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SOCIEDADE ESTUDOS em Antropologia Ciência Política História Sociologia Revista Ano1 V. 1

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Editor-ChefeJeulliano Pedroso de Lima

Conselho EditorialÁrea de Antropologia

Edimara Oliveira (Coordenadora), Leonardo Campoy (Coordenador), Jeulliano Pedroso deLima (Editor Chefe)

Área de Ciência PolíticaBruno Bolognesi (Coordenador), Julio Gouvêa (Coordenador), André Ziegmann, BohdanMetchko Filho, Lucas Fernando de Castro, Luiz Domingos Costa

Área de HistóriaJakson Hansen Marques (Coordenador), Vanessa Maria Rodrigues (Coor-denadora),Ivyan Karoline Mildemberg Correa, Márcia Gracilia Ramos Pedroso Fattori, Natália deCássia Teixeira Bellos

Área de SociologiaFelipe Trovão (Coordenador), Luiz Eduardo Silva e Silva (Coordenador), Gabriel CardealOganauskas, Rafael Braz

Coordenadoria Financeira e de ConvêniosBohdan Metchko Filho

Secretaria ExecutivaSandra Avi Santos

Conselho ConsultivoÁrea de Antropologia

Bruna Franchetto (UFRJ-Museu Nacional), Ceres Gomes Víctora (UFRGS), ChristineAlencar Chaves (UFPR), Ciméa Barbato Beviláqua (UFPR), Edilene Coffaci Lima(UFPR-ABA), Gilberto Cardoso Alves Velho (UFRJ-Museu Nacional), Jose GuilhermeCantor Magnani (USP), Leila Sollberger Jeolás (UEL), Liliana de Mendonça Porto(UFPR), Lorenzo Macagno (UFPR), Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ-MuseuNacional), Marcio Goldman (UFRJ-Museu Nacional), Marcos Pazzanese Duarte Lanna(UFPR), Marcos Silva da Silveira (UFPR), Maria Inês Smiljanic Borges (UFPR), MiriamPillar Grossi (UFSC-ABA), Otavio Guilherme C. Alves Velho (UFRJ-Museu Nacional),Peter, Henry Fry (UFRJ-ABA), Roberto DaMatta (PUC-RJ), Sandra Jacqueline Stoll(UFPR-ABA), Yonne de Freitas Leite (UFRJ-Museu Nacional)

Área de Ciência PolíticaAdriano Nervo Codato (UFPR), André Marenco dos Santos (UFRGS), Armando BoitoJr (UNICAMP), Décio Saes (UNICAMP), Eli Diniz (UFRJ), Fabiano Santos (IUPERJ),Fabrício Tomio (UFPR), Fernando Limongi (USP), Jairo Nicolau (IUPERJ), JoãoFeres Jr (IUPERJ), João Quartim de Moraes (UNICAMP), João Roberto Martins Filho(UFSCAR), Luciana Veiga (UFPR), Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida (PUC-SP), LuizWerneck Viana (IUPERJ), Luzia Helena Herrmann de Oliveira (UEL), Marcus Figueiredo(IUPERJ), Mario Fuks (UFMG), Nelson Rosário de Souza (UFPR), Paulo Roberto

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Neves Costa (UFPR), Renato Monseff Perissinotto (UFPR), Renato Raul Boschi(IUPERJ), Rafael Antônio Duarte Villa (USP), Sérgio Soares Braga (UFPR), EmersonUrizzi Cervi (IUPERJ)

Área de HistóriaAndré Luiz Joanilho (UEL), Ciro Flamarion Santana Cardoso (UFF), Eduardo Basto deAlbuquerque (UNESP-Assis), Euclides Marchi (UFPR/UNICEMP), Fátima Fernandes (UFPR),José Roberto Portella (UFPR), Margareth Rago (UNICAMP), Marion Brepohl (UFPR),Pedro Leão da Costa Neto (UTP), Rafael Rosa Hagemeyer (UFPR), Renan Frighetto(UFPR), Ronald Jose Raminelli (UFF), Ronaldo Vainfas (UFF), Roseli Boschila (UFPR),Ruy de Oliveira Andrade Filho (UNESP-Assis), Sandra Jatahy Pesavento (UFRGS), SergioNadalin (UFPR)

Área de SociologiaAdalberto Moreira Cardoso (Iuperj), Alvaro Augusto Comin (USP), Ana Maria Fernandes(UnB), Ana Maria Kirschner (UFRJ), Angela Alonso (USP), Angelo José da Silva(UFPR), Arthur Trindade Maranhão Costa (UnB), Benilde Maria Lenzi Motim (UFPR),Berenice Alves de Melo Bento (UnB), Berlindes Astrid Kuchemann (UnB), BernardoSorj (UFRJ), Danilo Nolasco Cortes Marinho (UnB), Débora Messenberg Guimarães(UnB), Dimas Floriani (UFPR), Elisa Reis (UFRJ), Eurico Antônio Gonzalez Cursinodos Santos (UnB), Fernando Antônio Lourenço (Unicamp), Fernando Antonio PinheiroFilho (USP), Iram Jácome Rodrigues (USP), João Gabriel Lima Cruz Teixeira (UnB),José Ricardo Ramalho (UFRJ), Leila da Costa Ferreira (Unicamp), Liana da SilvaCardoso (UFRJ), Lúcio de Brito Castelo Branco (UnB), Luiz Antonio Machado Silva(Iuperj), Marcelo Siqueira Ridenti (Unicamp), Márcio Bilharinho Naves (Unicamp),Marcio Sergio B. S. de Oliveira (UFPR), Marcos César Alvarez (USP), Maria Alice R.de Carvalho (Iuperj), Maria Angélica Brasil Gonçalves Madeira (UnB), Maria Armindado Nascimento Arruda (USP), Maria Helena Oliva Augusto (USP), Maria Ligia deOliveira Barbosa (UFRJ), Maria Tarcisa Silva Bega (UFPR), Marlene Tamanini (UFPR),Mário Antônio Eufrásio (USP), Michel Misse (UFRJ), Michelangelo Giotto SantoroTrigueiro (UnB), Nadya Araujo Guimarães (USP), Nelson Dacio Tomazi (UEL), RenanSpringer de Freitas (UFMG), Ruy Gomes Braga Neto (USP), Sedi Hirano (USP), SylviaGemignani Garcia (USP), Tania Barbosa Quintaneiro (UFMG), Vilma de MendonçaFigueiredo (UnB) Walquiria G. D. Leão Rêgo (Unicamp), Pedro Rodolfo Bodê deMoraes (UFPR)

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Editora Sociedade em Estudos

Coordenação editorial: Jeulliano Pedroso de LimaCapa: Daniele Peres

A relação de trabalhos publicados neste número da Revista Sociedade em Estudos,bem como maiores informações sobre seu histórico e como adquirir exemplares ou

textos avulsos encontram-se na Internet, no sitewww.sociedadeemestudos.ufpr.br

CATALOGAÇÃO NA FONTECoordenação de Processos Técnicos. Sistema de Bibliotecas, UFPR

Revista Sociedade em Estudos/ Associação de Ciências Sociais do ParanáCuritibav. 1, ano 1, 2006

Semestral

ISSN-0556-5782

1. Ciências Humanas. 2. Ciências Sociais. 3. História. I. Associação de Ciências Sociais do Paraná

ISSN: 1809-4627

PRINTED IN BRAZILCuritiba, 2006

PEDE-SE PERMUTAWE ASK FOR EXCHANGE

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SUMÁRIO

Apresentação/9

Apresentação da Antropologia/1313131313

Orientação e Parceria Intelectual: Dilemas e Perspectivas/15Gilberto Velho“HE’S PART OF THE GANG”: Uma entrevista com o ProfessorMarcos Lanna/21Marcos Lanna, Jeulliano Pedroso de Lima, Leonardo CarbonieriCampoyEsses Camaleões Vestidos de Noite: Uma etnografia dounderground heavy metal/37Leonardo Carbonieri Campoy

Apresentação de Ciência Política/5757575757

Desdém, mas nem tanto: A relação dos eleitores com os partidos/59Luciana Fernandes VeigaOrigem Social e Carreira Política de uma Elite: Um Perfil da ElitePolítico-Administrativa Paranaense No Período 1995-2002/77Julio Gouvêa

Apresentação de História/105105105105105

Percalços e Deleites na Pesquisa Histórica/111Caio BoschiA construção da “brasilidade” na ópera Lo Schiavo (O escravo), deCarlos Gomes/113Ciro Flamarion Cardoso

Apresentação da área de Sociologia/137137137137137

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Fazer ciência na graduação: Sociologia/139Vilma FigueiredoOs estudos da performance e as metodologias experimentais em so-ciologia da arte/147João Gabriel L. C. TeixeiraO sono do mundo/157Márcio Bilharinho Naves

Diversos/161161161161161

Normas Para Publicação/169169169169169

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APRESENTAÇÃO

O projeto que constituiu a Revista Sociedade em Estudos, surgiuinicialmente da percepção do pouco espaço existente para divulgação deresultados de pesquisas levadas a cabo na graduação. E a falta deste tipo deespaço1 resultava, grosso modo, na falta de visibilidade do que vem sendoproduzido em distintas Universidades e Faculdades por todo o Brasil. Nos-so Objetivo é contribuir para que esses textos produzidos por “selvagensgraduandos”, como apresentou Leonardo Campoy em sua feliz analogia naapresentação da área de antropologia, para de certa forma tentar trazer umpouco de luz sobre a graduação, e quem sabe (o que seria a vida sem deva-neios e sonhos) ajudar a repensar, como bem frisaram os colegas da área desociologia em sua apresentação, a maneira como a graduação vem sendotratada.

Neste primeiro número estamos colocando em suas mãos, seja deforma impressa ou virtual, resultados de reflexões que se encontram emfases diferentes na caminhada acadêmica, ou seja, este é um numero misto,temos textos escritos por professores, dentre estes temos textos que sedebruçam sobre relações de Orientação como o texto de Gilberto Velho,temos também o texto de Vilma Figueiredo que aceitou nosso convite parafalar do “Fazer Ciência na Graduação” , posso citar ainda o texto do profes-sor Márcio Bilharinho Naves que traça frutíferas considerações sobre o“Sono do Mundo”, e aqueles que o atrapalham e como é gratificante exercero trabalho da pesquisa cientifica, e dessa forma chacoalhar estes leitos mo-ribundos, mas temos também textos como o do Professor Ciro FlamarionCardoso e de Luciana Veiga que abordam seus próprios objetos de pesqui-sa, o que nos permite de certa forma pensar nessas distintas fases,. O Profes-sor Ciro faz uma análise da construção da “brasilidade” na ópera Lo Schiavode Carlos Gomes, que é uma reflexão provinda de uma carreira longa, e aindaassim fértil. E o texto de Luciana Veiga pode ser percebido dentro de umamesma base temática que o texto de Julio Gouvêa, onde um aborda a Relaçãodos eleitores com os partidos políticos o outro busca pensar quais seriam as

1 Não ignoramos os esforços já empreendidos por outros que tambémconstituíram publicações destinadas a publicação de textos provenientes da graduação.

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origens sociais de uma elite política, e como estes construiriam suas carrei-ras. No viés metodológico temos o texto do professor João Gabriel L. C.Teixeira que nos apresenta “experimentos” entre distintas metodologias, nocaso entre a Sociologia e a arte. Completando nosso numero temo o textosde Leonardo Campoy que apresenta uma etnografia do underground heavymetal, e procura pensar como se constitui a sociabilidade deste grupo. Porfim temos ainda uma entrevista empolgante com o Professor Marcos Lanna,que nos conta um pouco de sua trajetória.

Esperamos que tanto os textos de forma particular, quanto a Re-vista enquanto um todo e o projeto que ela representa, possam ajuda-los emsuas trajetórias.

Boa Leitura!Jeulliano Pedroso de LimaEditor - Chefe

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ANTROPOLOGIA

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13Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 15-20, 2006.

APRESENTAÇÃO DA ANTROPOLOGIA

Em Tristes Trópicos, Lévi-Strauss diz que “Como a mate-mática ou a música, a etnografia é uma das raras vocações autênticas. Pode-mos descobri-la em nós, ainda que não nos tenha sido ensinada por nin-guém”. Ao longo do capítulo Como se faz um etnógrafo o célebre autorfrancês percebe que a antropologia já lhe era familiar antes mesmo de tê-lapraticado.

1934. Será que era possível descobrir a antropologia forade nós naquela época, mesmo em França? Teria a análise dos povos selva-gens respaldo acadêmico para que fosse discutida, pensada por filósofos ehistoriadores?

Mas podemos avaliar a colocação de Lévi-Strauss por umoutro registro, além das condições do campo da antropologia em meados doséculo XX. Pois ela nos coloca a clássica questão: o que é a antropologia?Uma profissão ou ao mesmo tempo missão e refúgio? Seremos os especialis-tas em cultura ou, além disso, estaremos tomados pelo projeto de nossadisciplina tão radicalmente a ponto de não nos livrarmos dele nos momentosem que não somos antropólogos e sim apenas pessoas?

É muito agradável refletir sobre nossas relações pessoaiscom a antropologia. Deixando de lado o fardo da labuta e tergiversandosobre quem somos nós e de onde viemos, alimentamo-nos com umaconfortante preocupação: serei eu o escolhido? Há em mim as aptidões paraser o antropólogo?

Leitores, a proposta dessa revista não é oferecer tributosa esses festins engrandecedores de nós mesmos. Acreditamos não ser pos-sível pensar a antropologia se não a praticamos. Não nos descobriremosantropólogos. Nos faremos antropólogos. Assim, esta revista pretende pa-rafrasear João Cabral de Melo Neto: ao invés das parnasianas inspiração eintuição, o engenho e a arte.

E será que na graduação a antropologia está sendo prati-cada? É essa a nossa pergunta orientadora. Pelos textos aqui publicadospodemos averiguar se há, no Brasil, uma graduação que pesquisa. Não bus-caremos entre esses selvagens graduandos indícios de que eles possamchegar ao nível de civilizados antropólogos, mas sim se suas

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problematizações, técnicas e argumentos podem contribuir para o refina-mento do debate em nossa disciplina.

Leonardo Carbonieri Campoy

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15Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 15-20, 2006.

ORIENTAÇÃO E PARCERIA INTELECTUAL: DILEMAS E PERSPECTIVAS

Gilberto Velho*

A relação de orientador e orientando na universidade contempo-rânea está, inegavelmente, ligada a uma longa tradição intelectual em que adíade mestre e discípulo desempenha papel central. Se quisermos ir às suasmais antigas raízes, podemos chegar até as origens da filosofia grega e,também, a seitas mais ou menos esotéricas, de caráter religioso. Com todasas diferenças históricas e culturais, encontra-se presente um princípio hie-rárquico em que o indivíduo, em princípio mais velho e/ou experiente ajuda,e mesmo tutela, um mais jovem, que se inicia no aprendizado de algum tipode conhecimento, que, nas origens do chamado pensamento ocidental, apre-sentava, com freqüência, dimensões místicas associadas a perspectivas,mais tarde, identificadas como mais racionalizantes (ver, por exemplo,VERNANT, 1972).

Não pretendo, nesta breve comunicação, esgotar, ou mesmo es-miuçar, todos os aspectos complexos da relação orientador/orientando. Pre-tendo, prudentemente, apontar algumas questões que considero cruciaispara a sua compreensão e possível aperfeiçoamento no quadro do mundouniversitário acadêmico de hoje, particularmente no Brasil. Para fazer isso,parto de uma experiência pessoal já longa, em que orientei mais de setentateses e dissertações, em quase trinta anos (ver VELHO, 2002).

É importante enfatizar que essa relação, de fato, apresenta umadimensão hierárquica baseada em valores e crenças sobre saberes, em que oorientador é colocado em posição de prestígio e reconhecimento diante doqual o aluno/orientando assume uma posição mais modesta e subordinadade pupilo. O professor, portanto, já tem uma carreira em que passou poretapas e ritos de iniciação, assumindo a posição, em maior ou menor grau, deconhecedor privilegiado dos caminhos e segredos da vida acadêmica. Mas,claramente, não se trata de um hierofante pairando etéreo acima das

* Professor titular de Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

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VELHO, G. Orientação e parceria intelectual: dilemas e perspectivas

questiúnculas do mundo. No decorrer do desenvolvimento da história dauniversidade, o professor/orientador, com variações, evidentemente, vai sero detentor de um tipo de poder que, abrindo ou fechando portas, facilita oudificulta a carreira de seus alunos e discípulos. Para melhor compreensãodessa relação, vale insistir na constatação, mais ou menos óbvia, de queessa díade encontra-se dentro de um campo de relações acadêmicas e políti-cas, em que há uma série de outros atores significativos, cujas ações reper-cutem direta ou indiretamente na relação analisada. Outros professores edirigentes, como coordenadores de curso, chefes de departamento, direto-res de unidade etc., por suas atividades, sejam docentes ou administrativas,têm um papel que pode ser, em determinados momentos, decisivo. Tudo issoacontece dentro de uma estrutura universitária bastante complexa, com vári-as instâncias de decisão, que incluem diferentes tipos de colegiado e quedependem, por sua vez, de agências públicas ou instituições privadas, como,no caso brasileiro, do CNPq, da Capes, das fundações estaduais, privadas etc.

Uma vez estabelecido que o orientador não é um demiurgo quepossa, só ele, comandar o destino de seus alunos, vale à pena pensar emalgumas especificidades desse relacionamento. No Brasil, a partir do finaldos anos 60, criou-se um novo sistema de pós-graduação que implicou mu-danças em instituições que já ofereciam atividades desse nível e, sobretudo,o aparecimento de programas novos, que, em muitos casos, colidiam, àsvezes de forma bastante conflituosa, com costumes e hábitos antes prevale-centes. Esse processo acompanhou e, sem dúvida, foi parte importante emreformas universitárias que, com idas e vindas, alteraram o panorama anteri-ormente vigente. Assim, por exemplo, os departamentos e programas, comseus colegiados, fortaleceram-se diante do poder tradicional dos antigoscatedráticos. Novas formas de seleção foram introduzidas, através de con-cursos em que os candidatos disputavam vagas, em princípio, em maiorigualdade de condições. É claro que isso não se deu em um processo lineare a estrutura universitária implica hierarquia, gerando, inevitavelmente, di-vergências e impasses diante de pressões mais igualitárias, e mesmopopulistas. Esta tensão sempre esteve e continua presente na universidadebrasileira.

Estamos falando de um universo heterogêneo, de docentes-orientadores que, apresentando diferenças internas significativas, defronta-se, por sua vez, com um universo discente que, ao crescer numericamente,traz, também, maior diversidade, em termos de origem e trajetória social. Naminha experiência pessoal, nos primeiros quinze anos como orientador, lidei,sobretudo, com alunos pertencentes, por sua origem social, a setores maiselitizados e letrados da sociedade brasileira. Com poucas exceções, vinham

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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 15-20, 2006.

de famílias que dispunham de um certo prestígio social e significativo capitalcultural, embora nem sempre de modo equilibrado. O seu domínio de línguasestrangeiras era, em princípio, satisfatório e traziam um cabedal de informa-ções apreciável. Vários tinham vivido ou, no mínimo, viajado para o exterior.Assim, num certo plano, a comunicação fluía com relativa facilidade, a par depeculiaridades e idiossincrasias individuais. É de se registrar que, em certassituações, naquele período, alguns professores poderiam ser de origem so-cial mais modesta do que a maioria do alunato. Grosso modo, predominavamalunos de camadas médias superiores, às vezes filhos de elites econômicase sociais, enquanto certos mestres provinham de setores mais modestos decamadas médias. Progressivamente, começaram a aparecer, com maior fre-qüência, candidatos provindos claramente de camadas populares. Em geral,eram pessoas que tinham obtido acesso a universidades públicas e, a partirdaí, encaminharam-se para fazer pós-graduação, com projeto de permanenteaperfeiçoamento e profissionalização. Embora não se tratasse de um univer-so homogêneo, alguns traços ficavam mais evidentes. Assim é que tive aoportunidade de orientar alunos cujas famílias, segundo eles, não tinhamsequer livros em casa. A educação dos pais, muitas vezes, ficava no nívelmédio, e mesmo no básico, sem esquecer pessoas precariamente alfabetiza-das. Vinham de áreas e bairros mais pobres, como a Baixada Fluminense.Tinham dificuldade, em boa parte dos casos, não só com línguas estrangei-ras, mas mesmo com o português. Nunca tinham saído do Brasil e dispu-nham de um capital cultural em que ficava claro o desconhecimento ou pou-co contato com uma tradição letrada mais ilustrada. Apenas para exemplificar,parte desse alunato tivera muito pouca oportunidade de travar conhecimen-to com literatura, fosse brasileira ou internacional. Houve casos de alunosque, paralelamente ao seu estudo de antropologia, pediam-me que indicasselivros de literatura para o aperfeiçoamento de sua formação. Embora cres-cente, frise-se que esse setor mais modesto e popular é apenas uma fraçãodo universo mais amplo dos alunos, em que continuam predominando pes-soas de camadas médias, portadoras de conhecimento e cultura bem acimada média da sociedade brasileira. Mas há uma mudança bastante significati-va que torna bem mais heterogêneo e complexo o corpo de alunos que seapresenta para a pós-graduação. Inclusive, nota-se a presença maior decandidatos que poderiam ser classificados como “não brancos”, confirman-do, assim, nos últimos anos, a ascensão de outras categorias sociais e mino-rias étnicas.

A problemática da orientação apresenta vários desafios e tipos desituação. É impossível abstrair aspectos mais pessoais e afetivos numa rela-ção que, ainda hoje, apesar das pressões burocráticas das agências, se pro-

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VELHO, G. Orientação e parceria intelectual: dilemas e perspectivas

longa por períodos de alguns anos. Como orientador e orientando se esco-lhem? É preciso ficar muito claro que se trata de uma negociação que implicaavaliações e intuições que podem aproximar ou afastar, como em qualqueroutro tipo de relação humana. Em termos que pretendem ser estritamenteobjetivos, a grande motivação para uma possível parceria são interessestemáticos comuns. Isso geralmente se dá quando o aluno, conhecendo me-lhor um professor, se interessa pelos objetos com que esse lida, por suaperspectiva teórica e pelo seu estilo de trabalho. Nesse caso, professor ealuno podem constituir uma relação a partir da definição de objetos de pes-quisa e modos de reflexão que os aproximam. No entanto, o mundo é maiscomplicado, e isso pode não ser o bastante. O tema de interesse comumpode ser insuficiente diante de falta de afinidade pessoal, possíveis antipa-tias e dificuldades de diálogo. Porque, afinal de contas, este é o ponto funda-mental desse tipo de relacionamento. O diálogo é a condição básica para quepossa dar certo o empreendimento. Existe um outro tipo de situação em quea empatia e algum tipo de identificação pessoal possa fazer com que, mesmoquando não se encontre uma identificação temática imediata, se estabeleçauma relação produtiva e duradoura. Há diversas variáveis que podem terpeso decisivo nesse processo de maior ou menor aproximação. Algumasvezes, a maior diferença de idade pode dar maior legitimidade à relação hie-rárquica. Por outro lado, uma maior proximidade etária pode, com freqüência,facilitar um contato e trabalho de tendência mais igualitária. Não há comoignorar a questão do gênero, que pode se constituir em fator de maior apro-ximação ou afastamento. Tanto professores quanto alunos podem ter prefe-rências em trabalhar mais com homens ou mulheres. É bom lembrar que, nocaso das Ciências Sociais, particularmente na Antropologia, tem havido umatendência de aumentar a presença feminina estudantil. A experiência de con-tatos prolongados e, em certas circunstâncias, muito próximos, pode diluirou embaralhar as fronteiras entre trabalho e relações afetivas. Isso é, atécerto ponto, inevitável e nem sempre é simples administrar essas ambigüida-des. Como sabemos, não são raros os episódios de relações amorosas nes-sas situações. Certamente, uma variável que, em determinados momentoshistóricos, pode ser fundamental são as afinidades político-ideológicas. NoBrasil, durante o regime militar, isso ficava muito claro, quando as escolhasrecíprocas entre professores e alunos eram, constantemente, influenciadaspelo clima político reinante. Assim, havia professores militantes, engajados,esquerdistas, liberais, indiferentes, céticos, conservadores, direitistas etc.,no sistema de classificação vigente, que poderia aproximar ou afastar, demodo decisivo, parte do alunato. Mais uma vez, nas Ciências Humanas, isso,em princípio, era mais patente do que em outras áreas do conhecimento.

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Cabe registrar também que há professores-orientadores que, pordiferentes razões, trabalham mais isolados com seus discípulos, enquantooutros desenvolvem mais atividades comuns com colegas, fazendo com queseus alunos sejam, rotineiramente, expostos a contatos mais regulares eintensos com outros docentes que não se limitem às disciplinas que fre-qüentam. O grau ou a tendência à exclusividade variam bastante, com umataxa nada desprezível de ciúme e competição. Há o problema também, nadatrivial, do número de orientandos que um professor pode manter. Quando hámaior afinidade temática entre os alunos, a tarefa poderia parecer mais viáveldo que quando há uma grande variedade e heterogeneidade de objetos esituações de pesquisa. Mas, por outro lado, as diferenças de temas e ques-tões podem, também, gerar diálogos estimulantes entre o professor e seusdiferentes pupilos. Tive várias experiências de troca e cooperação bastanteprodutivas entre alunos que desenvolviam pesquisas aparentemente muitodíspares. Isso pode estar relacionado a problemas teóricos comuns e, mes-mo, a um pluralismo de interesses que supera a tendência à especialização.Tudo isto dependerá, por sua vez, da capacidade de lidar produtivamentecom as diferenças e eventuais competições, estimulando a troca de experiên-cias e idéias.

O diálogo não é uma palavra mágica e a sua construção passa pordiferentes etapas e, freqüentemente, por momentos difíceis. Não são poucosos casos de falência da relação, com a produção de incompatibilidades quegeram afastamento, e mesmo ruptura. Nem sempre é fácil encontrar fórmulaspara superar essas dificuldades, que podem virar verdadeiros impasses. Cri-ses são normais e, mesmo, rotineiras, diante de diferentes pontos de vista eperspectivas. O irremediável é quando se constata a efetiva perda da possi-bilidade de dialogar. Esse desfecho dependerá de inúmeras variáveis queenvolvem, além de possíveis “cálculos racionais”, sentimentos e emoções.

Hoje, o orientador defronta-se com outros tipos de desafio. Mui-tas vezes, pressionado pela tecnocracia burocrática universitária e das agên-cias, vê-se desempenhando, “malgré lui”, o ingrato papel de gerente delinhas de montagem de diplomas de mestre e doutor. Sem ignorar demandasrazoáveis do poder público, ou mesmo da sociedade civil, é fundamentalmanter aceso e defender o projeto de produção de conhecimento de qualida-de. A massificação e o fascínio do quantitativismo avaliativo já tem afetado,de modo negativo, a vida acadêmica. As metas de produção de não seiquantos milhares de doutores, de agrado da tecnocracia e de alguns políti-cos, tendem a passar por cima das avaliações e preocupações qualitativasde grande parte da comunidade acadêmica. Isto só tende a piorar com aascensão de um tipo de populismo mais preocupado com aparências de

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VELHO, G. Orientação e parceria intelectual: dilemas e perspectivas

progresso social do que com a verdadeira importância da produção científi-ca. Nesse quadro, é crucial preservar e valorizar a relação orientador/orien-tando, como eixo fundamental do trabalho universitário em todos os seusníveis, particularmente na pós-graduação. As diferenças legítimas na hierar-quia acadêmica, sendo bem compreendidas e administradas, permitem e es-timulam uma relação efetiva de reciprocidade e troca intelectual. Esta consti-tui a verdadeira parceria que dá continuidade, significado e renova a produ-ção de conhecimento que atravessa as gerações.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

VELHO, Gilberto. “Entrevista com Gilberto Velho”. In: Mudança, Crise e Violência:política e cultura no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002,p. 261 a 303 (originalmente publicada na revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro:CPDOC/FGV, n. 28, 2001. P. 183-210).VERNANT, Jean-Pierre. 1972. As origens do pensamento grego. São Paulo/Rio deJaneiro, Difel.

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“HE’S PART OF THE GANG”

Uma entrevista com o Professor Marcos LannaUma entrevista com o Professor Marcos LannaUma entrevista com o Professor Marcos LannaUma entrevista com o Professor Marcos LannaUma entrevista com o Professor Marcos Lanna

Marcos LannaJeulliano Pedroso de LimaLeonardo Carbonieri Campoy

Quando temos a possibilidade de visualizar a trajetória da algunsprofessores pelo campo da antropologia, podemos perceber algumas nuançasdas imponderabilidades que operam nesta área. Ou seja, obtemos dadospara pensarmos quais são os elementos que influenciam a formação de umapessoa e sua inserção numa carreira.

O “caso” do professor da UFPR Marcos Lanna é vasto nesteselementos. Filho de antropólogo, obtém sua graduação em economia. Noentanto, nos seus mestrado e doutorado foram em centros da antropologia:UNICAMP e Universidade de Chicago respectivamente.

Mas na entrevista feita pelos seus alunos Jeulliano Pedroso deLima e Leonardo Carbonieri Campoy o professor Marcos Lanna não nosoferece apenas elementos para pensarmos a trajetória de vida na antropolo-gia. Suas histórias e reflexões nos mostram que o campo da antropologiaretribui a pessoa com dádivas não só materiais, (aliás essas são escassas)mas também com sagacidade e bom humor. Então leitor, se você nos der suaatenção e partir para a leitura desta entrevista, sentimo-nos na obrigatoriedadede lhe retribuir com a possibilidade de aprender um pouco mais sobre o quesignifica fazer parte da gangue dos antropólogos.

RSE - Primeiramente, queremos agradecer o professorMarcos Lanna por estar nos dando a primeiraentrevista da revista. Neste primeiro momento, nósqueremos saber um pouco mais de sua história.

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LANNA, M.; PEDROSO DE LIMA, J.; CAMPOY, L. C. “He’S Part of the gang”.

Com uma graduação em economia, como vocêchegou à antropologia?

LANNA - Não é muito usual antropólogos virem da economia,mas é bastante usual antropólogos virem de outrasdisciplinas. Então o pessoal vem da história,jornalismo...da economia tem pelo menos dois queeu me lembre, o José Sérgio Leite Lopes1 e o AfrânioGarcia2...tem alguns médicos...do direito já é maisdifícil. Mas o que me atrai na antropologia é suacaracterística, para usar uma palavra meio fora demoda, totalizadora, holística; de você ter,justamente, aquilo que Leví-Strauss chama de olhardistanciado. O que me atraía nas matérias de históriaque eu fazia na graduação era justamente relacionara economia com a política, a religião. Relação essaque os economistas fazem muito pouco, mas estão,sendo obrigados a fazer cada vez mais.Pode ser ingenuidade minha, mas eu acredito muitona antropologia. A tendência, na medida em que elavai crescendo no Brasil, e isto está acontecendo...aABA e os congressos estão cada vez maiores...aantropologia vai atraindo pessoas de diferentesáreas que já tem uma visão mais antropológica. Ojornalista, o advogado, o publicitário, o engenheiromesmo, o administrador de empresas, o político.Enfim, a realidade vai se impondo. Esses dias mesmoeu estava lendo a história do presidente daSuazilândia3, que tem 13 mulheres e constantementebriga com o Fundo Monetário Internacional, poisele quer dar um palácio para cada uma delas. Nofundo esse é um problema mais comum do que seimagina. O jornalista que escreveu a matéria travavaisso como uma mera questão antropológica, e nãoé. Esses problemas nós encontramos em outrosespaços da vida social.

1 José Sérgio Leite Lopes é professor de Antropologia do Museu Nacional.2 Afrânio Raul Garcia Jr. É professor da L’Ecole des Hautes Etudes em

Sciences Sociales.3 Lanna se refere ao rei Mswati 3º, o qual recentemente escolheu sua

décima terceira esposa.

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RSE - Tendo sido orientado por Roberto Cardoso deOliveira no mestrado e Terence Turner nodoutorado, como você percebe o campo daantropologia no Brasil?

LANNA - O Roberto foi muito importante para a consolidaçãoda Antropologia no Brasil...Museu Nacional,Brasília, em Campinas ele foi muito importantetambém, foi decisivo...

RSE - Ele foi importante na sua formação?

LANNA - Bom, tem muita coisa para comparar entre o que erafazer pós-graduação em antropologia na minhaépoca e na de vocês. Na minha época tinha muitomenos alunos, muito menos antropólogos, e amaioria dos alunos tinha a expectativa de vir a serprofessor. E essa expectativa era realista, pois aschances eram imensas que eles viriam a conseguirser professores. Então, hoje está acontecendo oseguinte. O campo está crescendo, e ao mesmotempo em que continua havendo possibilidades dosalunos de antropologia virem a ser professores, amesmo tempo está cada vez mais difícil. Enfim, hápossibilidades...Para quem gosta de viajar, de mudarde estado, de cidade...E também surgiram posiçõesfora da academia. Ainda são poucas as chances,mas há o ministério público e recentemente oItamarati fez um concurso só para cientistas sociais.Agora, há outra questão. Eu posso estar sendomuito rigoroso, mas, grosso modo, devido aotrabalho de Roberto Cardoso de Oliveira, e outrosfatores, a antropologia institucionalizou-se maisfortemente no Rio. Já a sociologia, talvez porinfluência do trabalho do Florestan Fernandes, doFernando Henrique, talvez o momento da USP nadécada de 50, a formação de uma escola marxista,seja mais forte em São Paulo. Nós aqui no Paranárecebemos muito mais a influência da visãopaulista...por isso acho muito importante que oaluno saia daqui para sua pós...para conhecer,ampliar os horizontes. Isso eu acho uma coisainteressante da minha formação. Eu fiz Graduaçãona USP, mestrado na UNICAMP, e doutorado emChicago, e agora sou professor aqui em Curitiba.

