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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro O VIOLÃO NA SOCIEDADE CARIOCA (1900-1930): TÉCNICAS, ESTÉTICAS E IDEOLOGIAS FERNANDA MARIA CERQUEIRA PEREIRA ORIENTADORA: Profª Drª VANDA LIMA BELLARD FREIRE Rio de Janeiro 2007

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O VIOLÃO NA SOCIEDADE CARIOCA (1900-1930): TÉCNICAS, ESTÉTICAS E IDEOLOGIAS

FERNANDA MARIA CERQUEIRA PEREIRA

ORIENTADORA: Profª Drª VANDA LIMA BELLARD FREIRE

Rio de Janeiro

2007

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O VIOLÃO NA SOCIEDADE CARIOCA (1900-1930): TÉCNICAS, ESTÉTICAS E IDEOLOGIAS

Fernanda Maria Cerqueira Pereira

Tese de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de mestre em música.

Orientadora: Profª Drª Vanda Lima Bellard Freire

Rio de Janeiro Abril de 2007

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Ficha catalográfica: Pereira, Fernanda Maria Cerqueira.

O violão na sociedade carioca: técnicas, estéticas e ideologias. Fernanda Maria Cerqueira Pereira. – Rio de Janeiro: UFRJ/CLA, 2007.

xi, 118 f:il.; 31 cm. Orientador: Vanda Lima Bellard Freire Tese (mestrado) – UFRJ/ Centro de Letras e Artes/ Escola de Música

Programa de Pós-graduação em Música, 2007. Referências Bibliográficas: f.

1.Violão. 2.Violão carioca. 3. Música brasileira. 4. História da música. 5. Fenomenologia I. Fernanda Maria Cerqueira Pereira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Música. III. Título.

4

Dedico este trabalho aos meus professores

de violão Fred Schneiter (in memorian)

e Luis Carlos Barbieri.

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AGRADECIMENTOS:

Aos meus colegas de mestrado pelo convívio e pelas discussões enriquecedoras. A todos os professores do mestrado, especialmente a minha orientadora Vanda Freire e ao professor Samuel Araújo, pelo incentivo. A equipe do Museu da Imagem e do Som. A David Jerome pelas gravações. A Jodacil Damaceno pelas conversas, gravações e partituras. A CAPES pela ajuda financeira. A Clara e a Bernardo pela paciência e amor.

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Sumário:

Introdução................................................................................1

Revisão de Literatura..............................................................5

1) Cultura erudita e popular e identidade nacional

2) O violão carioca e o choro....................................................20

Metodologia e Referencial Teórico ........................................39

1) Memória e história.................................................................42

2) Identidades Culturais.............................................................48

3) Fenomenologia e musicologia...............................................54

3.1) Estética da recepção. 3.2) Fenomenologia e música.....................................................56

Apreciação auditiva e revisão crítica de alguns aspectos da trajetória do violão no Rio

de Janeiro

1) Apreciação auditiva.......................................................................66

1.1) Marcha Columbia – Benedicto Chaves...............................67

1.2) Romance (parte I) (parte II) – Henrique Brito.....................70

1.3) Há quem resista? (maxixe) - Levino da Conceição.............74

1.4) Recordando (choro) - João Pernambuco..............................77

1.5) Características técnicas e estéticas do violão, observadas através a escuta..................................................80

2) Revisão crítica de alguns aspectos da trajetória do violão no Rio de Janeiro.

2.1) Violão e sociedade carioca....................................................82

3) “Cultura” do Violão..................................................................90

3.1) Profissionalização..................................................................91

3.2) Repertórios e técnicas:...........................................................91

3.3) Processo de separação (violão popular e erudito)..................95

7

3.4) A revista O Violão..................................................................98

3.5) Lembrança e esquecimento....................................................101

Conclusões .................................................................................104

Bibliografia ................................................................................107

Anexos ........................................................................................109

1) Gravações

2) Gravações não localizadas

3) Partituras editadas no período de 1900 a 1930

4) Partituras editadas fora do período estudado de músicas compostas nos anos de

1900/1930

5) Transcrições de peças para violão

6) CD com gravações das músicas apreciadas

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RESUMO

O Violão Na Sociedade Carioca (1900-1930): Técnicas, Estéticas e Ideologias

Fernanda Maria Cerqueira Pereira

Orientadora: Prof. Dr. Vanda Lima Bellard Freire

A principal propostas da pesquisa foi reinterpretar a história do violão carioca entre os

anos de 1900 a 1930. A música composta para violão, no período, foi pouco debatida,

sendo que um dos poucos violonistas que ficou conhecido foi João Pernambuco. Contudo,

com o levantamento de partituras e gravações de peças compostas para violão solo e peças

para violão acompanhado de violão ou piano, foi possível encontrar vários compositores

que estavam praticamente esquecidos.

Algumas das gravações encontradas nesse levantamento foram analisadas através da

fenomenologia, o que possibilitou recuperar alguns aspectos da técnica e estética sócio-

musical da época. Esta análise possibilitou uma comparação entre as músicas de João

Pernambuco e os demais violonistas o que revelou uma série de qualidades musicais do

universo violonístico da época.

Com isso, a pesquisa contribuiu para uma revisão de alguns aspectos sócio-musicais

que envolveram o violão no Rio de Janeiro. Um dos pontos importantes, debatidos por esta

pesquisa, é o que diz respeito ao desaparecimento do violão, nas primeiras décadas do

século XX, dos “salões”. As observações da pesquisa levaram a constatação de que o

discurso que procurava banir os violão dos grupos sociais “respeitáveis”, não correspondia

à prática musical da cidade.

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ABSTRACT

O Violão Na Sociedade Carioca (1900-1930): Técnicas, Estéticas e Ideologias

Fernanda Maria Cerqueira Pereira

Orientadora: Prof. Dr. Vanda Lima Bellard Freire

The main proposal of this research was to reinterpret the carioca guitar history

between 1900 and 1930. The Brazilian guitar history of that period has barely been

explored and needs to be reworked. Many guitarists apart from João Pernambuco are not

known today.

Some records found were analyzed through phenomenological methodology, which

made it possible to recover some technical and aesthetics aspects of that period. This

analysis, which revealed many qualities of the guitar universe, allows us to compare

Pernambuco´s music to other guitarists’ work.

Herewith, the research contributes to review some social and musical aspects that

evolved the guitar in Rio de Janeiro. One point, discussed in this research, is related with

the guitar disappearance among high classes in the first decades of the 20th century. The

research observation made it possible to see that the speech about guitar bans does not

correspond to many guitar practices in the city.

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I. Introdução:

A presente pesquisa surgiu de algumas questões referentes ao repertório brasileiro

composto para violão. Estas questões estão ligadas, inicialmente, ao ensino do instrumento

nas universidades, especificamente na Escola de Música da UFRJ, local onde concluí

minha graduação em violão, e pela falta de referências à música brasileira composta para

violão do início do século XX.

Ao longo da graduação foi possível perceber que o repertório que recebia uma maior

ênfase no programa do curso era o voltado para músicas da tradição européia, ou para o

que, baseado nesta tradição, ficou conhecido como “violão clássico”. O foco do

aprendizado nesse repertório, apesar de representar um universo musical rico e fascinante,

soava como algo distante e pouco coerente com o restante da música produzida no Rio de

Janeiro. Apesar de ouvir o violão em diversas expressões musicais da cidade, dentro da

universidade o repertório se restringia aos cânones e técnicas do universo musical da

música de concerto.

Com o término da graduação, meu interesse se voltou para a preparação de um

repertório que contemplasse compositores brasileiros. Com isso procurei por músicas que

exemplificassem a trajetória do instrumento no Rio de Janeiro, do início do século XX até

os dias de hoje. Esse repertório foi composto por obras de João Pernambuco, Garoto, Villa-

Lobos, Baden Powell, Radames Gnatalli, Fred Schneiter, Marco Pereira e Luis Carlos

Barbieri, Mozart Bicalho, entre outros, e me incentivou a buscar mais informações sobre os

violonistas brasileiros do início do século XX, os quais estavam praticamente esquecidos

(apenas seus nomes eram citados em alguns livros sobre o violão brasileiro).

A presente pesquisa permitiu de forma mais sistemática uma busca pelos violonistas

do início do século XX, suas músicas e seus valores estéticos e técnicos, os quais podem

ser percebidos através das gravações e nas relações sócio-musicais vividas na época.

Apesar do violão ocupar um espaço grande dentro da música produzida no Brasil,

verificou-se que a literatura brasileira publicada sobre o assunto, é pequena. No meio

acadêmico é onde se verifica maior produção de trabalhos sobre o tema, mas a maioria

destas pesquisas fica circunscrita às universidades.

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A partir da revisão de literatura, não foi constatada a publicação de uma

historiografia brasileira sobre o instrumento no Rio de Janeiro. A maioria dos livros

pesquisados, focalizando a história do violão, não reserva muito espaço para o violão no

Brasil e dá maior ênfase à origem e desenvolvimento do instrumento na Europa. As

exceções, na literatura consultada, foram as teses de Graça Alan (1995) e Márcia Taborda

(2005), que enfatizaram a presença do violão no Brasil e Rio de janeiro.

Um violonista que atualmente demonstra preocupação com o repertório da presente

pesquisa é Fabio Zanon. Este músico está apresentando, desde 2003, programas sobre

violão na Rádio Cultura de São Paulo. Alguns desses programas foram dedicados ao violão

no Brasil, sendo que os violonistas dos quais trataremos nesta pesquisa, receberam destaque

nos programas pelas suas composições e atuação no universo violonistico. Fabio Zanon em

vários momentos fala da necessidade de se rever a música desses violonistas e de

incorporá-la ao repertório dos violonistas atuais.

Para este projeto, foi delimitado o período de 1900 a 1930, porque nele foi verificada

a atuação de vários violonistas que hoje não são conhecidos pelo público e nem pelas novas

gerações de instrumentistas, sendo uma das poucas exceções, dentre eles, João

Pernambuco.

Através de um levantamento da discografia deste período, foram encontradas

gravações de violão solo e gravações de violão acompanhado de violão/piano de

compositores como: Rogério Guimarães, Mozart Bicalho, Henrique Britto, Jacy Pereira,

Glauco Viana, Benedicto Chaves, Levino da Conceição, entre outros. Destes, os únicos que

tiveram parte de suas músicas transcritas para partitura foram Mozart Bicalho e João

Pernambuco. As músicas de Bicalho, editadas por Alexandre Piló e Renato Sampaio,

continuam sem muita divulgação. Já as peças de Pernambuco, editadas por Turíbio Santos,

Henrique Pinto e Jodacil Damaceno são tocadas por vários violonistas da atualidade. Será

que o reconhecimento dos demais músicos contemporâneos de Pernambuco precisaria da

legitimação de nomes do violão erudito brasileiro, como foi o caso de João Pernambuco,

que além de ter sua obra editada por nomes expressivos do violão no Brasil, foi muito

elogiado por Villa-Lobos?

Com a escuta dos violonistas do início do século XX, não foi possível perceber

grande diferença de técnica ou de qualidade composicional entre essas peças e as obras de

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João Pernambuco. Parece que o reconhecimento da obra desses violonistas só está sendo

postergado por falta de partituras e de se criar uma tradição de estudar também, essas peças.

Todos estes violonistas são freqüentemente classificados como “populares”, no

entanto, foi possível verificar que, no início do século XX, as fronteiras entre estes dois

universos musicais, pelo menos no caso do violão, não eram muito nítidas. É possível,

aliás, questionar essas fronteiras mesmo nos dias atuais. A maioria dos violonistas do início

do século tanto participava de grupos de choro ou de grupos regionais, como possuía

também repertório solista. Além disso, era comum perceber que mesmo participando do

universo do choro, alguns violonistas, como por exemplo, Joaquim dos Santos (Quincas

Laranjeiras) eram defensores dos métodos de violão de Tárrega.

Apesar de a maioria dos livros consultados tomar como ponto de partida uma cisão

entre violão popular e erudito, como algo que sempre existiu, a partir da observação do

percurso de alguns violonistas, pôde-se perceber que eles possuíam um caráter muito mais

eclético, tanto na sua formação quanto no seu repertório. Arriscaríamos dizer que este perfil

dos violonistas do início do século pode ser verificado até os dias de hoje em muitos dos

músicos dedicados ao instrumento.

Uma das propostas da pesquisa foi o levantamento e catalogação do repertório

violonístico encontrado em partituras ou gravações nas décadas de 1900 a 1930 por

compositores que se achavam na cidade do Rio de Janeiro. Foram consultados os seguintes

acervos: Biblioteca Nacional, Instituto Moreira Sales, Museu da Imagem e do Som e o

acervo de colecionadores como Ronoel Simões e Jodacil Damaceno. Além desse critério,

delimitamos a busca do material para as composições instrumentais, especificamente violão

solo, ou violão acompanhado por violão/piano. Este repertório foi apreciado a partir da

ótica da história social, com base em princípios da dialética e da fenomenologia. A

metodologia será detalhada mais adiante, em capítulo específico.

Este levantamento de repertório serviu como base para trabalhar e tentar responder as

duas questões principais do projeto: a estética musical violonística e, do ponto de vista

social, os processos de criação identitárias ligados ao violão. Para tratarmos da primeira

questão, foram feitas apreciações auditivas de gravações de obras encontradas da época,

com o intuito caracterizar aspectos técnicos e musicais predominantes. Para tratar da

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segunda questão, foram observados os processos de criação de identidades na sociedade

carioca da época e a função do violão como símbolo dessas representações. A partir dessas

abordagens, foram focalizadas também as alterações na valorização social que sofreu o

instrumento, ao longo do século XX.

Dessa forma, a pesquisa pode ampliar o conhecimento sobre obras para violão

compostas no período delimitado e servir para a construção de parte da historiografia do

instrumento no Brasil, com uma abordagem estética e social. Além disso, a pesquisa visa

uma aproximação entre as questões técnicas e práticas do universo violonístico com

questões teóricas. Com isso, acreditamos estar contribuindo para um apuro do estudo do

repertório para violão, elemento que falta na formação de violonistas, contribuindo para

aproximação e compreensão da produção musical violonística do início do século XX no

Brasil.

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II. Revisão de Literatura

1) Cultura erudita e popular e identidade nacional.

Inicialmente, foram revisados livros que abordam alguns processos de construção de

identidade cultural na sociedade carioca no final do século XIX e início do século XX.

Nestes livros, são focalizados alguns dos agentes sociais envolvidos nesse processo de

criação de identidade, entre os quais é destacado o papel dos intelectuais, como

articuladores culturais. Em um segundo momento, a revisão de literatura se deteve em

alguns dos principais discursos produzidos por intelectuais entre os anos de 1908 e 1950,

em torno da história da música brasileira e de questões relativas à identidade cultural.

No primeiro livro revisto, Renato Ortiz (1985) faz referências às principais teorias

científicas adotadas pelos intelectuais brasileiros do século XIX (Nina Rodrigues, Silvio

Romero e Euclides da Cunha) para explicar a cultura brasileira: Evolucionismo (Spencer),

Positivismo (Comte) e o Darwinismo social. Estas teorias, de forma geral, falam que o

simples (primitivo) evolui para o complexo (sociedades “ocidentais”).

“Do ponto de vista político, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar à elite européia uma tomada de consciência de seu poderio que se consolidava com a expansão mundial do capitalismo. Sem querer reduzi-lo a uma dimensão exclusiva, pode-se dizer que evolucionismo em parte legitima ideologicamente a posição hegemônica do mundo ocidental” (ORTIZ, 1985:14)

Os intelectuais brasileiros, com o empenho de criação do “nacional”, utilizaram os

critérios do meio e da raça como os delineadores de uma identidade brasileira. (id: 15)

Segundo essa visão, o meio determina o homem, ou seja, o tipo de clima, por exemplo,

afetaria o caráter do povo brasileiro. Ainda segundo esse enfoque, o Brasil se constituiu da

fusão das três raças, porém a raça branca ocuparia lugar de superioridade na construção da

civilização brasileira. Para atingir um ideal de evolução seria necessário um branqueamento

da sociedade brasileira, que se daria pela miscigenação. Assim, este “estado nacional”

evoluído era uma projeto a longo prazo.

O autor considera que os intelectuais brasileiros do século XIX, apesar de utilizarem

idéias de autores estrangeiros, estavam em busca de explicações para seus próprios dilemas.

Como o Brasil ultrapassava, com o fim do século XIX e início do XX, uma fase de

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transição, todo o projeto intelectual de nação dessa época era uma coisa para o futuro, para

quando estivesse constituído o “estado brasileiro” e a “raça brasileira”. Constituídos estes

elementos, existiria uma unidade nacional. Ortiz analisa esse processo, recorrendo a

conceitos como história, memória e ideologia.

“O presente é uma rememorização do passado. O pensamento científico de nossos autores está mais próximo da ideologia. Ele é fabricado a partir de motivações reais vividas no presente, possuindo ainda a possibilidade de se projetar para o futuro.” (id:33)

Renato Ortiz passa a analisar a transformação ocorrida na sociedade brasileira a partir

da década de 30, com o Estado Novo. A principal mudança apontada é a transformação da

mestiçagem em símbolo nacional, ou melhor, as teorias raciais passam à categoria de

teorias culturais. Esta transformação, segundo Ortiz, se dá a partir do livro Casa Grande e

Senzala de Gilberto Freyre (FREYRE, 1933). Este autor elaborou uma visão “positiva” do

mestiço, que se contrapunha a alguns aspectos difundidos pelas teorias raciais anteriores,

tais como preguiça, indolência, associados, até então, a idéia de mestiço.

Outro aspecto da cultura brasileira que ganha força da década de 30 e que é abordado

por Ortiz é a “ideologia do trabalho”. (ORTIZ: 42) Para o autor, esta ideologia foi usada

pelo Estado Novo como um dos modelos de criação do “nacional”, o qual propunha “erigir

o trabalho como valor fundamental da sociedade brasileira”. (Id: 43)

Por fim, Ortiz aborda a diferença entre cultura popular e identidade nacional. A

primeira seria o objeto de relacionamento entre grupos sociais diversos (daí a

multiplicidade de manifestações culturais em uma sociedade dos grandes centros urbanos

de hoje). A segunda estaria no âmbito das ideologias e não tem vigência nas interações

sociais diretamente, ou seja, atuaria subjacente ao campo do discurso e representaria a

ideologia de um grupo social dominante. O Estado e seus agentes formadores (intelectuais)

representariam para o autor este campo de produção dos símbolos nacionais. Dessa

maneira,

“[...] o Estado, através de seus intelectuais, se apropria das práticas populares para apresenta-las como expressões da cultura nacional. O candomblé, o carnaval, os reisados, etc. são, dessa forma, apropriados pelo discurso do Estado, que passa a considera-los como manifestação de brasilidade.” (id:140) “O estudo da identidade nos remete a uma distinção entre movimentos sociais e manifestações culturais. Não resta dúvida de que a cultura encerra sempre uma dimensão de poder que lhe é interna [...] Os fenômenos culturais encerram sempre

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uma dimensão onde se desenvolvem relações de poder, porém seria impróprio considerá-los como expressão imediata de uma consciência política ou de um programa partidário.” (id:142)

No segundo livro revisto, é possível perceber que o argumento de Mônica Velloso

(VELLOSO, 1988), comentado mais adiante, evidencia uma defesa da cultura popular e das

verdadeiras raízes brasileiras, em um discurso que se opõe, em alguns pontos, ao utilizado

por Hermano Viana (VIANNA, 1995) e Renato Ortiz (ORTIZ, 1985). O discurso escolhido

por Vianna, outro livro revisto, tenta desmistificar o isolamento das camadas sociais

cariocas, a condescendência das elites e o papel de “vítima” das classes populares, no que

diz respeito a músicas e ideologias da época. Renato Ortiz apresenta um discurso

semelhante ao de Vianna, mas considera que o projeto de construção de uma identidade

nacional é ideológico e é fruto da ação do estado e de seus agentes, entre eles o intelectual.

As práticas populares seriam apropriadas pelos intelectuais que as transformariam em

símbolos nacionais. Tal afirmação, contudo, ao nosso ver, parece excluir, em parte, a

participação do povo, elite e classes populares, nestes debates e disputas por símbolos

culturais.

Mônica Velloso (VELLOSO, 1988) analisa como foram tratadas as tradições

culturais populares no período de 1900 a 1918. De forma geral, a autora enfatiza que a elite,

durante o período chamado de Belle-Époque, adotou uma postura segregacionista com

relação às classes populares, mas que estas últimas reagiram, em uma tentativa de

preservarem suas expressões culturais. Esta reação teria recebido a simpatia de alguns

membros da elite, o que levou, mais tarde, a um processo de valorização e de troca entre as

diferentes esferas sociais.

A autora considera que datam do Romantismo as primeiras investidas sobre o

nacionalismo, em busca de uma afirmação, através da valorização das raízes culturais do

índio, do caboclo, etc.

A partir 1870, há, segundo a mesma autora, uma mudança na maneira de pensar a

cultura. O particularismo e a singularidade próprios do romantismo são substituídos por

uma visão universalista. “A cultura passa a ser avaliada por uma escala de valores

padronizada. O saber técnico-científico é considerado o fiel da balança”.(VELLOSO,

1988:7)

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A partir da adoção desse novo paradigma intelectual “passamos a constituir uma

espécie de subcultura européia, considerada inferior por integrar elementos arcaicos,

bárbaros e selvagens”. (Id: 7) Estes elementos eram atribuídos às camadas populares da

sociedade.

Apesar de ser mantida a preocupação com o caráter nacional, que ainda é associado às

tradições populares, estas vão ser tratadas de forma científica. Assim, há uma ruptura na

forma de conceituar cultura, que é dividida, então, em erudita (aquele que estuda e sabe o

que é o melhor) e popular (aquele que é estudado).

“[...] opera-se, a partir daí, uma fragmentação no conceito de cultura. Esta aparece como resultado de duas visões de mundo, dois saberes em franca oposição: o erudito e o popular. O primeiro, considerado universal, estaria em perfeita sintonia com a modernidade, o progresso e a dinâmica social. Já o saber popular representaria o arcaico, um mundo em extinção, do qual caberia fazer apenas o inventário.” (Id: 8)

Segundo a autora, o “mito da modernização” apoiado pela ideologia cientificista

impõe reformas totalmente desvinculadas da realidade econômica e política do país. No Rio

de Janeiro, há um processo de reurbanização, com uma obra de remodelação física de ruas

e edifícios. A população pobre que habitava estes locais foi removida, buscando-se

esconder esses elementos “antimodernização”. Segundo Velloso, as reformas da cidade

assumem um caráter “fantasmagórico, irreal e profundamente violento”, (ID: 9) porque

tiveram o intuito de, em nome da modernização da cidade, excluir uma parcela grande da

população das mudanças que estavam se implementando. Além disso, tudo o que pudesse

representar esta parcela da população também era vigiado pela elite: música (violão,

maxixe, serestas, cordões carnavalescos), religião, festas, etc.

A autora destaca que as reformas do Rio de Janeiro materializam a idéia de cultura

popular e erudita ao separar a cidade em zona norte (povo) e zona centro-sul (elites).

Por outro lado, apesar de todo o movimento das elites contra os “hábitos” do povo, a

autora considera que as tradições populares resistem às mudanças porque criam estratégias

próprias de defesa. “Um exemplo dessa resistência cultural é a casa da Tia Ciata”. (Id: 14)

As casas das tias funcionavam como local para “garantir a permanência das tradições

africanas, que eram totalmente discriminadas pela ideologia da Belle Epoque” (Id: 16)

Quer nos parecer que a noção de povo da autora não está muito clara, porque a

impressão que o texto transparece, em alguns momentos, é que o povo que está sendo

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considerado é apenas a parcela negra ou mais pobre da sociedade. Algumas afirmativas da

autora parecem generalizar a categoria de povo e mesmo o conceito de cultura negra, sendo

que esta também não poderia apresentar uma unidade, pois não possuía uma única “raiz”

africana. Assim, ficam algumas perguntas como: as tradições populares para Veloso eram

apenas as pertencentes à cultura negra? A parcela do povo perseguida era só de negros?

Que conceito de povo é este a que a autora se refere?

Veloso segue apontando para o fato de que “o violão, a modinha e o maxixe são

vistos, [no período], como adulterações à verdadeira arte, sendo proibida a sua entrada na

‘boa sociedade’. É quase visível o cordão de isolamento que as elites se esforçam por

estabelecer entre a cidade ideal e a cidade real.” (Id: 24)

Segundo a autora, as barreiras estabelecidas pela elite carioca vão sendo rompidas: no

“final da década de 1910 a cultura popular começa a se impor no cenário urbano carioca.”

(Id: 25) Este fenômeno é descrito pela autora como uma busca da burguesia pelo exotismo.

Assim, refere-se a Catulo da Paixão Cearense, que introduziu as modinhas nos salões da

zona sul em 1906, e, em 1914, cita Nair de Teffé, que, causando escândalo público,

interpreta o Corta Jaca de Chiquinha Gonzaga ao violão. (EDMUNDO, 1957: 2-273,

WISNIK 1982:156, apud VELLOSO: 25)

Consideramos a pesquisa de Velloso importante porque evidencia o discurso

praticado pelas elites. O primeiro discurso, observado nas primeiras décadas do século XX,

buscava criar elementos de segregação social e o segundo, visto nas décadas de 30 e 40 do

século XX, apoiava a valorização da cultura popular como símbolo de autenticidade

brasileira.

O livro de Hermano Vianna (VIANNA,1995) analisa, a partir da descrição de um

encontro de intelectuais (Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Prudente de Morais)

com músicos eruditos (Villa-Lobos, Luciano Gallet) e populares (Donga, Pixinguinha e

Patricio Teixeira), a fundação do mito da miscigenação brasileira (que teve como patronos

os livros de Gilberto Freire e Sergio Buarque de Holanda). Esse encontro elegeu o samba

como um dos principais símbolos nacionais.

Com este encontro, simbolizando diversos segmentos da sociedade da época, o autor

ressalta aspectos da invenção de uma tradição e da permeabilidade das várias esferas

sociais cariocas (destacando os agentes que transitavam em um meio e outro).

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O autor inicia o livro dando um panorama de como era estruturada a cidade do Rio de

Janeiro no início do século XX.

“Nos anos Artur Bernardes, o Rio de Janeiro vivia uma espécie de ressaca das reformas urbanísticas que tiveram início com a prefeitura de Pereira Passos (1902-1906) e continuaram até, como sua última obra montada, a destruição do morro do Castelo para a construção dos pavilhões da exposição comemorativa do centenário da independência brasileira. Nesse meio tempo, foi tomando forma – mais que isso: foi tornando-se possível – a divisão entre uma Zona Sul e uma Zona Norte, o que ainda hoje é determinante na vida sociocultural da cidade.” (VIANA, 1995:21)

O autor diz que foram associados à reforma da cidade temas como civilidade e

modernidade. Ao mesmo tempo em que a cidade era reformada, alguns artistas e

intelectuais estabeleciam as bases do movimento modernista nas artes. Com isso, a cidade

ficava dividida em duas realidades: uma idealizada e outra real. “Existiria então, para

Gilberto Freyre, um Brasil “oficial e postiço e ridículo” que “tapa” o outro Brasil, este real,

a ser “valorizado” junto com o preto”. (Id: 27)

Assim, Hermano Viana considera que a valorização do samba não se deu da noite

para o dia de forma natural, mas foi um projeto de um grupo de intelectuais interessados na

formulação de uma identidade cultural brasileira, em articulação com os músicos populares

que estavam “inventando o samba”.

“O processo histórico-antropológico a ser analisado prioritariamente neste livro pode ser pensado como um exemplo de “invenção da tradição” ou de “fabricação da autenticidade” brasileiras, [...] (HOBSBAWN 1990; PETERSON, 1992 apud VIANA: 35) Portanto, a transformação do samba em música nacional nunca será entendida aqui, como uma descoberta de nossas verdadeiras raízes antes escondidas, ou tapadas, pela repressão, mas sim como o processo de invenção e valorização dessa autenticidade sambista.” (VIANA: 35)

Além disso, o autor diz que o popular não pertence a apenas um grupo social, mas é

também um processo que congrega valores de diversas classes sociais e de diversos países.

Assim, segundo o autor, o samba não teria sido invenção apenas dos negros e pobres, mas

também das classes altas, mesmo que estas participassem mais como expectadoras e

incentivadoras do gênero.

Apesar de não ser o foco prioritário do livro de Vianna, o violão é citado inúmeras

vezes como um dos principais instrumentos da música popular no Brasil. Ou seja, mesmo

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sendo o samba o tema central do livro, o violão está freqüentemente associado ao mesmo

ambiente.

Poderíamos dizer, talvez, que o mesmo enfoque de compreensão do samba, utilizado

pelo autor, seria aplicável ao tentarmos entender a trajetória do violão.

Um dado curioso que aparece na descrição do samba feita por Vianna é o da

associação irrestrita do mesmo com o violão.

“A pele escura dos músicos não parecia ter o poder de afasta-los da fama, por mais momentânea que fosse, junto à elite carioca da época. Tampouco o violão foi totalmente afastado dos saraus familiares cariocas, apesar de toda a tendência re-europeizante do piano”. (Id: 44)

Consideramos importante lembrar que o violão é um instrumento proveniente da

cultura européia e que, provavelmente, foi trazido pelos portugueses para o Brasil. Esta

lembrança não é uma tentativa de valorização do instrumento, mas foi feita aqui para

indicar o equívoco da associação imediata do instrumento apenas com a música popular

brasileira. Sem querer negar a grande difusão do violão entre as camadas populares da

sociedade, no entanto, o papel atribuído ao violão em nossa sociedade, como diz Viana, foi

um processo também de invenção de uma tradição, haja visto que, antes da entrada do

violão no Brasil a viola (instrumento também conhecido viola de arame ou viola caipira),

era o principal instrumento acompanhador das canções populares. Mesmo nos conjuntos de

choro e de samba (regionais) o violão não desempenhava um papel musical mais

importante do que o cavaquinho ou dos instrumentos solistas como flautas, oficleides ou

mesmo a voz.

Hermano Viana analisa o papel dos mediadores culturais (pessoas que transitavam

nos diversos setores sociais) que, mesmo com o enrijecimento das barreiras de divisão

social no período conhecido como Belle Époque (1898-1914), se mantinham como

articuladores dos valores de diversos grupos da sociedade. O autor cita vários casos de

interação cultural promovida pelos mediadores culturais: Catulo da Paixão Cearense, o

salão de Alberto Brandão, a casa do senador Hermenegildo de Morais, a primeira dama

Nair de Teffé e os saraus de Mello Moraes Filho. Assim, o autor pergunta “por que fingir

que essa interação elite/cultura popular não acontecia? Por que dizer que nossos músicos

populares eram simplesmente reprimidos ou desprezados pela elite brasileira?” (Id; 47)

21

O autor destaca também que os gêneros ouvidos pelas classes populares eram

variados e que só a partir da década de 30 do século XX é que o samba passa a ser o

principal gênero do carnaval carioca.

Um outro ponto destacado por Viana é o da valorização da cultura popular pela elite

intelectual da época. Segundo ele, passada a primeira fase do movimento modernista de

tentar colocar a cultura brasileira em sintonia com as vanguardas européias, inicia-se a fase

nacionalista de busca pela identidade nacional. O autor diz que, além dos intelectuais

brasileiros estarem interessados em definir a essência de brasilidade, há um interesse da

Europa pelas expressões da cultura negra no Brasil. Assim, o movimento nacionalista

brasileiro encontrava eco em figuras importantes da cultura européia.

Segundo Viana, na década de 30 existiram três fatores que foram favoráveis para a

eleição do samba como “ritmo nacional”: 1) mercado fonográfico em ascensão,

2)surgimento das rádios e 3) predisposição para a criação de uma unidade nacional

simbólica. “Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval

brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade.” (Id: 111)

Para explicar o universo cultural da época, que antecedeu a nomeação do samba como

símbolo nacional, o autor traz algumas informações que realçam o caráter misto da

sociedade carioca, o que demonstra que as barreiras entre as classes sociais não eram tão

rígidas e que tanto havia repressão como proteção dos sambistas por parte das elites.

Apesar das reformas de Pereira Passos, o centro da cidade continuava a abrigar várias

classes sociais.

“[...] no centro ainda era possível encontrar uma mistura de todas as classes sociais, inclusive morando lado a lado, o que tornava rápida a circulação das novidades lançadas pelos diferentes segmentos da sociedade carioca. [...] A lembrança (citação anterior de um acontecimento narrado por Donga) é de uma troca intensa, que modificava constantemente o panorama cultural da cidade, renegociando todas as fronteiras. Essa troca podia tomar várias formas, inclusive a da proteção contra atitudes discriminatórias de outros grupos da elite, ou de outras autoridades, contra os músicos populares” (Id: 113)

Com isso, o autor busca demonstrar que o processo de circulação da cultura popular

era usual e que, na prática, não havia um cordão de isolamento entre os vários grupos

sociais. Hermano Viana explica que a música popular não fora banida da sociedade, apesar

de sua presença não ser valorizada por algumas pessoas, que são chamadas pelo autor de

22

“descontentes”. Para o autor, o discurso das pessoas que se opunham à cultura popular teve

força na época e foi registrado em relatos históricos posteriores, porque contou com o apoio

dos meios de comunicação da época.

