fazer suas escolhas
profissionais.
Para mim, estar atento para trajetória profissional de cada um me trouxe
algumas reflexões. Cada trajetória compartilhada evocou singularidades e
evidenciou as diferentes oportunidades nas histórias de vida compartilhadas que se
relacionavam ao lugar em que nasceram, e ao contexto histórico, com suas
variações nas condições sociais, culturais e econômicas. Há diferenças significativas
~ 289 ~
que marcam as histórias de vida das pessoas que tiveram acesso ao ensino superior,
e as que não.
Todos os profissionais do nível técnico compartilharam trajetórias que
retratam a vida no município de Tauá, origem de todos. Nos relatos desses
profissionais das pessoas haviam lembranças de um dia-a-dia de deslocamentos
diários em paus de arara em suas necessárias viagens com objetivo de estudar,
marcado por um cotidiano em que a seca era mais presente e premente.
Descreveram cenas diárias em que precisavam carregar água dos açudes para
abastecer os potes das famílias no lombo dos jumentos. Em suas vidas, marcas de
migrações para São Paulo com falas emocionadas de saudade da família e do lugar,
até o feliz regresso, quando a vida melhorava e oportunidades apareciam. Cearenses
com trajetórias de vida já um pouco diferentes das gerações anteriores, quando em
meados do século passado, migravam para São Paulo, e não mais retornavam.
Marcas de vida cearense tão bem traduzida nos versos de Patativa em sua A Triste
Partida: “Chegaro em São Paulo - sem cobre, quebrado. O pobre, acanhado, Percura um patrão.
Só vê cara estranha, da mais feia gente, Tudo é diferente do caro torrão. Trabaia dois ano, três
ano e mais ano. E sempre no prano de um dia inda vim. Mas nunca ele pode, só veve devendo, e
assim vai sofrendo tormento sem fim.” (PATATIVA, A Triste Partida).
A história desses profissionais acompanham as transformações sociais do
Brasil, sobretudo, os acontecimentos que contribuíram para construção do SUS,
como o PACS. São trajetórias de vida marcadas pelas condições sociais e históricas
do contexto nordestino. Uma ACS relata estar no programa desde a seleção que
houve para os bolsões da seca, quando em 1989, o Ceará dá início ao PACS. A
dedicação ao trabalho comunitário esteve presente nas falas que relatam
participação em pastorais, movimentos religiosos, e também, a ação de
Organizações Não Governamentais que atuavam no interior cearense. No caso do
distrito de Vera Cruz, onde fica hoje o CSF de Inhamuns, houve um trabalho
~ 290 ~
marcante da ONG Terra Dos Homens22 responsável pela formação de lideranças
locais com ações voltadas para organização comunitária, educação e saúde,
sobretudo, no que diz respeito à atenção à crianças e adolescentes. Eis alguns
fragmentos dessas trajetórias de vida.
Comecei ser agente de saúde em 87 antes de começar o Programa, na experiência veio uma seca, então, eu me cadastrei né, neste bolsão e depois fui escolhida pra ser agente de saúde (...) (GT).
(...) em 2002 em vim embora [de São Paulo] (...) e surgiu a oportunidade de trabalhar na área da saúde. Não foi coisa assim tão programada por mim, mas eu acredito que sim, que era uma preparação de Deus pra minha vida, (...), mas eu posso dizer que foi o melhor que aconteceu na minha vida, foi trabalhar como agente comunitário de saúde porque se eu aprendi alguma coisa, e se hoje eu sou o que eu sou, eu devo a esse trabalho, as famílias as quais eu convivo. (GP).
(...) eu comecei a manter um contato maior com as famílias no ano de 83 quando eu comecei a trabalhar para ajudar a minha família [emoção]. Eu colocava água nas residências, nos jumentos, porque minha família não tinha uma condição financeira legal (...) Em 86 eu fui convidada a participar do Programa Terra dos Homens (...) eu fiz uma capacitação, (...) a gente fazia muita capacitação. E começou a despertar a curiosidade pela saúde. De vez em quando eu entrava no posto de saúde e ficava conversando com a enfermeira (...), que na época numa era técnica de enfermagem né, era visitadora sanitária que chamava (...). (GT).
Eu comecei a estudar a partir dos 7 anos de idade, aí quando eu terminei o segundo grau tive um convite pra trabalhar no posto saúde da Lagoa do Eufrasino, aí fiz um curso pra auxiliar de enfermagem em 97. Terminei. Fiz o concurso público em 98. Passei. Aí continuei trabalhando (...) e estudando em Tauá. Aí pegava o pau de arara, nesta época era assim, (...) pegava o carro para Lagoa do Eufrasino, descia, e ia pra Tauá pra estudar (...) (GT)
(...) um ponto marcante que eu tenho é a convivência com a minha mãe, desde que eu nasci e que eu tenho conhecimento ela é animadora da comunidade e coordenadora também da igreja e eu sempre aprendi com ela essa convivência com as pessoas, ela sempre repassou isso pra mim. (GT)
22 “A Associação Brasileira Terra dos Homens (Terra dos Homens) é uma organização sem fins lucrativos, fundada por Claudia Cabral, psicóloga atuante na área social desde 1977 e sensibilizada com o número de crianças afastadas de suas famílias, vivendo em abrigos. O nascimento da organização é um desdobramento do trabalho iniciado por Claudia em 1985, quando atuava como coordenadora de um programa de adoção inter-racial tardia da Fondation Terre des hommes, Lausanne, Suíça. A então responsável pelo
programa, criou a Terra dos Homens brasileira, e adquirindo autonomia jurídica em 1996. Tal autonomia possibilitou o estabelecimento de novas parcerias e a ampliação de seu campo de atuação no Brasil. No ano de 2003, a Terra dos Homens é certificada como entidade de Utilidade Pública Federal. Em 2006, é certificada como entidade de Utilidade Pública Estadual e Beneficente de Assistência Soc ial.” Disponível em: http://www.terradoshomens.org.br/pt-BR/conteudo/15/63--Nossa-Historia.htm. Acesso em 24.01.2015.
~ 291 ~
(...) Foi uma coisa de deus, mas era algo que estava no meu sonho há muito tempo e eu não sabia que era um amor tão grande por participar do PSF, (...). E eu ingressei em 2002, e eu estou até hoje aqui. (...), mas eu me identifiquei (...) com a atenção básica eu permaneço até hoje e pretendo ficar! (GP).
Como canta Patativa em seus versos do livro “Canta lá que eu canto cá” as
trajetórias são bem diferentes entre pessoas que tiveram acesso ao nível superior e
as que não. “Repare que a minha vida é diferente da sua. A sua rima é polida. Nasceu no
salão da rua. Já eu sou bem diferente, meu verso é como a semente que nasce em riba do chão”
(PATATIVA). O que direcionou essas pessoas para ser trabalhador da saúde não
foi uma escolha, dentre outras, fora sim, as oportunidades que foram agarrando em
suas vidas: uma seleção para agente de saúde, um curso técnico de enfermagem,
uma ação comunitária voltada para formação de lideranças, etc. Foram
circunstâncias geradas pela história social, política e econômica do seu lugar que as
fizeram buscar oportunidades para ter uma vida melhor, e um reconhecimento
social. Ao agarrar as oportunidades que o campo da saúde começava a oferecer
foram descobrindo uma vocação, isto é, o que as qualificara, antes e hoje, para ser
um profissional da ESF fora o seu envolvimento com a vida comunitária, aliado a
uma vontade de não apenas sobreviver, mas de conhecer e fazer o seu melhor, e
não necessariamente, uma escolha pela área da saúde em si.
Há nos relatos satisfação e orgulho em atuar na saúde. Acredito que esse
orgulho pelo que fazem hoje resulta do valor social da função de trabalhador da
saúde, aliado ao prestígio de passar em um processo seletivo, que oferecia
oportunidade de trabalho digno em seu lugar de nascimento. Em suas trajetórias de
vida alcançaram, relativamente, o melhor lugar que a vida lhes ofereceu em termos
profissionais, e usufruem hoje do valor que esse trabalho passou a ter para si e para
a comunidade em que vivem.
Os profissionais de nível superior, no caso, médico, enfermeira,
fisioterapeuta e dentista, apresentam histórias de vida marcadas por outro contexto
~ 292 ~
social, cultural e econômico que oportunizaram para suas trajetórias profissionais
outras possibilidades de escolhas.
Atuar na saúde se tornou uma vontade mais próxima, por ser uma área atrativa e também pela minha proximidade com as disciplinas mais específicas, no caso, a biologia e química. Optar por odontologia foi um desejo no vestibular, por ser uma categoria que trabalha com o bem estar das pessoas, e também, por ter um bom retorno financeiro. (GT).
(...) eu já sabia, eu quero ser da saúde, mas eu não sabia realmente o que eu queria ser da saúde. Daí eu via um primo meu que era fisioterapeuta e fazia um trabalho belíssimo, então assim... eu já fui pra essa érea da fisioterapia. Dentro da faculdade, não fui direto pra atenção básica, fui pra UTI, (...) só que lá a gente convive muito com a morte. E isso eu não me sentia bem, então... eu acabei desistindo da UTI (...) e, primeiramente, fui chamado pra trabalhar, ser coordenador, dentro da área de educação do campo e para o campo (...) e, após isso, me despertou o interesse, e eu entrei na unidade de saúde. (GT).
A minha escolha por atenção básica, (...) veio a partir de 2003, na faculdade de medicina, cursei em Fortaleza uma disciplina na ABS “Saúde, Ambiente e Trabalho”, e foi a primeira vez como pretenso profissional de saúde, eu tive oportunidade de conviver com comunidades... no caso dessa disciplina, era comunidade de trabalhadores. Foi colocado pra gente trabalhar com estivadores, foi uma atividade muito interessante não só porque eu tive oportunidade de conversar com o coletivo de trabalhadores, mas porque despertou também o interesse pela área da saúde dos trabalhadores. Em 2005 ainda na faculdade teve um projeto que trabalhava com comunidades nas dunas, era uma comunidade pobre, marginalidade, carente, índices de violência, craque, mas a presença da faculdade foi um diferencial para aquelas pessoas que nunca tinha recebido a presença de um grupo que se dispusesse a atender (...). Eu fiz um trabalho lá e desde então vi a importância que é trabalhar com pessoas que mais precisam de atenção saúde, grupos vulneráveis dá pra se fazer alguma diferença lá, um trabalho interessante.
Em 2006 eu ingresso na faculdade, em Ciências Biológicas, aos 16 anos, foi muita emoção de fazer, e eu conheci uma amiga que tinha muita vontade de fazer Enfermagem, e começou a planejar de tentar de fazer vestibular pra enfermagem. E em 2008, isso aconteceu, só que eu passei e ela não! E era um sonho mais dela, mas eu quis ficar, eu tinha 18 anos na época, poder vivenciar outras coisas, poder morar em outra cidade, estava deslumbrada em relação a isso. E tinha a perspectiva de me identificar, por que não! (...) Em 2010 começa os estágios, e o primeiro estágio foi no PSF, passamos um mês lá, e aí eu disse: é isso que eu quero (...). (GT).
~ 293 ~
Uma questão sempre comentada na literatura sobre o vínculo na atenção
básica está associada à rotatividade dos profissionais de nível superior, geralmente,
compreendida como algo que dificulta o vínculo. Esta conclusão, a meu ver,
emerge de uma compreensão equivocada que confunde o conhecimento da
comunidade, do seu modo de vida com o vínculo, colocando aí uma relação
condicional.
Relembrando as dimensões do vínculo humano
que se desdobra em vinculação consigo, com o Outro
(alteridade) e com o Todo (sociedade/natureza), a
interrelação entre conhecimento da comunidade e
o vínculo não dificulta, ou mesmo, facilita o
circuito do vínculo entre os profissionais e a
comunidade. Claro que essas dimensões
estão imbricadas, e uma certamente,
alimenta a outra, mas não há aí uma
implicação condicional.
Em função disso podemos compreender que o vínculo entre os
profissionais e a comunidade revela e/ou desdobra-se em três níveis. O vínculo
com o outro/alteridade não depende, necessariamente, do conhecimento que se
tem sobre a história de vida do outro. Isto apenas abre possibilidades para isso,
quando, por exemplo, se oportuniza o compartilhar de histórias. Todos já tivemos
experiências de conhecer alguém e estabelecer uma relação de imediato, se sentido
a vontade e com confiança. Isso é bem mais comum no meio rural, uma vez que o
espaço urbano se caracteriza por relações marcadas pela impessoalidade,
distanciamento e individualismo. Da mesma forma, o conhecimento da
comunidade e seu modo de vida, revela e/ou desdobra-se da vinculação com o
todo (natureza/sociedade), no caso, o lugar/comunidade com seu perfil socio-
cultural. E o nível de vinculação consigo se desdobra a partir, e em função, dos
demais níveis, e pode ser expresso, também, por meio da trajetória singular de vida
~ 294 ~
dos sujeitos, que traçam suas escolhas e tomam suas decisões em função dos
sentidos e significados do contexto em que vivem.
A capacidade de vinculação humana em sua estreita ligação com a
afetividade não, necessariamente, carece da cognição para ser estabelecida. Entre as
pessoas ocorre uma vinculação que, popularmente, são traduzidas com assertivas
do tipo: “eu nem a conheço, mas já fui com a cara de fulano” “o meu santo não
cruzou com o de fulano”, “apesar de eu ter conhecido fulano hoje, parece que já o
conheço a muito tempo”. Na vinculação humana está presente um núcleo afetivo
de base que, em termos filogenéticos, é mais arcaico que a cognição e precede a
racionalidade, embora, também, tenha relação com ela.
A partir dessa noção mais complexa do vínculo humano podemos
compreender que se uma pessoa possui uma história de vida, cuja trajetória
profissional traça um percurso imbricado com a história da comunidade, o
conhecimento que esta pessoa tem do lugar, e o vínculo que desfruta com as
pessoas, resulta em um conhecimento tácito sobre a comunidade. Se, por outro
lado, a trajetória profissional da pessoa a levou para um determinado lugar como
seu espaço de atuação profissional, é a sua capacidade de vinculação, desdobrada
em três níveis, que a qualifica para aprofundar ou não esse conhecimento do lugar e
do modo de vida de seus moradores. A capacidade de vinculação humana aqui
pode ou não aprofundar algum conhecimento sobre o outro, o lugar, e sobre si
mesmo, inserido neste contexto. Os três níveis de vinculação que se tecem
conjuntamente, se desdobram a partir dos diversos contextos em que vivemos. Por
conseguinte, o conhecimento que logramos sobre um lugar social, o modo de vida
das pessoas, cujas trajetórias de vida não conhecemos, depende da vinculação que
me é possível estabelecer, mas não há aí uma relação de condicionalidade. E isso
traz ou carrega um viés de sobrevivência, que possibilita ou não, minha
inserção/permanência no lugar.
~ 295 ~
Como sabemos, para o trabalho na atenção primária é necessário, e até
indispensável, um conhecimento do lugar/território, que desvele os determinantes
dos processos de saúde/doença, e assim, se garanta um trabalho de promoção da
saúde, uma atuação/intervenção que não se restrinja somente ao foco na doença.
Ocorre que esse conhecimento, para ser gerador de ações de promoção de saúde,
deve ir além da técnica de traçar um perfil epidemiológico do território, ou
desenhar um mapa com a adscrição da clientela.
Historicamente, ao agente comunitário de saúde, sempre fora exigido, em
seu perfil profissional, um conhecimento do lugar em que irá atuar, e o critério
delineado para isso era ser morador da comunidade. Ora, quando se trata de
profissionais graduados, tal exigência, além de esdrúxula, é impossível, em função
mesmo da disponibilidade de pessoal. E a pergunta é: por que tal exigência não
parece esdrúxula para o ACS?
O conhecimento aí implicado como exigência do perfil do ACS era,
justamente, o que resulta da vinculação da pessoa com a comunidade e com seus
moradores. O que é preciso ter clareza aqui é sobre a importância desse
conhecimento, que o ACS, historicamente, trouxe como relevante para o serviço da
atenção primária, como prerrogativa para seu desempenho profissional.
Contudo, trata-se de um conhecimento que resulta de uma vinculação que
pode e deve ser aprofundada por qualquer pessoa que estabeleça uma vinculação
com as pessoas e lugar em que vivem. O fato de, historicamente, ser o ACS o
profissional com tal conhecimento deve ser fonte de aprendizagem de todos, e
também, aprendizagem sobre os serviços de APS no Brasil. Isso é importante
atualmente até mesmo para o próprio ACS porque os novos processos de seleção,
sobretudo, no meio urbano, trazem outro perfil de pessoas que, mesmo sendo
moradoras do lugar em vão atuar, não necessariamente, tem este conhecimento
vivencial do lugar em que moram em função das diferenças entre os modos de
vinculação dos espaços urbanos que possuem outras características.
~ 296 ~
Se o que definira historicamente o ACS é o exercício da função elo entre a
comunidade e os profissionais, considero necessário refletir sobre isso, reiterando
tal prerrogativa como requisito importante para atuação de todos os profissionais,
inclusive do próprio ACS. A construção histórica do ACS nos revela algo sutil
sobre o trabalho na atenção primária e sua construção histórica imbricada ao SUS e
não apenas diz respeito ao profissional em si. É preciso ter claro que havia uma
necessidade de um profissional exercer a função elo entre os demais profissionais e
a comunidade porque havia e há um fosso cultural que separa os grupos de
indivíduos em função de suas trajetórias de vida e as oportunidades que tiveram ao
longo de suas vidas. Mas creio, contudo, que isso é algo que pode e deve ser
(re)aprendido, sobretudo, em função do novo contexto socio-cultural globalizado
que vivemos. Os processos de territorialização não devem restringir-se a
mapeamentos, georreferenciamento e estratificações de risco, ou mesmo, fazer do
conhecimento vivencial dos ACS, única fonte de saber sobre o modo de vida do
lugar, ou mesmo, considerar essa fonte de saber como algo não oficial, que resulta
em desqualificação do saber e do fazer do outro.
Enfim, pelas trajetórias de vida de todos os profissionais há um traço
interessante, o envolvimento com a vida comunitária. Claro que isso é mais
premente nos profissionais de nível técnico, sobretudo, os ACS. No entanto, esse
traço também se faz presente nas escolhas dos profissionais graduados, e deve ser
parte do aprendizado desses profissionais. Participar de uma disciplina que
proporcione os alunos de medicina conhecer um pouco mais do modo de viver de
outras coletividades é algo interessante que influencia escolhas de vida. O
envolvimento com a história de uma coletividade é algo que pode estar presente em
qualquer ser humano que se dedica a um fazer que implica cuidado com o outro,
mesmo que esta história não seja a sua história de origem.
A capacidade de vinculação humana nos possibilita esta implicação desde
que tenha oportunidades para ampliar seus vínculos para além do âmbito familiar e
ampliar sua capacidade de viver na coletividade, sustentando vínculos de maneira
~ 297 ~
que se desdobrem em mais conhecimento de si, do outro e de sua própria
humanidade. Como vimos é na e pela sociedade que nos (des)humanizamos. E
nossa humanidade é tanto mais refinada quanto for nossa capacidade de
vinculação, que adquire substância na, e pela, afetividade, que pode se desdobrar,
tanto para fortalecer laços ancorados no amor, respeito, amizade, solidariedade,
altruísmo, como também, para gerar agressividade ancorada no rechaço, hostilidade
de forma mais contundente, ou gerar distanciamento e indiferença, em sua
expressão mais branda.
Nossas escolhas e capacidades que adquirimos com as experiências ao
longo da vida tem estreita relação com o contexto em que vivemos. Um contexto
sociocultural que oferece possibilidades para experimentar uma vinculação que
oportunize laços simpatia oportuniza a empatia, o altruísmo e a solidariedade como
marcas de suas relações sociais. Quando o curso de medicina proporciona
experiências como, por exemplo, conta o médico do grupo-pesquisador, se afasta
do distanciamento e da indiferença como forma de vinculação que humaniza o
exercício da medicina, não por normatizações, ou estudo da PNH, mas uma
humanização com raízes ficadas na nossa natureza afetiva solidária. Tais
experiências podem florir em escolhas de vida que vão de encontro ao
distanciamento e frieza dos consultórios baseados nos valores do Dr. House23.
Relembrando que nos disse Elbl-Eilbesfedt é preciso optar, sobretudo, quando
lidamos com formação humana, por dar mais relevo a dimensão afetiva que cria
laços solidários. E fazer isso é oportunizar experiências em que sentimentos de
simpatia e altruísmo possam ser vivenciados e enraizados.
23 House, M.D. ou simplesmente House (no Brasil, Dr. House), foi uma aclamada série médica norte-americana, criada por David Shore e exibida originalmente nos Estados Unidos pela Fox de 16 de novembro de 2004 a 21 de maio de 2012. Já recebeu vários prêmios, entre eles dois Globos de Ouro. O personagem principal é o Dr. Gregory
House, interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie. House é um infectologista e nefrologista que se destaca não só pela capacidade de elaborar excelentes diagnósticos diferenciais, como também pelo seu mau humor, ceticismo e pelo seu distanciamento dos pacientes, comportamento anti-social (misantropia), já que ele considera completamente desnecessário interagir com eles. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/House,_M.D. Acesso, 16.10.2015
~ 298 ~
Momento 2 – Visualização Criativa
O segundo momento desta Oficina foi dedicado a uma vivência pedagógica
em que utilizei o recurso da Visualização Criativa. A intenção era evocar os
vínculos de cada um com algumas pessoas significativas, cujo vínculo foi deixou
um aprendizado importante para suas vidas.
Como forma de preparar o grupo para a vivência convidei todos para um
relaxamento do corpo com movimento e música, finalizando com todos numa
posição corporal relaxada. Após esse momento, cada um foi convidado a evocar
em sua memória algumas pessoas, por meio de uma narrativa. Sinteticamente as
pessoas significativas eram: alguém que influenciara a escolha profissional; outra
que tenha sido inspiração para a visão política do mundo e da sociedade; outra
pessoa que direcionara a vida espiritual e/ou religiosa; e por fim, ainda, outra
pessoa com a qual aprendera a amar.
O compartilhar da vivência reservou muita emoção para o grupo e
oportunizou as pessoas a pensar sobre fatos sutis em suas vidas, cuja relevância
ainda não se tornara tão evidente, por falta de oportunidade dedicada para esse tipo
de reflexão.
O objetivo da oficina foi alcançado com pleno êxito. Mas tenho clareza
que, não obstante, termos sensivelmente evocado o tema em termos vivenciais, o
conteúdo dessas memórias é relevante somente de forma indireta para essa
pesquisa. A minha intenção com a vivência era evocar os vínculos das pessoas a
partir de seu núcleo afetivo, para só a partir disso, aprofundar o tema do vínculo
como algo que perpassa o trabalho de todos, no CSF do Inhamuns. Diversas
pessoas significativas foram evocadas e o grupo compartilhou isso com escuta
atenta, respeito e emoção, se dando conta de um aprendizado, até então, não
evidenciado como algo importante que faz parte, não apenas, do trabalho
profissional, mas da vida de cada um.
~ 299 ~
Em função disso o conteúdo em si dessa vivência não será relatado aqui e,
tampouco, será alvo das análises do grupo. O conteúdo é parte de narrativas que
contavam histórias e descreviam pessoas significativas para cada um, e já foram
compartilhados no grupo durante o primeiro encontro. O próprio compartilhar da
vivência tornara o grupo, um dispositivo, como assim sugere Silveira (2005), em
função dos rompimentos com as noções clássicas de grupo que ali se tornavam
presentes. Havia uma heterogeneidade de profissionais, e geralmente, quando há
pessoas graduação e não graduadas forma-se uma hierarquia que concentra o poder
da fala e do saber, e isso não ocorreu. Creio que, em razão do compartilhar da linha
tempo, o que se tornou premente no grupo não foram os papéis sociais de cada
um, e sim, a vida humana em sua trajetória, que trouxe horizontalidade.
Como facilitadora da Oficina, após transcrever e ler o material, organizei
uma primeira versão de análise para o grupo sem fazer alusão ao fio condutor das
narrativas. O que emergiu para mim da leitura do registro dos relatos desta vivência
foram algumas palavras que se repetiam nas falas e, na minha imaginação, davam
um colorido especial ao papel. As palavras eram características que traduziam
gestos humanos, sentimentos e posturas de pessoas significativas para vida de cada
um do grupo. Eram também, palavras que remetiam a categorias conceituais,
bastante subjetivas e abstratas. Percebi que eram palavras cujo significado dava
indícios a perguntas que a leitura me suscitava. Organizei o material em um Quadro
que apresento a seguir.
O que tecem os vínculos entre os humanos?
Que características humanas mais nos vinculam uns aos outros?
Vínculos se rompem? Por quê?
Companheirismo / parceria
Amorosidade / Afetuosidade
Liderança / Referencia
Paciência Generosidade Saber se comunicar
Persistência Inocência Respeito ao outro
Responsabilidade Compaixão Torcer pelo outro /
valorizar o outro
Quadro 2 – Fios que tecem Vínculos
~ 300 ~
O objetivo do próximo encontro com o Grupo Pesquisador foi fazer a
análise da produção do grupo. A tarefa era refletir sobre o tema de forma a
aprofundar, acrescentar, retirar, redimensionar a esta primeira análise feita por mim.
A intensão foi fazer emergir uma multirreferencialidade em seus intercruzamentos,
de modo a interreferencializar interculturalmente as diversas visões. Tal como
sugere Gauthier eu buscava clareza do meu papel como facilitadora. Para isso, me
direcionava para o que diz Gauthier quando afirma que ao facilitador cabe esse papel
de leitor exterior, com o objetivo de mostrar da maneira mais objetiva possível qual é a estrutura de
pensamento do grupo-pesquisador, ou seja, como faria um matemático procurando identificar
relações, regularidades e bifurcações, numa realidade dada. (GAUTHIER, 2005, p. 63).
O Quadro que elaborei era a primeira versão de análise do material
produzido pelo grupo. Essa leitura, claro, era a minha forma singular de
sistematizar o material produzido, a minha referência, mas não era a única. Para que
a nova análise do material fosse perpassada por uma multirreferência era preciso
propor um caminho para isso. Havia a possibilidade do grupo se prender a minha
forma de análise, sobretudo, em função do papel de pesquisadora que assumia no
grupo, um lugar de poder que poderia ser a referência do “certo”, da maneira
correta de fazer. Eu precisava amenizar esse risco.
Então pensei em utilizar o significado dos 4 elementos na intenção de
“livrar” o grupo da possibilidade de se prender a primeira análise do material feita
por mim, caminho que poderia empobrecer a análise. Recorri ao arquetípico dos 4
elementos: água, terra, fogo e ar apostando que eles poderiam ser úteis para
contribuir numa análise que transformasse as características mais sutis relacionadas
ao vínculo em algo que a imaginação pudesse tocar e traduzir de forma metafórica
e ou poética, para assim, gerar compreensão maior, com a multirreferencialidade
intercultural do grupo.
Levei para o encontro seguinte, a materialidade dos elementos. Cheguei
com o Fogo representado pela vela. O Ar, representado por um incenso e penas de
~ 301 ~
pássaros. A Água estava presente dentro de uma bacia. E a Terra, presentificada
com um jarro de planta. Levei também imagens dos elementos, com suas variadas
expressões na natureza.
Os quatro elementos trazem um simbolismo universal que se articula com
as mais diversas áreas de conhecimento. Na filosofia, desde Tales de Mileto (600
a.C) afirmava que tudo o que conhecemos é formado pelos quatro elementos: terra,
água, fogo e ar. Platão (427-347 a.C.) considerava o fogo e a terra os elementos
fundamentais que sustentavam a si mesmos, sendo a água e o ar responsáveis por
facilitar a conexão entre as todas as coisas. Os estudos antropológicos mostram que
os povos primitivos em sua convivência com a natureza elaborou e transmitiu um
conteúdo simbólico em referência aos quatro elementos, geração após geração. Na
psicologia os estudos de Jung também se apoiam na simbologia dos quatro
elementos para compreender a natureza humana quando propõe a existência de
quatro funções psíquicas opostas e complementares: sentimento, sensação,
pensamento e intuição. Ele representou isso utilizando a quaternidade da Alquimia
utilizando a simbologia dos elementos água, terra, fogo e ar. Enfim, a simbologia
dos quatro elementos possui elementos arquetípicos que poderiam ajudar a mediar
Imagem 19 - Cenário Oficina 1 – Análise da Produção do Grupo Pesquisador
~ 302 ~
o pensamento do grupo servindo como rede de pescar ideias, ancoras para puxar
pensamentos.