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Também tive uma experiência como bolsista recém-doutor na UNICAMP. É interessante comparar osdepartamentos. Cada um tem uma espécie devocação.Voltando ao Roberto, acho que foi muitointeressante essa experiência com ele, e por ela vejoque há outra mudança acontecendo da minha épocapara a atual. Hoje em dia a relação com o orientadorestá muito mais orgânica. Talvez pelo prazo quetenha diminuído4, mas hoje o aluno exige muito maisatenção. Na minha época o aluno exigia liberdade.Eu prefiro o sistema em que eu me formei. Achoimportantíssimo o orientador ensinar o aluno a serlivre, a quebrar a cara sozinho, descobrir seuscaminhos e opções teóricas. Uma das pioresconseqüências da diminuição do prazo, eu acho,foi ter aumentado a insegurança dos alunos.

RSE- Como foi essa sua passagem da economia, nagraduação, para a antropologia, no mestrado? Vocêjá tinha algum vínculo com a antropologia nagraduação?

LANNA - Sobre minha relação com a antropologia, já que éesse o assunto, eu não posso deixar de falar quesou filho de antropólogo5. Tivemos uma relação,como toda relação de pai e filho, cheia de conflitose complicações. Meu pai foi antropólogo até osmeus seis anos de idade, depois ele começou atrabalhar fora da antropologia. Ele não tinha maisvontade de continuar na área de antropologia, mas,como eu estava falando, naquela época havia umacarência muito grande de professores e então opessoal da USP não o liberou. Ele ficou na USP atése aposentar. Isso foi em 1985 ou 1986. Nessa épocaeu já era mestrando. Entrei no mestrado em 1983. Esimplesmente escolhi a UNICAMP para não ir parao mesmo lugar que meu pai trabalhava. Nósmorávamos em São Paulo, então só prestei naUNICAMP.

4 Lanna se refere à diminuição do período da pós-graduação.5 O pai de Lanna é Amadeu Lanna. Etnólogo, realizou suas pesquisas de

campo entre os Suyá. Há textos seus publicados na Revista de Antropologia da USP e naL’homme.

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A antropologia me atraía também pelo que o RobertoCardoso chamava de “fatos personológicos”. Essaexpressão, que a princípio não achava muitointeressante, eu acabo sempre usando. Para vocêsverem que o aprendizado prolonga-se por anos,décadas após o aluno, no caso eu, ter contato como professor, no caso, o Roberto. Mas continuamosamigos até hoje, só nos vemos e nos falamos muitopouco. Eu já falei do lado institucional da minhacarreira, falando agora sobre o lado“personológico”, eu acho que a antropologiasempre foi para mim um mistério, meu pai falavamuito pouco de antropologia, quase nada. Ele falavaque era amigo de fulano ou cicrano, mas erampessoas que eu não via, que eu não conhecia. Eunão sei até que ponto isso me ajudou ou não. Porum lado me ajudou. Por exemplo, quando eu fuiconversar com o Roberto, ele sabia quem eu era,embora eu nunca tivera sido aluno dele. O Robertoera um dos poucos na UNICAMP que estudavaíndios brasileiros6. Na verdade ele já estava ligadoà área “etnografia do saber”. Na UNICAMP naquelaépoca, havia quatro áreas: etnografia urbana,etnologia, etnografia do saber, e antropologia ru-ral. Eu escolhi etnologia. O Roberto orientava emetnologia e etnografia do saber.Em alguma medida ter um pai antropólogo meajudou. Meu pai tinha uma biblioteca muito boa,livros clássicos. Mas teve um lado ruim também, demuita exigência, muita briga. Ele tinha idéiasdiferentes das minhas, nunca lia as coisas que euescrevia. Mas isso tudo está superado...agora eletambém não lê, mas tudo bem.

RSE - Como foi sua passagem pela universidade de Chi-cago?

LANNA - Hoje em dia é muito difícil conseguir bolsa paraestudar no exterior. Na minha época era bem maisfácil. Isso era uma orientação dos militares, do CNPqe da CAPES na época da ditadura. E houve umdesperdício de dinheiro extraordinário, porque, naprática, não havia uma seleção. Eu consegui uma

6 Área na qual Amadeu Lanna realizava seus estudos.

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bolsa para Chicago, mas se eu quisesse ir paraFlórida ou para o Havaí, lugares mais quentes, iadar no mesmo. Não havia muita cobrança, comoexista hoje em dia.Eu fui muito novo para Chicago. Eu tranquei omestrado na UNICAMP, fui para Chicago e já entreino programa de doutorado, com 23 anos. Lá, vocêentrava no programa de doutorado e saía comomestre ou doutor, então se formar apenas comomestre correspondia quase que a uma reprovação.E o prazo do programa era, na média, de 11 a 12anos.Esse negócio de ranking, que atualmente no Brasilconta muito, lá já existia por décadas. E Chicago,desde a época de Radcliffe-Brown, até antes, éconsiderado um dos centros da antropologia nosEstados Unidos, juntamente com Berkeley. Nasdécadas de 70 e 80 Chicago foi muito forte. Geertzdeu aula lá em 70, assim como David Schneider, umprofessor muito importante; George Stocking Jr,historiador da antropologia, também lecionoulá por décadas, entre outros “feras”.Fazer uma pós-graduação no exterior é muitointeressante para percebemos que existem escolas,modos de pensar entre os quais o aluno, de certamaneira, precisa optar. Eu me sentia muito exigidocomo aluno de antropologia pela quantidade deorientações teóricas que eram oferecidas em Chi-cago. Por exemplo, só agora, depois de mais de 10anos do término do meu doutorado, é que eu vimconhecer a obra do David Schneider. Era um caracom quem eu conversava lá em Chicago, mas comquem eu me sentia intimidado, sem coragem paraser aluno dele. Como o mais velho e figura quemontou o departamento, com ênfase naantropologia simbólica, tendo convidado para lá,além de C. Geertz, M. Sahlins, Victor Turner, TerenceTurner, entre outros. Ele tinha uma atitude tranqüilade ancião, era bem solícito, circulava de bermudase sandálias no verão. Mas dizem que quando obicho pegava, lá entre os professores, ele eraduríssimo na queda, se é que me entendem...masno fundo são limitações de todo aluno. Eu estavainteressado em aprender algo de Lévi-Strauss, aquem Schneider já havia criticado em meados dos

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anos 50, uma das críticas mais importantes, daspoucas que o Lévi-Strauss acatou. O interesse delena época era conseguir desconstruir o parentesco,e isto me afastou dele. Enfim, eu estava a anos luzde distância dele, não tinha capacidade mesmo paraaproveitar tudo o que aquele departamento meoferecia. Mas acho que este é o caso de 100% dosalunos, de Chicago e de outras partes, daquelaépoca e de hoje. Mas hoje o departamento de Chi-cago não é tão bom como foi nos anos 80. Schneiderfoi uma das referências do que podemos entenderpor antropologia simbólica, usando esse termocomo um “guarda-chuva” para abranger desde osmarxistas, Terence Turner, até Shalins e Geertz. FoiSchneider que montou esse departamento daantropologia simbólica em Chicago. Então, vocêacaba sofrendo a influência do departamento. Euestive em Chicago durante uma época áurea. Haviaum casal de antropólogos importantes também, aJean e o John Comaroff. Eles são da África do Sul,africanistas e marxistas. Também nunca fui alunodeles.Não obstante, fui aluno de muita gente. Eu fiz umaquantidade absurda de cursos, 18 ou 20, algo assim.Então eu fiz um plano de 9 cursos lá em 1988 e 90 evoltei para o Brasil para terminar o mestrado. Fizmais de 10 cursos depois, entre 1993 e 1994.Uma outra questão interessante de se estar numdepartamento como o de Chicago é ter professoresdando aulas sobre vários continentes. Então, eutive uma professora chamada Rion Sharon Stephensque estudava os Lapões, povos do extremo norteda Europa ocidental; o Valério Valeri, queinfelizmente já morreu, estudava o Havaí, aIndonésia. Há a construção de uma perspectivacomparativa. A antropologia tem uma dupla ampli-tude. Uma, necessária, é a global, globalizada, teruma perspectiva comparativa que inclua os cincoscontinentes. Às vezes a antropologia brasileirapeca um pouco por ficar olhando apenas para oseu umbigo. Eu acho que nesse caso, os estudossão menos antropológicos e mais sociológicos. Aoutra amplidão é a teórica, a qual eu não acho tãonecessária. Entendo que nós devemos trabalhardentro de uma escola. É muito difícil, por exemplo,você unir Marx, Weber, e Durkheim. No entanto, há

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possibilidades de encontros teóricos férteis. EmChicago havia o que eles chamavam de “joint de-gree”. O aluno se formava em antropologia elingüística, aproximação essa rara, atualmente, noBrasil. É uma pena que não tenhamos tantaspessoas estudando, por exemplo, as línguasindígenas brasileiras. É o que estávamos falando apouco sobre a falta de amplitude da ciênciaantropológica brasileira.Foi muito legal ter estudado com o Valeri e com oSahlins, dois estudiosos da Polinésia. Acabousendo determinante em minha carreira, aliás, poracaso. O Roberto Cardoso foi um excelenteorientador, apesar de eu não ter me identificadocom a inclinação teórica dele. Percebendo que meuinteresse era pela antropologia francesa, ele me puxapara a área da etnografia do saber e me fala: porquevocê não faz um comentário da antropologia inglesacom os olhos da antropologia francesa? Isso foiuma grande sacada. Ele de certa forma organizou aminha dissertação. Ele me falou: faz um capítulosobre Malinowski, Firth, e faz uma conclusão. Então,quando cheguei em Chicago já tinha uma noção dePolinésia com Firth, e outra de Melanésia comMalinowski. E assim, além do Sahlins, encontrei emChicago um professor que foi o mais importante naminha formação, o Valério Valeri.

RSE - Sobre a questão da amplitude da antropologiabrasileira, como você percebe o fato da professoraManuela Carneiro da Cunha estar no departamentode Chicago?

LANNA: Eu acho isso ótimo. É uma prova do aumento daqualidade da produção antropológica brasileiraNós estamos produzindo à altura no mesmo nívelde Chicago. O próprio Carlos Fausto, com toda suaformação feita no Brasil, já deu aula como profes-sor visitante em Chicago. Nós estamos produzindoprofessores de nível internacional. A Manuela já éum pouco diferente. Ela estudou na França e naInglaterra antes de ir para Chicago. Não obstante,ela pode ser compreendida como uma “amostra”da qualidade da antropologia brasileira.

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Agora, é muito bom valorizarmos a antropologiabrasileira, e vermos no que somos fortes, no que agente é bom, no que somos melhores do que osnorte-americanos. Só assim vamos criar uma escolade antropologia brasileira. Nosso problema, achoeu, é que estamos abertos demais a outrasantropologias. Somos abertos à antropologiafrancesa, inglesa, norte-americana...Quando aFrançoise Héritier esteve em Curitiba ela comentoucomigo: você sabe mais de antropologia norteamericana do que eu. Nesse sentido, de formaçãode uma escola, nós ainda estamos engatinhando.Um dos grandes méritos do Roberto Cardoso foiter começado uma escola, prosseguindo emdireções novas o trabalho do Darcy Ribeiro.

RSE - Conversando sobre escolas, você se definiria comorepresentante de alguma tradição antropológica?

LANNA- Por tudo que já comentei, acho que fica claro queeu me sinto confuso, assim como qualquer alunoou antropólogo brasileiro. Sinto-me exposto.Demorou para que eu me definisse. Sempre tive umfascínio pela antropologia francesa, pelos trabalhosde Lévi- trauss e Marcel Mauss. O (Luis) Dumonteu só fui conhecer mais tarde, no final do meumestrado. Então, diria que esses três autoresconstituem o cerne do meu interesse naantropologia.Acredito que a própria avaliação da importância dotrabalho de Lévi-Strauss ainda está para ser feita.Esta é, ao meu ver, uma das questões daantropologia no século XXI. O próprio Lévi-Straussoscila quanto ao seu lugar na antropologia. Ementrevista recente, ele comenta que não seconsidera tão importante quanto outros autores[A]os quais ele é freqüentemente comparado, comoMarx ou Freud. Em outros momentos dá para seperceber o contrário, que ele gostaria de serconsiderado um clássico. Esta é uma questãoaberta.Eu vinha falando de uma certa confusão em mefiliar em uma escola teórica. Talvez seja justamenteo contrário. É absolutamente legítimo, faz parte dasregras do jogo acadêmico, que o aluno queira

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simplificar a vida dele. Existem vários técnicas, maisou menos ilícitas, para tanto. O aluno pode colar naprova ou copiar um trabalho...a que eu acho maisinteressante é você, ao tentar montar uma lente paraver o mundo, tomar cuidado com o ecletismo. Émuito difícil fazer sínteses, como meu próprioorientador Terence Turner. Ele quis fazer uma sínteseentre Marx, Lévi-Strauss e Piaget, a qual eu achoque não consegue grandes êxitos. Como o RobertoCardoso de Oliveira, o Terry é um grandeantropólogo, professor, orientador, mas tem comoponto fraco, na minha avaliação, sua própria teoria,ambiciosa demais.Acredito que pela experiência nós conseguimossaber quais são nossos interesses teóricos. Quandoeu fui trabalhar com o Roberto ou com o Terry, nãotinha a menor idéia de como íamos trabalhar, se iaser em paralelo, se íamos trabalhar juntos. O alunodeve acreditar nele mesmo, em suas convicções einteresses. Aos poucos ele vai montando suasverdades, organizando suas vontades, vaitrabalhando com seus contatos, vão aparecendoconvites...a antropologia também é feita assim, deacasos. Eu quase fui parar na Guiné Bissau. Eu tinhaacabado de chegar no Brasil e recebi uma propostade trabalho de lá. Eles queriam um aluno de Chi-cago que falava português. Enfim, o aluno precisaestar preparado para as oportunidades quando elaschegam.

RSE - Você chegou a ter algum contato com o Lévi-Strauss?

LANNA - Eu demorei para tomar coragem para mandar meulivro para ele, e quando o fiz, em menos de um mêsele respondeu dizendo que gostou, que tinhaachado interessante. Eu poderia ter tido muito maiscontato, mas achei que ele já estava um tantodesinteressado pela antropologia. Engano meu,pois ele se mostra tão feroz, tão envolvido, tãoengajado. Acho impressionante essa sua inserçãona área. A antropologia é sua vida. Até 1999 eleescrevia as cartas do próprio punho, depoiscomeçaram a vir datilografadas, acho que ele ditavapara a secretária. A que mais me orgulhou foi umaem que ele aprova minha apresentação ao “Nós os

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Tikopias”, de Raymond Firth. Ele gosta muito doFirth e gostou de eu incorporar os Tikopia às outrassociedades a casas e de cruzar estes pensamentoscom orientação aparentemente diferente, britânicoe francês. Em parte devo devo isso ao Roberto, foiidéia dele, cruzar os dois “paradigmas”, como elediria. Mas o Lévi-Strauss também aprova algo queo Roberto me desestimulava a fazer, análise daorganização social Tikopia. Eu devia ter tido maiscoragem e trocado mais cartas com o Lévi-Strauss.E com outros também troquei cartas...com o Valeri;a viúva dele disse que no fim da vida ele disse:“queria viver mais para conhecer o Brasil, ir àCuritiba”. Isso me emocionou profundamente. Ima-gine, o cara conhece o mundo todo e morredesejando vir a Curitiba! Também me correspondicom a Françoise Héritier. Tudo depende depercebermos sobre o que eles se interessam emconversar. A Héritier, por exemplo, evitava aomáximo falar de Dumont, mas topava falar dequalquer outra coisa, culinária, África, política,cidades. Ela me contou fofocas interessantíssimassobre sua eleição no Collège de France, coisas quenenhum brasileiro da academia teria coragem oumesmo interesse em revelar.

RSE - E como você veio parar aqui na UFPR?

LANNA - Quando eu voltei de Chicago, fui dar aulas comobolsista recém doutor na UNICAMP. Eu não estavamuito contente lá. Eu nunca me achei naUNICAMP. Eu cheguei meio de pára-quedas naacademia brasileira. Quando eu era aluno naUNICAMP, em 1983 estava acontecendo umatremenda briga entre marxistas e simbólicos, queculminou com a saída do Peter Fry inclusive. E eu,oriundo da economia, estava interessado em fazeruma leitura antropológica de Marx, ou seja, comotratar assuntos da sociologia, do direito, a partir deuma perspectiva antropológica. Fui incorporado àcambada dos simbólicos. Mas quando voltei comoprofessor, em 1992, o jogo “unicâmpico” já tinhamudado totalmente. E eu também tinha perdido umcontato mais pessoal com os professores, aquelaida ao bar para tomar cerveja não acontecia mais.Então eu não estava socializado no estilo de vida

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acadêmica brasileira, de construir uma trajetóriauniversitária. Isso me deixou um pouco solto. Euvim para Curitiba, mas poderia ter ido para BeloHorizonte, Belém do Pará, Porto Alegre.Por mais que eu estivesse fazendo o mestrado naUNICAMP eu freqüentava muito o departamentode antropologia da USP. E assim acabei conhecendomuitos antropólogos estrangeiros em eventos,palestras, congressos. É interessante: osantropólogos estrangeiros parecem ser maisreceptivos quando vêm ao Brasil do que no exte-rior. Lá a vida é muito solitária, muito mesmo. NaUSP conheci a Joana Overing, o MichaelTaussig...fiquei bem amigo até do Taussig. Lembro-me que estava tendo um encontro da American An-thropological Association e iam tomar cerveja oMichael Taussig, o Bernard Cohn, que era meuorientador na época, acho que foi em 1988 ou 1990,pois o Terry estava afastado para pesquisas, e oPaul Rabinow. O Taussig me convidou e quandonós entramos no elevador, nós quatro, o Taussigme apresentou assim para o Rabinow: “He’s fromBrazil. He’s part of the gang”. Mas o Rabinow tinhatido uma péssima estadia como professor visitantedo Museu Nacional, tinha escrito um artigo estúpidoironizando alguns aspectos da vida pessoal doDaMatta, a última coisa que ele queria saber navida era ir tomar cerveja com um aluno brasileiro,ligado ao DaMatta e que ainda por cima era íntimodos dois amigos dele. O DaMatta é outra figuraimportantíssima para mim, ele morava ali perto deChicago e ficamos muito amigos, além de termos aafinidade de pretender usar teorias etnológicas paraanálise do Brasil contemporâneo. Ele foi muitogeneroso comigo. Era isso, eu tinha umanaturalidade em abordar os antropólogos, de mearriscar indo para Chicago, e isso é, em parte, umaspecto bom de ser filho de antropólogo. Aquelaspessoas eram, para mim, como quaisquer outras.Eu até pecava em relação a isso, pois só queriaconversar sobre antropologia. Lembro-me que oSahlins adorava falar de beisebol, fazer piada, jogarbasquete e isso me afastou um pouco dele. Se euestava com o Sahlins eu queria mais era falar deantropologia e ele devia achar isso chatíssimo.

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RSE - Falando de orientação, você acha possível formarum antropólogo na graduação?

LANNA - Essa questão já foi seriamente debatida na décadade 90 no Brasil. Há uma publicação da ANPOCSsobre isso, com um texto, brilhante só para variar,do Eduardo Viveiros de Castro, chamado “Te(i)maspara discussão”. Eu realmente não teria uma opiniãoformada sobre o assunto. Mas, talvez sendo umpouco elitista, vejo a formação do antropólogosendo feita na pós. De qualquer forma essa vemsendo a tônica. Formar no mestrado, e em últimaanálise no doutorado.É difícil formar antropólogo na graduação. O quese concluiu nos debates da década de 90 é que nãovalia a pena esse esforço. Porque se nós mas-sacrarmos os alunos da graduação com muitaetnografia, certamente muitos deles iriam fugir daantropologia. Enquanto se você tenta transmitirconceitos básicos da disciplina, há umapossibilidade de que alguns deles fiquem. E numprocesso de seleção para um mestrado o que contanão é, somente, o conhecimento de antropologiado aluno. Certamente ele deve demonstrar noções,mas é fundamental que ele tenha uma capacidadede redação, que ele saiba expor suas idéiasclaramente. Nosso departamento vem pensandoassim nas últimas seleções. E não podemosesquecer a questão da disponibilidade de tempoo aluno. Essa é outra idéia elitista, mas acredito nãoter outro jeito. Se você quer fazer seu mestrado emdois anos e não tem tempo, as possibilidades queseu trabalho não fique bom são imensas.Quando eu estava na graduação não imaginava serantropólogo. E com outros alunos, hoje em dia,acontece isso também. Deixe-me dar um exemplo. OJoão Rickli, meu orientando no mestrado e que agoravai fazer doutorado na Holanda. Ele era músico, e asua graduação em música lhe deu algumentendimento sobre o que a antropologia faz. Eletinha uma visão, alguma percepção que eratipicamente antropológica, e na sua graduaçãomuito provavelmente não sabia disso. Isso lhefacilitou em grande medida no mestrado. É aquiloque o Roberto Cardoso dizia, “fatospersonológicos”. Nos cursos de graduação por aí,

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não de ciências sociais, mas de exatas, biológicas,deve ter uma certa porcentagem de alunos queseriam bons antropólogos.As qualidades “personológicas” para aantropologia podem se revelar no pós, ou não. Eutive uma orientanda de PIBIC, a Carolina Kaiss, quenão tinha a menor idéia que seria uma ótimaetnógrafa. Ela foi obrigada, pelas regras do PIBIC,a herdar a pesquisa que era de meu ex-orientando,o Homero Martins, uma etnografia do Coritiba foot-all clube. E enquanto o Homero analisava a diretoria,lá foi a Carolina se meter com jogadores de futebol.Fez um excelente trabalho. E depois ela fez umtrabalho sobre política local em uma cidade do inte-ior. Enfim, ela demonstrou e exerceu uma qualidadejá na graduação. Não há receitas.

RSE - É o aluno que chega a você, ou é você que chegaao aluno?

LANNA - São as duas coisas. Eu adotei uma prática doRoberto Cardoso, a de só trabalhar com pessoasque já foram meus alunos. Na sala de aula vocêconhece a pessoa. Bom, existem casos excepcionais.Minha primeira orientação de monografia era umaaluna que se chamava Renata Rodrigues. Seutrabalho chamava-se “Comida de Santo”. Eu tinhaacabado de chegar no departamento, e a orientadoradela tinha se aposentado. Alguém tinha indicadomeu nome e lá fui eu orientar ela.É uma relação recíproca entre orientador e aluno. Ehá vários elementos nessa relação. É absolutamentenatural, por exemplo, que haja conflitos. Eu nãogostava da hermenêutica, e meu orientador domestrado era um grande hermeneuta. Eu estavaquerendo pensar uma crítica ao marxismo, aindaque incorporando sua etnografia do capitalismo emeu orientador do doutorado foi um tremendomarxista! O aluno tem que ter coragem e confiançanele mesmo. Até para debater com seu orientador.Eu me lembro que ficava receoso se o Terry ia gostardo que tinha escrito ou não, tentava agradá-lo, porexemplo, escondendo minhas críticas ao Marx emeus elogios ao Lévi-Strauss. Mas enquanto euestava indo ele já estava voltando. Ele sabia que

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minha perspectiva teórica era diferente da dele; elesabia se eu ia gostar de tal texto que me indicasseou não. Mas ele sempre me deixou muito solto, eisso resultou tanto em elogios ao seu trabalhoquanto a críticas. Tanto o Sahlins, o Terry, como oRoberto não eram muito abertos a críticas, massempre que fazia algo usando o trabalho deles eachava que iriam gostar, eles gostavam menos doque eu imaginava. A divergência entre Lévi-Strausse Roberto Cardoso sobre a pertinência de uma re-nálise do parentesco Tikopia, que eu citei acima, éoutro exemplo de que o aluno deve fazer aquilo queele acredita e explorar as divergências entre osprofessores, sem se preocupar em agradar este ouaquele.

RSE - E como você percebe o mercado de trabalho para oantropólogo no Brasil?

LANNA - O mercado de trabalho para o antropólogo é umproblema muito sério. O aluno tem razão em ficarangustiado quanto ao seu futuro. Esse é umproblema que já vem preocupando os antropólogospor muito tempo. Quando o Rubem Oliven foipresidente da ABA nós debatemos muito essaquestão.Talvez por haver muitas visões do que sejaantropologia entre os antropólogos, nãoconseguimos nos impor no sentido de convencero mercado que nossa disciplina sirva para algo.Nós mesmos não sabemos o que queremos.

RSE - Você diria que os antropólogos no Brasil constituemuma “classe para si”?

LANNA -Não. Eu diria que não. Existe uma crítica feita àantropologia pelos sociólogos e cientistas políticosque eu acho que, em parte, procede. A crítica é a deque o antropólogo despreza a relevância dasquestões materiais. Como eu venho da economiaminha visão acaba sendo um tanto diferente. É claroque é importante estudarmos os fatos da cultura,mas seria interessante se enfrentássemos mais asquestões que o mercado, por exemplo, nos coloca.Em outros termos, termos uma atitude mais corajosa

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frente às possibilidades da antropologia. Acho queexiste um véu de hipocrisia muito grande por cimada sociedade brasileira, e os antropólogos aindanão ousaram descortiná-lo. Quando o fizermos, aantropologia ficará mais interessante, e talvez, maisreconhecida e mais respeitada. Enfim, ter umengajamento antropológico além do ideológico epolítico.

RSE - Você se sente realizado intelectualmente?

LANNA - Eu acho que sim. Todo trabalho tem suas penas,seu lado ruim e difícil...não sei. Nunca pensei nessestermos, de realização pessoal. Eu simplesmentedeixei as coisas acontecerem. Por exemplo, eu fuipra Chicago porque, primeiro, tinha lido o Sahlinsna graduação e achei legal, e segundo, por terconhecido o Terence Turner aqui no Brasil. Ele eraprofessor convidado no Museu Nacional na épocaem que eu estava no final da graduação. Então eufui lá falar com ele, e depois de nossa conversa eleme falou: considere-se entrevistado. A atitude delepoderia ser considerada aqui no Brasil comoclientelista. Como se ele estivesse me convidandopara o programa de Chicago, passando por cima dealgum processo seletivo. Essa relação de empatia,pessoal, é importante em nossa área. Por exemplo,eu não abro mão de escolher para quem eu vou darminha bolsa PIBIC. Num concurso para essa bolsaacaba contando a empatia, mas nunca vi ninguémreconhecer isto. Por isto nunca faço concursos parabolsa, é uma prerrogativa que me dou, a de distribuí-la para alunos que acho que merecem e que têm ascondições de tocar um trabalho adiante. Poder fazeressa crítica da burocracia e de relações excludentescomo o mercado e o Estado burguês são coisasque me fazem sentir que vale a pena serantropólogo.

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ESSES CAMALEÕES VESTIDOS DE NOITE:UMA ETNOGRAFIA DO UNDERGROUND HEAVY METAL

Leonardo Carbonieri Campoy

Resumo: Este trabalho parte da possibilidade de se compreender oheavy metal como um estilo musical e enquanto um grupo que oescuta. Assim, para além das técnicas musicais empregadas no estilo,o trabalho pretende identificar as práticas do ajuntamento que escutaheavy metal. A formação desse grupo, chamado de underground,enseja a transformação de uma experiência sensória, ouvir heavymetal, em uma sociabilidade dotada de regras em suas condutas. Atra-vés da etnografia este trabalho busca compreender como o grupoorganiza essa sociabilidade e levanta questões para se pensar emcomo ela está relacionada com as categorias culturais veiculadas pelamúsica do heavy metal.

Palavras-chave: música, estética, indústria cultural, heavy metal.

Int roduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

O heavy metal é um estilo musical específico, reconhecido em suaespecificidade tanto pelos seus produtores, os músicos, quanto por seusconsumidores, os fãs. O próprio mercado da indústria fonográfica reconhe-ce sua especificidade1. Empreender uma abordagem antropológica do heavymetal demanda, de saída, reconhecer sua distinção para com outros estilosmusicais. Não estamos abordando o rock, nem o punk, nem o reggae. Oheavy metal representa um espaço próprio, e é neste espaço que a pesquisapretende adentrar.

Contudo, o heavy metal não é somente um estilo musical. Aolongo de sua história, formaram-se nas cidades grupos que têm como causa

1 Nos catálogos de gravadoras o heavy metal aparece sozinho, assimcomo as lojas de cds dispõem de estandes específicas para o estilo.

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de sua convivência a experiência do heavy metal. Na vivência da músicaorganizou-se uma sociabilidade específica, formada por elementos próprios,como a vestimenta e cortes de cabelo. Este estilo espalhou-se pelas ruas ebecos das cidades nos corpos e discursos de seus apreciadores. Ele tornou-se uma conduta, e vale dizer, com regras.

Dessa forma, o heavy metal surge na pesquisa em dois registros:na música e na identidade do grupo que a experimenta. Ambos evoluemcompassadamente, num mesmo ritmo, numa mesma harmonia, tocando umasó melodia. De modo que na intenção de construir uma perspectiva antropo-lógica sobre o heavy metal enquanto cultura, não poderíamos escolher, oumelhor, privilegiar, seja a música do estilo, seja o estilo do grupo. O heavy metalestá relacionado de forma equilibrada entre sua música e o seu grupo. De fato,ele é construído na relação entre sua produção, fazer heavy metal, e seu consu-mo, ouvir heavy metal. É no encontro do sentido da música do heavy metal como sentido de quem a ouve, que emerge o sentido do nosso objeto.

Sem dúvida o heavy metal está inserido no mercado fonográfico.Os lançamentos são produzidos, prensados, e distribuídos pelas gravado-ras, e revendidos em lojas de cds, department stores, hipermercados. Osshows de bandas reconhecidas pelo público, famosas, passam de país empaís, promovendo o último lançamento. Entrevistas em revistas e apariçõesem programas de tv fazem a banda ser vista e ouvida.

O heavy metal, talvez não tanto como outros estilos, é certamenteum produto comercializado pela mass media. Nesse registro uma análise doheavy metal não requer grandes esforços. Adorno já a fez, basta assimilá-la:do lado da produção a lógica do capital completa seu domínio social desen-volvendo seus tentáculos sobre a cultura; do lado do consumo o indivíduoadquire mais do mesmo, um produto que só na aparência é distinto, pois suasubstância é fundada no idêntico, e quando comprado insere seu compradorainda mais radicalmente na lógica do fetiche da mercadoria e da alienaçãopolítica (ADORNO; 1985).

Contudo, sem contrariar a perspectiva crítica dos frankfurtianos,uma etnografia do grupo que faz e ouve heavy metal nos mostra que em suaprática um outro espaço, à “margem” do mercado, veio se formando2. Naorganização dos shows, na imagética3, na música e nas letras das canções

2 A formação de um espaço de socialização da música não determinadototalmente pelo mercado não é observado apenas nos desdobramentos do heavy metal.Janice Caiafa nos mostra como esse processo também desenvolveu-se com o punk emCAIAFA, 1985.

3 Roupas, apresentações de palco, iconografia das capas dos discos.

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percebemos práticas complementares entre si, constituindo um discurso,uma posição cultural. Uma etnografia do grupo que faz e ouve heavy metalnos permite, então, apreender essas práticas, e perceber como estãoconcatenadas complementarmente.

Antes de prosseguirmos com o relato da etnografia propriamentedita, precisamos encontrar um ponto de apoio teórico, um torniquete. Se nãoé pela via carpida de Adorno e Horkheimer que viajaremos, qual é a mata quenos adentraremos?

Walter Benjamim nos dá o ponto de inflexão. O filósofo alemãotraz à baila o “outro lado” do mecanismo da indústria cultural. Ele se pergun-ta se o público, o receptor, é tão passivo quanto Adorno e Horkeimer imagi-nam. Para tanto era necessário, ao seu ver, compreender a percepção, oespaço que está entre a produção e a recepção da obre de arte. Numa pala-vra, na experiência. É nesse lócus que Benjamin encontra a possibilidade deum uso, de um manejo, do que é produzido sob uma insígnia de arte.

Jesús Martin-Barbero escreve sobre o autor: “ParaBenjamin(...)pensar a experiência é o modo de alcançar o que irrompe nahistória com as massas e a técnica. Não se pode entender o que se passaculturalmente com as massas sem considerar a sua experiência.”4. Nessa“história da percepção”, que Benjamin empreende, as técnicas dereprodutibilidade da arte tiram-lhe sua “aura”, diminuindo seu valor de culto.Antes circunscrita a poucos, que contemplavam o original, a arte na era desua reprodutibilidade técnica encontra-se mais próxima ao público, aumen-tou seu valor expositivo. Próxima não só no sentido físico, com o adventodas salas de cinema e a possibilidade de ter uma câmera fotográfica em casa,mas também no sentido cultural: “A morte da aura na obra de arte fala nãotanto da arte quanto dessa nova percepção que, rompendo o envoltório, ohalo, o brilho das coisas, põe os homens, qualquer homem, o homem demassa, em posição de usá-las e gozá-las.”5. Tendo a pensar que Benjamin,nessa procura pela percepção da arte na massa, tenha se portado um tantocomo etnógrafo, pesquisando “casos” que descortinariam suas reflexõessobre a modernidade. Lembremos de seus estudos sobre Baudelaire, ousobre o surrealismo, por exemplo. Em contraposição a uma perspectiva ge-nérica de Adorno e Horkeimer, Benjamin pesquisa a penumbra, aquilo que seesconde nas margens da produção cultural, e o que esses poetas e movimen-tos artísticos “malditos” revelavam, que não poderia ser notado no “centro”.