Segundo Viana, no final da década de 20 o samba começa a ser dissociado de um

único grupo social. Nesse momento, era possível encontrar gravações de samba feitas por

músicos de diversas classes sociais. Como exemplo, podem ser citadas gravações de Mario

Reis (filho de comerciante e estudante de direito) de músicas de Ari Barroso (filho de

promotor público e estudante de direito).

“O samba, naquela época, não era visto como propriedade de um grupo étnico ou uma classe social, mas começava a atuar com uma espécie de denominador comum musical entre vários grupos, o que facilitou sua ascensão ao status de música nacional.” (Id: 120)

Viana aponta para o fato destas características terem sido somadas às medidas

políticas em torno do populismo nacional da era Vargas.

“[...] o interesse oficial pelo samba e pelas coisas brasileiras era mais do que explicito. O aparelho governamental da Era Vargas esteve muito envolvido com o progresso da nacionalização do samba, desde o morro à exposição nacional. [...] A vitória do samba era também a vitória de um projeto de nacionalização e modernização da sociedade brasileira. O Brasil saiu do Estado Novo com o elogio (pelo menos em ideologia) da mestiçagem nacional, a Companhia Siderúrgica Nacional, o Conselho Nacional de Petróleo, partidos políticos nacionais, um ritmo nacional. Na música popular, o Brasil tem sido, desde então, o Reino do Samba”. (id: 126-127)

Os autores, aqui citados, tratam, como exposto sob diferentes ângulos, temas como

nacionalismo e identidade cultural. Essas visões, mesmo quando contraditórias, são

importantes, nesta pesquisa, para que o papel do violão no início do século XX possa ser

analisado sob uma perspectiva de contradições múltiplas, e não apenas em termos de uma

polarização entre “erudito” e “popular”.

Passamos, agora, para a segunda parte da revisão de literatura, na qual foram

enfocados alguns dos principais discursos em torno da história da música brasileira e dos

processos de construção de uma identidade cultural.

Os livros revisados sobre história da música brasileira revelaram duas temáticas

freqüentes: a identidade musical brasileira (ARAÚJO, 2000) e a concepção dicotômica de

música “erudita” e “popular”. A questão da identidade foi muitas vezes tratada a partir da

23

necessidade de mostrar uma marca original da brasilidade, e, pode-se dizer, que nesta busca

pelo original surgem argumentos que separam as “categorias” de música erudita e popular.

Alguns autores consideram que a originalidade brasileira deveria ser buscada na música

“popular”, mais especificamente, na música folclórica, mas, estes elementos precisariam ser

trabalhados, “artisticamente”, nos moldes da música erudita.

A expressão música popular, nesta pesquisa, será usada para significar produção

musical urbana praticada, na maioria das vezes, fora dos espaços da música de concerto

(sociedades musicais, teatros, etc).

A maioria dos livros também segue uma única visão de história, na qual a narrativa

dos fatos se dá pela construção de uma linha cronológica, a qual, geralmente traz embutidas

considerações evolucionistas e, em alguns casos, deterministas.

Como estes aspectos foram, de forma geral, a tônica dos livros consultados, a

descrição dessa revisão bibliográfica enfatizou os momentos nos quais apareceram esses

dois temas: identidade musical brasileira e a concepção bi-partida entre música erudita e

popular, como categorias opostas.

O primeiro livro revisado de história da música, escrito em 1908, com segunda edição

em 1947, de autoria de Guilherme de Melo, visualiza a história da música brasileira em 5

períodos: 1) período de formação (influência indígena e jesuítica), 2) período de

caracterização (influência portuguesa, africana e espanhola), 3) período de

desenvolvimento (influência bragantina), 4) período de degradação (influência dos

pseudomaestros italianos), 5) período de nativismo (influência da república).

Nos dois primeiros períodos, o autor procura descrever alguns exemplos de música,

de teatro e de danças populares, a fim de caracterizar a “herança cultural” de cada povo que

esteve presente no Brasil.

No terceiro período, Guilherme de Melo comenta as mudanças ocorridas na música

brasileira, a partir da vinda da corte portuguesa para o Brasil. Sobre esse período, inclui

comentários sobre a música popular (modinhas), mas esta aparece como “reabilitada” pela

elite intelectual, artística e política.

“Estadistas, literatos e artistas, todos na mais ampla comunhão promovem as primeiras encenações das antigas modinhas brasileiras. Nobres de suas origens, diz Melo Morais Filho, nunca o violão e os cantares brasileiros subiram tão alto, nunca fora aquêle tangido por tão assinalados menestréis.

24

Em todas as classes da sociedade brasileira deparavam-se representantes notáveis que embeveciam escolhidos auditórios”.(MELO, 1947:224)

No entanto, a maior parte do livro que trata do “período de desenvolvimento”, é

dedicada à música da corte, da igreja e dos teatros. A modinha aparece como elemento

nacional a ser trabalhado artisticamente pelos “músicos cultos”.

O quarto período é considerado de degradação, devido, segundo o autor, à importação

de músicos italianos de baixa qualidade, ao banimento da modinha dos salões e ao envio

dos melhores músicos brasileiros para o exterior. Assim, a música era vista, por ele, neste

período, como uma caricatura mal feita da música italiana. Toda a degradação é atribuída à

Guerra do Paraguai e à inexperiência administrativa de D. Pedro II.

“...a invasão dos nossos teatros pelas companhias líricas de ínfima classe, cujos empresários gananciosos não trepidavam em iludir a boa fé dos nossos antepassados, trazendo cantores das esquinas e dos cafés italianos, verdadeiros trovadores de rua e de outiva, a quem eles impingiam como maestros diplomados. Segundo, a crassa ignorância do senhorio daqueles tempos que sistematicamente elevavam a música italiana a tal ponto que baniram as nossas modinhas do salão”. (ID : 259)

O quinto período é considerado por Guilherme de Melo como “período de nativismo.

Segundo o autor, a República, ao abolir os valores da Monarquia, passou a exortar as

qualidades nacionalistas.

“Com a proclamação da República, a arte nacional reivindica todo o seu passado de glória e inicia uma nova época que bem poderíamos denominar – Período de nativismo. [...] Hoje, porém, o maior orgulho dos brasileiros é correr em suas veias, tingindo-lhes as faces tisnadas pelo sol dos trópicos, sangue dos nossos aborígenes. [...] Com que prazer não se assiste hoje, no vasto e rico salão de concertos do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, às conferencias ultimamente realizadas ali sobre assuntos da arte nacional?!” (ID: 281)

Apesar de ser considerado o período da afirmação da nacionalidade, esta só é vista,

pelo autor, pelo ponto de vista dos “músicos de escola”. Não há uma única menção à

música popular nas quase cem páginas deste capítulo. Isto se dá porque a arte para

Guilherme de Melo era sinônimo de “civilidade” e de “desenvolvimento” e estes elementos

só se expressavam na música de concerto, segundo ele. A música popular, apesar de não

aparecer neste capítulo, provavelmente representaria para o autor um estado de barbárie.

“Onde há arte não há Selvageria. Ergo: a nação brasileira é uma nação de uma cultura intelectual elevada, mas que tem sido muito caluniada. [...] Vejamos.

25

Começando pelo estabelecimento donde parte toda educação musical, onde se formam todos os elementos artísticos que hão de alimentar o país: Sabem que no Rio de Janeiro existe um Instituto Nacional de Música, montado a dar aos seus alunos uma educação musical perfeita? [...] Diretor é Leopoldo Miguez. Este grande artista é um compositor profundamente conhecedor da técnica musical, manejando a orquestra com uma certeza e intensidade de cor admiráveis, autor de poemas sinfônicos dignos de um sucessor de Lizst, de um estilo elevado e de uma forma puríssima, [...] ” (ID: 283 e 284)

O autor, apesar de dizer que a República abandonou os ideais da Monarquia (na qual

só era valorizado o que tinha o rótulo de procedência estrangeira), argumenta que a música

verdadeira nacional é aquela feita nos moldes da música européia, ou ainda, para ter o título

de boa música ou música artística, esta música precisa ser estudada e produzida sob padrões

europeus de uma escola de música formal.

Um dado curioso que pode ser destacado deste capítulo é que Guilherme de Melo, ao

descrever toda o aparato musical de que dispunha o Brasil naquela época (conservatórios de

música, crítica musical, sociedades de concertos, compositores que dominavam a técnica de

compor européias, exímios instrumentistas etc), inclui os nomes de Francisca Gonzaga e

Ernesto Nazareth. A primeira, como também é destacado por Samuel Araújo (ARAÚJO,

2000), é anunciada como maestrina e compositora de operetas e o segundo aparece junto a

compositores de ópera. (MELO, 1947: 313)

Deste livro de Guilherme de Melo, pode-se dizer que o autor segue o pensamento

evolucionista, segundo o qual a história da música é vista como um processo linear de

progresso do simples para o rebuscado, do popular para a música de concerto. Neste

processo evolutivo, o autor também atribui as mudanças musicais a fatores políticos, o que

dá um forte caráter determinista à obra. Além disso, o autor também faz uso de teorias

raciais, muito em voga no início do século XX.

Outro livro revisado foi o de Renato Almeida que, na sua “história da música

brasileira” (ALMEIDA, 1926) organiza os capítulos da seguinte maneira: I) Música

popular, II) Música brasileira do começo do século XIX, III) O Romantismo na música

brasileira, IV) Tendências da música brasileira, V) O espírito moderno na música e VI) A

cultura musical no Brasil.

A música popular é focalizada através do mito das três raças, o qual representaria a

essência da brasilidade que deveria ser universalizada pela música culta. “A modinha,

26

embora com as deformações sofridas, o choro e o samba, sobretudo este, suscitarão no

nosso músico as energias poderosas da criação, para revelar o paiz, na essencia mysteriosa

de sua alma profunda” (ID: 55)

No capítulo VI, o autor separa por períodos a cultura musical no Brasil. O primeiro

período tem como marco o Conservatório de Santa Cruz: “Podemos contar desse

conservatório, que produziu entre os seus discípulos concertistas de mérito, e tanto

contribuiu para a difusão do gosto musical entre nós, o início da nossa cultura nessa arte”.

(ID:204)

O segundo período é marcado, segundo o autor, pelas atividades de Francisco Manoel

da Silva, desde seu cargo na Capela Imperial até a fundação do Conservatório de Música

1847 (ano da regulamentação). Em seguida, o autor cita uma série de outros conservatórios

em outros estados brasileiros que seguem os moldes do Instituto Nacional de Música e

finaliza este capítulo com:

“O INM, os vários conservatórios dos estados e as várias sociedades particulares tornaram cada vez mais desenvolvido o amor pela música, criou-se um ambiente musical entre nós muito mais favorável do que o existente para as artes plásticas, por exemplo [...] No entanto, ainda não temos uma formação de cultura musical perfeita e a educação do nosso gosto não está aprimorada. Há a perturbação do estrangeirismo, que é um elemento de corrupção digno de nota, e as preocupações infecundas de escolas, que queremos transportar para o nosso meio, alheio a taes quisilias. Mas, através de todos os entraves, a música no Brasil se liberta, buscando harmonizar as vozes da terra, o rythmo criador e fecundo, com influxo da cultura, para a criação de uma arte autônoma, que traduza todas as ânsias do espírito moderno brasileiro.” (ALMEIDA: 219 e 220).

Da mesma maneira que o livro Musica do Brasil de Guilherme de Melo, Renato

Almeida situa a música popular como uma “prévia” para a história da música brasileira. A

música popular é a essência da nacionalidade brasileira a ser transformada pelas técnicas e

práticas da tradição européia. Renato Almeida compartilha também de idéias evolucionistas

e acredita em uma universalização da música, equiparando períodos estéticos brasileiros

com europeus.

Três anos após a edição do livro de Renato Almeida (ALMEIDA, 1926) e vinte anos

depois de “A música no Brasil”, de Guilherme de Melo (MELO, 1908), Mário de Andrade

publica “Ensaio sobre a Música Brasileira” (1928). Neste livro, Mário de Andrade busca

formular uma conceituação do que é a música brasileira. A explicação escolhida pelo autor

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é a que se baseia na teoria da miscigenação, que tem o mito das três raças como seu ponto

de partida.

“Até há pouco a música artística brasileira viveu divorciada da nossa entidade racial. Isso tinha mesmo que suceder. A nação brasileira é anterior a nossa raça. A própria música popular da Monarquia não apresenta uma fusão satisfatória. Os elementos que vinham formando se lembravam bandas do alem, muito puros ainda. Eram portugueses e africanos.[...] Era fatal: Os artistas de uma raça indecisa se tornarem indecisos que nem ela.”(ANDRADE, 1928: 13)

Mário de Andrade vai contra a idéia de caracterizar a música brasileira como música

exótica e, da mesma forma que seus antecessores, considera que música popular é o estado

bruto do nacional que precisa de um tratamento erudito para ser chamada de artística.

“Uma arte nacional não se faz com escolhas discricionárias e diletantes de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é imediatamente desinteressada”. (ID: 16) O autor define a música brasileira como música composta no Brasil com temática brasileira. “[...] música brasileira deve de significar toda música nacional como criação quer tenha quer não caráter étnico. [...] Mas nesse caso um artista brasileiro escrevendo agora um texto em alemão sobre assunto chinês, musica da tal chamada universal faz música brasileira e é músico brasileiro. Não é não. Por mais sublime que seja, não só a obra não é brasileira como é antinacional”.(ID: 17)

Andrade acrescenta que o período, pelo qual estava passando a cultura brasileira era

de nacionalização. Neste período, procurava-se sincronizar a produção humana com a

realidade local. O Brasil se encontrava, segundo o autor, em um período primitivo, no qual

a arte era integrada à sociedade e ainda não havia música artística, desinteressada (produção

desse tipo era pequena e isolada). Assim, os elementos para a caracterização do nacional

deveriam ser encontrados na música popular.

Mário de Andrade passa a definir música popular e música artística. O autor analisa

algumas particularidades rítmicas da música popular brasileira e de sua dificuldade de ser

escrita, porque difere da métrica européia. Em seguida o autor caracteriza do que é feita a

música brasileira. “Embora chegada no povo a uma expressão original e étnica, ela provem

de fontes estranhas: a ameríndia em porcentagem pequena; a africana em porcentagem bem

maior; a portuguesa em porcentagem vasta”.(ID: 25) Mário de Andrade ainda fala de

influencias hispânicas, de outros países europeus e do jazz. “Pois é com a observação

28

inteligente do populário e aproveitamento dele que a música artística se desenvolverá”.(ID:

24)

Mário de Andrade segue definindo e caracterizando os elementos da música

brasileira: ritmo, melodia, harmonia (polifonia), instrumentação e forma.

Este livro de Mário de Andrade possui um ponto de vista que difere dos dois outros

autores citados anteriormente, porque tenta olhar para a música brasileira a partir de dados

que ela mesma oferece e a partir da realidade brasileira. No entanto, as observações sobre a

música popular consideram-na como uma “etapa” a ser superada pelos músicos eruditos. A

partir do momento em que estes últimos dominem a linguagem popular, a música estaria

liberta da sociabilidade primitiva e se transformaria em música artística, desinteressada.

Deste modo, o livro de Mário de Andrade também expressa algumas idéias evolucionistas e

enfatiza a dicotomia popular/erudito.

Por fim, foi revisto o livro de Luiz Heitor Correia de Azevedo. Este autor separa a

história da música no Brasil em duas partes: século XIX e século XX (AZEVEDO, 1956).

O século XIX compreende as seguintes subdivisões: 1) Antecedentes (música trazida

pelos jesuítas para a catequese). 2) José Maurício e a vinda da corte portuguesa (1808). 3)

Francisco Manoel da Silva e o Conservatório de Música (1848). 4) Ascensão da música no

teatro (óperas). 5) Carlos Gomes. 6) Música de concerto ( a partir de 1850), compositores

brasileiros de coração europeu. 7) República (1889) Leopoldo Miguez e o Instituto

Nacional de Música. 8) Henrique Oswald. 9) Advento do nacionalismo, a música popular

urbana e suas características. 10) Alexandre Levy e Alberto Nepomuceno.

O autor divide o século XX da seguinte forma: 1) Francisco Braga, 2) A ópera. 3)

Música para piano e canções. 4) Advento de novas tendências e novas técnicas. Glauco

Velásquez. 5) Villa-Lobos e a descoberta do Brasil. 6) Luciano Gallet em busca do folclore.

7) Francisco Mignone, clima paulista. 8) Lorenzo Fernandez. 9) Transfiguração da música

brasileira com Camargo Guarnieri. 10) Vozes do Sul. O grupo música viva. Música

brasileira contemporânea.

Esta divisão adotada por Luiz Heitor segue uma estrutura semelhante à adotada por

Guilherme de Melo e Renato Almeida. Da mesma forma que os outros dois primeiros

autores citados, ele também trata pouco da música popular, sendo que na segunda parte do

livro, dedicada ao século XX, a música popular aparece através de sua utilização por

29

compositores eruditos. O autor explica a ausência de música popular dizendo que houve, na

prática, uma divisão entre música popular e erudita, desta maneira a opção foi a de relatar o

universo da música de concerto.

Segundo o autor, a partir de 1870 a fisionomia da música nacional com suas

peculiaridades de ritmo, melodia e harmonia, começa a ser esboçada em composições

impressas. Luiz Heitor fala que até os compositores que compunham modinhas e lundus

eram os mesmos que produziam missas ou óperas para a Capela Imperial,

“[...] todos eles se dedicavam a estes gêneros e suas obras eram cantadas pelas meninas prendadas das famílias ricas, sem que isso constituísse motivo de escândalo. A canção brasileira marchava então, lado a lado, com as formas mais sérias da música religiosa, dramática ou de concerto. Na verdade pouco diferia tecnicamente ou sentimentalmente dessa música concebida à européia”.(AZEVEDO: 138) “Ao dar-se o divorcio entre a música de escola e a música do povo os compositores que cultivavam a primeira passam a desdenhar ostensivamente os motivos nacionais”.(ID: 139-140) “Acentua-se a imitação do estrangeiro nas camadas mais altas da arte, em oposição à música dos compositores populares que se torna, como já vimos, cada vez mais combativamente nacional. Os autores de um gênero não freqüentam o outro; e é provavelmente esse isolamento dos antagonistas que revigora as respectivas características, tornando indiscutivelmente antinacional a música de escola, e desassombrosamente nossa, ostensivamente popularesca, a que provinha de compositores menos sisudos, autores de música para dança, para teatro ligeiro ou para serenatas boemias”. (id: 140)

No resto deste trecho, o autor aborda a influência da polca na música popular e

considera que maxixe não era um gênero musical a principio, mas, um jeito de dançar a

polca. Na parte final deste capítulo, o autor fala de alguns compositores como Callado,

Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. Estes compositores foram considerados por Luiz

Heitor como os mais significativos no processo de fixação de um modelo nacional de

música, para o qual os “compositores sérios começavam a olhar cobiçozamente”. (id:151)

Luiz Heitor, assim como outros autores, sustenta a polarização popular/erudito,

sobrevalorizando, de certa forma, esta última categoria.

2) O violão carioca e o choro:

30

A partir da revisão bibliográfica foi possível ter uma visão geral da forma como a

história do violão no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, vem sendo contada.

Os autores comentados para a revisão da história do violão no Brasil foram os seguintes:

Alexandre Gonçalves Pinto (1936), Márcia Taborda (2004), Norton Dudeque (1994), Suzel

Reily (2001), Batista Siqueira (1980), José Ramos Tinhorão ( 2000) e Graça Alan José

(1995).

O primeiro ponto a ser destacado das obras revistas é o tipo de narrativa histórica

escolhida para contar a história do violão: da mesma forma que as histórias da música

brasileira, a história do violão relatada por esses autores utilizou uma forma de narrativa

linear e cronológica. Outro ponto verificado na revisão de literatura é a associação irrestrita

do instrumento com o choro, durante o período que compreende o final do século XIX e

início do XX. Por esta razão, este trecho foi intitulado de violão carioca e o choro. O choro

não será tratado diretamente, mas alguns aspectos do universo cultural do choro, bem como

alguns detalhes musicais, são importantes para a compreensão da utilização do violão.

Com a revisão de literatura, focalizando o violão e o choro, foi possível, também,

encontrar alguns dos discursos sobre a trajetória do violão no Rio de Janeiro. É importante

ressaltar que os discursos não aparecem separados, pois alguns dos autores revistos

mesclam dois ou três destes discursos.

O primeiro discurso observado em Taborda (2004), José (1995) e Dudeque (1994),

diz respeito à visualização do instrumento como a continuação de uma grande tradição

universal. Os autores que seguem esta linha, geralmente, dividem a utilização do violão em

duas vertentes, uma erudita e outra popular. Com isso, é possível perceber que o

julgamento da técnica e da música composta para o instrumento no Rio de Janeiro passa

pela comparação com o que era feito em outros países. Dessa maneira, os compositores e

instrumentistas brasileiros são vistos como “atrasados” com relação à técnica da época.

Esta “falta” de técnica, somada a ampla utilização do instrumento pelas classes populares, é

a explicação mais freqüente para dizer que o violão só iria ser valorizado a partir da década

de 1960.

O segundo discurso encontrado na bibliografia revisada, Pinto (1936), José (1995),

Dudeque (1994) e Reily (2001), argumenta que o violão no Rio de Janeiro teve um

31

caminho singular e que os primeiros violonistas mesclavam técnicas e estilos do choro com

técnicas e estilos europeus.

O terceiro e mais difundido discurso sobre o violão no Rio de Janeiro, Taborda

(2004), Reily (2001), Siqueira (1980), Tinhorão (2000), é o que associa o instrumento com

processos de produção de identidade cultural. Em um primeiro momento, o violão teria sido

símbolo da música produzida pelas camadas sociais mais baixas. Com isso, obteve o posto

de instrumento vulgar, pouco expressivo e rudimentar. Em um segundo momento, com a

busca pela “verdadeira brasilidade” para a elaboração de uma identidade nacional, como foi

visto anteriormente (VIANA, 1995), o violão passa a ser valorizado como símbolo

nacional.

O primeiro livro revisto, “O Choro” (PINTO, 1936) reflete um pouco das idéias sobre

como alguns músicos da época lidavam com o violão, porque registra a impressão do autor,

membro atuante do universo musical do choro. Uma das questões freqüentes em pesquisas

que têm como objeto de estudo períodos antigos, é saber qual o significado de determinada

prática musical para as pessoas da época pesquisada. Neste quesito, o livro de Alexandre

Pinto talvez possa fornecer informações pertinentes ao violão, segundo uma visão da época.

Alexandre Pinto faz uma pequena descrição da personalidade, profissão e habilidades

musicais dos músicos citados. Na maior parte das descrições prevalece um “tom orgulhoso”

sobre a qualidade musical e técnica dos violonistas. Na descrição de alguns violonistas, o

autor se refere a certas características, como, por exemplo, “ler partitura”, as quais

aparecem com pouca freqüência nos livros revisados.

“José Fragoso, maestro no violão, que começou nos chôros, como um dos melhores acompanhadores, e assim como o violão fez progresso, evadindo os salões da aristocracia, tambem razão porque, toca hoje o seu violão por musica, e com grande habilidade, solando musicas classicas de primeira vista. Zezé, como é conhecido no meio dos chorões, é sympathico e querido, em todo meio e muito considerado.” (id: 38) “Jorge Seixas - deste maestro me falta intelligencia para descrever os seus feitos, intelligencia, capacidade quanto a musica e mais. Seixas, toca todos os instrumentos especializando-se no violão. Posso aqui affirmar que no Brasil, bem poucos tocarão violão como Seixas. As suas musicas vem todas da Allemanha, onde faz seu estudo. Toca qualquer musica no seu mavioso violão de primeira vista. O autor compoz um tango que deu o nome de "Ingratidão", e levando á sua casa para a endireitar, e desfazer alguns erros, ficou admirado, e de bocca aberta vendo elle trazer o seu lindo violão, e executar aquela musica de primeira vista e com a maior facilidade.” (id: 38 e 39)

32

Alexandre Pinto descreve a atuação de Hernandes Figueiredo equiparando-o a um

violonista estrangeiro.

Hernandes Figueiredo [...] Conhecia musica a fundo, especialisando theoria que elle conhecia como poucos. Podia-se chamar um maestro, pois tocava quasi todos os instrumentos, especialisando-se no violão, que era de um primor No seu violão, não só acompanhava, como solava admiravelmente. Muitas vezes extaziou-me ao ouvir-lhe solar operas inteiras, polkas, chotechs, mazurkas, etc. O grande Professor, sustentou uma polemica pelos jornaes desta capital, quando aqui esteve o tambem immenso violão Barrios, sobre o violão, sua tonalidade, o encordoamento, e mais artigo este, que foi irrespondivel tal a nitidez e conhecimentos que Hernandes, tinha sobre a musica, e instrumentos. (id: 129)

Outro ponto que chama a atenção no livro de Alexandre Pinto é o fato dos violonistas

serem caracterizados como, além de acompanhadores, solistas. O repertório destes solistas,

na descrição de Alexandre Pinto, era composto por choros, valsas, schottish, mazurkas e

músicas “clássicas”.

Aarão foi chorão de verdade, violão que foi, de uma maviosidade sem nome. O violão na mão deste heróe era de admirar, pois dedilhava com gosto e alma. O seu acompanhamento era mesmo de endoidecer. Solava como poucos, valsas, chotes, mazurkas, para elle era sôpa, tal a sua agilidade nos seus dedos.” (id:66) [...] O Guerra está hoje aposentado da Estrada de Ferro. Cantor de modinhas, e celebre tocador do violhão, escriptor de musicas sublimes pois compunha desde polka até o classico, e Sacra que deve andar por ahi talvez ao léo [...] (id: 160)

O relato de Alexandre Gonçalves Pinto não possui perfil nem rigor acadêmico, mas

acreditamos que sua descrição possa expressar aspectos significativos da relação dos

músicos da época com a prática do choro e com a utilização do violão, valendo como

importante depoimento da época.

O segundo trabalho revisto, em oposição ao primeiro, que é um relato de época, é

uma das mais recentes produções acadêmicas escritas sobre a história do violão no Brasil.

A tese de Márcia Taborda (TABORDA, 2004) traça uma visão panorâmica da história do

violão, desde seus antecessores na Europa, passando pela construção do violão como hoje o

conhecemos, até a difusão do instrumento no Brasil e a utilização do mesmo como símbolo

nacional. Para fins deste trabalho serão abordados os trechos que tratam do violão no Rio

de Janeiro entre os anos de 1910 e 1930.

33

A autora separou a história do violão brasileiro em: “Violão nos Salões” (abordando o

violão como instrumento solista e de concerto) e “Violão nas Ruas” (abordando o violão de

acompanhamento e o violão, mesmo que solista, popular).

No capítulo 2, relativo ao violão nos salões, a autora informa sobre algumas aparições

do instrumento nestes espaços culturais durante o século XIX. Estas demonstrações do

violão, segundo Taborda, não foram suficientes para que o instrumento se estabelecesse no

século XIX como instrumento de concerto. No final do século XIX, a ausência do violão

em espaços destinados a música de concerto é atribuída pela autora ao surgimento do

choro. A partir de 1870 o choro vai ganhando mais espaço na cidade e o violão é a ele

associado. Dessa maneira, inicia-se uma luta de posicionamentos relativos à entrada do

instrumento nos salões e salas de concerto.

“Não terá sido casualmente, que neste mesmo momento o instrumento tenha ocupado o espaço das ruas. A década de 70 marca simbolicamente o advento dos conjuntos de choro no Rio de Janeiro, fato relacionado à constituição do Choro

Carioca, grupo liderado pelo flautista Joaquim Antonio Callado. O abraço do carioca ao violão, a amizade fiel de seresteiros que pelas madrugadas entoavam modinhas, lundus, cançonetas, o afago de malandros, capoeiras, boêmios, arrastou o instrumento às esquinas, aos becos, às estalagens, enfim aos redutos de pobreza. Esta associação foi determinante para a construção do discurso que simbolicamente relacionou o violão como veículo próprio para a manifestação musical dos setores marginais da sociedade. O que se vê desde então, é verdadeira batalha para lhe conferir a dignidade de freqüentar os salões da boa sociedade.” (Id:61)

A autora cita o caso do músico Ernani Figueiredo (trombonista, dominava teoria,

harmonia e o violino), que estando interessado em aprender violão tomou contato com o

método de Mateo Carcassi. O referido método pareceu-lhe difícil demais, assim, foi

procurar um violonista popular, Bernardino José Pereira, o colchoeiro, para lhe ensinar o

instrumento. Com a técnica adquirida, o violonista fez várias apresentações nas quais o

violão era utilizado como solista.

“Desde então, empreendeu grande atividade artística, cujo “epílogo foi a apresentação do violão ao público campista como instrumento de concerto” (POMPO apud TABORDA 2004:62). Muito concorrera já para a elevação em minha terra natal, quando resolvi transportar-me para a Capital da Republica. No Rio de Janeiro, Ernani conheceu músicos e violonistas, apresentando-se em audições públicas e particulares, a primeira delas na antiga Maison Moderne. A esta seguiram-se audições no salão do ex-Casino Commercial, no Conservatório Livre do Rio de Janeiro, no Theatro São Pedro, no Club Gymnástico Portuguez,

34

onde o violão solista aparecia em meios aos mais variados grupos de câmera.” (TABORDA 2004: 62)

No início do século XX, a autora situa a atuação de Quincas Laranjeiras (Joaquim

Francisco dos Santos) como marco inicial de uma escola de violão carioca. Quincas

estudou com os métodos europeus de Carcassi, Carulli, Aguado e Antonio Cano e era

chorão na cidade. Com ele estudaram Levino da Conceição, José Augusto de Freitas e

Antonio Rebello.

Taborda considera que o rádio e a indústria fonográfica, por volta de 1922, deram

mais “incentivo” à música popular, o que fez com que a técnica violonística, que vinha se

desenvolvendo, ficasse parada durante esta década. Esta “estagnação do desenvolvimento

técnico” é atribuída à ausência de concertistas estrangeiros em excursão pelo Brasil. (ID:

71)

Consideramos que esta afirmação de Taborda revela o ponto de escuta usado para

analisar as obras do período, o qual corresponderia ao de concertista ligada à tradição

cultural européia. Ao nosso ver, enxergar o universo violonístico do período apenas pela

perspectiva da técnica, sendo que esta foi considerada pela autora como universal e única,

não permite entender como os violonistas do período lidavam com questões de

interpretação do instrumento.

No ano de 1929 é citado também o concerto de estréia, no Rio de Janeiro, de José

Augusto de Freitas (aluno de Quincas Laranjeiras, que ensinou a ele a técnica e o repertório

do violão clássico), no Instituto Nacional de Música. O ano encerrou com 2 concertos de

Barrios que voltou ao Rio de Janeiro. A primeira apresentação, no Teatro Municipal e a

segunda no Instituto Nacional de Música. (ID: 75)

O ano de 1929 é citado pela a autora como um

“ano memorável para o violão”, devido à presença dos concertistas estrangeiros no Rio de Janeiro. (ID: 73, 74 e 75) Mas, nos anos seguintes “o violão mais uma vez submerge, contando com iniciativas isoladas que não chegaram no entanto a denotar efetivo desenvolvimento e amadurecimento artístico/profissional dos violonistas cariocas”. (ID: 75)

A autora menciona que neste período se tinha notícia de carreiras de violonistas com

sucesso, como Rogério Guimarães, mas “a avaliação dos programas de recitais dos

violonistas cariocas, somada à audição de registros fonográficos, nos faz crer que os

35

violonistas do período não alcançaram maturidade musical, conhecimento e domínio

técnico do instrumento.” (Id:76)

Márcia Taborda, ao se referir à obra de Heitor Villa-Lobos para violão, diz que a

mesma não foi compreendida em sua época. Segundo a autora, não há registros da

apresentação das obras de Villa-Lobos na época em que foram compostas. A exceção teria

sido o concerto do espanhol Sainz de la Maza que executou o Choros n.1, em 1929, no

Theatro Municipal.

O capítulo referente ao violão nos salões é finalizado com a citação de nomes de

violonistas que conseguiram estabelecer o violão como instrumento de concerto. A autora,

ao nosso ver, personaliza a trajetória do violão e, dessa forma, segue um modelo de história

na linha da história das personalidades, deixando de abordar uma trama complexa de

interações na sociedade da época, envolvendo o violão.

No capítulo 3, intitulado de Violão nas Ruas, Márcia Taborda passa a falar sobre o

violão popular. Para a autora, a ampla difusão do instrumento junto à música popular

tornou-o símbolo desta música pela sua sonoridade.