Ao iniciar a Oficina percebi/senti o grupo motivado, e creio que ficaram
ainda mais curiosos com a presença dos 4 elementos no centro da sala. Ao
perguntar sobre as expectativas do grupo, as pessoas comentaram:
(...) veio todo mundo com vontade de botar a mão na massa!
A gente não parou de ficar olhando para trás de dá valor a todas as pessoas que nos ajudaram até aqui! [alusão a vivência dos vínculos que tecem a identidade]
(...) O tempo aqui nas oficinas se renova!
Senti também que havia ansiedade frente ao que iria acontecer. Creio que
em função das emoções suscitadas no primeiro encontro. Iniciei com uma memória
do encontro anterior e apresentei o Quadro por mim sistematizado, juntamente
com as perguntas geradoras. Em seguida convidei o grupo para analisar e pensar
sobre o tema tendo como base o significado dos quatro elementos. Apresentei cada
um dos elementos evocando suas características e convidei a todos a entrar em
contato com as imagens e os elementos apresentados no centro da sala.
Imagem 16 – Cenário Oficina 1 – Análise da Produção do Grupo Pesquisador
~ 303 ~
Após esse momento convidei o grupo para retomar o Quadro e refletir a
partir das perguntas suscitadas. Sugeri que poderiam expressar suas reflexões de
forma livre, seja por meio de poesia, música, cordel, paródia, ou outra expressão
que o grupo desejasse. Para a realizarmos a tarefa subdividi o grupo em 3 equipes.
Como resultado das análises, duas equipes trouxeram sua compreensão
sobre o vínculo humano a partir de músicas conhecidas do povo da comunidade. A
outra equipe elaborou uma poesia para traduzir sua compreensão sobre o tema.
EQUIPE 1
Vem me fala tu de liberdade Desta igualdade que todos queremos Desta vida nova que todos buscamos Desta paz que um dia alcançamos
Vem me fala tu de tua vida Desta amizade mais querida
Desta ansiedade de amar de novo Desta sua vida doada ao povo Vem me falas tu de esperança
Deste novo ser criança Desta paz que traz bonança
Desta luta pra vencer Vem me fala de você.
EQUIPE 2
O Amor é o bem maior O amor é o bem maior, riqueza de valor para o coração
O amor é eficaz e a alegria traz ao coração O amor transforma a vida numa comunhão
Fazendo o coração abrir-se para o irmão O amor é paciente, não mente e faz o sol brilhar
O amor junta as pessoas, alimenta a esperança de um tempo melhor O amor transforma a vida numa comunhão
fazendo o coração abrir-se para o irmão O amor é inspiração na vida uma canção, o amor
O amor leva a missão, traz força, traz perdão num mundo desigual O amor que fez Jesus levar a Santa cruz até morrer
Foi este amor que fez a sepultura abrir e o meu salvador em glória ressurgir
O amor é inspiração, na vida uma canção, o amor
~ 304 ~
EQUIPE 3
Vaso - água, terra fogo e ar Cachoeiras da afetuosidade
Da responsabilidade que iluminando quando deságua sobre as pedras
e se multiplicam as suas gotículas se espalhando para todos os lados Seria possível quebrar o processo da construção do vaso?
Não! A terra molhada, moldada, queimada e exposta ao ar para concluir o processo de fabricação. Mas aí se iniciar a fase mais delicada, o processo do cuidado com zelo e amor Vaso decora, guarda a água, quebra
A generosidade do companheirismo no cuidado para preservar o vaso que quebrado colar e se colar, se vincular a outrem
Seria como conquistar o além Como a preciosidade do ar, na beleza de saber voar Descobrindo que suas características são essenciais
no saber se comunicar Aí sim, respeitando os limites como o fogo a água com persistência...
na paciência do saber moldar, trabalhar, fertilizar Abrir o coração deixar jorrar como água o ao mar descobrindo entre as matas.
Uma poesia de Manoel de Barros traduz bem a minha impressão inicial
sobre a produção do grupo:
Escrever nem uma coisa nem outra. A fim de dizer todas.
Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, ao poeta faz bem desexplicar –
tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
Aqui a multirreferencialidade, outros referenciais para dizer do mesmo. O
quadro que havia feito fora somente um novo ponto de partida para novas e velhas
compreensões sobre o vínculo. Novas pela expressão, e velhas, porque já
~ 305 ~
conhecíamos aquelas músicas, tão presentes nos encontros e missas da Igreja
católica.
O grupo (des)explicou o vínculo, o recolocou em um lugar habitual: o
amor. E assim, trouxe outras luzes, como diz o poeta. As duas músicas traduzem
fortemente o amor humano em sua expressão coletiva, indiferenciada, para utilizar
a compreensão de Toro (1991). Amor pela humanidade de cada um, amor
humano. Amor de comunhão. São músicas que remete ao um tempo de vida
comunitária, fala de liberdade, fraternidade. O grupo disse novamente do que o
vínculo é feito, e se afastou da obviedade de explicar o já dito. Desexplicou, e
acendeu vagalumes!
Como Água, o vínculo pode ser traduzido em cachoeiras de afetuosidade,
de águas que se espalham com persistência. Como Fogo tem seus limites. Como
Terra do vaso, nutre a planta, não quebra, quando aí há um cuidado para preservar
o vaso, que pode quebrar, mas também pode se colar novamente. Como Ar remete
ao saber voar na comunicação do essencial.
Cada grupo apresentou sua produção, cantando as músicas e interpretando
a poesia. Ao final, perguntei ao grupo: como se sentiram com a tarefa de hoje? O
que foi difícil?
Essa tarefa de hoje, você fazer essas perguntas, fazer comparações com algo que você já trabalhava, mas só que nós começamos, assim, a esmiuçar, (...) nós víamos o vínculo de maneira à parte, vamos dizer assim, era vivenciado, existia esse vínculo, mas só que nós fomos ver agora várias maneiras de construir esse vínculo ou de usar as diversidades que tinha, as dificuldades para se criar esse vínculo, porque antes ele podia ser quebrado por qualquer coisa, né, mas agora a gente viu que ele é algo mais além, ele pode ser reconstruído e criado dia após dia.
(...) Pra mim eu não posso dizer que foi difícil porque nós já falamos muito sobre isso, foi algo bom, gostoso, de se lidar, após aquela oficina, após aqueles pensamentos, aqueles sentimentos que pudemos sentir e vivenciar facilitou a responder essas respostas de hoje.
~ 306 ~
Na nossa equipe sempre existiu o vínculo né, nós estávamos precisando era justamente de momento desse para aprimorar mais (...) tá abrindo aqui a mente de todos né, e que não tem dificuldades.
Senti todos esses momentos, momentos prazerosos, momentos delicados porque a gente não tem o hábito de falar das coisas subjetivas, a gente não foi trabalhado, a gente tem dificuldade de expressar o companheirismo, de expressar o amor que tem pelo outro, de expressar a solidariedade, e expressar, até, através de um simples abraço. E isso permitiu, (...) essas coisas precisam ser tocadas, que a gente, ao longo do tempo, não sei se a gente se permitiu, ou mergulhou no que o mundo capitalista foi colocando. Colocando sempre os valores humanos abaixo e aquém dos valores econômicos, e a gente vai vendo que tudo o que a gente aprendeu ao longo da vida não tem dinheiro nenhum que pague, e não é o banco de faculdade, não é a formação profissional que a gente tem que vai dando isso! A gente vai encontrando e vem sendo moldado nas vivências que a gente tem com a família com os amigos com a questão religiosa, os movimentos sociais. E isso enobrece a alma, e quando a gente começou, no início era tão difícil tocar nisso que a gente, as vezes, expressava até em choro né?! Era um sofrimento. Hoje a gente pra mim foi uma leveza falar disso hoje, foi uma beleza e prazeroso. É bom você dizer assim que alguém é importante na sua vida porque te lembra isso, porque te ensinou isso, e traz algo que a gente vai carregando para o resto da vida. E acho que até permitiu ver assim a importância que é a gente expressar essas coisas que as vezes a gente ou os outros não dão tanto valor, mas que tem um significado e uma repercussão positiva em todos os aspectos da nossa vida, seja pessoal profissional ou religioso, então a gente falar disso foi muito bom.
A experiência dessa pesquisa pra mim só me proporcionou um enriquecimento, mais ainda, da importância que é a questão afetiva, a gente falar de amor, falar das coisas boas, de expandir isso, e de fazer com que as pessoas possam germinar isso, para que as pessoas também se permitam vivenciar isso, e tornar a vida prazerosa, né, porque foi isso que eu presenciei e vivi aqui nessas oficinas, foi que a vida é prazerosa demais e que a gente se prende a pequenas coisas, muito pequenas e bestas, e tem tanta coisa boa e bacana pra viver!
Ao finalizar esta Oficina foi o momento em que senti que tinha obtido a
permissão de entrar no Portal. Senti também que o próprio grupo fora fonte de
saber que aprofundou mais a compreensão sobre o vínculo, o humano vínculo.
Certamente, o grupo aqui era o próprio dispositivo a gerar conhecimento
como alude Silveira (2005) uma vez que naquele momento o grupo não se prendia
aos papéis de forma fixa, como comumente se estruturam as relações grupais. O
~ 307 ~
grupo estava aberto para o novo e se deixou perpassar pelo significado dos 4
Elementos como fonte e inspiração para produção de saber. O grupo pesquisador
era, ele mesmo, um dispositivo, ou seja, uma fonte geradora de saber.
Havia um clima de aceitação para um compartilhar da vida de forma fluida,
sem grandes entraves. O próximo passo seria avançar para refletir sobre o vínculo
como parte do circuito de interrelações do serviço da ESF naquele CSF. E para
isso, senti que havia obtido a permissão do grupo.
3.2.5. Os Vínculos Humanos na Estratégia Saúde da Família.
O olho vê A lembrança revê
E a Imaginação transvê É preciso transver o mundo.
(Manoel de Barros)
Como proposta para esta segunda Oficina utilizei como recurso a técnica
dos Lugares Geomíticos. Eu já tinha vivenciado o uso dessa técnica em duas ocasiões,
quando participei de um curso facilitado por Jaques Gauthier, e como colaboradora
em uma pesquisa sociopoética, ambas experiências, vividas ao longo do meu curso
de mestrado. A técnica foi criada pelo próprio Jaques Gauthier durante sua tese de
doutorado24. Gauthier fala que foi inspirada nas culturas indígenas do Pacífico.
Estas culturas pensam em termos de lugares geomíticos, e sugere que o
pensamento humano parece obedecer a uma lógica geopoética inconsciente,
interpreta o autor. A técnica consiste na criação de um principio diferente, inacostumado,
para gerar a expressão de energia imaginativa das pessoas do grupo. Sendo a forma inacostumada,
é provável que emerjam conteúdos, expressões, imagens inacostumadas, inesperadas. O objetivo é
ver o outro lado da vida, aquele que nossa formação teórica e, mais geralmente, nossa cultura
nativa não permite enxergar. Estranhar para conhecer. (GAUTHIER, 1999, p. 55).
24 A tese de Jaques Gauthier chama-se Educação e Desenvolvimento: as escolas populares Kanak, Universidade de Paris 8, 1993.
~ 308 ~
Dei como título para Oficina: Os Vínculos na Estratégia Saúde da Família
(Programação detalhada, no apêndice) que aconteceu em três encontros:
Oficina 2 – Os Vínculos na Estratégia Saúde da Família
Encontro 1
Momento 1 – Boas Vindas e Memória
Momento 2 – Visualização Criativa “Lugares Geomíticos”
Momento 3 - Compartilhar
Encontro 2
Momento 1 – Boas Vindas e Memória
Momento 2 – Análise Classificatória da Produção do Grupo
Encontro Momento 1 – Boas Vindas e Memória
Momento 2 – Análise Transversal da Produção do Grupo
Iniciei com as boas vindas, e com a ajuda do GP fizemos uma memória dos
encontros anteriores. Em seguida, convidei todos para a vivência, trabalhando
novamente com a imaginação por meio da visualização criativa. A narrativa da
“viagem” consistiu em levar as pessoas a percorrem, em sua imaginação, um
caminho que as levaria a um lugar especial, um lugar em que os vínculos fossem
algo bem presente nas relações entre os profissionais do CSF e as pessoas da
comunidade.
Após convidar o grupo para um relaxamento corporal e todos estarem em
uma posição confortável, iniciamos a “viagem”. Por meio de uma narrativa fui
convidando as pessoas para visualizar um caminho, e ao percorrê-lo, encontrarem
uma ponte, um obstáculo, um aliado, e finalmente, chegarem ao lugar, observarem
com atenção um símbolo do lugar. Após a vivência compartilhamos a “viajem”
com direito a muitas risadas e estranhamento.
Agendamos o próximo encontro que seria dedicado a análise do material.
Li atentamente os registros gravados e transcritos por mim, e organizei a fala de
~ 309 ~
todos, agrupando por categorias, conforme o caminho percorrido (Quadro com a
sistematização do material produzido pelo grupo no Quadro 5 do Apêndice). Esta
Oficina se desdobrou em mais dois encontros para análise do material, uma
classificatória e outra transversal. A análise classificatória intenciona esmiuçar,
classificar, separar, categorizar as ideias para compreendê-las de um determinado
modo. Em seguida fizemos a análise transversal que consiste em juntar o que foi
separado, e para isso, utilizei a técnica de elaboração de narrativas.
Para a análise desta produção, a compreensão sobre o vínculo seria
direcionada. Eu precisava de algo que tirasse o grupo do lugar comum do discurso
sobre vínculo, quando comumente se alude amizade, confiança, conhecimento. Há
uma tendência geral de ressaltar a positividade das emoções quando abordamos
nossos vínculos.
A intenção era focalizar e compreender o vínculo entre os profissionais e a
população em seus desdobramentos que delineiam um circuito nos serviços da
ESF. Retornei ao grupo com algumas perguntas geradoras, além da primeira
categorização do material, conforme os Lugares Geomíticos. Segue abaixo as
perguntas:
Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um CAMINHO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um caminho? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse uma PONTE, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é uma ponte? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um OBSTÁCULO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um obstáculo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
~ 310 ~
Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um ALIADO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um SÍMBOLO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um símbolo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um LUGAR, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um Lugar? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
Estas perguntas, assim formuladas, eram importantes para ajudar ao grupo
não se prender somente aos aspectos positivos da afetividade que sustentam os
vínculos. Comumente, somos mais propensos a ver a si e ao outro, somente como
pessoas altruístas e solidárias. No entanto, a presença de emoções e sentimentos
que efetivam uma cultura agonística, cujo modo de vinculação é caracterizado por
uma rigidez de papéis com permanente vigilância, em que a ordem é mantida por
meio de ameaças e agressões, é também, muito presente nas estruturas sociais
humanas, e se efetivam na organização de estruturas fechadas e hierárquicas que,
comumente, organizam os serviços de saúde, educação, dentre outros, sobretudo,
em um país com história de colonização.
Considerei importante proporcionar ao grupo evocar uma riqueza maior de
emoções e sentimentos que tocam e contornam os níveis de vinculação humana,
buscando não cair em maniqueísmos. Esse cuidado era importante porque foi esse
o caminho que o grupo já tinha vivido quando trouxe o amor universal para
traduzir os vínculos na primeira oficina. Permanecer nesta direção seria o caminho
mais provável, porém mais restrito. O GP já tinha tocado aspectos do modo de
vinculação humana que possibilita uma convivência hedonista, isto é, baseada na
aceitação, no contato, e na solidariedade entre as pessoas. Contudo, como ficou
claro para mim, aquele modo de vivenciar o vínculo estava bem presente na
~ 311 ~
comunidade de Vera Cruz, onde fica o CSF dos Inhamuns. Contudo, até que ponto
o circuito do vínculo nos serviços de saúde da ESF integravam formas de
vinculação que efetivam uma cultura agonística e/ou hedonista? De que forma
esses modos de vivenciar o vínculo se fazia, ou não, presente na cultura
organizacional do serviço de saúde daquele CSF?
Análise Classificatória da Produção do Grupo Pesquisador
Iniciamos o encontro seguinte com as boas vindas ao grupo e fizemos uma
memória resgatando os encontros e a produção do grupo. Em seguida, expliquei a
tarefa do grupo: responder as perguntas geradoras com base na imaginação que o
grupo trouxe ancorando nas experiências no CSF. O objetivo era dar concretude e
ancoragem à imaginação a partir das experiências vividas no cotidiano de trabalho
para compreendermos o vínculo como caminho, ponte, obstáculo, aliado, símbolo
e lugar. O grupo foi divido em 3 equipes e, novamente, deixei o grupo livre para
pensar formas como iriam sistematizar e apresentar o trabalho.
O resultado da análise foi muito rico. Percebi que as perguntas ajudaram ao
grupo adentrar a complexidade do sentir humano para dizer de nossos modos de
vinculação. Em sua análise o GP recorreu a linguagem metafórica dos Lugares
Geomíticos e utilizaram analogias para expressar sua compreensão do tema.
O Vínculo-caminho tanto era livre, verde, plano, arborizado, aberto, florido,
como também, era deserto, árido, cheio de pedras, com atalhos e penhascos. O
Vínculo-caminho se transformava: do verde, passava a ser estrada difícil pedregosa,
com chão de terra batida, carroçada. Apesar de difícil, estreito, era perfeitamente
trafegável. Ora acompanhava um penhasco, ora tinha, do outro lado, um verde
muito verde. O GT assim expressou sua análise sobre o vínculo-caminho ancorado
nas experiências do seu cotidiano do CSF.
~ 312 ~
O vínculo-caminho pode ser deserto difícil de andar e com obstáculos, quando
cada um trabalha de forma individual e quando um não entende o outro,
quando não existe comunicação. É deserto, difícil de andar com obstáculos,
estreito quando é vazio mecânico, limitado. Quando não se tem uma relação de
diálogo, quando há resistência para o novo. Mas quando se aprende a trilhar
em meio as adversidades, não se deixa arestas.
O vínculo-caminho é livre quando profissionais e comunidade são abertos às
mudanças, quando há uma relação conciliadora. Porém não concordamos que
não existem obstáculos. Podemos ver que o caminho pode ser verde, no entanto,
quando a verdade de um sobrepõe a do outro, pode romper.
O que faz do vínculo-caminho ser verde é a comunicação e o diálogo, quando há
engajamento de profissional e comunidade. É quando tanto o usuário quanto o
profissional se sentem satisfeitos com o serviço oferecido.
O Vínculo-ponte também trouxe várias possibilidades de compreensão sobre
o circuito do vínculo. Os elementos que a imaginação do grupo trouxe sobre a
ponte foram molhados de sentimentos que expressam, em um mesmo pulsar,
medo/coragem, seguro/inseguro, estável/instável. Todas as pontes eram feitas de
madeira. No entanto, havia pontes estreitas sem corrimão, inseguras, que
balançavam e traziam medo e insegurança. Havia outras, largas que davam para
passar sem medo algum, tinham cordas como corrimão por onde se passava
tranquilamente. Outras pontes eram difíceis de enxergar, a ela só se chegava por
outros caminhos. Pontes altas, que apesar do medo da altura se atravessava. Pontes
por sobre águas, com barulho de rios a correr debaixo, feitas de madeira velha e
antiga, mas que apesar da aparência era segura para atravessar. Todos atravessaram
a ponte, e ao analisar o Vínculo-ponte refletiram o seguinte:
O vinculo-ponte é de madeira sem corrimão, estreita e larga, mas jamais deve ser
quebrado, pois a ponte fortalece o vínculo e assegura que vamos chegar onde
desejamos, vamos conquistar o que queremos e juntos somos mais fortes, por
isso, o vínculo é tão importante!
~ 313 ~
O vínculo é uma plataforma ou uma ponte de madeira sem corrimão quando a
relação entre usuários e profissionais não é concreta, não há uma confiança entre
os profissionais e a relação se torna estreita;
O vínculo representa um abismo antes da ponte quando há uma enorme
dificuldade de construí-lo, quando se tem medo de que a equipe possa
apresentar-se fechada à conversação. Mesmo assim, os usuários acreditam que
possam chegar até ele, e ele ajudá-los a resolver seus problemas.
O vínculo é ponte quando ele é linear usado pelos usuários para continuar o
trajeto para resolução de seus problemas;
O vínculo-ponte insegura é quando há falta de confiança, expectativa,
permissivismo. Quando o tecnicismo sobrepõe o subjetivo. A falta de confiança
entre ambos [profissionais e usuários] gera medos, deste modo, um vínculo
negativo;
O vínculo-ponte segura é quando se confia em si e no outro, quando o respeito é
mútuo.
O Vínculo-obstáculo teve múltiplas expressões. Os obstáculos que o GP
trouxe em seu imaginário e que impediam a passagem pelo caminho eram: uma
pedra grande, uma parede, um buraco, uma rocha, dois touros valentes, uma
montanha de papel que impedia de enxergar a pessoa do outro lado, uma floresta
de proporções amazônicas. Na análise do GP, tais obstáculos se constituem como
expressão do vínculo quando:
O vínculo passa a ser um obstáculo quando nos paralisa por ser totalmente
dependente um do outro!
O Vínculo-obstáculo é de Pedra quando as informações são distorcidas. É uma
Parede quando separa. É um Buraco quando ambos não acreditam um no
outro, quando não se vêm como pessoa humana, não se olha para o outro. É de
papel quando o papel vale mais que a fala do paciente. Quando a fala do
paciente não existe! É um obstáculo que se coloca como um vínculo, a meu ver
um vínculo muito ruim, porque eu castro a fala da pessoa eu não dou nem
oportunidade de fala pra pessoa, só vou ditando as regras e anotando.
~ 314 ~
O Vínculo-obstáculo é uma floresta pode ser também o momento por nós
vivenciado bem antes da Planificação25, porque não se sentava pra analisar
nada, não se conversava entre a equipe, é cada um vivendo na sua, fazendo o
seu fragmento, então, pra mim era uma floresta em que não estava ninguém
adentrando para conhecer é que quando eu me permito conhecer o papel do outro
a função do outro o que ele faz eu permito conhecer esta floresta, esmiuçar, pra
poder trilhar.
O Vínculo-aliado se articula ao vínculo-obstáculo. A figura materna e paterna se
apresentavam como pessoas que apontavam soluções para superar o obstáculo, ou
mesmo, ajudavam com alguma ação. Além dessas figuras arquetípicas a simples
presença de um amigo era a soluções para superar o obstáculo, a figura do marido
como pessoa mais forte que traz uma solução empreendendo uma ação solidária, e
também, pessoas desconhecidas, cuja presença, traz uma solução inesperada para o
problema. O aliado também surgiu como uma ideia, uma corda trazida pelo vento,
um mapa que serve de guia e também as mãos das pessoas da equipe de trabalho
no CSF foram aliados na superação do obstáculo. Analisando o vínculo-aliado a
partir das experiências vividas pelo GT em seu cotidiano de trabalho o grupo assim
se expressou:
O vínculo-aliado é quando existe cooperação mútua [entre profissionais e
usuários];
O vínculo-aliado como o Pai e Mãe – pai é aquela pessoa mais dura, mais
centrada, mãe eu vejo aquela pessoa mais acolhedora, aquela que dá soluções
pras coisas, é um racional amoroso. O pai é amoroso também, mas ele de uma
certa forma fala com propriedade para passar segurança. Então, eu vejo que tem
esse vínculo quando, por exemplo, as pessoas mais idosas elas são escutadas,
porque pela experiência de vida que elas tem, pela história que elas construíram
independente de saber científico, a vivência dela por si só já dá esta bagagem, e
então acho que quando tem essa relação, de pai e mãe com as pessoas idosas se
encaixa como se fosse o pai e a mãe, aquela que orienta, você escuta se coloca
25
Planificação é um curso que a secretaria de Saúde oferece para todos os profissionais da atenção básica em parceria
com o Ministério da Saúde.
~ 315 ~
como no papel, não só como o profissional que sabe, mas o profissional que
também tá no processo de aprender, aprender com o saber do outro.
Vínculo-aliado [como figura do marido], o marido eu vejo como
companheirismo, porque marido é um companheiro, embora alguns não sejam,
mas é cúmplice e está ali pra ajudar, pra sonhar junto, pra está ali incentivando
e você incentivando a ele. Esta relação eu vejo que é importantíssima entre
profissionais e usuários porque, se você tem os usuários e os profissionais que
caminham lado a lado, eu acredito mais nas coisas dando certo, porque eu deixo
de fazer as coisas para alguém, mas eu passo a fazer as coisas com alguém.
O vínculo-aliado é corda quando é um conselho, uma palavra amiga pode ser
uma corda que puxa. Cumplicidade. Às vezes a gente se lamenta muito, e se
lamenta por não conseguir determinada coisa, e fica na lamentação, e não faz
nada pra sir, só lamenta, e às vezes, o outro chega e dar um puxão de orelha e
diz que é possível sim! Por isso ... por isso... e por isso! Eu acho que é uma
corda que lhe dá pra você permitir sair de lá de onde vocês tava, sair dos muros
das lamentações e passar pro muro das ações, e reverter.
O Vínculo-aliado é as mãos dadas das pessoas da equipe quando há parceria
entre colegas de trabalho. Eu vejo, quando, por exemplo, o problema que é de
fulano não é de fulano é problema do território, da equipe, é como se fosse, eu
vou buscar soluções para poder resolver, eu acho que isso é uma relação de
vínculo e muito boa. Quando eu substituo o pronome minha, e meu passa a ser
nosso, os desafios são nossos, os problemas são nossos, como também, os louros
são nossos.
O vínculo-aliado é um amigo quando você vivencia algum problema, alguma
angústia, e você conversa com o paciente.
O vínculo com o usuário como amigo eu tive em um momento muito difícil. Um
período que eu tinha uma tia doente em fortaleza que passou quase três meses e
eu assumi, além do agente de saúde em, eu assumi a classe também como
presidente da associação, então foi um período muito difícil, em que eu tinha às
vezes, o que todo mundo tinha pra fazer num mês, negociações com coordenação,
com a minha enfermeira, eu fazia, geralmente, numa semana, uma semana e
meia, pegando os finais de semana, e entrava pela noite, então, eu vi a amizade
das mães dos menores de 2 anos da minha área muito forte neste período,
porque eu ligava, eles sabiam do que eu estava vivendo, a lei não me daria
direito pra ir acompanhar minha tia que só tinha uma filha única, uma doença
muito rara que passou quase três meses para descobrir, é tanto que ela não
~ 316 ~
sobreviveu. E era só eu ligar e eles verem aquele momento que eu estava vivendo
eles eram muito solícitos comigo, sabe! D‟eu ligar e dizer assim olhe eu gostaria
que vocês trouxessem as crianças pra minha casa tal hora, e eu nem precisava
ligar pra todas, eu ligava pra uma, e elas mesmo, que chamavam as outras, e
iam pra minha casa no horário marcado. [E porque tu acha que elas iam?]
Eu acho que ela iam pela relação de respeito, de vínculo e de amizade, sabe,
porque eu já sentia isso, mas eu senti isso bem mais forte neste período, sabe.
Deles se preocuparem, eles ligavam pra mim, diziam que eu não se preocupasse,
qualquer coisa que eu chamasse eles iam, mobilizavam eles mesmo
mobilizavam a área, se articulava direitinho, e eu cumpria. Isso me sentindo na
obrigação eu já fazia, eu não me importava com horário. O horário é até 5, mas
se uma família dissesse assim “foi Deus que mandou você aqui” eu sentia na
obrigação, só por aquela palavra, de ouvir, embora eu não tivesse nada pra
dizer, mas pelo menos ouvir, eu me sentia na obrigação de ouvir sabe. E eu acho
que isso estabeleceu um vínculo muito forte e grande amizade, e quando eu
precisei eles me ajudaram muito, eu até costumo dizer que eu recebi uma
amostragem de uma amizade sincera mais deles do que dos meus colegas, que
não entendiam porque que eu tava trabalhando no domingo, e diziam que era
porque eu queria ser muito responsável e muito organizada, e de não entender
porque que eu ia a noite, eu tendo uma filha, com menos de dez anos de idade
pra criar e eu deixar com meus pais, sabe. E eles não compreendiam, mas as
minhas famílias compreendiam. Teve um elo de amizade muito grande, é tanto
que até hoje, sabe, assim de compartilhar as coisas que nem compartilha com a
própria família, mas compartilhavam comigo, acho que foi um vinculo de
amizade muito grande porque, se não, não faziam isso.