4 MARTIN-BARBERO, 2003, p.84.5 Idem, p. 86.

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A reflexão de Benjamim nos coloca à procura do que é feito com aarte por quem a recebe. Veremos na etnografia que a relação da pessoa como heavy metal não cessa quando ela desliga seu disc player ou quando vaipara sua casa após o show. Antes, o manejo do estilo musical, dessa mani-festação artística, enquadra relações sociais e molda um código cultural.

Lévi-Strauss, esse psicanalista da cultura, traçando uma analogiaentre o mito e a música na abertura do seu O cru e o cozido, também imbui oreceptor de um protagonismo na construção do significado de ambos:

O desígnio do compositor se atualiza, como o do mito, através doouvinte e por ele. Em ambos os casos, observa-se com efeito a mesmainversão da relação entre o emissor e o receptor, pois é, afinal, osegundo que se vê significado pela mensagem do primeiro: a música sevive em mim, eu me ouço através dela. O mito e a obra musical aparecem,assim, como regentes de orquestra cujos ouvintes são os silenciososexecutores. (LÉVI-STRAUSS, 1991, p. 26)

A música surge em Lévi-Strauss como uma linguagem na qual oexecutor do seu significado é o ouvinte. É este quem realiza o objetivo damúsica recebendo-a. Seja ouvindo sua ária preferida, ou assistindo ao showde sua banda predileta, o significado da música faz-se na audição. Ou seja,assim como no mito, a mensagem cultural veiculada na música ressoa naqui-lo que o ouvinte fará com ela. Lévi-Strauss não está falando apenas de umsignificado pessoal que a música traria, como que confortando o ouvinteperante sua moral. O ato de ouvir música desperta, na estrutura psíquica,reminiscências coletivas. Para Lévi-Strauss a música rege no inconsciente,tal como o mito, uma dança dos signos.

Com Benjamim e Lévi-Strauss construímos o lócus da pesquisa:no encontro da música com a experiência do seu ouvinte. Mas nosso objetoé um grupo, aquele formado a partir da experiência do heavy metal. Cabeentão fazermo-nos uma outra pergunta: a música pode ser compreendidacomo um elemento formador de coletivos?

Para Jacques Atalli a música é mais do que um objeto de estudo,“elle est un moyen de percevoir le monde. Un outil de connaissance”6. Amúsica é compreendida pelo autor como um espelho dos processos sociais.Dessa forma, tanto a fundação do social quanto sua transformação podem

6 ATALLI, 1977, p. 9. A música é mais do que um objeto de estudo: ela é ummeio de perceber o mundo. Um instrumento de conhecimento.

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ser identificadas na música que as sociedades produzem: “Avec la musiqueest né le pouvoir et son contraire: la subversion”7.

A música é profética. Nela são ensaiadas transformações sociaisvindouras. Atalli ilustra seu argumento mostrando como a música prefiguroutransformações culturais ocorridas com o surgimento do mercado.

A perspectiva de Atalli encaixa a peça que nos faltava para com-por uma visão da transformação da música em sociedade, e das transforma-ções das sociedades expressas na(s) sua(s) música(s). Experimentar a músi-ca pode desencadear sociabilidades organizadas a partir dessa própria expe-riência. Nessa reflexão, a música, além de um veículo de comunicação, deuma linguagem, é o próprio fundamento do coletivo. Ouvindo a identidadeque nela trafega, agencia-se a formação do grupo.

Para o antropólogo o campo, às vezes, assemelha-se a um labirin-to. A cada dado coletado, em cada nota registrada, nas nuanças que o objetovai mostrando ao longo da pesquisa, abrem-se outros caminhos não perce-bidos previamente. Encruzilhadas nas quais precisamos decidir se vendere-mos a alma ao demônio ou seguiremos pios em nosso trajeto. E nos desdo-bramentos da pesquisa a teoria ajuda a guiar nossos passos. A tradiçãoantropológica indica, como conselhos daqueles que já passaram pelo labi-rinto, por qual caminho é mais proveitoso ir ou por onde encontraremoslodaçais e carapuças. Contudo, não podemos encontrar nossa jornada senão equilibrarmos os conselhos prévios com nossa, digamos, intuição. Umtato, um farejo, que nos faz visualizar saídas previamente não experimenta-das. A teoria acima proposta será tratada abaixo dessa forma.

Desenvolv imentoDesenvolv imentoDesenvolv imentoDesenvolv imentoDesenvolv imento

O tipo de show de heavy metal que analiso é o show de bandaslocais8. Essas apresentações acontecem quase em todos finais de semana,não só em centros regionais, mas em cidades menores também. As bandasque tocam nesses shows ainda buscam o reconhecimento do público. Algu-mas já conseguiram lançar um cd ou uma fita-demo bancando os custos, masgrande parte das bandas ainda não possui material gravado. Esses showsacontecem em bares com alguma estrutura ou em casas de shows pequenas,pois o público não passa de 500 pessoas. O preço do ingresso é estipulado

7 Idem, 1977, p. 13. Com a música nasce o poder e seu contrário: a subversão.8 Outros tipos são os festivais e shows com bandas estrangeiras

reconhecidas pelo público.

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de acordo com a quantia que o dono do bar pede, pois as bandas nãorecebem nada e ainda usam seus próprios equipamentos no show. No Brasilas bandas que tocam nesses shows são nacionais; raras vezes uma bandaargentina, uruguaia, ou paraguaia tocam por aqui. Nesses shows os partici-pantes do underground9 são protagonistas. São eles quem produzem, to-cam, e assistem.

O underground não possui lugares estabelecidos para realizarseus shows. Às vezes em bares, outras em casas de shows pequenas, asapresentações circulam por espaços na cidade. Os integrantes das bandasestão constantemente a procura de um lugar adequado que possa abrigarseus shows. Em certos períodos de tempo surgem referências. Um lugar noqual o proprietário aceita os shows. Mas ao longo dos anos não se estabe-leceu nenhum espaço específico como referência para os shows de heavymetal em Curitiba. Os primeiros shows do underground heavy metal acon-teciam no restaurante universitário central da Universidade Federal do Paraná,no teatro universitário de Curitiba, e numa casa de shows chamada Let’sdance. Ao longo da década de 90 aconteceram apresentações nos baresMamão café, Bill’s bar, Arcadas do rock, Tuba’s bar, e Lino’s. Se não foipossível estabelecer um local específico como referência do undergroundheavy metal, contudo, o Largo da ordem ficou conhecido como a região dacidade na qual o heavy metal poderia se expressar. No centro velho dacidade, um espaço noturno já reconhecido pelos freqüentadores da boêmiacuritibana, ficava ou fica a maioria dos bares citados. Quando não há showsas pessoas se encontram nos bares do Largo ou se acomodam em seuschafarizes, escadarias, e meio-fios. Numa breve caminhada começando norelógio das flores e indo até o chafariz do cavalo, podemos ver os gruposse formando. Um olhar mais cuidadoso pode perceber quais são as “galeras”presentes no Largo naquela noite. Pois se os headbangers10 estão por lá, osrappers e os punks também fazem da região seu “point”. Dessa forma, sefôssemos esboçar um “circuito”11 do heavy metal na cidade de Curitiba,encontraríamos um traçado que muda de acordo com os bares nos quais osshows possam acontecer, mas tendo o Largo da ordem como seu perímetropreferencial.

9 Underground é o termo utilizado pelos participantes na denominaçãodo grupo. Daqui a diante me reportarei ao grupo neste termo.

10 Headbanger é como o participante do underground se auto-denomina.O termo provém da forma de dançar a música do heavy metal, chacoalhando a cabeçapara frente e para trás.

11 MAGNANI, 1984.

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Na prática do underground quem organiza toda a estrutura de umshow são os próprios músicos. Da divulgação ao controle de vendas deingressos, passando pela montagem do palco, são responsabilidades dosintegrantes das bandas. Não houve um show que acompanhei no qual aprática não se deu dessa maneira. O show começa meses antes da apresen-tação, quando alguns integrantes saem à procura de lugares para tocar.Estabelecido um lugar e uma data, convidam-se outras bandas para tocarnaquela noite. A escolha das bandas convidadas se dá, geralmente, porcritérios de amizade ou por afinidade de estilo12. Definidas as bandas, parte-se para divulgação. No underground heavy metal a divulgação é feita emdois veículos principais: cartazes e panfletos, e no boca-a-boca. Um dosintegrantes que possui habilidades de colagem prepara o cartaz no qual sefaz presente as logos das bandas, local e data do show, e preço do ingresso.O panfleto é idêntico ao cartaz, só que em tamanho reduzido. Os outrosintegrantes saem pelas ruas a colar os cartazes nos locais freqüentadospelos headbangers, e pelos caminhos centrais da cidade. Andando pela ruaXV, entre a praça Osório e a praça Santos Andrade, podemos ver, colados empostes e muros, cartazes de shows passados e que ainda estão por vir. Ospanfletos são deixados nos balcões de lojas de cds, e nos locais freqüenta-dos pelas pessoas do grupo. Eles se misturam com cartazes e panfletos deshows de forró, de MPB, de raves, e de shows punks. O headbanger comalgum tempo de freqüência no grupo sabe distinguir os cartazes de heavymetal pela forma como estão escritos os nomes das bandas, e pela iconografiaàs vezes usada nos cartazes. Já pelo boca-a-boca, as bandas que irão tocarno show, assim como seus amigos mais próximos e namoradas, vão falandopara quem encontram da rede sobre o show que irá “rolar”. Não demoramuito para que as pessoas do grupo fiquem sabendo do show. São poucase se encontram muito freqüentemente. Raramente as bandas conseguem queseus shows sejam divulgados na rádio. Quando acontece é no programaRock Animal, da estação 96.3 FM, especializado em heavy metal e produzi-do por pessoas com alguma inserção no grupo. Divulgação pela Tv não écogitada. Feita a divulgação, o que resta é esperar pelo dia do show ensaian-do as músicas que serão executadas na apresentação. No dia do show todas

12 Se uma banda tem uma relação mais próxima de outra, tocam juntasfreqüentemente, ou se o estilo que fazem é semelhante, também há possibilidades quesubam no palco na mesma noite. Num show que acompanhei a banda que abriu asapresentações da noite tinha como baixista o ajudante de palco da banda que tocaria logoapós. Esse já era o terceiro show que ambas faziam juntas. Em outras ocasiões acompanheishows voltados para tipos específicos de estilos musicais. Fui ao IV Curitiba doom metalfestival e assisti ao III butchery splatter metal fest.

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as bandas entram numa espécie de mutirão. Aqueles que tem carro ficam nafunção de pegar as caixas amplificadoras e trazer para o local da apresenta-ção; chegando o equipamento começa o trabalho de montagem do palco. Osbateristas vão montando seu instrumento, o que demora mais. Aqueles queentendem de eletrônica, seja por profissão, seja por experiências prévias emoutros shows, vão distribuindo os amplificadores pelo recinto, tomandocuidado para que a acústica do show seja boa e que o som não saia“embolado”. Como os equipamentos não são os melhores do mercado, osmúsicos, agora técnicos de som, vão testando as melhores formas de arru-mar o palco na intenção de tirar o maior proveito possível do que dispõem. Àfalta de qualidade dos equipamentos, tem-se a astúcia dos músicos. En-quanto cuidam dos equipamentos, alguns amigos vão pendurando faixascom as logomarcas das bandas na parede atrás do palco, e os donos do localvão colocando bebidas para gelar. O ambiente começa a ganhar uma impres-são de show; o clima de heavy metal, como uma névoa, adensa; parte dosignificado que tem para aquelas pessoas fazer parte do underground mate-rializa-se nesse mutirão pelo show. Além do ruído causado pelas conversasanimadas, essas tardes de organização dos shows são embaladas por muitoheavy metal reverberado do cd player. Quando um cd acaba, todos os pre-sentes no recinto entram numa disputa acirrada para decidir qual será opróximo cd a rodar e a animar a labuta.

A indumentária do headbanger é essencial. Pelo seu vestuáriomostra que faz parte do grupo e reconhece aqueles que compartilham ohabitat. Nos seus cotidianos, quando podem, estão usando alguma peçavisível de roupa preta. Mas é na hora do show que o visual ganha umaimportância maior. Nesse evento a produção do vestuário deve ser impecá-vel. Mauss mostrou como no sacrifício é necessário que todos os elementosexternos estejam presentes para que se obtenha êxito com a cerimônia13. Nãodeve haver lacunas. Fazendo uma analogia com o show, um dos elementosnecessários para que este garanta sua eficácia, tanto para quem toca quantopara quem assiste, é a presença do vestuário heavy metal. E este tem regraspara seu uso. Para os homens a calça é imprescindível. Excluindo o baterista,que não fica em pé durante a apresentação, todos devem vestir calças, pre-tas ou jeans14. No torso, uma camiseta com a logo de alguma banda dounderground impressa. É bem comum quando uma banda toca em outracidade que não a sua, alguém vestir a camiseta de uma banda da cidade na

13 MAUSS, e HUBERT, 2001.14 Discutindo gostos musicais com um participante, ele me disse: “não

gosto daquela banda porque eles usam bermuda”.

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qual estão tocando. Dizem que é para “dar apoio, mostrar a união”. Ummoletom preto é possível, e a clássica jaqueta de couro é a peça mais usadanos shows. Se fôssemos descrever uma hierarquia dos componentes dovestuário headbanger o couro figuraria em primeiro lugar. Ele define o ves-tuário do heavy metal. O jeans e a malha de algodão são aceitáveis, maspodemos dizer que o couro aumenta as possibilidades de identificação da ban-da com o estilo. Sobre a banda que usa couro em seus shows, são deitadosolhos positivos. No vestuário feminino o couro aparece em saias, jaquetas, esobretudos15. Tatuagens, piercings, e cabelos longos também são comuns en-tre os headbangers. O vestuário é monocromático. A cor preta dá o tom16.

Surgia, não só nos discursos das bandas durante suas apresenta-ções, mas também em entrevistas e conversas, a idéia de apoio aounderground. Os participantes sublinhavam recorrentemente a necessida-de dos próprios participantes apoiar o underground. Apoiar, prestigiar, aju-dar, e comparecer, eram verbos empregados para se remeter ao tipo de inser-ção que a pessoa precisava ter em relação ao grupo. Essa categoria, enfatizadapelos nativos, mostrou-se uma chave fértil na compreensão do que signifi-cava o underground para aqueles que o constituísse. Era necessário, pois,averiguá-la.

Em uma entrevista feita com um participante da rede, indagando-o sobre o que era esse apoio ao underground, ele me responde: É compare-cer nos shows, comprar nossos cds, conhecer o que tá rolando em outrascidades. Não adianta o cara ficar só indo em show de banda gringa, com-prando os cds desses caras, tem que apoiar o que é feito aqui na cidade,aqui no Brasil. Só assim vamos crescer.

15 Robert Walser (WALSER; 1993) discute a construção da identidademasculina no heavy metal. Não averigüei essa temática em minha pesquisa, mas valesalientar que o número de mulheres presentes nos shows que acompanhei era considerável.Contudo, elas estavam presentes como público. Das 25 bandas curitibanas que assistiapresentando-se, somente em 2 delas havia mulheres como integrantes.

16 Nos shows que acompanhei tinha uma dificuldade em criar algumdistanciamento com o evento. Conhecia as pessoas, apreciava as músicas. Antes dedecidir fazer a pesquisa, esses shows eram a minha diversão, na qual qualquer senso deresponsabilidade se dissipava. Uma das táticas que adotei na intenção de conseguir produziralgum tipo de reflexão no campo foi usar roupas brancas nos shows. Por um lado a táticase mostrou extremamente valiosa na medida em que as pessoas do campo me estranhavam.Se não me conheciam, seus olhares denunciavam seus pensamentos: “o que esse cara tafazendo aqui, de camiseta branca e com um caderno na mão?” Por outro lado, usar roupasbrancas nos shows me deixou sublinhado no campo. Eu era um ponto branco no meio deum mar negro, e isso me causava um certo constrangimento. Eu era notado num momentoque a discrição me era mais proveitosa.

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Um outro participante, tratando da mesma questão, comenta: Se apessoa curte mesmo a música, se tem o metal no sangue, ela não pode ficarna sua casa ouvindo seus cds. Ela tem que ir lá no show das bandas daqui.Tem que mostrar a cara. Pô, você vê um monte de carinha andando por aicom camiseta de banda. Lá no cefet tá cheio de metaleiro (na pronúnciadessa última palavra o entrevistado muda o tom de voz, dizendo-a como quedesdenhando as pessoas a quem ela possa referir). Mas na hora do showdas bandas de Curitiba, que fazem um trabalho por amor a música, queralam sem grana, sem lugar pra ensaiar, pra tocar, aparece 100, 200 pes-soas. O metaleiro tem que virar headbanger.

O apoio ao underground se traduz na prática. Nesses trechos deentrevistas manifesta-se no “ir aos shows”, comprar os cds das bandas, sefazer presente. Apoiar o underground significa entrar nele e interagir comele. Para os participantes não basta que a pessoa aprecie a estética musicaldo heavy metal. Como percebemos no segundo trecho citado, não basta“ser metaleiro”. Para se tornar um headbanger é necessário vivenciar oheavy metal além de sua escuta, participando do grupo constituído, dounderground nas vozes do nativo, do grupo em minha fala.

Como podemos perceber na organização dos shows e na dificul-dade que as bandas encontram para conseguir lançar seus álbuns, ounderground é precário em suas condições. Os shows são produzidos emsua totalidade, desde o contato com o local da apresentação até a montagemdo palco, pelos músicos. As bandas que pretendem lançar álbuns arcam comos custos das gravações. As gravadoras fazem o trabalho de distribuiçãoapenas, e do lucro obtido com as vendas a maior parte fica com estas, so-brando 10% para as bandas17. No entanto não podemos compreender ocomprometimento requerido pelo underground como resultado dessa pre-cariedade. Não é por ter dificuldades materiais que ecoa no grupo esse cha-mado ao apoio de seus participantes. Certamente, quanto mais pessoas indoaos shows e comprando cds, mais reconhecimento e condições materiaisterão as bandas. No entanto a definição desse apoio passa antes pela cons-trução do seu significado simbólico18. O significado do comprometimento se

17 Conversando com uma banda curitibana que fez um contrato dedistribuição de seu cd com uma gravadora de São Paulo, fico sabendo que o cd seriavendido por 20,00 reais. A cada cd vendido, 2,00 reais seriam repassados à banda. Essesvalores são de 2004.

18 O fundamento teórico para se pensar a relação entre a estrutura mate-rial e a organização simbólica de um fenômeno cultural pode ser encontrada em Sahlins,por exemplo. Em seu texto La pensée bourgeoise: a sociedade ocidental enquantocultura, o autor apresenta elementos dos hábitos alimentares e de vestuário dos norte

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relaciona com o sentido atribuído para o próprio underground pelas con-cepções apresentadas por seus participantes. Precisamos, pois, abarcar es-sas concepções, e elas surgem de maneira elementar no sistema de classifi-cações do underground heavy metal: o real e o falso.

Tais termos, real e falso, classificam as pessoas e as bandas navisão de mundo do grupo. Uma pessoa ou uma banda é real ou falsa deacordo com a relação que estabelece com o underground. O real é o termopositivo. Quem é denominado real tem seu comprometimento com o gruporeconhecido pelos seus pares. Ele vai aos eventos, conhece a cena de suacidade, “luta pelo underground”. Normalmente o real tem um tempo deconvivência no grupo maior, ele tem experiência de underground. Nas rodasde conversa quem mais fala, contando histórias do passado do grupo eshows memoráveis, são pessoas consideradas reais. O comprometimentoque o termo real nomeia não é apenas da ordem do externo, ou seja, dapresença nos eventos, mas também interno, afetivo. Aquele que se conside-ra ou é considerado real deve ter um “amor incondicional pelo heavy metal”,“ter o heavy metal no sangue”. O real precisa ter introjetado tudo aquilo queo underground representa. Quem é real é distinto, e essa distinção é reco-nhecida pelo grupo na biografia da pessoa, na sua história com o grupo, ouseja, no comprometimento prático e afetivo que mostrou ter para com ounderground ao longo dos anos. O falso, por sua vez, é o termo negativo.Nomeia pessoas inseridas no grupo, mas que não demonstraram ter efetiva-mente o comprometimento prático e afetivo do real. Diz-se do falso que “fazpose”, que porta-se como um headbanger mas não comparece aos shows,não conhece a cena heavy metal de sua cidade. O falso só conhece bandas“gringas”. Podemos dizer que o termo falso identifica aquilo que ounderground não quer, pessoas que usem a imagem do grupo para qualquerpropósito menos o de fortalecê-lo, pois o falso não diz respeito ao que éexterno ao underground, ele é um termo de classificação interna do grupo.Os próprios utilizadores desse sistema de classificação, do real e do falso,podem nos ajudar a compreender do que se trata. Reproduzo abaixo trechode uma entrevista publicada num zine underground. Cito pergunta e resposta:

americanos que não seriam determinados pelo mercado. Um alimento ou uma roupa temseu valor de uso definido na organização cultural daquele país. Assim, a determinação dovalor de troca dessas mercadorias não se restringe ao movimento de oferta e demanda.Compreender as determinações dos valores de uma mercadoria requer uma visualizaçãodo “(...)código cultural de propriedades concretas que governa a ‘utilidade’(...)”. Estetrabalho encontra-se em SAHLINS, 2003.

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9 – Hoje diversas hordas19 usam do death/black para se autopromoverem,e depois mudam radicalmente de opinião ideológica e do estilo musical.O que você tem a dizer sobre isso?Lord Seremoth: É lastimável que isso ocorra no movimento nacionale mesmo no exterior, mas o pior é ver que quando isso acontece temaqueles vermes que continuam apoiando esta atitude e dizendo que eles“evoluíram” musicalmente, ou que os mesmos precisavam fazer issopara ganhar mais “dinheiro”. (...)Todos os que são reais devem boicotar,execrar e expulsar estas falsas bandas do nosso meio. Devemos apoiar asbandas que mesmo com o passar dos anos se mostram firmes em suasideologias e estilo musical, sem aceitar idéias modernas, sem se vendernem se prostituir musicalmente. O black e o death devem ser feitos porideologia underground, nunca por interesses $$ (financeiros) ou de$uce$$o. Não podemos dividir o palco com estas bandecas falsas,melódicas, estrelinhas e panelinhas. Todos os reais, nunca devem comprarcds ou demos, nem nada destas bandecas e nem ir aos seus shows ouentrar em contato, ou seja, deixá-los para o puro esquecimento que é olugar deles.20

A pergunta já levanta a questão do falso. Mudar a “opinião ideo-lógica” e o “estilo musical” são percebidos como traições ao grupo. Notrecho citado, o underground, o “death/black” é entendido como uma pro-moção individual da banda, em detrimento da união e crescimento coletivodo grupo. A resposta não poderia ser mais esclarecedora. O real deve dis-tanciar-se das bandas que fazem música almejando interesses financeiros oufama e reconhecimento fora do underground. A banda real faz sua músicapor “ideologia underground”. Qualquer mudança que possa estar sendoengendrada no que seja essa ideologia da qual nos fala o trecho citado, évisto como perigosa pelo grupo, e assim é classificada sob o termo falso.

Não raro a prática do underground é entendida pelos seus parti-cipantes como uma luta. No editorial de um zine lemos: durante todos essesanos de batalha que eu sigo dentro do cenário underground(...)21. Naseção de contatos de outro zine um leitor escreve: escrevam-me somentereais apreciadores da arte negra que lutem para que a chama dounderground não se apague.”22. Se o underground é uma luta seus partici-pantes são guerreiros: quero me corresponder com reais guerreiros de es-

19 O termo horda é usado, às vezes, para referir-se a banda.20 Unholy Black Metal Zine. Vol. 1.21 Idem22 A Obscura Arte. Vol. 9.

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pírito impuro e sedentos por guerra; seres que apóiam os verdadeiroshinos de destruição e blasfêmia(...)”23

Para o pesquisador a luta é uma metáfora da condição dounderground. Para as pessoas é a forma como vivenciam sua experiêncianaquele grupo. E nessa batalha encampada pelo underground heavy metalos termos real e falso são forjados como armas. Defendem e atacam. Mas oque está em jogo nessa luta? O que está sendo disputado nessa batalha?

As músicas, as roupas, os temas aludidos, em resumo, o sistemacultural heavy metal oferece um quadro de referências para algumas pesso-as, o qual está em dissonância com seu entorno social. A relação estabelecidaentre o heavy metal como uma cultura não apenas musical e os elementossociais ao seu redor é de “atrito”24. Sendo assim, o underground se configu-ra como o espaço de manifestação dessa identidade. É nele que o heavymetal, usando a imagem de Bourdieu, passa de dominado a dominante. Aluta do underground visa uma manutenção da identidade heavy metal e doespaço no qual ele pode ser exercido na dominância. O trecho da entrevistacitada deixa claro esta posição. A resposta de “Lord Seremoth” enfatiza,negando seu contrário, a forma como as bandas underground devem proce-der. Não buscar o sucesso, a fama, e não visar lucro, ou qualquer retornofinanceiro, com seu trabalho. Numa palavra, as bandas que buscam a famaou o lucro, estão “se vendendo”, e assim, negando o sentido dounderground25. Almejando um reconhecimento mais amplo, e ou retornofinanceiro, as bandas estariam colocando em risco a autonomia (relativa) doheavy metal e do underground. Num texto não propriamente acadêmico,produzido por um “informante esclarecido”, o underground é descrito ten-do (...) uma forte carga ideológica, um sentimento de subversão ou nega-ção da ordem vigente26. É a defesa dessa “forte carga ideológica” do heavymetal decodificada no underground que figura como o sentido da luta sen-tida por seus participantes. Por essa interpretação podemos compreender omecanismo de seleção para que uma pessoa seja percebida como participan-

23 Idem.24 Sobre o conceito de atrito ver introdução de PAIS in PAIS e BLASS, 2004.25 Um caso exemplar é o da banda brasileira Sepultura. Começando suas

atividades em Belo Horizonte em 1985, com cinco anos estavam conhecidos em boaparte da Europa e dos Estados Unidos. A fama que alcançaram, bem como a quantidade deálbuns vendidos, fizeram com que o Sepultura fosse renegado pelo underground brasileiro.Entre vários comentários, durante a pesquisa, que ouvi sobre a banda, o julgamento eraunânime, eles são falsos. Quando alguém destoa dessa opinião é para defender que somenteos primeiros álbuns da banda são bons, quando eles ainda eram reais.

26 DUARTE, 2004.

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te do grupo. Um de meus entrevistados disse: eu não quero que o cara vánum show porque ouviu uma música e gostou, ou um amigo dele trouxe ocara pra ver um show e o cara acaba curtindo a banda. Ele tem que ouvirheavy metal por ele mesmo sabe, ele tem que ir atrás, descobrir a coisa porvontade própria.

O underground heavy metal é um grupo restrito. Como me disseum entrevistado: você pode até aparecer nos shows, mas se o pessoal nãosouber quem você é, e você não souber quem o pessoal é, você não está noshow. Para ser aceito como parte integrante dele, a pessoa precisa ter de-monstrado ao grupo que busca sua inserção “por vontade própria”, emnossas palavras, ao demonstrar que o heavy metal condiz com seus interes-ses. Mecanismo de seleção afetivo e pessoal, através do qual o grupo querperceber no “candidato” se suas intenções são compatíveis com a identida-de do heavy metal e seu espaço, o underground. Daí compreende-se aimportância que a imagem da biografia da pessoa representa para o grupo. Épela pessoalidade, só desvendada após um certo tempo na convivência como grupo, que uma pessoa será aceita como participante e, num segundomomento, poderá ser classificada como real. Esse construto prático de sele-ção dos participantes, assim como o mecanismo de classificação destes emreal e falso, são as armas do underground na luta pelo seu espaço, pela suaautonomia, pela sua identidade fundada no heavy metal.

O underground heavy metal, podemos dizer, constitui um merca-do paralelo de troca de bens simbólicos. Como as entrevistas nos mostram,o posicionamento do underground para com a indústria fonográfica27 é denegação. Todo o seu discurso pretende promover um distanciamento domainstream cultural. A identidade do underground está solidamente funda-mentada nesta tomada de posição. Ele se define na negação, tanto ideológi-ca quanto material, do mercado fonográfico.

Conc lusãoConc lusãoConc lusãoConc lusãoConc lusão

Poderia me dar por satisfeito terminando minha comunicação poraqui. A intenção da pesquisa é demonstrar, pela etnografia, como o

27 Quando falo de uma indústria fonográfica me remeto a quatro“conglomerados” que detêm 75% do mercado da música no mundo atualmente. São eles:EMI, Sony BMG, Universal, e Warner. A fonte destes dados é a International Federationof Phonographic Industry e podem ser acessados no sítio eletrônico www.ifpi.org

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underground heavy metal define-se na prática. Ou seja, indicar qual é oespaço cultural que ocupa.

Mas não há como não resvalar no insólito movimento de umapesquisa, no qual quando uma pergunta é respondida outra já irrompe emseu lugar. Se o underground heavy metal caracteriza-se em um distanciamentodo mercado fonográfico, da indústria cultural, o que o leva a tomar esseposicionamento? O que faz com que seus participantes tentem escapar dasdeterminações de meios de comunicação populares28 e organizem toda umasociabilização própria, toda uma cultura própria?

Desde já essa é uma pergunta que não podemos responder noestágio da pesquisa no qual nos encontramos. É necessário averiguar ou-tros elementos que fazem parte da organização do underground como umacultura. Mas é possível apontar caminhos para tal averiguação.

Como dito nos primeiros parágrafos deste artigo, o undergroundheavy metal não pode ser compreendido sem uma análise de sua música.Esta é sua faísca e sua cinza. O underground funda-se na música e consome-se na produção desta. Acredito que poderemos compreender o sentido cul-tural do discurso do underground heavy metal quando esboçarmos suacosmologia, e é na sua música que uma visão de mundo é produzida e veicu-lada. Estaríamos entrando, com essa proposta, no terreno daetnomusicologia?

A etnomusicologia surge no campo epistêmico da música, e nãono das ciências humanas. Segundo Menezes Bastos29 essa disciplina, inici-almente denominada musicologia comparada, nasce na Alemanha do séculoXVIII, na intenção de investigar sensações em relação aos sons, as propri-edades dos sons, a natureza dos intervalos e escalas, a noção de consonânciae outros temas, a partir de material coletado em sociedades “não-ocidentais”.

O material etnográfico ilustrava o argumento. O que se buscavacompreender eram estruturas musicais destituídas de qualquer relação comuma cultura. Com poucas alterações ao longo dos anos, a etnomusicologiamanteve essa perspectiva “musicalizante” da música até o surgimento deThe Anthropology of Music escrita por Merriam em 196430. O antropólogoamericano, aluno de Herskovits, colocava para a etnomusicologia a necessi-dade de abordar a música em um contexto amplo, ou seja, não a isolando da

28 Por populares quero dizer meios de comunicação reconhecidos e consumidospor um grande número de pessoas.

29 MENEZES BASTOS, 1994.30 MERRIAM, 1964.

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sociedade da qual é fruto. A música é entendida por Merriam como umalinguagem, um meio de interação social produzido por especialistas paraoutras pessoas. Ao mesmo tempo em que o estudo da música não deveperder de vista a própria música, pode também abarcá-la como veículo decrenças, identidades, de mitos, enfim, de cultura. A idéia proposta no ensaiocitado de Menezes Bastos nos oferece uma imagem propícia para entender-mos a proposição de Merriam: uma antropologia com música e uma músicacom homem31.

Sem a necessidade de estender a discussão teórica, forjada nahistória, da etnomusicologia, trago à baila a proposta de Merriam na inten-ção de fundamentar um olhar sobre a música do underground heavy metal.Analisando sua música, estaremos à procura de suas crenças, num termo, naforma como percebem o mundo a sua volta.

Quando empreendemos uma antropologia de grupos urbanos,precisamos levar em conta que nenhum ajuntamento citadino é autônomo.Certamente há uma busca por parte destes grupos de uma identidade pró-pria. Mas, como José Guilherme Magnani32 e Gilberto Velho33 nos ensinam,uma teia de significados une, em alguma medida, as inúmeras propostasidentitárias organizadas na cidade. Sendo assim, abarcando o significado dodiscurso do underground heavy metal, veiculado em sua música, procura-mos jogar luz no que venha ser este sistema cultural, a cidade.

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31 O nome do texto é Esboço de uma Teoria da Música: Para Além de umaAntropologia sem Música e de uma Musicologia sem Homem. Creio que as mudançasque fiz não alteram a idéia que o autor quis esboçar com o nome dado ao seu ensaio.