“A identificação da sonoridade do violão às manifestações musicais das classes populares assumiu na cultura brasileira e especificamente na produção musical carioca, grandeza inigualável. Ao timbre peculiar do instrumento, ao repertório e a seus executantes, estão associados um determinado tempo, espaço e sociabilidade que se confundiram com a paisagem urbana, incorporando a lugares físicos prática musical que contribuiu de forma determinante para a transformação da sensibilidade cultural.[...]” (ID: 82)

Consideramos que esta “identificação da sonoridade” com a música popular, à luz de

vários estudos como os de Hobsbawn (HOBSBAWN, 1997), Peter Burke (BURKE, 1991)

e Hermano Viana (VIANNA, 1995) parece ter sido também, conseqüência de uma escolha

e parece integrar proposta de eleição de símbolos para a criação de uma identidade cultural,

caminho pelo qual o samba foi escolhido como símbolo nacional (o que será melhor

explicado no capítulo de referencial teórico e metodologia). Porque o violão foi escolhido

como símbolo da música popular e os demais instrumentos do conjunto de choro (flauta,

cavaquinho, clarinete, etc) não? Se foi pela ampla difusão que ele teve na música popular,

então o violão também seria símbolo da música popular norte americana, espanhola,

portuguesa, porque é um dos principais instrumentos de acompanhamento das canções, em

várias culturas.

36

A autora passa a falar sobre o violão, no século XIX, como o principal instrumento de

acompanhamento das canções populares (modinhas, lundus) e sobre o violão dentro do

conjunto de choro (a partir da segunda metade do século XIX). Sobre este segundo, ela

apresenta comentários sobre a constituição do conjunto de choro, o repertório de

compositores violonistas, as primeiras gravações de violonistas, as lojas e os construtores

do instrumento e os métodos de violão.

A autora situa o violão nos conjuntos de choro. Segundo Taborda, o violão vai

funcionar nos conjuntos de choro como instrumento de acompanhamento, quer seja em

peças instrumentais ou quando o conjunto de choro acompanhava canções.

Segundo a autora, a maioria dos violonistas não sabia ler e escrever música, assim, o

acompanhamento era feito “de ouvido”. Com isso, era comum nos grupos de choro serem

criadas melodias com modulações difíceis para “pregar peça” nos acompanhadores. Assim,

os violonistas acompanhadores se tornaram também bons improvisadores no que diz

respeito ao acompanhamento.

A autora observa que, em 1902, Frederico Figner estabeleceu na rua do Ouvidor 107 a

Casa Edison que vendia fonogramas. As primeiras gravações foram de bandas do corpo de

bombeiros e de cantores como Baiano e Cadete, com acompanhamento de violão. A razão,

segundo ela, para o predomínio de gravações de canções acompanhadas por violão e de

gravações de bandas teria sido econômica. Como o mercado estava sendo estabelecido

naquele momento, não era possível arriscar com muitos conjuntos diferentes.

“Numa indústria incipiente, os riscos que envolviam o investimento de transformar música em produto, deveriam ser os mais comedidos possíveis. Dessa forma, os registros à base de violão serão sempre muitos numerosos, rivalizando em quantidade apenas com as Bandas de música, que desempenharam papel musical e social da maior relevância.” (TABORDA:97-98)

Nesse período, Taborda destaca a atuação dos grupos de choro, que variavam em sua

formação, mas mantinham uma base de instrumento solista (músico que sabia ler e escrever

partitura), violão e cavaquinho como acompanhadores (músicos que não conheciam leitura

e escrita musical) ou, como chama a autora, improvisadores do acompanhamento

harmônico.

Os primeiros violonistas gravados em disco teriam sido João Pernambuco e Américo

Jacomino. No entanto, a gravação de João Pernambuco só pôde ser encontrada nos registros

37

da Casa Edison. A matriz desta gravação, segundo a autora, teria sofrido alguns danos, o

que teria impossibilitado o lançamento do disco. Em 1913, segundo ela, podem ser

encontrados discos em 78 rotações do paulista Américo Jacomino.

A autora também afirma que Jacomino foi o “primeiro ídolo do instrumento

profissional, pioneiro no campo dos recitais e gravações e compositor de obras que trazem

o selo de autêntico brasileirismo”. (ID:102-103)

Segundo Taborda, em 1922 e 1926, o próximo violonista a gravar suas obras foi

Levino da Conceição. Sobre este violonista ela não faz comentários.

Entre 1925 e 1927 há registro, segundo ela, de discos de João Pernambuco. Este

violonista recebe destaque entre os demais e é tido por Taborda como o precursor do estilo

brasileiro de tocar violão. As composições de Pernambuco teriam traduzido para o violão

solo as músicas da época, com soluções técnicas violonísticas.

“A obra de João Pernambuco dá o passo inicial para a formação do repertório de choros escritos para o violão no Brasil, compreendendo-se aqui na acepção mais abrangente do termo (valsas, maxixes, tangos e porque não, choros), uma produção até então inexistente e que se destaca no campo instrumental pelo pioneirismo no casamento de soluções extremamente violonísticas a serviço de uma elaboração surpreendentemente musical. Sua obra é lírica sem ser derramada, é vibrante, virtuosística e explora com muita felicidade as peculiaridades do instrumento. Não teria sido por acaso, que tanto se tem divulgado a frase proferida por Heitor Villa-Lobos: "Bach não se envergonharia de assinar seus estudos".”(Id: 103)

Acreditamos que o trabalho de Márcia Taborda traz importantes informações sobre a

trajetória do violão no Rio de Janeiro. Vários dados são organizados de uma forma que é

possível ter contato com detalhes pouco conhecidos da história do instrumento, o que é uma

contribuição singular sobre o uso do violão no Brasil.

No entanto, quer nos parecer que algumas afirmações da autora são um pouco

precipitadas, principalmente no que diz respeito ao debate em torno da qualidade técnica,

expressiva e musical de alguns violonistas do início do século XX e sobre a utilização do

instrumento como símbolo nacional.

Podemos dizer, sobre a qualidade técnica, expressiva e musical dos violonistas do

final do século XIX e início do século XX, que a autora traz uma visão condicionada por

um tipo de discurso bastante difundido pela historiografia musical brasileira.

38

Como foi visto na revisão bibliográfica da história da música brasileira, aqui tratada,

os dois aspectos que se destacaram dessa literatura foram: a construção de identidade

musical brasileira e a separação entre erudito e popular.

Taborda considera que a técnica violonística brasileira, do referido período, ainda era

incipiente e que a mesma só veio a melhorar com a vinda de instrumentistas estrangeiros.

Paralelamente ao universo desta música “de salão”, a autora descreve também o

movimento do violão nas ruas, o qual já desenvolvia características de uma escola de violão

brasileira. Taborda, porém, ao fazer a distinção entre os espaços sociais de atuação, tanto de

um grupo quanto de outro de violonistas, repete nomes de músicos que atuaram em ambos

os espaços, embora o discurso construído pela autora seja o da separação entre os meios de

atuação.

Exemplos disto são os casos de João Pernambuco e Quincas Laranjeiras, os quais são

comparados a Heitor Villa-Lobos. Este último, segundo a autora, era o único brasileiro da

época a dominar a técnica violonistica. Na própria descrição da história do violão de

Taborda, Quincas Laranjeiras aparece lecionando violão com os principais métodos

europeus em voga na época e João Pernambuco é visto como um compositor de obras com

soluções musicais extremamente violonísticas. Será que eles foram os únicos na época?

Vários foram os casos não referidos ou pouco comentados na tese, e sempre o critério

para julgar a qualidade técnica passou, ao nosso ver, por um ponto de escuta da atualidade,

e com referências a padrões técnicos externos à realidade brasileira da época.

Quer nos parecer que a distinção entre violão erudito e popular não corresponde ao

tipo de trajetória musical do instrumento no Brasil. Esta distinção parece ter surgido da

necessidade de valorização social do instrumento, porque o mesmo, ao ser associado com a

música popular e as camadas pobres da população, recebeu o estigma de instrumento pouco

expressivo e rudimentar. No entanto, esta distinção do instrumento parece ter gerado uma

historiografia do violão segmentada, a qual não considera aspectos importantes da

utilização do violão no início do século XX, inclusive a permeação entre os espaços de

atuação do instrumento.

Um ponto também comentado por Taborda é o que se refere à utilização do

instrumento como símbolo nacional. Da forma como a autora analisa, o violão se tornou

símbolo nacional devido à sua ampla utilização na sociedade carioca, tanto como

39

acompanhador de canções como em conjuntos instrumentais (grupos de choro). Esta

posição diverge da análise de diversos autores, segundo os quais os “símbolos nacionais”

são decorrentes de escolhas e valores de determinadas épocas. Não há, segundo eles, uma

“naturalidade” neste processo, e sim opções de discursos e eleição de símbolos na

articulação entre os grupos sociais. Esta posição última é convergente com a adotada na

presente pesquisa.

O livro de Norton Dudeque (DUDEQUE, 1994) traça uma história do violão na qual

são focalizados aspectos da construção do instrumento, de alguns compositores e de alguns

intérpretes.

O autor busca os antecedentes do violão na Europa (vihuela, guitarra de quatro

ordens, guitarra de cinco ordens, etc) e, a partir do período Clássico, já com a guitarra de

seis ordens (viola francesa), enfatiza a atuação de alguns compositores: Dionísio Aguado,

Fernando Sor, Mateo Carcassi, Ferdinando Carulli, Mauro Giuliani, Giulio Regondi, Marco

Aurélio de Ferranti, Napoleon Coste, entre outros.

O autor menciona que, no final do século XIX, o luthier Antonio Torres construiu um

modelo de violão que se tornou a base de construção do violão moderno. Logo em seguida,

Dudeque, passa a falar de alguns instrumentistas e compositores que desenvolveram novas

técnicas para o instrumento. Francisco Tarrega é apontado como o criador da moderna

escola de violão, além de ter atuado também como compositor e ter feito transcrições de

obras de Albeniz, Bach, Beethoven, Chopin e outros para o violão.

O autor comenta também que um dos discípulos de Tarrega foi Miguel Llobet que fez

transcrições para o instrumento e compôs algumas obras para o violão.

Na seqüência do livro, Dudeque passa descreve a trajetória do violão no século XX. A

partir desse momento, o autor passa a citar a atuação de dois violonistas considerados os

mais importantes para o desenvolvimento do violão: Llobet e Segovia. Sobre este segundo,

é dito que teve um duplo papel no “desenvolvimento do instrumento, o de ampliar o

repertório através de obras por ele comissionadas a outros compositores e o de grande

divulgador dessas obras”. (DUDEQUE, 1994: 85) Sobre a atuação de Segovia junto a

compositores, é destacada a relação do violonista espanhol com o compositor Heitor Villa-

Lobos. Segundo o autor, Heitor Villa-Lobos teria se dedicado a compor para o violão

40

devido à influência de Segovia. Os 12 estudos de Villa-Lobos e o Concerto para violão e

orquestra foram obras dedicadas a Segovia.

Em seguida, Dudeque separa a história do violão por continentes e destaca os

principais compositores e intérpretes de cada lugar.

Sobre o Brasil, o autor fala da introdução do antecedente do violão, no século XVI

pelos jesuítas portugueses, a viola de cinco cordas duplas. Segundo ele, há algumas

confusões sobre os dois instrumentos no Brasil e diz que “a viola, hoje, tornou-se a viola-

caipira, instrumento típico do interior do país, e o violão, depois de ter sua forma atual

estabelecida no final do século XIX, tornou-se instrumento essencialmente urbano no

Brasil.”(Id: 101) O autor ainda observa que o violão se tornou no Brasil o principal

instrumento de acompanhamento da voz, e, na música instrumental, formou com o

cavaquinho e a flauta a base do conjunto de choro. Segundo o autor, a associação do violão

com a música popular teria gerado a fama de instrumento boêmio, o que era sinônimo de

vagabundagem. (Id: 101)

“Os primeiros a cultivar o instrumento de uma maneira séria foram considerados

verdadeiros heróis.” (Id: 101) O autor cita o nome do engenheiro Clementino Lisboa, do

desembargador Itabaiana, do escritor Melo Morais e dos professores Ernani Figueiredo e

Alfredo Imenes, como figuras que se esforçaram para colocar o violão nos “salões”.

Dudeque dá destaque ao nome de Quincas Laranjeiras (Joaquim Santos), como

precursor do violão moderno no Brasil, pois este violonista “se dedicou a ensinar o violão

pelo método de Tárrega.” (Id:102)

O autor ainda destaca a passagem de Barrios e Robledo pelo Rio de Janeiro (ano de

1917), como um momento importante para o desenvolvimento do violão no Brasil e para o

estabelecimento do método de Tarrega.

Outro nome citado por Dudeque, no início do século XX é o de João Pernambuco,

nome reconhecido por Heitor Villa-Lobos e divulgado por violonistas atuais como Turíbio

Santos e Henrique Pinto.

No restante da abordagem sobre o violão no Brasil, o autor cita dois centros de

desenvolvimento do violão: Rio de Janeiro e São Paulo. Destes lugares, o autor relaciona

vários nomes de intérpretes e compositores.

41

Norton Dudeque, da mesma forma que Márcia Taborda, organiza a história do violão

como história das personalidades, abordando-a de forma linear e sem aprofundar,

criticamente, aspectos que apresenta. Segue, portanto, a tendência predominante na

historiografia da música brasileira.

O terceiro trabalho revisado sobre o violão brasileiro foi de Suzel Ana Reily (REILY,

2001). Neste artigo, a autora observa que instrumentos e estilos musicais são geralmente

ligados a status social, e no Brasil os símbolos musicais constituíram fortes marcas sociais e

“raciais”. (REILY, 2001:157) A autora, ao citar um relato do pintor Debret, comenta que

este viajante, na primeira metade do século XIX, destacou a relação da “guitar” (aqui o

termo foi mantido como encontrado no artigo de Reily, porque não há como saber qual

instrumento realmente estava sendo usado na época, tanto podia ser uma guitarra francesa

como uma viola) com as pessoas “comuns”. Contudo, segundo a autora, o instrumento se

“recusava” a estar confinado neste único universo, pois tanto podia ser encontrado ao lado

de tambores, entre negros e mulatos, assim como em salas de visitas de casas de família.

(Id: 157) Este caso da “guitar” é, para a autora, um exemplo de contradições encontradas

em culturas híbridas na América Latina.

Reily explica que no Brasil havia, ou há, um espaço para o encontro de diversos

grupos sociais e étnicos, o que levou a uma multiplicidade de expressões culturais. No

entanto, esta proximidade social e étnica foi vista, em alguns momentos, como uma

ameaça, o que suscitou uma série de mecanismos de segregação para preservar

determinados grupos. Entre estes mecanismos estava o da construção de um discurso que

associava determinados instrumentos e estilos musicais com grupos sociais específicos.

Mas o violão, segundo a autora, por ocupar uma posição intermediária na hierarquia

social brasileira, foi colocado entre as tensões de duas forças opostas: o sincretismo e a

segregação. Segundo a autora, o violão circulava, como nenhum outro instrumento, entre as

várias esferas sociais, o que o tornou um mediador no processo cultural de hibridização do

país. Por outro lado, esta flexibilidade do violão colocou-o no foco de debates exaltados, o

que transformou o instrumento em alvo de um discurso que apontava para a fixação de

fronteiras sociais.

A autora considera que os mecanismos de promoção da segregação social foram

desafiados com os ideais culturais da hibridização, o que levou a “intelligentsia” a reavaliar

42

suas concepções de popular, sem, no entanto, comprometer seus ideais estéticos. O

movimento Modernista, segundo Reily, tinha um projeto de enobrecimento do violão

popular e, de fato, o violão emergiu durante os anos de 1930 como o instrumento nacional,

através de sua utilização no samba. Mas o samba, segundo Reily, associado ao carnaval,

não trouxe para o violão uma imagem “séria” de nobreza. A sofisticação do violão, “mesmo

que popular”, foi alcançada, segundo a autora, com a Bossa-Nova nos anos de 1950.

A partir dessas considerações, Suzel Reily traça um panorama histórico do violão no

Brasil, no qual mostra as flutuações do instrumento entre as várias esferas sociais, o que

exemplifica os processos de sincretismo social, e explica, também, algumas “reações

discursivas” geradas nos processos de hibridização. Este panorama do violão é organizado

da seguinte maneira: 1) A emergência das culturas híbridas geradas pelo encontro entre

diversos setores sociais no Brasil Colônia. 2) As tensões entre sincretismo e segregação na

vida musical do século XIX. 3) As contradições na representação do violão entre os

modernistas brasileiros no início do século XX. 4) O impacto do modernismo e da

modernização na articulação do violão até os dias de hoje. (Id:158)

Para fins deste trabalho, serão comentados os itens 2, 3 e 4. Estes itens foram

escolhidos porque comportam as transformações que antecederam o período estudado, os

anos que são focalizados na presente pesquisa e a fase posterior aos anos de 1900 a 1930.

A autora considera que as tensões entre sincretismo e segregação aparecem neste

período, século XIX, a partir da chegada da corte portuguesa ao Brasil. A corte traz valores

europeus e a elite brasileira, tentando seguir o modelo que gerava status social, se

europeíza. Um símbolo destes valores musicais foi o piano. Este instrumento teve tanta

popularidade que em “1824, pianos eram construídos no Brasil e editoras locais estavam

suprindo o mercado de partituras de modinhas, e de outros estilos populares tocados nos

salões europeus da época.”1 Reily considera que Gilberto Freyre viu esta invasão européia

como um processo de encobrimento do caráter híbrido do brasileiro, gerando uma visão

colonial sobre a cultura brasileira, a qual passou a ser tida como inferior.

A autora coloca que, com o crescente prestigio do piano, a “guitar” entra em declínio

e é expulsa das esferas “respeitáveis”. A “guitar” passa a ser vista como um instrumento de

1 “1824, pianos were being constructed in Brazil, and local publishers were supplying the market with scores of modinhas and others drawing-room styles popular in Europe at the time” (VASCONCELOS apud REILY: 163)

43

músicos da rua e em oposição ao gosto por música séria da elite. O repertório híbrido se

torna vulgar e ‘popular’.

A autora considera que a vinda da corte portuguesa trouxe uma série de melhorias

para o Rio de Janeiro. Estas melhorias foram associadas à idéia de civilidade, e assim, as

práticas e gostos musicais destes novos habitantes corresponderiam ao mesmo ideal.

Através do século XIX, as fronteiras sociais distinguiam, segundo a mesma autora, duas

classes: uma composta pelos privilegiados (brancos) e outra composta por uma grande

massa de classes populares (negros) que circundavam a primeira. Apesar de observar esta

distinção marcante entre a sociedade carioca da época, a autora, ao citar o trabalho de

Hermano Viana, menciona que estas fronteiras eram permeáveis e o violão, sendo que o

violão teria sido um dos primeiros mediadores dessas interações. Esta mediação do violão,

segundo a autora, estava relacionada com a modinha e o choro.

A modinha podia ser acompanhada, durante recitais em casas de família, por piano ou

violão. Segundo Reily, a modinha foi um gênero abordado tanto por compositores eruditos

(Carlos Gomes, Francisco Manoel da Silva, entre outros) como populares. É citado o caso

das modinhas do guitarrista Joaquim Manuel que foram editadas por Neukomm na Europa.

Sobre Joaquim Manuel é transcrita a impressão do francês Louise de Freycinet:

“Em termos de performance, nada parece mais surpreendente do que o raro talento da “guitar” de um [...] mestiço do Rio de Janeiro, chamado de Joaquim Manuel. Em seus dedos o instrumento tem um charme indescritível, o qual eu nunca encontrei entre nossos guitarristas europeus, mesmo os mais notáveis.” (ARAÚJO apud REILY: 166)2

Reily cita o caso de Catulo da Paixão Cearense como um dos agentes que circulavam

nas várias classes sociais. Com base em Hermano Viana, a autora diz que a aceitação de

Catulo nos círculos das classes altas pode ser explicada como uma indicação do grau em

que os discursos dominantes contradiziam as práticas musicais diárias. (REILY: 166)

A autora conclui este trecho, afirmando que, durante o século XIX, um dos discursos

sobre música que mais teve força foi o que focou na demarcação e preservação das

2 “In terms of performance, nothing seems more surprising than the rare talent on the guitar of a ... mestiço from Rio de Janeiro called Joaquim Manuel. On his fingers the instrument has an indescribable charm, which I have never encountered amongst our European guitarists, even the most notable”. (ARAÚJO apud REILY: 166)

44

fronteiras musicais; mesmo que a prática social fosse muito mais fluida e este discurso

fosse, em muitos momentos, transgredido.

Na passagem do século XIX para o XX, segunda a autora, a sociedade brasileira vai

sofrer influência de um grupo de intelectuais, conhecidos como modernistas, que

intensificaram alguns debates sobre a cultura popular, visando fortalecer o ideal

nacionalista. Esta postura, para Reily, desafiou o eurocentrismo, porque destacou a

independência cultural brasileira. Para se criar uma nova visão cultural, seria preciso

valorizar o caráter híbrido do brasileiro, o qual poderia desafiar as barreiras construídas

para preservar a segregação social. (Id:168)

Sobre o violão e o movimento Modernista, a autora considera que no século XX as

tensões entre o sincretismo e a segregação estiveram em voga. Isto se deu porque a

vanguarda intelectual, junto com a ideologia nacionalista, que orientou o movimento

modernista, embarcou no projeto de definir os símbolos da identidade nacional. (Id: 168) O

violão foi utilizado com uma função simbólica proeminente pelo modernismo brasileiro,

em virtude de seu potencial de mediador entre a cultura local das classes populares e a

estética ‘universal’ da grande arte. (NAVES apud REILY: 168)

Os modernistas viam o violão como um articulador entre as esferas sociais. No

entanto, queriam também que o violão fosse cultivado com os cânones da “grande arte”, de

acordo com os ideais estéticos “universais”. Assim, antes do violão ser constituído como

símbolo nacional, foi preciso romper com as raízes profundas de preconceito dos membros

do mundo da arte, o que incluía também pessoas do próprio movimento modernista.

Na quarta parte do artigo, Reily analisa a forma como o violão foi transformado, junto

com o samba, em símbolo nacional.

A partir da terceira década do século XX, com o governo de Getúlio Vargas, houve

uma intensa política para a valorização da cultura das classes populares e com isso criou-se

a imagem do brasileiro como o mestiço cordial.

Nesse período, o samba estava se fixando como gênero musical e foi chamado a

representar o aspecto da cultura brasileira que deveria ser evidenciado, o sincretismo. Junto

com a transformação do samba em símbolo nacional, o violão, um dos principais

instrumentos para acompanhamento do samba, começou a figurar junto com o gênero

musical que simbolizaria o brasileiro. (Id: 171)

45

Mesmo com essas construçõs dos símbolos nacionais, forças opostas a estas

determinações estavam presentes na sociedade brasileira. Um dos discursos que ainda era

mantido por alguns grupos da sociedade era de que o samba era um gênero muito rústico, e,

para ser veiculado como símbolo nacional, precisaria se trabalhado dentro de outras

concepções musicais consideradas “mais sofisticadas”, como por exemplo, arranjos

eruditos.

Segundo a autora, com o surgimento da Bossa Nova o problema da falta de

“sofisticação” do samba estaria resolvido, e com isso também o violão passava a circular

em todas as classes sociais, já que os principais membros do movimento pertenciam a

classe média e alta e eram brancos. Com isso, o violão e o samba passam para uma

categoria musical que pertence às camadas respeitadas da sociedade.

A autora termina o artigo abordando as mudanças na escolha dos símbolos nacionais e

aponta para alguns discursos que estavam procurando o status de nacional, ora para a viola,

ora para instrumentos de percussão, ora para a música sertaneja, ora para a música do

nordeste (Bahia). Cada um desses discursos procurava argumentar sobre a maior

autenticidade e representatividade desses elementos no Brasil.

O artigo de Suzel Reily traz contribuições interessantes para o debate sobre a forma

com que a sociedade brasileira se articula. Através de sua análise é possível perceber como

as diversas esferas sociais disputam o poder e como a música é um importante elemento

dentro desses mecanismos de construção culturais.

A autora termina o artigo reforçando que a sociedade brasileira ainda busca por uma

representação nacional (gêneros, instrumentos musicais, etc), e que esta pode mudar de

acordo com cada época e de acordo com o grupo social que disputa mais espaço na

sociedade. Sua visão dialética da trajetória do violão, embora não esteja sempre tratando do

próprio, difere dos trabalhos anteriores citados.

Por fim, citaremos algumas informações, recolhidas da bibliografia revista, que

demonstram diversos pontos de vistas sobre a utilização do violão. Assim, ao nosso ver, o

instrumento simbolizou várias disputas e contradições dentro da sociedade carioca.

No livro “O Cortiço”, de Aluisio de Azevedo, o violão é associado às camadas baixas

da população e a um certo caráter de sedução e de transgressão das normas sociais.

Rita, voltara de Jacarepaguá: E, [...], segredou às companheiras que à noite teria um pagodinho com violão. [...]Firmo e Porfirio: “Desde a entrada dos dois, a

46

casa de Rita esquentou, E não tardou que se ouvisse gemer o cavaquinho e o violão (grupo brasileiro). [...] mas, de repente, o cavaquinho do Porfírio, acompanhado pelo violão de Firmo, rompeu vibrante com um chorado baiano. Nada mais do que os primeiros acordes da música criola para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo. [...]Finalmente Jerônimo (português) estava completamente mudado. A guitarra fora substituída pelo violão. (AZEVEDO apud SIQUEIRA, 1980: 91)

Em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, o autor apresenta perspectivas contraditórias

da utilização do violão. Em um primeiro momento, a entrada do violão em uma casa de

classe média é descrita como um momento de desconfiança. Logo em seguida o violão é

apresentado por Lima Barreto como expressão da “alma brasileira”. Por último, o autor

apresenta o violão sendo utilizado com sucesso em uma festa da classe média.

A lição de violão. A vizinhança via chegar meio desconfiada “com um violão agasalhado numa bolsa de camurça”: “Um violão em casa tão respeitável, que seria?”. (BARRETO apud TINHORÃO, 2000:20) Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão da poética musical característica da alma nacional. Consultara historicamente, cronistas e filósofos e adquirira certeza de que era a modinha acompanhada pelo violão. O seu fim seria disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte. (BARRETO apud SIQUEIRA, 1980:100 a 102) Festa de casamento na casa do general. Chegou a vez de Ricardo ... Ele ocupou um canto da sala, agarrou o violão afinou-o, correu a escala: Vou cantar “Os teus Braços”, modinha de minha composição, música e versos. Foi um sucesso. (id: 100 a 102)

A tese de Graça Alan (JOSÉ, 1995), também traz informações contrastantes sobre o

violão no Rio de Janeiro. A autora cita vários violonistas e um pouco da atuação de cada,

mas diz que o desenvolvimento do violão (quer nos parecer que autora se refere ao violão

de concerto) situa-se em uma posição de defasagem com relação a outros países. Tal déficit

é atribuído pela autora à falta de um ensino formal.

Apesar da atuação destes violonistas no ensino do violão no RJ, o mesmo se processava lentamente. Em grandes centros como Argentina e Cordoba, academias foram criadas e o instrumento era ensinado a partir de um sistema de seriação, onde vários alunos destes países se destacaram como alunos e mais tarde se tornaram mestres. A realidade destes centros acentuava a situação menos privilegiada em que se encontrava o Brasil. A própria revista O Violão (1928-29) reconhece o despreparo em que o RJ se encontrava para atender aos estudantes do instrumento. (id: 91)

47

A revisão de literatura aqui apresentada evidencia, a nosso ver, a importância de um

aprofundamento sobre a trajetória do violão e seu papel na sociedade brasileira, e, no caso

do presente trabalho, com ênfase na sociedade carioca. Evidenciam-se, nos textos

revisados, aspectos contraditórios nessa trajetória, o que ressalta a importância de análises

não lineares sobre esse tema.

48

III - Metodologia e Referencial Teórico

A revisão de literatura apresentada no capítulo anterior trouxe informações

importantes que evidenciam diversos discursos em torno da música brasileira, sobre sua

história e sobre a trajetória do violão dentro dessa história. De forma geral, é possível

perceber que, freqüentemente, no que se refere ao conceito de história, este é abordado

como uma organização cronológica de fatos. As exceções foram os livros de Mário de

Andrade, Hermano Viana, Renato Ortiz, Mônica Velloso e Reily, dentre a literatura revista.

Os livros mais antigos, até a década de 1980, apresentaram, muitas vezes, os

“preceitos” da brasilidade e dividiram a música em erudita e popular. Os livros mais

recentes, década de 1990 em diante, revelaram como os primeiros estudiosos de música no

Brasil estavam trabalhando desde o início do século XX. No entanto, estes últimos autores,

mesmo considerando a questão da identidade cultural como um projeto ideológico,

continuaram seguindo este caminho (caso de Taborda, Velloso, Reily) de compreensão da

cultura e da música no Brasil. Os autores que se destacaram ao focalizar esse tema sob

novos paradigmas, foram Vianna e Ortiz.

No que se refere à separação entre música erudita e popular, esta parece ser, na

maioria dos trabalhos pesquisados, um ponto que, muitas vezes, não é questionado

diretamente. Alguns autores percebem a sua ineficácia em representar os vários tipos de

músicas, mas não são oferecidas alternativas para o uso dos termos.

As categorias de erudito e popular, para o violão no Brasil, são bastante imprecisas,

porque o instrumento, além de ter transitado e de transitar entre diversos grupos sociais,

tem utilizado um caráter híbrido, que funde estilos e técnicas. Pode-se dizer que o aspecto

híbrido do violão também pode ser observado na maioria dos instrumentos musicais,

porque os mesmos circulam entre diversos grupos sociais. Dessa maneira, caberia dizer que

as categorias de erudito e popular são ideológicas e a nomeação e distinção de uma ou de

outra faz parte dos discursos e disputas entre os grupos de uma sociedade, não havendo

instrumento que esteja isolado ou utilizado apenas por um único grupo social.

A presente pesquisa, tendo como um dos objetivos reintepretar alguns pontos da

história do violão carioca, recorreu a fontes primárias, tais como partituras e gravações. O

levantamento se deteve em cinco arquivos: Biblioteca Nacional, Instituto Moreira Salles,

49

Museu da Imagem do Som e o acervo dos colecionadores Ronoel Simões e Jodacil

Damaceno. Nestes acervos foram encontradas referências 95 gravações de vários

violonistas do período (entre estas 95 apenas 7 não foram localizadas). Destas gravações,

14 são de João Pernambuco e 81 de diversos compositores como Henrique Britto, Rogério

Guimarães, Levino da Conceição, entre outros. Este destaque à obra de João Pernambuco

no levantamento feito, se deu porque este compositor é apontado, na bibliografia

consultada, como um compositor que criou uma obra elaborada, com técnicas violonísticas

apuradas. Na maior parte da bibliografia revista, os demais compositores não são citados,

ou quando aparecem não há maiores detalhes sobre suas obras, nem sobre suas

performances. Quando estes compositores aparecem, os mesmos são colocados como

aquém da técnica violonística da época. Com isso, pareceu-nos pertinente uma comparação

auditiva das obras destes compositores com as obras de João Pernambuco.

A comparação entre as gravações teve como ponto de partida a escuta (percepção

subjetiva), na qual não houve estabelecimento de modelos ou parâmetros a priori. Os

parâmetros decorreram da própria escuta e foram interpretados com base conceitual,

principalmente, em Clifton (1983), autor este que trabalha com uma concepção

fenomenológica de música.

A importância dessa apreciação auditiva, e da comparação feita a partir dela,

evidencia-se, na presente pesquisa, pela busca de outros “olhares” ou escutas sobre o

repertório focalizado. Sem pretender apagar por completo a trajetória violonística da autora

da pesquisa, pretensão esta impossível de ser atingida, buscou-se empreender uma escuta

cujo principal fundamento seria a experiência musical, vivida através da audição das

gravações selecionadas.

O suporte dado por Clifton foi de particular interesse, uma vez que o referido autor

defende, com base na fenomenologia, uma descrição do fenômeno desvinculada de

categorias apriorísticas que condicionam, antecipadamente, a experiência musical. O

trabalho de Clifton será melhor detalhado ao final do presente capítulo.

Cabe, ainda, ressaltar que a escolha das gravações se deu de forma aleatória, sem

pretender gerar conclusões generalizáveis, ou seja, foram tomadas como estudos de caso na

presente pesquisa.

50

Foram localizadas 20 partituras impressas, que foram publicadas no período estudado

e seis títulos de obras para violão na contracapa das partituras de João Pernambuco.

Também foram localizadas 30 partituras de músicas compostas no período estudado, mas

que foram editadas em outra época. Estão também nesses acervos as partituras do choro n.1

e Suíte Popular Brasileira, obras de Heitor Villa-Lobos compostas no período estudado e

editadas posteriormente. Sabemos, contudo, que as partituras, no caso aqui considerado,

são representações muito relativas do que era interpretado, uma vez que o repertório

considerado comportava interpretações de improviso. Além das obras compostas para

violão, foram encontradas 7 transcrições no período também editadas no período

pesquisado. Foi possível também perceber que existia um comércio amplo de transcrições

através dos anúncios de partituras.