O vínculo-aliado como mapa são as pessoas que você delega dentro da
comunidade, não tem mapa melhores que eles, que é quem lhes situa de tudo que
acontece dentro da comunidade. Você chega na comunidade, porque, por
exemplo, a comunidade que eu peguei agora, e você já estabelece as pessoas que
eu já tenho mais vínculo uma amizade que já tinha, aí eu já repasso alguma
informação ou elas que me dão alguma informação de alguém que está doente,
alguma coisa que aconteceu na comunidade e você já vai direto. (...) precisando
mais, e você já vai. São pessoas que você descobre que tem informação e
liderança. A gente descobre tudo, rezadeira, você descobre vexado. Pra você
saber de diarréia, por exemplo, de alguma coisa que você ficou de ver, gravidez, é
vexado! Até as fofoqueira, elas são aliadas. Pra mim descobrir de uma gestante,
tinha uma gestante, e eu já tinha um vínculo de amizade com uma pessoa, e eles
me repassaram, e eu disse, pois daqui eu vou agora, lá. Ah! já sei tem uma
~ 317 ~
turminha delas, eu digo: é lá! Aí eu já fui, mas tinha um vínculo ali já
estabelecido.
O vínculo-aliado também aqui é o mapa da área da abrangência da equipe dos
profissionais saber que onde é região critica saber dos problemas da equipe.
Durante a viagem imaginária com a Visualização Criativa havia um lugar de
chegada, cuja entrada, havia um símbolo. Foi sugerido na narrativa cada um prestar
atenção que símbolo estava na porta de entrada do lugar do vínculo. Nos relatos,
alguns chegaram à própria Unidade de Saúde em que trabalhavam, e o símbolo era
uma placa branca com as iniciais ESF. O símbolo também estava em um prédio
com as letras ESF pintado de amarelo, tipo caiado, de cor quase laranja, e tinha as
inicias ESF em vermelho. Os símbolos estavam nas portas de lugares de muita paz,
rodeado de florestas e muito agradável. Um outro lugar de chegada diferente foi
uma oca verde, indígena, tinha como símbolo uma placa verde com uma flor como
seta. Em quase todos os lugares de chegada havia festa para receber quem estava
chegando. O lugar de chegada também foi representado pela casa materna/paterna.
Nos lugares de chegada sempre havia pessoas conhecidas, familiares, amigos do
trabalho, e também, pessoas desconhecidas. Algumas pessoas do grupo não
conseguiram chegar ao lugar, ou não lembravam que lugar havia chegado. Em
relação ao lugar de chegada e ao símbolo que representava o lugar do vínculo entre
profissionais e população o GP fez a seguinte análise:
O vínculo é uma área coberta com árvores grandes e um lugar bem verde,
quando ele tem forma, e é agradável. O vínculo é uma placa branca quando ele
é notável e fácil de ser identificado; O vínculo é um símbolo quando ele tem
representatividade quando ele é concreto. Os elementos da imaginação trazem
significado de notoriedade, paz, beleza “que o vínculo tem forma”.
O vínculo é um prédio rodeado de floresta quando os usuários sentem a paz e o
conforto de estarem próximos à equipe. Vínculo é ponto de referencia é o maior,
é onde as pessoas vão pra se cuidar, prevenir porque não é só tratamento é
prevenção, ali eu sei que vou e encontro algo;
~ 318 ~
O vínculo passa a ser símbolo quando existe união entre usuário e profissional
todos trabalhando em prol de um bem comum à saúde. O vínculo é o lugar de
chegada quando os usuários visualizam que a unidade também é sua casa e que
ele também tem responsabilidade para com a mesma e respeito com os
profissionais. Quando o vínculo é sua própria casa, quando ele é um lugar que
você recebe as pessoas com festa. É aconchego, onde se sente segura, sempre tem
festa;
Esse lugar... eu vou compreender a minha própria casa, como uma casa que
acolhe, que abraça, uma casa que eu sei que vou chegar e as portas vão se abrir
pra mim, pra mim família, vínculo como casa seria isso. Tem família junto, de
fácil acesso. Se fosse um lugar seria de fácil acesso e seguro, e lá encontro um
rosto que, as vezes, no momento que você tá precisando, você encontra um rosto e
uma palavra, já lhe traz satisfação e segurança.
Se o vínculo é entendido como um Lugar é esse lugar que acolhe, que abraça e
que faz festa quando eu chego. Eu vejo isso aqui, um lugar onde se abraça, onde
se comunga, onde se chama pelo nome, por isso, que eu tô aqui. Onde você chega
e você sente assim, “esse lugar aqui, me querem bem”, então, acho que esse
vínculo entre profissional e usuário quando é essa casa é essa festa é um lugar
onde me dá prazer e se tem esse prazer é bom demais, é ótimo, é muito bom.
Tanto como estratégia, como a família em si, como a minha casa, como a ESF.
Eu acho que é isso que as pessoas buscam também na ESF porque tem pessoas
que vão uma, duas, três vezes, às vezes, vê, tem algumas pessoas que só de olhar
já lhe transmite um aconchego, as vezes, ela tá buscando isso. Chega lá pra ir
buscar aquele aconchego, por causa que tá sozinha solitária em casa, mas que
também reflete isso. Esse lugar!
Após esta análise, no momento das equipes compartilharem, as pessoas
narraram algumas cenas interessantes para exemplificar suas ideias. Foi neste
momento que me veio uma ideia de solicitar ao GP que, a partir das análises do
vínculo-caminho, ponte, obstáculo, aliado, símbolo e lugar, elaborassem narrativas
com as histórias que haviam contado. Essa seria a forma a partir da qual
poderíamos fazer a análise transversal do material. O grupo topou de pronto e
~ 319 ~
elegemos algumas histórias dentre as que foram comentadas, para expressar a
vivência do vínculo entre os profissionais e a população do CSF de Inhamuns.
Elegemos quatro histórias para as quais demos um título para cada uma. O
GP assumiu a tarefa de desenvolver a narrativa a partir dos fatos ocorridos. As
histórias receberam os seguintes títulos: 1) A Confiança; 2) O Mal Entendido; 3) A
Flexibilidade do Médico; 4) Solidariedade.
Análise Transversal da Produção do Grupo Pesquisador
As narrativas iriam ajudar-nos na segunda análise do material. Uma análise
de tipo transversal em que se junta o que fora separado para evidenciar uma nova
compreensão. A aposta foi que estas narrativas pudessem evidenciar a forma como
as relações de vínculo eram vividas no circuito que envolve as necessidades de
saúde da população. Apostava que as narrativas pudessem evidenciar, isto é, trazer
mais para consciência do GP os sentimentos que estão envolvidos neste circuito de
relações, e que modos de viver a afetividade estava presente e que padrões de
relações são preponderantes. Segue as histórias escritas pelo GP.
A CONFIANÇA
Em um determinado dia, ao chegar ao serviço, uma funcionária da unidade, foi procurada em sua casa por uma senhora por nome de D. Lúcia que pedia intervenção para sua mãe, idosa que supostamente desenvolvia um nódulo na mama, e que não concordava em receber consultas do médico.
No dia seguinte a funcionária da ESF se deslocou até a residência da Sra. Mãe de Dona Lúcia que conversando e mostrando a necessidade de levar ao conhecimento do médico, foi aceito e no mesmo dia, foi a ESF e foi feito todo o atendimento como consultas e encaminhamentos.
~ 320 ~
SOLIDARIEDADE
Ao chegar ao nosso PSF vindo de outro município, o médico tomou
conhecimento do histórico de uma usuária quando a ACS de uma
determinada área, procurou o serviço para apresentar resultados de exames
de uma Senhora. Ao fazer a leitura, o médico avaliou sugestão para CA
de mama, e encaminhou para consultas em Fortaleza. Por se tratar de
uma paciente que tinha resistência, por ser restrita ao município. A sua
ACS atendeu de prontidão ao convite desta usuária em acompanha-la
nesta viagem à Fortaleza. Embora houvesse a boa vontade da ACS esta
não tinha conhecimento em Fortaleza, e isso, dificultava um pouco a viagem
um pouco a viagem.
Ao tomar conhecimento, o médico que na data da viagem, se encontrava de
férias, se comprometeu em espera-las em Fortaleza e acompanha-las
durante o período que estas permanecessem lá. E assim foi. Tudo ocorreu
conforme o combinado num grande ato de solidariedade.
A FLEXIBILIDADE DO MÉDICO
Era uma tarde mais ou menos às 14:00h da tarde, o médico acabara
naquele momento o atendimento do turno manhã. Não haveria
atendimento no turno tarde por motivos de força maior. Antes de retornar
para Tauá, o médico iria almoçar, e neste meio tempo, chega uma usuária,
D. Neta, querendo apresentar resultados de exames laboratoriais de sua
sogra. Ao procurar uma funcionária da ESF procurando por atendimento
foi orientada que esta retornasse no dia seguinte. Após esta conversa, a
funcionária saiu para almoçar.
Quando o médico saía da cozinha após o almoço, foi abordado pela D.
Neta que ainda permanecia na ESF insistindo em apresentar seus exames
e conseguiu, pois o médico a atendeu, marcando de ver os exames em visita
domiciliar com a paciente no dia seguinte.
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O MAL ENTENDIDO
Em um determinado dia da semana em dias de atendimento normal, onde
muitas pessoas procuraram por atendimento, entre demanda agendada e
demanda espontânea, uma senhora procura a recepção do ESF querendo
falar com o médico sobre sua mãe idosa e não se encontrava ali para a
possível consulta [a senhora idosa que precisava de atendimento].
Ao ser informada pelas atendentes sobre não ter mais fichas para o
atendimento, mas que ela permanecesse ali que, entre um intervalo e outro
das consultas, daria para ela falar com o médico.
Em alguns instantes o médico sai do consultório para obter alguma
informação condizente ao atendimento que este realizava naquele momento
e ao ser indagado pela Senhora sobre a patologia tal de sua mãe [a
senhora idosa] recebeu uma orientação devida do médico, de acordo com
a sua exata pergunta.
Ao sair do prédio da ESF a Senhora começou a espalhar insatisfação no
atendimento, o que de imediato, procuro a sua ACS e esta esclareceu sobre
o ocorrido, o que de nada adiantou, pois a Senhora, após alguns dias,
procurou a SMS [Secretaria Municipal de Saúde] e queixou-se do
atendimento, não colocando a verdadeira versão do ocorrido.
Passado alguns dias a Senhora encontrou uma das atendentes que teria lhe
atendido, mostrando arrependimento por ter tomado a atitude de denunciar
os serviços da ESF, e o arrependimento oi mais longe. Em uma Pré-
conferência de Saúde que foi realizada nesta localidade, ao ser aberto a fala
aos comunitários presentes, a Senhora fez uso do microfone e elogiou os
trabalhos da ESF local.
Ocorreu que no próximo encontro do GP nem toda equipe estava
presente. O médico da equipe estava fazendo visitas domiciliares, e nos dias
seguintes iria sair de férias e, em seguida, se desligaria do município. A equipe já
havia compartilhado que ele não mais retornaria para o município, por decisões
~ 322 ~
pessoais. Da mesma forma, a enfermeira da equipe também não estava presente
neste dia por conta de outros compromissos em Tauá. O município vivia a
realização das pré-conferências de saúde, e o curso de Planificação dificultava o
agendamento de encontros com o GP. Em razão das dificuldades de novamente
reunir o GP completo conversei com as pessoas presentes. Como não gostaria de
perder a oportunidade de conversar com o médico da equipe sobre as histórias,
tendo em vista o seu envolvimento com quase todas as narrativas escolhidas pelo
GP, resolvi fazer uma entrevista com ele. A oportunidade me veio neste mesmo
dia, em razão do convite, estendido à mim, para um almoço de despedidas do
médico da equipe, ofertado pela agente de saúde, em sua casa, em Vera Cruz.
Inicialmente, fiquei apreensiva com a impossibilidade de conversar com o
grupo completo, em razão da agenda do município e das pessoas. Por outro lado,
compreendi depois, que as pessoas se sentiram mais a vontade, e tivemos mais
tempo para aprofundar sobre as narrativas.
Elaborei uma pergunta geradora para refletirmos sobre o vínculo a partir
das narrativas: o que essa história revela sobre o vínculo entre profissionais da ESF
e a população? Entretanto, houve também espaço para esclarecimentos sobre as
histórias que trouxeram ricas reflexões e permitiu aprofundar o pensamento sobre a
vivência do vínculo pelos profissionais, fazendo emergir daí uma compreensão do
fenômeno no âmbito da ESF.
Sobre a narrativa “Solidariedade”
Uma das questões que me interessou esclarecer nesta história era
compreender a visão dos profissionais a respeito da assertiva que utilizaram para
referir-se a pessoa com a suspeita de CA de mama: paciente que tinha resistência.
Quando essa história foi relatada durante o encontro anterior do GP e, mesmo
~ 323 ~
quando foi escrita na forma de narrativa, a senhora da história continuou sendo
referida como uma paciente resistente, mesmo não oferecendo qualquer resistência ao
tratamento, conforme a história. A palavra era utilizada como uma adjetivação, cujo
sentido dado ficava desfocado do significado corrente da palavra, que segundo
consta no dicionário, é oposição, defesa contra um ataque. Sobre essa assertiva, as
reflexões e comentários do GP foram os seguintes:
(...) essa resistência é aquela pessoa que, mesmo precisando, procura pouco o serviço de saúde. É o caso dela.
Esses exames já tinham sido solicitados pelo médico anterior [um médico que trabalhava no CSF de Inhamuns anterior ao atual] e que tinha parado. Não sei por que tinha parado! Foi que a agente de saúde trouxe a história para o médico [o atual], por inciativa dela, e ainda acompanhou ela numa consulta pra mostrar os exames.
Indaguei, na sequencia, sobre o porquê aquela paciente era chamada de
resistente, se em nenhum momento ela havia feito qualquer objeção em ser
atendida, ou se recusado a ir à Fortaleza, quando foi encaminhada. O GP
esclareceu o seguinte:
Não! Eu acho que ela tinha dificuldade.
(...) ela era uma pessoa que mora sozinha não tem ninguém por ela, tem uma filha que não mora com ela, mora em outro local, ela mora sozinha na casa dela (...) e nunca saiu de Tauá e era a primeira vez que ela saia do município de Tauá que foi a Fortaleza, ela iria ficar perdida.
A equipe foi vendo a própria resistência, a própria restrição dessa pessoa. Ela não sai sozinha, é só aqui mesmo no município, ela não é uma pessoa que é acostumada viajar.
Percebi que a palavra restrição era usada como um sinônimo de resistência
para esclarecer seu sentido. O uso desta palavra (resistente) é bem comum no
cotidiano dos profissionais da ESF em diversos CSF em que tive oportunidade de
convivência. E, geralmente, a palavra é usada para referir aos pacientes que não
obedecem às prescrições, sobretudo, as pessoas com diabetes e hipertensão que
~ 324 ~
precisam fazer uso de medicação diariamente, e também fazer dieta. Insisti um
pouco mais indagando se, para aquele caso, seria essa a palavra adequada, porque
percebia que a senhora não resistiu ao tratamento. O GP assim refletiu:
(...) era uma falta de apoio. Quando ela se sentiu apoiada, quando ela sentiu e percebeu que tinha um suporte, ela se mostrou disponível, até então, ela não tinha percebido nenhum tipo de apoio ao problema dela. Então, eu vou dizer duas palavras: era a falta de apoio que ela, até então, não tinha.
Existia uma rede apoio. Se ela soubesse que precisaria ir sozinha ela não iria. Estaria até hoje esperando que alguém resolvesse o problema por ela. É uma senhora idosa, analfabeta, que não sabe ler, não iria para Fortaleza não tinha como ela fazer isso.
Resistência é uma palavra que responsabiliza a pessoa sem razão e o contexto não é isso, tem uma lógica, uma razão de ser: o fato dela nunca ter saído de Tauá, o desconhecimento da doença (...), mas ela não estava com medo da doença, pelo contrário, no dia que fui conversar com ela, pessoalmente, [médico] ela me falou que, ela é uma pessoa religiosa e que, tinha sido curada. Ela tava muito tranquila, muito tranquila em relação ao problema dela (...). Não havia nem medo nem resistência porque ela tinha certeza que tinha sido curada.
Percebi que, mesmo esclarecendo que não havia resistência para o caso, o
GP continuava usando a palavra. Compreendi que talvez o uso do termo se a
necessidade das pessoas em fazer uso de termos técnicos para referir algo em uma
paciente, porque mesmo diante da constatação de não haver nenhuma resistência,
as pessoas evocavam outro significado para o uso da palavra não importando a
contradição com o seu significado corrente. O que me parece é que o uso do termo
paciente resistente estaria no rol da terminologia da saúde, talvez mais como jargão, do
que propriamente um termo técnico. Conforme tenho percebido seu uso em outros
contextos, ou melhor, em outros CSF de outros municípios, percebo que o uso do
termo é feito a partir de uma visão unilateral dos casos, porque a resistência é
pressuposta pelos profissionais sem, geralmente, contextualizar, por
desconhecimento do contexto de vida das pessoas, sem uma busca de compreender
o porquê da resistência. E isso passa uma ideia de responsabilização da pessoa que
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se recusa a ser atendida. No caso da história, como ficou claro o contexto de vida
da paciente que ela não tinha resistência e sem o apoio da equipe, ela não iria a
Fortaleza fazer o tratamento.
Continuamos o diálogo sobre o caso com mais duas perguntas: por que a
equipe se mobilizou para acompanhar a paciente até Fortaleza? E o que esta
história revela sobre o vínculo entre os profissionais da equipe e a comunidade?
Sobre isso o GP refletiu:
Visto a necessidade, por se tratar de uma pessoa carente de cuidados, que a equipe através da agente de saúde, fez essa mobilização.
A equipe se mobilizou porque havia a necessidade de buscar a solução do problema dela, que poderia mata-la. E nossa equipe tem responsabilidade, e se tá nas nossas mãos o poder de fazer a diferença, e a gente não iria se omitir de usar esse poder, é uma responsabilidade nossa.
(...) Eu continuo médico quando eu tô de férias, eu sou médico deles durante as minhas férias na noite, no fim de semana, e não deixei de ser médico. Eu compreendo que isso não é o comum ou o usual.
O que a história revela do vínculo?! (...) uma compreensão, o poder da palavra, da conversa, da explicação melhor em relação a seguir os problemas de saúde, uma palavra bem dada e encaminha, ela vai ser bem aceita. Uma palavra bem dada é uma palavra (...) em que se mostra aberta a ouvir, a aceitar o profissional em relação a ela, o profissional se colocar aberto pra falar com franqueza e clareza, em um linguajar de forma que entenda, e explicar tudo e trazer solução. A gente não trouxe só o problema mas uma solução pra ela.
(...)[a história] revela que há um vínculo bem aberto, não é uma coisa fechada, porque veio fazendo esse círculo, era conhecimento da agente de saúde. A agente de saúde trouxe ela, porque se a agente de saúde não tivesse esse vínculo com ela, também teria dificultado mais um pouco, teria sido preciso levar mais alguém para fazer esse encaminhamento dela até a unidade. Eu acredito que ela não teria vindo.
Eu acho que isso aí é uma definição verdadeira do que é vínculo, porque não houve dificuldade, e nenhuma resistência por nenhum profissional em hora nenhuma. Quando a agente de saúde tomou conhecimento do caso, abraçou a causa, se encaminhou de trazê-la, de vir com ela, não só de encaminha-la, mas acompanhar pra vê o andamento da coisa, e que ao colocar pro médico e ele vê, de prontidão, abraçou a causa. Ele estava de férias e se comprometeu de
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acompanhar na rodoviária, levar ao hospital, aguardar a consulta e leva-las de volta. Vai além do atendimento é solidariedade.
Sobre a narrativa “A Confiança”
Em relação a essa narrativa as reflexões trouxeram outros aspectos sobre o
vínculo, revelando sua multiface e uma ética exigente. A história envolvia
diretamente a atendente de farmácia, que foi a pessoa que convenceu à senhora ir à
consulta médica. Um ponto que achei interessante tocar era que, comumente, esse
convencimento, era esperado que fosse feito pela agente de saúde da área. De
acordo com a narrativa a profissional que foi chamada para convencer a senhora foi
a atendente de farmácia. O GP elaborou ricas reflexões sobre isso, sobretudo, com
a colaboração da própria atendente de farmácia que integrava o GP. Segue abaixo, a
análise transversal do vínculo a partir desta narrativa:
Eu acho assim que pra você ter um vínculo com a equipe a questão da confiança, e eles confiam, independente qual seja dos profissionais que pertence a equipe, dependendo do caso, eles sabem quem chamar, com quem conversar, às vezes, é por questão de vizinhança, de afinidade eu acho, que meu problema tem que ser repassado para essa pessoa, que eu acredito que solucione. Houve uma afinidade com a Salete [atendente de Farmácia], a família identificou a Salete como essa pessoa da equipe com capacidade de resolver.
Ela [a atendente de farmácia] foi clara, franca, sincera com a paciente, e dizer pra ela que a gente oferecia nosso apoio, nosso suporte.
Dependendo de a gente ter um vínculo, mas, às vezes, pra aquela determinada doença, ele não acha que é aquele profissional que vai solucionar, vou procurar aquele outro ali, que ele tá lá mais perto, por exemplo, nó agente de saúde, nós estamos aqui bem mais próximos das famílias e mais distantes da unidade porque de manhazinha o que eu tenho que fazer é ir direto pras família. A Salete não! Sai da casa dela direto para unidade. A Ediene [técnica de enfermagem, integrante do GP) vai direto pra unidade e nós não, tamo mais na ponta. Eu acredito que ela tenha deduzido que além de ser irmãs de igreja, já facilitou esse contato. A Salete tem o contato direto durante o dia acolá, então ela pode indagar o profissional lá, ela tem mais acesso a eles do que eu que tô aqui fora, porque eu vou chegar lá eu vou dá meu nome pra mim se consultar. E que, na verdade, não era uma consulta, mas sim, ela queria contar
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o que estava acontecendo né. (...) Cada profissional tem sua profissão determinada.
Eu até citei naquele caso, no outro dia que nós estivemos juntos [Oficina do GP], que ela sempre me chama de minha enfermeirinha [refere a atendente de farmácia da unidade]. Por quê? Porque ela tinha tido um problema recente de pele, e que estava necessitando de cuidados, e como ela é uma idosa, a gente faz isso em casa.(...) e ela sempre ao me ver passar pela rua, ela não vinha aqui, ela perguntava: „tem o meu remédio?‟ „Tem!‟ Eu levava, por ser uma idosa. Eu sempre tive aquela atenção de procurar saber como é que ela tava e tudo! E assim, eu acho que é algo muito pessoal dela! Eu não sei dizer porquê! Eu não sei!
“E porque você acha que ela mudou de ideia e veio para o atendimento?” Indagação feita por mim diretamente para a profissional protagonista da história.
Eu acho que foi por essa própria atenção, esse respeito, ela sempre mostrou um carinho a mim, eu acho que é algo bem dela! Eu não sei dizer, porque, se for ver a questão da agente de saúde, eu seria hipócrita de dizer que eles não olham com bons olhos esses casos, né! Eles orientam direitinho, fazem aquela abordagem de busca ativa. E eu acho que é algo bem dela!
Eu acho que é uma atenção incondicional, eu acredito que atenção incondicional é aquela que você tem tanto no seu horário de serviço, como independente da sua hora. Você passa a noite, você cumprimenta né! Principalmente, aquele período que a pessoa tá necessitada daquele atendimento, (...), mas assim, esse carinho por ser uma pessoa idosa, não era só naquele dia, há muito tempo, né, por mais que eu não seja daqui, sempre eu (...) tenho esse carinho por ela, mesmo ela não sendo nada da família. Eu passo e tenho a preocupação de perguntar como é que tá, se tá tudo bem! Eu acredito que seja essa atenção.
Eu fui lá porque a filha dela me procurou, eu fui lá. Eu acho que, por a filha vê, essa atenção, saber que ela (...) aqui e acolá, eu estava lá, passava na calçada, não de viver na casa, e por eu já ter feito aqueles procedimentos de limpeza, nos ferimentos e tudo. Eu acredito que não fosse nem por saber exatamente que eu convenceria ela, mas eu acho que seria arriscando, seria uma opção, né, como ela já tinha tentado convencer e não conseguiu, então apelou, foi um apelo, vou tentar com a Salete.
Após esses esclarecimentos e reflexões, ao retomar a pergunta geradora (o
que a história nos revela do vínculo entre profissionais e comunidade?), o GP fez a
seguinte análise:
~ 328 ~
Na realidade (...) essa palavra [vínculo] existia, mas pra nós, embora houvesse, na realidade, aqui, o vínculo, (...) o verdadeiro significado dela, tava como se tivesse no armário, estava arquivada. A gente não sabia que isso seria uma coisa tão a ser trabalhada e de tamanha valia, a gente nunca tinha se voltado para isso.
(...) revela um verdadeiro sentido do vínculo (...). É uma palavra de tanta valia que você se sente realizada quando você sabe que você foi procurada né, que as pessoas estava tendo uma certa resistência e que você teve esse poder de conversação, e de convencer a pessoa a procurar o atendimento médico.
Esse poder do vínculo que saiu do armário, que lhe dá um poder, que poder é esse? Como você entende esse poder que você passou a enxergar quando começamos a conversar sobre isso e tirar isso do armário?
É um poder de aperfeiçoar aquilo que você já fazia antes, né. Só que, de uma maneira que, digamos assim, sem saber o verdadeiro sentido da palavra, (...) você não trabalhava essa palavra. Então, esse poder do vínculo ele dá só prazer, quanto à mim, de continuar fazendo, fazendo mais, de se abrir mais pra obter esse vínculo com as pessoas.
Até que ponto esse vínculo te ajuda no trabalho enquanto atendente de farmácia ou ele te atrapalha? Esse poder no sentido que você tá trazendo? Indaguei novamente.
Até agora, no momento, enquanto atendente de farmácia, ele tem me ajudado, (...), porque nele você está aberto de acolher bem, receber bem, mas nele também você tem liberdade de colocar os limites da coisa, porque se chega uma pessoa e procura por um medicamento, e a pessoa não tá com a prescrição em mãos, então, ele lhe dá uma garantia, lhe dá uma liberdade de você esclarecer a pessoa, os limites: „essa medicação não pode ser liberada, porque você não está com a prescrição em mãos‟. Ele lhe dá poder pra você encaminhar essa pessoa (...). Então, quanto a mim, esse vínculo só tem me ajudado porque ele tem me embasado, ele me dá bases pra mim falar com a pessoa e ser entendida.
O vínculo me ajuda a ser entendida pelo outro. Que não só nesse vínculo eu posso ceder! Não! Eu tenho esse vínculo com a pessoa, eu tenho que ceder toda hora?! infligir as normas!? Não! É ao contrário! Eu tenho esse vínculo, e eu tenho liberdade com a pessoa pra seguir as normas. Porque muitas pessoas, a gente vê no nosso dia-a-dia, as pessoas vem aqui pra outros fins, pra só se beneficiar. Assim, “eu sei que uma coisa não pode ser liberada, mas como eu tenho conhecimento com uma certa pessoa, eu vou lá, e peço, e ela vai me liberar, embora não podendo, porque ela é minha amiga!” Então, o vínculo, ele é muito importante, mas quando ele é bem usado! Porque em todas as questões existem regras, embora estas regras tenham a suas exceções. Tem pessoas que chegam
~ 329 ~
aqui, dizem: „Ah! Eu sei que você não pode, mas tem como?‟ Vamos analisar o caso! É uma dipirona?! É um captopril?! É um paracetamol?! A gente sabe do histórico dessa pessoa? Se costuma fazer uso disso? Estamos sem médico no momento? A febre a está muito alta? (...) Então é uma palavra muito bonita, é como eu digo, a gente fazia, mas não tinha conhecimento da plenitude da palavra.