32 MAGNANI, 1992.33 VELHO, 1978.

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CIÊNCIA POLÍTICA

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APRESENTAÇÃO DA ÁREA DE CIÊNCIA POLÍTICA

A Ciência Política, nos últimos anos, tem buscando insistente-mente condições para uma análise aprofundada e balizada acerca dos fenô-menos que envolvem o comportamento político e as instituições políticas.De forma incisiva, esta área do conhecimento vem avaliando perspectivasque abordam desde atitudes e ideologias políticas até as relações de políticainternacional.

A relevância desses estudos tem mostrado uma grande eficiênciana capacidade de analisar tais fenômenos de um prisma teórico e empírico afim de transparecer aos olhos do leigo e do especialista os cernes funcionaisda política como um todo. Especialmente no Brasil, e neste sistema democrá-tico, a Ciência Política tem-se revelado sumariamente importante em vista dacomplexidade do sistema político e da pluralidade das camadas e regiões quecompõe a sociedade brasileira.

O objetivo aqui proposto por nós concentra-se na intenção dedemonstrar as contribuições científicas que a graduação em Ciências Soci-ais, e na Ciência Política especificamente, tem apontado para a sociedade epara o fomento da Ciência Política como campo de conhecimento acadêmicoe socialmente reconhecido. A escassez de publicações científicas degraduandos nos moveu em torno da Revista Sociedade em Estudos a fim dequalificar os estudantes para a vida acadêmica futura e publicar artigos quecorroborem com a Ciência Política no Brasil e também fora dele.

Não é pouco o interesse da sociedade em geral e de setores espe-cíficos na Ciência Política. Desde entidades não governamentais até parti-dos políticos têm demonstrado o constante interesse nas disposições que aCiência Política traz a tona de forma embasada. A necessidade de se promo-ver a Ciência Política revela-se não só na academia e na graduação, mas tambémhá uma necessidade social de que a mesma atinja posições de destaque.

Bruno Bolognesi (Coordenador)Julio Cesar Gouvêa (Coordenador)

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DESDÉM, MAS NEM TANTO: A RELAÇÃO DOS ELEITORES COM OS PARTIDOS.

Luciana Fernandes Veiga*

“Os partidos não servem para nada”.“O que a gente vê é umgrande troca-troca de partidos”.“Eu não voto no partido, mas napessoa”.Quem de nós ainda não ouviu uma destas frases? Todos já presen-ciamos pessoas dando tais depoimentos. Mas por que a rejeição e a des-crença são as primeiras manifestações do senso comum quando se trata doassunto partidos? Esta é a primeira de uma série de questões que pretende-mos discutir neste artigo. O tema desta comunicação é a relação eleitores epartidos.

A fim de delimitar bem o objeto do estudo, cabe pontuar que, nademocracia, os partidos políticos exercem duas importantes funções. Atuamna arena parlamentar e na arena eleitoral. O debate sobre a importância dospartidos na arena parlamentar tem apresentado grande enfoque nas causasda disciplina (ou indisciplina) partidária no Legislativo e nas conseqüênciasdeste comportamento para o Executivo1. Já o debate sobre os partidos naarena eleitoral está focado particularmente na identificação das percepçõese atitudes dos eleitores em relação às legendas e no peso da instituição nahora da decisão do voto. E é sobre a importância dos partidos na arenaeleitoral que vamos tratar aqui.

Nesta discussão, propomos a seguinte relação entre eleitor e par-tido:

1 – Os eleitores rejeitam os partidos. Agem assim porque acredi-tam que os partidos não cumprem o papel de representar o interesse dapopulação.

* Professora de Ciência Política da UFPR.Agradeço muitíssimo ao Emerson Urizzi Cervi pela ajuda nas análises

quantitativas.1 Veja alguns estudos recentes que abordam a importância dos partidos na

arena parlamentar: Amorim Neto & Santos(2003), Pereira & Muller (2003), Figueiredo& Limongi (2002). Todos estes artigos foram publicados pela revista Dados.

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2 – Os eleitores que rejeitam os partidos tendem a rejeitar tambémas demais instituições de representação política, particularmente, oLegislativo.

3 – Para além da rejeição inicial, os eleitores conhecem e constro-em uma imagem dos partidos.

4 – A imagem é dinâmica. O eleitorado está atento às posturas dospartidos diante dos fatos conjunturais. A partir desta percepção, o eleitor vai“ajustando” a sua avaliação das legendas.

5 – Os eleitores obtém informações sobre os partidos a partir dosmeios de comunicação.

6 – A construção da imagem dos partidos leva ao sentimento desimpatia e/ou antipatia em relação às legendas.

7 – A avaliação dos partidos influencia a decisão do voto.No artigo serão analisados dados levantados através do Eseb –

Estudos Eleitorais Brasileiros. O Eseb foi um survey realizado logo após aseleições de 2002 a fim de entender, esmiuçar o comportamento eleitoral dobrasileiro naquele pleito. A pesquisa foi realizada junto a 2513 eleitores detodo o país. A pesquisa foi resultado do empenho de algumas instituições,particularmente do Centro de Opinião Pública da Unicamp e do Datauff daUniversidade Federal Fluminense. O financiamento foi da Capes.

O trabalho consta de quatro partes. Em um primeiro momento aintenção é propor uma tipologia do eleitor a partir de sua relação com ospartidos. A seguir, o objetivo será discutir por que os partidos despertamrejeição nos eleitores. Na terceira parte, a discussão estará voltada para oconhecimento e a imagem que os eleitores têm dos principais partidos. E porfim, cabe avaliar como esta imagem influencia a decisão do voto.

Cabe registrar que todas as informações analisadas neste artigosão datadas e correspondem ao cenário pós-eleitoral de 2002. De lá para cá,já podemos perceber algumas mudanças na avaliação da imagem dos parti-dos, particularmente no caso do PT. A realidade de ocupar o governo federal,as orientações políticas no decorrer no mandato e o desgaste decorrente dacrise do mensalão afetaram a percepção do eleitorado em relação ao Partidodos Trabalhadores, conforme mostram pesquisas recentes realizadas porgrandes institutos e divulgadas na grande imprensa nacional.

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1. Proposição de uma tipologia do eleitor a partir de sua relação com os1. Proposição de uma tipologia do eleitor a partir de sua relação com os1. Proposição de uma tipologia do eleitor a partir de sua relação com os1. Proposição de uma tipologia do eleitor a partir de sua relação com os1. Proposição de uma tipologia do eleitor a partir de sua relação com ospar t idos .pa r t idos .pa r t idos .pa r t idos .pa r t idos .

Propomos a classificação dos eleitores em cinco diferentes tiposa partir da relação que travam com os partidos. Esta classificação pode serordenada em um espectro que vai do sentimento da absoluta rejeição àabsoluta aceitação/simpatia partidária. Para esta classificação dos eleitoresé preciso considerar quatro variáveis: o conhecimento sobre os partidos, apreferência partidária, a preferência partidária após insistência e a rejeiçãopartidária.

Quadro 1 - CLASSIFICAÇÃO DO ELEITORADO A PARTIR DE SUA RELAÇÃOCOM OS PARTIDOS

Quadro 2 - DEFINIÇÃO DE CADA TIPO DE ACORDO COM AS VARIÁVEIS:CONHECIMENTO, PREFERÊNCIA PARTIDÁRIA, PREFERÊNCIAPARTIDÁRIA APÓS INSISTÊNCIA E REJEIÇÃO

Lamentavelmente, esta classificação não pode ser totalmente tes-tada a partir dos dados do Eseb. Isso porque quando defrontamos a classi-ficação com os dados da pesquisa temos algumas limitações. O questionáriodo Eseb contou com algumas perguntas que medem o grau de conhecimentodos eleitores sobre a política de maneira mais geral, mas não existe um blocode questões que nos permite identificar o grau de conhecimento sobre ospartidos. Desta forma, embora insistamos em propor que existe um relaciona-do de alheamento baseado no total desconhecimento sobre os partidos, nãoserá possível mensurá-los neste artigo. A ausência de uma pergunta comresposta espontânea e única sobre a rejeição partidária é outro limitador para

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a aplicação da classificação. A partir dos dados, não temos a informaçãosobre quantos eleitores apresentam rejeição a um partido.

Mas apesar de todas as restrições, insistimos em apresentar taltipologia para que ela seja testada em futuros estudos. No momento, pode-mos mensurar apenas dois tipos de comportamento: do falso alheamento edo envolvimento por simpatia.

20,4% do eleitorado podem ser classificados como falsos alheios.O comportamento do falso alheio é singular. Em um primeiro momento, esteeleitor tende a negar qualquer preferência ou postura em relação a um deter-minado partido. Logo aciona o discurso do senso comum para justificar asua não postura sobre qualquer partido em específico. No entanto, diante deum pequeno estímulo logo revê a sua resposta inicial e manifesta então o seuapoio ou rejeição a um determinado partido.

Estes eleitores são facilmente identificados nas pesquisas de opi-nião realizadas a partir da técnica de discussão em grupos. O primeiro impul-so do eleitor é de registrar a sua desconfiança, mas logo a seguir, relaxa epassa a tratar dos mesmos demonstrando conhecê-los, avaliá-los e até mes-mo julgá-los, resultando em uma preferência partidária.

A partir da pesquisa Eseb, a minha proposição é que este compor-tamento de falso alheamento pode ser identificado com a ajuda da seguinteseqüência de perguntas:

35. De um modo geral, existe algum partido político que o (a) Sr(a)goste? (Espontânea e única)1. Sim 0. Não (pule p/ 38)

(...)38. Há algum partido que o (a) goste mesmo que seja um

pouquinho? (Espontânea e única)1. Sim 0. NãoEstão sendo considerados falsos alheios aqueles eleitores que

em um primeiro momento recusam a manifestar qualquer preferência partidá-ria, mas diante da insistência presente na pergunta 38 manifestam apoio a umpartido. Em suma estou propondo que existe um segmento do eleitorado queem um primeiro momento parece não ter qualquer preferência partidária, masque acaba demonstrando possuí-la diante do menor estímulo. Acredito queesta colocação seja relevante inclusive porque análises posteriores vãomostrar que tal preferência influencia também a decisão do voto, ainda quelevemente mais frágil.

A porcentagem de eleitores que manifestaram gostar de algumpartido soma 48.8%, estes foram aqui denominados de eleitores comenvolvimento por simpatia.

Em suma, a exposição desta classificação dos eleitores tem comoprincipal objetivo apresentar um novo segmento que a princípio pode pare-

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cer alheio aos partidos, mas que apresentam uma postura positiva sobre osmesmos. Veremos no no item 4 deste artigo que tal sentimento influencia adecisão do voto.

2 - Por que os eleitores desconfiam e rejeitam os partidos em um2 - Por que os eleitores desconfiam e rejeitam os partidos em um2 - Por que os eleitores desconfiam e rejeitam os partidos em um2 - Por que os eleitores desconfiam e rejeitam os partidos em um2 - Por que os eleitores desconfiam e rejeitam os partidos em umprimeiro momento?primeiro momento?primeiro momento?primeiro momento?primeiro momento?

Fica evidente na classificação acima a centralidade da rejeiçãoaos partidos no comportamento dos eleitores. Este tema já foi abordado pordiversos autores. Para Baqueiro (1996), por exemplo, o distanciamento doeleitor dos partidos pode ser justificada pela insatisfação dos cidadãos faceà incapacidade do sistema partidário em canalizar suas aspirações.

O objetivo nesta etapa do artigo é avançar no debate sobre ascausas da atitude negativa dos eleitores em relação aos partidos. A partirdos dados levantados pelo Eseb, podemos verificar que a má avaliação dospartidos não deve ser analisada de maneira isolada. Tal atitude está inseridaem um campo de rejeição maior, a indisposição de modo mais geral com umgrupo das instituições democráticas. Como aponta a análise a seguir2, existeuma significativa e forte correlação entre a avaliação da atuação dos parti-dos políticos e a avaliação da atuação do Governo Federal, da Justiça e doCongresso Nacional. Cabe salientar que a correlação é ainda maior entre aavaliação da atuação dos partidos e a avaliação do Congresso Nacional. Selançarmos mão do coeficiente de determinação, veremos que a avaliaçãopositiva ou negativa dos partidos depende em 34,4% da avaliação na mesmadireção das atitudes do Congresso.

Tabela 1 – CORRELAÇÃO ENTRE A AVALIAÇÃO DA ATUAÇÃO DOS PARTIDOSPOLÍTICOS E A AVALIAÇÃO DA ATUAÇÃO DE OUTRASINSTITUIÇÕES

2 O coeficiente de correlação linear é utilizado para avaliar o grau deinter-relação entre duas variáveis.

3 A justificativa para a utilização do coeficiente de correlação de Spearmane não do coeficiente de Pearson é porque a análise envolve a correlação de variáveiscategóricas.

3 3

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Desta maneira, cabe fazer uma análise a respeito da desconfiançados brasileiros nas instituições democráticas de maneira mais geral. Nesteponto cabe citar o artigo de Moisés (2005), A desconfiança nas instituiçõesdemocráticas, em que ele se propõe a entender por que os brasileiros aomesmo tempo em que apóiam o regime democrático per se, revelam umaampla e contínua desconfiança em suas instituições. Entre outras análises, oautor faz uma revisão teórica sobre os modelos que se propõem explicar aerosão da confiança dos cidadãos nas instituições públicas. Fazendo umbreve resumo das teorias que ele apresenta, temos:

Teorias sócio-psicológicas: Propõem que em decorrência da his-tória psicológica, os indivíduos demonstram ter uma postura mais positivaou negativa da vida e assim estão mais ou menos dispostos a cooperar econfiar nos outros, inclusive em autoridades e funcionários de governos.

Teorias sócioculturais: A partir de Almond e Verba, essa perspec-tiva propõe que as idéias – valores – fundadoras da sociedade são expres-sas na cultura política e marcam as percepções das pessoas a respeito dogoverno, autoridades e instituições políticas.

Teorias do desempenho econômico: Propõem que a confiançavaria de acordo com a avaliação cambiante dos cidadãos a respeito daperformance na economia do governo e dos políticos.

Teorias institucionais: Propõem que a justificação e os padrõesde funcionamento das instituições explicam as causas da confiança. Essaabordagem sustenta que a confiança distribui-se aleatoriamente entre dife-rentes tipos de personalidades individuais, contextos socioculturais e pa-drões de desempenho econômico do governo.

Moisés se aproxima da teoria institucional ao sustentar que “aconfiança nas instituições radica-se na avaliação que os cidadãos, partindode sua experiência, fazem do modo como aquelas desempenham a missãopara a qual foram criadas”.

Os dados do Eseb corroboram a proposição de Moisés. A primei-ra reação dos eleitores em relação aos partidos é de rejeição. Esta rejeiçãopode ser parcialmente explicada pela percepção de que os partidos políticosnão cumprem o seu papel de representar os interesses do povo e se atêmapenas a seus interesses imediatos. Ou seja, a justificação dos partidospolíticos que é a representação dos interesses do conjunto da populaçãonão corresponde a como os eleitores percebem os padrões de funcionamen-to dos partidos. Em síntese, este intervalo entre o motivo da existência e o

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desempenho da instituição propriamente dito resume parcialmente as cau-sas da rejeição e da falta de confiança.

Tabela 2 – OPINIÃO SOBRE QUEM OS PARTIDOS DEVERIAM REPRESENTAR

Tabela 3 – OPINIÃO SOBRE QUEM OS PARTIDOS REPRESENTAM

Cabe registrar que em momentos de crise política envolvendo asinstituições democráticas – quer seja aumento da ineficiência diante de de-mandas sociais, corrupção, fraude e desrespeito de direitos do cidadão –existe uma tendência em aumentar a rejeição aos partidos políticos, congres-so, justiça e a classe política de maneira geral. Cabe lembrar, que nestesmomentos, os eleitores tendem a se sentirem ainda mais frustrados com odesempenho das instituições tendo em vista o motivo pela qual foram criadas.

3– Para além da rejeição, a imagem que os eleitores têm dos partidos3– Para além da rejeição, a imagem que os eleitores têm dos partidos3– Para além da rejeição, a imagem que os eleitores têm dos partidos3– Para além da rejeição, a imagem que os eleitores têm dos partidos3– Para além da rejeição, a imagem que os eleitores têm dos partidos

Definitivamente, os partidos não são o critério determinante eúnico para a decisão do voto hoje no Brasil. De acordo com os resultados doEseb, apenas 3% dos eleitores consideram o partido o item mais importantena hora da decisão do voto. Mas entendemos que entre ser o fator decisivodo voto e não ter qualquer importância na hora da decisão há um espaçomuito vasto.

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Tabela 4 – ITEM MAIS IMPORTANTE NA ESCOLHA DE CANDIDATO APRESIDENTE (%)

Como já foi mencionado anteriormente, o nosso argumento é quepassada a rejeição inicial – que não atinge apenas os partidos, mas váriasinstituições políticas – constata-se que os eleitores conhecem as principaislegendas e que têm uma vaga imagem do quadro partidário.

Em 2002, os quatro partidos mais conhecidos por parte do eleito-rado eram PT, PMDB, PSDB e PFL. Neste cerne do sistema partidário, o PTera visto como o partido de esquerda por excelência. O seu vizinho no espec-tro ideológico era o PMDB. Um pouco mais à direita estavam o PSDB e oPFL.

Este ordenamento ideológico apontado pelos eleitores comparti-lha parcialmente com aquela classificação predominante entre os cientistaspolíticos e jornalistas em que o PT ocupa a esquerda, o PMDB e o PSDBocupam o centro e o PFL ocupa a direita. No entanto, é preciso chamar aatenção para dois aspectos. Primeiro, os partidos de centro parecem tercaminhado para a direita na perspectiva dos eleitores que os classificaram demaneira muito próxima do PFL. Segundo, os eleitores ordenaram o PSDB àdireita do PMDB, contrariando uma percepção predominante de que o PSDBse localiza mais a esquerda do PMDB. Em uma classificação realizada porKinzo em 1993, o PSDB seria considerado um partido de centro esquerdaenquanto o PMDB seria um partido de centro. Em suma, o que fica claro éque após oito anos de governo Fernando Henrique e de sua aliança com oPFL associados com a enfática oposição do PT, o PSDB “endireitou” naperspectiva dos eleitores.

Tabela 5 – GRAU DE DESCONHECIMENTO(%)

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Tabela 6 – CLASSIFICAÇÃO DOS PARTIDOS EM DIREITA/CENTRO/ESQUERDA(%)

A partir desta visão do sistema partidário, os eleitores passaram aavaliar os partidos. Quatro em cada dez eleitores afirmaram que algum parti-do político representa a sua maneira de pensar. No pleito de 2002, o PTchegava a representar a maneira de pensar de 23% dos eleitores. Posterior-mente veremos que esta identificação não é socioeconômica tal como acon-tecia na década de 70. Trata-se de uma maneira distinta de representação.

Tabela 7 – ALGUM PARTIDO POLÍTICO REPRESENTA SUA MANEIRA DE PENSAR

Tabela 8 – PARTIDO QUE MELHOR REPRESENTA SUA MANEIRA DE PENSAR

Não 56.30

Sim 38.68

NS 4.46

NR 0.56

Total 100.00

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Ainda de acordo com os dados do Eseb, 47,9% dos eleitoresmanifestaram gostar de algum partido político. Esta taxa está muito próximada taxa média de preferência partidária identificada por Carreirão eKinzo(2004). A partir de um conjunto de pesquisas do instituto Datafolha, osautores elaboraram uma curva da taxa de preferência partidária dos eleitoresentre 1989 e 2002. A taxa teria variado entre 41% e 54% ao longo destes anos,com uma média de 46% para o conjunto do período. É fácil perceber que o PTcresceu significativamente ao longo dos últimos anos, no entanto, de acor-do com Carreirao e Kinzo o crescimento do partido não chegou a afetar a taxade preferência partidária porque enquanto a preferência pelo Partido dosTrabalhadores crescia, a preferência pelo PMDB decrescia.

Tabela 9 – GOSTA DE ALGUM PARTIDO POLÍTICO

Naquele momento pós-eleitoral, o PT contava com a simpatia de53.8 % dos eleitores que gostavam de algum partido político, o que represen-tava 25.6 % do eleitorado brasileiro. É fato que desde 1999, o PT vem lideran-do a preferência do eleitorado. Em segundo lugar no ranking ficou o PMDB,com apenas 7,2% da preferência. Mas mais do que 18.4% separavam os doispartidos naquele momento, pois para o PT, a curva de preferência partidáriaera ascendente e para o PMDB, o movimento da curva era descendente.

Tabela 10 – PARTIDO QUE GOSTA – 1º MENCIONADO

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Tal como já foi mencionado anteriormente, na pesquisa Eseb, foifeita uma segunda pergunta para aqueles que diziam que não gostavam dequalquer partido. Para estes era questionado se havia um partido que elesgostassem ainda que um pouquinho. 20,4% do eleitorado, que havia negadopreferência por algum partido na primeira pergunta, responderam afirmativa-mente a segunda questão. Retornando à tipologia sobre as possíveis rela-ções entre eleitores e partidos proposta neste artigo, sugiro que os falsosalheados tenham tendido a responder desta maneira, ou seja, em um primeiromomento negando e posteriormente aceitando, reconhecendo os partidos.Assim a partir dos dados podemos afirmar que 68% dos eleitores tinhamnaquele momento uma atitude positiva em relação a algum partido político.

Tabela 11 – EXISTE ALGUM PARTIDO QUE GOSTE MESMO QUE SEJA UMPOUQUINHO

Tabela 12 – PARTIDO POLÍTICO QUE GOSTA UM POUQUINHO

Os partidos despertam simpatia, mas também antipatia. E nestecaso, os eleitores tendem a rejeitá-los. O PFL é o partido que, naquele mo-mento, despertava maior rejeição entre as quatro grandes legendas. Cabe

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lembrar que no final do governo de Fernando Henrique, a disputa na basealiada (PSDB, PMDB e PFL) trouxe a público discussões e atos políticosabomináveis como a briga entre Jader Barbalho(PMDB) e Antônio CarlosMagalhães (PFL), que serviram para reforçar alguns estigmas que o partidojá carrega há algum tempo.

Tabela 13 – REJEIÇÃO PARTIDÁRIA: NÃO VOTARIA (%)

Assim podemos afirmar que superada uma rejeição inicial, os elei-tores demonstraram conhecer e ser capazes de avaliar as legendas. Alémdisso, demonstraram simpatia e rejeição pelos partidos. Resta agora umaquestão: O que justifica a preferência partidária? Ser um partido de pessoashonestas foi o argumento mais citado pelos eleitores ao justificarem a suapreferência. Podemos verificar, que apesar de todo o discurso históricoclassista do PT, apenas 6.5% de seus simpatizantes apontaram como princi-pal motivo para a preferência partidária o tipo de pessoa que ele representa.Ou seja, em 2002 a atitude pró-PT não era motivada por uma identificaçãosócio-econômica. O que estava atraindo os eleitores era o discurso da éticae da lisura na política.

O programa do partido foi citado como o segundo item mais im-portante na hora de justificar a preferência partidária. Exceção para os eleito-res que preferiam o PMDB. Entre os eleitores que disseram gostar destepartido, a legenda ser apoiada por autoridades religiosas foi o segundo itemmais mencionado na hora da justificativa da preferência. Já o item atuaçãopassada dos representantes do partido foi o terceiro aspecto mais importan-te entre os tucanos.

Tabela 14 – PREFERÊNCIA PARTIDÁRIA: O QUE É MAIS IMPORTANTE PARAQUE SE PREFIRA UM PARTIDO A OUTRO

PT 21.8

PFL 43.3

PSDB 33.8

PMDB 32.9

Geral PT PMDB PFL PSDB

O programa do partido 16.7 20.8 13.6 16.7 17.9

Ser um partido de gente honesta 51.1 50.5 42 42 41

Atuação passada dos representantes do partido 8 7.9 5.7 7.3 12.5

O tipo de pessoa que o partido representa 6.5 5.8 6.8 7.2 8.1

Ter amigos ou parentes no partido 2.4 2 5.6 2.4 1.8

Ser apoiado por autoridades religiosas 8 6.1 14.2 12 5.5

NS/NR 8 7 12 12.3 13

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Como já foi mencionado anteriormente, a imagem que os eleitoresfazem dos partidos pode variar ao longo do tempo. É fato que a realidade deocupar o governo federal e as orientações políticas no decorrer do mandatoafetam a percepção do eleitorado em relação aos partidos. Após oito anos degoverno FH, o PSDB passou a ser visto como um partido quase tão de direitaquanto o PFL. Já o Partido dos Trabalhadores com dois anos de governoLula está prestes a perder o seu diferencial de partido da ética, que semprecultivou.

Carreirão e Kinzo (2004) ao construírem a planilha que aponta ataxa de preferência partidária de cada partido no período de 1989 a 2002permitem a visualização do efeito da conjuntura na avaliação dos partidos.Seguem duas análises interessantes realizadas pelos próprios autores:

Observa-se no caso do PMDB, por exemplo, que, entre abril de 1989 emarço de 1990 – período de grande desgaste do governo Sarney e quandoas taxas de inflação chegaram a patamares elevadíssimos –, o partidosofre um declínio significativo em suas taxas de preferência. (pág.150)(Caide 19 para 11%)

No que se refere ao PT, o crescimento que ocorria até 1994 é revertidonaquele ano, possivelmente em função dos efeitos impactantes do PlanoReal. Na verdade, parece haver uma propensão ao crescimento dapreferência por esse partido nas fases em que a avaliação do governopiora (ao longo do governo Collor; após a desvalorização do real; noinício de 1999; e no final do governo Fernando Henrique); quando,porém, o governo está bem avaliado (durante quase todo o 1º mandatode Fernando Henrique), ou em momentos pré-eleitorais em que surgemcandidatos fortes de outros partidos (abril a setembro de 1989; julho aoutubro de 1994), as taxas de preferência pelo PT tendem a declinar.(pág.150)

Fiorina (1981) parece ter uma boa explicação para este processode mudança de imagem do partido realizado pelo eleitor. De acordo com oautor, os eleitores constroem uma postura partidária ao longo do seu proces-so de socialização política. A partir de então os eleitores tendem a monitoraras propostas e promessas dos partidos e uma vez o grupo no poder, oseleitores passam a avaliar o desempenho das legendas. Este julgamento daconjuntura vai sendo agregado à imagem das legendas, podendo reforçar oualterar a postura partidária dos eleitores. E a imprensa tem uma forte influên-cia neste processo, como mostra a tabela a seguir.

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Tabela 15 – INFLUÊNCIA DAS NOTÍCIAS NOS JORNAIS, RÁDIO E TV NOCONHECIMENTO DOS PARTIDOS DOS CANDIDATOS

4- A importância dos partidos na decisão do voto4- A importância dos partidos na decisão do voto4- A importância dos partidos na decisão do voto4- A importância dos partidos na decisão do voto4- A importância dos partidos na decisão do voto

Após analisarmos como os eleitores estavam percebendo os par-tidos, resta agora identificar quanto esta imagem influenciou a decisão dovoto. Um cruzamento simples entre as variáveis partido que gosta e intençãode voto para presidente – 1º turno já é capaz de evidenciar como os eleitoresque se simpatizavam com um dos seguintes partidos PT, PSDB, PPS e PSBvotaram em sua maioria nos candidatos da legenda, respectivamente: Lula,José Serra, Ciro Gomes e Anthony Garotinho.

Tabela 16 – PARTIDO QUE GOSTA – 1º MENCIONADO * INTENÇÃO DE VOTOPARA PRESIDENTE 1º TURNO

A tabela a seguir aponta a significativa relação entre a rejeiçãopartidária e a decisão do voto. Apenas 10% dos eleitores que rejeitavam o PTvotaram em Lula e 9.7% dos eleitores avessos ao PSDB votaram em JoséSerra.

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Tabela 17 – REJEIÇÃO PARTIDÁRIA POR INTENÇÃO DE VOTO PARAPRESIDENTE – 1º TURNO

O teste do qui-quadrado mostra que as diferenças são estatistica-

mente significativas (ao nível de 0,000) nas duas tabelas. Ou seja, preferir umpartido aumenta a probabilidade de o eleitor votar no candidato da legendae rejeitar um partido diminui a probabilidade do eleitor votar no candidato dalegenda.

Ao avançarmos em nossa análise, podemos constatar que a cor-relação entre a preferência partidária e o voto para presidente no primeiroturno de 2002 foi de 54,8% (Coeficiente de correlação – Spearman). Para estaanálise, foi pedida uma correlação linear entre a preferência partidária naslegendas PT, PSDB, PPS e PSB e o voto em seus respectivos candidatosLula, José Serra, Ciro Gomes e Anthony Garotinho. Não foi solicitada a cor-relação entre a preferência partidária em todos os partidos e o voto em todosos candidatos.

Por fim identificamos que o coeficiente de determinação entre apreferência partidária e o voto foi de 30%. Ou seja, o voto em um candidatodependia em 30% da preferência partidária do eleitor.

Uma vez identificado o peso da preferência partidária no voto,resta agora avaliar o peso da preferência partidária conseqüente do compor-tamento de falso alheamento. Ou seja, cabe saber se a preferência manifestapelo eleitor somente após a insistência influencia a sua decisão do voto. Oteste do qui-quadrado (significância ao nível de 0.000) mostra que a prefe-rência partidária neste segmento também aumenta a probabilidade do eleitorvotar no candidato da legenda. De novo, avançando na análise, identifica-mos que a correlação entre a preferência partidária e o voto neste caso é de48,2% e o coeficiente de determinação é 23,23%. Ou seja, a escolha do votoneste segmento foi determinada em 23,23% pela preferência partidária.

Lula Ciro Gomes José Serra Garotinho Outras respostas Total

Não votaria 10.3 15.7 48.6 16.8 8.6 100

Votaria 63.5 7.2 13.7 10.5 5.07 100

PT Não conhece o partido 33.3 2.8 19.4 19.4 25 100

Não votaria 60.2 6.6 15.9 10.4 6.93 100

Votaria 42.4 12.2 27.5 12.9 5.05 100

PFL Não conhece o partido 47.5 4.1 23.8 15.6 9.01 100

Não votaria 65.1 7.1 9.7 9.9 8.17 100

Votaria 42.4 10.4 29.5 12.9 4.77 100

PSDB Não conhece o partido 49.0 8.7 18.3 16.3 7.69 100

Não votaria 61.4 8.2 11.7 11.3 7.35 100

Votaria 45.6 9.8 27.5 12.1 5.04 100PMDB

Não conhece o partido 44.9 7.7 20.5 12.8 14.1 100

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Estes números terminam por fechar o perfil do eleitor falso alheio,trata-se de um eleitor que em um primeiro momento recusa-se a manifestaruma preferência partidária, mas diante de uma insistência acaba por dizê-la. Eesta preferência então manifesta tem considerável influência em sua decisãodo voto. Em 2002, este segmento representava 20.4% do eleitorado.

Estes dados apontam que deve ser uma preocupação dos parti-dos se empenharem na construção de uma imagem positiva no período entreeleições. Assim, estarão aumentando o seu campo de aceitação junto aoeleitorado e paralelamente reduzindo o seu campo de recusa. No campo deaceitação, em um momento eleitoral, as propostas e mensagens de maneiramais geral são captadas pelo eleitor como objetivas e aceitáveis. Já no cam-po da recusa, a propaganda será recebida como inaceitável e poderá ocorrerainda o efeito de contraste que faz com que o eleitor veja a diferença entre asopiniões próprias e as opiniões do partido maiores do que de fato são.

Muitas vezes, o sentimento pelo partido pode ser visto como umatalho para a decisão eleitoral. Neste caso, a princípio, o eleitor já descarta apossibilidade de voto nos candidatos das legendas que rejeita e se demons-tra mais atentos aos candidatos dos partidos pelos quais tem simpatia.

Em outros momentos, o partido pode ainda servir de avalista docandidato. Os eleitores tendem a sentir mais confiança e vontade de votarem um candidato se perceberem que ele pertence a um partido de pessoasmais honestas do que as demais legendas. É claro que se o eleitor já tiver acerteza de que o político é desonesto, não há partido que o alivie. A predis-posição para o voto também aumenta se o eleitor perceber que as propostasdo candidato já estão sendo realizadas por governantes do mesmo partido.

Conc lu sõesConc lu sõesConc lu sõesConc lu sõesConc lu sões

O objetivo deste artigo foi trabalhar a relação entre partidos eeleitores. A partir de um grupo de proposições apresentadas no início dotrabalho e após a análise, podemos concluir.

Os eleitores tendem a rejeitar os partidos. Mas a má avaliação daatuação dos partidos não é uma atitude isolada, ela está relacionada com aavaliação negativa do desempenho de outras instituições como a Justiça, oGoverno Federal e particularmente o Congresso Nacional.

Esta rejeição pode ser explicada pela percepção de que a justifica-ção dos partidos políticos não corresponde aos seus padrões de funciona-mento. Os eleitores acreditam que os partidos políticos não cumprem o seu

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papel de representar os interesses do povo e se atêm apenas a seus interes-ses imediatos. Ou seja, este intervalo entre o motivo da existência e o desem-penho da instituição propriamente dito explicam em parte as causas da rejei-ção e da falta de confiança.

A partir de sua relação com os partidos foi proposta uma classifi-cação dos eleitores, que pode ser ordenada da seguinte maneira em umaescala da rejeição a aceitação: alheio por insatisfação, alheio por desconhe-cimento, falso alheio, envolvido por rejeição e envolvido por simpatia. Ofalso alheio está sendo definido como o eleitor que em um primeiro momentorecusa a sua preferência partidária, mas em um segundo momento acabamanifestando-na.