As gravações e partituras integram um catálogo, elaborado ao longo da pesquisa, e

apresentado ao final do presente trabalho.

O período que inclui o final do século XIX e início do século XX é considerado, por

diversos estudiosos, como uma fase de consolidação dos símbolos culturais brasileiros,

entre os quais estariam os parâmetros musicais que moldaram o que hoje entendemos por

música brasileira. Assim, em uma busca por uma re-interpretação da história do violão nas

décadas de 10 a 30 do século XX, no Rio de Janeiro, acreditamos que são necessárias

algumas considerações sobre os processos de construção da história, sobre a forma como

escutamos a música do referido período, sobre a criação das identidades culturais e sua

relação com a música e sobre os processos de escuta a partir da perspectiva

fenomenológica.

Com isso, a metodologia da pesquisa está baseada nos conceitos de história

apresentados por Fernando Catroga, Peter Burke e Vanda Freire; conceitos de construção

de identidades culturais, por Stuart Hall e Pablo Vila; e conceitos de fenomenologia e

estética da recepção, por Thomas Clifton e Hans Robert Jauss. A aplicação das perspectivas

da fenomenologia e da estética da percepção à apreciação musical segue a proposta adotada

pelo grupo de pesquisa da Professora Vanda Freire.

51

1.1) Memória e história.

No que diz respeito aos livros de história da música e do violão no Brasil, um dos

aspectos que chamou a atenção no decorrer da revisão bibliográfica foi a forma como

descrição histórica é apresentada. Esta descrição ressalta, na maioria das vezes, a

cronologia dos fatos e uma narrativa que enfatiza uma possível linearidade dos

acontecimentos. A ausência freqüente de uma perspectiva crítica no discurso utilizado nas

descrições e a escolha por destacar determinados elementos da trajetória musical brasileira,

sem uma justificativa teórico-metodológica mais consistente, revelam também, muitas

vezes, desconexão com as teorias mais recentes da história.

Visto dessa maneira, ao focalizar o violão e sua trajetória no Rio de Janeiro, é

importante que alguns conceitos sobre história sejam revistos, para que os mesmos sirvam

de base para uma reflexão crítica sobre a história do violão carioca. A maioria dos trabalhos

lidos na revisão bibliográfica apresenta aspectos dos paradigmas mais usuais da história da

música. Para identificar estes paradigmas e buscar uma aproximação com a forma como os

historiadores lidam hoje, predominantemente, com a história, buscamos fundamentos em

alguns teóricos atuais. No entanto, antes de tecer comentários sobre os paradigmas recentes

da história, é importante que sejam feitas algumas colocações sobre a função da memória e

da história dentro da sociedade.

Segundo Fernando Catroga, a relação entre lembrança/esquecimento e historiografia

revela disputas por poder dentro de cada cultura. (CATROGA: 2001) Isto se dá porque

cada grupo social possui ferramentas e rituais de recordação que têm a função de manter

todo um imaginário cultural (valores, mitos, costumes, etc). Pode-se dizer que as culturas

são moldadas a partir destes recursos de memorização que estão sempre processando a

dinâmica entre memória e esquecimento.

Sobre memória, Catroga considera que ela não é um repositório de todos os

acontecimentos, ela é seletiva, porque a retenção dos fatos passa pelos afetos. Dessa

maneira, as narrativas de memória seriam impregnadas por ética e estética e reconstituiriam

apenas um ângulo de um determinado acontecimento.

Uma outra observação feita por Catroga sobre a memória é sobre a relação da

memória antiga com o presente. Para o autor a memória pode ser mudada de acordo com os

valores do presente

52

[...] a convocação do acontecido não é escrava da ordenação irreversível, causal ou analógica em relação ao presente. Os seus nexos são ditados por afinidades eletivas, e estas determinam que cada presente construa a sua própria história, não só em função da onticidade do que ocorreu, mas também das necessidades e lutas do presente.(id, 2001:22)

Duas outras observações sobre memória feitas por Catroga ainda parecem pertinentes

a este trabalho.

A primeira envolve o papel pragmático e normativo da memória. Esta função seria

responsável por criar uma sensação de perenidade de existência através da manutenção de

uma história e patrimônio comuns de indivíduos ou grupos sociais. Com isso, a memória

cria identidades para distinguir os indivíduos que ficam responsáveis por manter estas

distinções e diferenciações através de discursos, de deveres e de lealdades.

Na segunda observação, o autor comenta sobre as predisposições que condicionam os

indivíduos para selecionar seu passado, “processo psicológico em que são sempre

acompanhados pelo que se olvida, pois, quer se queira quer não, escolher é também

esquecer, silenciar e excluir.”(id:26)

Sobre a relação entre memória e historiografia, Catroga observa que, da mesma forma

que a memória é condicionada ideologicamente, a ação do historiador, apesar de ser

cercada de exigências científicas, vai ser influenciada pelas suas próprias narrativas

identitárias. Apesar de a história possuir métodos científicos próprios e contar com

“memória arquivada” (documento), ela depende da memória individual sujeita a afetos. O

historiador é também um ser com memórias pessoais e coletivas que vão interferir na

elaboração de uma história. “[...]a consciência do historiador não é um receptáculo vazio:

as suas perguntas só podem nascer no seio de uma mente já pré-ocupada por uma dada

formação histórica e por memórias sociais, coletivas e históricas [...](id:48)

Dessa maneira, a historiografia também pode funcionar como uma fonte de

legitimação e produção de memórias e tradições “chegando a fornecer credibilidade

cientificista a novos mitos de (re) fundação de grupos e da própria nação (reinvenção e

sacralização das origens e de momentos de grandeza simbolizados em “heróis” individuais

e coletivos). A modernidade acentuou estas características.” (id:50)

53

Os séculos XIX e XX são mencionados por diversos autores como um período de

apogeu da formação dos estados-nação, forma de organização dos países ocidentais que

serviu de alicerce da industrialização da era moderna.

O papel da historiografia neste período foi muito importante porque deu legitimidade

as novas e antigas tradições através de um discurso baseado em um modelo científico.

Nesta conjuntura, assistiu-se, de facto, a intensos e conflituosos processos de formação ou de refundação de uma nova idéia e de um novo ideal de nação, assim como à consolidação da identidade de novos grupos sociais emergentes. [...] Em síntese: a historiografia, com as suas escolhas, valorizações e esquecimentos, também gera a “fabricação” de memórias, pois contribui, através do seu cariz narrativo e da sua cumplicidade, directa ou indirecta, como o do sistema educativo, para o apagamento ou secundarização de memórias anteriores, bem como para a refundação, socialização e interiorização de novas memórias; (id:57)

Fernando Catroga explica que a história na era Moderna passa a ter importância social

e política. A esta concepção o autor associa também o fato da historiografia nesta época

trabalhar com uma noção de tempo linear e evolutiva, o que dentro da visão positivista da

época, funcionava como uma das formas de tornar o conhecimento histórico como

científico, ou seja, como algo que pudesse prever o futuro.

O trabalho de Catroga é particularmente importante nesta pesquisa, uma vez que o

mesmo se fundamenta na fenomenologia, o que propicia uma coerência teórico-

metodológica com o trabalho de Thomas Clifton, em sua aplicação no presente trabalho.

Peter Burke, o segundo autor a servir de referencial teórico para a presente pesquisa,

analisa algumas das tendências da nova história, a qual se diferencia da antiga historiografia

em temas, métodos e narrativas. (BURKE: 1992) Este autor para explicar as diferenças

entre a antiga história e a nova história, opta por demonstrar o que se opõe à nova, para

assim caracteriza-la.

1) A história tradicional diz respeito essencialmente a política (Estado), os demais

acontecimentos eram vistos como secundários. A nova história, pelo contrário,

começou a se interessar por toda atividade humana. “Tudo tem um passado que

pode em princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado”

(HALDANE apud BURKE, 1992:11). A essa perspectiva, somou-se a concepção de

relativismo cultural, segundo a qual “a realidade é social ou culturalmente

54

constituída” (BURKE, 11). Esta tendência é explicada como uma convergência

entre antropologia e história.

2) A história tradicional via a história como uma narrativa dos fatos, enquanto a nova

história está mais preocupada com a estrutura que gerou estes acontecimentos. (O

autor observa que esta tendência já tem algumas críticas)

3) A história tradicional oferece sempre uma visão de cima, dos grandes homens,

estadistas, etc. A história nova tenta recuperar a “história vista de baixo”, com

opiniões das pessoas mais comuns e com suas experiências da mudança social. Até

na história das idéias os historiadores têm se preocupado em historiar a mentalidade

coletiva, etc.

4) No paradigma tradicional, a história deveria se basear, sobretudo, em documentos

escritos, e estes, na maioria dos casos, deveriam ser oficiais. Assim, a nova história

passou a utilizar outras fontes como evidências visuais, orais, estatísticas, etc.

5) As questões individuais eram mais relevantes para o paradigma tradicional. Hoje os

historiadores estão tanto preocupados com o indivíduo quanto com a coletividade,

tendências do momento e os acontecimentos.

6) O paradigma tradicional considerava a história como algo objetivo, através do qual

o historiador pudesse descrever a realidade. No entanto, através da concepção de

relativismo cultural, a visão do historiador é questionada porque, apesar do mesmo

estar cercado de procedimentos científicos para descrever a história, ele não escapa

de seus próprios condicionamentos culturais, os quais, em grande parte, delineiam a

narrativa de um acontecimento.

A contribuição de Peter Burke à pesquisa é particurlamente importante pela

concepção relativista defendida pelo autor, concepção esta que propicia diversas

convergências com o texto de Catroga.

O terceiro autor que forneceu alguns conceitos importantes para a interpretação deste

trabalho é Vanda Freire. (FREIRE: 1994) A autora transpõe as questões das ciências sociais

para o campo da história da música e, ao contrário de diversas histórias da música, coloca a

música não como algo que é condicionado por uma estrutura social, mas como um dos

elementos capazes de dar forma ou romper com o estabelecido em uma sociedade.

55

Segundo Freire, a história da música vem utilizando um modelo de discurso histórico

baseado na linearidade, no evolucionismo e no determinismo. Esta visão de história foi

constituída com o estabelecimento da História como uma “ciência” por volta do século

XVIII e XIX. Porém, a maioria das histórias da música, mesmo as mais recentes, seguem

esta mesma visão, a qual gera uma historiografia dos estilos, dos autores, das obras, etc,

excluindo da música uma gama complexa de significados.

A autora propõe uma história da música na qual sejam enfatizadas uma não

linearidade de tempo e uma não causalidade/determinidade. Dessa forma, divide em dois

níveis a história da música: a primeira que faz parte da “rede simbólica que constitui a

própria música e a segunda que representa o relato que se faz sobre ela, quando se faz

história da música.” (FREIRE, 1994:9)

Ao abordar a questão relativa ao conceito de tempo, a autora emprega o conceito de

significado, identificando três momentos de significação que são simultâneos e não

lineares. Significados atuais que se referem ao momento histórico em que se inserem e

onde são constituídas determinadas formas e estruturas musicais. Significados residuais que

na visão da autora são re-significações porque

não é possível à sociedade apropriar-se, de maneira idêntica, de significados elaborados fora de sua realidade (significados remanescentes de outras épocas ou contextos). Os signos, portadores desses significados, quando reutilizados por outra época ou contexto, são dotados de novas significações, pertinentes à atualidade da sociedade considerada, pertinentes à realidade operante em que são utilizados. (id:17)

Significados latentes que “são, aqui, entendidos como aqueles que a sociedade ainda

não realizou (pelo menos, não em plenitude), mas que a arte já articula e porta em seus

signos”.(id: 17)

Ao estabelecer esta coexistência de tempos em conjunto com a noção de significados,

a autora retoma para a música o sentido de ser também “um campo de relações sociais”.

Com isso, também reavalia alguns relatos da história da música baseados apenas na

perspectiva européia e que se mantinham como discursos hegemônicos capazes de

determinar o que é a música e de como ela deve ser.

A História da Música tem sido feita, salvo algumas exceções, com o olhar europeu do século XIX. Os significados têm sido negados, explícita ou implicitamente em seu discurso, ou reduzidos à determinação do social-econômico, à concepção causal, à lógica tradicional. A realidade dos países

56

colonizados tem sido freqüentemente desconsiderada, quando a maioria dos estudos a analisa pela ótica européia, e termina por concluir de seu atraso, ante os centros “adiantados”. Foi, particularmente, pensando numa musicologia brasileira que a presente concepção foi elaborada. Pois, ao privilegiar o enfoque do tempo-significado, ao conceber a multiplicidade interativa e dinâmica de significados latentes, presentes ou residuais (re-significados), buscou exatamente valorizar o que essa música elabora - significados residuais, advindos da cultura européia, negra, ou índia, aqui revestidos de novos significados; significados presentes, superpostos ou cravados nos anteriores, que refletem o momento vivido nessa sociedade; e significados latentes, novas ordenações que a música, com a liberdade que o imaginário lhe concede, está sempre a propor à sociedade. (id: 18 e 19)

O trabalho de Freire converge, portanto, com os anteriores, ao enfatizar o

subjetivismo e o relativismo e ao não priorizar as relações causais e lineares na construção

do relato histórico.

A partir destes três autores iremos, trabalhar com alguns conceitos para buscar uma

reinterpretação do período estudado, no que se refere à trajetória do violão.

De Fernando Catroga, utilizaremos, sobretudo os conceitos de memória seletiva e de

função social da história para revisar a ênfase dada por alguns autores a determinados

compositores/instrumentistas e a omissão ou falta de maiores detalhamentos, sobre a obra e

a performance de outros violonistas da época pesquisada. A escolha por determinados

músicos dentro da história do violão é um exemplo do conceito de memória seletiva

utilizado por Catroga. A memória seletiva, segundo Catroga, é o momento em que os

historiadores escolhem e omitem os “atores” de um determinado acontecimento. Tal

seleção, além de revelar valores éticos e estéticos do próprio historiador e do seu grupo

social, deixa de representar uma série de aspectos da “realidade” da época, devido à

exclusão de vários elementos.

Como exemplo do conceito de função social da história é possível citar a utilização e

manutenção de uma mesma narrativa histórica encontrada na maioria dos livros sobre

história do violão no Brasil. O discurso empregado por muitos historiadores, nos quais o

violão no início do século XX é considerado um instrumento vulgar e pouco desenvolvido,

expressa uma posição, segundo a qual, a música que deveria ocupar lugar de destaque na

sociedade e na cultura brasileira deveria ser a que seguisse os cânones da música ensinada e

difundida pelas escolas oficiais de música, segundo os métodos europeus. No entanto, o

discurso da desvalorização do violão no início do século XX revela apenas uma das visões

57

sobre a utilização instrumento, e omite que existiam pessoas (violonistas) que circulavam

em diversas classes, ou mesmo que vários músicos deste instrumento estavam consolidando

técnicas condizentes com o repertório da época. Certamente outras visões sobre o violão e

sobre suas músicas circulavam na sociedade carioca da época.

Peter Burke contribuiu com a concepção de construção da história utilizada, por

enfatizar a subjetividade dos relatos sobre a história, aplicável ao caso da história do violão,

o que reforça validade de uma nova interpretação do tema desta pesquisa.

Os conceitos de Vanda Freire sobre significado e tempo serão utilizados para buscar

relações sociais do universo violonístico, inserindo-se em uma trama complexa, e para

tentar construir um discurso não determinista, evolucionista e factual da trajetória do violão

carioca.

2.1) Identidades Culturais

Os conceitos de identidade cultural elaborados, respectivamente, no trabalho de Stuart

Hall (1998) e Pablo Vila (1996) são importantes na presente pesquisa porque o objeto de

estudo, o violão, foi utilizado, em alguns momentos do período pesquisado, como símbolo

de identidade cultural brasileira. Como os dois autores trabalham com a noção de

identidade cultural pós-moderna, é possível refletir, a partir de uma perspectiva atual, sobre

a construção dos símbolos nacionais e a utilização do violão nos discursos sobre identidade

brasileira. Cabe ressaltar, também, que estes conceitos se relacionam com as concepções

apresentadas anteriormente, relativas à nova história e adotadas na pesquisa.

Stuart Hall analisa a identidade cultural no período conhecido como pós-

Modernidade. Para situar alguns conceitos sobre este tipo de simbologia das culturas, o

autor traça, de forma panorâmica, a história dos processos de identificação cultural.

O autor define três concepções de identidade: o sujeito do iluminismo, que visualiza

indivíduos como dotados de um núcleo/ou essência fixo, que nasce com as pessoas; o

sujeito sociológico, que possui um núcleo que se transforma nas relações; e o sujeito pós-

moderno, que concebe os indivíduos com identidades provisórias/históricas e múltiplas.

Segundo Hall, as sociedades modernas (tardias) são caracterizadas pelas diferenças e

é a partir dessa diferença que se estabelece um equilíbrio (disputa por poder)/ relação entre

as várias identidades.

58

Stuart Hall realça os vários acontecimentos (marxismo, teorias da psicanálise a partir

de Freud, teorias lingüísticas com Saussure, teorias filosóficas de Foucault e o feminismo)

que causaram o descentramento do sujeito (a substituição da idéia de núcleo e essência do

sujeito do iluminismo). Com isso, coloca as identidades e os homens na pós-modernidade

como figuras discursivas. O autor explica que as mudanças no sujeito são vistas a partir

de“[...] concepções mutantes do sujeito humano, visto como uma figura discursiva, cuja

forma unificada e identidade racional eram pressupostas tanto pelos discursos do

pensamento moderno quanto pelos processos que moldaram a modernidade, sendo-lhes

essenciais” (HALL:1998:23)

Após destacar algumas teorias que transformaram a noção de identidade do sujeito, o

autor diz que no mundo moderno as principais fontes de identidade são as culturas

nacionais. Para Hall, isto se deu porque a forma de organização dos países modernos em

estado-nação foi um dos principais alicerces da industrialização no mundo moderno. “As

diferenças étnicas e regionais foram gradualmente sendo colocadas de forma subordinada,

sob aquilo que Ernest Gellner chama de ‘teto político’do estado-nação, que se tornou,

assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais”. (id:49)

“As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (Id:50)

O autor seleciona cinco aspectos para analisar a construção da narrativa da cultura

nacional.

1) Narrativa da Nação – história dos grandes acontecimentos políticos, como guerras

e conquistas. Estes feitos heróicos são contados nas histórias e nas literaturas nacionais, na

mídia e na cultura popular.

“Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação. Como membros de tal comunidade imaginada nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte.”(ID:52)

59

2) Discurso sobre a origem da nação, no qual está contida a essência de um povo.

“Ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade. A identidade

nacional é representada como primordial.”(Id:53)

3) Estratégia discursiva da invenção das tradições (Hobsbawn citado por Hall).

“Tradição inventada significa um conjunto de práticas [...], de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado”. (HOBSBAWN apud Hall: 54)

4) O quarto exemplo de narrativa da cultura nacional é o mito fundacional. “Uma

estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão

distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo real, mas, do tempo

mítico”.

5) O quinto discurso sobre a identidade nacional é baseado na idéia de um povo puro,

original.

O autor não considera que um discurso sobre cultura nacional possa ser empregado

como um elemento de unidade de uma nação, mas, ressalta que, até hoje, é um tipo de

ordenação política e social utilizada para definir grupos sociais em pequena e larga escala

(sub-culturas e países).

O autor constata um crescente hibridismo nas sociedades pós-modernas e uma volta

de interesse pelo conceito de nacionalismo, porém este último vem com um novo discurso.

“[...], a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do “global” nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do local. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostraram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente.” (id:97)

Sobre a questão da identidade cultural e da música, Pablo Vila traz alguns conceitos e

interpretações, pertinentes à presente pesquisa, que valorizam a música na formação das

identidades.

As mudanças na forma de compreender a formação das identidades culturais nos

últimos 20 anos, tal como abordado pelas ciências humanas, trouxeram, segundo o autor, o

conceito de identidades narrativas. A narrativa seria muito mais do que um gênero literário,

seria uma categoria da epistemologia.

60

O autor pergunta quais seriam as relações desta nova forma de pensar identidades

culturais com a música popular? Em seguida Vila responde dizendo que a relação se dá

porque, usualmente, música e identidade são pensadas com os conceitos de identidade

social.

“Cabe aqui esclarecer que se por um lado entendo que o processo de construção identitária é basicamente discursivo, com isto não quero propor um imperialismo lingüístico. [...] Assim, eu tampouco creio que a vida é mero discurso. Contudo, creio sim em que as trocas na maneira em que vivemos são em si mesmas, uma forma de discurso, se entendemos discurso como Laclau e Mouffe (1987) como aquelas práticas lingüísticas e não lingüísticas que conferem sentido em um campo de forças caracterizado pelo jogo de relações de poder.” (VILA, 1996: 1)3

Na primeira parte do artigo, Pablo Vila faz uma descrição da teoria subculturalista

inglesa, corrente na qual o autor desenvolveu alguns trabalhos. Nesta teoria, os sub grupos

de uma sociedade estariam isolados e, com isso, seria possível dizer quais estratos sociais

que apreciam determinadas músicas, de acordo com suas ideologias. No entanto, o que se

verifica é que há uma interpenetração de idéias e que vários estilos musicais transitam nas

várias classes sociais.

Na concepção seguinte, discutida pelo autor, o pós-estruturalismo, a música é

considerada como interpeladora de identidades sociais. Ela seria um elemento de transição

entre as várias classes.

“[...] a idéia da articulação se propõe como superadora do conceito de homologia estrutural. Assim, a teoria da articulação preserva a idéia da autonomia relativa aos elementos culturais e ideológicos, mas também insiste em que os padrões combinatórios mediam padrões que existiriam na formação econômica e social, através de uma luta continua pela conformação de sentido” (Id:3)4

O autor organiza sua argumentação, explicando, primeiramente, como as várias

categorias sociais se articulam na luta pelo sentido cultural. Os atores sociais participam de

3 “Cabe aquí aclarar que si por un lado entiendo que el processo de construción identitatria es básicamente discursivo, com esto no quiero proponer una suerte de imperialismo linguistico[...]Así, yo tampoco creo la vida es mero discurso. No obstante, sí creo en que los cambios en la manera que vivimos son en sí mismos una forma de discurso, si entendemos discurso a la Laclau y Mouffe (1987) como aquellas praticas linguisticas y no linguisticas que confieren sentido en un campo de fuerzas caracterizado por el juego de relaciones de poder[...]”. (VILA, 1996: 1) 4 “[...] la idea de articulacion se propone como superadora del concepto de homologia estrutural. Así la teoria de la articulación preserva la idea de la autonomia relativa de los elementos culturales e ideológicos, pero tambien insiste en que los patrones combinatorios mediatizan patrones que existirían en la formación económico-social a través de una lucha contínua por la conformación del sentido[...]”. (Id:3)

61

diversos grupos que dependem do tipo de relação que desenvolvem com o outro: relação de

produção, racial e étnica, nacional, de gênero, familiares, etárias, de classe, etc. Cada uma

dessas relações é um espaço de produção identitária e de luta discursiva acerca do sentido,

que define estas mesmas relações sociais. Nesta disputa por sentido há um ganhador que

consegue demonstrar que seu ponto de vista é o melhor. Este ponto de vista se torna do

senso comum até que haja nova disputa e nova troca, diminuição ou adição de valores.

“Portanto, as diferentes posições do sujeito que convergem para formar o que a primeira vista aparece como um indivíduo único e unificado, são na realidade construções culturais discursivas. [...] Usualmente as pessoas encontram os discursos que lhes permitem armar suas identidades nas diferentes construções culturais de uma época e uma sociedade determinada. Assim, é precisamente, no reino da cultura onde se desenvolve a luta pelo sentido das diferentes posições de sujeito, a música é uma fonte muito importante desse tipo de discursos. Certamente, nem todas as opções culturais tem a mesma força na luta pelo sentido, e aqui aparece o problema de construção da hegemonia. (GRAMSCI apud VILA, 1971: 161) Isto é assim, dado que a sorte de construções se realiza, essencialmente, através da proposta de identidade que se faz aos diferentes atores sociais; propostas de identidade e de posições de sujeito que são funcionais aos interesses dos grupos hegemônicos. Daí que se pode afirmar que a batalha hegemônica mais importante se ganha quando os atores sociais aceitam (certamente através de um processo muito complexo de reconhecimento, luta e negociação) as posições de sujeito tal qual são oferecidas pelo grupo hegemônico.” (VILA, 1996: 7 e 8)5

Com isso, Vila explica que uma sociedade se estrutura com uma série de sistemas

classificatórios dos vários aspectos de uma cultura. Os sistemas de classificação humanos

não são naturais ou neutros, pelo contrário, tais classificações estão carregadas de sentido.

5 Por lo tanto, las diferentes posiciones de sujeto que convergen para formar lo que a primera vista aparece como un individuo único y unificado son en realidad construcciones culturales discursivas [...] Usualmente la gente encuentra los discursos que les permiten armar sus identidades en las diferentes construcciones culturales de una época y una sociedad determinada. Así, es precisamente, en el reino de la cultura donde se desarrolla la lucha por el sentido de las diferentes posiciones de sujeto, y la música es una fuente muy importante de tal tipo de discursos’. “Por supuesto no todas las opciones culturales tienen la misma fuerza en la lucha por el sentido, y aquí aparece el problema de construcción de la hegemonía (GRAMSCI apud VILA, 1971: 161). Esto es así dado que dicha construcción se realiza, esencialmente, a través de la propuesta de identidad que se les hace a los diferentes actores sociales; propuesta de identidad o de posiciones de sujeto que son funcionales a los intereses de los grupos hegemónicos. De ahí que se pueda afirmar que la batalla hegemónica más importante se gana cuando los actores sociales aceptan (por supuesto a través de un proceso muy complejo de reconocimiento, lucha y negociación) las posiciones de sujeto tal cual son ofrecidas por el grupo hegemónico.” (VILA, 1996: 7 e 8)

62

Este sentido está ligado a quem detém a hegemonia em uma sociedade e tempo

determinados.

As mudanças ou trocas de discursos se dão normalmente quando um dos atores

sociais percebe que há uma diferença grande entre o discurso hegemônico e a realidade que

o cerca. Assim, inicia-se um processo de negociações que pode trazer conflitos de vários

graus.

A música para o autor ocupa um lugar de privilégio na articulação de sentidos e na

interpelação dos atores sociais. Para Vila, a música não contém um sentido intrínseco, nem

tão pouco seu sentido é apenas o dado por seus ouvintes.

“A música para nós tem um sentido sim (não intrínseco, mas sentido ao fim), e tal sentido está ligado às articulações nas quais o passado tem participado. Certamente que estas articulações passadas não atuam como uma camisa de força que impede sua rearticulação em configurações de sentido novas, mas sim atuam pondo certos limites a categoria de articulações possíveis no futuro. Assim, a música não chega vazia, sem conotações prévias ao encontro de atores sociais que lhe proveriam sentido, mas ao contrário, chega infestada de múltiplos (e muitas vezes contraditórias) conotações de sentido.”(id: 11)6

A categoria de trama argumental apresentada pelo autor diz respeito à forma que

alguém escolhe para narrar uma história, ou seja, porque ela escolhe destacar x ou y fatos

de um evento de sua vida e abandonar detalhes considerados menos importantes. Assim,

sua descrição, narrativa, a cerca de si mesma e dos outros será flexível de acordo com o

tipo de discurso adotado, o qual será moldado de acordo com os “objetos” de identificação

passados ou futuros. Dessa forma, a narrativa é influenciada pelas mudanças identitárias,

corroborando algumas identidades e também sugerindo a transformações das mesmas.

A presente pesquisa trabalhou com o conceito de construção identitária, como é

utilizado por Stuart Hall ao descrever o sujeito pós-moderno, e com os conceitos de

identidade narrativa e trama argumental como são tratados por Pablo Vila.

6 La música para nosotros sí tiene sentido ( no intrínseco, pero sentido al fin), y tal sentido está ligado a las articulaciones en las cuales ha participado en el pasado. Por supuesto que estas articulaciones pasadas no actúan como una camisa de fuerza que impide su re-articulaciones en configuraciones de sentido nuevas, pero, sin embargo, sí actúan poniendo ciertos limites al rango de articulaciones posibles en el futuro. Así, la música no llega vacía, sin connotaciones previas al encuentro de actores sociales que le proveerían de sentido, sino que, por el contrario, llega plagada de múltiples (y muchas veces contradictorias) connotaciones de sentido.”(id: 11)

63

Ao nosso ver, com o conceito de Stuart Hall é possível observar que o período

pesquisado tem sido analisado com base em narrativas de construção do nacional como, por

exemplo: o discurso do mito fundacional (mito das três raças brasileiras) e o discurso sobre

a pureza do povo (no Brasil temos, no início do século XX, uma determinada valorização

da cultura popular e de como esta representaria a nação brasileira).

Os conceitos de identidade narrativa e trama argumental, de Pablo Vila, foram usados

para identificar os discursos sobre a função e papel do violão no período pesquisado, a

quem pertenceu estes discursos, as disputas entre as várias narrativas, as narrativas que se

sobrepujaram em determinados momentos e a opção da historiografia por uma ou algumas

das narrativas.

3) Fenomenologia e musicologia

Na última parte aqui apresentada sobre a metodologia e referencial teórico da

pesquisa, partimos para focalizar os conceitos de estética da recepção e de fenomenologia,

os quais forneceram alguns fundamentos interpretativos à pesquisa, subsidiando a

utilização de conceitos expostos anteriormente como os de construção da história e das

identidades culturais.

3.1) Estética da recepção.

O trabalho de Hans Robert Jauss (JAUSS, 1982), um “clássico” sobre estética da

recepção, traz algumas das questões da história para um universo de produção artística: a

literatura. Jauss considera que a maioria dos estudos da história da literatura esqueceu de

fornecer informações sobre os leitores, segundo o autor, parcela importante na trajetória da

produção literária. A estética da recepção seria uma resposta para uma historiografia que

quer levar em consideração o público receptor como agente de transformação e/ou

manutenção de estilos literários.

O autor critica a forma da historiografia marxista e formalista, dizendo que, em

ambas, o leitor foi colocado em posição passiva. Na concepção da estética da recepção, o

leitor é colocado como uma figura de importância igual a do autor e do crítico, o que

mudaria a história da literatura, porque o foco passa a ser o da percepção dos leitores e não

mais uma história factual.

64

A função da teoria da estética da recepção seria religar a experiência presente do

sujeito receptor com o lançamento/ aparecimento do livro no passado. (JAUSS, 1982: 19)

As implicações da estética da recepção incluem uma dimensão histórica, pois o leitor

irá ler uma obra de acordo com sua bagagem que, de acordo com sua cultura, segue uma

tradição de percepção/ conhecimento. Ao mesmo tempo, inclui a dimensão histórica do

evento passado, sob o olhar interpretativo do presente.

O autor apresenta sete teses nas quais vê a renovação da história da literatura, a partir

da estética da recepção.

Tese 1 – Um trabalho literário não é um objeto que se mantém por si só e que oferece

a mesma visão para cada leitor em cada período. Ele não é um monumento que

monoliticamente revela sua essência infinita. Ele é muito mais como uma orquestração que

imprime uma nova ressonância entre seus leitores e que liberta o texto do material das

palavras e o traz para uma existência contemporânea. (id:21)

O autor considera que a história da literatura deveria ser constituída a partir de

processos ligados à estética da recepção e de produção de literatura, o qual se daria a partir

da realização de um texto literário que levaria em consideração a recepção do leitor, a

critica reflexiva, e a continua produtividade dos autores.

Por fim, Jauss aborda o conceito de horizonte de expectativa –

“A coerência da literatura como um evento é, principalmente, mediada pelo horizonte de expectativas, tanto dos contemporâneos, quanto dos antigos leitores, críticos e autores. A possibilidade de compreender e representar a história da literatura, em sua única historicidade depende se o horizonte de expectativas puder ser objetivado.”(id:22)

Tese 2 – A estética da recepção para Jauss vai além de uma sociologia da teoria

literária. “Um trabalho literário, mesmo quando parece ser novo, não se apresenta como

algo absolutamente novo em um vácuo informacional, mas predispõe sua audiência a um

tipo específico de recepção através de: anúncios, sinais cobertos ou encobertos,

características familiares ou alusões implícitas.” (id: 23)

A percepção de uma obra é condicionada por um horizonte de expectativas de cada

época. “O novo texto evoca no leitor o horizonte de expectativas e regras familiares de

textos antigos, os quais são então corrigidos, alterados ou mesmo, reproduzidos.” (id: 23)

65

Tese 3 – Jauss observa que com a reconstrução dos horizontes de expectativa de cada

época é possível ter uma visão histórica das reações das audiências, além das críticas

recebidas em cada época.