Pode ser usado tanto pra cumprir as regras quanto para infringi-la. O profissional tem que saber até onde eu posso utilizar que vai beneficiar a mim e aos outros, porque eu não posso pensar só em mim, e quanto ele vai prejudicar os outros também! Vai prejudicar o meu trabalho, vai prejudicar o trabalho do outro né. (...) A gente costuma muito debater isso nas planificações. É feito esse aperfeiçoamento, com todos os profissionais com toda equipe, nível superior, nível médio, pra que se venha falar a mesma língua. Quando eu falo aqui uma coisa que é norma, que chega bem ali, que outro distorce, porque tem um certo vínculo com a pessoa, eu não uso essa palavra como vínculo né!. Ela tem outro significado. É uma coisa bem isolada, não é amizade, não é vinculo, eu não teria uma palavra agora, mas uma coisa eu sei, o trabalho do outro deve ser respeitado em todas as suas dimensões.
Que tipo de vínculo seria esse? Que diferenças há entre eles?
Esse vínculo, ele nos torna igual já que a gente trabalha com o SUS, eu acredito quando você leva em prática os princípios do SUS. Quando você passa a atender com equidade levando em consideração todos os princípios, mas nesse caso, na história da “Confiança” que foi diferente, tanto por eu fazer parte da equipe, mas tinha mais um porém, eu ser uma pessoa da comunidade. De estar mais próxima, diferente de um profissional superior que vem lá de fora que está aqui por um certo período. Eu acredito que isso dificulta, mas quando há o verdadeiro vínculo (...) ele facilita, embora há essa diferença de vínculo, ele não complica porque o que aconteceu? A agente de saúde tomou conhecimento, e ela trouxe ao conhecimento do médico, então, há essa ligação, há esse rodízio que a gente faz, a gente que está na comunidade, que tem mais conhecimento, e que pode levar isso ao conhecimento do médico, então, eu acho que é benéfico, ele ajuda, embora aja essas limitações, a gente tenha mais um grau de vínculo maior, e eles menos, com algumas pessoas, mas isso não atrapalha.
Seria proximidade ou vínculo? Porque o vínculo teria uma medida que poderíamos medir como maior ou menor? Por outro lado há uma diferença de quem mora e de quem não mora na comunidade. Que palavra a gente poderia usar pra dizer dessa diferença que não fosse pra medir, porque não seria uma palavra que se mede, que palavra traduziria?
~ 330 ~
Acho que vai na proximidade. No momento, a palavra exata, não sei, mas percebo que é diferente! Acho que a diferença é na convivência, um maior período de convivência aí. Acredito que sim, o que diferencia é a convivência.
Sobre a narrativa “O Mal Entendido”
Essa foi uma história que mobilizou toda a comunidade e toda equipe em
função da denúncia/queixa que a pessoa da comunidade fez da equipe à Secretaria
de Saúde do município. Como na narrativa conta que a senhora foi denunciar a
SMS sem dar a verdadeira versão do corrido, antes da pergunta geradora, busquei
esclarecer o que gerou o mal entendido, e porque a pessoa se mostrou arrependida
quando elogiou a equipe publicamente. A narrativa trouxe à tona outros elementos
do vínculo como a abordagem de família e os limites da responsabilidade do
cuidado. Sobre esse caso o GP trouxe a seguinte análise.
A não busca de orientação correra por parte do acompanhante [o que gerou o mal entendido]. Ela me abordou no caminho quando tava entrando no consultório, e me abordou, me fez uma pergunta, e nessa pergunta que ela fez, eu respondi, e segui meu caminho em direção ao consultório, e ela tomou aquilo como um atendimento, me parece. Essa abordagem que ela me pegou numa conversa de corredor, ela tomou como atendimento, que, na verdade, não era nem pra ela, era pra mãe dela, (...) e ela tomou isso como atendimento, não gostou, (...) aumentou o caso e foi denunciar. E gerou essa repercussão.
Eu acredito que, na verdade, ela queria ter tido essa conversa com ele [médico] talvez dentro do consultório, mas como foi no corredor, (...), mas além disso, eu acredito, que ela queria que tivessem vindo até a casa.(...) Mas eu acho que quem fez a confusão total foi ela. Porque se ela tivesse retornado até as meninas da recepção e tivesse dito „ele já me orientou que eu desse a medicação a minha mãe, mas eu quero que ele vá até lá pra ver a situação‟. (...) Eu acredito que o atendimento teria sido completo. O que faltou foi ela dizer o que a paciente tinha, ela não disse, apenas falou da questão do uso do medicamento.
Essa pessoa queria tirar a responsabilidade que ela tinha de cuidar da mãe e passar para equipe. Depois que a equipe se reuniu, depois da queixa, da denuncia, da reclamação, (...), é que veio a tona essas informações, eu não sabia!
~ 331 ~
Essa história mobilizou as ACS a SMS os funcionários do CSF e a comunidade. Eu soube que a na pré-conferência houve o elogio por parte da mesma pessoa que fez a queixa.
[a causa do arrependimento] A melhor explicação do que deveria ter sido feito com ela, do melhor atendimento que ela deveria ter, caso ela quisesse esperar como todo mundo, e como as pessoas que estavam na unidade naquele dia, naquela hora, aguardando. Bastava esperar, se ela quisesse uma visita domiciliar [do médico], eu iria depois visitar a mãe dela, mas ela não quis esperar.
Acredito que ela analisou o caso bem depois, houve uma análise da parte dela, e também houve uma necessidade de um acompanhamento maior, porque o caso da senhora não se agravou na questão do uso do medicamento, mas devido um outro problema. Eu [ACS] fui chamada na casa pelo irmão dela que é meu tio, e chegando lá eu me deparei com uma situação que (...) naquela hora, a necessidade era levar realmente pra Tauá porque (...) aquele caso teria que ser visto por um atendimento urgente. (...) Ela ficou um pouco afastada assim de mim, porque eu entrei em contato com ela, debati um pouco com ela dos atendimentos que já tinha acontecido antes, e durante, porque aí, sempre que era convidada, ou mesmo, sem ser convidada, ela tinha um atendimento dentro do domicílio. Eu, [ACS] como moro perto, raramente, é eu não ir lá duas, três, vezes na casa da senhora, e aí, a primeira pessoa quando o problema lá se agravou, eu entrei em contato com ela, e disse o quê que estava acontecendo, e que realmente precisava levar pra Tauá, (...) diante daquilo ali, ela se sentiu envergonhada pelo que ela tinha feito, ela se sentiu envergonhada porque logo depois desse atendimento ela procurou uma das atendentes e já pediu desculpa pelo que tinha feito e, diante de tudo isso, ela tentou mais aproximação da equipe. E a gente puxou ela.
A responsabilidade não é nossa, e sim, da família, nós também temos. Sempre que era preciso ir alguém lá, era avisado a ela que a equipe vai lá, que era pra ela ver o quê estava sendo feito, porque, como ela não estava presente o tempo todo, ela poderia dizer ou achar que não estava sendo feito o atendimento.
Como ela não estava presente na doença da mãe dela, (...) Eu entendo que ela queria que a equipe fizesse, tomasse a responsabilidade da família pra equipe, por quê? Por que ela não estava tão presente. E assim, eu mesmo, enquanto família, enquanto profissional, analisei: ela é muito distante, ela só vem aqui e visita e vai pra casa dela, ela mora aqui distante da mãe e ela deixou a responsabilidade total em cima de dois irmãos. (...) Como ACS e também como família eu ligava pra ela, porque como família, eu avalio que ela estava querendo jogar a responsabilidade dela e tirar a culpa que ela estava tendo e jogar pra gente, porque, na verdade, eu acredito que ela se sentiu culpada. (...) A responsabilidade estava todinha em cima de um homem, a gente sabe que a mulher em questão de limpeza, a mulher tem mais habilidade do que um
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homem! E na verdade, assim, quando ele percebeu o problema que estava na mãe dele, a pessoa que ele procurou foi a mim agente de saúde, mas assim, ele teve um receio de chegar até a mim: „será que eu chamo porque ela denunciou a equipe?‟ Ele fez essa indagação pra vizinha! E a resposta que a vizinha disse: „não! Chame ela porque ela quem sabe e eu acredito que isso aí não vá atrapalhar para ver a necessidade que ela tá tendo agora‟. Quer dizer, a vizinha (...) teve mais consciência daquilo ali do que ela própria. Porque você visitar uma mãe domiciliada, acamada não, domiciliada, uma vez por dia, e só vinha pra olhar você já banhou? Se já deu de comer? Eu acho que a responsabilidade não é essa!
(...) porque, até então, ela queria jogar a responsabilidade pra equipe! E que a gente sabe que nós temos a nossa responsabilidade, mas a responsabilidade maior é da família. E em plena conferencia ela pegou o microfone e disse que a equipe estava de parabéns, que a equipe era de profissionais com responsabilidade e capacidade também. E assim foi bom, porque ela se auto-avaliou. Porque uma pessoa que denegriu a imagem da equipe numa secretaria e perante a comunidade, e depois diante de uma comunidade ela dizer que estava legal!!
Após os esclarecimentos sobre o caso, refletimos sobre o que a narrativa nos revela sobre o vínculo:
[revela] as duas faces do vinculo: um vínculo mais frágil e um vínculo mais fortalecido. A fragilidade veio na relação que a paciente, que poderia ter tido mais com a equipe. Todas as pessoas da comunidade, eu acredito, entendem que tem a equipe como uma equipe acolhedora. Mas o fato da mãe dela tá doente, tá precisando de uma ajuda, mas todo quer ser atendido na hora, e como ela queria algo mais rápido, e ela não era uma pessoa muito presente na comunidade, e talvez, ela não tivesse essa ideia da equipe, que boa parte da nossa comunidade nos entende como uma equipe acolhedora. (...)
Ela sabe que ela poderia ter resolvido com a gente. É tanto que as meninas [ACS] foram lá conversar com ela. E essa nossa atitude não é porque a gente recebeu uma queixa, todas as nossas atitudes são entrar na casa da pessoa e conversar, e não de pedir explicação ou retratação, não era isso. Então essa senhora, por não fazer parte da nossa comunidade, tinha esse vínculo mais frágil, e depois, foi mostrado como é realmente nossa atitude de conversar diretamente com as pessoas, e aí veio o vínculo fortalecido. O vínculo frágil e forte aparece nessa história.
Eu acho assim, diante do surgimento, a comunidade, em momento algum, apontou o dedo dizendo que a equipe tinha culpa, em momento algum, ninguém! Aonde a gente passava: „aconteceu isso e isso, mas eu acho que a equipe não tem culpa! A responsabilidade maior tem que ser da filha da família, entendeu?!‟
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(...) Assim é muito bom, quando a gente escuta dizer que a equipe funciona que a equipe tem responsabilidade! Então, o vínculo da equipe com a comunidade foi o que fortaleceu a gente neste momento. Porque foi um momento difícil pra todo mundo. Teve repercussão na comunidade, mas nunca a comunidade apontou o dedo que a equipe tem culpa.
(...) Eu acho que como a equipe é uma equipe comprometida, porque se não fosse a comunidade não tinha apontado o dedo como uma equipe responsável, com compromisso, e assim, eu acho que o nosso vínculo com a comunidade é muito grande. Porque, até então, a gente sempre escuta elogio da nossa equipe. E assim é, o nosso vínculo não só com a comunidade, mas também, com ela, eu acredito que mudou.
Sobre a narrativa “Flexibilidade do Médico”
Essa narrativa também nos possibilitou muitas reflexões trazendo outras
faces da vivência do vínculo no cotidiano do CSF. A particularidade dessa história é
que toca as relações profissionais e a organização do processo de trabalho no CSF
em sua interrelação com a comunidade, envolvendo diretamente o médico e os
atendentes. Além de esclarecer o que a história revela do vínculo, era interessante
compreender por que essa narrativa tinha sido escolhida como exemplo para
expressar o vínculo entre profissionais e comunidade no CSF. Então, como forma
de gerar reflexão, eu indaguei sobre as consequências que a ação de flexibilidade do
médico trouxe para equipe. As reflexões do GP evidenciou diversos pontos de
vista.
Eu resolvi a questão do paciente, lógico, mas eu acho que eu não deva agir sempre assim! Porque não sou mais nem melhor do que ninguém lá! E os meninos, os que são atendentes, eles tem uma certa autonomia de organização de fluxo de atendimento, e na hora que eu quebro as regras, eu crio uma brecha, onde outras pessoas podem passar por ela também, e é uma brecha que pode expandir e ninguém sabe o que acontece. Eu acho que nem sempre a gente tem que ser flexível dessa forma, sabe! Eu acho que regra tem que ser seguida. Lógico que cada caso é um caso. A questão dessa senhora, (...), mas se fosse hoje, eu provavelmente, atenderia da mesma forma, porque (...) ela tava
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trazendo um exame da sogra (...) a gente não trata exame, a gente trata a pessoa. (..) Foi só uma questão de conversa. E essa conduta não era do atendente era uma conduta, uma iniciativa minha [médico], e como de fato, foi feito. Mas eu acabei passando por cima das regras e normas que existem pra organizar, não pra dificultar nada pra ninguém!
A conduta humana é diferente da burocrática. A conduta humana foi comtemplada na postura, mas houve uma consequência para organização do serviço, e que a flexibilidade precisa ser contextualizada, porque você resolve o problema de imediato, mas cria outras dificuldades dentro da organização da unidade. (...) E todo mundo vai entender que, sempre depois do almoço, pode chegar lá que eu vou atender! Eu tirei a autoridade das meninas. A consequência disso para comunidade?! É temeroso, eu não posso criar uma brecha e todo mundo vai querer passar por ela e a brecha acaba se estourando [risos], e tem uma consequência para o serviço que a gente faz de tudo para organizar, e que é um lugar complicado pela demanda, que é muito grande, e acaba criando uma possibilidade dessa. Não deveria! Mas pela questão humana, mas foi uma conversa, se de repente a gente chegasse a uma conclusão que não precisava resolver tudo naquela hora, coisa que não era obrigação da atendente saber, era uma iniciativa mais da equipe, que era minha e da enfermeira.
No caso aí, não era uma urgência nem uma emergência. Flexibilidade, às vezes, quem está lá na ponta, os profissionais atendentes, fica desacreditado. (...) Eles ficam desacreditados. Por quê? Ela vai lá indaga a pessoa: „não pode agora, e aí, no momento oportuno, a pessoa chega até ele, e ele faz [o médico], né! Essa flexibilidade, eu não sei se ele usa assim com o coração, a pessoa vem de fora, e um dos argumentos que eles [a comunidade] usam: „Ah! eu venho de fora, se eu vier de moto eu vou pagar uma quantia X, e quando eu não venho de moto, se eu perder o carro, é difícil eu retornar pra comunidade”. Isso aí, eu acho, é o que faz ele fazer isso, é esse argumento que eles [a comunidade] usam. E outra, eles acreditam tanto que ele vai atender que eles insistem.
Isso repercute lá na comunidade (...) quando chega lá na comunidade, eles [moradores] dizem: „eles [os atendentes] disseram que eu não podia, porque já tinha uma quantidade X ou que já tinha encerrado, e eu fui atendida!‟ Isso repercute lá na comunidade, porque a gente diz: „olhe, isso aqui não é uma coisa urgente‟. Por exemplo, na visita do ACS, a gente diz: „isso aqui não é uma coisa urgente, e lá, [na Unidade] está acontecendo um agendamento nas consultas e (...) tem as pessoas que chegam com urgência e emergência, mas deixa pra você ir em outra hora?!!‟ Mas, como a companheira já veio, e foi atendida no intervalo, que é um direito do profissional, o intervalo de almoço, elas vêm, e insiste. E quando elas chega lá, ainda dizem: „olha aí, você disse que eu num fosse, mas eu fui, e fui atendida‟. E, às vezes, é questão de não ter a credibilidade, (...) quebra aquele propósito que nós estamos
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querendo fazer que é de organizar toda uma demanda, porque nós temos uma demanda, uma agenda, pra organizar o fluxo, que nós temos, (...) nós temos um fluxo grande porque o nosso distrito é grande, estamos atendendo mais de 3 mil pessoas, e que se tiver tudo agendado, tudo ok, eu acredito que vá melhorar, eu não diria não 100%, porque não somos perfeitos, mas que 80, 90, 95%, eu acredito, que aconteça.
Nesse dia o atendimento foi terminado por volta de duas horas da tarde, e quando eu saio da farmácia ela ainda tava aguardando eu expliquei pra ela. Quando eu voltei a tarde, no outro dia, eu soube que ele tinha visto (...). São vários casos que se repetem dessa natureza. (...) Essa semana aconteceu a mesma coisa. Eu acho que isso é a questão do vínculo, as pessoas já sabem que, ao se direcionar a ele, [médico] ele não diz um não.
Eu acho que isso abre espaço pra as pessoas, mesmo quando a gente sabendo das normas, né, da quantidade de pessoas que devem ser atendidas por turno, devido a agenda, das consultas agendadas, e das outras, que ficam pra demanda espontânea. A gente tem um conhecimento disso, tenta colocar pro paciente, só que ele [o paciente] não entende isso, e como ele sabe da flexibilidade do médico, eles recorrem diretamente a ele. Isso causa constrangimento pra equipe porque foi uma coisa que, (...) teria partido da gente, e que isso, o médico, não tivesse conhecimento né! Um dia o Rui [atendente do CSF] veio e disse: „olha ela saiu, (...) e saiu rindo, e disse: „taí eu falei, fui atendida!‟ É constrangimento para os atendentes que estão de cara lá. (...) E pra comunidade isso é ruim, porque eles ficam aí fora, e eles ficam aí achando ruim, achando que a culpa é dos atendentes que colocou a pessoa na frente permitiu a entrada dessa pessoa.
A partir dos esclarecimentos, e das novidades que a narrativa traz
dialogamos sobre o que essa história nos revela sobre o vínculo:
Eu acho que quando existe um vínculo positivo, o diálogo, a conversa, ela é esclarecedora, e realmente, quando gente esclarece esses fatos, a gente pode resolver, de acordo com cada demanda individualizada em relação a cada pessoa. Em relação ao vínculo dos profissionais com a comunidade, eu acredito, que ela percebeu que ela [a comunidade] tem um acesso, mesmo que o acesso seja, ou tenha esse desvio, essa brecha, mas ela sabe que ela tem acesso, e isso gera confiança. Da mesma forma, dentro da própria equipe, eu entendo, que foi quebrado o contrato um pouco, do contrato social, mas tinha um motivo. Ninguém espera até duas três horas da tarde pra ver a palavra de um médico sem realmente estar precisando, tinha uma necessidade! Uma angústia, uma necessidade em relação ao problema, e o problema foi resolvido, a queixa foi acolhida, e foi só dado um prazo pra que fosse resolvido no dia seguinte na própria residência dela. A gente quebrou o pacto organizacional da quebra de regras dentro da própria equipe.
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Acho que a questão deles [a comunidade] acreditar que se eles vierem aqui não saem sem atendimento! Eu acho que eles acreditam nisso! „Eu vou porque eu não saio de lá sem ser atendido‟. „Eles dizem que não pode, mas eles acabam me colocando pra ter o atendimento.‟ Esse vínculo está restrito, porque assim, como nós estamos num processo de mudança ainda, de adaptação, com a questão das consultas agendadas, não está esclarecido pra todo mundo ainda, é uma coisa que a gente ainda tá esclarecendo pras pessoas.
Então, claro, é normal, é próprio do ser humano, não entender as coisas de imediato. É uma coisa a ser trabalhada gradualmente. Eu acredito que como há casos do vínculo (...) que não deixa a desejar, ele é bem esclarecido (...) mas não é em todos os casos que ele é aberto a toda equipe não! Tem horas que ele [o vínculo] é mais aberto a certos profissionais. Nem todas as pessoas tem o vínculo com a equipe como eles tem com o agente de saúde. No caso da senhora da outra história da “Confiança”, ela não teve com o agente de saúde que andava na casa dela todo dia, como ela teve comigo, né! Neste caso aqui, esta paciente teve mais com o médico. Com certeza, quando ela procurou os primeiros atendimentos, é a forma como o médico a atende que a acolheu, ela entendeu isso de forma diferente, ela entendeu que quando ela chegasse, toda hora que ela quisesse falar com ele, ela iria ser atendida. Eu acho que foi a forma como ele a atendeu que a acolheu que fez com que ela entendesse isso. Isso é um vínculo restrito, é mais próximo de um do que de outro. (...) Em alguns casos tem bons resultado como o caso da Confiança, e em outros casos negativos como desse caso.
Durante a apreciação final do encontro o GP trouxe alguns pontos de
reflexão e foi o momento que se viu, se apreciou, se auto-avaliou sobre sua atuação
como equipe, acredito que em função das narrativas.
É impossível fazer um trabalho sem amor, ou você faz com amor ou ele não funciona. -Não sai uma coisa bem feita quando a gente tem uma visão só do dinheiro. Independente da quantidade que recebam por mês independente do salário tem que fazer bem feito. A vista de fazer, fazer bem feito!
É esse amor, que quando vê a dificuldade de um e de outro dentro da equipe, ou na comunidade, e que acaba se doando e se prestado a ajudar aí se manifesta aquilo que ela disse, é como se tivesse guardadinho e a gente vai usar só na hora da necessidade.
Porque pra mim ele se resume em uma obrigação, mas mesmo assim, sendo interpretado dessa forma, ele não deixa de ser amor, com a mínima parcela possível de amor que seja.
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Aí é que a paciência tem que tá presente! Até um dia em que a paciência seja vista e que aquilo ali tem amor, mas a gente sente, a gente sente, mas mais quando é na necessidade e não aleatório.
Eu acho assim, que embora você tenha amor, ou mesmo que seja mais por necessidade, eu acho que a maioria quando vai entrar é por necessidade mesmo, mais do que por amor, mas acho, que o passar do tempo transforma em um amor tão grande! Eu acho que quando o doutor sair eu vou chorar muito! [o médico da equipe estava se desligando do município]
Mas é porque na nossa equipe existem vínculos, é porque existem vínculos que a gente consegue nutrir. E se já existia o vínculo, acaba sendo nutriente a mais pra que haja isso aí. Eu [médico] tô aqui só a um ano, e vocês estão bem a mais tempo, mas eu acho que não só as nossas conversas aqui, eu acho que uma coisa positiva é a Planificação também né! A gente tem oportunidade de ser dado um ou dois dias no mês e todos tem oportunidade de sentar juntos pra conversar sobre um tema ligado a saúde, (...) mas eu acho que o primeiro ganho, mais que os conhecimentos que já existem e que tão aí disponível na internet e tudo mais, e quem quiser pode correr atrás, mas a Planificação acho que ela criou vínculos num é! Eu até então, estou a tempos como médico de família, foi com a Planificação que existiu em Tauá que essa conversa e essa harmonia que nós temos de conversar de igual pra igual com todo mundo que, ao meu ver, não sei se existia antes, porque eu cheguei junto com a Planificação, mas eu vejo que foi muito importante, porque a gente pára pra conversar sobre o nosso trabalho, e isso nutre, a união e a percepção, por mais que, certamente, que existem temas que são viajantes, delirantes, e a que a gente não precisasse estar lá, mas a gente pára pra conversar a respeito do assunto. O vínculo faz a diferença.
Eu [facilitadora do GP] fico feliz de escutar isso, o que vocês trazem são questões humanas. Quando se junta seres humanos pra conviver um certo tempo, e pra fazer um trabalho com o mesmo objetivo, não é exceção aqui, mas em qualquer lugar, acontece esse vínculo. Há em nós essa amorosidade, essa afetuosidade essa abertura para o outro que nos permite tecer esses vínculos. A questão é o que que a gente faz com isso?! O que que eu faço com isso e com o lugar do meu trabalho dentro da ESF. O ACS, em termos de vínculo um pré-requisito, é ele conhecer a comunidade ter esse vínculo, isso não é assim por acaso. Esse vínculo é importante para um determinado tipo de cuidado. É o cuidado da ESF que é diferente do cuidado do Hospital! E esse vínculo que se tece dentro da ESF não é o mesmo, por exemplo, do profissional com o paciente dentro de um hospital. No hospital quando você já está doente você recebe uma prescrição e tem que fazer aquilo direitinho que o médico prescreveu. (...) Tem que fazer, até porque, tem a enfermeira lá pra aplicar a medicação a tal hora! Diferente da Atenção Básica que você vai tratar e cuidar a pessoa dentro da casa dela, desde a promoção a prevenção, você está chegando na casa da pessoa, você tá chegando no local dela, e ela não tá ali como no hospital. Isso tem uma
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diferença pra um tipo de cuidado e para um tipo de relações, e essa ideia desta pesquisa é estudar esse vínculo no que que ele é importante para o cuidado que é próprio da AB, um cuidado de que você precisa cuidar da saúde da pessoa e não só da doença, vê se as crianças estão vacinas, cuidar da prevenção das mulheres, trabalhar pra prevenir as doenças infecto contagiosas. Então é um tipo de cuidado diferente, você está cuidando da saúde, obviamente, o tipo de vínculo, a maneira de cuidar do outro, é diferente. Ela envolve a afetuosidade e a amorosidade. A Afetuosidade e a amorosidade está sempre restrita ao âmbito da igreja. Ela disse assim, eu acho que a gente tem amor no nosso trabalho. Bom se não tivesse amor o trabalho nem existia! Agora, o que que a gente faz com esse amor ao nosso trabalho? O que vocês tem feito? É essa a questão pra gente pensar.
Foram muitos os (re)aprendizados durante todo esse percurso com o GP.
Percorremos um caminho juntos em que refletimos, analisamos, avaliamos, auto-
avaliamos, ponderamos, questionamos, perguntamos, apreciamos, descobrimos,
esclarecemos, viajamos, rimos, choramos, repensamos, estranhamos, vivemos! E
muitos pensamentos e sentimentos emergiram, chegaram à luz da consciência.
Saberes guardados no coração, no corpo, na lembrança, em lugares ainda não
visitados de nossa mente, lugares recônditos de nosso espírito. Poderíamos
caminhar um pouco mais nas (re)descobertas que este caminho ainda poderia
trazer. Entretanto, considerei que já poderíamos parar por aqui porque percebi que
vagalumes já alumiavam o circuito do vínculo entre os profissionais que atuam na
ESF e as pessoas que usam seus serviços, e já era possível perceber esses
contornos.
Fiz um acordo com o GP de retornar uma última vez para encerrarmos
oficialmente a pesquisa e decidirmos juntos sobre o que faríamos com o material
produzido pelo grupo.
Quando retornei, foi um encontro de despedidas. Ainda pulsava com força
no grupo a despedida recente que a equipe tinha vivido do médico que fora para
outro município. E vivemos as nossas despedidas. Os sentimentos eram de alegria
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e dever cumprido, de gratidão pelo compartilhar de muitos aprendizados, velhos e
novos saberes.
Sobre o material o grupo decidiu que poderíamos compilar uma Cartilha ou
Manual que pudesse ser lido junto pela equipe, e também pela equipe com a
comunidade. Assumi a tarefa de sistematizar um primeiro esboço desse material e
levar para apreciação do grupo.
Durante esse último encontro como o GP, fizemos também uma
retrospectiva minuciosa de tudo que vivemos juntos, e ao final, lancei uma pergunta
geradora para finalizarmos nossas reflexões sobre o circuito do vínculo na ESF do
SUS, segue a pergunta:
O que ficou pra mim sobre esse tema do vínculo? Como profissional da
saúde, a gente passou várias horas pensando refletindo sobre o vínculo, de
maneira bem diferente, trazendo elementos da imaginação pra pensar:
vínculo como caminho, como ponte, vínculo como papel, como mãos, ora o
vínculo era um obstáculo, e obstáculos como parede, pedras, boi, e também,
era um aliado que apreciam como as mãos da equipe, uma corda, um amigo,
a ajuda do marido, dos pais ou de pessoas desconhecidas. Tudo isso trouxe
simbolismos, trouxe psra nós formas diferentes para pensar como vivemos o
vínculo dentro da profissão de saúde na ESF. Como foi para cada um viver
isso, e o que, ao final, ficou desse percurso para nós?
Conversamos sobre isso de forma muito alegre, aberta e celebrativa. Após
escutar, transcrever, ler e reler o que produzimos neste último encontro, resolvi
apresenta-lo em forma de Carta. Eu apenas fiz alguns recortes para tornar o texto
mais fluido na leitura. E também organizei dando uma lógica para as ideias que
emergiram da fala de todos. Redigi em terceira pessoa. Apresento o resultado como
uma carta aberta escrita por um coletivo em que expressamos nosso aprendizado
depois de um trabalho conjunto de refletir e produzir ideias, novas e velhas, sobre
o vínculo. A carta está impregnada de palavras-confetos, conceitos misturados com afeto,
como fala Gauthier (1999), sobre o vínculo, e finaliza esse percurso que fiz junto
com o GP de Tauá.