Para além de uma rejeição inicial, os eleitores demonstram conhe-cer os partidos e possuir uma imagem dos mesmos. No entanto, é precisoentender que tal imagem é dinâmica e muda ao longo do tempo. O eleitoradotende ajustar a imagem dos partidos de acordo com a avaliação que fazem dodesempenho dos grupos diante dos fatos da conjuntura política. Desta for-ma, as imagens dos partidos descritas neste trabalho se referem ao períodoimediatamente após a eleição de 2002.

Neste momento o PT era o partido mais conhecido pelo eleitoradoe o que despertava maior simpatia. De acordo com os eleitores, o item maisimportantes para justificar a preferência por um partido era a percepção deque se tratava de um grupo de pessoas honestas. O programa do partido erao segundo item mais importante. Exceção para os eleitores que preferiam oPMDB, para estes o fato do partido estar apoiado por grupos religiosos erao segundo item mais importante para a opção.

A preferência e a rejeição partidária influenciaram a decisão dovoto. Em 2002, a escolha do voto em um dos quatro principais candidatos foideterminada em 30% pela preferência partidária. Já no segmento dos eleito-res falsos alheios a escolha do voto nos quatro principais candidatos foideterminada em 23,23% pela preferência partidária. Este segmento somavaem 2002, 20,4% do eleitorado.

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ORIGEM SOCIAL E CARREIRA POLÍTICA DE UMA ELITE: UM PERFIL DA ELITEPOLÍTICO-ADMINISTRATIVA PARANAENSE NO PERÍODO 1995-20021

Julio Cesar Gouvêa*

Resumo: O artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa “Quemgoverna? Mapeando as elites políticas e econômicas no Paraná con-temporâneo (1995-2002)” desenvolvida no Núcleo de Pesquisa emSociologia Política Brasileira da Universidade Federal do Paraná. Apósdeterminar os postos que constituem as posições políticas formal-mente mais importantes do executivo estadual, identificamos os ocu-pantes dos cargos listados durante o período 1995-2002 e traçamosum perfil da elite político-administrativa do estado do Paraná. Dototal de 75 indivíduos foram entrevistados 54 (governador, vice-governador, secretários de estado, presidentes de companhias esta-tais e chefes de polícia). Apresento aqui uma descrição da origemsocial e da carreira política desse grupo de elite. Através dos resulta-dos do survey, processados pelo pacote estatístico SPSS, procurou-se estabelecer as conexões internas ao grupo (geração, instituiçãoescolar etc.), o grau de coesão ideológica dos membros da elite, bemcomo os pré-requisitos (o capital político) para o recrutamento dossecretários estaduais ao governo.

Palavras-chave: elites políticas; origem social; carreira política.

* Julio Gouvêa é cientista social e coordenador de pesquisa do Núcleo dePesquisa em Sociologia Política Brasileira da Universidade Federal do Paraná.

1 Trabalho inspirado no paper apresentado ao XII Congresso Brasileirode Sociologia – SBS, intitulado “Por dentro do executivo: um estudo da elite político-burocrática no Brasil meridional”, escrito por Julio Gouvêa & Adriano Nervo Codato,GT20 – Sociedade e Estado na América Latina, Belo Horizonte, 2005.

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ApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentação

Muitos estudos sobre elites políticas trabalham com origem soci-al, recrutamento, carreira política e valores políticos3. Esse artigo pretende, àluz de vários estudos a respeito do tema, traçar um perfil sócio-profissional,a origem social e identificar a trajetória política dos membros da elite políti-co-administrativa do Paraná, entre os anos de 1995 a 2002. Tentando res-ponder a pergunta: mas aqui no Paraná, a elite é ou não diferente de outraselites, ou seja, se aqui vigoraria o “‘princípio de Pango-Pango’: lá em Pango-Pango é diferente” (Reis, 1991; p.32), o artigo tem uma natureza descritiva,uma vez que se trata de um tema ainda não (ou quase nada) trabalhado pelaCiência Política paranaense, com o intuito de servir como um ponto de parti-da para que outros estudos surjam acerca do tema.

Ao longo desse artigo, discuto com a literatura algumas interpre-tações a respeito de cada um dos subtemas propostos: origem social e car-reira política. Para tanto, num momento anterior, descreverei qual viés teóri-co-metodológico estou adotando, quais cargos políticos, quais são os ocu-pantes desses postos e como foram realizadas as entrevistas com tais pes-soas. A partir daí, mostrarei quais são os resultados da pesquisa e minhashipóteses acerca da elite político-administrativa.

Gostaria de deixar claro a dificuldade de se traçar um estudo com-parativo com outras elites, dado que não existe nenhum estudo anteriorsobre elites paranaenses, principalmente no que diz respeito à elite que ocu-pa postos no poder executivo estadual. Falta-nos uma série histórica queviabilize um estudo desse tipo. Porém, estarei tratando com outros estudosmais gerais acerca de elites, ou mesmo com estudos mais específicos sobreelites parlamentares no âmbito federal.

Esse artigo é fruto de uma pesquisa mais ampla, intitulada “Quemgoverna? Mapeando as elites políticas e econômicas no Paraná contem-porâneo (1995-2002)”, do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Bra-sileira da Universidade Federal do Paraná.

A partir da escolha do método posicional4, parti para a identifica-ção dos postos de destaque, a saber: Governador, vice-governador, secretá-

3 É o caso de Carvalho (2003), Love (1982), Keller (1967), Rodrigues(1987 e 2002), Fleischer (1977), Moisés (1995), Reis & Cheibub (1995), Lima &Cheibub (1995), entre outros.

4 Sustenta que determinado grupo é elite porque ocupa posiçõesinstitucionais estratégicas, além de ser um grupo coeso e homogêneo. Seu principaldefensor é o autor Wright Mills (1956 (1981)).

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rios de Estado, presidentes de companhia estatal (no caso do Paraná:Banestado, Copel e Sanepar)5 e chefes de polícia (civil e militar); sendo ostrês últimos, cargos de confiança. E foram assim identificados por se trata-rem do que pode se chamar “cargos de primeiro escalão”, exatamente porestarem situados no topo da hierarquia do Executivo estadual6.

Uma vez identificados esses postos, cheguei aos nomes dos ocu-pantes desses cargos, que foi conseguido através de um banco de dadosfornecido pela Secretaria de Estado do Planejamento e Coordenação7. Por-tanto, os critérios que definiram o universo a ser estudado podem assim sersistematizados: i) estar no topo da hierarquia formal dos cargos; ii) ocupar ocargo por mais de 90 dias. Estar no topo da hierarquia formal dos cargos,quer dizer ocupar qualquer um dos cargos listados acima. Cheguei, portanto,a 75 indivíduos, divididos da seguinte maneira: um governador; uma vice-governadora; 59 secretários de Estado; 5 presidentes de companhias esta-tais; e 9 chefes de polícia, sendo 5 da polícia civil e 4 da polícia militar.

Para extrair as informações pretendidas, foi aplicado um survey8

dividido em três blocos de questões, a saber: i) questões referentes à carrei-ra política, onde interessava saber quais os cargos públicos ocupados peloindivíduo, sua trajetória partidária e seus vínculos institucionais; ii) ques-tões relativas a valores políticos, em que se perguntavam as opiniões des-ses indivíduos sobre o regime democrático (sua natureza e formainstitucional), sobre algumas políticas de governo e outras idéias políticasgerais; e, por último, iii) informações pessoais e familiares, a fim de secompreender melhor as pessoas que compuseram o universo político-buro-crático paranaense entre 1995 e 2002, isto é: que formação tiveram, se vieramde famílias acostumadas com a atividade política, que profissão exerciam etc.

De 75 indivíduos, foram processadas informações referentes a 54deles, que responderam ao questionário, ou seja, 72% do total. Em termosestatísticos e metodológicos, esse percentual é totalmente aceitável e válido

5 Optei por essas companhias devido ao fato de estarem envolvidas emmomentos importantes da política paranaense contemporânea.

6 Só foi possível identificar esses postos através de organogramas daEstrutura Organizacional Básica do Poder Executivo do Estado do Paraná, obtidojunto à Secretaria de Estado da Administração e Previdência. Cabe salientar que essesorganogramas referem-se aos períodos de novembro/1995; setembro/1998; janeiro/2001;maio/2002 e agosto/2002, considerando as diversas reformas administrativas.

7 A lista com os nomes e os cargos dos membros da elite em questão segueno Anexo 1. As siglas das secretarias e companhias estatais seguem no Anexo 2.

8 Desenvolvido junto ao Núcleo de Pesquisa em Sociologia PolíticaBrasileira, da UFPR, no ano de 2003.

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para todas as análises subseqüentes. Comumente, trabalha-se nas ciênciassociais com percentuais próximos a 30%.

As entrevistas, realizadas todas no ano de 2004, foram talvez omomento mais complicado da pesquisa. Os membros da elite político-admi-nistrativa, em sua maioria, até se apresentava disposto a ceder a entrevista,mas era o agendamento de uma data que se constituía no pior problema. Porvárias vezes entrevistas eram adiadas quando o aplicador do survey já seencontrava no local e hora previamente marcados; ou, por outro lado, oentrevistador tinha que ir rapidamente ao local determinado pelo entrevista-do, na hora em que estabelecia o contato via telefone, porque o entrevistadosó tinha aquele momento para ceder a entrevista. A duração do tempo dasentrevistas variava muito, dependendo do entrevistado. Mas a média geraldo tempo de entrevista era de trinta minutos. E isso ocorria porque determi-nados entrevistados não se mostravam muito interessados nas questões erespondiam sem muitos comentários, fazendo a entrevista durar vinte minu-tos. Já outros, teciam comentários longos em várias questões, o que estica-va a duração da entrevista para uma hora.

Colocadas essas questões iniciais, continuarei esse artigo discu-tindo a literatura pertinente ao tema, dividindo-o em dois momentos: noprimeiro, apresento diversas tabelas com os resultados da pesquisa, fazen-do uso de vários estudos sobre os trabalhos mais específicos sobre origemsocial; no segundo, mostro outras tabelas, abordando alguns trabalhos acercade carreira política, objetivando traçar o caminho por onde pretendo inter-pretar os dados da pesquisa. Portanto, a primeira sessão, sobre a origemsocial dos membros da elite político-administrativa, irá tratar dos atributosnaturais (gênero, cor, religião, local de nascimento, pertencimento à elitepolítica) e dos atributos conquistados (nível de escolaridade, tipo de ocupa-ção) dos entrevistados. Nessa sessão, discutir-se-á o grau de homogeneidadedessa elite e apontar-se-ão algumas questões possíveis de serem trabalha-das em estudos posteriores.

A segunda sessão, que fala sobre a carreira política dos membrosda elite em questão, aborda como os entrevistados iniciaram sua carreira, emque tipo de cargo público, com que idade, em que local, e o tempo de carreiraque tiveram para chegar à condição de elite no período analisado. Esseartigo também tenta demonstrar se existe alguma homogeneidade entre aelite político-administrativa.

Logo, a questão correlata do artigo é saber o quão homogênea éa elite político-administrativa.

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Na medida do possível, tento comparar meus dados com estudossobre outras elites, a fim de se detectar se realmente a elite político-adminis-trativa paranaense, nos anos de 1995 a 2002, é diferente, em algum grau, emaspectos gerais, à outras elites. Ou seja, se realmente aqui funciona o tal“princípio de Pango-Pango” (Reis, 1991; p.32).

Logo, de forma sistematizada, o artigo possui dois objetivos: i)demonstrar se estamos ou não em “Pango-Pango”, ou seja, se o Paranáconsiste num “Brasil diferente”; ii) demonstrar o grau de homogeneidade daelite político-administrativa paranaense.

I . Origem social da elite político-administrativaI. Origem social da elite político-administrativaI. Origem social da elite político-administrativaI. Origem social da elite político-administrativaI. Origem social da elite político-administrativa

Trabalhar com origem social significa responder à questão quemsão determinadas pessoas ou grupo de pessoas a que alguém se propõepesquisar. No caso do meu estudo, significa mostrar de onde os membros daelite político-administrativa surgem, de que posição da sociedade, qual oseu nível escolar, se já pertencem à elite política. Essa parte do artigo estádividida da seguinte forma: em primeiro lugar abordarei os atributos naturaisdos membros da elite, ou seja, aqueles com os quais os indivíduos já nas-cem; e, em segundo lugar, mostrarei os atributos conquistados por eles aolongo de sua trajetória de vida, até o momento em que foram recrutados àelite; finalizando com algumas breves conclusões.

I.1. Seus atributos naturais

Os atributos naturais dos indivíduos, ou seja, aqueles com osquais eles já nascem e já pertencem à suas famílias são tratados por algunsestudos da literatura como atributos que contam para o processo de recruta-mento a uma elite, mas não são suficientes para justificar tal escolha. Essetipo de atributo favorece aos indivíduos a participação numa elite política,mas não ditam as regras para que tais indivíduos sejam recrutados (Keller,1967; Love, 1982; Carvalho, 2003; entre outros).

O primeiro dado que apresentamos mostra as características pes-soais dos membros da elite político-administrativa. Segundo Keller, as elitestendem a ser mais homogêneas quanto a atributos naturais como raça, reli-gião, ascendência e sexo do que quanto a atributos conquistados comoriqueza e educação (1967; p. 209).

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Na tabela 19 apresentamos os percentuais dos indivíduos comrelação ao seu gênero, cor e religião em comparação ao restante do estado eao Brasil.

A elite político-administrativa é predominantemente masculina,branca e católica10. Comparando com os dados do Censo 2000 do IBGE,podemos ver que existem muito mais homens entre a elite político-adminis-trativa do que entre a população, seja a paranaense11 ou a brasileira (50,5% e50,8%, respectivamente), o que constitui aqui o dado mais relevante (masnão o mais surpreendente). Embora mais numerosas que os homens na po-pulação do Paraná, há apenas 16,7% de mulheres na elite12. Como se trata decargos nomeados não tem como se falar em cotas para mulheres na política.Se se tratasse do poder legislativo aí sim, poder-se-ia abordar o assunto.Porém, aproveito para comentar o trabalho de Clara Araújo (2001), que tratado sistema de cotas femininas para a competição legislativa no Brasil e nomundo. Segundo Araújo, existem dois tipos de cotas voltadas para as mu-lheres: as aplicadas pela legislação e as adotadas por iniciativa voluntáriados partidos políticos. E, inicialmente, essa idéia de cotas surgiu em partidosde esquerda. Mas como estou trabalhando com o poder executivo, não pos-so fazer uma comparação.

Em relação à religião, a situação é um pouco similar nos doisuniversos, dado que a maioria é católica nos três casos (havendo mais cató-licos entre a população do Paraná e do Brasil do que na elite político-admi-nistrativa); porém, o dado diferente é que, segundo o IBGE, existe apenas0,2% de praticantes do judaísmo entre os paranaenses e 0,5%, entre os

9 Todas as tabelas seguem no final deste artigo.10 No mesmo intervalo de tempo (1995-2002) foram estudados dois outros

segmentos de elite, a parlamentar e a partidária. A prevalência (homens, brancos, católicos)foi idêntica, mas com percentuais ligeiramente diferentes. Para a elite parlamentartemos: 97,7% de homens; 86,4% de brancos; e 79,5% de católicos. Para a elite partidáriaas cifras são: 100%; 85,7%; e 71,5% respectivamente.

11 De acordo com o Censo Demográfico de 2000, a PEA (populaçãoeconomicamente ativa) do Paraná é de 60% de homens e 40% de mulheres. Portanto, opercentual de mulheres na elite político-administrativa é muito inferior à presençafeminina no mercado de trabalho paranaense.

12 Os dados são bem próximos aos apresentados por Love (1982) em seuestudo sobre a elite paulista no período 1889-1937. A elite era composta quase queexclusivamente por homens e era predominantemente católica.

13 Lembro que o próprio governador é um deles, portanto, não se trata dealguém nomeado, e sim, eleito. Logo, o percentual mais correto de praticantes dojudaísmo nomeados para o poder executivo seria de 5,5%. Mesmo assim, o percentual dejudeus na elite é muitas vezes maior do que entre as populações paranaense e brasileira.

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brasileiros; enquanto que entre os entrevistados da nossa elite há 7,4%13.Talvez o fato do governador do estado também praticar essa religião expli-que o porquê desse percentual.

Enquanto entre os paranaenses existem 77,2% de brancos e entreos brasileiros, 53,7%; na elite existem 92,6%. Não existem pretos entre osentrevistados, mas há 2,8% de pretos declarados no estado. O número depardos em relação à população total também é discrepante: 18,3% (Paraná) e38,5% (Brasil) contra apenas 3,7% na elite.

Os dados sobre gênero, cor e religião tendem a concordar com asafirmações de Keller. Mais adiante (Tabela 5), veremos também que, do pon-to de vista da educação, a elite é tão homogênea quanto aos atributos natu-rais (raça, religião e cor).

Outro dado relevante é o local de nascimento dos entrevistados.Como se pode ler na tabela 2, a grande maioria dos indivíduos é nascida noParaná, em especial, em Curitiba. Seu grau de localismo é bastante alto.

Isso indica que a elite político-administrativa é recrutada no esta-do, isto é, os indivíduos são nascidos, socializados e, provavelmente, fazemsua carreira no estado de origem14. Mais relevante ainda é que dos doisterços dos indivíduos nascidos no estado, mais da metade (56,1%) nasceuna capital. Portanto, há homogeneidade em relação ao local de nascimento.

Ao separar os membros da elite paulista em gerações (nascidosantes de 1868, entre 1869-1888, e em 1889 e após) Love (1982) revela umacrescente “provincialização” da elite, i.e., uma ênfase progressiva no recru-tamento dentro do próprio estado e treinamento político em São Paulo e nãoem postos fora do estado. Na tabela 215, vemos o mesmo.

Ames ao analisar a política paranaense sobre o período após ogoverno de Ney Braga (década de 1960), afirma que nenhum dos líderespolíticos paranaenses da geração pós-Braga era nascido no estado (2003; p150). Isso reforça que no caso da elite aqui abordada, há uma discrepânciacom os líderes de um passado próximo.

Apresento agora um dado de suma importância: o pertencimentoou não a famílias acostumadas à política. Por se tratar de uma elite voltada àadministração do estado, talvez era de se esperar que boa parte dos mem-bros da elite político-administrativa não viessem de famílias tradicionais napolítica. No entanto, temos um alto índice de 70,4% (em relação aos pais) e94,3% (em relação às mães) de entrevistados que disseram não ter pais que

14 Cfe segunda sessão adiante.15 E na tabela 9 da sessão seguinte.

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exerceram alguma atividade política regular16. Ou seja, era esperado, mas nãoque fosse tão baixo o índice daqueles com pais ligados à política.

I.2. Seus atributos conquistados

Os atributos conquistados são aqueles adquiridos no decorrer davida dos indivíduos, tal como escolaridade e tipo de ocupação. Esses atribu-tos dizem respeito também a um certo processo de socialização a que sãosubmetidos os indivíduos, que por sua vez, fazem-nos possuir certas carac-terísticas semelhantes para o recrutamento.

Para analisarmos os atributos conquistados da elite político-ad-ministrativa, irei trabalhar em primeiro lugar, com o estrato social dos mem-bros dessa elite, bem como o de seus pais; em segundo lugar, com o tipo deocupação deles e de seus pais; e, por último, com a escolaridade tanto dosmembros da elite como de seus pais (pai e mãe).

Antes, porém, gostaria de lembrar que Carvalho afirma que ahomogeneidade da elite pode ser de natureza social (levando-se em conta a“origem de classe”), o que não é suficiente para dar coesão às elites; mastambém, e principalmente, a homogeneidade se dá pela socialização, treina-mento e carreira (2003; pp. 34-35). Aqui trabalharei com a idéia de socializa-ção, não no sentido da política, e sim, socialização em relação a níveis esco-lares e estratos sociais similares.

Ao se trabalhar com a questão do estrato social dos entrevista-dos e de seus pais17, vemos que tanto a maioria dos membros da elite estuda-da como de seus pais se encontram no estrato social médio da população(57,4% e 53,7%, respectivamente), conforme tabela 3.

Nessa tabela vemos que, claramente, há mobilidade entre as duasgerações, principalmente se focarmos os estratos sociais alto e médio, umavez que enquanto 25,9% dos pais pertencem ao estrato social baixo, apenas9,3% dos entrevistados continua nesse mesmo estrato. Ou seja, mais de 16%dos entrevistados passou para o estrato social médio ou alto. E ao verificar-mos para onde foram essas pessoas, vemos que elas se distribuíram entre os

16 Obviamente, lembro ao leitor que estou trabalhando apenas com aatividade política regular do pai e da mãe dos entrevistados, não levando em conta umapossível existência de outros parentes na política. O survey não cuidava dessa questão.

17 As mães não aparecem nesses dados, bem como na tabela 3, em virtudede 64,3% delas pertencerem à categoria prendas domésticas (donas de casa), e não tercomo classificá-las num estrato ou tipo de ocupação.

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estratos médio e alto: dos 53,7% de pais no estrato social médio, houve umligeiro aumento para 57,4% de filhos nesse estrato; e dos 20,4% de pais noestrato social alto, houve um aumento para 33,3% de filhos nesse estrato. Noentanto, posso afirmar que tanto os membros da elite político-administrativaentrevistados como seus pais pertencem à camada média da população.

A fim de discriminar os tipos de ocupação exercidos pelos entre-vistados e pelos seus pais, apresento os dados da tabela 4.

Vemos que há uma grande concentração, entre os indivíduos, de“profissionais liberais” (38,9%) e de “funcionários públicos” (37%). Já entreos pais, há uma concentração maior na categoria “proprietários” (38,9%), ehá também uma dispersão maior entre os tipos de ocupação. Vale a penaressaltar aqui que a maioria desses indivíduos na categoria “proprietários”,entre os pais, é de médio proprietário (tanto rural como urbano).

Aqui posso afirmar que também há certa homogeneidade entre ostipos de ocupação dos indivíduos, uma vez que a concentração maior se dáem apenas dois tipos de ocupação: profissionais liberais e funcionários pú-blicos, que juntas totalizam 65,9%, e que podem ser consideradas comoocupações típicas do estrato social médio da população.

Analisando o grau de escolaridade da elite político-administrati-va, vemos que a tabela 5 mostra como a elite político-administrativa é alta-mente escolarizada, principalmente se comparada aos seus pais (pai e mãe).

Os entrevistados são bem mais escolarizados que os seus pais emães. Houve uma grande mobilidade escolar. Uma informação relevante éque se cruzarmos a escolaridade do pai com a escolaridade da mãe, temosuma correlação alta de 46,1%. Ou seja, podemos afirmar que pais “mais bemescolarizados” casam com mães “mais bem escolarizadas”, pais com “baixaescolaridade” casam com mães de “baixa escolaridade”.

Ao verificar mais detidamente a escolaridade do indivíduo, ve-mos que dos entrevistados que possuem “alta escolaridade”, 41,7% delessão pós-graduados18. Trata-se assim de uma elite bastante especializada.

A tabela 6 traz uma freqüência simples, apresentando os cursosque essa elite freqüentou. Nela, considero apenas aqueles com ensino supe-rior completo ou acima.

Boa parte da elite político-administrativa ainda se gradua numcurso que é conhecido como típico daqueles que aspiram a um cargo políti-co, o curso de Direito (35,4%). Porém, vemos que um pouco atrás, apareceum curso que, pelo menos até então, não era tão comum assim para ingressar

18 Nesse caso o n é igual a 48.

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na política. O curso de Engenharia Civil, ainda mais se somado às demaisengenharias (33,3%), denota que algo de diferente acontece quando se olhapara os atributos dessa elite.

Fazendo uma agregação por tipos de curso feitos pelos entrevis-tados, bem como o local onde fez seu curso, encontramos alguns dadosinteressantes. Esses dados são mostrados na tabela 7.

Como bem sabemos, cursos como Direito e Medicina são aquelesque geralmente servem como mecanismo de recrutamento para a elite políti-ca, como demonstrado por vários estudos (por ex., Love (1982) e Carvalho(2003)). Nesse caso, a maioria dos entrevistados formou-se nos cursos deArquitetura, Ciências Contábeis, Economia e Engenharias, que podem serconsiderados cursos mais voltados à “técnica”, sem serem “tradicionais”.

Os dados mostrados acima, nas duas tabelas anteriores, mostramque nossa elite tende a ser homogênea também porque se socializa e passapor um processo parecido de educação, como afirma Carvalho (2003).

É importante trabalhar aqui também com os indicadores dehomogeneidade utilizados por Love (1982). O autor afirma que a elite paulistaestudada por ele não possui indivíduos da classe trabalhadora; mais de trêsquartos do grupo eram bacharéis em Direito ou Medicina (70% eram advoga-dos, sendo que 63% deles se graduaram na mesma faculdade); 43% do gru-po tinham pelo menos um outro membro da família ali representado; a basepolítica da maioria da elite encontrava-se na capital.

A exemplo da elite paulista estudada por Love, na elite político-administrativa não há indivíduos da classe trabalhadora; utilizando nova-mente os dados sobre os cursos e o local de formação da elite político-administrativa do Paraná, vemos que, nesse nosso caso, o percentual deformados em Direito e Medicina (39,6%) é bem mais baixo que os da elitepaulista (mais de 70%); mas, por outro lado, na mesma direção de Love,houve uma concentração da formação universitária numa mesma instituição(Universidade Federal do Paraná).

Até aqui mostrei um perfil sócio-profissional dos membros daelite político-administrativa paranaense. E levando-se em conta todos osdados apresentados quais são os atributos que esses indivíduos possuempara que sejam recrutados à elite política?

Apresentando um caminho para se responder a essa questão,coloco um pequeno resumo dos dados apresentados até aqui sobre a elitepolítico-administrativa do Paraná:

1. a maioria dos membros da elite são homens (83,3%), brancos(92,6%) e católicos (64,8%);

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2. a maioria é nascida no Paraná (75,9%), sendo destes, mais dametade (56,1%) nascidos na capital;

3. não pertencem a famílias políticas tradicionais (70,4%);4. dividem-se entre profissionais liberais (38,9%) e funcionários

públicos 37%);5. pertencem ao estrato social médio da população (57,4%), as-

sim como seus pais (53,7%);6. e, por último, são altamente escolarizados (88,9%), com boa

parte sendo pós-graduado (41,7%).Para afirmar se existe um critério político para a escolha dessa

elite, necessário seria fazer um estudo da história política de cada indivíduo.O survey aplicado aos entrevistados não dá conta disso, e seria precisoaprofundar a pesquisa para responder a essa questão.

Giddens (1974) sustenta que quanto mais moderna é a sociedade,mais as elites tendem a ser heterogêneas. Se de um lado pode-se concordarcom essa afirmação levando-se em conta que aqui a filiação política tradici-onal não conta (basta olhar para o percentual altíssimo de indivíduos quenão pertencem a famílias tradicionais na política), por outro, verifica-se quea origem social é a mesma (a maioria pertence aos estratos sociais médios).

I.3. Comentários à origem social

Pode-se concluir, portanto, que a elite político-administrativaparanaense, entre os anos de 1995 a 2002, é homogênea tanto social comoprofissionalmente, em graus muito próximos.

Vimos que tanto em relação à origem social (a elite advém, em suamaioria, do estrato social médio da população) como ao processo de socia-lização (grande parte são funcionários públicos e profissionais liberais, epossuem alta escolaridade) a elite estudada é homogênea.

Portanto, para além da elite político-administrativa ter um perfilsocial homogêneo, seu recrutamento é fechado e seus atributos são unifor-mes. Em outras palavras, a elite político-administrativa no período supracitadoé recrutada nos estratos sociais médios da população paranaense, uma vezque sua grande maioria é nascida no estado.

Não podemos nos esquecer do fato desses indivíduos afirmaremnão possuir pais com atividade política regular, ou seja, não ser advindos defamílias acostumadas à política, ou, em outros termos, não pertencerem àelite política tradicional.

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Com base em todos esses dados fica aqui uma questão a se pen-sar em trabalhos posteriores. Que critérios são utilizados para tal recruta-mento? Seriam esses atributos suficientes para se fazer parte de uma elite?Intuitivamente, creio que não. Penso que os atributos aqui apresentadossão necessários, porém não suficientes para tal recrutamento.

I I . Carreira política da elite político-administrativaII . Carreira política da elite político-administrativaII . Carreira política da elite político-administrativaII . Carreira política da elite político-administrativaII . Carreira política da elite político-administrativa

Alguns estudos trabalham a questão da trajetória política de par-lamentares, leia-se elite parlamentar, seja em nível estadual ou federal(Fleischer, 1997; Rodrigues, 1987 e 2002, entre outros), mas dificilmente seencontram estudos a respeito da carreira política de membros de uma eliteadministrativa ou político-administrativa. Assim sendo trabalharei, na medi-da do possível, com estudos sobre parlamentares a fim de denotar as nuanças,se houver, entre as informações acerca da carreira política dos que ocupamos principais postos no poder executivo estadual (leia-se, elite político-ad-ministrativa) e as dos parlamentares (níveis estadual e federal).

II.1. O início da carreira política

Começarei mostrando quais os cargos mais comuns e onde osmembros da elite político-administrativa iniciam sua trajetória política. O pri-meiro dado trabalhado é a tabela 8 que mostra os cargos públicos em que osentrevistados iniciam sua carreira. Gostaria de ressaltar que a média de idadede ingresso deles no primeiro cargo público é de 31 anos de idade.

Há uma predominância de dois tipos de cargos públicos como oprimeiro de suas carreiras: o de “servidor público concursado”, nos níveismunicipal, estadual ou federal; e o de “diretor de empresas e agências esta-tais”, também em todos os níveis, que juntos, totalizam 55,5% dos cargos.Há também um número razoável de secretários municipais. Fiz questão decolocar os dois cargos eletivos que mais se destacam como o primeiro cargopúblico ocupado, justamente para comparar como, entre os entrevistados daelite político-administrativa paranaense, poucos são os que iniciam suascarreiras via eleições (11,1%, juntando vereador e deputado estadual). Des-taco também o fato de que 9,3% (cinco indivíduos, portanto) dos entrevista-dos nunca terem exercido algum cargo público antes de fazer parte da elite.Seria interessante fazer um estudo mais detalhado dessas pessoas, uma vezque alguma importância eles tinham para compor essa elite.

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No estudo de David Fleischer sobre a redemocratização em Mi-nas, num período que vai de 1947 a 1977, o autor mostra que a maior partedos parlamentares veio da política municipal (45,8%), em partes mais oumenos iguais de prefeito e vereador. Do nível estadual vieram 27,5%, sendoa maioria da burocracia de alto escalão, e outra parte (7,6%) da burocraciafederal (1977; p. 146). Como era de se esperar, dado que se trata de uma eliteparlamentar, a maioria vem de cargos eletivos, diferentemente do nosso caso.O interessante na análise de Fleischer é que ele constata que cerca de 60%de burocratas do alto escalão estadual avançaram do escalão inferior, dei-xando claro que existe uma certa seqüência dentro da própria burocracia,vindo de uma burocracia estadual baixa para uma burocracia estadual alta.Os dados sobre a elite político-administrativa apontam um padrão de carreiraparecido com o indicado por Fleischer.

Intuitivamente é de se esperar que membros de uma elite adminis-trativa não necessitem passar por cargos eletivos para serem recrutados aessa elite. Nossos dados apontam exatamente para o fato que poucos são osque perfazem esse percurso. Não considerando a categoria “Outros”, quetambém conta com cargos eletivos e não eletivos (vide nota 27), temos 33,3%de concursados e 37% de nomeados contra apenas 11,1% de eleitos. Ouseja, para a elite político-administrativa não há necessidade de enfrentar umprocesso eleitoral ao longo de sua carreira para ser recrutado à elite. Já ocontrário parece ocorrer com mais freqüência, pelo menos é o que aponta otrabalho de Leôncio Martins Rodrigues onde ele analisa os partidos e depu-tados, de uma visão sócio-política, na Constituinte de 1986. Rodrigues cons-tata que a passagem por funções legislativas seja em assembléias estaduais,seja em câmaras municipais, constitui um caminho para se chegar à CâmaraFederal, o que é até considerável um caminho “natural”. Porém, ele constatatambém que existem outras trajetórias de ascensão política: os estágios emaltos cargos nos escalões da administração pública são ocupados por ra-zões políticas (“cargos de confiança”) e não em razão de carreira administra-tiva (1987; p. 59). É o caso de mais de um terço dos deputados analisados porele, que já haviam ocupado algum posto nos governos estaduais, geralmen-te em secretarias de Estado.

Na tabela 9, apresento os locais onde a elite político-administrati-va inicia sua carreira e onde ocupa o último cargo público antes de ingressarna elite. Pode-se perceber o quanto, como já demonstrado no local de nasci-mento (ver tabela 2), essa elite possui um alto grau de localismo. Ela nasce noestado, especialmente na capital, como mostrado anteriormente, e faz suatrajetória política também no estado, também em Curitiba.

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Essa tabela nos mostra que a maioria absoluta inicia sua carreirano próprio estado, sendo que destes, mais de 80% inicia na capital. E ao seolhar para a segunda parte de tabela, pode-se ver que outra maioria absolutaocupa seu último cargo púbico no estado, e destes, a maioria esmagadoraocupa o último cargo na capital19.