Tese 4 – Com a reconstrução do horizonte de expectativas, no qual a obra foi criada, é

possível utilizar o próprio texto para descobrir como os contemporâneos entendiam e viam

o trabalho. (id:28)

O método aplicado à história da recepção é indispensável para se conhecer a literatura

do passado distante e implica em colocar contra a obra analisada uma série de outras obras

que sabemos serem conhecidas na época.

Tese 5 – O diacronismo explica como as obras literárias foram percebidas através dos

tempos. “Uma obra de arte não perde seu poder de ação ao transpor o período em que

apareceu; muitas vezes, sua importância cresce ou diminui no tempo, determinando a

revisão das épocas passadas em relação a percepção suscitada por ela no presente.”

(ZILBERMAN, 1989:37)

Tese 6 – O sincronismo na estrutura das referências do mesmo momento, assim como

as estruturas subseqüentes explica o sistema de relações da literatura em uma determinada

época e a sucessão desses sistemas.

Tese 7 – O desenvolvimento imanente da literatura relaciona-se com o processo geral

da história.

O trabalho de Robert Jauss é, portanto, significativo para a pesquisa, pois contribui

para a tarefa pretendida de reinterpretar a trajetória do violão no Rio de Janeiro. Sua teoria,

além disso, converge com as concepções de história aqui analisadas anteriormente,

ressaltando o papel da subjetividade e da não linearidade na construção do relato histórico,

ou seja, as concepções metodológicas e filosóficas da dialética e da fenomenologia estão

subjacentes a essa teoria.

3.2) Fenomenologia e música.

A fenomenologia foi usada, nesta pesquisa, como substrato à apreciação e descrição

de exemplos musicais, na presente pesquisa, bem como à concepção de história

(Catroga,2001; Jauss, 1982; Freire,1994; Clifton, 1983)

66

Thomas Clifton (CLIFTON, 1983) aborda algumas concepções relativas à música e à

fenomenologia, e sobre como esta última visualiza as práticas musicais.

O fenômeno musical, segundo o autor, compreende dois aspectos que se relacionam:

os objetos musicais e a experiência humana em relação a esses objetos.

O autor faz três afirmações para introduzir sua discussão: 1) palavras podem

descrever os objetos musicais e sua experiência, 2) não existe música sem a presença

humana, sendo a postura de receptividade necessária, 3) música e objeto musical são

palavras que se referem a aspectos musicais específicos e são reconhecíveis no mundo

humano.

A definição de música de Clifton vai mais além do que a que concebe música como

um grupo de sons ordenados e silêncios, cujo significado é mais intuitivo do que

denotativo. Para o autor, “música é a atualização da possibilidade de qualquer som

apresentar a um ser humano um significado que ele experimenta com seu corpo – ou seja:

com sua mente, seus sentimentos, seus sentidos, seus desejos e seu metabolismo”.

(CLIFTON, 1983: 1)

O autor aborda dois conceitos para o entendimento do significado da música e não

música. Significado contingente e significado imanente. O primeiro é uma forma de

utilização de um objeto musical, que possui um significado de consenso por uma

determinada cultura, ser utilizado fora de seu ritual de significação (exemplo da sinfonia de

Dvorak no intervalo de uma partida de futebol). O significado imanente é aquele que é dado

dentro de determinados rituais, os quais investem significados aos objetos musicais, por

exemplo, uma sinfonia dentro de uma sala de concerto.

Ordenação musical é um conceito utilizado pelo autor não restritivamente à

concepção de quem cria a música, mas considerando que o que é percebido através de uma

experiência musical não necessariamente é determinado pelo que foi elaborado pelo

compositor. Esta ordenação se dá por quem escuta a música “que tanto pode experimenta-la

num conjunto de sons naturais, numa música improvisada ou numa fuga de Bach. Nesse

sentido, ordem refere-se à experiência musical que é idêntica a si mesma enquanto

desenvolvida no tempo” (id:5), mas que envolve, necessariamente, a percepção subjetiva de

quem está experimentando.

67

Sobre algumas questões da estética e da recepção musical, o autor considera que não

se pode exigir que uma pessoa perceba a música da mesma forma que outras. Assim,

enunciações como esta música é boa ou essa música é ruim são totalmente desnecessárias

quando se parte para a compreensão da música como experiência de um ouvinte. A

primeira afirmativa é para o autor uma redundância porque “a experiência da música inclui

apenas a experiência da música, isto é, se eu posso verdadeiramente dizer que experimentei

um evento sonoro com música, porque eu devo discutir se essa experiência ou seu objeto é

bom, se eu já sei que é?” (Id: 5) A segunda afirmativa, essa música é ruim, é para o autor

uma contradição porque não houve um comportamento de sincronia entre o que foi

proposto pela música e o escutar do ouvinte, neste caso não é algo imanente à música. “O

comportamento evocado por essa situação é diferente do comportamento evocado pela

música.” (id: 6) Ou seja, a percepção do receptor é que considera a música dessa forma, o

que não corresponde a uma qualidade intrínseca da música ouvida.

Após algumas reflexões sobre música, Clifton aborda o tema da descrição de uma

experiência musical. Assim, o autor organiza três tópicos, a partir dos quais explica

posturas do descrever, questões sobre o descrever e razões para descrever.

Posturas sobre o descrever: 1) Abertura para que a composição “fale” conosco, para

deixa-la revelar sua própria ordem de significados. 2) Abertura para questionar nossas

próprias convicções sobre a natureza e o papel dos materiais musicais. 3)A descrição de

uma experiência que tem um significado também tem um significado.

Questões sobre descrever:

“1) Por que esta descrição tem um significado? 2) A experiência musical não é completa e intraduzível? 3) Por que as minhas experiências devem ser objeto da consideração de outras pessoas, ou as experiências dos outros devem ser objeto da minha consideração? Como uma pessoa pode experimentar algo da mesma forma que outra pessoa está experimentando? E não é verdade que o próprio ato de experimentar um objeto muda este objeto?” ( ID: 6-7)

Razões para descrever: 1) descrever é realizar uma autocomunicação, que ajuda a

transformar um conhecimento latente em um tipo de conhecimento explícito. 2) a descrição

da experiência musical tem, ela própria, um significado. Na medida em que a música é do

mundo, ela me ensina sobre o mundo. 3) a descoberta do conhecimento latente possibilita o

crescimento da sensibilidade para a música. 4) a descrição envolve a pessoa em um diálogo

68

com as outras. Nesse diálogo, a descrição pode ser vista, complementada e refinada,

aumentando assim os domínios de qualquer experiência.

Após os conceitos de música, de percepção e de experiência, o autor passa a definir o

objeto da descrição fenomenológica. O objeto musical e sua experiência são chamados de

fenômenos e a atividade de descrevê-los de fenomenologia. A descrição fenomenológica se

concentra mais nas essências e não nos fatos. As “essências” musicais, segundo o autor,

encontram-se no domínio do valor e do significado de quem está experimentando e

descrevendo um evento musical, dessa forma, elas (as essências) não dependem de um

conjunto de circunstâncias factuais quando as mesmas são apresentadas. (CLIFTON:10)

O objeto da descrição fenomenológica não tem um significado fixo, único. Os

significados são dados a partir das percepções desses objetos. O autor utiliza como exemplo

o desenho do triangulo eqüilátero que pode ser visto como uma seta, uma figura apontando

para três direções ao mesmo tempo, etc.

A descrição fenomenológica aceita não apenas a reciprocidade entre observador e

observado, mencionada anteriormente, mas, a interconexão entre conhecimento e

percepção. Assim, pode-se falar em uma dialética fenomenológica que envolve o

relacionamento entre uma essência, estudada reflexivamente, e sua apresentação em alguma

experiência individual, envolvendo conhecer, sentir e julgar. (Id:15)

“A minha experiência é composta de um diálogo entre o geral e o particular, sendo que o particular é identificado precisamente por suas qualidades gerais. O que acontece é que começo a me concentrar na Gavotte em si, não nessa ou naquela performance da peça, mas naquilo que permanece o mesmo, quer eu esteja experimentando agora, lembrando-me dela, antecipando-a ou julgando-a.” (id: 16)

Descrições fenomenológicas não são fundamentadas em uma verdade relativa, mas,

em uma verdade que é relacional: o significado da Gavotte exige a presença da própria

Gavotte e de um ouvinte atento. (id: 17)

A partir dessa conceituação prévia da estética da recepção e da fenomenologia,

brevemente revisadas aqui, passamos a delinear um quadro de como a música, dentro do

presente trabalho, será tratada.

Dois procedimentos, expostos por Jauss e Clifton, foram utilizados nesta pesquisa.

O primeiro foi o de aproximação do “horizonte de expectativas” relativo ás músicas

estudadas no presente trabalho. Este “horizonte” foi parcialmente reconstruído pelos

69

discursos criados sobre estas obras, na visão das pessoas que a produziram e que a ouviram

na época de sua criação.

Alguns dos ideais sobre música da época foram contrapostos à visão atual sobre este

mesmo repertório, segundo o “horizonte de expectativas” atual, do presente pesquisador.

Diante da leitura de livros que tratam de música e de violão, no período pesquisado. Todas

as considerações sobre violão no Rio de Janeiro, tanto em literatura antiga quanto recente,

foram agrupadas em um banco de dados para que as informações fossem cruzadas e

interpretadas, buscando trazer revelações importantes e que, possivelmente, em muitos dos

livros de história da música não foram tratadas da forma adotada por esta pesquisa.

Citações de periódicos do início do século XX mereceram especial atenção, por

representarem, tais como livros desse período, importantes fonte de informação primária,

embora não se tenha feito um levantamento exaustivo desse material. Diferentes vozes,

portanto, foram consideradas: a decorrente de depoimentos da época, colhidos em

periódicos e livros, a decorrente de depoimentos recentes, através da literatura também

recente. Essas vozes, que representam diferentes horizontes de expectativas foram

analisadas pela autora desta pesquisa, também condicionada por sua época, portadora de

um horizonte de expectativas próprio.

A seguir, a própria música daquela época foi considerada, pois o segundo

procedimento utilizado foi o de escuta do repertório pesquisado, seguida da descrição

(conceito de Clifton) desta escuta. A escuta e descrição foi feita a partir de alguns

exemplos, sem qualquer pretensão de generalização. Em um universo de 93 gravações,

foram apreciadas 7 peças (4 foram descritas e 3 receberam comentários breves), tratando-

se, assim, uma aproximação com esse repertório, permeado, inevitavelmente, pela escuta

atual da autora da pesquisa.

Como foi anteriormente comentado, vários foram os compositores encontrados no

período estudado, no entanto, apenas o nome de João Pernambuco recebeu destaque e se

manteve em evidência, até a atualidade. Assim, optamos por escutar uma obra de cada um

de seis autores encontrados no período e compará-las a uma peça de Pernambuco. A escuta

se deu de duas formas: através da interpretação dessas músicas ao violão, pela

pesquisadora, e da escuta de gravações da época (discos).

70

A partir deste procedimento foi possível vivenciar fenomenologicamente essas obras,

percebê-las, descrevê-las e até mesmo encontrar semelhanças e diferenças entre elas. A

seguir, foi possível fazer, como culminância de todos os procedimentos descritos, algumas

considerações sobre várias peças e compositores que foram omitidos ou pouco comentados,

pelas histórias do violão consultadas. Não há nenhuma intenção de generalização, a partir

dessa comparação, mas apenas de aprofundar e diversificar a percepção do pesquisador

sobre o fenômeno observado, e oferecer subsídios a uma releitura desse fenômeno.

A apreciação comparativa entre as gravações teve como ponto de partida a própria

escuta da pesquisadora. Esta escuta, apesar de focalizar os aspectos musicais através da

experiência e evitar o uso de modelos e parâmetros pré-estabelecidos, não exclui totalmente

o uso de expressões e conceitos musicais oriundos da formação da própria pesquisadora

(violonista formada pela Escola de Música da UFRJ), como por exemplo, conceitos da

música tonal e da análise formalista, que fazem parte do universo de vocabulário cotidiano

de músicos com formação acadêmica.

Os aspectos que emergiram da própria escuta foram interpretados com base em

algumas concepções de Clifton e Jauss, que “alargam” as possibilidades da experiência pela

valorização da subjetividade do receptor, no caso, a autora desta pesquisa. No entanto, as

apreciações e descrições musicais, como foi ressaltado anteriormente, estão também

permeadas por conceitos e idéias decorrentes da trajetória musical da pesquisadora, da

mesma forma como os depoimentos da época estão permeados pelas concepções e

vocabulário dos autores desses relatos. O mesmo se daria se tivéssemos optado neste

momento, por também ouvir as vozes de violonistas antigos, ligados ao repertório

considerado, mas, por necessidade de delimitação da pesquisa estes depoimentos não foram

tomados.

Cliffton sugere, para uma análise fenomenológica, a utilização de uma terminologia

que, além de contemplar o fenômeno musical (tempo, textura, estrutura, timbre), também

envolva a percepção do ouvinte. Alguns destes termos foram empregados nas descrições

feitas a partir da apreciação auditiva, mas não nos restringimos a eles.

Com relação ao tempo, Clifton elabora conceitos de começo e fim, continuidade,

duração em movimento e sucessão estática, contraste e interrupção, suspensão temporal e

71

estratos temporais, entre outros, buscando descrever possibilidades perceptivas do tempo

musical, por parte do ouvinte.

Começo e fim estão relacionados, segundo o autor, com a percepção da obra pelo

ouvinte. Isto se dá porque a impressão de um começo, por exemplo, pode não estar

relacionada, apenas, com o início da emissão sonora. Por vezes, a percepção de início é

posterior ao início do evento sonoro, e a percepção de fim pode ultrapassar ou ficar aquém

do momento em que cessa a emissão sonora.

Continuidade é um termo usado por Clifton para explicar duração e sucessão

musical. Este termo também envolve duas capacidades do ouvinte retenção (memorização

da música ouvida) e protenção (expectativa do que possa suceder na música). Ou seja, a

percepção de continuidade relaciona-se à memória, ao reconhecimento do que já foi

ouvido, enquanto a descontinuidade, embora também relacionada à memória , corresponde

à percepção de mudança, o que pressupõe o não reconhecimento de algo já ouvido.

Duração em movimento e sucessão estática estão ligadas ao conceito anterior de

continuidade. Duração em movimento está ligada à contínua apresentação de sons longos

que criam a idéia de justaposição. Sucessão estática se refere à presença de um som que não

desperta percepção de movimento.

Contraste e interrupção se referem a mudanças peculiares no discurso sonoro. O

primeiro conceito refere-se a ocorrência de mudanças, de um elemento musical para outro,

instaurando uma percepção de contraste, e não de semelhança ou continuidade.. O segundo

se caracteriza pela suspensão da continuidade.

Suspensão temporal está ligada à quebra da protenção, ou seja, o que é escutado não

corresponde à expectativa criada pelo ouvinte. Estratos temporais são identificados por

Cliffton como ocorrências através das quais é possível ouvir tempos simultâneos dentro de

uma mesma música, pela sobreposição de planos distintos.

Com relação ao espaço musical, Clifton sugere os seguintes termos para sua

descrição: linha, superfície e profundidade. Estes três elementos estão agrupados no espaço,

o qual é concebido como o local em que se dá a relação do sujeito com o objeto percebido.

A linha está relacionada com a percepção do ouvinte de uma “direção de sentido no

espaço” (SOUZA, 2000: 18) A linha pode apresentar variações de altura, largura, distância

e timbre.

72

A superfície “não teria um sentido de direção tão claro e implica em eventos lineares

e complexos” (FREIRE, 2003:41) e diz respeito também a texturas, as quais podem variar

por apresentarem: linhas pouco movimentadas, sem contraste e sem dinâmica (superfície

indiferenciada); “linha aderida à superfície, ausência de contorno [...], mudanças de timbre

com a manutenção de outros parâmetros” (id: 41) (superfície de baixo relevo); linha ainda

próxima à superfície, mas com mudanças maiores na agógica, planos, movimento de pontos

(superfície de médio relevo); linha com desenho individualizado, mas que se relaciona com

uma base, embora bastante distinta dela (superfície de alto relevo).

Profundidade é definida por Cifton, não apenas como a percepção de dimensão, mas

como percepção das alterações ocorridas na dinâmica, na tonalidade e na percepção da

textura.

A breve descrição de alguns conceitos trabalhos por Thomas Clifton tem o objetivo,

aqui, de ilustrar possibilidades conceituais aplicáveis à apreciação musical, podendo ser ou

não utilizados na descrição do fenômeno musical, ou ser acrescido de outros conceitos de

escolha da pesquisadora, inclusive aqueles incorporados ao seu vocabulário como

musicista. A diference para a análise morfológica reside, principalmente, na não

determinação prévia dos conceitos e parâmetros que balizarão a escuta e a descrição.

A escolha do trabalho de Clifton deve-se, primeiramente, à abertura que esses

conceitos permitem, sobretudo por não se vincularem estritamente a uma concepção

estética, permitindo, assim, uma descrição da experiência musical menos vinculada a

demarcações de gênero, estilo ou outras, apriorísticamente.

Ao usarmos a expressão “menos vinculada”, procuramos apontar para o fato de que

uma análise fenomenológica não pretende “zerar” as experiências musicais anteriores de

quem se dispõe a fazer uma descrição fenomenológica, mas, pelo contrário, a percepção do

“analista” (necessariamente influenciada pelas experiências musicais anteriores) é também

um elemento da descrição fenomenológica. Assim, se em alguns momentos da apreciação

musical os eventos musicais foram percebidos e descritos como cadências, introduções,

tonalidades ou outros, foi em decorrência da trajetória prévia da própria pesquisadora.

Consideramos, sobretudo, com base nos princípios da fenomenologia, que essa descrição

representa apenas uma das possíveis percepções sobre as peças escutadas.

73

Esta opção metodológica não teve, portanto, a intenção de generalizar “uma” escuta

do repertório, nem, tão pouco, de encontrar a “verdade” sobre as peças pesquisadas, mas

apenas de descrever a experiência da escuta da pesquisadora.

O conceito de experiência, como trabalhado por Harris Berger (1999), é importante

para uma apreciação musical fenomenológica, porque permite a integração do objeto

sonoro (peças pesquisadas) com o sujeito (pesquisadora) que o escuta e o descreve. Berger

(1999) ao explicar o conceito de experiência o compara como as concepções de Husserl

(HUSSERL, appud BERGER, 1999:19 e 20) e Merleau-Ponty (PONTY, appud BERGER

1999:20), tal como utilizam o termo.

Segundo Berger, Husserl “enfatiza que o mundo existe como algo para ser constituído

na experiência; neste sentido o mundo é constituído dentro da experiência”. (BERGER,

1999:20) Merleau-Ponty, a partir da interpretação de Berger, acrescenta ao conceito de

experiência a noção da estreita relação entre mundo e sujeito que percebe o mundo; “ o

mundo está aqui para experiência, mas [...] como o sujeito está no mundo, ele tanto é

constituído pelo mundo, como o mundo é constituído pelo próprio sujeito”. (id:20)

A dialética do sujeito e do mundo é básica para todas as formas de fenomenologia. A percepção do fenômeno emerge como o resultado da atividade do sujeito e os significativos encontros deste com o mundo, ambos, o objeto da experiência (ou noema) e o encontro do sujeito (ou noesis) com o objeto, estão presentes na experiência. Experiência não é constituída em um processo unificado, mas em um arranjo de modos “noeticos”: percepção, memória, imaginação e outros. (id:21)

Berger ainda ressalta o caráter social da dialética entre sujeito e mundo, a partir de

três argumentos. No primeiro, o mundo, segundo o autor, se constitui a partir do

compartilhamento das várias experiências dos sujeitos.(id:21) Ou seja, se eu estou de frente

para uma mesa posso perceber que minha visão está limitada apenas à parte frontal da

mesa. Uma outra pessoa que se posicione na lateral da mesa terá uma visão diferente da

mesma mesa. Desse modo, é possível dizer que a percepção do mundo se intensifica e se

aprofunda ao compartilharmos nosso ponto de vista com outras pessoas. No segundo

argumento, Berger explica que a tomada de consciência de uma pessoa como sujeito

implica no fato de perceber a si mesma e aos outros. Assim, a própria pessoa que se vê

como um sujeito sabe, ao mesmo tempo, que ela é também um objeto (o outro) na visão dos

outros, e vice versa. Por fim, Berger explica que “os diversos atos pelos quais o sujeito

constitui suas experiências, são radicalmente sociais, pois, o sujeito em suas ações busca

74

fins sociais e suas ações podem, potencialmente, ter conseqüências para os outros e para a

sociedade como um todo.” (id:21)

Com base nos conceitos de fenomenologia de Clifton e Berger, consideramos as

apreciações auditivas, descritas na presente pesquisa, constituem a visão da pesquisadora

sobre as obras, podendo contribuir, ao serem compartilhadas com outros, para o

enriquecimento da percepção do fenômeno estudado.

A opção metodológica para a apreciação musical é, por outro lado, convergente com o

referencial teórico-metodológico adotado para a pesquisa, como um todo, pois a mesma

adota uma concepção dialética e fenomenológica de história.

Os objetivos dessa pesquisa, que pressupõem a apreciação interpretativa, envolvendo

o violão, os músicos e as músicas a ele relacionados, desenvolvidos a partir dos

procedimentos acima descritos, pressupõem a perspectiva da inserção do violão em uma

trama social mais ampla, sem que se perca a noção de que essa descrição histórica é

produto de um sujeito atual, condicionado por seu “horizonte de expectativas”, buscando

interpretar um fenômeno, sem perder de vista o “horizonte de expectativas” da época.

Diversas vezes, escutas e conceitos serão, portanto, entrecruzados, buscando construir

um relato histórico interpretativo, necessariamente subjetivo, que pretende contribuir para a

compreensão crítica da trajetória do violão no Rio de Janeiro. Ou seja, a partir do momento

em que os fatores subjetivos são reconhecidos como elementos da experiência da

pesquisadora, buscamos uma objetivação de alguns processos musicais relacionados ao

violão carioca do início do século XX, através da escuta e da interpretação das músicas do

repertório desse período.

Nas palavras de Benson (2003), a visão da experiência musical propriamente dita

muitas vezes foi perdida, e a música termina sendo tratada como um “quebra-cabeça

ontológico”. Faz-se necessário, então, retomar uma fenomenologia da experiência musical,

que busque trazer a luz o fenômeno, não apenas em sua dimensão ontológica, mas também

em seus aspectos hermenêuticos, interpretativos.

75

IV. Apreciação auditiva e revisão crítica de alguns aspectos da trajetória do violão no

Rio de Janeiro

1) Apreciação auditiva.

Foram escolhidas aleatoriamente sete peças para a apreciação musical, mas, apenas

quatro dessas obras receberam uma descrição mais detalhada. As três peças não descritas

foram utilizadas para ilustrar alguns aspectos da técnica e estética do violão carioca do

início do século XX, que serão comentados no final das apreciações auditivas.

As quatro peças descritas foram: Marcha Columbia (Benedicto Chaves), Romance I e

II (Henrique Brito), Há quem resista? (Levino da Conceição) e Recordando (João

Pernambuco). As três peças apreciadas, mas que não foram descritas, são: Curropaco-

papaco (Mozart Bicalho), Teu nome (Glauco Viana) e Marinetti (Rogério Guimarães).

Além dessas, outras peças foram ouvidas, buscando-se uma aproximação mais global com a

produção musical violonística do período. Diversas peças do repertório considerado foram

também interpretadas ao violão pela pesquisadora, buscando aprofundar a experiência

musical.

Consideramos que a experiência de escutar e descrever o repertório proposto

contribuiu para a percepção de alguns aspectos musicais que, provavelmente, foram

significativos para a época e para o grupo de músicos que tocou estas peças. É importante

ressaltar que a descrição partiu de um ouvinte atual e que, muitos dos aspectos ressaltados,

foram descritos com uma perspectiva da atualidade. Por se tratar de um repertório com

características tonais, cabe observar também, que para a descrição de aspetos que

chamaram a atenção pela condução harmônica utilizamos, em alguns momentos, a

“ferramenta de linguagem” da harmonia tonal, mas não nos prendemos apenas a ela, pois os

aspectos focalizados na descrição emergiram na própria experiência musical, não estando,

portanto, sujeitos a delimitações a priori.

Parece importante lembrar alguns comentários de Clifton (1983) sobre as razões para

descrever: realizar uma autocomunicação, que ajuda a transformar um conhecimento

latente em um tipo de conhecimento explícito; a descrição da experiência musical tem, ela

própria, um significado; na medida em que a música é do mundo, ela me ensina sobre o

mundo; a descoberta do conhecimento latente contribui para o crescimento da sensibilidade

76

para a música; a descrição envolve a pessoa em um diálogo com as outras. Nesse diálogo, a

descrição pode ser complementada e refinada, aumentando assim os domínios de qualquer

experiência.

Por fim, é importante ressaltar, mais uma vez, que a descrição das peças representa o

ponto de escuta da pesquisadora (violonista formada pela Escola de Música da UFRJ), a

qual é “o ouvinte” que descreve as peças apreciadas. Cabe ainda lembrar que alguns dos

compositores pesquisados, como João Pernambuco e Mozart Bicalho, fazem parte do

repertório musical da autora da pesquisa. Assim, a apreciação auditiva, além de contar com

a escuta das gravações, também teve referências na prática musical da própria

pesquisadora.

1.1) Marcha Columbia – Benedicto Chaves (faixa 1 do CD)

Os elementos que se destacam nesta peça, à nossa escuta, são linhas melódicas que

dialogam entre as notas graves (baixos), notas agudas (assemelhando-se a um arpejo) e o

efeito de imitação de instrumentos de percussão e de sopro.

À audição da peça é possível perceber diferentes eventos sonoros que aqui foram

chamados de: introdução, duas partes contrastantes (1 e 2), um evento percussivo e

melódico e uma repetição variada da primeira parte, ao final.

Na introdução (início até 0’30’’) é possível perceber a ocorrência de três eventos

sonoros contrastantes, sendo que os dois primeiros podem ser ouvidos como variações da

mesma idéia harmônica/melódica, explorando contrastes de tessitura, sobretudo. O terceiro

evento, que se funde com o início da primeira idéia melódica (parte 1), contrasta com os

dois primeiros, principalmente pela textura em blocos sonoros, sendo ouvido pela

pesquisadora como uma transição para o início da peça, propriamente dito. Com isso, é

possível retomar o conceito de Clifton (1983) de começo, segundo o qual a percepção de

início de uma peça se dá pela integração da mesma com o ouvinte, e não apenas, pelo

começo da emissão sonora. O ouvinte precisa estabelecer um tipo de escuta atenta, a qual

condensa dois tipos de experiências: a ativa (“experiência de trazer à existência”) e a

passiva (“abrir-se à percepção das coisas”). (CLIFTON, 1983:83) Assim, apesar da

introdução ser o início da emissão sonora, à nossa escuta a peça só vai começar

77

efetivamente no trecho que chamamos de parte1, onde podem ser percebidas as principais

idéias temáticas.

No primeiro evento da introdução (início até 011”) ouve-se uma linha melódica que

ressalta de um arpejo agudo e rápido, o qual é pontuado por notas graves que conduzem a

harmonia, finalizando com alguns acordes (blocos de notas)

No segundo evento da introdução (0’11’’ até 0’25’’), a linha melódica é ouvida na

região grave e a harmonia é conduzida por acordes agudos, finalizando, também, com

acordes em bloco, propiciando uma percepção de novidade, em virtude do contraste que

estabelece em relação ao 1º evento.

A introdução finaliza com blocos sonoros (0’25’’ até 0’30’’), na mesma tonalidade

usada desde o início, sendo percebida como transição à idéia melódica que se segue (parte

1), passando a ela sem interrupção.

Esta introdução passa a ser reconhecida, por um efeito posterior de retenção, como

uma apresentação dos elementos temáticos que serão ouvidos durante a primeira parte. De

certa forma, a introdução prenuncia que serão utilizados contrastes sonoros que vão se

diferenciar, sobretudo, pelo timbre (tessitura), tempo (andamento) e textura (relevo).

Na primeira parte (0’31’’ até 0’57’’), que então se inicia, podemos ouvir um diálogo

entre sonoridades graves (linha melódica grave), mesclada a novos arpejos mais agudos

contrapostos a ela. Podemos considerar que nesta parte as diferenças de timbre e textura

possibilitam a percepção de uma sensação polifônica, embora o trecho seja

predominantemente homofônico. Esta parte é percebida com um andamento agitado, em

virtude do arpejamento, o que vai contrastar com a segunda parte, na qual prevalecem

blocos sonoros.

Foi possível perceber que o diálogo melódico ouvido na primeira parte possui

semelhanças com o primeiro evento sonoro escutado na introdução. É possível dizer que a

primeira parte possui dois desenhos melódicos que se complementam. O primeiro (0’31’’

até 0’45’’) possui uma terminação que se funde com o início do segundo desenho (0’45’’

até 0’57’’), o qual termina com o mesmo bloco de notas que finaliza os dois primeiros

eventos da introdução.

Na segunda parte (0’58’’ até 1’52’’) ouve-se também o diálogo entre linhas

melódicas, mas, uma das linhas melódicas, a mais aguda, é sublinhada por acordes

78

arpejados, permitindo que se perceba este trecho como mais denso, em contraste com a

outra linha melódica que realiza um contracanto monódico no baixo. O andamento pode ser

percebido como um pouco mais lento, em virtude da supressão dos arpejos rápidos, o que

reforça a impressão de ser um trecho mais “pesado”.

Durante a escuta foi possível perceber que os elementos melódicos da segunda parte

são repetidos. A primeira apresentação do novo desenho melódico pode ser ouvida no

trecho que corresponde ao seguinte espaço de tempo da peça: 0’58’’ até 1’25’’. No trecho

seguinte (1’25’’ até 1’52’’) é possível perceber a repetição de algumas idéias melódicas

anteriores.

Após a escuta das duas primeiras partes, há uma interrupção que gera forte efeito de

descontinuidade (1’53’’ até 2’12’’). A peça é interrompida para a execução de uma caixa

clara e de trompete (simulados pelo violão). Inicialmente, temos a sensação de vazio sonoro

devido ao contraste com a densidade sonora apresentada nas partes 1 e 2. O primeiro timbre

escutado neste trecho é o que imita a caixa clara e, logo em seguida, ouve-se um timbre

agudo, imitando um “trompete”. Este efeito percussivo/melódico surpreendeu a ouvinte

(pesquisadora), porque desfaz, à nossa escuta, a expectativa (protenção) de retorno à

primeira idéia melódica.

O retorno da parte 1 (2’13’’ até o fim) ocorre logo após o efeito de percussão, mas

este retorno não traz uma repetição da primeira parte idêntica à primeira apresentação da

mesma. Assim, este trecho lida não só com a capacidade de retenção do ouvinte (retorno de

elemento temático já apresentado), mas também com a capacidade de protenção, porque

apresenta pequenas modificações inesperadas.

No retorno da primeira parte, ouvimos também o contraste entre densidades sonoras.

O trecho percussivo soa muito leve e com volume baixo, mas, com a retomada da parte 1,

ouve-se o violonista com um volume sonoro muito alto.

Nessa repetição variada da primeira parte, escutada ao final da peça, ocorrem

mudanças de andamento, que podem ser percebidas como um acelerando, e também

algumas variações harmônicas. Estas variações na harmonia geram, junto com a aceleração

ritmica, uma ambientação de virtuosismo que gera protenção quanto ao final da peça. A

música é encerrada com blocos de notas agudas que reafirmam a percepção tonal.

79

1.2) Romance (parte I) (parte II) – Henrique Brito

Esta peça de Henrique Britto, iniciada por uma pequeníssima introdução, pode ser

ouvida separadamente, já que contém duas partes, ou como um conjunto constituído por

duas diferentes partes (parte I e parte II). A denominação de partes, como de parte I e parte

II, foi dada pelo próprio compositor, e cada uma delas explora diferentes eventos. A

primeira parte corresponde a segunda faixa do CD e pode ser ouvido como um tema com

variações. Na segunda parte, gravada na terceira faixa do CD, é possível ouvir um elemento

temático polifônico e uma variação de um elemento temático apresentada na primeira parte.

Romance Parte I (faixa 2 do CD)

À nossa escuta, a peça inicia com uma linha melódica descendente que é interrompida

por um acorde arpejado (início até 16’’), ambos os elementos (linha melódica e acorde) são

tocados duas vezes. Este trecho, após uma escuta da peça como um todo, pode ser

percebido como uma introdução. A introdução apresenta um caráter bem diferente quando

comparada às demais partes ouvidas no decorrer da peça, pois apresenta uma idéia

melódica que não é repetida em nenhum outro trecho da peça e, portanto, pode ser ouvida

como um trecho de adjunção.

Após o trecho denominado de introdução, foi possível perceber que a peça apresenta

quatro ambientações (eventos) diferentes: os três primeiros eventos apresentam três

elementos temáticos e o quarto evento estabelece forte contraste em relação aos elementos

temáticos anteriores. A forma de apresentação das idéias temáticas pode ser percebida

como um tema com variações.