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Nós profissionais de saúde do Centro de Saúde da Família de Inhamuns, no distrito
de Vera Cruz, município de Tauá, ao final desse percurso em que vivemos e
sentimos o vínculo na ESF do SUS, consideramos que:
Esse percurso foi de conhecimento e de aprendizado, e foi também de esclarecimento. O vínculo era
algo que estava presente em nosso dia a dia, mas de qualquer forma, era um pouco desconhecido,
ninguém aqui nunca tinha parado para ver a importância dessa palavra. Era um assunto que a
gente não debatia não conversava, mas que a gente sabia que tinha que existir. E o seu significado
ia muito mais além do que a palavra.
O percurso foi de uma importância que não tínhamos imaginado. O vínculo deve estar presente,
deve ser levado em consideração minuciosamente porque é enriquecedor, é indispensável no nosso
trabalho para dar bons resultados. O vínculo pode ser enriquecido e facilitado de uma forma para
não ser esquecido e ir mais além. É preciso concretizar o vínculo que estava escondido na medida
que passemos a utiliza-lo e a trabalha-lo. Agora que temos conhecimento podemos trabalhar isso,
abrir caminhos, abrir essa vereda.
Aprendemos que o vínculo pode ser utilizado não só na facilidade. Percebemos ele dentro
dificuldade, quando a pessoa está um pouco recuada, em sua forma de ser resistente, difícil de
dialogar, de ser mais fechada, vimos que o vínculo cabe aí também. Podemos abrir caminhos, abrir
essa vereda que, embora esteja fechada, podemos deixar ela aberta. Com esse conhecimento,
enquanto profissionais, podemos enxergar essa dificuldade como verde, e podemos deixa-la mais
colorida e facilitar chegarmos até as pessoas, e nos vincularmos a elas não só na facilidade, mas
também no obstáculo.
Percorrer o caminho foi algo inovador para todos nós. Foi um momento em que a gente olhou pra o
nosso eu, para o nosso interior, a gente se reconheceu, nossos posicionamentos, nossos sentimentos
que trazemos no nosso dia-a-dia! Às vezes, a gente está aqui de forma muito mecânica. Quando a
gente trouxe não só o vínculo-legal, o lado do amor, mas também, o vínculo-muro, o vínculo-
parede. Não adianta trabalharmos em um ambiente onde a gente só se vincula àquele que pensa
igual e que age do mesmo jeito que eu. Nesse sentido é muito fácil! Aprendemos que temos também
um vínculo com aquela pessoa que pensa diferente, e não é porque pensa diferente de mim que
vamos excluir, que não vamos dá a mesma importância.
Para nós profissionais que não moramos na localidade, reconhecemos que aquele vínculo de
sentimento e de propriedade do ACS e dos funcionários que moram aqui é diferente. Nós, que não
moramos aqui, não temos aquele vínculo de amizade de parentesco, o vínculo da convivência. Mas
reconhecemos que a gente precisa trazer de casa o que temos de bom. Precisamos ir para um
ambiente de trabalho em que a gente se alegre com a alegria do doutro, em que a gente se entristeça,
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também, com a angústia do outro. Mesmo que não sejamos daquele meio, mas se conseguimos
adentrar e permanecer, isso é realmente por causa do vínculo.
Não é por conta da situação econômica, status profissional, ninguém vive só disso! Percebemos que
quando escolhemos permanecer nesse trabalho na atenção primária, e assumimos a
responsabilidade de conhecer a população e ter um vínculo com ela, é porque, fomos tocados,
sensibilizados no nosso eu interior.
Alguns profissionais tem o vínculo enraizado, por conta do convívio, o vínculo é enraizado pela
convivência. Mas a questão que tocou também do vínculo, não é ser amiga de fulaninha, não é
conhecer cicrano e saber dos problemas e tal... mas o vínculo é bem mais abrangente, ele vai além, é
o vínculo geral com todo mundo.
O vínculo precisa ser visto em seu verdadeiro significado, porque o vínculo tanto pode ser usado de
forma honesta, mas também, como forma de beneficiar a outrem, sem importar as barreiras, sem
importar os limites, sem importar as regras!
O vínculo pode ser usado de forma honesta, para beneficiar, para enriquecer, para melhorar a
produtividade no trabalho. Mas também, pode ser visto de outro ângulo. Quando há proximidade,
por questão da convivência, aí não devemos confundir as coisas! Porque quando temos esse olhar do
que é o vínculo, nessa hora, eu vou usar o vínculo e vou esclarecer para as pessoas, reconhecendo
que não é obrigado a ceder. Não é obrigado a concordar com a visão daquela pessoa (usuário) que
veio até nós, e por ter um vínculo, acharmos que podemos agir dessa ou de outra maneira.
Reconhecemos que não estamos quebrando o vínculo com isso!
Existe o vínculo da convivência e o vínculo profissional. Uma coisa pode potencializar a outra, ou
o vínculo da convivência pode também destruir uma forma de funcionamento com regras. Muitas
vezes, o vínculo fica restrito. A gente restringe o vínculo ao vínculo da convivência. O vínculo da
convivência é importante, mas o vínculo profissional com a comunidade não deve destruir o vínculo
da convivência. Tampouco, o vínculo da convivência destruir a forma como o trabalho deve ser.
Porque o trabalho é para todos, é coletivo, não é para um, ou outro.
Compreendermos isso falando do assunto. É uma compreensão que vem do coração e também da
cabeça. É uma compreensão que ajuda a diferenciar as formas de se vincular, sem confundir. Sem
achar também que só porque você não mora aqui, você não precisa do vínculo com a comunidade,
porque o vínculo de convivência e o vínculo profissional tem a mesma importância.
Aprendemos que é preciso desassociar a imagem de vínculo com a amizade como favoritismo. O
vínculo envolve também confiança, a negociação, tudo isso tá junto. Não podemos trabalhar com o
vínculo se só quisermos agradar ao próximo porque tem a necessidade do dia-a-dia, tem essa parte
do dever. Temos que entender o trabalho de cada amigo, a parceria que temos e termos a
compreensão. Acontece não só aqui, mas em todo canto, quando dizem “Ah! vamos dá um
jeitinho!” Não! Vamos olhar primeiro a necessidade, vamos olhar as prioridades.
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Antigamente tínhamos esse problema do favoritismo, mas hoje, com essas Conferencias de Saúde,
isso foi mudando. Mas ainda temos as impregnações. Tem pessoas que não tem a humildade de
dizer que não sabe responder! Tem gente que faz questão de dizer o não! E acontece, outras vezes,
de se chegar uma pessoa que se conhece e se relaciona bem, ou mesmo, se foi com a cara, toma a
frente de todo mundo que está na fila pra marcar, porque é uma amiga! Quando o não é
respeitoso, cabe dentro do vínculo, esse vínculo não é quebrado. Se você dá outro tipo de não, que
não é respeitoso, ele não tá dentro do vínculo, ele tá dentro de um favoritismo que não respeita!
Essa compreensão de que o vínculo que eu tenho com você não torna você mais humano ou melhor
do que outro humano é um processo para o outro entender. Não diminui de jeito nenhum o bem
querer. Por exemplo, eu quero muito bem a você, e muito mais do que a uma pessoa que não
conheço! Mas não podemos fazer um ser melhor do que o outro que eu não conheço. O vínculo aqui
vai para além da convivência e do conhecimento. O vínculo é aquilo que nos iguala como humanos,
nós somos todos humanos. Você, como humano, tem a mesma importância que qualquer outro
humano, não importa que você seja um conhecido, primo, amigo.
Falar de vínculo é também falar de nepotismo, favoritismo. Porque passa por isso, passa pelo
coração, não é uma regra. No momento que isso vira regra, e é vínculo só de sim, derruba a regra.
Um vínculo só de sim derruba qualquer regra!
Reconhecemos o valor das regras porque a partir do momento em que você se cobra, vira
banalidade e não dá prazer em fazer! Então é gostoso quando você faz com regra e que você é
cobrado. Aprendemos a gostar e a valorizar as regras.
O percurso foi maravilhoso, viemos empolgados pelo tema e pela forma com ia ser conduzido, pela
forma de fazer essa pesquisa, diferente radicalmente de todas as outras que a gente conhece. A
metodologia em si foi maravilhosa. Esse tempo todo, ela nos fez resignificar posturas, resignificar o
que tem realmente relevância na vida, repensar as práticas! Existem coisas que, às vezes, são tão
pequenas e que a gente nunca tinha parado pra pensar o quanto é importante as pessoas para as
nossas vidas, e o quanto a gente é importante na vida dos outros.
Aprendemos também a se empoderar do respeito. Às vezes, as pessoas gostam de usar do pouco
poder que tem para fazer nepotismo, ultrapassar as regras e confundem tudo. Um amigo de
verdade, ele não quebra as regras. E quando tem que dizer e não concordar com o que o outro diz,
deve também dizer o porquê. Quando a gente tem alguém como amigo é porque a gente gosta, é
afinidade, eu quero bem. E se eu quero bem, eu não vou, por exemplo, automedicar ninguém, e
sim vou fazer com que essa pessoa compreenda, sem sair da posição do bem querer, e dar um não,
um não com elegância, dizendo de forma compreensiva. Outras vezes, podemos acolher e nem
atender o que o outro veio demandar, porque as limitações nos impedem, mas a forma como
dizemos o não, também, pode fazer ela sair satisfeita.
~ 343 ~
Esse percurso nos ajudou a compreender e pensarmos mais que não estamos aqui para agradar a
todo mundo e nem viver só as mil maravilhas. A vida é uma dialética que a gente tem que
aprender com sabores e dissabores. Isso faz a gente amadurecer. Agradecer minuciosamente todo
dia, todas as coisas e, ao final da tarde, pedir mais perseverança e sabedoria, para, no dia seguinte,
tentarmos ser melhor do que fomos.
Esse percurso mexeu com a gente, inspirou mais, incentivou a abraçar mais! Particularmente
aprendi isso, por exemplo, a noite, em minha casa, costumamos fazer oração agradecer a Deus, eu,
meu marido e meus dois filhos, e eles dizem: “bença mamãe”, eu respondia: “Deus te abençoe meu
amor”. E depois dava o abraço e pronto! Mas hoje é indispensável eu dizer assim: “eu já lhe disse
que lhe amava hoje? Não! Pois a mamãe tá dizendo agora, eu te amo muito meu filho!” Então
aquele lado que nós trouxemos, a parte sentimental, isso fortaleceu bastante a gente! E que à
medida que a gente pratica isso, dia-a-dia, no nosso lar isso alimenta para o nosso serviço também,
isso alimenta a nossa vida profissional e nos traz leveza no trabalho.
A recompensa do nosso trabalho não vem de imediato com o salário, mas é com o carinho dos
outros, com o respeito! Quando escutamos das pessoas: “há quanto tempo, eu estava com saudades
nunca mais você foi na minha casa pra gente tomar um café”. Eu digo: “vale a pena todos os
dissabores que a passamos no dia-a-dia no sol quente! Isso não tem dinheiro que pague!” Isso
fortalece o espírito, a alma, e a gente vai a entendendo que, por mais angustiante que sejam alguns
momentos, a nossa postura faz a diferença.
Houve um alguém que há muitos e muitos anos disse assim: “nem só de pão vive o homem, mas
das palavras!” Essas são palavras de uma pessoa que veio falar de Amor. Não é no sentido de
dizer que dinheiro não é suficiente. É porque, na verdade, o dinheiro é outra coisa, embora seja
importante também. Mas, a gratidão, o reconhecimento entre os humanos, ele é fundamental para
nós, como pessoas e como profissionais. Como pessoas, na nossa família, nos reconhecermos, e como
profissionais também, no dia-a-dia de trabalho, é preciso reconhecer o trabalho do outro, porque,
tem o lado técnico de cobrar, e o lado humano de reconhecer e ser grato ao outro. E o lado humano
fica esquecido, e é ele que fortalece nossos laços.
Em um vínculo cabe um sim, e cabe um não! Um vínculo que só cabe um sim, é um vínculo
distorcido, é um vínculo que tá tirando a humanidade, tá beneficiando só um, tá tornando a
humanidade de um, melhor do que a do outro! Porque no momento em que dizeos sim para uma
determinada pessoa dando um favoritismo ou um privilégio, estamos tornando essa humanidade
melhor que várias outras! Esse tipo de vínculo tem repercussão dentro das equipes de saúde da
família.
Você pode ser um ótimo profissional, saber dar injeção como ninguém saber fazer uma vacina,
uma prevenção, uma consulta de maneira maravilhosa, mas não é só isso! É preciso o reconhecer
do outro como humano. A gratidão humana ela não é algo pra ser relegado, é algo pra ser vivido, é
pra ser tirado de dentro do coração e é pra ser exposto. No momento que fazemos isso vamos nos
~ 344 ~
humanizando. Isso é algo que aprendemos com o vínculo de sim e de não. Existe o sim e o não pra
que possamos estabelecer relações respeitosas humanas e igualitárias.
Tem uma frase que dizia que quando nós amamos alguém apenas pela utilidade que ele tem,
então, futuramente esse amor morrerá! Então, é como o vínculo, se for apenas por causa de alguma
utilidade, não tem como ser vínculo verdadeiro, não tem como funcionar.
Acreditamos que esse processo que nós passamos de nos aproximarmos mais uns dos outros, e na
nossa equipe já tem essa proximidade, a gente se entende muito bem! E tanto é assim que na
despedida do médico foi difícil! Isso que foi criado entre a equipe e o doutor não foi simplesmente
pela utilidade que ele tinha, mas pela pessoa. A gente sente que ele ficou aqui, embora ele não
esteja aqui ele está presente!
Muitas vezes a questão do vínculo se torna característica de uma equipe. Foi isso que me chamou
atenção aqui quando escolhi vir trabalhar aqui. O que me chamou a atenção foi essa proximidade,
todos que passaram por aqui falaram bem e definiam muito bem cada um. O vínculo também
atrai ele traz as pessoas para você.
O vínculo ele traz um bem-querer e, muitas vezes, é um bem-querer que surge e que fica difícil na
hora de se despedir. O vínculo de sim e de não! E quando é o sim, precisa ser dito o bem querer
também. Porque não estamos acostumados a trazer as emoções, os sentimentos, sejam positivos ou
negativos, para dentro do trabalho. Se demonstramos o bem-querer por alguém no trabalho, isso
pode até ficar mal visto. Mas nós somos humanos, o bem querer faz parte da nossa vida. E se vai
ter uma despedida, faz parte também da vida, uma despedida com elegância. E se a pessoa tem
que sair, ela precisa saber que foi importante, que merece lágrimas, isso também faz bem para
pessoa. Mas, às vezes, a gente não se permite chorar! E porque não se pode chorar?! Quem foi que
disse que não podemos dizer para o outro que estamos sofrendo porque ele vai embora, e dizer o
quanto ele foi importante!? Quando fomos agradecer ao doutor achamos mesmo que aquilo deveria
ser dito. Tem hora que precisamos dizer, embora que doa, mas precisamos dizer! É gostoso
homenagear!!
Um vínculo que cabe o sim e o não permite que os processos de trabalho sejam respeitosos e nos
iguale como os seres humanos que somos, não importa as diferenças. Entendendo que algumas
diferenças são importantes como a idade, a gravidade da doença que a pessoa tem. É quando a
gente tem que dizer, “você que é mais idoso pode ir na frente!” Esse é o favoritismo que tem que
ter, mas não é um favoritismo que tira o direito do outro. Ele tem que se adequar a cada setor!
Essa pesquisa nos possibilitou isso e nos fez ver que precisamos ter esses momentos. A gente cria
momentos, espaço e tempo para falar sobre vacinas, sobre as metas a serem alcançadas, mas que a
gente tenha o tempo também para falar o que a gente pensa, sente, deseja, e o que a gente pode
fazer de forma humana. Agimos de forma muito mecânica, como se não fôssemos humanos e nos
acostumamos tanto que tratamos o outro da mesma forma como está sendo tratado.
~ 345 ~
O vínculo é um tema que merece ser discutido e não só aqui! É todo mundo em círculo, porque
percebemos nitidamente investimentos muito alto dentro do município, muitos cursos, mas que
ainda falta muito toque humano, muito! E não é o dinheiro, por maior que se ja o salário, não é o
salário que vai multiplicar, é o lado tocante dentro do teu coração. O lado humano da pessoa.
O vínculo deveria ser um tema para equipe tratar cotidianamente, ter esses momentos de falar do
coração de forma verdadeira, do que sente, do que pensa. Quando falamos assim, aprendemos a
conviver melhor, a respeitar as diferenças e a fazer muitas outras coisas bacanas, conjuntamente, já
que o trabalho não é de uma pessoa, é de uma equipe.
E que se trabalhe isso nas outras equipes. Não costumamos parar pra pensar sobre tudo isso! E
termos feito esta viagem, e termos parado pra ver o que estamos fazendo e o que estamos levando
uns para os outros foi muito bom. Estamos muito gratos, muito felizes por termos vivenciado esses
momentos. É muito importante como tudo isso foi expandido de forma assim tão linda!
~ 346 ~
3.3. O Vínculo, humano vínculo, no Sistema Único de Saúde .
A viagem não começa quando se percorre distâncias, mas quando se atravessa as nossas fronteiras interiores.
(Mia Couto).
Após percorrer este caminho com o GP nenhum de nós éramos os
mesmos! O conhecimento gerado pelo diálogo transdisciplinar alimentado pela
vivência e pelo compartilhar das experiências da prática de cada um fez emergir
saberes sobre o vínculo na ESF do SUS que nos impregnou a todos,
redimensionando nossa visão e, consequentemente, nossa ação no mundo de
forma ampla, ou seja, não somente no âmbito profissional, uma vez que o vínculo
envolve um saber relacional sistêmico, e está presente em todos os âmbitos da vida
humana.
O diálogo sobre o vínculo e seus desdobramentos na ESF do SUS trouxe
para a luz da consciência novos significados e sentidos para ação dos profissionais
alumiando o circuito do vínculo na ESF. Percebi que o caminho que percorri com
o GP acenderam luzes suficientes para delinear algumas dimensões específicas do
fenômeno que se desdobram articulados aos circuitos entrelaçados que integram o
ecossistema no nível da atenção primária à saúde. Seria possível doravante cumprir
minha tarefa de percorrer o circuito do vínculo alumiado pelos passos que
avançamos juntos no GP e sistematizar uma compreensão sobre o vínculo em sua
multidimensionalidade, fazendo conexões, cruzamentos, costuras entre as
produções oriundas deste diálogo transdisciplinar que empreendi.
Esta tarefa realizei com um trabalho de Bricolagem. Rampazo e Ichikawa
(2009) apresentam e discutem esta ideia na pesquisa em ciências sociais. Segundo as
autoras foi Lèvi-Strauss o primeiro a se utilizar do termo, emprestado do idioma
francês, para referir-se a um tipo de pensar/conhecer, até então, chamado de
primitivo ou selvagem. Elas esclarecem que o ponto de partida do antropólogo era
combater a noção em voga de que o conhecimento dos povos considerados
~ 347 ~
“primitivos” se produzia somente a partir de uma razão prática. O autor chama de
“pensamento selvagem” o pensar que surge em função da necessidade de dar uma
ordem a uma dada sociedade. Para Lèvi-Strauss o conhecimento é ordenador do
universo. Essa é a função dos ritos, dos mitos que se traduzem como formas
sistematizadas da observação e reflexão sobre a exploração especulativa do mundo
sensível. É no esforço de compreender este tipo de pensamento que o antropólogo
propõe a bricolagem, esclarecem as autoras.
As autoras esclarecem que para Lèvi-Strauss, mesmo antes do rigor
científico próprio da ciência moderna, o ser humano já construía um saber
sistemático fruto de suas observações e experimentações, sendo que foi justamente
este conhecimento que sustentou e deu origem à ciência moderna. Observar,
classificar, testar, categorizar são atos presentes na vida humana há séculos, e
equivocado seria achar que tais formas de organização do pensamento surgem com
a ciência moderna. Para o antropólogo, tanto o pensamento primitivo quando o
pensar da ciência moderna usam operações mentais e métodos de observação
semelhantes, e ambos produzem conhecimento, apenas de forma diferente.
Desta forma Lèvi-Strauss aponta para dois tipos de pensamento científico.
Um amarrado à intuição sensível e à curiosidade, que ele chama de ciência primeira,
e o outro mais afastado dela. É em referência a esse pensar guiado mais pela
intuição e pela vontade de conhecer que ele usa o termo bricolage.
Segundo Rampazo e Ichikawa no sentido moderno da palavra bricolage tem
relação com trabalhos manuais, com a ação de juntar diferentes elementos e ferramentas à
disposição formando algo novo, sem qualquer planejamento. É o mesmo que o „handyman‟ do
vocabulário inglês, que usa materiais e ferramentas diversas que inicialmente não se relacional,
mas que em suas mãos, de forma intuitiva, se transformam ou criam outro objeto. (RAMPAZO;
ICHIKAWA, 2009, p. 3). Assim, por exemplo, é possível fazer analogias entre
maçãs e bananas buscando nos conceitos físicos e químicos o que é comum entre
as frutas. Se a análise for feita com o uso da bricolage busca-se a analogia nos
signos que falam “por meio das coisas” e que são particulares a um contexto
~ 348 ~
específico, usam-se os signos fazendo analogias e aproximações lançando mão da
criatividade.
Na bricolage a tarefa é trabalhar nos limites do conhecimento fazendo
conexões, não apenas juntando partes, ou coisas variadas em dada categoria, mas
conectando e criando algo novo a partir do contexto da pesquisa. Rampazo e
Ichikawa reconhecem que é um equívoco buscar compreender fenômenos
complexos a partir de uma visão unidisciplinar, sendo a interdisciplinaridade a
marca do trabalho com bricolage. Para uma análise bricoleur o fenômeno em questão
não é retirado do seu contexto social, cultural e histórico, e a subjetividade não é
determinada ou subsumida pela estrutura social, mas integrada de maneira intricada.
É um tipo de análise que rejeita estudo monológico, linear baseado no
conhecimento racional fincado na ordem e na certeza, onde a vida humana é
reduzida a uma dimensão objetiva e universalizante.
A bricolage permite caminhar na fronteira e fazer conexões no sentido de
criar o novo, novas formas de ver os fenômenos da realidade. Para as autoras cada
pesquisador irá descobrir e montar seus esquemas e modelos conforme o contexto da sua pesquisa e
sua própria história como pesquisador. Parece-nos que a bricolage em ciência, devido às suas
características, não deixa também de ser arte, no sentido de estimular o uso da criatividade..
(RAMPAZO; ICHIKAWA, 2009, p. 10).
Outra publicação “Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como
alternativa para a Pesquisa Educacional”, artigo escrito por Neira e Lippi (2012),
define a bricolagem como uma articulação de vários elementos culturais que
resultam em algo novo (NEIRA; LIPPI, 2012). Segundo os autores é a
epistemologia da complexidade que nos permite compreender a bricolagem, cuja
pretensão não é desvelar possíveis verdades escondidas, e sim, buscar compreender
a sua construção e questionar sua produção pelos diversos atores sociais que as
reproduzem, em função de um discurso hegemônico.
~ 349 ~
Na bricolagem não cabe separação entre fenômeno e contexto, e a
interpretação deve imbricar-se com a dinâmica social que tece e molda os
fenômenos, esclarecem os autores. Segundo eles, o bricoleur interpretativo entende que a
pesquisa é um processo interativo influenciado pela história pessoal, biografia, gênero, classe social e
etnia, dele e daquelas pessoas que fazem parte do cenário investigado. O produto final é um
conjunto de imagens mutáveis e interligadas. (NEIRA; LIPPI, 2012, p. 611). O ato
interpretativo, em função do qual deve se encharcar um bricoleur interpretativo é a
hermenêutica crítica em seu diálogo com a Teoria Crítica, argumentam os autores.
Sigo agora com o trabalho de fazer bricolagens. Minha tarefa é de tecelã
que para mim implica na arte de costurar ideias, as quais fui encontrando pelo
caminho que empreendi para compreender vínculo dialogando com os mais
diversos campos de saber, tanto aqueles oriundos da academia, quanto os saberes
fruto das vivências, da imaginação traduzida em metáforas e das narrativas
coletivas, cujos significados e sentidos avivavam o cenário com o qual me deparei
quando adentrei o Portal do CSF de Inhamuns. Sigo revisitando, ampliando,
reafirmando, resignificando e articulando esses saberes diversos, transdisciplinares,
multireferencializados, a serem integrados em uma moldura que traduza os sentidos
do vínculo entrelaçados aos demais circuitos que integram os serviços de atenção
primária do SUS.
O que apresento agora é um tecido entrelaçado pelo aprendizado, fruto de
todo esse percurso que empreendi para compreender o vínculo como um
fenômeno complexo que se desdobra do entremeio entre os serviços de saúde da
ESF e a população. Os desdobramentos do fenômeno neste ecossistema trazem
dimensões específicas que se articulam aos demais circuitos que integram a
organização dos serviços, próprios deste nível de atenção à saúde, e me fazem hoje,
compreender melhor os desafios da mudança paradigmática que exige a
consolidação da ESF como modelo de atenção primária em saúde enquanto
estratégia de organização dos serviços de saúde para o SUS.
~ 350 ~
A dupla pulsação do vínculo como fator gerador de consciência ética
O vínculo entre os profissionais e usuários, como fenômeno relacional
sistêmico, se efetiva evidenciando uma dupla pulsação. O vínculo-caminho é tanto
livre, verde, largo e aberto, quanto também, deserto, estreito, pedregoso. O que faz
dele caminho verde é a comunicação e o diálogo, somados ao engajamento de
profissionais e cidadãos da comunidade. Mas pode ser caminho deserto, difícil de
andar, quando cada um trabalha de forma individual e não existe comunicação; é
deserto porque é mecânico, limitado, quando há resistência para o novo.
O vínculo-ponte é um tanto inseguro quando a população tem medo que a
equipe se apresente fechada à conversação, quando falta a confiança e há um
permissivismo, quando o técnico se sobrepõe ao subjetivo. Por outro lado é
vínculo-ponte segura quando existe confiança em si e no outro, e o respeito é
mútuo. O vínculo deve ser concreto, expresso quando o serviço oferece algo
concreto em termos de cuidado, que faz do espaço institucional, um lugar acessível,
alegre e acolhedor.
Há uma pulsação pendular que expressa o vínculo no entremeio revelando-
o como um caminho de mão dupla, em ambos os lados do pêndulo. De um lado,
uma pulsação obstáculo revelada quando a relação entre profissionais e usuários se
torna paralisante, quando é difícil lidar com a dependência, quando as informações
são distorcidas, a relação distanciada, quando o papel vale mais que a fala do outro,
um não acredita no outro, porque não se vêm como pessoas humanas. Por outro
lado, também, o vínculo pode ser vivido como aliado na medida da cooperação
mútua, que se instaura na segurança e confiança das orientações que oportuniza
uma aprendizagem, também, mútua, porque os serviços e as orientações são feitas
com alguém e não para alguém.
É uma pulsação de mão dupla porque exige um reconhecimento mútuo,
que se revela no incentivo, na parceria, entendida como uma corda que puxa uns
~ 351 ~
aos outros quando a abertura ao diálogo abre espaço para um conselho que tira o
outro da lamentação e o direciona para ação. Quando também há parceria entre os
colegas de trabalho e o problema de um, é sentido e tratado como problema de
todos, do território e da equipe.
Os lugares geomíticos com suas pontes, caminhos, obstáculos e aliados nos
permitiu construir metáforas que foram âncoras para trazer à luz da consciência,
sentimentos que estavam na sombra e nomear os sentimentos presentes nos
diversos modos de vinculação entre a comunidade e os profissionais, e destes, entre
si. Revisitando as ideias de Dalmásio quando afirma que apenas conhecemos um
sentimento quando tomamos consciência dos conteúdos de tais sentimentos,
precisamos reconhecer que a consciência precisa se fazer presente, e sendo assim,
esta é uma tarefa humana, exclusivamente humana, e eminentemente, humanizante.
Não por acaso quando alguém considera os sentimentos de si ou de outrem,
costumamos a ela nos referir, como humana, “ele ou ela foi muito humano naquele
momento”.