A fim de se entender melhor essa questão, ao cruzar o local emque ocupou o primeiro cargo público com o local de nascimento, e fazendo omesmo cruzamento, envolvendo o local do último cargo antes de ingressarna elite com o local de nascimento pode-se ver o quanto essa elite é bastante“provincializada”, nos termos colocados por Love (1982). É o que nos mos-tra a tabela 10.

Dos nascidos na capital, mais de 90% ocuparam o primeiro cargopúblico na própria capital, o que até poderia se esperar. Mas dos nascidosem outras cidades do estado e até fora do estado, a maioria também teve oinício de sua trajetória pública em Curitiba (70,6% e 63,6%, respectivamente).E em relação ao último cargo público ocupado imediatamente antes de serrecrutado à elite, dos que nasceram em outras cidades paranaenses ou forado estado, a grande maioria ocupou um cargo em Curitiba antes de ingressarna elite (88,2% e 81,8%, respectivamente).

Portanto, a elite político-administrativa possui um alto grau deprovincialização, uma vez que é recrutada dentro do próprio estado e seu trei-namento político se dá também no Paraná, como apontado no estudo de Love.

II.2. O tempo de carreira e a idade

A partir desse momento, minha intenção é verificar o tempo queos membros da elite político-administrativa levam para chegar à elite e qual aidade deles ao ingressar na política e ao ingressar na elite. A tabela 11 mostrao tempo de carreira da elite.

Boa parte da elite político-administrativa tem até 1 ano de carreira,antes de ingressar na elite. É significativo dizer que se considerarmos otempo de 10 anos de carreira relativamente curto para se ingressar numaelite, no caso da elite político-administrativa são 59,3% dos entrevistadosque tiveram 10 anos ou menos de carreira. O que reforça a hipótese que osmembros da elite político-administrativa não necessitam de uma extensa car-reira para ingressar na elite.

19 Lembro aqui que estou trabalhando com o n=49, em virtude de 5 delesterem afirmado não exercer nenhum cargo público antes do período da pesquisa.

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A fim de verificar se essa elite é “nova”, em termos de idade,apresento a tabela 12, que se divide em duas partes: a primeira trata da idadedos entrevistados ao ingressar no primeiro cargo público; e a segunda, daidade deles ao ingressar na elite político-administrativa.

A média de idade ao ocupar o primeiro cargo público, como jámencionando anteriormente, é de 31 anos. Pode-se ver que a maior parte seconcentra na categoria de 26 a 35 anos de idade, sendo que as categorias 36a 45 anos e 16 a 25 anos (29,6% e 27,8%, respectivamente) não ficam muitoatrás. Nesse caso, posso afirmar que o ingresso da elite político-administra-tiva do Paraná num primeiro cargo público, dá-se de forma bem distribuída,podendo o indivíduo ser bem novo ou já ter uma certa idade.

Em relação à idade dos entrevistados ao ingressar na elite, a mé-dia é de 48 anos. A segunda parte da tabela acima, mostra que boa parte (maisde 40%), está justamente na categoria 46 a 55 anos, o que confirma a médiade idade. Pouco mais atrás, encontra-se a categoria 36 a 45 anos, com poucomenos de 30%. Logo, afirmo que o ingresso na elite político-administrativaparanaense, no período coberto pela pesquisa, ocorre quando o indivíduotem uma idade que denota uma certa experiência de vida política.

Aprofundando-se mais na questão da idade dos entrevistados aoserem recrutados à elite correlacionada com o seu tempo de carreira, temosum índice de 44,5% de correlação, conforme tabela 13.

Por isso os entrevistados com idade entre 46 e 55 anos tendem ater uma carreira ligeiramente mais longa que os mais jovens. Como é o casodaqueles de 26 a 35 anos, que têm, no máximo, 10 anos de carreira; e os de 36a 45 anos têm, no máximo, até 20 anos de carreira. Os de 46 a 55 anos e os de56 a 65 anos, chegam a ter mais de 30 anos de carreira. A única exceção é oúnico entrevistado com mais de 66 anos que declarou ter até 1 ano de carreira20.

II.3. Comentários à carreira política

Vimos, portanto, que a elite político-administrativa advém, em suamaioria, de cargos burocráticos mais baixos, antes de serem recrutados àelite, como apontado pelo estudo de Fleischer (1977). Vimos também queiniciam sua carreira política no próprio estado, principalmente na capital, eperfazem sua trajetória toda no próprio estado, ou seja, passam por um pro-cesso de socialização e recebem treinamento dentro do estado onde nasce-

20 Nesse caso específico, o entrevistado passou muitos anos no judiciário.

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ram e onde ocupam uma posição de elite. É o que Love (1982) verifica em seuestudo sobre a elite política paulista.

A maioria dos membros da elite política-administrativa possui,relativamente, um tempo de carreira curto para ingressar na elite (10 anos oumenos) e, pelos dados apresentados, não se tem como afirmar se eles entramjovens na carreira política ou se já são mais velhos. O que encontramos foiuma concentração maior de entrevistados que tinham entre 26 e 35 anos aoocupar um primeiro cargo público, mas próximos àqueles entre 36 a 45 anose 16 a 25 anos de idade. A constatação que posso fazer é que no momento deingresso na elite, aí sim, a maioria dos entrevistados possui uma certa idade,que varia de 46 a 55 anos.

Tudo isso leva a crer que existe também um alto grau dehomogeneidade entre a elite político-administrativa no que diz respeito aolocal onde fazem suas carreiras e o tipo de cargo que ocupam até seremrecrutados à elite. Também em relação à idade que possuem quando da suanomeação para o alto cargo no poder executivo estadual, e o tempo decarreira que levam para chegar a esse posto, pode-se afirmar que exista umacerta homogeneização. O mesmo não se aplica à idade de ingresso no primei-ro cargo público pelo fato de haver uma distribuição similar entre diferentesclasses de idade.

Que hipóteses poderiam ser aqui levantadas? Para além dessaelite ser altamente especializada e de possuir todos aqueles atributos (cfeexposto na sessão anterior), vemos agora que ela segue um padrão seme-lhante de carreira, qual seja, uma carreira política relativamente curta, cominício em cargos administrativos. Portanto, esses cargos onde a elite iniciasua carreira têm a ver com sua formação superior? Seria por esse motivo queeles seriam recrutados à elite? Numa impressão inicial pode parecer que umacoisa tenha a ver com outra, mas para se fazer tal afirmação seria necessáriofocar o estudo não só na formação superior dos membros da elite político-administrativa, como também, e principalmente, na pós-graduação desses mem-bros. Não temos esses dados, mas permito-me fazer uma especulação que paraessa elite, o fato de ser especializada em seus cursos de formação, permite a elaseguir o padrão da carreira aqui apresentado e alcançar uma posição de elite.

I I I . Considerações finaisIII . Considerações finaisIII . Considerações finaisIII . Considerações finaisIII . Considerações finais

Foi discutido durante todo o artigo a origem social e a carreirapolítica da elite político-administrativa do Paraná, no período que vai de 1995a 2002. Foram apresentados vários resultados encontrados sobre os temas

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supracitados e, sempre que possível, esses resultados foram trabalhadosjuntos a estudos sobre outras elites.

Relembrando a questão principal do artigo, o intuito era verificarse na elite em questão ocorria o fenômeno do princípio de Pango-Pango, ouseja, se essa elite era diferente de outras elites estudadas. No entanto, pode-mos ver que a grande maioria dos resultados encontrados na elite político-administrativa paranaense possui um alto grau de similaridade com os resul-tados encontrados em outros estudos.

Em relação aos atributos da elite, em quase nada diferenciam dosdemais estudos sobre isso. É o caso, por exemplo, de Keller (1967), Love(1982) e Carvalho (2003) que, em certa medida, encontram os mesmos tiposde resultados encontrados nessa pesquisa. A elite tende a ter a maioria dehomens; brancos; católicos; altamente escolarizados (mesmo porque entraem questão a “meritocracia”, ou seja, a realização profissional como critériode seleção); não existirem membros da classe trabalhadora; e, por fim, seremoriundos de uma mesma camada da população; serem recrutados e treinadosno próprio estado em que nascem e ocupam sua posição de elite.

Ao se verificar os resultados sobre a carreira política, também nãofoi encontrada tanta diferença. A exemplo de Fleischer (1977), que afirma quea maioria daqueles que chegam a um posto mais alto na burocracia, começampelos postos mais baixos, a maioria dos membros da elite político-adminis-trativa iniciam sua carreira em cargos medianos da burocracia, como cargosde direção em empresas estatais ou no funcionalismo público, para daí, as-cenderem ao primeiro escalão. Em ambos os casos foi encontrado um padrãode carreira semelhante.

Portanto, para além dessa pesquisa constatar que realmente exis-te um alto grau de homogeneidade na elite político-administrativa paranaense,no período 1995-2002, tanto em relação à origem social como à carreira polí-tica, a conclusão a que chegamos é que aqui no Paraná não vigora o tal“princípio de Pango-Pango” (Reis; 1991, p. 32). Apesar de não termos dadoscomparativos com elites de outrora do estado, a comparação com estudossobre outros tipos de elites do país, mostrou que existem, e não são poucas,semelhanças entre esses quesitos (origem e carreira) da elite político-admi-nistrativa paranaense e outras elites.

Logo: i) não estamos em “Pango-Pango”; e ii) há um alto grau dehomogeneidade na elite político-administrativa paranaense, tanto no que dizrespeito à sua origem social como à sua carreira política.

Em suma, esse artigo tinha mais a tarefa de descrever a elite ana-lisada do que propriamente formular grandes conceitos sobre as elites. Apartir dessa descrição foram colocadas algumas questões com o intuito de

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contribuir para o preenchimento da lacuna existente nos estudos de CiênciaPolítica, sobretudo acerca do Paraná.

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ANEXO 1ANEXO 1ANEXO 1ANEXO 1ANEXO 1

Universo total da pesquisa

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Universo total da pesquisa - continuação

* A legenda com as siglas das secretarias segue abaixo (Anexo 2).** Esses foram os(as) entrevistados(as).

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Legenda de Siglas das Secretarias de Estado do Paraná

ANEXO 2ANEXO 2ANEXO 2ANEXO 2ANEXO 2

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Tabela 1 - GÊNERO, COR E RELIGIÃO

*FONTE: IBGE – Censo Demográfico 2000

Tabela 2 - LOCAL DE NASCIMENTO

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Tabela 3 - ESTRATO SOCIAL DO ENTREVISTADO E DO PAI*

* A legenda com as siglas das secretarias segue abaixo (Anexo 2).21 As categorias abrangem as seguintes ocupações: “Alto” (grande

proprietário rural, grande proprietário urbano, executivo de empresa privada, político,altos cargos do setor público); “Médio” (médio proprietário rural, médio proprietáriourbano, profissional liberal, advogado atuante, professor universitário, funcionário públicode médio ou baixo escalão, militar); e “Baixo” (pequeno proprietário rural, pequenoproprietário urbano, trabalhador assalariado de empresa privada, professor de outrosníveis).

21

Estrato social do pai

Estrato social do entrevistado Estrato social

baixo

Estrato social

médio

Estrato social

alto

TOTAL

Estrato social baixo

1,9%

(1)

1,9%

(1)

5,6%

(3)

9,3%

(5)

Estrato social médio

14,8%

(8)

33,3%

(18)

9,3%

(5)

57,4%

(31)

Estrato social alto

9,3%

(5)

18,5%

(10)

5,6%

(3)

33,3%

(18)

TOTAL

25,9%

(14)

53,7%

(29)

20,4%

(11)

100%

(54)

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Tabela 4 - TIPOS DE OCUPAÇÃO DO ENTREVISTADO E DO PAI

22 De acordo com a seguinte definição por categorias: “Proprietários”:grande proprietário rural, grande proprietário urbano, médio proprietário rural, médioproprietário urbano, pequeno proprietário rural, pequeno proprietário urbano;“Profissionais liberais”: advogado atuante, executivo de empresa privada, profissionalliberal; “Funcionários públicos”: altos cargos do setor público, funcionários públicos demédio ou baixo escalão; “Professores”: professor universitário, professor de outrosníveis; “Trabalhadores”: trabalhador assalariado de empresa privada. Na tabela acima acorrelação é de 9,1%.

Tipos de ocupação do pai

Tipos de ocupação

do

entrevistado Proprietários

Profissionais

liberais

Funcionários

públicos Políticos Professores Trabalhadores

TOTAL

Proprietários

3,7%

(2) - - -

1,9%

(1) -

5,6%

(3)

Profissionais

liberais

13%

(7)

13%

(7)

5,6%

(3)

1,9%

(1) -

5,6%

(3)

38,9%

(21)

Funcionários

públicos

11,1%

(6)

13%

(7)

7,4%

(4) -

1,9%

(1)

3,7%

(2)

37%

(20)

Políticos

3,7%

(2)

1,9%

(1) - - - -

5,6%

(3)

Professores

7,4%

(4)

1,9%

(1)

1,9%

(1) - - -

11,1%

(6)

Trabalhadores - - -

1,9%

(1) - -

1,9%

(1)

TOTAL

38,9%

(21)

29,6%

(16)

14,8%

(8)

3,7%

(2)

3,7%

(2)

9,3%

(5)

100%

(54)

22

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Tabela 5 - NÍVEL DE ESCOLARIDADE DO ENTREVISTADO, DO PAI E DA MÃE23

23 As categorias utilizadas para níveis de escolaridade foram: “alta” (cursosuperior ou acima); “média” (curso superior incompleto; curso médio; curso fundamen-tal ou médio incompleto); e “baixa” (fundamental incompleto).

24 A correlação encontrada entre a escolaridade do indivíduo com aescolaridade do pai é de 9,2%. A correlação encontrada entre a escolaridade do indivíduocom a escolaridade da mãe é de 3,8%.

Nível de escolaridade do paiNível de escolaridade

do indivíduo Sem instrução Baixa escolaridade Média escolaridade Alta escolaridadeTOTAL

Média escolaridade - -

5,6%

(3)

5,6%

(3)

11,1%

(6)

Alta escolaridade -

16,7%

(9)

33,3%

(18)

38,9%

(21)

88,9%

(48)

TOTAL-

16,7%

(9)

38,9%

(21)

44,4%

(24)

100%

(54)

Nível de escolaridade da mãeNível de escolaridade

do indivíduo Sem instrução Baixa escolaridade Média escolaridade Alta escolaridadeTOTAL

Média escolaridade - -

9,3%

(5)

1,9%

(1)

11,1%

(6)

Alta escolaridade

1,9%

(1)

11,1%

(6)

55,6%

(30)

20,4%

(11)

88,9%

(48)

TOTAL

1,9%

(1)

11,1%

(6)

64,8%

(35)

22,2%

(12)

100%

(54)

24

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Tabela 7 - FORMAÇÃO ESCOLAR DA ELITE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

Tabela 6 - CURSO SUPERIOR EM QUE SE FORMOU

25

26

25 A categoria Engenharias agrega os seguintes cursos: engenhariaagronômica, engenharia cartográfica, engenharia civil, engenharia elétrica, engenhariaeletrônica.

26 A categoria Outros agrega: educação física, geografia, jornalismo,medicina veterinária, pedagogia.

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27 A categoria “Outros” abrange nesse caso, os seguintes cargos: secretáriode estado (2 casos), deputado federal (1 caso) e judiciário estadual (2 casos).

Tabela 8 - CARGOS EM QUE INICIARAM SUA CARREIRA POLÍTICA

2 7

Tabela 9 - LOCAL DA CARREIRA POLÍTICAINÍCIO DA CARREIRA POLÍTICA

Estado Freqüência % Cidade Freqüência % % Válido

Paraná 46 93,9 Curitiba 38 77,6 82,6

Outros 3 6,1 Outras no PR 8 16,3 17,4

Subtotal 46 100

Outras 3 6,1

TOTAL 49 100 TOTAL 49 100

Local onde ocupou o último cargo antes de ingressar na elite

Estado Freqüência % Cidade Freqüência % % Válido

Paraná 46 93,9 Curitiba 44 89,8 95,7

Outros 3 6,1 Outras no PR 2 4,1 4,3

Subtotal 46 100

Outras 3 6,1

TOTAL 49 100 TOTAL 49 100

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Tabela 10 - LOCAL DOS CARGOS PÚBLICOS - LOCAL EM QUE OCUPOU O 1ºCARGO PÚBLICO POR LOCAL DE NASCIMENTO*

* As correlações encontradas foram 28,8% e 16,8% respectivamente.

Tabela 11 - TEMPO DE CARREIRA DA ELITE POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

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Tabela 12 - IDADE DOS ENTREVISTADOS AO INGRESSAR NO 1º CARGO PÚBLICO

Tabela 13 - IDADE DOS ENTREVISTADOS POR TEMPO DE CARREIRA

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HISTÓRIA

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INTERDISCIPLINARIDADE

A Interdisciplinaridade mostra-se uma palavra (em indissociáveldos escritos) voga nos escritos na área de História nos últimos anos noambiente acadêmico. A busca de um diálogo com outras disciplinas tornou-se um dos nortes do oficio do historiador. Preocupado com os meandrosexistentes na sociedade, ele busca saber não apenas a história dos grandesvultos e dos grandes acontecimentos, mas presta-se a outras consideraçõeshistoriográficas, trabalhando questões relacionadas ao imaginário e as re-presentações, por exemplo, assim como novos objetos como as atitudesdiante da morte, do medo e do amor.

Porem toda essa discussão não é recente. Ela remonta ao início doséculo XX com a inauguração da Revista de Annales na década de 1920 quetrouxe ao campo do fazer historiográfico novos objetos, fontes emetodologias.

Fundada na França em 1929, a escola dos Annales (originária dahomônima revista), que tem como seus principais fundadores Lucien Febvree Marc Bloch, opõe-se a uma história política, que na visão de Bloch eFebvre, tinha uma concepção redutora e centralizadora e que delimitava odomínio historiográfico e vão trazer a história para uma discussão mais am-pla ao pensar o econômico e a sociedade. Com Braudell a discussão sobre astemporalidades adquire importância na obra O Mediterrâneo e o mundomediterrânico na época de Felipe II, em que as preocupações ainda são deordem ampla tendo a longa duração como grande personagem do livro. Apartir da década de 1970, com o advento da 3ª terceira geração de Annales, adiscussão adquire uma concepção diferenciada e passa a contemplar a cha-mada história cultural. No centro da discussão histórica mais veementemen-te, então, a questão da intersecção com outras disciplinas, o que traz umaporte teórico que inclui novas preocupações, tais como: o trabalho com acultura cotidiana, ou seja, costumes, valores e modos de vida.

Estas transormações pelas quais passou o enfoque da pesquisahistórica servem de aparato para o trabalho do historiador atualmente envol-to na multiplicidade de informação e favorecido pelo amplo e aberto diálogocom outras áreas para elaboração de sua investigação acerca da trajetória hu-mana.

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Portanto e com satisfação que iniciamos esse projeto na revista“Sociedade em Estudos”, em conjunto com as disciplinas das ciências soci-ais, acreditando que o diálogo entre as áreas mostra-se um poderoso instru-mento de diversidade, que aprofunda o conhecimento.

Gostaríamos de agradecer as colaborações dos professores CiroFlamarion Cardoso e Caio Boschi, que muito nos honraram com seus artigospara este primeiro número e agradecer também ao Professor LucianoFigueiredo e a Lívia Almeida da Revista de História da Biblioteca Nacionalpor cederem o texto do Professor Caio Boschi.

Obrigado,Jakson Hansen Marques - Coordenador da área de História

Vanessa Maria Rodrigues - Coordenadora da área de História

Conselho Editorial da área de HistóriaIvyan Karoline Mildemberg CorreaMárcia Gracilia Ramos Pedroso FattoriNatália de Cássia Teixeira Bellos

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111Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 111-112, 2006.

PERCALÇOS E DELEITES NA PESQUISA HISTÓRICA1

Caio Boschi*

No exercício da pesquisa, por vezes, defrontamo-nos com obstá-culos, à primeira vista, intransponíveis. Quase sempre, no entanto, eles setransformam em aliciantes desafios.

Há tempos, sinto-me seduzido a melhor conhecer a Instrução parao governo da capitania de Minas Gerais (1780), alentado documento escri-to por José João Teixeira Coelho, na altura desembargador da Relação doPorto. O conteúdo do texto supera o enunciado do título. Em 26 capítulos, lê-se uma descrição geográfica; reflexões sobre o estado eclesiástico; resumoda evolução histórica, além de ampla análise da realidade econômica, finan-ceira e tributária da região mineradora, de fins do século XVII aos finais doXVIII. Às informações, obtidas por exaustiva consulta à documentação ori-ginal, o autor acrescenta lúcidas e críticas análises.

O manuscrito teve uma primeira edição em 1852. Antes, tinha sidobem acolhido e utilizado, dentre outros, por Robert Southey, na sua Históriado Brasil. Em 1903, foi novamente publicado, a partir de outro exemplar.Desde sempre, são consensuais as avaliações elogiosas à fonte em causa.

A par disso, quase nada sabemos sobre o autor, exceto que foi juizde fora em Vila do Conde; intendente do Ouro em Vila Rica, entre 1768 e 1779,até ser promovido para um lugar no referido tribunal portuense.

Tamanhas lacunas aguçam a curiosidade. Tenho procedido a bus-cas em arquivos e bibliotecas brasileiras, identifiquei outros seis manuscri-tos da substanciosa Instrução. Todavia, o autor não se me apresenta. Reco-

* Caio Boschi é professor da Pontifícia Universidade católica de MinasGerais em Portugal.

1 Artigo originalmente publicado na Revista de História da BibliotecaNacional” : ano 1, nº 2 de agosto de 2005, à pagina 98.

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BOSCHI, C. Percalços e deleites na pesquisa história.

lho migalhas informativas sobre o intendente. Nenhuma referência a suafamília. Quase nada de sua sociabilidade em Vila Rica. Mais: em nenhumacircunstância, o magistrado assina ou é chamado “Coelho”. Outra faceta aelucidar!

Nos arquivos de Portugal, ao contrário do suposto, as dúvidas seampliam. Vasculho fundos documentais da Torre do Tombo. Reporto-me aosregistros da Universidade de Coimbra. Leio autos de vereação da Câmara deVila do Conde. Em Vila Viçosa, alimento a esperança de deslindar pendênci-as. Desalento-me. Nenhuma informação. Ou melhor: um único e (também)desconcertante dado: o ato de nomeação para a judicatura consigna o nomede José João Teixeira Barros. Barros??!! Volto à genealogia, nada. Não en-contro ancestrais de José João com tal sobrenome.

Há quase vinte anos, diligencio junto ao arquivo da Relação doPorto. Perplexo, constato que, ali, praticamente inexistem documentos ante-riores a 1832. Nem mesmo o simples ato de posse dos magistrados. Igualinsucesso qualifica reiteradas incursões ao Arquivo Distrital do Porto. Des-loco-me ao seu homólogo de Viana do Castelo. Visito Monção, no belo AltoMinho, terra de nascimento de “Teixeira Coelho” e de seus antepassados.Manuseio os fundos do arquivo municipal. O resultado não é muito diferente.

Persevero, instigado pelos intrigantes mistérios que odesembargador insiste em impor-me. Continuarei! Se já não fora pelo fascí-nio da busca, haveria a recompensa de exercitar a lógica histórica, com suadialética e caprichos próprios. Exercício insidioso, a confirmar velha máxima:a ausência de informações é também informação! Aliás, acontece – e como!– de os silêncios e as lacunas serem mais enfáticos e expressivos. RecordoLucien Febvre: a parte mais fascinante do ofício do historiador consiste emfazer falar as coisas mudas.

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Sociedade em Estudos, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 113-134, 2006. 113

A CONSTRUÇÃO DA “BRASILIDADE” NA ÓPERA LO SCHIAVO (O ESCRAVO),DE CARLOS GOMES

Ciro Flamarion Cardoso*

Resumo: empregando como método a Semiótica Textual em suavertente narratológica, o artigo procura esclarecer por que meios,sendo a música operática de Carlos Gomes essencialmente italiana, oautor brasileiro mesmo assim constrói em sua ópera Lo schiavo, cujolibreto é de Rodolfo Paravicini, uma forte noção de brasilidade. Oexame seletivo dos elementos de significação abordará a descriçãodos cenários tal como aparece na partitura da ópera, a atorialização ea música.Abstract: this text, which employs methods created by textualsemiotics (narratology), aims at explaining by which means, theoperatic music written by Carlos Gomes being undoubtedly mostlyItalian in character, the composer, born in Brazil, was successfuleven so in constructing in his opera Lo schiavo (libretto by RodolfoParavicini) a strong notion of it being “Brazilian”. A selective analysisof pertinent elements of signification includes the description of thesets as it appears in the published opera, actorialization and music.

1. O tema1. O tema1. O tema1. O tema1. O tema

Este artigo procederá a uma análise da ópera Lo schiavo, de CarlosGomes, com uma única finalidade: procurar esclarecer, semioticamente, pormeio da aplicação de dois métodos específicos “ a análise atorial e a leituraisotópica “ às diferentes matérias significantes intervenientes no gênerooperístico (visuais e auditivas), de que modo se tentou construir determina-

* Ciro Flamarion Cardoso é professor Doutor Titular de História naUniversidade Federal Fluminense e Coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinaresda Antigüidade. (CEIA)

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CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera...

da concepção de “brasilidade” na obra em questão. Outrossim, tratar-se-áde enfoque parcial, mediante exemplos, não de uma leitura exaustiva. A aná-lise será mais completa, porém, no relativo a um aspecto da narratologia: aatorialização.

2. Questões de método2. Questões de método2. Questões de método2. Questões de método2. Questões de método

A possibilidade de uma semiótica narrativa depende da noção deque existem estruturas narrativas. O ponto de partida é a distinção, nessaárea de estudos, entre um nível aparente das narrações ou relatos, em que assignificações dão a impressão de dependerem da linguagem específica em-pregada (línguas naturais faladas ou escritas, cinema, pintura figurativa,história em quadrinhos etc.), e um nível imanente, tronco estrutural maisprofundo, cuja consideração faria perceber uma “narratividade” comum emais geral que, ao ser especificada, consistiria exatamente nas tais estrutu-ras narrativas. Em outras palavras, as estruturas narrativas são logicamenteanteriores às suas manifestações específicas nos relatos concretos. A signi-ficação das narrativas deve ser buscada num nível profundo que é prévioaos modos concretos de sua manifestação. Isto permitiu a constituição deuma gramática narrativa, ou teoria da narratividade, como parte da teoriasemiótica geral.

O termo relato (ou narrativa) se aplica a uma forma específica dediscurso, caracterizado por ser ao mesmo tempo figurativo (ou seja, porcomportar personagens que levam a cabo ações) e inscrito em coordenadasespaciais e temporais (predominando na realidade a dimensão temporal). A“narratividade” - o que há de comum a todas as narrativas consideradassuperficialmente - seria uma organização discursiva imanente a cada narrati-va (CARDOSO, 1997: passim).

Em narratologia, isto é, a parte da Semiótica textual que trata dasnarrativas, história é o significado, o conteúdo narrativo, aquilo que é con-tado, o argumento em suas linhas mais gerais. A diegese é algo maisenglobante do que a história: trata-se desta mais o seu entorno, a históriamais todo o universo ficcional sem o qual ela não se desenvolveria. Prefere-se falar de diegese e, não, de história ou enredo; em especial, o adjetivodiegético é empregado com freqüência (tempo diegético, espaço diegético,música diegética ou extradiegética, etc.). A diegese concerne a parte do rela-to que não é específica em relação ao meio: no caso do cinema, por exemplo,aquilo que a sinopse, o roteiro e o filme têm em comum, ou seja, um conteúdo

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CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera...

independente do meio que o expressa. Se a diegese, no contexto de umrelato, é o conteúdo, existe por outro lado a forma de expressão, esta total-mente dependente do meio em que a obra se expressa.

No relato, conteúdo e expressão se encontram e se associam.Relato é o enunciado visto em sua materialidade, o texto narrativo que seencarrega daquilo que vai ser narrado. No fundo, a história é algo abstrato:uma história, ao ser contada, torna-se relato – que pode ser romance, filme,história em quadrinhos, etc. Assim, uma “mesma” história ou conteúdodiegético resultará em relatos diferentes entre si conforme seja narrada emromance, filmada, composta como ópera ou balé, etc.

A narração é o ato narrativo produtor e, também, o conjunto dasituação real ou fictícia em que ele ocorre. Vincula-se à relação entre enunci-ado e enunciação tal como o relato permite que estes sejam percebidos oureconstituídos em função dos vestígios, no texto, das configuraçõesenunciativas. Semioticamente falando, é no interior do próprio texto que seacham os índices de sua enunciação: a narratologia não tem a ver, em formadireta, com a noção de autor ou com outro agente enunciador ou narradorantropomórfico qualquer que fosse hipoteticamente responsável pela pro-dução do texto (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1992: 39-41).

Um termo que merece explicação especial é atorialização. Desig-na o processo que institui os atores numa narrativa “pela reunião dos dife-rentes elementos dos componentes semântico e sintáxico”, que podem seranalisados separadamente. Neste artigo, o interesse maior recairá no percur-so temático semanticamente considerado, mais do que no exame da sintaxe(GREIMAS; COURTÉS, s.d.: 34-35).

Na terminologia semiótica de Algirdas Greimas e Joseph Courtésdistinguem-se três níveis semânticos do discurso: o figurativo, o temático eo axiológico.

Comecemos por examinar a oposição complementar entre /figura-tivo/ e /temático/. O figurativo é um significado passível de ser correlacionadoem forma direta a um dos cinco sentidos (visão, audição, tato, olfato e pala-dar): ou seja, que pareça ligar-se à percepção do mundo real, do mundoexterior ao texto. Assim, por exemplo, o /amor/ é temático; mas os gestosconcretos através dos quais o amor se expressa (por exemplo: carícias, bei-jos, abraços, escrever missivas amorosas, etc.) são figurativos.

O figurativo pode ser icônico ou abstrato. O figurativo icônico secaracteriza por uma ilusão referencial, isto é, por dar a impressão de remeterao mundo real (quando, no texto, o que temos de fato são somente palavras,não o mundo real). O figurativo abstrato retém unicamente um número míni-mo de traços que pareçam ter como referência a “realidade”. Se quisermos

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CARDOSO, C. F. A construção da “brasilidade” na ópera...

uma analogia no campo das representações visuais, a foto de um político édo domínio do icônico; sua caricatura, do domínio do abstrato. A oposiçãofigurativo icônico/figurativo abstrato é gradual, e não, categorial: admiteposições intermediárias. Tenho notado, nas pesquisas concretas, que emmuitos casos o historiador pode trabalhar com a oposição figurativo/temáticodeixando totalmente de lado a oposição figurativo icônico/figurativo abstrato.

Falta enfocar o nível semântico axiológico, que tem a ver comalgum sistema de valores – éticos, estéticos, religiosos ou outros quaisquerque os conteúdos dos textos manifestem. Em relatos populares, por exem-plo, trata-se amiúde de valores éticos em oposição: bem/mal, bom/malvado.Euforiza-se, então, a dupla bom comportamento/bom tratamento,disforizando-se mau comportamento/mau tratamento: é assim que, nos con-tos de fadas, os bons são finalmente recompensados e os maus, castigados.Num sistema axiológico religioso como o cristão, euforizar-se-ia a “santida-de” e se disforizaria o “pecado”. Num sistema estético, o “belo” é que seriaeuforizado, o “feio”, disforizado – e assim por diante (COURTÉS, 1991: 193-198). Em Lo schiavo, ópera com libreto de Rodolfo Paravicini e música deAntônio Carlos Gomes, o sistema de valores é nacionalista: aquilo que seconstrói como “brasileiro” é euforizado, o que aparece como “estrangeiro”se disforiza.

Passando à questão da isotopia, começarei por reproduzir a defi-nição desta categoria semiótica por Algirdas Greimas:

Por isotopia, entendemos um conjunto redundante de categoriassemânticas que torna possível a leitura uniforme do relato, tal comoresulta das leituras parciais dos enunciados e da resolução de suasambigüidades, guiada pela busca de uma leitura única. (GREIMAS, 1970:188).

É possível, com apoio nas categorias semânticas isotópicas, apassagem da micro-semântica (entendida como a significação presente emcada frase ou enunciado que se tomar isoladamente) à macro-semântica (asignificação do discurso completo, considerado no nível transfrasal). Seriamcategorias semânticas isotópicas aqueles elementos de significação recor-rentes, redundantes, repetitivos: os quais, por tais características, sãosubjacentes à coerência textual.

O método de leitura isotópica, para conseguir aquela transição damicro para a macro-semântica, consta de três etapas: 1) num primeiro mo-mento, o exame comparativo das partes componentes de um texto – frases,

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enunciados – descobre suas categorias sêmicas (de significação)subjacentes; 2) em seguida, isolam-se dentre elas aquelas categorias sêmicasque se repetem, que são recorrentes no texto: são estas, precisamente, ascategorias isotópicas; 3) por fim, tais categorias isotópicas são distribuídaspelos três níveis semânticos de que falei anteriormente (figurativo, temáticoe axiológico).