Nos três primeiros eventos (16’’ até 1’29’’), da parte I, percebemos um andamento

variável e um encaminhamento tonal previsível, que é percebido através das linhas

melódicas.

Ressalta também a percepção, durante os três primeiros eventos, a variação de

dinâmica. Nesta gravação também foi possível reconhecer algumas técnicas violonísticas

como escalas e efeitos de harmônicos, por vezes tecnicamente complexos.

80

Os três primeiros eventos podem ser ouvidos como texturas de alto relevo, nas quais

percebemos a melodia e o acompanhamento como bem distantes entre si, devido à

utilização de diferentes tessituras, as quais podem ser percebidas como estratos

independentes.

Podemos perceber que o primeiro evento sonoro (desenho melódico 1) (16’’ até 47’’)

é trabalhado com dois estratos sonoros com caráter homofônico. Neste primeiro desenho

melódico, à nossa escuta, ouvimos uma linha melódica principal (região grave) e um

acompanhamento feito por acordes (região média). Esta linha melódica é composta por

duas idéias, a primeira idéia é repetida duas vezes (0’16’’ até 0’31’’) e a segunda idéia é

tocada apenas uma vez (0’32’’ até 0’47’’).

O segundo evento (desenho melódico 2) (47’’ até 1’12’’) é uma repetição variada da

primeira idéia melódica, exposta anteriormente. As variações se dão no timbre (tessitura),

pois agora o tema é ouvido na região aguda, e no retorno de apenas uma das idéias

melódicas do desenho melódico 1. É possível ouvir também, nesse trecho, a utilização de

notas ligeiras como elemento de ligação entre a primeira apresentação do desenho melódico

2 e sua repetição. Na apresentação do segundo desenho melódico é possível perceber

também nuances de dinâmica, as quais contribuem para enfatizar o contraste entre cada

evento. O início do segundo desenho melódico é suave e há um crescendo evidenciado

pelos acordes do acompanhamento, os quais geram o aumento do volume sonoro.

No terceiro evento (desenho melódico 3) (1’12’’ até 1’28’’) foi possível ouvir um

novo desenho melódico que lembra o primeiro desenho melódico. Esta semelhança se dá

pelo retorno da linha melódica para a região grave. O terceiro desenho melódico retoma

também o mesmo volume sonoro do primeiro desenho melódico. Este terceiro elemento

termina com uma suspensão harmônica. A suspensão é evidenciada por uma interrupção

entre a terceira e quarta ambientações da parte I.

O quarto evento (1’29’’ até 3’01’’) introduz um novo elemento temático (desenho

melódico 4). Este desenho melódico (1’29 até 2’12’’) inicia com um glissando, o que

desloca, à nossa escuta, a sensação de início do novo tema para alguns segundos antes do

ponto onde é efetivamente desenvolvido. Podemos perceber que o desenho melódico 4 foi

tocado com oitavas e possui um caráter rítmico mais constante, o que contrasta com os

eventos anteriores que são, ritmicamente, menos regulares. Contudo, percebemos que a

81

regularidade métrica do quarto evento é interrompida em dois momentos: o primeiro, no

qual ouvimos um rallentando (trecho que usa uma escala e uma cadência conclusiva

1’49’’’até 1’58’) e, o segundo, no qual é possível perceber uma ampliação da terminação

harmônica (2’01’’ até 2’12’’). A ampliação da terminação surpreende o ouvinte que tem a

impressão de que o trecho iria terminar antes do ponto onde finaliza.

A primeira sensação de término é enfatizada pela afirmação da tonalidade principal,

evidenciada logo após a escala. No entanto, a ampliação, iniciada com harmônicos bem

agudos que são seguidos por acordes que não concluem e conduzem a uma segunda

repetição do quarto evento (elemento temático 4), parecem deslocar a sensação de fim do

último evento da primeira parte.

A repetição do quarto evento (2’12’’ até 3’01’’) segue quase idêntica à sua primeira

apresentação. As diferenças entre a primeira apresentação do desenho melódico 4 e sua

repetição podem ser ouvidas com a extensão da conclusão da peça com repetições e

afirmações da tonalidade principal. É possível perceber também uma diluição sonora e um

desenho melódico ascendente que finaliza com um harmônico.

Romance Parte II ( faixa 3 do CD)

Podemos perceber, durante a parte II, dois ambientes sonoros.

O primeiro, o qual chamaremos de evento sonoro 1 (7’’ a 1’17’’), tem início com um

longo trecho melódico polifônico, resultante de dois planos sonoros: uma linha melódica

que se destaca de um trêmulo (região aguda) e uma linha melódica que é tocada em uma

região mais grave.

Na segunda ambientação, evento sonoro 2 (1’17’’ a 2’34’’) , há um retorno variado de

um elemento temático apresentado na parte I (primeiro desenho melódico), que propicia

uma percepção de retenção.

É possível dizer que esta segunda parte do Romance inicia com um efeito de adjunção

(em relação ao final da parte I), uma vez que o primeiro evento da segunda parte instaura,

em nossa percepção, um forte contraste em relação ao final da parte anterior (parecendo

não ter qualquer relação derivativa com o que foi ouvido anteriormente) e termina com

uma variação, se pensarmos a música como um conjunto de duas partes.

82

Durante a escuta é possível perceber que a técnica de trêmulo e, novamente, as

nuances de dinâmica foram ressaltadas pelo intérprete demonstram um preparo técnico e

expressivo avançado do violonista.

Na primeira ambientação da parte II (7’’ até 1’17’’) é possível perceber aspectos

contrastantes com relação a primeira parte do Romance, no que diz respeito a tempo, timbre

e textura. O tempo é percebido como mais regular e o efeito do trêmulo traz uma nova

característica de timbre e de textura (há claramente um jogo de planos polifônicos). O

efeito do trêmulo também permite ao violão conduzir uma melodia mais longa.

Ainda quanto à primeira ambientação da parte II do Romance, podemos descrevê-la

como um evento sonoro (desenho melódico 1) que pode ser ouvido como um conjunto

composto de três momentos: apresentação do desenho melódico com terminação

suspensiva (7’’ até 34’’), repetição variada do mesmo desenho melódico com terminação

conclusiva (35’’ até 1’01’’) e ampliação harmônica da conclusão do trecho (1’02’’ até

1’16’’). Estes aspectos de suspensão e conclusão são enfatizados pela harmonia tonal.

Na segunda ambientação (1’17’’ até 2’34’’) da parte II, percebemos um caráter

totalmente diferente da primeira ambientação, caracterizando um efeito de adjunção. Nesta

segunda ambientação podemos observar que há mudança no tempo, na construção melódica

e na textura. O tempo passa a ser mais irregular, o que traz uma quebra na protenção do

ouvinte que estava se habituando com a regularidade métrica do trecho anterior. É possível

perceber que a melodia volta a ser trabalhada como no primeiro evento da parte I (linha

melódica aguda e acompanhamento com acordes na região média) e a textura volta a ser

homofônica, mantendo a configuração de alto relevo.

Podemos perceber três momentos diferentes, durante a segunda ambientação da parte

II, que descrevemos como segundo, terceiro e quarto eventos.

No segundo evento (1’17’’até 1’34’’), ouvimos uma linha melódica e um

acompanhamento de acordes, que trazem á memória o primeiro evento apresentado na parte

I. No entanto, é possível perceber algumas variações na apresentação do elemento temático

2, em relação a sua idéia matriz, no timbre, na utilização de efeitos sonoros (puxar a corda

para gerar um semitom de uma nota do tema) e no acréscimo de escalas. No final do

desenho melódico 2 podemos perceber uma pequena interrupção no fluxo sonoro antes de

escutarmos o terceiro evento.

83

No terceiro desenho evento (1’35’’ até 1’47’’), ouvimos uma escala que possui

semelhanças com a escala apresentada no primeiro desenho melódico. É possível dizer que

as notas ligeiras (pequenas escalas), além de variarem o timbre e instaurarem uma

percepção de flexibilização do tempo, dão um caráter virtuosístico ao trecho que precede a

finalização da peça. No final do deste terceiro evento percebemos uma nova interrupção do

fluxo sonoro, gerando, mais uma vez, uma pequena descontinuidade.

No quarto evento (1’48’’ até o fim), ouvimos acordes bem agudos, que podem

lembrar o som de um cavaquinho. Este evento 4 tem início com um espaço sonoro bem

pequeno, o que contrasta, a princípio, com os eventos anteriores, que utilizaram um espaço

sonoro mais amplo. Os acordes que iniciam o evento 4, parecem conduzir a harmonia para

concluir a peça, em alternância com desenho melódico ouvido em região mais grave, que

termina por concluir a peça, finalizando-a com um harmônico.

1.3) Há quem resista? (maxixe) - Levino da Conceição (faixa 4 do CD)

À escuta da pesquisadora, a peça chama a atenção pelo seu caráter rítmico, pois, como

o título mesmo sugere, não deve haver quem resista a ficar parado com o ritmo contagiante

desta peça. Apesar de percebemos um ritmo dançante, o pulso sofre freqüentes suspensões

temporais o que gera uma quebra na expectativa (protenção) do ouvinte.

A gravação é de baixa qualidade e o som do violão fica distorcido em vários trechos.

Esta distorção chega a “embaçar”, à escuta da pesquisadora, alguns sons prejudicando a

escuta em determinados momentos.

A audição permite perceber que a peça flui com clareza e que a peça, apesar de soar

como uma obra simples, exige, em alguns trechos, um preparo técnico avançado.

Foi possível ouvir durante a apreciação ambientações diferentes, descritas aqui da

seguinte maneira: introdução, desenho melódico 1 (apresentado em quatro frases com

variações, repetidas em pares), desenho melódico 2 (também ouvido em quatro frases com

variações, também repetidas em pares), retorno ao desenho melódico 1 (ouvido, desta vez,

em apenas uma frase), desenho melódico 3 (ouvido em duas frases com pequena variação),

novo retorno ao desenho melódico 1 (agora ouvido novamente em quatro frases com

variação), novo retorno ao desenho melódico 2 (agora ouvido em apenas duas frases

84

variadas), e, finalmente, desenho melódico 1 (ouvido , nesta finalização, em duas frases

também variadas). O retorno ao primeiro desenho melódico suscita a capacidade de

retenção do ouvinte, trazendo à memória, de forma recorrente, elementos já ouvidos. Além

da repetição percebemos também o uso de efeitos de adjunção e contraste para a elaboração

dos novos desenhos melódicos que vão surgindo no decorrer da peça.

A introdução (9’’ até 16’’) cria uma expectativa, à nossa escuta, diferente do que vem

a ser ouvido em seguida. Neste trecho ouvimos a repetição de um único acorde e de uma

nota bem aguda, destacada pelo efeito de harmônico, os quais nos parecem dar a sensação

de início de uma peça mais solene, no entanto, tem início uma música leve e dançante.

O desenho melódico 1 (17’’ até 1’06’’) apresenta uma linha melódica que ora aparece

destacada do acompanhamento, ora se funde com a harmonia. Durante a apresentação do

desenho melódico 1 é possível perceber suspensões que alteram a protenção do ouvinte,

porque o fluxo melódico e o tempo (pulso) são interrompidos pelo efeito de trêmulo que

altera a percepção de começo das linhas melódicas.

A idéia melódica, destacada no desenho melódico 1, pode ser ouvida como um par de

idéias melódicas, as quais possuem início semelhante e terminações variadas (a primeira

terminação suspensiva e a segunda conclusiva).

A primeira apresentação desse desenho melódico 1 (0’17’’ até 0’30’’) começa com

um longo glissando, que é seguido de alguns ligados (característica principal deste desenho

melódico) e termina com uma suspensão. A primeira repetição do desenho melódico 1

(0’30’’ até 0’41’’) inicia com um trêmulo que é seguido pelo glissando (efeito já ouvido

anteriormente). Estes dois efeitos sonoros (trêmulo e glissando) parecem tornar mais

suspensivo o início dessa repetição, que fai finalizar com uma cadência conclusiva. Ouve-

se novamente a repetição do par de apresentações variadas do desenho melódico 1 (0’42’’

até 1’06’’) que finaliza mais uma vez conclusivamente.

O desenho melódico 2 (1’06’’ até 1’39’’) também pode ser percebido como um par de

repetições variadas, ou seja, é um desenho melódico ouvido em duas frases com início

semelhante e terminações variadas (a primeira suspensiva e a segunda conclusiva). Durante

a escuta do desenho melódico 2, é possível percebermos também uma mudança no relevo,

porque a linha melódica parece estar mais próxima dos acordes que conduzem a harmonia.

85

Este desenho melódico 2 (1’06’’ até 1’14’’) começa com uma linha melódica aguda e

termina com uma suspensão (acorde de A#). A segunda frase do desenho melódico 2

(1’14’’ até 1’22’’) retoma a melodia aguda e termina com uma conclusão harmônica (em B

maior), o que, tanto pode ser percebido como o início de mais uma repetição da mesma

idéia melódica (que está no tom de B maior), como o retorno do desenho melódico 1, que

está em E maior. Ouvimos novamente o par de apresentações do desenho melódico 2

(1’23’’ até 1’39’’) que finaliza conclusivamente, retornando ao tom principal da peça.

É possível perceber que o desenho melódico 2 possui um caráter contrastante em

relação ao primeiro desenho melódico, em virtude da ocorrência de modulação e com a

sensação de uma pulsação mais regular. Apesar de percebermos uma maior regularidade do

pulso, durante o a apresentação do desenho melódico 2, este sofre uma breve interrupção

(pequeno momento após a escuta do acorde de A#). Essas pequenas suspensões temporais

são recorrentes na escuta da peça, assinalando os retornos dos desenhos melódicos nas

frases repetidas.

Após a escuta do desenho melódico 1, retorna o primeiro desenho, no espaço que

corresponde à seguinte minutagem: 1’39’’ até 1’51’’. Nesta repetição ouvimos apenas uma

apresentação em uma frase condensada da referida melodia.

No terceiro desenho melódico (1’52’’ até 2’08’’) percebemos uma linha melódica na

região grave do instrumento e um acompanhamento de acordes. Este trecho, à nossa escuta,

soa como uma novidade dentro peça, destacando-se das demais partes (contraste) pela

presença marcante da melodia na região grave.

A primeira escuta do desenho melódico 3 ocorre no espaço de 1’52’’ até 1’59’’ da

música. Este elemento possui um efeito harmônico diferente, resultante de um acorde de

sexto grau (C#m), que confere um caráter suspensivo. Após a suspensão ouvimos uma

conclusão no tom de E. A repetição do desenho melódico 3 (2’00’’ até 2’08’’) possui início

e fim fundidos com a parte antecessora e a seguinte.

Na seqüência há um novo retorno ao primeiro desenho melódico, que se repete, aos

pares, por duas vezes (2’08’’ até 2’53’’), e do segundo desenho melódico (2’54’’ até

3’09’’), repetido apenas uma vez.

86

A peça finaliza com mais um retorno ao desenho melódico 1 (3’09’’ até o fim).

Conclui com um glissando e um acorde bem agudo, o que reforça o caráter tonal da

composição e o jogo que a peça realiza com diferentes tessituras.

1.4) Recordando (choro) - João Pernambuco (faixa 5)

A peça foi tocada por dois violonistas, um o próprio João Pernambuco e o outro é

identificado apenas como Zezinho (LEAL e BARBOSA, 1982). Provavelmente o violão de

João Pernambuco é o que faz o solo, por ser ele o autor da obra.

A peça soa predominantemente como melodia acompanhada, mas é possível escutar

dois e, em alguns trechos, três estratos sonoros que podem ser percebidos, por vezes, como

texturas mistas (homofônicas / polifônicas). Os desenhos melódicos evidenciam a condução

de uma harmonia tonal.

É possível dizer que, na performance dos violonistas, a música parece fluir com

clareza. Podemos perceber que são usadas diferenças de dinâmica e de tessitura do violão.

Na maior parte do tempo, o pulso é regular e bem marcado pelo acompanhamento,

contudo ocorrem várias interrupções da pulsação entre a repetição dos desenhos melódicos

(suspensão temporal).

Podemos identificar na peça aspectos de repetição, variação e contraste para a

construção da forma, parecendo equilibrados os três efeitos.

É possível identificar ao longo da escuta de toda a peça, três ambientações diferentes,

organizadas da seguinte maneira: desenho melódico1 (ouvido em uma primeira

apresentação e repetido três vezes, com variações), desenho melódico 2 (ouvido também

em uma primeira apresentação repetida três vezes, com variações), retorno ao desenho

melódico 1 (repetido uma vez, com variação), nova escuta do desenho melódico 3 (repetido

uma vez, com variação) e , por fim, termina retornando mais uma vez ao desenho 1 (ouvido

duas vezes, de forma variada).

Na apresentação do desenho melódico 1 e de suas repetições, ao início da peça (início

até 0’55’’), percebe-se, a cada repetição, que o desenho melódico se inicia igualmente, mas

encaminha-se para diferentes terminações. As repetições são simétricas, aos pares (uma

apresentação com terminação conclusiva e outra com terminação conclusiva, que se

87

repetem). Ou seja, na primeira apresentação do desenho melódico 1 (início da peça até

0’15’’), ouvimos uma terminação suspensiva e, na primeira repetição (0’16’’ até 0’28’’),

percebemos uma terminação conclusiva. Na segunda repetição do desenho melódico 1,

ouvido então pela terceira vez (0’29’’ até 0’42’’), percebemos novamente a terminação

suspensiva, enquanto a última repetição (0’43 até 0’55’’) finaliza com uma cadência

conclusiva. As terminações conclusivas são sempre descendentes, soando em tessituras

mais graves que na primeira vez.

Durante a escuta, algumas características do espaço musical em que se desenrola o

desenho melódico 1 chamaram a atenção. Foi possível perceber uma linha melódica na

região média e aguda acompanhada de acordes batidos que podem lembrar, ritmicamente, a

função de um pandeiro no conjunto de choro. No mesmo plano dos acordes, parece emergir

um desenho melódico na região grave, funcionando como um contracanto, no qual

percebemos a condução da harmonia. Percebe-se, entre as repetições do desenho 1,

interrupções do pulso, correspondendo, em alguns momentos, ao retardo da repetição deste

elemento, o que gera situações de suspensão temporal e de protensão. Esse efeito será

repetido ao longo de toda a peça, antecedendo cada entrada desse primeiro desenho

melódico.

O desenho melódico 2 (0’56’’ até 1’42’’) introduz, na escuta, uma percepção de

novidade, pela apresentação evidente de um novo desenho melódico, do que decorre,

também, uma percepção de descontinuidade, em relação ao que foi ouvido anteriormente.

Novamente, assim como na escuta do desenho 1 e de suas repetições, podemos perceber

diferentes terminações e as mesmas simetrias. A primeira apresentação do desenho

melódico 2 (0’56’’ até 1’08’’) termina com uma suspensão harmônica, enquanto, na

segunda escuta do desenho melódico 2 variado (1’08’’ até 1’20’’) , ouvimos uma

terminação conclusiva. Na terceira apresentação do desenho melódico 2 (1’21’’ até 1’31’’),

novamente variado, percebemos, mais uma vez, uma terminação suspensiva e, na quarta e

última apresentação do desenho melódico 2 (1’32’’ até 1’42’’) a terminação volta a ser

conclusiva. Como na primeira parte, as terminações conclusivas são pronunciadamente

descendentes.

Esse segundo evento da peça, constituído pela apresentação do desenho 2 e de suas

repetições, soa como contrastante em relação à primeira parte (constituída pela

88

apresentação do desenho 1 e suas variações). Esta idéia de contraste foi percebida,

sobretudo a partir de diferenças de tessitura, timbre, dinâmica, textura e tonalidade.

Enquanto na primeira parte o desenho melódico é mantido, na maior parte do tempo, na

região média e aguda, na segunda parte (desenho melódico dois e suas repetições variadas)

circula entre as regiões média, aguda e grave do violão, ampliando o espaço sonoro. Um

aspecto também marcante da segunda parte é o início do desenho melódico 2, ouvido com

uma dinâmica mais forte, ressaltada por acordes batidos que o acompanham. Esses aspectos

(grupos de acordes, dinâmica forte, ampliação do espaço e da tessitura), que são percebidos

no começo de cada apresentação do desenho melódico 2, intensificam a percepção da

densidade desse trecho, ouvido como mais denso.

É possível perceber no desenrolar do desenho melódico 2 e de suas variações três

estratos sonoros, constituídos por uma linha melódica mais aguda, uma linha melódica

grave e blocos de acordes em tessitura intermediária (semelhantes aos escutados no

elemento temático 1). Durante a escuta é possível perceber que as linhas melódicas (aguda,

média e grave) ora são ouvidas paralelamente, ora, podem ser ouvidas como complemento

uma da outra, alternadamente.

O retorno da primeira parte se dá a seguir (1’44’’ até 2’09’’), com variações sutis na

melodia, no acompanhamento e no tempo. Nesse retorno da primeira parte a repetição do

desenho melódico 1 se dá apenas uma vez, com variação. Como na primeira apresentação

do desenho melódico 1, ora finaliza com suspensão, ora com caráter conclusivo.

Na terceira parte (2’10’’ até 2’33), que introduz um terceiro desenho melódico,

ouvimos, mais uma vez, três estratos sonoros bem evidentes: uma linha melódica aguda,

uma linha melódica grave e um acompanhamento de acordes em tessitura intermediária. A

apresentação do desenho melódico 3 que também se dá com terminações diferentes.

O desenho melódico 3 (2’10’’ até 2’21) inicia com uma melodia em tessitura média,

relativamente suave e um contracanto grave que se sobrepõe, em alguns momentos, a essa

linha mais aguda, terminando de forma suspensiva. A segunda apresentação do desenho

melódico 2 (2’17’’ até 2’33’’) tem o início semelhante à primeira apresentação do mesmo

desenho, sem muito destaque do contracanto grave, conduzindo a uma terminação

conclusiva.

89

Esse final da segunda apresentação do desenho melódico 3 soa um pouco confuso,

pois, à nossa escuta, parece que o violão de acompanhamento é surpreendido pelo caminho

tomado pelo violão solista.

A peça termina com o retorno da primeira parte 1 (2’33’’ até o final) que retoma o

desenho melódico 1. Esse retorno, para a finalização da peça, parece apresentar uma perda

gradativa de energia, até finalizar com um acorde quase inaudível, que parece soar ao

longe, ampliando, dessa forma, o espaço musical, embora no âmbito de uma densidade

rarefeita, que acentua a percepção de finalização da peça.

Resulta, da escuta total da peça, uma percepção de riqueza de planos sonoros e de

linhas que transitam entre diferentes tessituras, por vezes intrincadamente, construindo

diferentes densidades e espaços. Recorrências (retenções) e simetrias também são

marcantes.

A marcação rítmica e a melodia deixam, também, um a forte percepção de brasilidade

na peça apreciada.

1.5) Características técnicas e estéticas do violão, observadas através da escuta:

A partir da escuta das peças descritas e de outras do mesmo universo, foi possível

perceber alguns aspectos musicais gerais e alguns aspectos violonísticos específicos que

foram aqui abordados como características técnicas e estéticas, embora elas sejam

entrelaçadas.

A Marcha Columbia apresenta um efeito sonoro de imitação do som de uma caixa

clara e de um trompete. Este mesmo efeito pode ser encontrado em outras marchas do

período, como algumas obras de Américo Jacomino, Mozart Bicalho e Rogério Guimarães.

A característica de imitar timbres de outros instrumentos com o violão, ou de “descobrir”

novos timbres do próprio violão é um recurso que pode ser verificado até os dias de hoje

em peças compostas para violão. Este recurso, hoje em dia, tanto é ouvido no universo da

música de “concerto”, quanto da música “popular”.

Uma outra característica técnica e estética observada durante a escuta e que também é

utilizada até os dias de hoje em peças compostas para violão, é a inserção de elementos

90

percussivos entre elementos harmônicos e melódicos. Neste caso, a peça não sofre uma

interrupção para a demonstração do efeito, como no caso citado anteriormente, mas o efeito

percussivo faz parte do fluxo sonoro e musical. Este efeito foi ouvido na peça de Mozart

Bicalho (Currupaco-papaco). Da mesma maneira que o efeito sonoro de imitação de

instrumentos, a inserção de elementos percussivos também ocorre, nos dias de hoje, na

música de “concerto” e “música popular”.

É possível perceber que a forma de apresentação das idéias melódicas, em várias

peças compostas para violão no período focalizado, utilizava com freqüência os recursos de

adjunção e repetição. Ou seja, era comum retornar a primeira idéia melódica após a

apresentação de um novo elemento melódico não derivado (adjunção). No entanto, a

estruturação musical não era uma regra. Algumas das diferenças puderem ser ouvidas,

nessa pesquisa com a Marcha Columbia, o Romance I e II e a valsa Teu Nome. Na Marcha

Columbia é possível ouvir a utilização de uma forma assimétrica que pode ser descrita

como AB(interrupção do fluxo sonoro para evento percussivo)A’. No Romance I e II é

possível perceber um tema com variações e na valsa Teu Nome, ouvimos a apresentação de

dois eventos sonoros apenas (AB).

Técnicas violonisticas, consideradas essenciais ou básicas no aprendizado do

instrumento, até os dias de hoje, como trêmulos, arpejos, escalas, efeito de harmônicos,

ligados, etc, foram escutadas nas peças apreciadas.

O aspecto estético de uma certa liberdade de interpretação e de encaminhamento da

música, escutado no choro Recordando de João Pernambuco, no maxixe Há quem resista?

de Levino da Conceição e no foxtrot Marinetti de Rogério Guimarães, parece indicar o uso

de improvisação. A improvisação parece ter sido um aspecto comum no universo do choro

da época e pode ser observada em alguns gêneros musicais atuais.

Outro aspecto estético, ouvido nas peças aqui apreciadas, é o contracanto melódico

(geralmente tocado na região grave) caminhando paralelamente a idéia melódica principal

ou dialogando com ela, alternadamente. Este contracanto teve muito destaque entre

violonistas tanto em peças solo, em grupos de choro, bem como em acompanhamento de

canções. O contracanto grave, por ser uma característica estética muito importante,

possivelmente levou à construção do violão de sete cordas, com a finalidade de incorporar

um maior número de possibilidades sonoras na região grave do violão.

91

No que diz respeito a gêneros musicais, foi possível verificar que o repertório

composto para violão solo abrangia um vasto número de danças/gêneros: europeus (valsas,

schottisch, mazurkas, polcas, marchas etc), brasileiros (maxixes, tangos brasileiros, jongo,

cateretê mineiro), norte americanos (fox trot, black botton, etc) e sul americanos (tango

argentino). Esta tendência de fusão de diversas influências musicais representa uma

dinâmica sócio-cultural bastante ativa, o que hoje também pode ser encontrado em alguns

gêneros musicais.

Acreditamos que a observação de algumas das técnicas e estéticas dos violonistas da

época, percebidos com a escuta e descrição das peças aqui apreciadas, irá, juntamente com

alguns aspectos sociais, possibilitar uma compreensão das práticas musicais que envolviam

o violão no Rio de Janeiro, no início do século XX.

2) Revisão crítica de alguns aspectos da trajetória do violão no Rio de Janeiro.

2.1) Violão e sociedade carioca

Na segunda metade do século XX, o conceito e a compreensão dos processos de

construção identitária começou a se modificar. Tal mudança possibilitou perceber que

diferentes grupos sociais criam identidades diversificadas e que estas não são permanentes,

como explica Renato Ortiz: “[...] toda identidade é uma construção simbólica (a meu ver

necessária), o que elimina, portanto as dúvidas sobre a veracidade ou falsidade do que é

produzido. Dito de outra forma, não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade

de identidades, construídas por diferentes grupos sociais, em diferentes momentos

históricos” (ORTIZ, 1985:8)

Contudo, no final do século XIX e início do século XX, os processos de construção

identitária (HALL, 1998) estiveram voltados, em grande parte, para a criação de uma

identidade nacional. Mesmo que na prática estes ideais não tenham se constituído, a idéia

de uma identidade de nação foi bastante presente no referido período. Alguns autores

(HALL, 1998 e ORTIZ, 1985) atribuem este fenômeno a criação dos estados-nações. No

caso do Brasil, além do estabelecimento do estado brasileiro, ainda houve a troca de regime

92

político. A República brasileira necessitava de novos símbolos que validassem o regime

político em todo o território nacional.

Dentro do referido período, como foi visto no capítulo de revisão de literatura, pelo

menos duas narrativas identitárias (VILA, 1996) tiveram grande influência na sociedade

brasileira. A primeira é chamada por Ortiz de “Teorias Raciais” (ORTIZ, 1985:13) e

englobava o pensamento de alguns intelectuais do final do século XIX. Resumidamente,

esta narrativa queria explicar o porque do “atraso” brasileiro e propor a constituição de um

povo, de uma nação em um futuro próximo. (id:15)

A segunda narrativa identitária foi a da valorização da miscigenação como um caráter

interessante e inovador da sociedade brasileira. Segundo Ortiz (1985), esta última narrativa

foi muito influenciada pelo pensamento de Gilberto Freyre, o qual teve como um dos

marcos principais, o livro Casa Grande e Senzala. Para Renato Ortiz, o livro de Freyre

“oferece ao brasileiro uma carteira de identidade”. (id: 42)

Após o esboço de duas das principais narrativas identitárias sobre a nação brasileira,

passamos a observar os papéis desempenhados pela música, e particularmente pelo violão,

em algumas das narrativas identitárias encontradas na cidade do Rio de Janeiro, no período

referido.

A utilização do violão no início do século XX no Rio de Janeiro relaciona-se com

processos de disputa e conflitos sociais. Tanto é possível encontrar referências à utilização

do instrumento como pertencente aos grupos sociais marginalizados, como também, há

referências ao violão como muito apreciado por grupos sociais “respeitáveis” para

acompanhamento de canções.

Dessa relação conflituosa, na qual o violão foi utilizado como um dos símbolos, é

possível perceber discursos que demonstram algumas das narrativas identitárias (VILA,

1996) mais específicas da sociedade carioca na época. Alguns destes discursos já foram

comentados de forma mais ampla no capítulo II, mas aqui procuramos foca-los sob a ótica

do universo musical, especificamente do violão.

O primeiro era o que tentava criar uma idéia de sociedade carioca nos moldes de uma

sociedade européia. Este discurso estava relacionado a uma série de mudanças estruturais

da cidade, as quais foram chamadas por alguns autores como Belle Époque carioca

(VELLOSO, 1988). Um dos principais ideais difundidos pelos mentores dessas

93

transformações era o de tornar o Rio de Janeiro parecido com uma cidade francesa. Assim,

o que fosse relacionado com a cultura negra ou com a cultura popular deveria ser posto à

margem da sociedade, por ser considerado como algo nocivo ao desenvolvimento social.

Neste discurso é possível perceber claramente traços das “Teorias Raciais” do final do

século XIX, apontadas por Ortiz. (ORTIZ, 1985)

Cabe ressaltar que este discurso pertenceu, em muitos dos casos, a membros da

sociedade brasileira que possuíam poder, quer seja econômico ou político. Dessa maneira,

foi um dos principais discursos registrados pela história. Neste discurso o violão figura

como representante da música popular, o que o atrelava ao “atraso” e ao “estado

rudimentar” em que se encontrava uma parcela da sociedade que não seguia os padrões

culturais associados com a cultura européia.

Como no restante da América Latina, entre nós também se verifica uma profunda cisão entre o universo simbólico dos signos e o universo das coisas reais. No início do século XX é nítido esse contraste entre duas cidades que coexistem e se digladiam: a cidade letrada e a cidade real. A primeira, composta pelas elites dirigentes, se quer “fixa e atemporal”. Detentora do universo simbólico, ela cria as razões ordenadoras, os mitos, os símbolos e as idéias que vão legitimar o seu poder sobre a outra cidade. Esta outra cidade, composta pelo restante da sociedade brasileira, é mais dinâmica, adequando-se mais facilmente às transformações. (RAMA apud VELLOSO, 1995:22)

O segundo discurso é o que buscava uma afirmação de identidade cultural brasileira

através da valorização da cultura popular. Este discurso, muito propagado entre vários

grupos sociais, incluía como mentores alguns intelectuais, artistas e políticos. Este discurso,

apesar de apresentar uma valorização de alguns aspectos culturais que vinham se

consolidando no Rio de Janeiro, acreditava que a cultura brasileira precisava ser trabalhada,

dentro de padrões estéticos europeus, para adquirir status de uma cultura universal e assim,

se equiparar ao que era feito em outros países. Este discurso também era valorizado dentro

da sociedade e era muito influente em diversos setores, dessa maneira, recebeu destaque na

literatura da época, em periódicos e em narrativas históricas posteriores sobre o violão.