Há deshumanização quando os sentimentos são desconsiderados, contudo
sem a presença da consciência não acessamos as emoções revestindo-as de
significado de modo a nos permitir conhecer os sentimentos, por meio de um jogo
complexo de emocionar/pensar/sentir. Trazer os sentimentos à luz é parte do
processo de humanização, e se torna condição para humanização dos serviços.
A imaginação ampliou a nossa percepção e permitiu evocar, reviver,
resignificar experiências molhadas de emoções e sentimentos. Como diz Morin,
cada um de nós, como humanos, vivemos para si e para o outro de maneira
dialógica, isto é, temos um duplo programa, egoísta e altruísta, de cuja dialógica
nasce o sujeito. Segundo as palavras do autor ser sujeito é associar egoísmo e altruísmo.
Todo olhar sobre a ética deve reconhecer o aspecto vital do egocentrismo assim como a
potencialidade fundamental do desenvolvimento do altruísmo. (MORIN, 2011, p. 21). A dupla
pulsação do vínculo tem sua configuração advinda deste duplo programa, no qual o
sujeito é forjado.
~ 352 ~
Colocar os sentimentos em palavras, falar do que se sente no espaço de
construção dos serviços de saúde é uma forma de construir serviços humanizados,
e os sentimentos se presentificam nas diversas formas de vinculação humana.
Dalmásio nos fala do necessário trabalho realizado pelo cérebro humano na
transformação da simpatia em empatia. Ser simpático está relacionado à capacidade
de ser sorridente e agradável com o outro. Contudo, a empatia é mais exigente e
requer a capacidade de sair de si e se colocar no lugar do outro, exige uma operação
cognitiva em que participam ativamente a emoção, o sentimento e o pensamento.
Isso nos revela que um serviço humanizado de saúde deve se basear não somente
na simpatia, na cordialidade, mas deve colaborar e criar caminhos para desenvolver
a capacidade de empatia, capacidade humana mais sofisticada e exigente.
As vivências possibilitadas pelas oficinas ao GP permitiram aos
profissionais sair do automatismo mecânico que a rotina cotidiana nos faz imergir,
e trazer para a consciência experiências diárias quando trouxe à tona, sentimentos e
emoções em que, por meio da afetividade, foi possível perceber os fios que
vinculam uns aos outros, e resignificar as experiências do cotidiano de trabalho. A
afetividade está relacionada à nossa capacidade inata para agregar-se a nossa própria
espécie, e será tanto mais exitosa quando direcionada para cooperação e
solidariedade uns com os outros.
Toro nos fala de uma afetividade desdobrada em três níveis de vinculação:
consigo, como o outro (alteridade/coletividade) e com todo (espécie/ natureza).
Esses níveis não se expressam em graus de maior/menor, intenso/fraco,
pouco/muito, tampouco, se excluem ou se alternam, mas se integram numa
dialógica em que um se desdobra do outro e o potencializa. E é dessa dialógica que
nasce a empatia, a solidariedade, a cooperação.
As narrativas nos revelam dimensões do vínculo em termos de sentimentos,
de valores que fundamentam as condutas éticas. Percebi as diversas dimensões do
vínculo por meio das narrativas que continham experiências vividas, mas não
analisadas na perspectiva do vínculo pelos profissionais que o vivenciam
~ 353 ~
cotidianamente. E quando o fizemos, por meio do percurso metodológico da
pesquisa, evidenciamos a conduta ética, indispensável para cuidado em saúde e as
práticas humanizadas do SUS por meio da afetividade. Foi por meio da afetividade
que a conduta ética tomando contornos visíveis para o grupo.
3.3.1. Vínculo, autonomia e responsabilização na ESF.
Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém.
(Paulo Freire)
Autonomia e responsabilização são palavras que integram o amálgama
semântico que encontrei na literatura. A narrativa da Solidariedade oportuniza refletir
sobre a questão da autonomia e da responsabilização tocando o delicado fio que articula
ambos os aspectos da relação no nível da atenção primária. Tais palavras não são
sinônimos, ou substitutos para o vínculo, mas se intercruzam na sua tessitura, e
podemos perceber a dialógica que há entre elas, expressa em antagonismos que se
apresentam quando a autonomia toca e implica a dependência.
O desenrolar da história Solidariedade nos mostra que a Senhora com
suspeita de CA longe estaria de ser considerada uma pessoa dependente. O fato de
morar sozinha revela uma capacidade de auto-cuidado e independência. A leitura
do caso feito pela equipe percebendo-a como uma paciente restrita ao município nos
revela que a autonomia é relativa. A equipe se somou formando uma rede de apoio
que possibilitou um alargamento do cuidado em função do conhecimento sobre a
história de vida da paciente, relatada pela agente de saúde à equipe, colaborando
assim, para que a equipe se responsabilizasse e se mobilizasse para resolutividade
do caso. Possibilitou também, que a Senhora aceitasse o tratamento que deveria ser
feito em outro nível de atenção da rede do SUS, em Fortaleza. Não havia recusa ou
limitação por parte da senhora que nunca havia saído de Tauá, e por sua idade
avançada, não se sentia em condições de prosseguir na rede com o tratamento sem
~ 354 ~
um acompanhamento de perto que, no caso, foi feito pela agente de saúde e o
médico da equipe.
A visão que dicotomiza os conceitos de dependência/independência é
superada a partir da visão sistêmica quando Morin articula estes conceitos a partir
da noção de “auto-eco-organização”. Ele apresenta esta ideia explicando que a
auto-organização significa obviamente autonomia, mas um sistema auto-
organizador é um sistema que deve trabalhar para construir e reconstruir sua
autonomia e que, portanto, dilapida energia. (MORIN, 1996). Assim é que, para ser
autônomo, é preciso depender do meio externo. E mais, trata-se de uma radical
dependência, não apenas energética, mas também, informativa e organizacional.
Morin explica que para ser autônomo precisa-se depender do meio externo, ou seja,
articulado ao oikos, nenhum sistema vivo possui 100% de autonomia, a qual só
pode ser entendida plenamente, em seu desdobramento de dependência.
Considerar a possibilidade de existência de uma autonomia total se transforma em
um pensamento delirante, elucida Morin.
A autonomia da paciente era relativa, como sugere o uso da palavra “restrita
ao município”. Com a ajuda da equipe foi possível alargar essa autonomia pelo
reconhecimento da dependência, dos limites que a Senhora tinha em termos de
deslocamento para outra cidade, em função do contexto de sua vida. Sem um olhar
sistêmico, rapidamente, se poderia enquadrar a ajuda necessária a resolutividade do
caso como total dependência do usuário à equipe, que precisou acompanha-la à
Fortaleza. E caberia também um questionamento da pertinência da atitude da
equipe no desempenho de suas funções no que diz respeito aos limites.
É nesta perspectiva que é possível compreender mais apuradamente a
complexa relação entre vínculo e autonomia e se afastar do equívoco de considerar
a autonomia das pessoas somente em função da ação dos profissionais, traduzido
no pressuposto que as pessoas são, a priori, dependentes do sistema, e que cabe aos
profissionais trabalhar para que sejam mais autônomos em termos do
(auto)cuidado. O que cabe aos profissionais de saúde longe está de se
~ 355 ~
responsabilizar por esta autonomia. Sua tarefa é se posicionar adequadamente
frente às pessoas em seus variados graus de autonomia de vida, de maneira a
favorecer a longitudinalidade do cuidado de acordo com os aspectos que a situação
requer. Há variados graus de autonomia que se relativizam em função do ciclo de
vida, do contexto cultural, social, econômico e emocional das pessoas. Se
posicionar em relação a isso de maneira pró-ativa requer sensibilidade e
compreensão, e disso decorre a longitudinalidade do cuidado como função da
atenção primária em saúde.
Perceber e lidar com a dependência respeitando os limites do vínculo
próprio do circuito da atenção primária, é algo extremamente delicado e exigente
para os profissionais de saúde, porque requer lidar com seus próprios limites e
frustrações. Desarticulada do oikos, da auto-eco-organização, não é possível lidar
com esses aspectos relacionais de forma saudável e sugerir encaminhamentos
coerentes na rede de atenção, de modo a garantir a longitudinalidade do cuidado.
Sobre esse ponto evoco agora um acontecimento específico ocorrido
durante as oficinas com o GP. Algumas aconteceram no próprio espaço do CSF de
Inhamuns, e durante uma delas, chegou uma jovem moça no CSF precisando de
atendimento, e o médico saiu da oficina para prestar o serviço. Logo começou a
circular alguns comentários que aquela moça estava quase todos os dias por ali
precisando de atendimento, que ela era uma paciente que vinha à CSF quase todos
os dias, quer precisasse ou não. Ao final dos trabalhos, fiquei conversando com o
médico sobre esse ocorrido. Retomei o assunto, pedindo permissão para gravar,
embora já tivesse concluído a oficina, como mais uma contribuição para pesquisa.
Perguntei a ele como se sentiu em relação ao caso, uma vez que os demais
profissionais que estavam no GP haviam me compartilhado que se tratava de uma
pessoa que estava ali todos os dias em busca de cuidados. Um fragmento da nossa
conversa revela alguns parâmetros que revela a dificuldade e delicadeza para lidar
com a dependência/autonomia, e os sentimentos que são acionados na vinculação
com outro.
~ 356 ~
Eu gostaria de ter o poder de resolver todos os problemas. Eu me sinto frustrado. É um caso que demanda uma equipe multi, não somente médico, enfermeiro. Precisa de suporte de assistente social psicólogo... eu não tenho isso. É como se todo peso da responsabilidade tivesse em minhas costas. Eu não tento resolver. Eu tento acolher porque não é uma receita que vai solucionar. Acolho respeitosamente, atenciosamente na medida do meu possível, mas é frustrante, é uma carga que sobra pra gente, a gente médico, porque não temos uma boa estrutura de rede de atenção, mas te digo mais, não é questão de rede, é questão de formação, a gente não é formado pra lidar com vínculos não. Nessa faculdade a gente não tem uma formação de como lidar com os vínculos até que ponto os vínculos são sadios, eu não sei até que ponto um vínculo como esse pode ser, essa dependência afetiva pode estar presente em nosso trabalho no dia a dia porque a gente sabe que é uma pessoa que tá todo santo dia naquela lugar, naquela hora, naquela semana, ela vai tá lá, é fácil ter acesso a mim, e até que ponto permitir o acesso vai fazer ela ver a responsabilidade que ela tem com a vida dela? Ter que frustrar alguém! É frustrante! Dupla frustração! A conduta médica não é suficiente, (...) e se deparar com a impotência de resolver o caso como é que você lida com isso em termos do vínculo? São casos que você encontra muito na atenção básica e é diferente do nosso dia da dia, na atenção secundária a gente não ver mais o paciente. (GP).
Há um peso insustentável na palavra responsabilização que circunscreve os
cuidados próprios da atenção primária, que pode ser mais leve a partir de uma visão
sistêmica da rede de cuidados. Geralmente as palavras autonomia e
responsabilização são condicionadas ao vínculo, conforme sugere a literatura.
Todavia, há variados graus de autonomia, cuja variabilidade se expressa em função
da relação do ser vivo com seu contexto imediato. O vínculo se articula com a
autonomia na medida em que percebe as nuances desses graus, e a partir disso, se
colocar de maneira pró-ativa frente aos mesmos para viabilizar os cuidados e o
auto-cuidado que requer cada situação.
O GP sinalizou com suas reflexões que a logitudinalidade do cuidado toca
o vínculo em seu delicado circuito com a autonomia e responsabilização revelando
que a tarefa dos profissionais na ESF é saber posicionar-se frente aos variados
graus de autonomia que as pessoas constroem ao longo de suas vidas articulado ao
contexto em que vivem. Tal posicionamento tem implicação direta com o nível de
~ 357 ~
vinculação que ambos, profissionais e usuários, tem consigo próprio. Entram em
jogo emoções e sentimentos que desfocam os limites do cuidado e da
responsabilidade que se deve assumir como profissional da saúde em relação à vida
do outro.
Em geral casos como esses são denominados de pacientes poliqueixosos, e
assim, não é dada tanta importância às suas queixas, em função da visão biomédica
ainda hegemônica, que foca o olhar apenas em sintomas físicos e não vê o
sofrimento. Tais casos, são encaminhados e sua resolução é sempre vista como algo
que cabe a um psicólogo, ou a um psiquiatra. A questão delicada de tais casos é o
receio de que dispensar a atenção demandada vai gerar uma dependência sem fim.
Creio que isso tem estreita relação com a compreensão de processos
saúde/doença que organiza, e apenas oferta serviços que abordam os sintomas e
não a pessoa. A abordagem sistêmica da saúde deve acompanhar uma oferta de
serviços coerente com um conceito de saúde para além da doença.
Capra (2014) ao abordar a visão sistêmica da saúde toca essa questão
quando afirma que uma compreensão sistêmica da saúde implica uma compreensão
sistêmica correspondente da cura. Ele nos alerta, em recente publicação, para a
necessidade de uma assistência a saúde, ao mesmo tempo, individual e social, e
afirma que,
Enquanto a responsabilidade do indivíduo terá importância crucial para um futuro sistema integrativo de assistência à saúde, será igualmente crucial reconhecer que essa responsabilidade está sujeita a severas restrições. Muitos problemas de saúde surgem de forças econômicas e políticas que só podem ser modificadas por meio de ação coletiva. Portanto, a responsabilidade individual precisa ser acompanhada pela responsabilidade social, e a assistência à saúde individual, por ações sociais e planos de ação política. (CAPRA, 2014, p. 412).
Capra aborda nesta publicação as implicações da visão sistêmica da vida
para os vários âmbitos da vida humana, e ao abordar o campo da saúde, reconhece
~ 358 ~
que as políticas de saúde a serem elaboradas e administradas pelos governos devem
incluir políticas sociais capazes de prover as necessidades básicas das pessoas de
maneira a minimizar o estresse social.
A responsabilidade é individual e também social, e o reconhecimento dos
limites aí implicados passa pela superação de uma visão fragmentada da atenção à
saúde para tocar apenas em um ponto da questão. Há um reconhecimento por
parte dos profissionais de saúde que não se pode medicalizar o sofrimento humano
e tratá-lo apenas com receitas, contudo, ainda não temos um sistema de saúde
capaz de gerar serviços para lidar com a integralidade da atenção à saúde, embora
esta ideia componha a proposta legislativa do SUS.
São vários os desdobramentos decorrentes do vínculo em sua dialógica
com a autonomia e a responsabilização. O contexto em que se insere esse circuito
do vínculo aliado a uma visão sistêmica, permite o desenrolar do cuidado em
função de uma conduta ética de base afetiva. Contudo, não há um limite definido,
mas há um desdobramento contínuo de implicação mútua entre a autonomia dos
sujeitos, relacionada aos grupos dos quais somos parte.
A narrativa com título “O Mal entendido” revela outras nuances dos limites
da responsabilização e a relevância do vínculo na definição de tais limites. Havia
um vínculo profissional e familiar entre a agente de saúde e a senhora idosa que
precisava de cuidados, atenção e encaminhamento da equipe da ESF. Era um caso
que apresentava outro grau de dependência da pessoa em relação à família e aos
profissionais de saúde. Havia uma demanda por parte da filha da senhora, que não
morava com ela. E houve uma situação-limite vivida pela equipe, família e
comunidade, que envolveu a todos em uma situação constrangedora em que
pulsava a responsabilização da ESF em relação ao caso. Quais os limites das
responsabilidades dos atores envolvidos nessa narrativa, entre familiares, filhos,
filhas, médico, enfermeiro, agente de saúde, vizinhos?
~ 359 ~
A clareza dos limites de responsabilização e cuidado está diretamente ligada
ao conhecimento da dinâmica familiar que envolve o caso, traduzido pela agente de
saúde. A abordagem de família permeada por uma visão sistêmica, conforme
demonstrou ter a agente de saúde, embasada em um conhecimento da vivência,
permitiu a equipe tecer tais limites de forma saudável para dar prosseguimento aos
cuidados e encaminhamentos na rede atenção. A percepção desses limites também
esteve diretamente ligada à sensibilidade, empatia e altruísmo que os profissionais
da equipe demonstraram ter, para dar resolutividade ao caso, agravado pela conduta
da filha em denunciar a equipe.
Morin explica que há uma vinculação entre o conhecimento (saber) e a ética
(dever) que surge quando um ato moral é visto de forma contextualizada e
enraizada nas suas consequências no mundo. Como explica o autor, a ética deve
enfrentar as incertezas. Há um hiato entre a intenção humana e a ação, e é preciso
reconhecer que as consequências de um ato de intenção moral, podem ser imorais.
E também, o contrário, as consequências de um ato imoral, podem ser morais,
esclarece Morin. Não se pode esquecer a relação complementar e antagônica que há
quando tomamos, em conjunto, a intenção moral e o resultado da ação moral. É
complementar na medida em que a intenção moral só adquire sentido em seu
resultado em ato e, ao mesmo tempo, antagônica, pois há consequências,
eventualmente, imorais em um ato moral. E consequências, eventualmente, morais,
em um ato imoral, adverte Morin.
A denúncia que houve no caso, como vimos, poderia gerar danos e
consequências graves, contudo, o diálogo, a abordagem familiar e comunitária, a
abertura para enfrentar a questão de forma clara e honesta foram os aspectos que
concretizaram e expressaram a vinculação da equipe com a família, até o desfecho
da história, com o reconhecimento público da competência dos profissionais diante
da comunidade.
O nível de vinculação consigo, que possibilita, por exemplo, assumir as
consequências de seu desempenho profissional, é tanto mais fortalecido na medida
~ 360 ~
da vinculação com outro, em termos do reconhecimento do outro, alteridade,
como humano, igual e diferente. E ambos os níveis de vinculação adquirem sentido
e expressão na medida da importância que tem a comunidade humana em que nos
inserimos, e da qual somos parte, independente de morar ou conviver diariamente.
Isso ficou claro em relação ao vínculo expresso por esta narrativa.
Os limites para lidar com os graus de dependência e autonomia que as
pessoas logram em sua relação com o ambiente, e as eventuais necessidades de
saúde que demandam, podem gerar sentimentos de frustração. É necessário um
conhecimento da proposta de organização em rede dos serviços de saúde para que
o profissional seja capaz de perceber como ajudar, para que a pessoa usufrua dos
diversos níveis de atenção de acordo com suas demandas. Claro que isso exige uma
rede de serviços funcionando. Contudo, contribuir para o funcionamento da rede,
também, é fator que diminui as frustrações e a impotência que surge diante dos
fatos da vida, e para os quais não temos soluções imediatas.
Morin afirma que todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o
desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do
sentimento de pertencer à espécie humana. (MORIN, 2000, p. 17). Tais palavras traduzem
os limites do circuito do vínculo interrelacionado aos demais circuitos que se
entrelaçam para organizar os serviços de saúde em rede, compondo um
metassistema como o SUS. O circuito do vínculo é importante, todavia, não é
condição para o funcionamento de toda a rede. É o entrelace desses circuitos que
colaboram para que os serviços funcionem em rede.
~ 361 ~
3.3.2. O vínculo como tessitura ética das relações.
O Outro significa, ao mesmo tempo, o semelhante e o dessemelhante. (Edgar Morin)
A história da Confiança trouxe outra nuance sobre o circuito do vínculo
quando expressou de forma contundente a exigência ética nele implicada. Os
vínculos entre profissionais e comunidade, sobretudo, quando se trata de
profissionais que moram na comunidade, pré-existem aos serviços, tanto em
termos de tempo de convívio, como em termos de valoração.
A comunidade tem uma trama social que lhe dá vida e movimento por
meio de suas relações sociais permeadas pela cultura na qual se insere. A cultura do
“jeitinho” brasileiro, do nepotismo, do favoritismo, resultantes de nossa herança
colonial, são aspectos que se fazem presentes no tecido social e permeiam as
relações que vinculam profissionais de saúde e comunidade. A atitude de se
posicionar em relação a esses aspectos de nossa cultura é tarefa necessária e
importante, e deve ser diferente da atitude que normalmente encontramos nos
espaços institucionais que consistem em negá-la, escondê-la, ou combatê-la
impondo regras.
A forma como se lida com isso na rede de serviços de saúde se articula
claramente com o vínculo, como deixou claro as reflexões no GP. Assumir um
posicionamento frente a esses aspectos que se entrelaçam no circuito do vínculo é
condição indispensável para humanização dos serviços de saúde de forma a tornar
seus princípios, ação, e não regras a serem impostas.
Tendo por referência a sua vivência e experiência cotidiana relacionada ao
vínculo o GP reconheceu o poder que o profissional usufrui quando aciona seus
vínculos com o outro, momento em que se depara com os limites da ética,
deparando-se com o conflito que vai, tanto na direção de fazer valer as normas,
como de burlá-las. Sem um posicionamento frente a tais questões a universalidade
se dissocia da equidade e se torna injusta, impossibilita, por isso, a integralidade
efetivada na acessibilidade universal e equitativa dos serviços em rede.
~ 362 ~
Com efeito, o vínculo entre profissionais de saúde e usuários os levam
constantemente a encruzilhadas éticas. Como nos mostrou o GP com a narrativa
da Confiança, o bem querer a um amigo somente leva a infligir regras quando se
utiliza do poder decorrente desse vínculo de forma distorcida, para benefício de
um, em detrimento dos outros.
Quando a vinculação com um, retira a humanidade de outros, torna uns
mais humanos que outros, há um abuso de poder. É quando o poder do cargo - e
não importa seu lugar aqui - vale mais que a afetividade, que nos vincula a todos.
Digo que não importa o lugar porque esse poder pode se tornar abusivo, não em
função da importância social da função exercida, uma vez que todas as funções tem
um poder contundente, do atendente ao médico. E usar isso para beneficio de
alguns, não se torna mais grave ou menos grave, de acordo com as funções
exercidas. O duplo programa que nos torna sujeitos, do qual fala Morin, somente
cumpre essa tarefa na dialógica egoísmo/altruísmo, e também, se distorce, quando
colocamos o outro fora do nosso site egocêntrico. E aí se instala uma dicotomia
que torna a humanidade de uns, mais valiosa que outros, desumanizando os
serviços de forma coletiva.
Morin toca nesta questão aludindo a uma pluralidade de deveres aos quais
todos nos submetemos. Ele dialoga com Max Weber quando apresenta os
inevitáveis conflitos que há entre a ética de responsabilidade, que estabelece o
compromisso, e a ética da convicção, que os recusa, porque ambas, não podem ser
prescritas, sendo também impossível, indicar o momento em que se deve escolher
uma ou outra, tornando inviável a conciliação entre ambas.
Morin reconhece o conflito inerente e profundo que se apresenta no cerne
da finalidade ética, uma vez que a realidade humana envolve três instâncias:
indivíduo/sociedade/espécie, o que torna também, a finalidade ética, trinitária.
Temos um dever egocêntrico, que nos coloca no centro de si mesmo, nos fazendo
centro de referência, e também, de preferência. Temos também, um dever
~ 363 ~
genocêntrico em que os nossos, genitores, prole, família, clã, grupo, se tornam o
centro de nossa referência e preferência. E temos ainda, o dever sociocêntrico em que
é a sociedade que surge como centro de referência, e também, de preferência. Tais
deveres são complementares, esclarece Morin, e se tornam antagônicos, embora
surjam ao mesmo tempo. E o agir ético é fruto da dialógica viva de tais deveres.
Morin nos propõe que,
Devemos incessantemente experimentar o conflito entre as injunções do universal e as da proximidade, campo da ação e da perspectiva pessoais onde se situam os íntimos, os amores e as amizades concretas; o imperativo universal pode desaparecer em benefício do imperativo particular (os seus); devemos sacrificar o bem geral em benefício do bem particular dos nossos, ou, ao contrário, sacrificar o bem dos nossos pelo bem geral? O bem geral corre o risco de permanecer abstrato e, sobretudo, podemos nos enganar sobre o que ele é como fizeram tanto militantes devotados que acreditaram contribuir para a emancipação humanidade quando estavam trabalhando pela sua submissão. Mais ainda, „o amor pela humanidade pôde inspirar as mais glaciais desumanidades em relação aos próximos‟. O bem dos nossos próximos é concreto, mas podemos nos enganar sobre o verdadeiro interesse deles e, sobretudo, corremos o risco de ficar encerrados em nossa pequena comunidade e indiferentes aos problemas fundamentais e globais da humanidade. Aqui, não existe linha preestabelecida, mas diagnósticos e decisões de urgência que nos levam a obedecer a uma dos imperativos contrários. (MORIN, 2011, p. 49-50).
Esse conflito humano que Morin aborda é algo vivido no cotidiano da ESF
no circuito do vinculo quando se enlaça as necessidades de saúde da população.
Conforme analisou o GP, o vínculo precisa ser visto em sua plenitude, ou seja, em um
sentido amplo, porque tanto pode ser usado de forma honesta, como também,
pode ser usado para beneficiar a outrem. Há o vínculo da convivência, da
proximidade que alude ao dever genocêntrico que nos fala Morin.
O GP apontou a necessidade de desassociar a imagem de vínculo ao
favoritismo, e informa que é possível preservar o vínculo dizendo sim e dizendo
~ 364 ~
não, enfrentando o conflito dos deveres, compreendendo que o vínculo não é
incompatível com a ética que implica o dever sociocêntrico. O vínculo de sim e de não
aludido pelo GP é uma forma de enfrentamento da injunção do universal e da
proximidade de que fala Morin.
O ato individual ou coletivo de rejeição da alteridade, de colocar o outro
fora da identidade comum, ocorre em função de um fechamento egocêntrico. É a
inclusão do outro que se produz por uma abertura altruísta, que retroage e
possibilita a inclusão. Com isso Morin afirma que a ética altruísta é a ética da religação
que exige manter a abertura ao outro, salvaguardar o sentimento de identidade comum, consolidar
e tonificar a compreensão do outro. (...) A religação é um imperativo ético primordial que comanda
os demais imperativos em relação ao outro, à comunidade, à sociedade, à humanidade. (MORIN,
2011, p. 103).
Como indivíduos há separação, mas somos, como espécie, passíveis de
religação, defende Morin. É preciso reconhecer quando há um excesso de
separação, quando não há mais religação. Vivemos numa sociedade que separa
muito mais do que liga. O excesso de separação é perverso quando não é
compensado pelos vínculos que nos enlaça em união, solidariedade, amizade e
amor. Há, portanto, uma relação complexa que articula os processos de vinculação
consigo, com o outro (espécie/coletivo) e com o todo (natureza/cosmo). A
capacidade de vincular-se consigo mesmo é forjada na pela vinculação com o outro,
um outro que fornece uma base segura, como bem nos falou John Bowby, para
que, gradativamente, eu me compreenda como parte de um grupo/coletivo, como
singularidade única pertencente a natureza, lugar do qual sou parte.
Quando esse vínculo é desassociado da afetividade abre espaço para o uso
do poder de forma abusiva. É o que sugere Toro (2012) quando afirma que a ética
surge quando há uma integração entre consciência e afetividade, e não, por
submissão a normatividades. Segundo suas palavras,
~ 365 ~
La Etica surge cuando la consciencia y la afectividad se integran. No existe una Etica normativa. La consciencia ética tiene componentes afectivos como ternura, compasión, empatía, sentido de justicia, misericordia. La consciencia ética surge del sentimiento de “amor infinito” que describen los místicos. La violencia contra las personas, el racismo, la guerra, la falta de escrúpulos, son obscenos, antiéticos y antiestéticos. La Etica no se basa en las normas de comportamiento que imponen las distintas religiones, las leyes de Manú, las Tablas de la Ley, las reglas del Corán, el fundamentalismo musulmán, las normas de Derecho Romano y la llamada moral de las costumbres y de la tradición. Estas normas son propuestas desde fuera, sin relación con la consciencia ampliada. Se basan en la alienación y coerción. (TORO, 2012, p. 45)
A tessitura do vínculo entre profissionais de saúde e usuários de seus
serviços baseado em uma ética da religação passa pela afetividade que permeia a
relação em seus três níveis de vinculação. As ideias de Morin complementam e
reforçam o pensamento de Toro quando afirma que o ato moral é um ato de religação:
com o outro, com a comunidade, com a sociedade e, no limite, religação com a espécie humana.
(MORIN, 2011, p. 29).