Umberto Eco mostrou, com razão, que seria preciso distinguir aisotopia discursiva da isotopia semântica, além de outras distinções nointerior de cada tipo de isotopia (ECO, 1979: 92-101). Mas do que estoufalando agora é, unica e exclusivamente, a isotopia semântica. Aceitandocríticas como as de Eco ao menos parcialmente, Greimas e Courtés preferiramdistinguir a isotopia gramatical (ou sintáxica, no sentido semiótico dotermo) da isotopia semântica: de novo, só a segunda me interessa aqui; e elanão passa de um crivo de leitura, do ponto de vista do enunciatário(COURTÉS, 1991: 193-198).

***Como em todas as semióticas incipientes – e ainda é este o caso

da semiótica do espetáculo –, o progresso da análise só pode ocorrer medi-ante o avanço da descrição dos elementos significantes intervenientes. Umatentativa neste sentido foi a de Tadeusz Kowzan, em artigo pioneiro. Repro-duzimos adiante, em forma de quadro, a sua tentativa de descrição das maté-rias significantes que interessam às artes do espetáculo, quando pensadasem análises de tipo semântico ou semiótico.

A totalidade dos elementos do quadro baseado em Kowzan éaplicável à ópera. A descrição a seguir, que tenta realizar tal aplicação, é deminha feitura. Nela, faz sentido, analiticamente, separar o espaço da concep-ção daquele da execução:

ConcepçãoConcepçãoConcepçãoConcepçãoConcepção

- Libreto da ópera: trata-se de seu enredo ou história, divididoem atos e cenas, como no caso do balé já prevendo às vezes os númerosmusicais. O libreto de uma ópera se parece a uma peça de teatro em versos(ou parcialmente em prosa – os recitativos por exemplo – e parcialmente emverso). O libretista é habitualmente um homem de Letras com experiência nogênero operístico, mas às vezes o compositor atua como libretista (como fezRichard Wagner sistematicamente), havendo também ocasiões em que com-põe à base de um texto já existente (seja um libreto usado no passado por

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outro compositor, como quando Mozart escreveu a música de La clemenzadi Tito à base de um antigo libreto do italiano Metastasio, em 1791, seja deobra de outro tipo, como ao compor Strauss a sua Salome usando umatradução da peça de Oscar Wilde para alemão).

- Música: elaborada por um compositor de música erudita, o qualpor vezes trabalha em estreita colaboração com o libretista (como ocorriacom Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal), outras vezes impondo-lheo que deseja (como costumavam fazer Giuseppe Verdi e Giacomo Puccini).

- Direção de cena: esta função às vezes é assumida por um dire-tor teatral ou, em tempos recentes, por diretores de cinema (assim, Ken Russelldirigiu uma estranha versão do Fausto de Gounod para a Ópera de Viena eAndrei Tarkovsky, uma impressionante versão de Boris Godunov, ópera deModest Mussorgsky).

- Cenário(s) e guarda-roupa: como no caso do balé, o artista ouos artistas que concebe(m) estes elementos plásticos da ópera pode(m) (ounão) trabalhar em estreita colaboração com o diretor de cena e o produtor(quando este último não coincide com o primeiro).

- Elementos adicionais na concepção do espetáculo: ilumina-ção, maquiagem, penteado, adereços, etc. Na atualidade, a iluminação costu-ma ser controlada por computador. Neste ponto, a ópera tem exigênciassemelhantes às de uma peça de teatro das mais sofisticadas, ou às do balénarrativo.

- Coreografia: muitas óperas incluem um ou mais balés, o queimplica a presença de um coreógrafo na concepção do espetáculo a sermontado.

ExExExExExecuçãoecuçãoecuçãoecuçãoecução

Por mais que vários dos elementos acima exijam execução (porexemplo, quem concebe um cenário e quem o pinta podem ser pessoas dife-rentes, o mesmo quanto a roupas e adereços, etc.), estaremos falando agorada execução em seu âmago músical e dramático:

- Maestro: decide a interpretação musical a ser dada à partitura daópera, cortes eventuais nos números musicais da mesma, etc. No passado,como hoje é mais comum nos balés, introduzia enxertos tomados de outrasobras do mesmo compositor ou até mesmo de compositores diferentes; nasapresentações, dirige a orquestra, com atenção às necessidades e movimen-tos dos cantores-atores, bem como à concepção do diretor de cena, que àsvezes interfere até certo ponto na parte musical.

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- Orquestra: os músicos tocam a partitura da ópera, dirigidos pelomaestro.

- Cantores-atores: hierarquicamente organizados (a prima donna eo protagonista masculino são os mais importantes, outros atuam como solistas,a maioria compõe o coro), executam tanto a partitura no relativo ao canto (mú-sica e palavras do libreto) quanto os movimentos decididos pelo diretor de cena.

- Bailarinos: como já foi dito, muitas óperas contêm balés, o queimplica a presença de dançarinos que interpretem a coreografia correspondente.

Elementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatraisElementos da linguagem das formas artísticas teatrais

OBS.: O quadro baseia-se no artiggo de Kowzan mas tem forma diferente da que o artigoem questão apresenta. VER.: KOWZAN, Tadeusz. “Hacia una semiología del arte delespectáculo.” In: RODRIGUEZ, María Elia e LOPEZ, María Luisa. Signos, lenguajes ydiscursos sociales. San José (Costa Rica): Editorial Nueva Década, 1991, pp. 116-139.

Matérias

significantes:

Tipos de signos

envolvidos:

Elementos

concernidos:

Suportes das

semioses:

Dimensões:

1. Palavra auditivos ator

(representação)

textos

pronunciados

tempo

2. Tom auditivos ator

(representação)

textos

pronunciados

tempo

3. Mímica visuais ator

(representação)

expressão

corporal

espaço e tempo

4. Gesto visuais ator

(representação)

expressão

corporal

espaço e tempo

5. Movimento visuais ator

(representação)

expressão

corporal

espaço e tempo

6. Maquiagem visuais ator (figura) aparência

humana

espaço

7. Penteado visuais ator (figura) aparência

humana

espaço

8. Traje visuais ator (figura) aparência

humana

espaço

9. Acessórios visuais espaço cênico aparência das

coisas

espaço e tempo

10. Cenários visuais espaço cênico aparência das

coisas

espaço (e

tempo, havendo

mais de um

cenário)

11. Iluminação visuais espaço cênico aparência das

coisas

espaço e tempo

12. Música auditivos efeitos sonoros sons em forma

musical

tempo

13. Ruídos auditivos efeitos sonoros sons sem

articulação

tempo

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Nota-se a complexidade de um espetáculo operístico pela simplesenumeração dos elementos nele implicados, bem como as múltiplas possibi-lidades de choque de personalidades, em diversos níveis que vão da con-cepção à execução, neste tipo de arte que exige ações e decisões envolven-do muitas pessoas de diferentes ramos e especialidades. Habitualmente, omaestro – às vezes o diretor de cena – considera-se o elemento mais impor-tante na execução, mas terá de negociar muitos detalhes com os cantores, emespecial no caso dos protagonistas: o ego e os humores de uma primadonna famosa são pelo menos tão assustadores quanto os de um danseurnoble ou de uma prima ballerina!

3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise3. O objeto textual e os recortes escolhidos para a análise

Antônio Carlos Gomes (1836-1896), nascido em Campinas, em suafase de estudos – com Lauro Rossi, em Milão – e composições na Itália,onde chegou em dezembro de 1863, tornou-se um expoente brasileiro daópera romântica italiana. Seu amadurecimento musical foi rápido e notável.Se a entrada de Cecília, “Gentile di cuore”, em Il Guarany (1870), com coro,recorda de perto a polacca que serve de entrada a Elvira, “Son verginvezzosa”, na ópera muito anterior I puritani (estreada em 1835), de VincenzoBellini – o que certamente não coloca o Gomes de então na vanguarda dacena operística italiana, por mais sucesso que tenha tido a sua ópera (afinal,se pensarmos na obra de Verdi, de tamanha influência sobre a de CarlosGomes nos anos seguintes, Don Carlo, na versão de Paris, é de 1867, Aida,de 1870) –, bem como a orquestração e a própria construção musical daópera de 1870 apresentam defeitos muito visíveis, Lo schiavo, que estreouem 1889 mas vinha sendo composta desde 1883, mostra afinidades com oVerdi maduro e uma grande segurança na orquestração e no contraponto, sea compararmos com a obra estreada pelo compositor brasileiro em 1870.

Lo Schiavo (“O escravo”) estreou no Rio de Janeiro em 27 desetembro de 1889 – menos de dois meses antes da proclamação da Repúbli-ca, portanto –, no Teatro Imperial D. Pedro II. No tocante ao gênero queintegra, trata-se de um drama lírico (ópera séria). Seu libretista foi RodolfoParavicini, que se baseou “ muito frouxamente “ numa peça teatral do Vis-conde de Taunay. Mesmo tendo sido estreada no Brasil, a ópera sem dúvidaalguma visava, em primeiro lugar, ao público italiano. O compositor dedicou-a à Princesa Isabel.

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Em minha opinião, o caráter “brasileiro” que o compositor CarlosGomes pretendeu dar a esta sua obra, cuja linguagem musical é italiana noessencial, valeu-se dos elementos principais seguintes: 1) escolha de temaspseudo-históricos brasileiros, à base de uma obra literária também brasileira:os assuntos centrais são, nesta ordem de idéias, a escravidão indígena, aConfederação dos Tamoios (1567) posteriormente à eliminação da FrançaAntártica e a expedição naval portuguesa contra tal insurreição; 2) evocaçãode um Brasil tropical exótico, estilizado e idealizado, presente nas descriçõesverbais dos cenários contidas na obra, bem como na própria música; 3)construção teatral do libreto, em especial no tocante à atorialização(estruturação dos atores-cantores e das inter-relações entre eles, conside-rando-se tanto as personagens propriamente ditas quanto o coro, ator cole-tivo); 4) recursos musicais.

O primeiro ponto da lista recém-enunciada não se presta às moda-lidades de análises de tipo semiótico que quero empreender. Analisarei, pelaaplicação da leitura isotópica, os pontos 2 a 4, já que são os que se referemaos conteúdos textuais da ópera (visuais “ no caso, os cenários “, verbais emusicais). O ponto 3 será abordado segundo as concepções da narratologiasemiótica sobre a atorialização.

4. Os cenários4. Os cenários4. Os cenários4. Os cenários4. Os cenários

Interessa-me como aparecem descritos ou comentados os cenári-os na partitura de Lo schiavo, sem levar em conta realizações concretas emrécitas da ópera.

4.1. Textos em italiano seguidos de minha tradução

Ato I: “Vasto cortile d’una fattoria del Conte Rodrigo presso ilfiume Parahyba. A destra del proscenio l’abitazione del fattore Gianfèra,rustica e coperta di paglia. Accanto a questa la scuderia. A sinistra l’Oratorio,rozzo, col tetto acuminato a guisa di cupola. Presso l’Oratorio una grossacampana appesa a due travi di legno greggio. Su d’una altura, nel fondo, lacasa padronale, di un solo pianterreno, con molte finestre di facciata ed unasola porta d’ingresso nell’estremo fianco, col tetto di paglia. Alberi di cocco,banane, palmizi sparsi per la scena e pittorescamente distribuiti pei campi.Nel vastissimo sfondo, le plantagioni di canne di zucchero. Più in là le foreste

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vergini. Fanno poi corona al grandioso paesaggio le altissime montagne indistanza. Nel mezzo, alquanto in fondo, alcuni carri di forma primitiva, tiratida buoi, stanno fermi ricevendo il carico di canne da zucchero” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 5).

“Vasto pátio de um engenho do conde Rodrigo, perto do rio Paraíba[do Sul]. À direita do proscênio está a casa do feitor João Fera, rústica ecoberta de palha. Perto dela, a casa de armas. À esquerda, a capela, tosca,com o alto do teto à maneira de uma cúpula. Junto à capela está um grandesino, pendendo de duas toras de madeira em estado bruto. Num ponto alto,ao fundo, está a casa grande, composta somente de um andar térreo, commuitas janelas na fachada e uma única porta de entrada num dos extremosdesta; seu teto é de palha. Coqueiros, bananeiras e palmeiras estão espalha-dos pela cena e pitorescamente distribuídos pelos campos. No fundovastíssimo estão as plantações de cana-de-açúcar e, além, as florestas vir-gens. Montanhas altíssimas, distantes, coroam a paisagem grandiosa. Nomeio, um tanto para o fundo, estão parados alguns carros de boi, cuja formaé primitiva, recebendo um carregamento de cana de açúcar”.

Ato II: “L’interno d’un elegantissimo chiosco ottangulare, neigiardini della Contessa di Boissy a Nitheroy. Il chiosco à sostenuto dacolonnette di bambù. Il tetto, che si parte a guisa di raggi, è coperto di rami dipalme. Lunghe tende di paglia indigena e transparenti chiudono all’ingirol’intiero chiosco, ma dalla transparenza delle tende si scorge il sontuosogiardino che lo attornia. Dall’ampio ingresso del fondale si vede il mare.Dovunque, fiori, parassite, orchidee, rampicanti appesi in eleganti canestri.A sinistra uno specchio grande che scende a terra. A destra, appeso a duegrossi tronchi di bambù un elegante hamak indigeno. Un canapè. Pochesedie” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 106).

“Interior de um elegantíssimo quiosque octangular nos jardinsda condessa de Boissy, em Niterói. O quiosque sustenta-se em colunasdelgadas de bambu. O teto descendente abre-se em pontas cobertas defolhas de palmeira. Longas tapeçarias de palha trançada à maneira indígena,transparentes, fecham todos os lados do quiosque. A transparência dascortinas permite perceber em torno o suntuoso jardim. Pela ampla porta deentrada, ao fundo, vê-se o mar. Por toda parte há flores, parasitas, orquídeas,trepadeiras presas a caramanchões elegantes. À esquerda está um grandeespelho que se estende até o chão. À direita, pendurada em dois troncosgrossos de bambu, vê-se uma elegante rede indígena. Um canapé, algumascadeiras”.

Ato III: “L’immensa foresta alle falde dei monti Giacarèpaguà. Indistanza il lago Comorin. Accanto a folti e svariati gruppi di palme le rustiche

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abitazioni di Ilàra ed Iberè. Sul proscenio, a destra e sinistra, tronchi di alberigiganteschi abbandonati al suolo. Cespi di fiori e parassite sparse dovunquesenza coltura” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 197).

“A imensa floresta nas encostas dos montes de Jararepaguá. Àdistância, vê-se o lago Comorim. As residências rústicas de Ilara e Iberêestão perto de grupos de palmeiras frondosos e variados. No proscênio, àdireita e à esquerda, vêem-se troncos de árvores gigantescas, abandonadosno chão. Moitas de flores e parasitas estão espalhadas por toda parte semterem sido cultivadas”.

Ato IV: Neste caso, no início do ato se vê unicamente parte docenário, sendo noite escura; posteriormente, com o nascer do Sol, o panora-ma se amplia. É preciso então, aqui, incluir também a descrição em palavrasque acompanha o curto poema sinfônico ou interlúdio, a “Alvorada”.

a) “Altipiano d’uno scoglio a Guanabàra sporgente sul mare efortificato con lungo steccato di freccie e di grosse tronchi di bambù aguzzati.Tra i macigni e lo steccato del fondo s’intravedde un antro oscuro e segretoche discende a picco verso il mare. Accanto a quest’antro la tenda d’Iberè, diforma conica e coperta di fogliami di palme. Sul terreno a destra, irto e scosceso,vedonsi viali tortuosi e praticabili che confinano colla scena discendentiquasi a precipizio. Altri scogli costeggianti il mare si sperdono in distanza.Diversi antri oscuri fra i dumi e fra i sassi giganteschi spacatti. Scena orridae selvaggia. Notte profonda” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 284).

“Área plana no alto de um rochedo, na Guanabara, que dá para omar e está fortificado com longa paliçada de flechas e grossos troncos agu-çados de bambu. Entre as rochas e a paliçada, no fundo, se entrevê umagrota escura e secreta que desce, íngreme, para o mar. Perto desta grota estáa tenda de Iberê, cônica e coberta de folhas de palmeira. No terreno dadireita, que é empinado e pedregoso, vêem-se veredas tortuosas mas prati-cáveis que, no extremo da cena, descem quase a pique. Outros rochedos,que costeiam o mar, perdem-se na distância. Diversos grotões escuros entre-meiam as dunas e os gigantescos penedos. Cena horripilante e selvagem.Noite profunda”.

b) “Nel profondo silenzio della notte s’ode il cupo mormorio delmare che percuote le roccie più vicine alla tenda d’Iberè. L’orchestra, prelu-diando, descrive lo spuntare dell’aurora brasiliana e va crescendo sempre invariati suoni. Ad intervalli s’ode lontano il rauco suono dell’Inûbia guerrieranel campo Tamoio. Sul mare, in distanzia, si vede schierata la flotta Lusitanain assetto di guerra. Dalla nave ammiraglia si sentono gli squilli delle trombeche suonano la diana. Stormi di piccoli uccelli, svolazzando in ogni direzione,rallegrano con i loro svariati canti la novella aurora. Da lontano il Cûcco

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monotono ripete il consueto lamento. Fra i gruppi di palmizi della vicinasponda si nasconde e gorgheggia il gentile sabià. Ai primi raggi del solel’immenso panorama si manifesta in tutto il suo splendore. Al di là delvastissimo golfo si vede l’imponente catena di montagne degli Organi. Dallanave ammiraglia stessa parte un colpo di cannone salutando l’aurora, ed alfrastuono di esso i Tamoios, dalla riva sclamano all’unisono: All’erta! Ullàa!”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 308-315).

“No silêncio profundo da noite, ouve-se o murmúrio sombrio domar que bate nas rochas mais próximas da tenda de Iberê. Um prelúdio or-questral descreve o despontar da aurora brasileira e vai sempre crescendoem sons variados. Ouve-se ao longe, intermitentemente, o som cavo dainúbia guerreira no acampamento tamoio. No mar, à distância, vê-se a frotalusitana, enfileirada em formação de guerra. Da nau capitânia ouvem-se ossons das trombetas no toque da alvorada. Nuvens de passarinhos, esvoa-çando em todas as direções, alegram com seus cantos variados a nova auro-ra. Ao longe, o monótono cuco repete seu lamento costumeiro. Entre osgrupos de palmeiras do litoral próximo, oculta-se e gorjeia docemente o sabiágentil. Aos primeiros raios do sol, o imenso panorama se manifesta em todoo seu esplendor. Do outro lado do golfo vastíssimo se percebe a imponenteserra dos Órgãos. Da própria nau capitânia parte um tiro de canhão saudan-do a aurora; ouvindo o som tonante, os tamoios, da margem, exclamam emuníssono: “ ‘Alerta! Ulá!’ ”.

4.2. Análise

A leitura isotópica revela, na construção das descrições dos ce-nários, a onipresença da /flora tropical brasileira/, único elemento presentenessas descrições em todos os atos, mas em modalidades diversas que apon-tam para uma segunda rede temática: /Europa: artificial versus Brasil: natural/.Esta aparece indicada, no cenário do primeiro ato, pelo contraste entre: asconcepções alienígenas (“engenho”, ou seja, uma fábrica de açúcar comfinalidades mercantis), as construções primitivas mas estranhas à terra (ca-pela, casa grande, casa de armas), as plantações e o transporte da cana-de-açúcar (cana e bois não pertencem a espécies nativas), de um lado; e, dooutro: as “florestas virgens”; os “coqueiros, bananeiras e palmeiras”esparsos pela própria fazenda; e as montanhas distantes. No relativo àaxiologia, os elementos brasileiros da paisagem são euforizados: os coquei-ros, bananeiras e palmeiras são “pitorescos” em sua distribuição; mas é ahipérbole a principal forma de euforização: o panorama que se abre para

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florestas e montanhas é “vastíssimo” e “grandioso”, as montanhas são“altíssimas” (o que, aliás, não corresponde à realidade). O conjunto (flores-tas “virgens”, panorama muito amplo, elementos grosseiros das constru-ções e dos veículos “ caracterizados por adjetivos como “tosco” e “primiti-vo” –, tetos de palha) dá uma impressão de rusticidade exótica, evoca ummundo pouco sofisticado no tocante às realizações humanas, grandioso,desmesurado mesmo, talvez um tanto assustador, no relativo à natureza: ummundo, em suma, muito diferente do europeu. Estava na moda, naquelasegunda metade do século XIX, na Europa, o dépaysement na literaturapopular (Pierre Loti) e na ópera (Lakmé, de Léo Delibes, Les pêcheurs deperles, de Georges Bizet, Aida, de Giuseppe Verdi, entre muitas outras);moda que persistiu até Pietro Mascagni “ Iris “ e Giacomo Puccini (MadamaButterfly, La fanciulla del West, Turandot).

No segundo ato, o contraste apontado entre elementos forâneos(artificiais) e brasileiros (naturais) é ainda mais marcado, chegando ao auge:o cúmulo da artificialidade é o quiosque “octogonal” dando para jardins“suntuosos”, evidentemente cultivados e planejados, além do “grande es-pelho”, do “canapé” e das “cadeiras”. O adjetivo “elegante” aparece trêsvezes. A flora da terra, neste caso domesticada, está no entanto “por todaparte”, as matérias-primas são locais (com insistência no bambu, que reapa-recerá, num contexto “indígena”, no cenário do quarto ato), como também osão as tapeçarias e a rede. O que é brasileiro e natural, não modificado peloseuropeus, fica, desta feita, por conta do /mar/: este, que obviamente nãopoderia aparecer no vale do Paraíba do primeiro ato, torna-se muito presenteno segundo e no quarto atos. Neste segundo ato, não por acaso, são oselementos marítimos aqueles valorizados na evocação do panorama por umcoro “ habitualmente eliminado nas encenações da ópera “ situado entre aprimeira dança e as seguintes, na festa da condessa de Boissy (quinta cenado ato). Note-se que a elegância dos domínios da condessa européia não éaxiologicamente euforizada: a música e as palavras que acompanham toda aprimeira parte da atuação da francesa (primeira e segunda cenas do segundoato) a mostram como fútil, insistentemente importuna e sarcástica: ver ocomentário a respeito feito por Américo, no recitativo que precede sua áriada terceira cena: “L’importuna insistenza e insiem lo scherno” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 125), ou seja, “A insistência importuna em conjunto como sarcasmo”); o mesmo ocorre no final do ato. A condessa só será euforizada,na parte central do mesmo, como anfitriã generosa e em sua qualidade deheroína da libertação dos escravos, ao comprar vários deles especificamentepara alforriá-los em massa. Na maior parte do ato, entretanto, o caráter anti-

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pático e pretensioso da condessa de Boissy se reflete também no cenárioque representa seus domínios.

O cenário do terceiro ato é dominado pela flora brasileira natural,não cultivada, fazendo, portanto, significativo contraste com o do ato prece-dente. A euforização por hipérbole da paisagem do Brasil tropical continuaaqui (floresta “imensa”, árvores “gigantescas”, mas tudo suavizado pelamultiplicidade e onipresença das flores).

O último ato é o mais complexo no tocante ao cenário. Este éúnico, mas revelado em duas etapas. Aparece como ambiente tétrico, domi-nado por um mar soturno e por rochas costeiras escarpadas, na parte inicial,noturna, do ato, quando é disforizado (“horripilante”, “selvagem”, “escu-ro”, sendo “sombrio” o ruído do mar): un cenário bem de acordo com asruminações de Iberê sobre sua infelicidade amorosa e as tramas dos índioscontra ele e Ilara. A seguir, alegrado por pássaros (e pelo reaparecimento davegetação tropical, agora iluminada, representada pelas palmeiras onde osabiá “gentil” se esconde e canta), transfigura-se em panorama euforizado“em todo o seu esplendor”; como sempre, hiperbólico, mostrando a baía deGuanabara (“golfo vastíssimo”), além dela a serra dos Órgãos, “imponente”.Ao mesmo tempo, a aurora repõe os contrastes /Europa-Brasil/, /artificial-natural/, pela visão da frota lusitana preparada para a guerra. No entanto, talfrota, elemento forâneo, não é axiologicamente disforizada. Talvez porque o“mocinho” da história – embora não seja o protagonista dela, como veremos–, Américo, lá esteja; e porque os índios rebeldes, de elemento positivo queeram, se transformaram em ameaça para o protagonista, o cacique Iberê, bemcomo para o casal de namorados. Seja como for, os sons afirmativos dotoque de alvorada ajudam a desanuviar o ambiente; e, no recitativo da áriaque sucede imediatamente à peça orquestral que descreve o amanhecer (quintacena do quarto ato), Ilara, a heroína da ópera, tem a dizer o seguinte: “Comesplendido e bello il sol fiammeggia su quelle navi! Sembra che ogni prorarifulga d’oro e di gemme...” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 317-318); ou, tra-duzindo: “Como o Sol flameja, esplêndido e belo, sobre aquelas naus! Cadaproa parece refulgir de ouro e de pedras preciosas...”.

Note-se que, embora só na descrição verbal da “Alvorada” apare-ça a menção a pássaros, este elemento da paisagem brasileira está muitopresente na ópera, construído, porém, com meios principalmente sonoros(musicais).

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5. Atorialização5. Atorialização5. Atorialização5. Atorialização5. Atorialização

Vou exemplificar a construção de uma noção de “brasilidade”, nolibreto da ópera, com a questão da estrutura de atores intervenientes (perso-nagens, coro).

Tal estrutura é simples: as personagens brasileiras, nativas, e seucontexto, são axiologicamente positivas; as estrangeiras são, em princípio,axiologicamente negativas, bem como o é o seu contexto específico. Emsuma, há um lado brasileiro valorizado e um lado estrangeiro desvalorizado.Mas a situação da condessa de Boissy é complexa, como também ocorrecom a dos índios vistos como personagem coletiva. A leitura isotópica con-firma estas afirmações. Vejamos, em primeiro lugar, a oposição brasileiro(nativo)/estrangeiro.

No primeiro ato (sexta cena), em duas falas suas, Américo se diri-ge a Iberê, dizendo “Libero fosti in questo suolo al par di me” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 28-29), isto é: “como eu, foste livre neste lugar” e cha-mando a si mesmo em relação a Iberê, pouco depois, “fratel di patria” (GO-MES; PARAVICINI, 1985: 30), ou seja, “irmão de pátria”, mais tarde desig-nando o índio como “Nobile stirpe del Brasilio suolo” (GOMES; PARAVICINI,1985: 38), traduzindo: “estirpe nobre do solo brasílico”. Na mesma cena,numa narrativa acerca de seu passado, Iberê chama o Brasil de “mia terra”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 30), “minha terra” e – anacronicamente – de“patria” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 31), “pátria”, associando o país tam-bém ao seu pai e à sua mãe, e à sua condição de guerreiro tamoio. QuandoAmérico confraterniza com Iberê, os índios e camaradas presentes (brasilei-ros) comentam que, com aquele gesto, o primeiro “che siam fratelli tutti eidimostrò” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 40-41), “demonstrou que somostodos irmãos” “ sentimento que contrasta com o que é expressado na mesmaocasião pelo feitor e pelos capangas (sujeitos delegados do amo portugu-ês), para os quais, com aquele gesto, Américo “un covo di ribelli (...) per noicreò” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 40-41): “criou para nós um covil de re-beldes”.

Iberê jurou fidelidade eterna a Américo, que o salvou do castigodesonroso do chicote (primeiro ato, cena sexta). Ele revelar-se-á, nos atostrês e quatro, como “brasileiro” e “nacionalista”, em sua qualidade de líderdos tamoios amotinados, mas ao mesmo tempo leal ao juramento a ponto de,amando Ilara, com a qual fora casado à força por ordem do conde Rodrigo,viver ao lado dela sem tocá-la e, no final, trocar sua vida pela do casal. Trata-se de uma figura romântica, mais parecida à de um cavaleiro medieval idea-lizado pelo Romantismo do que à de um líder indígena do século XVI brasileiro.

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Quanto ao pai de Américo, o conde Rodrigo, em fala de Iberê(primeiro ato, quinta cena) é qualificado de “usurpator di questo suolo”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 26), “usurpador deste solo”; ele mesmo, nasétima cena do ato, associa a luta que ordena a Américo empreender comooficial da frota lusitana à idéia de “pátria” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 76):ao contrário do filho, nascido no Brasil, ele é um português, um estrangeiro.Isto se comprova a seguir no comentário (para si mesmo) de Américo arespeito da ordem que acaba de receber do pai: “Vestir l’insegna dello stranier...Pugnar domani in sua difesa forse contro i miei fratelli?” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 75-76): “Vestir o uniforme do estrangeiro... E, talvez, lutaramanhã, defendendo-o, contra meus irmãos?”. Tal conde estrangeiro é cruel,ardiloso, traiçoeiro; por exemplo, ao forçar no fim do primeiro ato, comoplanejara com antecedência, o casamento de Iberê com Ilara, logo que seufilho parte para a guerra, e ao impedir, no final do segundo ato, que Iberêconte a verdade ao enfurecido Américo acerca de tal casamento feito pelaviolência. O mesmo quanto a seus sujeitos delegados, os capangas e o feitorJoão, apodado “Fera”: este último é descrito pelos camaradas da fazenda(que são brasileiros) com as palavras seguintes, na primeira cena do primeiroato: “Più zelante dei padroni il fattore diventò! Ei fu sempre un rinegato. (...)Rinegato! Mascalzon!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 10-12): “O feitor tor-nou-se mais zeloso do que os patrões! Ele sempre foi um renegado. (...)Renegado! Bandido!”. Renegado, por ter nascido no Brasil e, no entanto,agir em favor do amo estrangeiro (português).

Ilara de início, na ópera (como desde criança), aparece como “es-crava de dentro de casa” (isto fica claro em seu dueto com Américo noprimeiro ato, nona cena). Trata-se de personagem complexa, contraditória,tal como Iberê – que se vê dividido entre a liderança que exerce como caci-que maior dos tamoios, cheio de ânsia de vingança, e a lealdade a Américo,contra o qual não deseja guerrear. Como ele, Ilara é indubitavelmente brasi-leira. No início do terceiro ato (primeira cena), começa seu recitativo, prece-dendo uma famosa ária, saudando a aurora com as palavras: “Alba adoratadel natio mio suol” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 198): “Adorada aurora demeu país natal”. Após a ária mencionada, canta, no entanto, como se arecordasse, uma “velha” balada de estilo europeu – conhecimento assazestranho, convenhamos, para uma escrava índia, mesmo doméstica... (GO-MES; PARAVICINI, 1985: 205-206) A balada em questão tem a mesma melo-dia do início e do final do prelúdio da ópera: o qual, portanto, remete a Ilaraem primeiro lugar (na parte central do mesmo, há uma seção que remetetematicamente a Iberê e à revolta dos tamoios). Ela e Iberê é que são osprotagonistas da ópera, mesmo se o casal romântico é formado por ela e

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Américo, sobrando Iberê, que a ama sem ser correspondido. A estruturamusical deixa claríssima a hierarquia que privilegia os protagonistas índiossobre Américo. Ela adere de início, no terceiro ato, à revolta dos tamoios(quinta cena), cantando, junto com outros: “In quell’acento mesto e dolenteudir mi sembra triste un lamento... Ed il materno pianto ramento dell’infeliceche schiava fu!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 269-271): “Nestas palavrasacabrunhadas e doridas parece-me ouvir um triste lamento; e lembro-me dopranto de minha infeliz mãe, que foi escrava!”. No entanto, em passagemeliminada da versão revista da ópera, quando os índios amotinados decidematacar a fazenda do conde Rodrigo, ela se prepara para ir avisar do ataque;ocasião em que, falando de si mesma, afirma (sexta cena): “La donna brasilianailluminata dai raggi d’amor sfidar saprà dell’imensa foresta il tenebror!”;1 emtradução: “A mulher brasileira, iluminada pela luz do amor, saberá desafiar aescuridão da floresta imensa!” – só não partindo ao dar-se conta de que osíndios rebeldes, tendo ouvido o canhão da frota portuguesa na Guanabara,decidem dirigir-se para lá e dar-lhe combate, em lugar de irem em direção aovale do Paraíba. Seja como for, o caráter positivo da figura de Ilara é afirmadoem numerosas passagens do texto, bem como, repetidamente, pela música.

Na condessa de Boissy temos, para começar, a personagem maisabsurda de uma ópera já bem carregada de absurdos, como quase todas asdo século XIX se levarmos a sério seus detalhes de enredo cheios de ana-cronismos. Trata-se de uma francesa cercada, como se vê em sua festa, deoficiais franceses, hostis, supõe-se, ao Brasil português, já que aliados aostamoios amotinados; mas, ao mesmo tempo, a condessa tem relações cordi-ais com um português patriota como o conde Rodrigo, que gostaria de vê-lacasada com seu filho e, ao que parece, está legalmente instalada em Niterói,na época (1567) inequivocamente sob controle dos portugueses, onde avisitam aqueles militares franceses! Ela só aparece no segundo ato, ondesua figura é contraditória; mas a contradição funciona de acordo com alógica do esquema geral. Ou seja, ela é negativa, antagonista, em sua quali-dade de pretendente ao amor de Américo e também como estrangeira; mas,ao comprar e libertar escravos, está do lado dos brasileiros, dos índios e, emparticular, dos protagonistas Iberê e Ilara, que figuram entre os alforriados.Transforma-se por algum tempo, assim, de fútil beldade, desagradável esarcástica em sua infelicidade amorosa, em eloqüente arauto dos ideais da

1 Neste caso, cito segundo o libreto original de Rodolfo Paravicini,reproduzido em folheto que acompanha a edição em CD de Lo schiavo, récita realizadano Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 26 de junho de 1959, p. 5. Esta edição daópera em CD é da Sonopress, Manaus, 1997, discos MC006-1 e MC006-2.