É possível dizer que este discurso, que teve como marco o Movimento Modernista,

continha significados residuais (FREIRE, 1994) das “Teorias Raciais” (ORTIZ,1985) e

significados latentes da teoria culturalista de Gilberto Freyre. (ORTIZ, 1985) Manoel

Bandeira, um dos participantes do movimento Modernista, é um exemplo das idéias de

valorização da cultura popular através de um “aperfeiçoamento” europeizante.

94

Para nós, o violão tinha que ser o instrumento nacional, o qual representaria a raça brasileira. Se a modinha é a expressão do nosso povo, o violão é o timbre instrumental com o qual ela pode melhor se adequar. Infelizmente, até agora, o violão tem sido cultivado de maneira descuidada. […] O violão não era aceito devido a sua fama como um instrumento vulgar, de intriga e por assumir o papel de cúmplice com a malandragem em festas noturnas. […] Ele foi reabilitado, no entanto, com a visita de dois artistas estrangeiros, os quais revelaram suas fontes e a verdadeira escola dos virtuoses espanhóis aos nossos amadores. Eu estou me referindo a Agostinho Barrios e Josefina Robledo […] Ao lado do repertório próprio para violão, o instrumento tem todo o repertório para alaúde. […] Nossos violonistas compuseram peças interessantes com caráter brasileiro. No entanto, nós apenas ouvimos comentários sobre elas. Este é o caso dos maxixes de Arthiodoro da Costa, João Pernambuco, Quincas Laranjeiras e outros de mérito equivalente. (NAVES apud REILY, 2001: 168)

Este exemplo de Manoel Bandeira é significativo para essa pesquisa em dois aspectos.

O primeiro é o que se refere à associação do violão com a criação dos símbolos nacionais,

devido ao fato do instrumento estar estreitamente relacionado com a cultura popular. O

segundo aspecto é o que se refere à produção musical violonística da época e o fato de

terem sido esquecidas ou encobertas pelos conflitos sociais que envolviam a utilização do

violão. Estes dois aspectos serão comentados mais adiante.

O terceiro discurso, não foi propriamente um discurso explícito, porque não era

pronunciado, mas esteve presente através das práticas musicais e aparece em relatos da

época como os de Alexandre Gonçalves Pinto (1936) e nos romances também da época. É

possível dizer que a sociedade carioca do início do século XX, apesar de lidar com os ideais

anteriores, também se relacionava com um universo musical no qual o violão circulava

entre vários grupos sociais, não sendo relacionável a apenas um determinado segmento da

sociedade.

Apesar do discurso que identificava o violão com uma parcela social que representava

o “atraso” da sociedade carioca ter força, o instrumento não foi excluído dos vários círculos

sociais. Sua presença, mesmo que não “oficial”, era freqüente entre todas as classes. Alguns

estudiosos, hoje em dia, vêem que foi dada uma ênfase excessiva ao discurso que tentava

banir a cultura popular e o violão dos espaços sociais da classe média e alta.

“Outro aparente exagero dos “bem intencionados” defensores das “coisas brasileiras”, mais ou menos contemporâneos da belle époque, é dizer que o violão desaparecera dos salões cariocas para dar lugar exclusivo ao piano, que acompanhava principalmente árias de óperas italianas. Essa argumentação está presente, por exemplo, no livro Triste fim de Policarpo Quaresma.[...] Na

95

seqüência do romance algumas passagens servem para relativizar a impressão de que o violão e a modinha (e toda a cultura popular nacional) tivessem caído em desgraça no Rio de Janeiro daquela época.[...]” (VIANNA, 1995: 47 e 48)

É possível encontrar nos periódicos da época referências a lojas/fabricantes de

instrumentos musicais que vendiam violões, cordas, partituras e métodos para o

instrumento. Quer nos parecer que este comércio, provavelmente, não era mantido apenas

pela parcela mais pobre da sociedade. Além desse aspecto comercial, podemos encontrar a

citação de nomes de professores de violão que davam aulas a alunos pertencentes à classe

média e alta da sociedade carioca, como é ocaso de:

“Alfredo de Souza Imenez- professor de violão –[...] No Rio fez recitais e participou de eventos artísticos obtendo apoio da imprensa como o Jornal do Commercio.[...] em 1904 é nomeado professor da Escola de Música do Club Ginástico Português e de 1906 a 1908 professor da Estudantida Grêmio Luzitano. [...] Em 1910 organizou e dirigiu um sexteto, constituído de alaúdes, violões de doze cordas e mandolins. Melchior Cortez e Domingos de Castro são considerados seus melhores alunos.” (JOSÉ, 1995:38)

A impressão de partituras para violão, relativamente numerosa, também parece

indicativa de um público consumidor capaz de ler essas partituras e de pagar por elas, o que

não parece apontar para a camada mais pobre da população. Cabe ressaltar que não foram

localizadas várias partituras citadas nos periódicos consultados e na contracapa de outras

partituras.

A revista “O Violão”, lançada em 1928, pode ser vista como um exemplo da

utilização do violão entre diferentes grupos sociais. Apesar de ter sido lançada somente em

1928 e ter durado apenas um ano, é possível dizer que a revista consegue demonstrar, em

parte, a realidade sócio-cultural da década de 20. Esta revista, além de tratar de alguns

violonistas que estavam se profissionalizando, dá destaque aos amadores, associações de

violão, concertos e saraus onde o violão era utilizado, quer seja como solista ou como

instrumento de acompanhamento de canções. Alguns aspectos, que nos pareceram

significativos da revista O Violão serão enfocados mais adiante.

É possível dizer que o relevante número de alunos e alunas de violão, saraus,

gravação de discos, métodos, fabricantes de violão e associações de violão, demonstram, ao

nosso ver, que o violão circulou entre os diversos grupos sociais.

96

Assim, é possível perceber que as práticas musicais relacionadas com o violão tanto

se opunham, como afirmavam alguns dos discursos sobre os valores da sociedade carioca

da época. Por um lado, mesmo que o violão fosse associado à música popular e esta, por

sua vez, não fosse “bem vista” entre os grupos sociais mais abastados da sociedade, o

instrumento não deixou de circular entre os vários segmentos sociais. Por outro lado, a

sociedade carioca, mesmo possuindo violonistas com qualidade artística e técnica,

restringia o acesso do instrumento a espaços destinados a música de concerto, afirmando

que o violão ainda não havia se desenvolvido no Brasil.

A abordagem do universo simbólico, através da visualização de algumas das

narrativas identitárias, é importante para o reconhecimento desses elementos nas narrativas

históricas sobre o período e na “fala” dos indivíduos que viveram na época. Serão

comentadas, primeiramente, algumas das narrativas históricas já discutidas na revisão de

literatura. Em um segundo momento, quando o foco for o violão propriamente,

comentaremos a presença das narrativas identitárias no discurso dos violonistas da época.

As narrativas identitárias podem interferir na construção da história, porque a trama

argumental (descrição que um indivíduo ou grupo social faz de si mesmo) (VILA, 1996),

vai depender da forma com que o narrador se identifica com os objetos a serem descritos.

Dessa maneira, como foi comentado no capítulo III, relatos históricos podem ter a função

social de validar o discurso de determinados segmentos sociais. Fernando Catroga (2001)

aponta para as relações entre memória e poder dentro das sociedades e diz que:

Como se verifica, se a memória é instância construtora e solidificadora de identidades, a sua expressão colectiva também atua como instrumento e objecto de poder(es), quer mediante a seleção do que se recorda, quer do que, consciente ou inconscientemente, se silencia. E, quanto maior é a expressão social, mais se corre o risco de o esquecido ser a conseqüência lógica da “invenção” ou “fabricação” de memória(s).[...] (CATROGA, 2001:55)

No capítulo que expõe a revisão de literatura, foi possível perceber, pelo menos, três

visões diferentes da trajetória do violão nos livros sobre a história do instrumento no Rio de

Janeiro. Estas visões, também foram influenciadas pelas narrativas identitárias citadas

anteriormente e por outras narrativas incorporadas ao longo dos anos, além disso, as

mesmas contribuíram para novas percepções identitárias.

A descrição de Heitor Villa-Lobos e sua obra para violão são um bom exemplo de

narrativas identitárias. De acordo com cada autor, Villa-Lobos recebe menções

97

diversificadas, o que demonstra alguns valores e conceitos sobre música e violão dos

próprios narradores. As citações a seguir exemplificam essa diversidade de descrições sobre

o referido músico.

Alexandre Gonçalves Pinto descreve o compositor da seguinte maneira: “maestro

Villa Lobos, esta celebridade, conheci quando elle era um exímio chorão. Tocando em seu

violino [violão], tudo o que é muito nosso, com perfeição e gosto,[...]” (PINTO, 1936:191)

Márcia Taborda diz de Villa-Lobos o seguinte:

À exceção de João Pernambuco que marcou nome na história do violão pelas composições e de Quincas Laranjeiras que nos legou a tradição de ensino, acreditamos que o grande conhecedor de violão no Rio de Janeiro nesse período, foi de fato (e surpreendentemente) Heitor Villa Lobos. (TABORDA, 2005:76)

[...] O conhecimento do violão, no entanto, não foi adquirido apenas nas rodas de choro.Villa-Lobos estudou também segundo os modernos ensinamentos dos guitarristas espanhóis, influenciados sobretudo por Tárrega e seus discípulos [...]

(id: 77)

Henrique Cazes escreve o seguinte sobre Heitor Villa-Lobos:

“Um admirador confesso de Sátiro e Quincas foi Heitor Villa-Lobos. Em sua juventude Villa freqüentou o ambiente dos chorões, onde recolheu material para várias de suas obras. Da convivência com esses chorões, e principalmente com João Pernambuco, Villa-Lobos tirou os elementos de base para sua obra violonistica, considerada a mais importante para o instrumento neste século. (CAZES, 1998: 49)

Na revisão de literatura, também observamos que algumas das histórias do violão

foram escritas por representantes do chamado violão clássico, espelhado em um

determinado tipo de “olhar” e de narrativa histórica. Como no início do século XX uma

escola violonística formal ainda não havia se consolidado no Rio de Janeiro, é freqüente

encontrar narrativas históricas que desconsideram a atuação de alguns violonistas do

período ou que não acharam necessário um maior aprofundamento sobre a obra dos

violonistas contemporâneos de João Pernambuco. Em alguns casos, os violonistas

brasileiros do início do século XX são comparados a instrumentistas de outras tradições

musicais, o que gera julgamentos precipitados, onde termos como “técnica não

desenvolvida” e “atraso” são usados na avaliação das obras e performances. No entanto, os

valores técnicos e estéticos da produção musical violonistica do período podem ser

percebidos mais claramente, se observamos as relações sociais e a atuação destes músicos,

sem recorrer a valores ou conceitos musicais pré-estabelecidos. Neste sentido, a

98

fenomenologia contribuiu para uma aproximação da percepção da música produzida no

período, porque possibilitou uma apreciação auditiva a partir dos registros musicais da

época (embora inevitavelmente apreendidos por uma percepção contemporânea, ou seja,

condicionada pelo horizonte de expectativas atual).

Um outro ponto controverso encontrado na literatura revista é o da separação da

prática violonística em dois universos paralelos: violão erudito e violão popular. Esta

divisão, ao nosso ver, não foi muito marcante no início do século XX, porque alguns dos

músicos dessa época tanto se relacionavam com métodos e repertório do chamado violão

clássico, como o repertório e técnicas do choro, como exemplo podemos citar os nomes de

Henrique Britto, Benedicto Chaves, Rogério Guimarães, Levino da Conceição, Quincas

Laranjeiras, entre outros.

Assim, ao abordarmos o papel desses violonistas e do universo musical onde se

inseriam, buscamos não usar apenas classificações estanques (como violão erudito e violão

popular), nem tão pouco descrever a trajetória do instrumento como uma linha evolutiva. A

perspectiva evolucionista, encontrada em muitas das narrativas históricas sobre violão e

música brasileira, tem gerado uma visão linear e determinista da trajetória musical

brasileira (FREIRE, 1994) e aqui devemos tentar evita-la. Ao procurarmos contrastar

diversos relatos sobre o papel do instrumento, sobre seu repertório e sobre os violonistas,

estamos sobrepondo diferentes significações, enraizadas em concepções anteriores ou

projetadas para concepções futuras. A visão linear não estará, portanto, presente.

Dessa maneira, as três décadas analisadas foram consideradas como um conjunto

onde atuaram diversas forças políticas, econômicas e sociais, envolvidas com valores

externos e locais (DAWE e BENNETT, 2001). Cabe observar também que estas forças

carregavam significados residuais, atuais (relativos à época em que se encontravam) e

latentes (FREIRE, 1994), o que conduz a uma percepção da heterogeneidade de valores e

significados relacionados ao objeto da pesquisa.

A partir destas observações mais amplas sobre o relacionamento do violão com a

sociedade carioca, passamos a comentar alguns aspectos mais específicos que envolveram o

uso do instrumento, tais como: seus intérpretes, compositores e ouvintes.

99

3) “Cultura” do Violão:

Como é observado por alguns estudiosos (DAWE e BENNETT, 2001) o violão foi

um dos instrumentos que se expandiu em diversas culturas. Para falar do violão em cada

lugar os autores criaram o termo “guitar cultures”, o qual pode ser explicado como um

conjunto de elementos (instrumentistas, ouvintes, colecionadores, luthiers e outros) que

formam as várias relações em torno do cultivo e da prática do instrumento. Estes mesmos

autores observam que o violão/guitarra, apesar de ter se expandido, de forma geral, com a

mesma afinação e formato, gerou “culturas das guitarras” distintas. Contudo, estas culturas

foram ou são constituídas a partir de um processo de negociação e troca de forças locais e

globais. Cabe ressaltar que mesmo os valores globais foram tratados como constituídos por

diferentes arranjos históricos, culturais e musicais.

Com base nisso, passamos a refletir sobre o violão, no início do século XX, inserido

na trama social na cidade do Rio de Janeiro. Dentro dessa cultura, especificamente,

trataremos do tipo (formato) do instrumento que ficou conhecido como violão clássico (seis

cordas, acústico) e da música instrumental produzida por ele (especificamente da música

tocada por violão solo ou violão acompanhado de violão ou piano).

Em primeiro lugar cabe ressaltar que, como a pesquisa optou por não seguir uma

história do violão factual, cronológica e linear, não procuramos criar uma extensa lista com

nomes de violonistas com suas sucessões cronológicas, nem de pontuar esta história com

fatos isolados, como concertos ou aparições nos meios de comunicação. O recorte da

pesquisa focou na visualização das relações sociais desenvolvidas por estes músicos e na

observação (apreciação auditiva) de peças remanescentes, encontradas em gravações e

partituras no período.

3.1) Profissionalização:

Através da bibliografia consultada e de alguns periódicos da época, é possível admitir

que estes músicos tiveram um processo de profissionalização gradativo. Na primeira e na

segunda décadas do século XX encontramos muitos desses músicos na qualidade de

amadores. Na década de 20 encontramos indícios de que alguns desses instrumentistas

100

começam a se profissionalizar através de aulas de violão. A atuação deles como

instrumentistas e compositores se dividia entre trabalhos como solistas, com grupos

regionais (acompanhamento de canção) e com grupos de choro. Os trabalhos como solistas

eram mais raros, como até hoje em dia são, mas ocorriam, haja visto que cada um dos

autores localizados gravou vários discos na condição de solistas. Cabe lembrar que os

discos de 78 RPM eram compostos, em alguns casos, de duas músicas, assim, ao

observarmos os títulos é bom ter em mente que a cada dois títulos era lançado um disco, o

que parece revelar uma produção fonográfica significativa em torno do violão.

As gravações eram vistas como um importante veículo de divulgação da obra destes

músicos e um importante meio para a profissionalização deles. Sobre a contratação de

Rogério Guimarães pela gravadora Victor, a revista “O Violão” comenta o seguinte:

“Rogério Guimarães, o nosso popular violonista, faz parte, agora, do grupo de artistas que Cia. Victor está organizando para as gravações em seu studio [...] Levando porém, em conta o interesse commercial da acquisição, era Rogério Guimarães naturalmente indicado para começar, pois que os seus discos gravados pela casa que tinha até agora a exclusividade de suas produções corriam o Brasil inteiro de Norte a Sul [...]” (O Violão, 1929, n.4)

Este aspecto da profissionalização dos violonistas demonstra algumas das forças

locais e nacionais a que se relacionava o universo violonístico. Em primeiro lugar, a

demanda por canções locais abria um campo de trabalho amplo para alguns músicos com

gravações e apresentações. Por outro lado, existia também a idéia de concertista e virtuose

(valor incorporado pelo contato com a cultura européia), o que levava alguns a produzirem

trabalhos solos. Este campo, contudo, era mais restrito devido aos preconceitos sobre a

utilização do violão em espaços destinados a música de concerto, o que limitava as

possibilidades desse tipo de atuação.

3.2) Repertório e técnicas:

A partir da escuta das gravações, foi possível constatar que as peças compostas para

violão no início do século XX reuniam um universo sonoro diversificado que misturava

diversas tradições musicais. Deste repertório, destacam-se peças que envolviam gêneros

brasileiros, norte-americanos, sul-americanos e de influência da tradição européia. Como

exemplo, podemos citar algumas gravações de Henrique Britto. Entre elas, encontramos os

101

gêneros valsa, fox trot, choro e uma peça designada de Romance (peça com dois

movimentos que segue alguns padrões de composições do repertório de concerto).

É possível admitir que o repertório para violão solo possuía semelhanças com as

músicas compostas para piano de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, ou seja, era um

repertório de características híbridas, tocado em espaços sócio-culturais abertos à música

popular, embora não necessariamente restritos a ela.

Um dado curioso é o fato de, hoje em dia, as composições dos referidos pianistas

serem, em vários casos, incorporadas ao repertório de músicos “eruditos”. No entanto, do

repertório composto para violão, apenas João Pernambuco foi “reabilitado” para figurar no

repertório de concertistas.

Das gravações localizadas encontramos os seguintes compositores/intérpretes

encontrados: Rogério Guimarães, Josué de Barros, João Pernambuco, Glauco Viana,

Benedito Chaves, Levino da Conceição, Henrique Britto, Jacy Pereira, Carlos Campos,

Mozart Bicalho e José Augusto de Freitas (ver anexos).

Das partituras localizadas podemos citar os seguintes compositores: Alberto Baltar,

Cornélio Eugênio do Nascimento Junior, João Pereira, Mozart Bicalho, João Pernambuco,

Joaquim dos Santos (Quincas Laranjeiras), José Augusto de Freitas, Levino da Conceição,

Melchior Cortez, Gustavo Ribeiro, Nazareth-Rodriguez e Alcantara-Rodriguez (estes

últimos nomes, localizados em partituras editadas na revista O Violão, revelam a parceria

do violonista argentino, Juan A.Rodriguez, com músicos brasileiros [Ernesto?] Nazareth e

Alcântara). (ver anexos).

Como o número de transcrições para violão também é relevante no período, optamos

por citar o nome dos violonistas identificados durante a pesquisa, como pessoas que

transcreveram obras para violão: Melchior Cortez, Alberto Baltar, Joaquim dos Santos

(Quincas Laranjeiras) e Lourival de Souza Lima. (ver anexos)

As gravações também revelam que estes violonistas citados possuíam habilidade para

execução de escalas, trêmulos, arpejos e outras técnicas. Estes músicos, na maioria dos

casos, não tiveram um aprendizado formal, no entanto, o contato com os métodos que

circulavam na época, com os demais músicos e a demanda técnica das composições

permitiu um desenvolvimento técnico “compatível” com certa prática musical da época. Ao

utilizarmos o termo compatível, queremos dizer que certos músicos da época estavam em

102

sintonia com as demandas técnicas exigidas pelas músicas por eles tocadas. Quer nos

parecer que uma apreciação auditiva das obras desses violonistas requer um certo

distanciamento (mesmo que não consigamos completamente abandonar nosso horizonte de

expectativas, como exemplo o universo violonístico atual, do qual a pesquisadora participa)

de padrões técnicos e estéticos atuais, porque as gravações antigas, na maioria dos casos,

podem causar estranhamento a alguns padrões musicais da atualidade, tais como:

características timbristicas do violão, virtuosismo, características estéticas atuais (quebra do

tonalismo, influências da música norte-americana/jazz em vários gêneros brasileiros).

Tecnicamente, os violonistas escutados, com exceção apenas de Benedicto Chaves,

devido a algumas interrupções no fluxo sonoro durante a apresentação de algumas das

músicas gravadas, demonstraram domínio técnico do instrumento, expressividade e, em

alguns casos, virtuosismo.

A classificação de gêneros é a que os rótulos dos discos indicaram, portanto, as peças

encontradas nas gravações foram classificadas de: valsas, maxixes, choros, tango, marcha,

canção, canção gaúcha, cateretê, polca-choro, toada. foxtrot, black botton, romance,

intermezzo, mazurka e estudo.

Nas partituras, foi possível encontrar as seguintes classificações de gêneros: valsa,

andantino, fantasia para violão, valsa serenata, fado, elegia, fado liro, choro, estudo,

maxixe-choro, tango e gavota.

Desse universo musical foram escolhidas para apreciação auditiva sete peças gravadas

pelos próprios compositores (ver apreciação auditiva). Dois choros, “Recordando” (João

Pernambuco) e “Curropacopapaco” (Mozart Bicalho), um fox trot “Marinetti” (Rogério

Guimarães), uma valsa “Teu Nome” (Glauco Viana), um romance “Romance I e II”

(Henrique Britto), uma marcha “Marcha Columbia” (Benedicto Chaves) e um maxixe “Há

quem resista?” (Levino da Conceição). Essas peças foram escolhidas aleatoriamente como

exemplos, de forma a propiciarem uma aproximação com a prática violonística do período

estudado. Contudo, apenas quatro dessas sete peças receberam uma descrição mais

detalhada.

De forma geral, é possível dizer que as peças foram tocadas de forma condizente com

as demandas composicionais. Os violonistas demonstraram habilidade técnica violonística

média e avançada e, mesmo com gravações precárias, foi possível perceber, à escuta da

103

pesquisadora, que os músicos buscavam expressividade musical na interpretação. As

características referentes à qualidade da sonoridade obtida ficaram comprometidas pelo

estado das gravações, a que se somam os recursos utilizados pela indústria fonográfica da

época.

No que se refere às composições foi possível perceber, com os diferentes gêneros e

estilos, que os violonistas mesclavam tendências diferentes e que, a partir dessa fusão,

produziram um repertório original e característico da época. Na maioria das peças

apreciadas foi possível perceber a presença de dois ou três estratos sonoros, o que nos faz

perceber que, apesar de algumas das peças soarem como melodia acompanhada, as linhas

melódicas (mesmo as de acompanhamento) são trabalhadas como linhas independentes.

Este efeito, bastante presente nas peças da época, revela uma forma de pensamento musical

polifônico, e, conseqüentemente, a elaboração de texturas e espaços musicais por vezes

complexos.

Um outro aspecto que chamou a atenção durante a minha escuta das peças foi o da

busca de novas técnicas e novos timbres para violão, os quais foram percebidos através dos

efeitos percussivos e pela utilização de trêmulos e arpejos de forma inusitada para os

padrões violonísticos da época (padrões técnicos e estéticos do chamado violão clássico).Os

violonistas ao explorarem novos timbres e técnicas do violão, demonstram um aspecto de

audácia e de criatividade. Podemos citar, como exemplo dessas inovações, o maxixe “Há

quem resista?” de Levino da Conceição, a “Marcha Columbia” de Benedicto Chaves e o

choro Curropacopapaco” de Mozart Bicalho.

Sobre a forma das composições, foi possível perceber que, assim como os gêneros e

estilos, elas eram variadas e, em alguns casos, pouco usuais (grande parte da música

popular desse período possuía a forma ABACA, com variantes), como é ocaso do

“Romance I e II” de Henrique Britto e da valsa “Teu nome” de Glauco Viana.

Um aspecto geral das obras e que era característico neste período, é o da utilização do

tonalismo. Durante a apreciação auditiva foi possível observar semelhanças, entre as obras

escutadas na utilização de modulações, nas variações de ambientações harmônicas e no

ritmo harmônico.

Uma perspectiva proposta para a apreciação auditiva foi a de fazer uma comparação

de uma peça de João Pernambuco, um dos poucos violonistas do período que ficou

104

conhecido até os dias de hoje, com as peças dos demais violonistas apreciados. No que diz

respeito à técnica violonistica músicos como Rogério Guimarães, Glauco Viana, Levino da

Conceição, Mozart Bicalho e Henrique Britto podem ser considerados do mesmo nível de

João Pernambuco. Em termos de dinâmica e expressividade os demais violonistas não

deixam nada a desejar com relação a Pernambuco. Foi possível perceber na escuta das

peças que, tanto João Pernambuco como alguns dos outros violonistas, cometeram

pequenos “erros” (interrupção não proposital do fluxo sonoro) durante a gravação. É

possível observar também que os demais músicos usavam uma variedade maior de efeitos

sonoros como trêmulos, escalas e arpejos.

Sobre os aspectos composicionais propriamente foi possível perceber que a peça

escolhida de Pernambuco possuía semelhanças grandes com as peças de Levino da

Conceição, Rogério Guimarães e Mozart Bicalho. É possível perceber que a similaridade

entre as peças destes compositores diz respeito à utilização do espaço sonoro, onde,

geralmente, estão presentes mais de duas linhas melódicas independentes que, ora se

distanciam, criando uma textura de alto relevo, e, ora se aproximam, o que gera a percepção

de um espaço sonoro de baixo relevo. As semelhanças também podem ser percebidas

através das formas utilizadas, as quais expressam a maneira com que os compositores

lidavam com a criação das idéias musicas (uso de contraste, repetição e adjunção). As peças

apreciadas de Henrique Britto e Benedito Chaves foram mais originais (apresentação de

forma mais livre e assimétrica e apresentação de efeitos sonoros), em termos de construção

das idéias musicas. Podemos dizer também que todos os compositores apresentaram uma

riqueza melódica e rítmica bastante diversificada que é composta, entre outros detalhes, de

suspensões, contrastes, interrupções e estratos temporais paralelos.

3.3) O processo de separação entre violão popular e erudito:

Como foi visto anteriormente, o violão estava bastante associado à música popular e

mesmo que esta música circulasse entre vários grupos sociais, ela carregava o estigma de

música rudimentar e pouco elaborada. O uso do instrumento, apesar de tecnicamente e

estilisticamente não estar preso unicamente a esta música, era classificado de popular

105

devido aos gêneros musicais freqüentemente tocados. Este estigma diminuía,

quantitativamente, os espaços de atuação dos violonistas, bem como condicionava a

imagem do instrumento a um âmbito musical mais restrito.

Alguns músicos, com a intenção conquistar um espaço de atuação profissional e de

valorizar o instrumento nos meios destinados à música de concerto, começam uma

campanha pela padronização técnica e estética do instrumento. Esta padronização, segundo

alguns violonistas da época, viria pela adoção e divulgação de alguns métodos europeus

(entre estes métodos destacou-se o criado pelo violonista espanhol Tarrega) e do repertório

divulgado por músicos como Josefina Robledo, Tárrega, Agustín Barrios, entre outros. (O

Violão, 1928) No entanto, a disputa pelo espaço do violão nos meios da música de concerto

vai se estender durante muitos anos, sendo que uma das últimas “batalhas” enfrentadas para

a tomada deste espaço de atuação dentro da sociedade, pode ser simbolizada pela criação

dos primeiros cursos de graduação em violão nas universidades cariocas na década de 80.

É possível considerar também que, a partir desse movimento em direção a ocupação

de espaços da música de concerto, estaria sendo delineada uma divisão mais nítida entre os

instrumentistas. Alguns começaram a ser classificados como clássicos e outros como

populares. O que esta divisão não contemplou nem contempla é o caráter dinâmico entre os

diversos tipos de música, o qual forma uma prática musical que sintetiza gêneros e estilos.

Acreditamos que muitos dos violonistas encontrados no início do século XX, bem como

alguns de seus sucessores, ultrapassaram a possibilidade de classificação erudita ou

popular. Como exemplo de violonistas que não se encaixam em classificações estanques

podemos citar, além dos violonistas contemplados nessa pesquisa, os casos de: Garoto,

Laurindo de Almeida, Baden Powell, Rafael Rabelo, Marco Pereira, Paulo Belinati, entre

outros.

Podemos dizer que a revista “O Violão”, lançada em 1928, é um marco na tentativa

de transformar a imagem do instrumento a partir da adoção dos preceitos técnicos da

tradição espanhola. Com estes preceitos o violão finalmente passaria para a categoria de

instrumento capaz de figurar nos espaços sociais da música de concerto. No editorial do

segundo número da revista é publicado o seguinte: “Temos certeza, por demonstrações

práticas, que a moderna escola do immortal Tarrega vae triumphar e em breve tel-a-hemos

106

disseminada em todas as camadas sociais, mesmo naquellas onde só podia ser infiltrada

pelo methodo da pauta” (O VIOLÃO, 1929, n.2)

Na revista “O Violão” também é possível observar que, mesmo que alguns músicos

estivessem encantados pela música produzida por alguns violonistas estrangeiros, como

Barrios, Segovia e Robledo, e com os aspectos técnicos demonstrados por estes músicos,

havia uma preocupação com a produção de música brasileira. O que nos leva a estabelecer

relação disto com o discurso dos modernistas de valorização da música brasileira (popular)

pelo seu aperfeiçoamento técnico e estético, adquirido a partir de métodos da tradição

européia. Este aspecto da prática musical é um exemplo claro da atuação dialética de

valores europeus e locais, ressaltando as sínteses que se processaram no universo musical

do violão, á época.

Uma contradição pode ser observada no discurso que queria o estabelecimento da

escola “Tarrega”, pois, ao mesmo tempo em que era dito que esta escola era o que havia de

mais moderno, em termos de técnicas violonísticas, os violonistas da época, que não

haviam estudado com este método, são também elogiados e apreciados por suas destrezas

técnicas. “Rogério Guimarães [...] executor perfeito, senhor de uma technica

especialíssima, pelo próprio geito porque elle dedilha o instrumento. Rogério Pinheiro

Guimarães merece bem a justa fama que a sua arte grangeou no Brasil inteiro”. (A voz do

violão, 1931)

Por outro lado, a revista “O Violão”, apesar de se mostrar aberta a vários métodos de

ensino de violão, deixa claro que a escola de Tarrega possuía os padrões estéticos que

deveriam ser seguidos. Com isso, a técnica dos violonistas brasileiros e mesmo a de

Agustín Barrios, em alguns momentos são tidas como aquém da técnica dos discípulos de

Tarrega: Josefina Robledo, Juan Rodriguez e Sainz de La Manza. Estas afirmações da

revista revelam uma visão estreita das diferenças de técnicas, porque, segundo ela, apenas

poderiam ser considerados “bons”, os violonistas que seguissem os padrões estéticos e

técnicos da tradição violonística conhecida como clássica. “Elle [Barrios], ao nosso ver,

está longe de se approximar dos três grandes violonistas que nos visitaram: Robledo, Mazza

[Manza] e Rodrigues. E quem lhe disser o contrário, só o fará pela sympatia pessoal.” (O

Violão, 1929 n.10)

107

Estas afirmações da revista o violão revelam também alguns aspectos das narrativas

identitárias ligadas ao evolucionismo, centrado na tradição musical européia e ilustram,

nesta pesquisa, as vozes de alguns segmentos da sociedade da época.

Um aspecto percebido na revisão de literatura sobre o violão carioca, é o que diz

respeito ao pequeno número de execuções da obra de Villa-Lobos em seu tempo. A

ausência de um grande número de apresentações da obra de Villa-Lobos para violão, no

início do século XX, parece estar relacionada a restrição de acesso do violão nos espaços da

música de concerto. Não queremos contestar de forma alguma a importância técnica e

estética das músicas para violão de Heitor Villa-Lobos. No entanto, o fato dessas obras não

terem sido tocadas na época em que foram compostas, com exceção do Choros n.1, podem

revelar que não havia espaço nem uma demanda social para a execução das mesmas.

O violão no início do século, como foi comentado anteriormente, não tinha acesso

livre aos espaços destinados a música de concerto, lugar onde, até hoje, a música de Villa-

Lobos é, em grande parte, tocada. Além da falta de espaço, a música de Villa-Lobos para

violão, excetuando-se a “Suíte Popular Brasileira” e o “Choro n.1”, soava como algo muito

diferente na época, mesmo para o público da música de concerto. Se pensarmos que hoje

em dia, compositores chamados de “contemporâneos” tem dificuldade de encontrar

músicos disponíveis para tocar suas obras, quer nos parecer que esta dificuldade era ainda

maior no início do século XX, momento onde os cânones da tradição musical

clássico/romântica apenas começavam a ser quebrados, no âmbito da música de concerto.

Com isso, o argumento, percebido na revisão de literatura, de que a obra de Heitor

Villa-Lobos não fora executada em seu tempo, porque a técnica dos demais violonistas da

época não era boa o suficiente, soa um pouco reducionista. Esta afirmação também exclui

uma série de valores e significados do universo violonístico carioca da época. Certamente

esta é uma questão que merece uma análise mais aprofundada, em outras pesquisas.