O GP apontou em suas análises a necessária distinção que devemos fazer
entre amizade e favoritismo, o que comungou com a visão Morianiana quando
aborda a ética da fidelidade à amizade aludindo a necessária distinção entre amizade
e camaradagem. Para o autor a amizade não é somente uma relação afetiva de apego e
cumplicidade; a verdadeira amizade estabelece um vínculo ético de fraternidade. (MORIN, 2011,
p. 107).
É em função de sua base afetiva que podemos perceber que o agir ético
não está condicionado ao grau de escolaridade dos sujeitos porque não é somente a
informação, códigos de conduta, ou o conhecimento cognitivo que garante
posicionamentos éticos, como nos faz perceber o GP. A firmeza de um
posicionamento ético está mais ligada a essa capacidade de religação que
~ 366 ~
aprofundamos na vivência afetiva que abarca os três níveis de vinculação de que
nos fala Toro.
Perceber, trazer para consciência os vínculos que nos ligam uns aos outros,
e que tessitura compõe a semântica de tais vínculos é um caminho para rever
valores, e se revela como possibilidade de humanização das práticas em saúde na
medida em que as condutas éticas adquirem enraizamento afetivo pela religação de
si com a humanidade de todos. Por este caminho, seguir regras reveste-se de
sentido pelo seu enraizamento afetivo.
3.3.4. O poder do vínculo e a Humanização dos serviços de saúde.
Aquilo que se faz por amor, está sempre além do bem e do mal. (Nietzsche)
A narrativa “A Flexibilidade do Médico” toca os processos de trabalho e
traz novas dimensões do circuito do vínculo em seus entrelaçamentos com os
outros circuitos da atenção primária à saúde. A narrativa evidencia pontos de
interseção entre a comunidade e os serviços no tocante a sua organização e aos
processos de trabalho.
A história nos mostra que as pessoas fazem uma leitura sobre o
funcionamento dos serviços na medida de sua interação com eles, articulada à sua
forma de compreensão desses aspectos, nos termos da cultura na qual se inserem.
Do mesmo modo, os profissionais da saúde buscam organizar o serviço tentando
efetivar uma universalidade equitativa na integralidade de suas ações, de acordo
com o escopo de ações pertinentes ao nível de atenção primária do SUS.
Entretanto, como sabemos, a comunidade, de uma forma geral, desconhece os
processos de organização dos serviços de saúde em rede. E, claro, cada um tem sua
necessidade que gostaria de ver sanada, acolhida, ou mesmo, encaminhada de
pronto!
~ 367 ~
Por conseguinte, tanto os serviços de saúde, como a comunidade, tem um
modo próprio de organização e funcionamento, cujos pontos de interseção nem
sempre potencializam e respeitam o modo de organização, um do outro. O que
mais se evidencia nesses intercruzamentos é o desconhecimento do modo de
funcionamento por parte das pessoas que estão em ambos os lados: serviços de
saúde e comunidade.
A visão sistêmica nos ajuda a compreender esses processos. Segundo
esclarece o GP a insistência das pessoas, no caso, para ser atendida pelo médico da
equipe do CSF de Inhamuns, se deve ao conhecimento que elas tem em relação à
flexibilidade do médico. E uma forma de acesso imediato que encontram está nos
argumentos utilizados, tais como, morar distante, falta de recurso para
deslocamentos, etc. Argumentos que podem corresponder, ou não, à realidade das
pessoas, no momento, embora, claro, certamente, sejam argumentos pertinentes ao
modo de funcionamento da comunidade.
Ao profissional de saúde, cabe acolher e fazer leituras da situação
buscando ponderar até que ponto é possível atender para além do que foi acordado
na organização de atendimentos entre demanda espontânea e programada. Ser ou
não flexível não é o ponto central, mas compreender a flexibilidade em seu delicado
equilíbrio para fortalecer as relações entre a população e os serviços de saúde é o
desafio em questão.
A partir de uma visão sistêmica a organização dos processos de trabalho é
tão mais efetiva e exitosa na medida do envolvimento e compreensão da
comunidade sobre esses intricados processos que organizam os serviços de saúde
em redes de atenção, processos esses, ainda, quase que totalmente, desconhecidos
da população que utilizam o SUS e que caminham pela rede, sem compreendê-la.
Da mesma forma, a manutenção da organização dos serviços logra êxito na medida
da compreensão do modo de vida da comunidade por parte dos profissionais de
saúde, de todos, e não apenas dos agentes comunitários de saúde. Entretanto, seria
tarefa de quem elucidar tais questões? Esta me parece ser uma tarefa esquecida. O
~ 368 ~
que comumente ocorre é esperar que todas as pessoas conheçam o funcionamento
da rede, e tornar isso pressuposto, nas orientações e encaminhamentos. Mas, de
fato, não é isso o que ocorre, há desconhecimento de ambos os lados.
Por outro lado, os serviços, bem ou mal, funcionam, seguem sendo
disponibilizados. E como nos mostra a narrativa, a comunidade faz uma leitura do
funcionamento dos serviços ofertados, em sua dinamicidade. Como esclareceu o
GP para o caso, as pessoas sabiam que o médico iria atendê-las, no sentido de uma
aposta. O que parece é que sabiam disso em função do vínculo do profissional,
estabelecido com a comunidade, que expressava uma relação aberta e acolhedora.
Assim, mesmo sendo orientadas sobre a agenda que organiza as demandas ao
serviço, as pessoas se movem no sentido de sanar suas necessidades de imediato. O
que demonstra que não é apenas o acesso à informação que influencia o
comportamento e o posicionamento frente à situação. A exigência ética que abarca
posicionamentos, tanto por parte dos profissionais como da comunidade, passa
pela ética da religação como já esclarecido anteriormente.
É neste delicado ponto que o vínculo entra no circuito, tanto para fazer
funcionar, como para obstaculizar esse funcionamento e organização dos processos
de trabalho em saúde. A participação ativa das pessoas nos processos de
organização dos serviços é algo salutar para sua efetivação. A ética não é atitude a
ser trabalhada somente por parte dos trabalhadores da saúde, mas é parte da ação
humana de uma forma geral, e como tal, as posturas éticas devem ser esperadas em
ambos os polos da relação: profissionais de saúde e população, e é o vínculo que
interliga a ambos, que configura as posturas éticas.
Em que pese a complexidade que envolve a organização dos processos de
trabalho na atenção primária à saúde com base nas necessidades de saúde da
população, vou me ater ao circuito do vínculo nos pontos que interseciona a
organização dos processos de trabalho: a humanização. Retomo o que preconiza a
PNH, a qual define que a humanização consiste em “aumentar o grau de co-
responsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede SUS, na produção da saúde, implica
~ 369 ~
mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho. (BRASIL,
2004).
A humanização aparece no cotidiano dos serviços como ponto delicado do
processo, porque, por princípio, não pode ser vista ou encarada como um serviço
que gere satisfação, de imediato, para todos, ou que agrade a todos, em função de
inúmeras questões. Paradoxalmente, é possível que a humanização dos serviços se
efetive mesmo que falte estrutura. Ao contrário dos argumentos que justificam
condutas não éticas em nome da falta de estrutura, de equipamentos, de oferta de
serviços, de falta de insumos, etc, embora estas questões estejam aí implicadas
também. Como expressou o GP ao salientar as aprendizagens oportunizadas pelo
percurso da pesquisa afirmando que conversar sobre os vínculos ajudou a
compreender que não estamos aqui para agradar a todo mundo e, tampouco, viver
as mil maravilhas, há sabores e dissabores a serem vividos diariamente.
A articulação entre os circuitos das necessidades de saúde e do vínculo a
partir de uma visão sistêmica nos oferece novas luzes para compreendermos este
processo a partir das pistas que nos deixou o caminho percorrido pelo GP.
Segundo as análises que avaliam a efetivação da PNH, que comentei no início,
quando trazem para discussão a relação Estado/sociedade, presumem que a
humanização se efetive em razão das frestas que escapam ao biopoder exercido
pelo Estado Moderno, e colocam nos trabalhadores da saúde a responsabilidade de
reinventar a humanidade a partir de novas práticas em saúde embaladas pela força
emancipatória do ideário do SUS.
O caminho que iluminou o GP na tarefa de humanização dos serviços
passa pelo vínculo de sim e de não, e se apresenta como tarefa de ambos, como
cooperação mútua, como postura ética que tem base afetiva calcada pela integração
de seus níveis de vinculação, quando se expressa pela adoção de uma ética da
religação.
~ 370 ~
Há uma visão reducionista quando falamos do vínculo focalizando somente
a dimensão do poder que lhe é inerente, como assim se avaliou as políticas na ótica
do biopoder. Ao ampliar a visão trazendo a dimensão afetiva e ética em seu
entrelace, percebemos que não é nas frestas da relação Estado/sociedade que a
humanização pode se efetivar, mas pela via da ressignificação das relações humanas
no seu intricado e delicado processo que diz respeito ao dever egocêntrico,
genocêntrico e sociocêntrico, cuja dialógica, conforma uma postura ética que
humaniza a todos.
O vínculo é humanizante e humanizador na medida de sua articulação
dialógica de seus três níveis de vinculação afetiva no sentido de uma ética da
religação. Uma das dificuldades desse processo, é que em termos ontogenéticos
podemos afirmar que a relação mais tardia é o vínculo que estabelecemos conosco
mesmos. Isso é assim porque, incialmente, depende da maturação de estruturas
cognitivas e afetivas. E é desta maturação que se desdobra nossa capacidade de
nomear emoções e sentimentos e diferenciar uma miríade de nuance que abarca a
diversidade do nosso emocionar/sentir. É dela que se desdobra um saber, e com
potencial de saber que sabe e se sente, e sermos seres de consciência. Essa
capacidade de vinculação não está garantida, e não é dada. Contudo, essa é uma
tarefa difícil, mas não impossível, como demonstrou o GP. O diálogo permeado
pela abertura, respeito e aceitação do outro permite acessarmos essa capacidade de
vinculo consigo mesmo, capacidade esta que, na atual sociedade contemporânea,
está distorcida em egocentrismo individualista.
A emoção é comum a várias espécies animais, e delas compartilhamos nas
relações intraespécie. O sentimento, porém, é marca genuinamente humana e,
portanto, o fio humanizante de nossas ações. O sentimento é fruto de nossa
refinada capacidade humana em sua interrelação com o mundo circundante. Na
medida em que o pensar atua no processo, esboçando uma complexa relação entre
afetos e cognição, esse processo adquire maior complexidade, chega à consciência,
e aumenta nossa capacidade de compreender o outro e si, o que significa que nossa
~ 371 ~
compreensão do outro está estreitamente ligada à auto-compreensão, e então, o
agir ético adquire sentido e força e se efetiva e adquire sentido em regras e
normatizações.
Isso demonstra a impossível tarefa que é falar, abordar, propor, avaliar as
ações de humanização da PNH sem tocar, abordar, esclarecer, perceber e
reconhecer os sentimentos humanos aí implicados. A própria PNAB reconhece o
vínculo como construção de relações de afetividade entre os usuários e
trabalhadores da saúde que propicie um processo de corresponsabilização pela
saúde e longitudinalidade do cuidado. A PNH condiciona a humanização ao
aumento do grau de corresponsabilidade dos diferentes atores que compõe a rede
do SUS e reconhece a necessária mudança cultural implicada nestas relações. Com
efeito, não há mudança cultural sem tocar na questão dos valores. Como nos fala
Morin, se o real só é real saturado de valores, os valores só são valores saturados de afetividade.
(MORIN, 2003, p. 122).
A afetividade é parte integrante do humano e, como tal, é cocriadora, em
conjunto com a racionalidade, da realidade que vivemos. A nossa racionalidade,
esclarece Morin, nos dá uma radiografia da realidade, mas não a sua substância,
porque a realidade humana resulta de uma simbiose entre o racional e o vivido. A
nossa racionalidade nos fornece o cálculo, a lógica, a verificação empírica a
coerência, mas não o nosso sentimento de realidade. É este sentimento de realidade
que dá substância e consistência para o real, e não apenas em seus aspectos físicos
animados e inanimados, mas confere substancialidade a entidades tais como,
família, pátria povo, deuses, ideias, instituições. Tais entidades, uma vez dotados de
vida, retornam, de criaturas a criador, fornecendo plenitude à própria realidade.
Como fontes de realidade identificamos uma relação tanto complementar quanto
antagônica entre a racionalidade e afetividade, esclarece Morin, e complementa, a
evacuação total da afetividade e da subjetividade esvaziaria de nosso intelecto a existência para só
deixar lugar a leis, equações, modelos, formas. A eliminação da afetividade tiraria toda a
~ 372 ~
substância de nossa realidade (por isso se poderia pensar que nossa realidade não tem substância
de não passa de samsara). (MORIN, 2003, p.122).
A capacidade afetiva de vincular-se consigo tem um grande potencial de
retroalimentar o circuito. Porém não se desenvolve de forma espontânea, ou
isolada, mas nasce de uma dialógica com os demais níveis de vinculação afetiva.
Isso exige esforço, educação. Exige uma compreensão complexa do humano que
não reduz o outro a um único aspecto, não toma o todo pela parte, mas o
considera em sua multidimensionalidade, em sua natureza de homo sapiens-demens.
A nossa auto-compreensão é gerada na e pela compreensão do outro, e é
preciso inclusive, compreender a incompreensão do outro, acrescenta Morin. Em
sua análise o autor pondera que o desenvolvimento do individualismo da sociedade
contemporânea nos trouxe grandes vantagens quando possibilita para todos nós a
reflexão pessoal, a decisão pessoal, oportunizando multiplicar e aprofundar as
relações afetivas de amizade e amor entre os humanos. Por outro lado, também
desenvolveu em nós a autojustificação e a incompreensão. Há apenas duas gerações
passadas, como sociedade, aprendíamos a obedecer normas e costumes, os filhos
obedeciam aos pais e os laços familiares e conjugais eram para sempre. Atualmente,
o individualismo exacerba-se nas relações, há uma dessacralização da autoridade
paterna, analisa Morin, e segue ponderando que o desenvolvimento do primado da
autonomia nos deu liberdade, mas também altos níveis de incompreensão.
Nesta perspectiva Morin alude para a necessária compreensão complexa do
outro. A incompreensão impera nas relações entre os humanos e está na origem
dos fanatismos, das imprecações, dos ataques de raiva, reconhece o autor. A
compreensão para abarcar a complexidade humana precisa alcançar a compreensão
sobre as condições em que as mentalidades foram forjadas, e as conjunturas em que
suas ações se apresentam. A ética da compreensão implica que compreendamos a
incompreensão, isto é, devemos compreender a incompreensão do outro, destaca
Morin.
~ 373 ~
São muitas as cegueiras de nosso pensar que podem nos levar ao erro e a
ilusão e se tornam obstáculos geradores de incompreensão. O próprio medo de
compreender é também, parte da incompreensão. Tememos compreender por
medo de desculpar-se, explica Morin, como se a compreensão fosse uma fraqueza,
e acrescenta: Compreender não significa justificar. A compreensão não desculpa nem acusa.
Favorece o juízo intelectual, mas não impede a condenação moral. Não leva a impossibilidade de
julgar, mas à necessidade de complexificar o nosso julgamento. Compreender é compreender o
porquê e o como se odeia e despreza. (MORIN, 2011, p. 121). A compreensão deve nos
afastar da barbárie, nos civilizar profundamente, e para isso, devemos nutri-la de
razão e afetividade, pondera Morin. Sem a compreensão a convivência humana é
impossível, contudo é preciso reconhecer, como alude Morin,
o amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. (...) Nosso mundo sofre de insuficiência de amor. (...) Não se pode resolver tudo pelo amor. O amor tem seus parasitas íntimos, que o cegam, a sua ânsia autodestrutiva e seus surtos devastadores. (...) precisamos contar coma vigilância da razão. Mas não existe razão pura e apropria razão deve ser estimulada pela paixão. No mais frio da razão, precisamos de paixão, ou seja, de amor. (MORIN, 2011, p. 108).
Inspirada nestas ideias de Morin encerro esta bricolagem com uma fala
poética do GP elaborada por ocasião das oficinas de produção e análise do vínculo
a partir da vivência com os Lugares Geomíticos. A linguagem poética juntou as
ideias em um todo que não se separa, assim como não separamos o leite do café,
depois de misturados. A poesia do GP traduz vínculos vividos, e apresento a seguir:
~ 374 ~
Sobre o Vínculo
Pode ser deserto
o caminho a percorrer,
Verde, livre ou terreno plano
é um destino a conhecer
Vi flores e verde,
Eu gostei!
Campos amplos avistei
Por outro lado pude ver
Penhascos difícil,
Aí parei!
A vereda bem verdinha
Veio de novo aparecer
Na estrada em terra batida
Renascia a fé adormecida
Que o obstáculo iria vencer
O obstáculo pode ser real
Ou imaginário também
Seria de algo que não sei bem
De touro, parede, buraco, e além
O medo surge do nada
Pedi ajuda, e quem viria me ajudar?
Então gritei pra Deus
Me ajude pra atravessar
Não posso ir sozinho
A surpresa veio no vento
Na pedra que arrodiei
Nas mãos que aparecem
Na equipe que encontrei
Coincidência ou destino?
Só sei que apareceu
Vindo lá do infinito
A corda, o homem, o tronco,
a rocha, a amiga
Eram meus pais que estavam
comigo
Eu escapei, pulei
A solução encontrei
Atravessei e continuei
Ao caminho de paz eu cheguei
Onde quero chegar
Andei e não consegui enxergar
Ouvi o canto dos pássaros
E logo pude sentir que iria
cochilar
Olhei de mansinho e vi
Pessoas e não conheci
Ansiosa, percebi
que apesar de difícil,
o negócio estava ali
pude ouvir ao chegar
aplausos ao meu redor
os amigos festejavam
que o trabalho a realizar
agora seria bem maior.
~ 375 ~
3.4. De volta ao começo. Cheguei a tempo de te ver acordar
Eu vim correndo à frente do sol Abri a porta e antes de entrar
Revi a vida inteira Pensei em tudo que é possível falar
Que sirva apenas para nós dois Sinais de bem, desejos de cais
Pequenos fragmentos de luz Falar da cor dos temporais
Do céu azul, das flores de abril Pensar além do bem e do mal
Lembrar de coisas que ninguém viu O mundo lá sempre a rodar
E em cima dele tudo vale Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer o sonho acontecer (Quem sabe isso quer dizer Amor, Milton Nascimento)
Ao final deste percurso volto ao começo. Retomo a genealogia da palavra
vínculo quando começou a ser usada, inicialmente, no âmbito do PACS, programa
que está na raiz da ESF. As ideias freirianas mostram que um conceito nasce de
uma prática enraizada numa reflexão profunda e comprometida com a
transformação da realidade. (FREIRE,1987, 2002).
Em geral, a literatura em Saúde Coletiva que aborda o vínculo, mesmo
estudos que fazem referência direta ao tema, não indagaram sobre a origem
histórica de seu uso no campo da saúde. Talvez porque pareça incomum pensar a
prática relacionada ao vínculo em função da natureza do fenômeno. Soa estranho
dizer ou pensar sobre a prática do vínculo porque, de antemão, já é algo dado, está na
raiz filo e ontogênica humana, condiciona processos bio-antropo-sociais e culturais
da humanidade em sua diversidade múltipla.
Quando tomamos em conta o contexto da ESF como modelo de Atenção
Primária do SUS, e percorremos seus construtos históricos, vemos que a palavra
vínculo tem um enraizamento prático, ligada mais especificamente, à prática
profissional do ACS. Os sentidos e significados que envolvem a palavra em sua
~ 376 ~
origem articulam-se, operacionalmente, às exigências de um saber oriundo da
vivência, relacionado ao um conhecimento sobre o modo de vida da comunidade.
Um saber que diz respeito à forma de relacionar-se com as pessoas do lugar, ou
seja, um modo de ser liderança e/ou referência local para uma dada coletividade.
Esse conhecimento foi, e é fundamental para ações de promoção de saúde que
caracterizou o PACS, e caracterizam hoje, o cerne da APS na ESF.
Esta gênese nos mostra aspectos importantes para compreendermos o
vínculo em uma conceituação enraizada numa prática contextualizada. É possível
identificar claramente o desdobramento do vínculo em seus três níveis de
articulação: consigo, com o outro (alteridade) e com a sociedade (natureza).
Conhecer o modo de vida da comunidade requer acessar conhecimentos sociais,
antropológicos e históricos sobre o lugar, sejam oriundos ou não, da própria
experiência.
Com efeito, é o nível de vinculação com a comunidade, intimamente ligado ao
sentimento de pertença, que dá sentido e/ou motivação para que alguém se ocupe
em desenvolver ações em prol do bem coletivo e do desenvolvimento comunitário.
Ser liderança e/ou referência local é uma ação que traduz o nível de vinculação com o
outro (alteridade) no sentido de ser merecedor de um reconhecimento coletivo,
sendo identificado como alguém importante para a vida comum de determinada
localidade. E, claro, reconhecer a si mesmo como referência para coletividade de
que é parte, requer um nível de vinculação consigo, que exige posturas de respeito por
si que, por sua vez, se desdobra e um grau considerável de empatia e solidariedade.
Retomo as interessantes perguntas de Carlile Lavor (2004), idealizador do
PACS no Ceará, quando comenta sobre a construção histórica da identidade
profissional do agente de saúde, e indaga: o que faz o agente manter-se fiel à sua
comunidade, participando de um serviço fortemente hierarquizado? Como garantir esta fidelidade?
Sem o desenvolvimento do vínculo em seus três níveis de articulação, seria
impossível para estes profissionais ter logrado êxito para coletividade em geral,
como o que resultou com o PACS.
~ 377 ~
Tendler (1998) ao analisar o Programa relacionando-o ao contexto histórico
cearense da descentralização/municipalização constatou uma relação incomum
entre governos estaduais e municipais, que classificou como um misto de local e
central. Apesar de constatar que havia uma forte pressão popular orquestrada pelo
Programa, sobretudo, para adesão dos prefeitos, a autora não identifica a
contribuição da sociedade civil como protagonista, também, nos processos de
descentralização/municipalização e superação do clientelismo assistencialista.
Um dos pontos a ser destacado deste processo histórico está relacionado ao
modo de vinculação dos profissionais de saúde e comunidade e seu impacto
causado na relação governo/sociedade com a implantação do PACS, que teve na
participação da sociedade civil, orquestrada pelas agentes de saúde, um papel
fundamental. Esse trabalho de casa a casa, combinado com a gestão dos processos
de implantação e seleção, trouxe novos termos de valores que pautaram a relação
governo/sociedade.
Segundo relata Lavor (2004) o teor das campanhas políticas paulatinamente
muda a tônica assistencialista de seu discurso e começa, doravante, a acrescentar
promessas relacionadas à saúde. O tema da mortalidade infantil começa a ocupar os
palanques políticos nas campanhas, passando a ser amplamente debatido em toda
sociedade em termos sociais e políticos. O Estado valorizava as ações do PACS
com reconhecimento público, os municípios que mais progrediam em relação às
metas, e as ações desenvolvidas pelos agentes passaram a ser valorizadas
socialmente, e talvez por isso, eram por eles abraçadas, como missão.
Havia um reconhecimento público, vale ressaltar, da importância do outro,
expressa na valorização das ações em saúde. Refiro-me a uma valorização em
termos da coletividade, e não somente, no nível da individualidade. Como relata
Lavor analisando o PACS (2004) os agentes são desafiados instigando-se sua inteligência. O
diálogo com o seu supervisor é estimulado pelo objetivo comum, tornando a relação entre eles mais
horizontal. A compreensão das metas como importantes para a comunidade, e não como imposição
~ 378 ~
hierárquica do supervisor, faz os agentes aderirem a elas com entusiasmo. (LAVOR, et al,
2004, p. 127). O programa contribuía gradativamente para que as comunidades
ficassem bem mais informadas e exigentes gerando uma pressão social pela
melhoria da saúde.
A contribuição do PACS para mudança nas relações governo/sociedade,
marcadas pelo colonialismo, expresso no clientelismo assistencialista, tinha sua raiz
numa nova pauta de valores que primava pelo respeito mútuo e a colaboração
solidária entre o povo e a gestão de saúde. Uma nova visão forjava-se em função de
um trabalho que tinha um modo peculiar de vinculação entre os profissionais de
saúde e a população, se mostrando como um diferencial significativo para mudança
do cenário epidemiológico, social e cultural no final da década de 80.
Falar de vínculo é falar da relação e, necessariamente, quando se muda a
pauta da relação, há consequentes mudanças nas pessoas/coletividades implicadas.
Há uma sutil diferença aqui ligada aos processos de transformação social, que
requer alteração de comportamento cultural, e que se dá quando se operacionaliza a
mudança da própria relação, alterando o seu modo de vinculação. A modificação é
tímida, e muitas vezes, infrutífera quando se busca mudar um polo, ou outro da
relação, sem atentar-se que é a própria relação que requer mudanças.
Atualmente, a ESF dispõe de uma equipe multiprofissional e o agente
comunitário de saúde é parte dessa equipe. Apesar dos inegáveis avanços e de sua
valiosa contribuição para o SUS, até o reconhecimento legal da profissão, o ACS,
como categoria profissional, ainda não conquistou o seu lugar de saber na APS.
Creio que isso se mantém porque prevalece na ESF, tão somente, a função-elo
exercida pela categoria, entre a comunidade e os demais profissionais da equipe. O
diálogo mais horizontal, a liberdade de criar e gerir seus processos de trabalho, não
se prendendo, necessariamente, à protocolos rígidos, bem como, a relação de
horizontalidade que referiu Lavor, não logrou êxito em conservar esse modo de
vinculação, tanto entre os profissionais de saúde e a comunidade, como dos
~ 379 ~
profissionais de saúde entre si, onde o respeito mútuo e a horizontalidade fertiliza o
diálogo e favorece a criatividade na proposição de soluções e a mudança cultural.
Não podemos negar os enormes avanços e mudanças neste processo
histórico de transição PACS/PSF/ESF. Tais mudanças, entretanto, quando vistas
em seus avanços, nem sempre os pontos críticos que diz respeito à relação entre os
profissionais de saúde e a comunidade, são alvos de reflexão. É necessário
empreender análises focando a atenção, tanto para o que deu certo e precisa ser
conservado, quando para o que ainda precisa avançar em termos de relações.
Hoje, claramente, a vinculação dos ACS com a comunidade já não são mais
vistos na ESF como algo importante para atingir as metas na melhoria dos
indicadores epidemiológicos de saúde, como o fora no final dos anos 80. Sumiram
na poeira do tempo, engolido pelo tecnicismo. É a normatividade e os protocolos,
próprios dos serviços de saúde, que hoje preponderam. Ao invés de uma
aprendizagem coletiva, que reconheça o que o ACS tem a ensinar sobre como fazer
atenção primária em parceria com a comunidade, é o contrário, o que vem se
firmando. Os ACS hoje passaram preponderantemente a seguir protocolos, e todos
os profissionais na ESF tem seus processos de trabalho distanciados da
comunidade e fincados em produtividade de número de visitas domiciliares,
número de consultas, e metas epidemiológicas para cumprir, de maneira
verticalizada e normatizada em seus processos de gestão.
Para termos uma APS funcionando como estratégia de organização em
rede de forma resolutiva em termos da longitudinalidade do cuidado, da
responsabilização e da coordenação do cuidado integral de saúde, como se
caracteriza a APS, é preciso avançar, não somente, a capacidade tecnológica e
operativa do sistema, mas implica também, operacionalizar uma mudança
paradigmática que toque a gestão dos processos de trabalho, fomentando a
capacidade cognitiva dos trabalhadores da saúde, como já apontou Mendes (2014).
Isso só é possível com o fomento de novas relações sociais baseada na inclusão de
~ 380 ~
novas epistemes que inclua o saber não acadêmico, e seja capaz de um diálogo
transdisciplinar.
Mendes (2015) alude que os demais atributos da APS como a focalização da
família e a orientação comunitária exige o desenvolvimento de uma competência
cultural por parte dos profissionais de saúde que colabore para o desenvolvimento
de uma relação horizontal com a população, de maneira a respeitar suas
singularidades culturais. Se observarmos atentamente o processo histórico
atentando para os processos relacionais, tanto entre profissionais de saúde e
população, como dos profissionais entre si, e ainda, de forma mais coletiva, as
relações entre governo/sociedade, podemos ver que algo importante vem se
apagando com o tempo, e os valores implicados na vinculação entre os
profissionais de saúde e a comunidade, entre o governo e a sociedade adquire um
viés preponderantemente tecnicista.