3.4) A revista O Violão:

A revista O Violão, criada em 1928, tem um papel importante para a compreensão do

universo violonístico no início do século XX. Aqui usamos alguns conceitos elaborados por

Vanda Freire (1994) para interpretação da história e que aqui foram usados para o estudo de

108

uma fonte de informação, a revista O Violão. Apesar da revista ter aparecido apenas no

final da década de 20, e apesar de não conter todos os detalhes deste universo e de

representar apenas uma das possíveis visões sobre o instrumento, acreditamos que ela possa

conter significados e valores da época, de períodos anteriores (significados residuais) e de

novas perspectivas (valores latentes). A revista O Violão apresenta um cenário violonístico

no Rio de Janeiro diversificado e ativo. Quer nos parecer que este ambiente não fora criado

de um momento para o outro para ilustrar a revista, mas que o periódico exemplifica

algumas das tendências da “cultura” do violão carioca que já existiam, além de novas

tendências dentro da sociedade carioca.

A “cultura” do violão no Rio de Janeiro era bastante ampla e envolvia um universo

tanto ligado ao diletantismo (saraus, festas, associações de violão, etc) quanto ao universo

profissional (aulas de violão, concertos, comércio de instrumento, partituras, acessórios,

discos, etc).

No universo amador, é possível encontrar o violão figurando em espaços da classe

média e alta, o que revela que o instrumento, como aponta Hermano Vianna (1995), não

fora banido dos salões e que permanecia como um dos principais instrumentos de

acompanhamento (significados residuais e atuais).

Dentro da esfera diletante, a revista O Violão dá destaque ao violão como instrumento

de acompanhamento de canções. Este aspecto de utilização do instrumento revela a

influência de um dos ideais modernistas, que foi, a busca por uma identidade brasileira.

Foram eleitos alguns símbolos para a representação desta identidade, um deles, conforme

foi visto anteriormente na citação de Manuel Bandeira (BANDEIRA citado em NAVES

apud REILY: 168), seria a modinha (canções) acompanhada pelo violão.

Um outro aspecto divulgado pela revista, que é relativo a utilização do violão como

acompanhamento de canções, é a presença de moças da alta sociedade tocando e estudando

violão. Esta tendência revela a tomada de um espaço social muitas vezes associado aos

homens e pode ser visto como um exemplo de significados residuais, atuais e latentes. Uma

das violonistas que teve uma carreira de destaque foi Olga Praguer, sendo possível, na

revista, encontrar citações de sua atuação como professora de violão/canto e como

musicista.

109

A revista destaca alguns concertos e espaços destinados a músicos amadores da

época: Tijuca Tennis Club, Violão Icarahy Club, Centro Artístico Regional (grupo

composto por violões, banjos, sax, etc), Theatro Lyrico, Grêmio Regional Carioca (Grêmio

Republicano Português).

No que diz respeito aos espaços profissionais é possível observar na revista “O

Violão”, que o instrumento nutria um mercado ativo de fabricação de instrumentos,

acessórios (cordas, banquinhos, estantes) e de partituras. Foram encontrados 10 nomes de

estabelecimentos comerciais que trabalhavam com estes produtos. Sobre o aspecto da

construção do instrumento é possível perceber que o violão podia ter, pelo menos, três

modelos diferentes na época (Carioca, Valenciano e Robledo). Com relação às partituras,

observamos nos anúncios publicados na revista O Violão o nome de peças de João

Pernambuco, Villa-Lobos (Choro n.1) e várias peças de autores estrangeiros, que

abrangiam tanto transcrições como obras escritas especificamente para violão. Um anúncio

de partituras da Casa Athur Napoleão revela a venda de partituras dos seguintes autores:

Tarrega, Sagreras, Segovia, Coste, Carcassi, Giuliani, Aguado, Sor, Ponce, Carulli,

Torroba, Turina e Villa-Lobos. (O Violão, 1929, n. 3)

Dos concertos apresentados no Rio de Janeiro, são citados pela revista O Violão, os

de violão solo de Juan A Rodriguez (Instituto Nacional de Música (1929)), Sainz de la

Manza (Theatro Municipal (06/1929)), José de Freitas (Instituto Nacional de Música

(1929)), Agustin Barrios (Theatro Municipal (11/1929)).

Algumas das apresentações de canções acompanhadas de violão que foram noticiadas

na revista foram as seguintes: Olga Praguer (Instituto Nacional (20/12/1928) de Música e

Cassino Beira-Mar (11/1929)), Helena Magalhães Castro (Theatro João Caetano –

Nictheroy (25/02/1929) e Casino Beira-Mar (07/1929)), Laura Suarez (Theatro Lyrico

(06/1929)), João Pereira (INM (10/1929)).

Sobre o ensino de violão podemos encontrar o nome dos seguintes professores no Rio

de Janeiro: Joaquim Antonio dos Santos (Quincas Laranjeiras), João Teixeira Guimarães

(João Pernambuco), José Augusto de Freitas, Melchior Cortez, Josué de Barros, Olga

Praguer, João Pereira e Gustavo Ribeiro.

Todos os aspectos aqui citados evidenciam a permanência de usos e práticas

anteriores ao período focalizado (como a prática de acompanhar canções), a emergência de

110

práticas novas (como a aproximação do universo violonístico da música de concerto), bem

como a antecipação de práticas futuras (a “sofisticação” do uso do violão, pelo uso por

elementos de classes mais abastadas, como ocorrerá, posteriormente, com a bossa-nova).

3.5) Lembrança e esquecimento

A música composta para violão solo no início do século XX, como foi possível

perceber na bibliografia revista, não recebeu uma atenção especial. Alguns compositores

dessa época às vezes são citados, mas de forma geral. Há omissão de vários nomes.

Algumas das razões para tais omissões, ao nosso ver, parecem estar relacionadas com

valores e conceitos musicais dos próprios autores.

Alguns compositores como, por exemplo, João Pernambuco e Levino da Conceição

(ver histórias do violão no capítulo revisão de literatura) tiveram a sorte de terem parte de

suas obras transcritas para a partitura. A música dos demais compositores, no entanto, ficou

inexplorada e ausente no repertório dos violonistas atuais. Como foi possível observar, com

a escuta e apreciação das obras dos violonistas da época, o repertório desse período foi

marcado por idéias e soluções musicais violonísticas. Podemos dizer também, com a

comparação das gravações de João Pernambuco com as dos demais violonistas, que as

obras desses músicos eram equivalentes em termos de construção musical e técnica

violonística.

Qual seria a razão para o esquecimento desses compositores e suas músicas? Quer nos

parecer que pelo menos três motivos influenciaram este encobrimento. O primeiro está

relacionado com o próprio processo de profissionalização dos violonistas da época, o

segundo motivo estaria ligado à utilização do instrumento como símbolo cultural e o

terceiro motivo, já debatido no final do item intitulado Violão e sociedade, está relacionado

com a historiografia do violão.

Mesmo os violonistas que possuíam trabalho solo, como Rogério Guimarães, Josué

de Barros, Henrique Britto, João Pernambuco e outros, se voltaram mais para o violão

como acompanhante de canção ou acompanhante de outros instrumentos (grupos de choro).

111

Este fato é associado a crescente demanda por canções e aos novos mercados que estavam

surgindo ligados ao rádio e a industria fonográfica.

A estética do violão solo não tinha muito espaço na sociedade da época porque

representava uma concepção mais relacionada à música de concerto. É possível dizer que o

reconhecimento de uma sonoridade ou função musical específica para o violão estava

relacionado a algumas narrativas identitárias. Quer nos parecer que, a escolha de símbolos

(o samba, o violão e a mulata) que representaram alguns dos ideais identitários

(miscigenação) da cultura brasileira da época, exclui significados musicais e sociais dos

próprios “objetos” identificados como símbolos.

Como foi visto anteriormente, a ampla utilização do violão na música popular gerou

uma associação bastante forte com diversos gêneros da chamada música popular. Assim,

podemos dizer que o violão escolhido como símbolo nacional foi um violão cuja imagem é

associada à canção. De certa maneira, a sociedade “fixa” a função de acompanhamento

como uma das principais funções musicais do violão. Ou seja, a construção de uma

identidade cultural, associada ao violão, cristaliza um pouco a imagem do instrumento

acompanhante de canções e à imagem associada a outros instrumentos (grupos de choro).

Tal imagem possivelmente vai dificultar o estabelecimento do instrumento como solista, a

despeito da qualidade técnica e expressiva de inúmeros músicos que se dedicaram ao violão

desde o início do século XX.

Por outro lado, este repertório também não foi preservado pelos violonistas que

estavam estabelecendo a escola de violão clássico, porque os gêneros e o estilo não eram

aceitos nos espaços de “música clássica”, e porque a chamada música popular tem na

tradição oral um forte suporte (não necessariamente, na tradição escrita). Assim, o

repertório não foi explorado porque não teve a sorte de ser transcrito na época ou

posteriormente, e de não receber o aval de violonistas atuais para serem executados no

repertório de concerto, como foi o caso de João Pernambuco e Levino da Conceição.

A historiografia do violão no Brasil também foi um fator de encobrimento das

músicas de alguns violonistas do início do século XX. Como foi visto anteriormente

(capítulo de III), a memória de um grupo social é moldada de acordo com as disputas por

poder, o que ocasiona o esquecimento de aspectos que não representam os valores de quem

“ganhou” a disputa. Os vários conflitos que envolveram o uso do violão no Rio de Janeiro,

112

podem ter gerado uma historiografia do instrumento condicionada pelo discurso, comum na

época, de que o violão fora banido das esferas sociais mais abastadas e que o instrumento

só alcançou desenvolvimento técnico, após o contato com músicos estrangeiros. Com isso,

as músicas e os violonistas do início do século XX, com algumas exceções, não constam

em vários trabalhos sobre o violão no Rio de Janeiro.

113

V. Conclusões:

A “cultura do violão” no Rio de Janeiro representa vários aspectos conflitantes da

sociedade no início do século XX. Através das disputas sociais, exemplificadas pelas

narrativas identitárias, é possível perceber que o violão funcionou como elemento ora de

distinção social, ora de discriminação, ora de congregação ou síntese entre os diferentes

grupos sociais. O caráter muitas vezes contraditório das imagens relacionadas ao

instrumento revela parte das dinâmicas da sociedade da época, com suas negociações,

escolhas e exclusões.

Um aspecto importante constatado com a pesquisa diz respeito à utilização do violão

como símbolo de narrativas identitárias. Em um primeiro momento, a partir da análise das

teorias raciais do final do século XIX, o violão faz parte dos atributos sociais negativos

associados à preguiça, baderna e atraso da sociedade brasileira. Estes atributos estavam

relacionados com dois elementos formadores da “raça brasileira”, o negro e o índio. O

branco, representação viva da cultura “desenvolvida” dos países europeus, seria o elemento

capaz de “civilizar” e trazer o “desenvolvimento” para a sociedade brasileira. Contudo,

mesmo assumindo este caráter negativo, o violão não fora banido dos saraus e festas da

classe média e alta.

A segunda narrativa identitária quer transformar a cultura popular e o violão em

símbolos de identidade nacional. No entanto, o violão e a música de forma geral,

precisariam ser transformados técnica e estilisticamente para ocupar os espaços da “música

séria”, da música universal. Esta narrativa, em um segundo momento, é reelaborada pela

teoria culturalista de Gilberto Freyre, a qual traz uma visão positiva para miscigenação. O

samba é escolhido como símbolo musical nacional da miscigenação e o violão como seu

principal acompanhador.

Quer nos parecer que todas essas disputas por representação social ocultaram alguns

aspectos da utilização do violão no início do século XX, como por exemplo, o repertório

solista de alguns violonistas do período e a utilização do violão por diversos segmentos da

sociedade. No entanto, com a pesquisa foi possível perceber que, paralelamente à utilização

do violão nos processos de construção identitária, o instrumento era trabalhado em

diferentes espaços sociais e de diferentes maneiras, e que esses espaços e práticas

comportavam sínteses e significações diversas.

114

O papel musical do violão como solista no início do século ainda não havia sido

tratado mais detalhadamente. Acreditamos que a presente pesquisa contribui para conhecer

mais especificamente a música da época e um pouco da técnica e estética do violão solista

carioca. A pesquisa esteve preocupada com o levantamento e catalogação das obras

compostas na época, que se encontravam dispersas em diversos arquivos. Sobre a dispersão

do acervo achamos importante observar que nenhum dos arquivos consultados (Instituto

Moreira Sales, Biblioteca Nacional e Museu da Imagem do Som) possui na íntegra todos as

gravações e partituras recolhidas. A maioria das gravações foi conseguida com o

colecionador paulista Ronoel Simões, o qual, segundo informações do próprio

colecionador, já vendeu seu acervo para um colecionador norte-americano. Este acervo,

provavelmente, sairá do país após a morte de Ronoel Simões, o que dificultará, o acesso aos

originais em 78 rpm.

Além do levantamento do acervo, a pesquisa se propôs a escutar e a apreciar algumas

das gravações recolhidas. A apreciação, baseada nos conceitos de fenomenologia de

Thomas Clifton, permitiu escutar o repertório com atenção voltada especificamente ao que

estava sendo tocado e experenciado, e, assim, acreditamos ter conseguido uma descrição

dessas músicas menos condicionada, pois, os aspectos privilegiados na descrição partiram

da escuta da pesquisadora e não de padrões pré-estabelecidos.

A escuta do material permitiu também uma aproximação com a música dos

violonistas da época, pois suas músicas “tomaram corpo”, passando à experiência do

pesquisador e não apenas figurando como nomes em livros. A comparação da música de

João Pernambuco com as demais obras apreciadas permitiu exemplificar, sincronicamente,

a qualidade técnica e expressiva de vários compositores que praticamente estavam

esquecidos, sinalizando para a importância de um aprofundamento na obra e no papel

desses músicos com pesquisas futuras.

Alguns dos aspectos técnicos e estéticos, observados na apreciação auditiva,

permitiram perceber que os violonistas, tanto buscavam utilizar características da música

européia composta para violão, quanto criar um novo universo sonoro para o instrumento.

Por um lado, foi possível perceber, nas peças apreciadas, o uso de técnicas do chamado

violão clássico (trêmulos, arpejos, escalas, etc) incorporadas em um repertório de músicas

próprias. Por outro lado, dentro do mesmo repertório foi possível encontrar aspectos de

115

inovação técnica e estética, através de efeitos percussivos e da improvisação. As duas

características, a de incorporação de valores externos e a de criação de novos valores,

revelou um universo musical dinâmico, que já demonstrava alguns aspectos da prática

violonística da atualidade.

A escolha da pesquisa, por não privilegiar uma narrativa linear e cronológica, também

possibilitou uma percepção da história do violão no início do século XX de forma mais

ampla e dinâmica. Acreditamos que ao buscar uma percepção da sociedade carioca de

forma mais abrangente, permitiu-se a observação de algumas das funções sociais da música

relacionadas ao violão. Com isso, foi possível perceber um universo simbólico

considerável, relacionando música e representação identitária. A observação dos símbolos

sócio-musicais parece importante para uma reflexão sobre os processos de construção

identitários atuais. É possível observar resíduos desses símbolos nos dias de hoje, apesar da

dinâmica social ter incorporado muitos outros às nossas narrativas identitárias.

Por fim, podemos dizer que este material é importante para a compreensão de alguns

aspectos da cultura carioca e especificamente, a “cultura” do violão carioca. A percepção

de um momento no qual as fronteiras entre músicas “eruditas” e “populares” não eram

nítidas (apesar de podermos também discutir essa classificação nos dias atuais) e o

reconhecimento de alguns dos aspectos que levaram à separação do violão em concepções

aparentemente antagônicas, como “erudito” e “popular”, são importantes para o

entendimento de alguns valores e padrões musicais da época. Da mesma forma que a

pesquisa contribuiu para uma compreensão maior da música composta para violão solo no

início do século XX, ela também possibilita uma reflexão sobre os valores atuais da

produção musical violonística, bem como da construção e eleição de símbolos.

Dessa maneira, esperamos contribuir com mais uma visão sobre o universo musical

carioca e sobre a utilização do violão, esperando que este trabalho venha a subsidiar futuras

pesquisas sobre o tema.

116

VI. Bibliografia: ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. F. Briguiet & Comp Editores, Rio de Janeiro, 1926. ANDRADE, Mario de. Pequena história da Música. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. _________. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991. ARAÚJO, Samuel. Identidades sociais e representações musicais: Música e ideologias da nacionalidade. Brasiliana 4. 40-48. 2000. AZEVEDO, Luis Heitor Correia de. 150 anos de música no Brasil: 1800 a 1950. José Olympio Ed. Rio de Janeiro, 1956. BENNETT, Andy e DAWE, Kevin. Guitar Cultures. Oxford, New York. 2001. BENSON, Bruce Ellis. The improvisation of musical dialogue – A phenomenology of music. USA: Cambridge University Press, 2003. BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. – São Paulo: Unesp 1992 CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Quarteto Editora. Coimbra, 1ª ed., 2001. CAZES, Henrique. Choro, do quintal ao Municipal. São Paulo: ed. 34 1998, CLIFTON, Thomas. Music as heard. Yale University Press, 1983. DUDEQUE, Norton. História do Violão. Curitiba: UFRP, 1994. ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: Popular, Erudita e Folclórica. São Paulo: Art Editora: Publifolha, 1998. FREIRE, Vanda Lima Bellard. A história da música em questão uma reflexão metodológica. Publicado em Fundamentos da Educação Musical, vol. 2, Porto Alegre: ABEM / 1994 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e outros. 2ª ed. – Rio de Janeiro: DP&A,1998. JAUSS, Hans Robert. Toward an aesthetic of reception. University of Minesota Press, 1982. JOSÉ, Graça Alan. Violão carioca nas ruas, nos salões e na universidade: uma trajetória. Rio de Janeiro, UFRJ, 1995.

117

LEAL, José de Souza e BARBOSA, Arthur Luiz. João Pernambuco, arte de um povo. Rio de Janeiro. Funarte, 1982. MELO, Guilherme de. A música no Brasil. Imprensa Nacional. Rio de Janeiro. 2ª ed. 1947 ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas: Olho D’água: 1985. ______. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense 4ª reimpressão, 2003. PINTO, Alexandre Gonçalves. O Choro. Cópia digital do IMS. 1936. REILY, Suzel Ana. Hybridity and segregation in the Guitar Cultures of Brazil. In Guitar Cultures. Oxford, New York. 2001. SIQUEIRA, Batista. Música e Ficção. Rio de Janeiro, Folha Carioca, 1980. TABORDA, Marcia Ermelindo. Violão e Identidade Nacional: Rio de Janeiro 1830/1930. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2004. TINHORÃO, José Ramos. A música popular no romance brasileiro. (vol II: século XX [1a

parte]). São Paulo: Ed. 34, 2000. VELLOSO, Mônica Pimenta. As tradições populares na Belle Époque carioca. Rio de Janeiro. FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore. 1988. VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge zahar. Ed UFRJ. 1995. VILA, Pablo. “Identidades narrativas y música. Una primera propuesta teórica para entender sus relaciones”. 1996. Transcultural Musica Review 2 ( disponível em www.sibetrans.com/trans/trans2/vila.htm). Periódicos: O Violão. Rio de Janeiro. Dezembro de 1928 até dezembro de 1929.

118

VII. Anexos 1) Gravações (Acervo Instituto Moreira Sales, Acervo Museu da Imagem do Som e Acervo próprio) Autor Título Data

gravação Gênero Gravadora

1.Benedito Chaves Geny* 1929 Não indicado Columbia 2.Benedito Chaves Lorena* 1929 Valsa Columbia 3.Benedito Chaves Marcha Columbia* 1929 marcha Columbia 4.Carlos Campos A Noite° S/d valsa Parlophon 5.Carlos Campos Variações em ré

menor° S/d fado Parlophon

6.Glauco Viana Pensando em ti*° 1929 valsa Parlophon 7. Glauco Viana Sonhador*° 1929 tango Parlophon 8. Glauco Viana Deliciosa*° 1929 valsa Palophon 9. Glauco Viana Ingênua*° 1928 valsa Parlophon 10. Glauco Viana Arrepiado*° 1928 caterete Parlophon 11. Glauco Viana Teu nome* 1929 valsa Parlophon 12. Glauco Viana Apaixonado* 1929 chorinho Parlophon 13. Glauco Viana Parlophon* 1930 marcha Parlophon 14. Glauco Viana Pertinho do meu bem* 1929 Polca choro Parlophon 15. Glauco Viana Nós dois* 1930 cateretê Parlophon 16. Glauco Viana Sublime ventura* 1929 valsa Parlophon 17. Glauco Viana Visão de amor* 1929 valsa Parlophon 18. Glauco Viana Oh! Que beijo* 1929 foxtrot Parlophon 19. Glauco Viana Encantadora* 1929 valsa Parlophon 20.Henrique Brito Romance I*° 1930 Não indicado Parlophon 21. Henrique Brito Romance II*° 1930 Não indicado Parlophon 22. Henrique Brito Yankite*° 1930 Black botton Parlophon 23. Henrique Brito Crepúsculo*° 1930 valsa Parlophon 24. Henrique Brito Nana*° 1930 tango Brunswick 25. Henrique Brito Alice*° 1930 valsa Brunswick 26. Henrique Brito Lourdes* 1930 valsa Brunswick 27. Henrique Brito Sonho Avanêz* 1930 Fox trot Brunswick 28. Henrique Brito Soluçante* 1930 valsa Brunswick 29. Henrique Brito Não sei* 1930 Polca choro Brunswick 30. Henrique Brito Toma lá da cá* 1930 Não indicado Brunswick 31. Henrique Brito Saudades do norte* 1930 valsa Brunswick 32.Jaci Pereira Vênus*° S/d valsa Brunswick 33. Josué de Barros Mimo de amor*°◊ S/d valsa Brunswick 34. Josué de Barros Marcha nas

trincheiras*°◊ S/d marcha Brunswick

119

35. João Pernambuco

Sonho de Magia*° 1930 valsa Odeon

36. João Pernambuco

Magoada° 1930 choro Columbia

37. João Pernambuco

Mimoso° 1925-1927 maxixe Odeon

38. João Pernambuco

Lágrimas° 1925-1927 maxixe Odeon

39. João Pernambuco

Interrogando* 1930 jongo Columbia

40. João Pernambuco

Recordando* 1930 choro Columbia

41. João Pernambuco

Suspiro apaixonado* 1930 valsa Columbia

42. João Pernambuco

Rosa Carioca* 1930 foxtrot Columbia

43. João Pernambuco

Reboliço* 1930 choro Columbia

44. João Pernambuco

Magoado* 1926 choro Odeon

45. João Pernambuco

Pó de mico* 1930 choro Columbia

46. João Pernambuco

Sentindo* 1930 tango Columbia

47. João Pernambuco

Dengoso* 1930 choro Columbia

48. Levino da Conceição

Prece da saudade*° 1930 valsa Odeon

49. Levino da Conceição

Saudades do Rio Grande*°

1922 valsa Odeon

50. Levino da Conceição

Meditando*° 1930 mazurka Odeon

51. Levino da Conceição

Reminiscências Baianas*

1922 maxixe Odeon

52. Levino da Conceição

Há quem resista?* S/d maxixe Odeon

53. Levino da Conceição

El passado* S/d choro Odeon

54.Mozart Bicalho Alma de artista*° 1929 valsa Odeon 55. Mozart Bicalho Tuim Tuim*° 1929 Não indicado Odeon 56. Mozart Bicalho Odeon*° 1929 Não indicado Odeon 57. Mozart Bicalho Gotas de Lágrimas*° 1929 Não indicado Odeon 58. Mozart Bicalho Divagações* 1929 valsas Odeon 59. Mozart Bicalho Curropacos, papacos* 1929 choro Odeon 60. Mozart Bicalho Peba* 1930 Não indicado Odeon

120

61. Mozart Bicalho Meditação* 1930 Não indicado Odeon 62.Rogério Guimarães

Martha*° 1925-1927 valsa Odeon

63. Rogério Guimarães

Marinetti*° 1925-1927 fox Odeon

64. Rogério Guimarães

Campanha do Sul*° 1928 fox Odeon

65. Rogério Guimarães

Cateretê Paulista*° 1928 cateretê Parlophon

66. Rogério Guimarães

Radiosa*° 1928 valsa Parlophon

67. Rogério Guimarães

Trem de luxo*° 1929 choro Victor

68. Rogério Guimarães

Noite de prazer*° 1929 valsa Victor

69. Rogério Guimarães

Prelúdio de violão*° S/d Não indicado Odeon

70. Rogério Guimarães

Atlântico*° S/d tango Odeon

71. Rogério Guimarães

Cinco de julho*° 1928 Marcha militar

Victor

72. Rogério Guimarães

Uma noite na Urca*° 1928 Fox trot Odeon

73. Rogério Guimarães

Sylvia* 1928 Não indicado Odeon

74. Rogério Guimarães

Araçá* 1928 Não indicado Odeon

75. Rogério Guimarães

Saudades* 1928 Tango argentino

Odeon

76. Rogério Guimarães

Ao luar* 1928 valsa Odeon

77. Rogério Guimarães

Saudades do Sertão* 1929 toada Victor/Odeon?

78. Rogério Guimarães

Solidão* 1929 romance Victor/Odeon?

79. Rogério Guimarães

Victor* 1928/1929 Marcha Victor

80. Rogério Guimarães

Vamos deixar de intimidade*

1929 choro Victor

81. Rogério Guimarães

Deliciosa* 1929 mazurka Victor

82. Rogério Guimarães

Tarantella* 1929 estudo Victor

83. Rogério Guimarães

Stambul* 1928 canção Parlophon

84. Rogério Norma* 1928 valsa Parlophon

121

Guimarães 85. José Augusto de Freitas

Soluços* 1930 valsa Odeon

86. José Augusto de Freitas

Lamentos d´alma* 1930 choro Odeon

87. José Augusto de Freitas

É assim mesmo* 1930 Choro Odeon

88. José Augusto de Freitas

O tempo passa* 1930 Fox-trot Odeon

*Acervo Ronoel Simões e Acervo da pesquisadora. °Acervo Instituto Moreira Sales ◊Acervo Museu da Imagem e do Som (RJ)

122

2) Gravações não localizadas: Autor Título Gênero Data da gravação Gravadora 1.Garoto Bichinho de Queijo 1930 Parlophon 2.Garoto Driblando 1930 Parlophon 3.Glauco Viana Perigoso 1930 Parlophon 4.Glauco Viana Minha mãezinha 1930 Parlophon 5.Mozart Bicalho Usca Moleque 1929 Odeon 6.Mozart Bicalho Festa de Itambé 1929 Odeon 7.Mozart Bicalho Dança das pulgas 1930 Odeon 8.Rogério Guimarães Rosa Meu Amor 1929 Victor 9.Rogério Guimarães Cismado 1929 Victor 10.Rogério Guimarães Quando a frô pega nasce 1929 Victor

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3) Partituras editadas no período de 1900 a 1930 (Biblioteca Nacional, Acervo próprio) Autor Título Gênero Data

da edição

Data da composição

Descrição do material

Editora

1. Alberto Baltar

Giquipanga 1929 S/d Impresso Casa Bevilacqua – método Osvaldo Soares

2. Alberto Baltar

A luminosa sentença do juiz

Não indicado

1931 1926 Impresso Revista a voz do violão

3. Alberto Baltar

Devaneios 1929 S/d Impresso Revista O Violão

4.Cornélio Eugenio do Nascimento Junior

Lê foyer hereux -fantasia

Não indicado

1910 S/d Impresso Vieira Machado

5.João C. Pereira

Fado corrido 2a série de 12 variações em Dm

Não indicado

1926 S/d Impresso Casa Bevilacqua

6.João C. Pereira

Fado corrido 2a série de 12 variações em D

Não indicado

1926 S/d Impresso Casa Bevilacqua

7.João C. Pereira

12 variações de fado para guitarra em Am

Não indicado

1926 S/d Impresso Casa Bevilacqua

8.João C. Pereira

Fados Robles 12 variações em A

Não indicado

1926? S/d impresso Casa Bevilacqua

9. João Pernambuco

Interrogando Maxixe-choro

1928 S/d impresso Casa Bevilacqua

10.João Pernambuco

Estudo n.1 Não indicado

1928 S/d impresso Casa Bevilacqua

11.João Pernambuco

Ceci valsa 1928? S/d impresso Casa Bevilacqua

12.João Pernambuco

Lágrima Tango 1928 S/d impresso Casa Bevilacqua

13.João Pernambuco

Reboliço Maxixe-choro

1928 S/d impresso Casa Bevilacqua

14.Josué de Barros

Gemidos D’Alma

valsa 1930 S/d impresso Casa Arthur Napoleão/Sampaio

124

Araújo 15. José A. de Freitas

Gavota gavota 1929 S/d impresso Revista O Violão

16. Melchior Cortez

Illusão Perdida

elegia 1909 S/d impresso Casa Beethoven

17. sem autor

Uma valsa para principiantes

valsa 1929 S/d impresso Revista O Violão

18. Nazareth-Rodriguez

Espalhafatoso Tango 1929 S/d impresso Revista O Violão

19. Alcântara-Rodriguez

Choro Poesia Danza nativa brasileira

1929 S/d impresso Revista O Violão

20. Gustavo Ribeiro

Deslisando estudo 1929 S/d impresso Revista O Violão

125

4) Partituras editadas fora do período estudado de músicas compostas nos anos de 1900/1930 Autor Título Gênero Data da

partitura Descrição do material

Editora

1.João Pernambuco

Grauna Choro 1978 impresso Ricordi

2.João Pernambuco

Mimoso Choro 1978 Impresso Ricordi

3.João Pernambuco

Interrogando Jongo 1978 Impresso Ricordi

4.João Pernambuco

Sonho de magia Valsa 1978 Impresso Ricordi

5.João Pernambuco

Reboliço Maxixe-choro

1978 Impresso Ricordi

6.João Pernambuco

Lágrima Tango 1978 Impresso Ricordi

7.João Pernambuco

Sons de carrilhões

Choro-maxixe

1978 Impresso Ricordi

8.João Pernambuco

Sentindo Tango 1978 Impresso Ricordi

9.João Pernambuco

Seu Coutinho pegue o boi

Canção do Norte

1978 Impresso Ricordi

10.João Pernambuco

Brasileirinho Choro 1978 Impresso Ricordi

11.João Pernambuco

Estudo n.1 Não identificado

1978 Impresso Ricordi

12.João Pernambuco

Dengoso Choro 1978 Impresso Ricordi

13.João Pernambuco

Choro n.2 Choro 1978 Impresso Ricordi

14.João Pernambuco

Choro n.1 Choro 1978 Impresso Ricordi

15.João Pernambuco

Cecy Valsa 1978 Impresso Ricordi

16.João Pernambuco

Brejeiro Não identificado

1978 Impresso Ricordi

17.João Pernambuco

Saudosa viola Não identificado

1978 Impresso Ricordi

18.João Pernambuco

Recordando minha terra

Valsa 1978 Impresso Ricordi

19.Mozart Bicalho

Alma de Artista valsa 2003 Impresso Edições Hematita

20.Mozart Bicalho

Tuim Tuim Cateretê mineiro

2003 Impresso Edições Hematita

21.Mozart Divagações valsa 2003 Impresso Edições

126

Bicalho Hematita 22.Mozart Bicalho

Curropacos, papacos

Choro 2003 Impresso Edições Hematita

23.Mozart Bicalho

Gotas de Lágrimas

Valsa 2003 Impresso Edições Hematita

24.Mozart Bicalho

Odeon Dobrado 2003 Impresso Edições Hematita

25.Mozart Bicalho

Peba Choro 2003 Impresso Edições Hematita

26.Mozart Bicalho

Meditação valsa 2003 Impresso Edições Hematita

27. Levino da Conceição

Saudades do Rio Grande

Valsa serenata

S/d impresso S/ed

28. José Augusto de Freitas

Soluços valsa S/d impresso Guitarra de Prata

29. Joaquim dos Santos (Quincas)

Andantino 1961 manuscrito Antonio Rebello

30. Joaquim dos Santos (Quincas)

Dores D´Alma valsa 1952 manuscrito Antonio Rebello

127

5) Transcrições de peças para violão Autor Transcritor Título Ano Descrição do

material Editora

1. Mendelssohn

A. Baltar Romance sem palavras

1928 impresso Revista O Violão

2. Moszkowski

A. Baltar Op.77 n. 3 1929 impresso Revista O Violão

3. Tchaikowski

A. Baltar Canção Triste 1929 impresso Revista O Violão

4. Massenet Joaquim dos Santos

Elegia de Massenet

1929 impresso Revista O Violão

5. Brahms Lourival de Souza Lima

Valsa em lá 1929 impresso Revista O Violão

6. não identificado

Melchior Cortez

Louis XVI 1909 impresso Vieira Machado

7. não identificado

Melchior Cortez

Fado Liró S/d impresso Casa Arthur Napoleão