Por outro lado, há indícios de que algo ainda se conserva quando levamos
em conta a análise do Grupo Pesquisador da ESF dos Inhamuns. O processo
reflexivo vivencial proporcionado pela metodologia da pesquisa retirou o tema
vínculo do silêncio, e ao fazê-lo, implicou os próprios profissionais na necessidade
de rever posturas e mudanças nos processos de trabalho da ESF.
A pesquisa mostrou que, a despeito do vínculo ser um saber silenciado na
organização dos processos de trabalho, é cotidianamente vivido, forma um circuito
mobilizador de ações e decisões, e atua como regulador de condutas na ESF. O
silêncio sobre o tema é um dos fatores que contribuíram, ao longo do processo
histórico, para descolorir os valores que estão na base de construção dos serviços
de atenção primária em saúde, desde sua raiz histórica do PACS.
Podemos compreender que esse silenciamento se deve a própria natureza
do fenômeno, uma vez que falar das relações sociais em termos individuais e
coletivos não é algo comum nas instituições, sendo que quaisquer temas
~ 381 ~
relacionados a isso ficam restritos ao âmbito individual e privado. Assuntos que
tocam os relacionamentos, quando vêm à tona, acabam relegados aos espaços dos
corredores, e são caracterizados mais como desabafo e, raramente, encarados como
parte determinante para os resultados positivos dos processos de trabalho.
Isso está relacionado a alguns fatores. O contexto atual da
modernidade/colonialidade nos mostrou que a negação social do outro é a pauta
de valores que mobilizam e regulam as ações, o que denota um nível de vinculação
fragilizado consigo, e com o outro, na medida em que excluo o outro e me alieno
da sociedade de que sou parte.
O colonialismo, outra face da modernidade, nos deixou uma herança
clientelista e paternalista desdobrada em múltiplas faces. Uma, que se expressa no
poder, estabelecido por meio de uma hierarquia social, que classifica as
humanidades em termos étnicos, valorando de forma diferente, brancos, índios,
mestiços, negros, pobres, ricos etc. Outra, que adquire expressão nas sombras,
quando silencia e descaracteriza outras racionalidades epistêmicas, que não a
europeia, dando-lhes o estatuto da não existência, ou da não validade social e
científica. E outra face ainda, que se enraíza e se manifesta de forma mais sutil, mas
não menos efetiva, nos corpos que se vinculam em uma multiplicidade de laços,
que adquirem concretude na comunhão de uma diversidade de emoções e
sentimentos partilhados. A superioridade e/ou inferioridade é mais um sentimento
do que uma ideia, atacada ou defendida, por meio do discurso. A vida afetiva é
silenciada, contudo vivida no cotidiano, a despeito de prevalecer um racionalismo
que nega e deprecia os sentimentos e as emoções como algo inferior que denota
fraqueza humana.
Como denunciou Toro (2012), a afetividade é a função psicológica humana
mais perturbada e reprimida no mundo atual. Em função da fragmentação da nossa
visão de mundo moderna que separa corpo/mente, sujeito/objeto, razão/emoção,
a afetividade foi silenciada e encarcerada nos corpos, e seu discurso apenas aceito
~ 382 ~
quando restrito ao ambiente familiar e/ou religioso. O mundo moderno vive uma
miséria afetiva, sendo pautado pela competitividade individualista que contribui,
sobremaneira, para a patologia dos vínculos sociais.
A produção de saber pelo GP, proporcionada pela via reflexiva vivencial,
sinalizou que o vínculo toca o delicado circuito que tece a autonomia e a
responsabilização da APS, revelando que se inclui, dentre as tarefas dos
profissionais na ESF, o posicionar-se frente aos variados graus de autonomia que as
pessoas constroem ao longo de suas vidas para efetivar a longitudinalidade do
cuidado na APS. Tal posicionamento possui implicação direta com o nível de
vinculação que ambos, profissionais e usuários, têm consigo próprio.
Outro desdobramento do vínculo na ESF está na regulação de condutas
éticas que interligam saber, afetividade e poder, relacionado ao nível de vinculação
dos sujeitos com a sociedade, mobilizando, tanto nossa capacidade de excluir o
outro, dissociando vínculo e afetividade, gerando favoritismos e abuso de poder,
como também, nossa capacidade de inclusão do outro, pela compreensão empática
e altruísta, que entrelaça universalidade e equidade, efetivando a integralidade do
cuidado humanizado em saúde.
A humanização dos serviços de saúde está implicada na dialógica entre os
três níveis de vinculação. A capacidade de vincular-se consigo tem grande potencial
de retroalimentar o circuito. Contudo, não se desenvolve de forma espontânea
numa sociedade em que o egocentrismo e o individualismo destituem nossa
humanidade pela negação do outro. A capacidade de se colocar como igual,
superando as relações colonialistas está estreitamente ligada a nossa afetividade, e
não se reduz a uma opção política. A vinculação que nos humaniza passa pelo
reconhecimento profundo das nossas diferenças, mas, sobretudo, resulta do
reconhecimento do que nos torna iguais: a nossa humanidade.
~ 383 ~
É nesta perspectiva que a PNH, como política, não se efetiva nos discursos
ou nas boas intenções, mas passa por uma profunda revisão que toca a afetividade
humana na forma como é vivida nos espaços institucionais. Uma via de acesso a tal
caminho de humanização passa pelos níveis de vinculação humana que nos liga ao
mesmo tempo, a si mesmo, ao outro/alteridade, e ao todo, sociedade/natureza,
numa dialógica que funda uma transsubjetividade de comunhão, possibilitando uma
ética da religação, no sentido Moriniano.
Necessário se faz, como diz a canção do Milton, pensar além do bem e do mal e
lembrar de coisas que ninguém viu. O caminho que percorri com o GP, não apenas,
deixou marcas em cada um de nós, mas também, deixou pegadas no sentido de nos
atentarmos, como profissionais da saúde, o quão importante, necessário e urgente é
a tarefa de retirar a afetividade do silêncio e superar o tabu que nos faz evitar tocar
e acessar sentimentos que são pertinentes ao âmbito institucional da saúde.
Muitos avanços logramos com a construção do SUS em termos de
conquistas democráticas no Brasil. Mas as conquistas não estão livres dos
retrocessos. As relações sociais baseadas na reciprocidade e na solidariedade
contrastam de forma veemente com uma cidadania de mercado que torna o
cidadão, consumidor. Construir um sistema público efetivando os princípios da
universalidade equitativa, por meio de ações integrais, requer novas formas de
relações sociais em que a vinculação entre os atores se construam mediante laços
afetivos de solidariedade e empatia.
O trabalho desta pesquisa nos permitiu compreender que, mediante um
percurso reflexivo-vivencial, os níveis de vinculação que nos interligam uns aos
outros se mostra como um caminho para rever valores, revelando possibilidades de
aperfeiçoamento das práticas em saúde, na medida em que as condutas éticas
adquirem enraizamento afetivo pela religação de si com a humanidade de todos.
~ 384 ~
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TUB
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~ 402 ~
Quadro 4 – Publicações que avaliam a Atenção Básica e a Estratégia Saúde da Família e referem o tema vínculo.
Ano Revista Referência
2008 Caderno de Saúde Pública ROCHA, P. M. et al. Avaliação do Programa Saúde da Família em municípios do Nordeste brasileiro: velhos e novos desafios. Caderno de Saúde Pública, vol. 24 (supl.1), p. 69-78, 2008.
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2011 Ciência e Saúde Coletiva
CUNHA, E. M.; GIOVANELLA, L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da Atenção Primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciência e Saúde Coletiva, vol.16, supl.1, p.1029-1042, 2011.
~ 403 ~
PROGRAMAÇÃO DAS OFICINAS COM O GRUPO PESQUISADOR
OFICINA 1 - OS VÍNCULOS QUE TECEM A IDENTIDADE
Momento 1 - Apresentação dos participantes
Cada um faz o desenho de uma linha do tempo ressaltando sua vida profissional até chegar à atenção básica;
Compartilha.
Momento 2 – Visualização Criativa
Relaxamento (Música: Rhapsody on a Theme of Paganini)
Visualização criativa (pessoas significativas).
Momento 3 – Relato e análise
Cada um relata, individualmente.
Visualização Criativa – Os Vínculos que tecem a Identidade
1 – Explicação do Exercício
1. A Origem. A Gestalt, uma abordagem da psicologia, utiliza em seus processos terapêuticos.
2. O que é - evoca a imaginação, nossas emoções e sentimentos.
3. Como vai acontecer - O facilitador vai conduzir o exercício e os participantes relaxem e se deixe conduzir pelo facilitador;
4. A intenção - é entrar em contato com nossa própria identidade de forma consciente. Trabalhar com os pensamentos e a imaginação para evocar nossos vínculos. Nossa identidade é formada também pelos relacionamentos e a convivência com as pessoas que passaram e estão nas nossas vidas. Somos frutos das relações e dos vínculos que tecemos com muita gente.
2 - Relaxamento – (sugestão de música: Summer of 42. M.Legrand)
Sentar-se de forma relaxada, entrar em contato com seu corpo, perceber como estão os músculos do seu corpo e busque relaxar. Feche os olhos e respire lenta e profundamente.
~ 404 ~
3 – Vivência
Trazer para mente a imagem da pessoa que influenciou na sua escolha profissional ou na sua vida profissional. Traga para sua mente a imagem da pessoa
Quem é esta pessoa?
Como era a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?
Por que ela te influenciou na sua escolha profissional?
Não somos apenas nossa profissão. Nossa identidade é multi. Além da área profissional tem o também a nossa vida social, nossa visão de mundo, o nosso compromisso com a sociedade. Traga para sua mente a imagem da pessoa
Quem foi essa pessoa que lhe ensinou este compromisso social, a responsabilidade com o coletivo?
Como era o a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?
Por que e em que ela te influenciou para formar a sua visão de mundo e seu compromisso com a sociedade?
Nossa identidade é multifacetada, temos muitas áreas na nossa vida. Uma delas muito importante é nossa vida espiritual, nossa conexão com o sagrado. Traga para sua mente a imagem da pessoa
Quem foi essa pessoa que lhe inspirou a sua vida espiritual e lhe ajudou a descobrir a importância do sagrado?
Como era a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?
Por que e em que ela te influenciou na sua espiritualidade hoje?
E por ainda, temos outra área muito importante na nossa vida que paramos pouco para pensar. A nossa vida afetiva, nosso jeito de fazer amizade e viver o amor. Traga para sua mente a pessoa que mais influenciou no seu jeito de relacionar-se com as pessoas, quem te ensinou a amar.
Quem foi essa pessoa?
Como era a pessoa, o seu jeito de ser no mundo?
Por que você considera que ela te ensinou amar?
Finalização
Você tem agora em sua frente essas pessoas. Elas estão diante de você. Olhe para elas e evoque em seu coração o sentimento de gratidão por essas pessoas e por tudo que elas te ensinaram a ser o que você é hoje.
~ 405 ~
OFICINA 1 – VÍNCULOS QUE TECEM A IDENTIDADE –
ANÁLISE DA PRODUÇÃO DO GRUPO
Momento 1
Boas vindas.
Em círculo, compartilhar o sentimento que traz para Oficina.
Momento 2
Compartilhar proposta de análise do material utilizando os 4 elementos;
Entrar em contato com os elementos através das figuras e da poesia.
Momento 3
Responder as perguntas:
Do que são feitos os vínculos entre as pessoas?
O que tece um vínculo entre as pessoas?
Por que estas características no vinculam uns aos outros?
O que representam os vínculos na vida humana?
Vínculos se rompem? Por quê?
~ 406 ~
OFICINA 2 – VÍNCULOS NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
Momento 1 - Boa vindas e Memória
O que ficou em minha memória do trabalho realizado?
Histórico das oficinas.
Momento 2 – Visualização Criativa - Lugares Geomíticos
1. Relaxamento
Respiração – (Música – Adágio, de Zamfir)
Imagine que você está agora diante de uma vereda, um caminho que vai te levar ao lugar do vínculo na ESF. Você começa a caminhar, percorrer este caminho. De que é feito este caminho? O que você vê na sua frente? Percorrendo o caminho, você vê que tem um abismo, olha do lado e do outro e vê ao longe algo parecido com uma ponte e vai em direção a ela. No caminho você vai tentando visualizar esta ponte. Do que essa ponte é feita? Qual material? É uma ponte segura? Você chega na ponte e resolve atravessa-la para chegar ao outro lado.
Chegando ao outro lado você continua percorrendo seu caminho. Mais a frente você vê em seu caminho um grande obstáculo para continuar em frente. Quando você vê pensa em desistir. Que obstáculo é esse? O que você sente diante desse enorme obstáculo a sua frente?
Não dá mais pra voltar atrás, pois já percorreu muito caminho para chegar até aqui. Você resolve seguir em frente e enfrentar o obstáculo. De repente surge algo para te ajudar a enfrentar o obstáculo. O que ou quem é que te ajuda? Que ajuda oferece para você enfrentar seu obstáculo? Você vence esse obstáculo e segue em frente Quando você está bem perto de chegar você começa e enxergar o lugar que você quer chegar, tem um símbolo na entrada, que símbolo é esse? Como é esse lugar, visualize os detalhes, observe tudo que vê em sua volta, o que você vê?
Agora você sente que esta imagem vai se desfazendo e você vai voltando para o aqui e agora.
Momento 2
Compartilhar a vivência.
~ 407 ~
OFICINA 2 – VÍNCULOS NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA – ANÁLISE DA PRODUÇÃO GRUPAL
Momento 1 – Boas Vindas e Memória
O que vem comigo para oficina?
Memória dos encontros – retrospectiva dos encontros.
Momento 2 – Análise Classificatória da produção do grupo.
Em trios analisar o material a partir da pergunta escrevendo as respostas:
1. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um CAMINHO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um caminho? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
2. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse uma PONTE, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é uma ponte? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
3. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um OBSTÁCULO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um obstáculo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
4. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um ALIADO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
5. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um SÍMBOLO, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um símbolo? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
6. Se o Vínculo entre profissionais de saúde e usuários fosse um LUGAR, como seria de acordo com a imaginação do grupo? Quando o vínculo é um Lugar? Que significados trazem os elementos da imaginação para dizer do vínculo?
Momento 3 – Análise transversal da produção do grupo.
A partir da experiência cotidiana no CSF que histórias poderíamos contar sobre o vínculo entre profissionais e usuários dos serviços de saúde, a partir dos elementos que nos trouxe os lugares geomíticos?
O que essa história revela sobre o vínculo?
~ 408 ~
SISTEMATIZAÇÃO DA PRODUÇÃO DO GRUPO PESQUISADOR LUGARES GEOMÍTICOS
QUADRO 5 – Sistematização da Visualização Criativa - Lugares Geomíticos
O CAMINHO
Deserto
Difícil de andar, sempre aparecia obstáculo, sempre tinha que dá um jeito de contornar este obstáculo que eu tinha que chegar ao objetivo
Caminho verde de um lado e outro, um caminho livre, não tinha obstáculo, terreno plano. Tinha mato e eu peguei um atalho pra chegar na ponte
Meu caminho era bem verde, tinha muitas flores, eu tava com muita curiosidade né, até que chegou o penhasco, a tal ponte, e eu me assustei que eu morro de medo de altura
Meu caminho era parecido com esses campos que a gente tem aqui na nossa lateral que são campos amplos e era bastante verde cheio de árvores
Eu vi a vereda de um lado e do outro, tinha mato verde eu saí caminhando na vereda
Minha vereda era muito verdinha, tinha muito capim verdinho, muitas flores, muito verde, andando em um lugar muito bonito, muito plano
quando eu comecei no caminho no início era verde de um lado e do outro, depois já tinha um outro tom que eu não sabia explicar porque era, mas era tranquilo caminhar.
As veredas era uma estrada de terra batida carroçada, o penhasco caminhava comigo ao meu lado, o caminho era bem estreito, mas perfeitamente trafegável. Do outro lado muito verde muito verde mesmo. Caminhando nesta estrada eu cheguei até a ponte
A PONTE
Era de madeira. O Sentimento de medo porque tava longe
Sem escora, só uma plataforma, sem os corrimãos. Ponte que não era segura. Senti um alívio quando atravessei e senti o medo do balanço. A ponte tava sobre água Quando atravessei pensei que já ia chegar e encontrei o obstáculo
Uma ponte de madeira sobre água e tinha corrimão. A ponte estava estalando bastante, eu estava com medo, mas sensação quando eu estava terminando de passar ela, eu pulei bem rápido e quando pulei dela eu comecei a andar na vereda verde.
Ponte de madeira sem corrimão, ponte bem estreita, mas eu tinha que atravessar, então, devagarinho cm medo, passei! E o caminho já não era tão bonito quanto no começo. continuei
A minha ponte não era estreita de madeira, era larga e dava pra passar sem ter medo nenhum. Eu naõ tive medo na hora da ponte, mas na hora do obstáculo
Mais a frente tinha a ponte, eu achei muito distante a ponte. E na ponte eu via de madeira, eu não lembro se tinha corrimão do lado e outro, sei que era alto e eu tava com medo, com medo e tudo, mas eu atravessei aponte.
Cheguei na ponte, era de madeira com corrimão de cordas e eu passei tranquilamente não tive medo não! Neste caminho aparecia um abismo e tinha uma ponte e pra atravessar essa ponte, primeiro eu olhava pra ponte e não via por onde passar, não sei como era que essa ponte era. Eu sei que corrimão eu tenho certeza que ela não tinha, mas o que eu fiquei surpresa é que eu morro de mede de altura e eu não tive medo, sei que era alto aí encontrei um caminho pra chegar na ponte era um outro caminho
Por baixo da ponte passava água, mas não era um rio coberto de água, era um rio pequeno que corria uma água muito agradável eu ouvia o barulho da água correndo por baixo da ponte. A ponte era feita de madeira, madeira muito velha e antiga, e parecia que estava chovendo porque tava bem molhado, mas em momento nenhum eu fiquei com medo de atravessar, apesar da aparência ser antiga eu estava seguro que aquela ponte iria me fazer atravessar para o outro lado
~ 409 ~
O OBSTÁCULO
Pedra bem grande que tomava todo caminho
Uma rocha
Uma pedra muito grande.
O meu obstáculo era uma parede. Aí apareceu uma corda de escalar. Eu fiquei olhando a parede e não tinha pra onde ir. Não tinha saída.
Eu vi um buraco muito grande e que aí eu pedi ajuda: “Meu Deus me ajude pra mim atravessar, porque sozinha eu não posso!”
Eu não lembro do obstáculo não! Eu só sei que eu queria chegar
O medo foi quando eu cheguei no meu obstáculo que era dois touro! Dois touros valentes, aí eu fiquei parada e não saía
O obstáculo eu não sei identificar eu só sei que tinha muito papel!!! Era tanto papel minha gente e a pessoa que eu consegui enxergar
Atravessei tranquilo sem medo de ser feliz e do outro lado tinha o obstáculo. O obstáculo era uma floresta, um negócio bem grande, quase amazônico mesmo. E já que era pra entrar vamo entrar, eu não queria entrar não.
O ALIADO
O pai e a mãe conversou e procurou soluções para sair do obstáculo Arrodiei a pedra. Meus pais disseram que por um lado ou por outro que iria chegar lá.
A surpresa foi que as pessoas da equipe me deram a mão para eu atravessar essa rocha. Me deram a mão e eu subi. Eu vi as mãos das pessoas da equipe.
Só que eu não sei como tinha uma pessoa que tava praticando rapel que apareceu lá. E por coincidência me tirou de lá. Subi a pedra de rapel e passei por ela.
Até que deu um vento e apareceu uma corda. E lá vai eu subir, escalei com ajuda da corda e pulei. Continuei e o caminho já era verde de novo, um caminho mais bonito tanto quanto no início.
Aí chegou mamãe. E nós fomos buscar sabe o quê? Nós fomos buscar um tronco de madeira pra mim atravessar o obstáculo. E do outro lado era muito, muito verde. E eu não vi nenhuma placa
Quando eu dei fé meu marido chegou e botou o toro pra correr e continuei no caminho muito bonito
Era a Verônica, minha amiga. Inclusive quando eu enxergava me dava uma paz tão grande! É a amiga que anda comigo a Vevé, pareceu tanto papel e quando ela aparecia eu senti uma paz, não levava os papéis, mas era como se fosse uma paz, eu sentia, “agora tem alguém comigo pra isso né! Os papéis não sumiam, a presença dela era que confortava, era como se tivesse chegado alguém pra me ajudar naquilo ali, eu não lembro
De repente apareceu um mapa na minha mão, não foi uma pessoa, o mapa me conduziu por veredas, era o mapa da floresta, que dobra aqui, chegar acolá vai pra acolá, atravessar o riacho tem uma pedra, mas pode ir por outro lado, tudo bem orientado até chegar ao destino.
~ 410 ~
O LUGAR
Cheguei em minha própria casa a minha família
Estratégia Saúde da Família Eu não consegui enxergar mais nada. Consegui chegar, o difícil foi chegar e um sentimento de realização
E eu botei meu rosto lá e vi várias pessoas juntas não sei quem eram, pra mim eram desconhecidas, do nada no meio da floresta e que me receberam com muita festa! Com muita festa! Eles eram civilizados!
Quando cheguei tinha várias pessoas conhecidas. Eu não lembro quem eram, eram daqui, da minha casa, eram pessoas próximas que estavam ansiosas pra que eu chegasse e contando que foram por outro caminho. E ainda teve isso, porque eu peguei o caminho mais difícil.
Por detrás das árvores grandes tinha uma casa enorme. Como se fosse uma fazenda, mas o que era que tinha lá não sei. Eu ouvi muito canto de pássaros. Eu fui querendo cochilar quase no final eu fui querendo cochilar eu percebi que eu ia cochilar. Eu fiquei cansada ao atravessar o tronco de madeira, e ao ficar cansada eu tossi, e toda vez que eu tossia é porque o negócio tava difícil
Cheguei na unidade e meus amigos estavam tudo lá me aplaudindo, festejando que eu tinha chegado bem. Eu cheguei aqui nesta unidade daqui mesmo!
Eu não lembro de ter chegado em nenhum lugar acho que dormi! Ei fiquei nos papéis
Engraçado o destino era um posto de saúde também e era um posto de saúde que aparentava ser muito antigo, mas muito tranquilo, diferente, muito tranquilo não tinham pessoas não parecia que tava desabitado mas eu sabia que tinha que tá ali. Era um lugar de muita paz
O SÍMBOLO
Uma placa branca ESF
E quando eu continuei no verde e tinha tipo uma área lá coberta de mato quase como as ocas indígenas só que era verde, e tinha a placa verde com uma flor e uma seta
Mas o que via na frente era muito pé de árvores grandes. Uma árvore grande
O símbolo tinha ESF o prédio era um amarelo tipo caiado era uma amarelo mais escuro quase laranja com ESF em vermelho era um lugar de muita paz onde eu encontrava no ambiente daquele, rodeado de floresta, de plantas grandes, mas muito agradável pra mim!
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE MEDICINA
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE
Você está sendo convidado (a) para participar, como voluntário(a), de uma pesquisa. O documento abaixo contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que vamos realizar. Sua colaboração será muito importante para nós.
Título da Pesquisa: O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. Pesquisadora Responsável: Maria Idalice Silva Barbosa Departamento de Saúde Comunitária - UFC: Secretaria de Saúde de Tauá Telefone para contato (inclusive a cobrar): 85 - 99381776
Esta pesquisa tem como objetivo: “Compreender a expressão do vínculo entre
profissionais de saúde e usuários e seus desdobramentos para atenção básica do
SUS”. A expectativa desta pesquisa será refletir e sistematizar ideias sobre o vínculo
na atenção básica do SUS.
Convidamos você para integrar o grupo pesquisador responsável por esta
pesquisa, e como metodologia realizamos algumas Oficinas em que abordaremos o
assunto. Os relatos orais serão gravados para que a pesquisadora registre fielmente
o que lhe for dito, respeitando a fala e o pensamento de cada participante.
Destacamos a importância de sua participação nesta pesquisa que permitirá a
produção de saber a partir da contribuição de profissionais da saúde que vivenciam
cotidianamente o vínculo com as pessoas que usam seus serviços em seu trabalho
cotidiano de trabalho na atenção básica do SUS.
Informamos que em qualquer etapa do estudo, você terá acesso aos
profissionais responsáveis pela pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas
Esclarecemos que a pesquisa, aparentemente, não traz risco a sua saúde e que o
(a) senhor(a) pode desistir de participar da mesma no momento em que decidir, sem
que isso lhe acarrete qualquer penalidade. Lembramos, ainda, que na pesquisa
qualitativa, habitualmente, não existe desconforto ou riscos físicos. Entretanto, o
desconforto que o sujeito poderá sentir é o de compartilhar informações pessoais ou
confidenciais, ou em alguns tópicos que ele possa se sentir incômodo em falar.
Nesse sentido, o (as) senhor (a), como já dito acima, não precisa responder a
qualquer pergunta ou parte de informações obtidas nas oficinas, se sentir-se que ela
é muito pessoal ou sentir-se desconforto em falar. O (a) senhor (a) tem a liberdade
de retirar seu consentimento a qualquer momento e deixar de participar do estudo,
sem nenhum prejuízo.
As dúvidas com relação à assinatura do TCLE ou os direitos do sujeito da pesquisa podem ser obtidas entrando em contato pela responsável pela pesquisa. Este documento foi elaborado em duas vias, uma ficará com o pesquisador responsável e a outra com o sujeito da pesquisa.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE MEDICINA
DEPARTAMENTO DE SAÚDE COMUNITÁRIA TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO – TCLE
Você está sendo convidado (a) para participar, como voluntário(a), de uma pesquisa. O documento em anexo contém todas as informações necessárias sobre a pesquisa que vamos realizar. Sua colaboração será muito importante para nós.
Título da Pesquisa: O VÍNCULO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE DO BRASIL.
Pesquisadora Responsável: Maria Idalice Silva Barbosa
Universidade Federal do Ceará / Departamento de Saúde Comunitária
Telefone para contato (inclusive a cobrar): 85 - 99381776
Consentimento da participação da pessoa como sujeito.
Eu, _________________________________________________________,
RG______________/ CPF/___________________, abaixo assinado, concordo em
participar do estudo O VÍNCULO NA ATENÇÃO BÁSICA como sujeito participante
do grupo pesquisador. Fui suficientemente informado a respeito das informações
que li ou que foram lidas para mim, descrevendo o objetivo do estudo. Ficaram
claros para mim quais são os propósitos do estudo, os procedimentos a serem
realizados, seus desconfortos e riscos, as garantias de confidencialidade e de
esclarecimentos permanentes. Ficou claro também que minha participação é isenta
de despesas. Concordo voluntariamente em participar deste estudo e poderei retirar
o meu consentimento a qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem
penalidades ou prejuízo ou perda de qualquer benefício que eu possa ter adquirido.
Tauá, __________________________ de 2015
Nome e Assinatura do sujeito ou responsável:
____________________________________
Este documento foi elaborado em duas vias, uma ficará com o pesquisador responsável e a
outra com o sujeito da pesquisa.
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CARTA DE ANUÊNCIA
Eu, ADEMÁRIA TEMÓTEO ROSA, Secretária de Saúde da Prefeitura
Municipal de Tauá, autorizo a realização da pesquisa “O Vínculo na Atenção
Primária à Saúde do Sistema Único de Saúde do Brasil” a ser realizada pela
pesquisadora Maria Idalice Silva Barbosa da Universidade Federal do Ceará a ser
iniciada após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.
Autorizo os pesquisadores a utilizarem o espaço da Secretaria Municipal de
Saúde de Tauá e nos territórios adstritos das Equipes da Estratégia Saúde da
Família, para a realização de oficinas, entrevistas e observação. Afirmo que não
haverá qualquer implicação negativa aos profissionais da saúde e usuários do
sistema público de saúde que não queiram ou desistam de participar do estudo.
Autorizo também que o nome da Secretaria de Saúde do município de Tauá-
CE possa constar no relatório final desta pesquisa bem como em futuras
publicações científicas.
Declaro, ainda, conhecer e que será cumprida as Resoluções Éticas
Brasileiras, em especial, a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
Fortaleza, 25 de março de 2015