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libertação dos escravos (segundo ato, sexta cena): “Un astro splendido nelcielo appar, ravviva, illumina foresta e mar! Sotto quel raggio dell’astros’innalza un grido che in ogni lido echeggierà! È l’inno eterno che non morrà,il grido unanime di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 155-156): “Umastro esplêndido aparece no céu, reanima, ilumina a floresta e o mar!... E sobo raio do astro, ergue-se um grito, que ecoará em todos os rincões! É o hinoeterno, imorredouro: o grito unânime de liberdade!”.

Por fim, os índios, personagem coletiva. No primeiro ato, são índi-os escravizados: com os camaradas da fazenda, integram o grupo dos brasi-leiros. São, portanto, positivos: desejam a liberdade, odeiam o feitor, interce-dem por Iberê e vêem em Américo – que se enxerga igualmente como brasilei-ro – seu amigo e protetor (primeiro ato, nona cena). Os índios do terceiro equarto atos são diferentes: índios “bravos” que preparam e depois realizamuma revolta contra os portugueses escravizadores e usurpadores, os“emboabas”, os “estrangeiros”; como dizem em coro (terceiro ato, quartacena): “L’Emboâba, armato, la nostra terra ha già varcato” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 240-241): “O emboaba, armado, já invadiu a nossa terra”.Ou, ainda (quarto ato, terceira cena): “Guerra feroce! Dalla riviera farem barrieraall’invasor! Al grido nostro in terra l’eco risponda in mare. Schiavi non più,l’altare alziam di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 304-305): “Guerraferoz! Do litoral formaremos uma barreira ao invasor! Que o eco responda, nomar, ao nosso grido proferido na terra: ‘Não mais escravos, ergamos o altarda liberdade!’ ”. Toda a construção do libreto da ópera volta-se para a valo-rização axiológica desses ideais de alforria, de liberdade. No entanto, osmesmos índios se transformam em antagonistas e seu aspecto muda ? bemcomo, no quarto ato, o texto e a música acentuam seu “primitivismo” feroz(coisa que Ilara constata no final do terceiro ato, na porção eliminada daversão revista da ópera, sem que, então, tal sentimento seja seguido porIberê, que a ele se associará só no último ato) – quando se voltam contra osprotagonistas e, a seguir, contra Américo. Uma das formas mais insistentesem que o texto “constrói” os índios é por meio da multiplicação de termostupis (às vezes adaptados à língua italiana): “inúbia” (no primeiro, terceiro equarto atos); “Tupã”, “emboaba”, “Tupiberaba” (no terceiro ato); além dediversos topônimos de mesma origem. Musicalmente, nesta ópera como emIl Guarany, Carlos Gomes inventa – pois não há autenticidade ou pesquisano que faz – uma “música que designa os índios”, caracterizada, entre outrascoisas, por ritmos repetitivos e insistentes: designa-os, isto é, “para europeuver”, como figuras exóticas. É interessante notar uma inversão em relação àópera anterior: em Il Guarany (de 1870), o índio “bom” é o guarani que apóiaos portugueses, os índios “maus” são os aimorés anti-lusitanos; em Lo

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Schiavo, os índios em princípio mais positivos são exatamente aqueles re-beldes aos portugueses.

6. Construção musical: o e6. Construção musical: o e6. Construção musical: o e6. Construção musical: o e6. Construção musical: o exxxxxemplo da “Alvemplo da “Alvemplo da “Alvemplo da “Alvemplo da “Alvorada”orada”orada”orada”orada”

Lo Schiavo foi composto para o Teatro Municipal de Bolonha,mesmo se, por uma série de circunstâncias, terminou por estrear no Rio deJaneiro. Sua música, como outros elementos (cenários, índios), busca umavisão pitoresca do Brasil tropical, visando a um público europeu. Vamosexplicar como funciona a isotopia no nível da música tomando um exemplo:a página orquestral conhecida como “Alvorada” (quarto ato, quarta cena).Do ponto de vista isotópico, este interlúdio, espécie de pequeno poemasinfônico que descreve o nascer do Sol, aponta para os elementos musicaisprincipais seguintes, anteriormente ouvidos na ópera, para o contexto emque apareceram então e, eventualmente, para as palavras na ocasião pro-nunciadas em conjunto com a música:

1) uma espécie de “hino” à liberdade dos escravos, que antessurgira duas vezes: no primeiro ato, sexta cena, na voz de Américo e depoisdo coro - quando fica explícita a metáfora da “aurora” para significar a liber-tação dos escravos, nas palavras “Coraggio ancora! lontan non è la desiataaurora per voi/noi di libertà!” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 67-68, 73): “Co-ragem ainda! Não está distante, para vós/nós, a aurora desejada da liberda-de!”; e no segundo ato, sétima cena, em variante mais curta, na voz dacondessa de Boissy, em seguida no coro, dirigindo aos escravos recém-alforriados as palavras: “In voi ritorna il dritto umano: che il cielo vi benedica”(GOMES; PARAVICINI, 1985: 162-163): “Volta para vós o direito humano:que o céu vos bendiga”. Pouco antes (segundo ato, sexta cena), o Brasilhavia sido aclamado pelo coro como “terra civile di libertà” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 157): “terra cortês da liberdade”;

2) a primeira frase musical (mais exatamente, um membro dessafrase) da ária de Iberê (quarto ato, terceira cena), “Sogni d’amore” (GOMES;PARAVICINI, 1985: 300): “Sonhos de amor”, cujo texto comenta seu amorinfeliz por Ilara, miséria que contrasta com seu esplendor de cacique (chama-do no texto, diversas vezes e inadequadamente, de “rei”);

3) uma ocasião anterior (segundo ato, terceira cena) em que, naária de Américo, “Quando nascesti tu” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 127-129): “Quando tu nasceste”, a linha melódica, na voz do tenor, dialogava emcontraponto com um canto de pássaro (madeiras).

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Ao tratarmos dos cenários, reproduzimos o texto que, na própriapartitura da ópera, descreve a “Alvorada”. Ele corresponde bastante bem àestrutura musical da peça, que parece feita sob medida para um desempenhobrilhante dos responsáveis pela iluminação. No Teatro Municipal do Rio deJaneiro, enquanto a ópera esteve no repertório habitual daquela casa deespetáculos, até o início da década de 1960, sua realização, com justiça, eramuito famosa.

Eis aqui a estrutura musical básica da “Alvorada”, cuja duraçãototal é de aproximadamente sete minutos e meio: 2

1) Após uma longa nota ré (trompa), anunciadora da que será atonalidade principal da página musical que comentamos, ouve-se, no regis-tro grave das cordas e depois também das madeiras, uma sucessão de acor-des - passagem lenta, cromática, modulante e sombria que representa o marondulante e seu embate nas pedras costeiras. Firma-se a tonalidade principalda “Alvorada” (Ré Maior) e aparece, lírica e suavemente exposto no agudodas madeiras, depois nas cordas em pianíssimo, um tema baseado na fraseinicial da ária de Iberê (“Sogni d’amore”), ancorando assim a peça sinfônicano universo diegético da ópera e, ao mesmo tempo, reafirmando o caciquecomo protagonista da mesma. Um efeito sonoro grave e bizarro de instru-mentos de metal se ouve quatro vezes, sugerindo a inúbia indígena, e ocorrea introdução de temas vinculados aos pássaros (canto e revoada). Umatransição (começada pela harpa) prepara a parte seguinte (GOMES;PARAVICINI, 1985: 308-309).

2) Primeira execução do toque de despertar (ou de alvorada): trom-beta interna (fora de cena), efeito de eco. Nova intervenção da harpa leva aoreaparecimento de cantos variados e revoadas de pássaros, depois aconte-ce a segunda apresentação do toque de trombeta, agora com acompanha-mento dos passarinhos. O mar é evocado outra vez no registro grave, emsons que sugerem também a luz incerta da madrugada, antes da aurora plena,sempre com cantos de pássaros. Isto se transforma numa transição (GO-MES; PARAVICINI, 1985: 309-311).

3) Parte lírica baseada na primeira frase da ária de Iberê (cordas),com o canto do sabiá como contraponto (madeiras), seguida pelo retorno dotoque de alvorada, sem que cessem os pássaros. Ao continuar em coda

2 A execução com que trabalhei ao elaborar este artigo foi a faixa 7 (cujaduração é de 7 minutos e 39 segundos) do CD: Carlos Gomes. Aberturas e prelúdios.Orquestra Sinfônica Brasileira. Regente: Yeruham Scharovsky. Edição da Sonopress,Manaus, patrocinada pelo Programa de Apoio às Orquestras do Ministério da Cultura,1998. OSBCD0001/98.

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veemente, o próprio toque de corneta faz a transição à parte seguinte(GOMES; PARAVICINI, 1985: 311-313).

4) Voltam, subindo de tom em modulações sucessivas, as duasprimeiras notas da ária de Iberê. Alvoroço da passarada e aceleração doandamento: a tensão e a expectativa crescem, preparando o clímax da peça,ao cantarem agora os pássaros em uníssono, pois a luz aumenta (GOMES;PARAVICINI, 1985: 314).

5) Surge, imponente, o “hino de liberdade” - que é ao mesmotempo o tema da aurora - nos metais, conduzindo ao final grandioso: umafanfarra, desta vez acompanhada pela orquestra em peso, saúda o Sol nas-cente, cujos raios, iluminando por fim as montanhas da Guanabara, são re-presentados pelos pratos ou címbalos (GOMES; PARAVICINI, 1958: 314-315).

A associação “hino de liberdade”/alvorada metaforiza o ato deabolição da escravidão - habitualmente, na época e também com freqüênciaem ocasiões posteriores, por exemplo em livros didáticos, atribuído à inicia-tiva de quem o assinou, a princesa Isabel (a quem a ópera foi dedicada pelocompositor) - como uma nova aurora para o Brasil. Esta noção é tambémpreparada em palavras pelo coro interno dos índios que precede imediata-mente a “Alvorada” (GOMES; PARAVICINI, 1985: 303-307). Em suma, umtema abolicionista pretensa e absurdamente situado no século XVI quis, naverdade, exaltar a abolição recente ocorrida em 1888 de modo a sublinhar emtom favorável o papel, nela, do regime imperial. O irônico - mas Carlos Gomesnão o podia saber - foi que a metáfora da aurora/abolição soasse, num teatrodo Rio de Janeiro, no crepúsculo do Império...

Conc lusãoConc lusãoConc lusãoConc lusãoConc lusão

Na polêmica entre os que defendem um caráter essencialmentebrasileiro para a música de Carlos Gomes e aqueles que acham que, pelomenos em sua fase européia, o compositor utilizou uma linguagem musicalitaliana (alguns preferem dizer “italianizada”, embora eu não veja muito bema utilidade de uma distinção deste tipo) - o que não exclui, claro está, apresença eventual de elementos brasileiros -, pendo para a segunda posi-ção. Mas é evidente que, ao chegar a Milão aos 27 anos de idade, CarlosGomes não era nem podia ser, ideologicamente, uma tabula rasa. A análiseseletiva de Lo schiavo empreendida neste artigo mostra que o músico parti-cipava da preocupação do Império com a construção da nacionalidade bra-sileira, um projeto que, entre outros elementos, passou pela invenção literá-

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ria de um índio heróico e cavalheiresco e daquilo que se chamou nos manu-ais escolares, desde então, de “movimentos nativistas”: nesta ópera, o mo-vimento tamoio é construído como movimento nativista e seu chefe, Iberê,parece concentrar em si as virtudes de um cavaleiro medieval tal como oRomantismo o recriava. Deste ponto de vista, se não daquele de sua lingua-gem musical, mesmo enquanto trabalhava na Europa em suas óperas canta-das em italiano mas que desenvolviam temas brasileiros inspirados na litera-tura nacional - Il Guarany e Lo schiavo -, o compositor permanecia semdúvida alguma brasileiro. Recordava, emocionado, a natureza do seu país econtinuava bem próximo aos interesses do regime imperial, arrimo principalde sua carreira, o que lhe valeria alguns dissabores nos últimos anos de suavida, após 1889.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, História. Campinas: Papirus, 1997.COURTÉS, Joseph. Analyse sémiotique du discours: De l’énoncé à l’énonciation. Paris:Hachette, 1991.ECO, Umberto. Lector in fabula. Milão: Bompiani, 1979.GOMES, Carlos (música); PARAVICINI, Rodolfo (libreto). Lo Schiavo. Redução paracanto e piano de G. Loscar. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1985.GREIMAS, Algirdas Julien. Du sens: Essais sémiotiques. Paris: Seuil, 1970.GREIMAS, Algirdas; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. Trad. Alceu DiasLima et alii. São Paulo: Cultrix, s.d.VANOYE, François e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Précis d’analyse filmique. Paris: Nathan,1992.

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SOCIOLOGIA

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APRESENTAÇÃO DA ÁREA DE SOCIOLOGIA

Ao falar da graduação, acredito que uma das primeiras coisas quevem à mente é a questão da experiência. Esta enquanto vivências de nossocotidiano na graduação, enquanto todos os momentos de dúvidas equestionamentos, a experiência enquanto as descobertas e contatos com asnormas e as formas da academia, enquanto lapidação do que viremos a ser.Ao apresentar a área de sociologia de nossa revista Sociedade em Estudoseste foi o primeiro tema que nos pareceu ser possível comentar.

Sabemos que não é raro a graduação ser relegada ao segundoplano em prol da pós-graduação. Dessa maneira, muitos estudantes quepoderiam ter uma formação mais rica e completa ficam a mercê de suas própri-as motivações e deixam de poder ter um maior e melhor contato com osassuntos referentes à academia. Então, acreditamos que participar de umprojeto como este, que é a Revista Sociedade em Estudos, torna-se um palcointeressante para obter este contato com novos aspectos da graduação e daacademia. Dizemos isso, motivado pelas palavras de incentivo dadas pormuitos professores de diferentes instituições com os quais, até agora, tive-mos a oportunidade de nos comunicar.

É de nosso interesse, colocar aqui na revista os primeiros escritosde graduandos e graduados que desenvolvam ou desenvolveram pesquisasna graduação. Estes escritos, então, podem se apresentar como aquelasexperiências que foram obtidas na graduação, no primeiro momento que setem de formação acadêmica. Serão frutos daqueles graduandos que em de-terminado momento se debruçaram sobre um tema sejam por quais diferen-tes razões e motivações tenham sido, daqueles que nutrem uma inquietação,um desejo de saber, ou mais intimamente uma vontade de mudanças, aindaque a realidade sempre vá tratar de nos podar. Daqueles que constroemcertas dúvidas quanto o porquê fazer ciência, e ainda que essa questão játenha sido pensada, agora ela é repensada por aqueles que estão começan-do. Enfim, a experiência obtida na graduação e o contato com o fazer pesqui-sa começam a clarificar certas questões e delimitar caminhos.

Sendo nossa revista aberta à graduação, e esta abrigandograduandos que pesquisam os mais diversos temas, certamente ao longo denossa revista conseguiremos publicar uma gama de artigos dos mais dife-rentes assuntos possíveis. Assuntos esses que habitam os programas das

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universidades e fazem representar as áreas de pesquisa da sociologia, comoa cidade, o campo, a arte, a religião, as questões de gênero, a produção doconhecimento, o trabalho, a violência, a educação, e várias outras.

Esperamos assim que nossa revista como um todo, e tambémespecificamente a área de sociologia, possa contribuir, fomentar e incentivara produção acadêmica, a escrita de artigos, um maior contato por parte dosdiscentes com a universidade, e talvez quem sabe, proporcionar à algunsdocentes começar a repensar a graduação. Sim, pois como temos faladonesta nossa sincera apresentação, a graduação universitária, como qualqueroutro ambiente, é um lugar onde se desenvolvem experiências e adiciona-sevivências. E aqueles que querem vir a ser sociólogos, têm na graduação seuprimeiro passo e um bom lugar para agregar experiências. Para nós que coor-denamos a revista, esta tem sido uma experiência rica, seria então, motivadorque nossa revista pudesse tranformar-se em um espaço que promovesse oconhecimento e expusesse a produção sociológica de diversas graduações.Enfim, que nossa revista possa ter o privilégio de publicar o resultado dediversas experiências.

Felipe Fares Lippmann Trovão (Coordenador)Luiz Eduardo Silva e Silva (Coordenador)

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FAZER CIÊNCIA NA GRADUAÇÃO: SOCIOLOGIA

Vilma Figueiredo*

Ao aceitar o convite da Revista Sociedade em Estudos para apre-sentar um texto sobre o fazer ciência na graduação, aproveito a oportunida-de para destacar dois pontos: primeiro, o privilégio que é poder fazer ciênciana graduação e, segundo, os desafios de se fazer ciência na graduação,particularmente para a sociologia. Finalmente, algumas considerações sobrecustos e opções viáveis.

O privilégio da iniciação científica:O privilégio da iniciação científica:O privilégio da iniciação científica:O privilégio da iniciação científica:O privilégio da iniciação científica:

Não faz tanto tempo assim, a pesquisa científica na graduaçãoexistia, apenas, como resultado de esforço individual de professores especi-almente comprometidos com a ciência. Esses treinavam seus alunos procu-rando dar-lhes oportunidade de vivenciar os passos básicos da atividadecientífica de forma criativa e quase que abnegada, com pouco ou nenhumapoio institucional. Evidentemente que muita improvisação se fazia neces-sária e, frequentemente, tais atividades não se concluíam de forma satisfatória.Entretanto, a motivação para a ciência foi, desse modo, estimulada e muitosdos estudantes assim formados são, hoje, cientistas de renome em suasrespectivas áreas.

Ainda havia o caso da absorção de estudantes em atividadesmais rotineiras e de pouca elaboração numa ou noutra etapa de projetos maisambiciosos de pesquisa sem que os mesmos tivessem idéia da complexidadee/ou da totalidade do projeto. Mesmo nesses casos, sentido-se aproveita-dos como mão de obra barata, era comum os estudantes sentirem-se orgu-lhosos de participar da pesquisa e, também, alguma coisa se aprendia.

* Mestre em Ciência Política pela IUPERJ, PhD em Sociologia pela GeorgeWashington University, Professora Emérita pela Unb

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FIGUEIREDO, V. Fazer ciência na graduação: sociologia

Há que se reconhecer que tais condições evoluíram muito emnosso país nas últimas 4 ou 5 décadas. A criação do CNPq e da CAPES, em1951, são marcos fundamentais na configuração do espaço institucional daatividade científica, não apenas pela progressiva divulgação de um ethoscientífico, mas pela implementação de mecanismos de apoio efetivo da ativi-dade científica que se vêm aperfeiçoando ao longo do tempo. O financia-mento de projetos, as bolsas de pós graduação, as bolsas de pesquisa emdiferentes categorias e as bolsas de iniciação científica, em programas cadavez mais integrados aliados ao esforço de avaliação que se pretende aperfei-çoar continuamente, são vitórias inegáveis que se refletem na crescenteparticipação de trabalhos de cientistas brasileiros em diferentes publicaçõese foros internacionais. Relevante, igualmente, para tal resultado, é a ação dealgumas fundações estaduais de apoio à pesquisa, se bem que suas ativida-des atinjam apenas marginalmente a graduação.

Inegavelmente, no que diz respeito à rede institucional de apoio àpesquisa e de formação de pesquisadores, particularmente as bolsas deiniciação científica, o Brasil se destaca não apenas entre os países em desen-volvimento, mas chega a comparar-se a alguns dos mais desenvolvidos.

Evidentemente, ufanismos são descabidos ao se tratar dessa ques-tão, mesmo porque há, ainda, a se perguntar pelos efeitos práticos, para asociedade brasileira e para o desenvolvimento do país, desse imenso inves-timento em cientistas e aprendizes de cientistas. A ciência não se restringe àsolução de problemas concretos, mas, financiada com recursos públicos esem solucionar problemas concretos, perde sua razão de ser.

A quase totalidade da pesquisa feita no Brasil é financiada comrecursos públicos, em sua maioria federais, mas também estaduais em algu-mas regiões. E essa pesquisa desenvolve-se, também em sua quase totalida-de, em universidades públicas do sudeste, sul, centroeste, nordeste e norte.Afora as PUCs (Pontifícias Universidades Católicas), a pesquisa em univer-sidades privadas é irrelevante, do mesmo modo que são irrelevantes osrecursos privados investidos na pesquisa e na formação de pesquisadores.

Assim, pode-se afirmar que fazer ciência na graduação é privilé-gio de estudantes de universidades públicas portadores de bolsas concedi-das por instituições governamentais a projetos de pesquisa por elas apoia-dos. A grande expansão dessas bolsas de pesquisa para alunos de gradua-ção ocorreu nas duas últimas décadas como resultado da ação de pesquisa-dores seniors junto à CAPES e ao CNPq e a valorização de projetos queabsorvam estudantes nos diferentes níveis de formação e não apenas napós-graduação.

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FIGUEIREDO, V. Fazer ciência na graduação: sociologia

A avaliação das atividades desenvolvidas por esses bolsistasvem-se aprimorando gradualmente e já extrapola o limite das agênciasfinanciadoras. A SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência)seleciona e apresenta trabalhos de iniciação a ela submetidos para os encon-tros anuais. Outras sociedades científicas, também, já abrem espaço paraapresentação de trabalhos de estudantes, criando, assim, mais um espaço deavaliação do que é feito e mais um forte estímulo ao aprendizado da pesqui-sa. A participação crescente de estudantes nos encontros anuais da SBPC,atribuível não apenas ao desejo de assistir às palestras e cursos oferecidospor seus mestres, mas, talvez principalmente, à satisfacão de ver seu traba-lho e de seus colegas apresentado é um forte indicador do grau de dinamis-mo da atividade de pesquisa na graduação, nas diferentes áreas do conheci-mento.

A iniciação científica na sociologiaA iniciação científica na sociologiaA iniciação científica na sociologiaA iniciação científica na sociologiaA iniciação científica na sociologia

A iniciação científica na sociologia enfrenta desafios específicos.Talvez o mais grave seja o do rigor do discurso baseado na pesquisa cientí-fica. Isso porque, apresentam-se como sociológicas falas emotivas, carrega-das de impressões subjetivas, expressões dos valores e desejos de quem asemite. Todos os que têm opiniões sobre qualquer dimensão da vida emsociedade acreditam-se sociólogos. Se não todos, grande parte...

E um dos maiores problemas da sociologia no Brasil é o grandenúmero de “sociólogos”, graduados em cursos de ciências sociais que nãooferecem formação em pesquisa, mas que são hábeis em formar opiniões. E odiscurso rigoroso, científico, sobre a sociedade difere fundamentalmente deopiniões valorativas, defesas ideológicas, impressionismos.

Um dos equívocos mais evidentes e generalizados é o de se qua-lificarem falas em defesa de pobres e excluídos e em nome da igualdade comosendo sociologia. Se a solução do problema da desigualdade for possível,não será com falas emotivas e fáceis que ela se produzirá, mas sim comlevantamento rigoroso, responsável e competente das condições que pro-duzem a pobreza e a exclusão social – desafio que cabe à sociologia- e mais,que existam as condições favoráveis para que decisões sejam tomadas vi-sando à solução desses problemas.

Apenas para ilustrar o ponto acima levantado: algumas cidadesbrasileiras, particularmente Belo Horizonte, têm conseguido melhorar a qua-lidade de vida de seus habitantes reduzindo a violência urbana. Essa vitória

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FIGUEIREDO, V. Fazer ciência na graduação: sociologia

vem se produzindo como resultado de séria pesquisa liderada por sociólogoe de ação conjunta, multiinstitucional, sempre orientada pelas informaçõesda pesquisa.

Entretanto, é preciso, sempre, enfatizar que os problemas sociaisnão se resumem ao fim da pobreza e que à ciência da sociedade cabe compre-ender as diferentes dimensões e práticas da vida em social, a natureza daselites, os mecanismos de exercício do poder, a produção da exclusão, paraque se torne possível, inclusive, a solução conseqüente de problemas comopobreza e violência urbana. Para que fiquem claros os elos entre corrupção emiséria, entre corporativismo e entrave burocrático, entre patrimonialismo ecompra de adesões políticas de parlamentares, e muito mais.

A boa sociologia poderá servir para que se evitem medidas fáceis eequivocadas, que se evitem as falsas soluções pelas esmolas, pelo fornecimen-to de carroças puxadas a burricos para catadores de lixo, enfim, a boa sociologiaoferece as possibilidades de enfrentamento eficaz de problemas sociais.

Isso, porém, exige investimento intelectual e coragem para sepa-rar discurso generoso e iludido de visão clara da realidade social. Separarsonho de ciência.

A sociologia é ciência. Ciência extremamente complexa, de altograu de abstração, exigindo trabalho rigoroso de conceitos e levantamentodetalhado de dados empíricos. Como dizemos entre pares: a sociologia éciência da maturidade; a rigor, somos, por longo período, aprendizes desociólogos.

Nem todo sociólogo, entretanto, vai exercer sua profissão comopesquisador. As possibilidades de trabalho são diversas. A experiência empesquisa, porém, marca uma diferença qualitativa na postura profissional dosociólogo, onde quer que esteja exercendo sua profissão.

O aprendizado da sociologia inicia-se, sistematicamente, na gra-duação. Aí começa-se a aprender a importância do rigor conceitual, a dirigir-se a observação para o fato social. Toma-se contato com as dificuldadesenvolvidas na formulação de um problema de pesquisa e na elaboração deuma hipótese. Quando o estudante tem a oportunidade de participar deprojetos de pesquisa, irá iniciar-se na disciplina da coleta rigorosa de dadose nos mistérios de sua análise à luz dos conceitos que informaram a hipótese.

Um pesquisador, entretanto, não se completa na graduação: ini-cia-se nela. Mas é possível, sim, graduar sociólogos com base em pesquisa.E, quando é esse o caso, a vantagem é evidente sobre os que não tiveramessa base. Isso, tanto na competição para a pós-graduação como na disputade postos no mercado de trabalho.

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As oportunidades institucionais de pesquisa na graduação acom-panham a expansão da pós-graduação no país. Na sociologia, o aumento donúmero e da qualidade dos cursos de mestrado e doutorado levou à difusãoda importância da pesquisa na formação do sociólogo até à graduação.

As melhores condições de pesquisa na graduação do sociólogosão encontradas nos departamentos universitários que oferecem gradua-ção, mestrado e doutorado. Nesses casos, a “cultura” da pesquisa passa aser parte integrante da atividade acadêmica, motivando o estudante e intro-duzindo, na prática, o rigor científico.

A pesquisa na graduação tem que ser fortemente orientada e su-pervisionada pelo professor. Há diversos modos pelos quais esse acompa-nhamento pode ser feito, segundo a própria natureza da pesquisa. Em proje-tos pequenos, de curta duração, com fins prioritariamente didáticos, apenaso professor e alunos de graduação podem estar envolvidos. Em projetosmaiores, que integram estudantes de diferentes níveis (da graduação aodoutorado) o rendimento pode ser maior. Tais projetos são estimulados pe-las agências financiadores de pesquisa, mas exigem professores orientadoresaltamente qualificados; caso contrário, o fracasso é certo, dada a complexi-dade da pesquisa sociológica de maior porte. Entretanto, quando são ade-quadamente conduzidos, produzem resultados acadêmicos e práticos degrande relevância. Em alguns casos chegam a marcar o perfil do departamento.

Os critérios universais básicos do sistema CAPES de avaliaçãodos programas de pós-graduação – competência profissional dos docentes,dedicação efetiva dos professores ao curso e produção científica do progra-ma – em muito contribuem para estimular a pesquisa integrada de docentese estudantes de diferentes níveis, inclusive da graduação. Do mesmo modo,o apoio à pesquisa pelo CNPq, tendendo à indução de projetos via editais,estimula propostas que integram docentes e discentes de diferentes níveis.

Parece inquestionável a relevância da pesquisa na graduação,particularmente na sociologia. É o que vem demostrando a atuação dosmelhores programas universitários e das principais agências de fomento.

Custos, benefícios e opções viáveisCustos, benefícios e opções viáveisCustos, benefícios e opções viáveisCustos, benefícios e opções viáveisCustos, benefícios e opções viáveis

Entretanto, os altos recursos necessários ao financiamento tor-nam impossível a generalização da pesquisa de modo a atingir toda a gradu-ação, quando o financiamento da pesquisa é exclusivamente público, comono Brasil.

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FIGUEIREDO, V. Fazer ciência na graduação: sociologia

Como afirmou Eunice Durham (1993): “...o custo, tanto em termosfinanceiros como de recursos humanos, de instituições de ensino que sejam,simultaneamente, grandes centros de pesquisa competitivos em nível inter-nacional, é demasiado elevado para que esse modelo possa ser multiplicadoem número suficiente, de modo a absorver toda a demanda por formação denível superior”.

Sem dúvida, mesmo nos países mais ricos os recursos públicosnão são suficientes para tanto.

Uma primeira opção, adotada pela maioria dos países que se des-tacam na pesquisa científica, é a combinação de investimento público eprivado na pesquisa/formação universitária. No Brasil, ainda é lamentavel-mente pequena a participação de recursos privados na pesquisa, vindos deindustriais, comerciantes ou fundações privadas. E ainda não se pode pen-sar em contribuições familiares dos alunos de universidades públicas, porexemplo, como taxas especiais para participação em pesquisa, pois isso érepelido como privatização da universidade pública.

Uma segunda opção é a ampliação da diversidade do sistema deeducação superior. Já existem, entre nós, instituições de ensino e pesquisa(as instituições federais de ensino superior – IFEs, algumas universidadesestaduais e umas poucas privadas). Dentre essas, que apesar de só repre-sentarem perto de 12% do total das instituições de ensino superior, algumassão de muito bom nível (MARTINS, 1993). Ao lado delas existem outras,primordialmente voltadas para o ensino, onde a pesquisa, mais artesanal,como mencionado no início deste texto, tem cunho mais pedagógico do quecientífico. Essas instituições, em geral, não são públicas. São faculdadesintegradas ou centros universitários privados, mas que podem, alguns, pro-duzir educação de bom nível.

Ainda se faz necessário, para a otimização dos recursos públicosinvestidos na pesquisa e na formação do pesquisador, um aprimoramento dagestão das IFEs, desafio que vem sendo enfrentado, nos últimos anos, semque, entretanto, resultados eficazes já tenham sido encontrados. A nomea-ção de gestores profissionais para a reitoria das universidades, por exemplo,sofre forte oposição dos meios universitários. E a captação de recursosprivados para financiamento de atividades e projetos das universidadespúblicas e a cobrança de taxas escolares também são rejeitadas, pois tidascomo veículos da privatização da universidade pública.

A diversidade institucional, possibilitando oportunidades distin-tas de ensino e pesquisa, o rigor da avaliação de programas e projetos, aprópria variedade de instâncias de avaliação em função de objetivos diver-

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sos, e ainda a diversidade de financiamentos para o ensino superior e apesquisa parecem ser os caminhos da garantia da qualidade do ensino e daprática diversa e generalizada da pesquisa na graduação.

Os caminhos aqui apontados são, de fato, experiências já em ope-ração em nossa realidade do ensino superior, portanto, são viáveis. O que énecessário é que se expandam.

A avaliação de programas e projetos realizada pelas agências pú-blicas de fomento, por exemplo, além de procurar cada vez maior rigor, deveser cada vez mais conseqüente, isto é, deve implicar ações concretas depremiação dos melhores e exclusão dos piores. Essas avaliações, entretanto,podem conviver com outras, por exemplo as realizadas intra –institucionalmente e que visam a apoiar unidades mais carentes. E ainda, asavaliações feitas com participação da comunidade para identificação e fo-mento de resultados práticos. Esses são apenas exemplos dentre possibili-dades que não se excluem mutuamente. O que não se deve é misturar instân-cias e confundir objetivos, pois o mérito acadêmico é algo já estabelecidohistórica e internacionalmente.

A expansão do ensino superior privado, nos últimos anos, já in-clui algumas instituições que ampliam a absorção de docentes com mestradoe doutorado, iniciam atividades de pesquisa e oferecem bons cursos. Infeliz-mente esse ainda não é o caso da maioria.

Apesar de ainda muito pequeno, o financiamento privado da pes-quisa não é totalmente inexistente, o que significa que pode ser ampliado,especialmente para certas áreas do conhecimento de aplicação mais imedia-ta, nas quais há indícios de crescimento.

FinalizandoFinalizandoFinalizandoFinalizandoFinalizando

A pesquisa é experiência insubstituível na graduação em sociolo-gia. Tal afirmação, entretanto, não implica uniformização do padrãoinstitucional dos cursos e nem da atividade de pesquisa.

O importante é que os programas já consolidados, que oferecemcursos de graduação, mestrado e doutorado, continuem a zelar pelo padrãode qualidade, estabelecendo os parâmetros para cursos em fase de consoli-dação.

Igualmente importante é que se admitam possibilidades distintasde financiamento dos cursos, das atividades de pesquisa e da própria ativi-dade de pesquisa para a formação do sociólogo, a participação em um gran-

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de projeto como auxiliar de pesquisa pode ser tão fértil como a participaçãoem projeto artesanal, de cunho estritamente didático.

O importante é que se aprenda a separar conhecimento objetivode opinião e expressão de desejos... e isso é possível.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

DURHAM, Eunice – “O Sistema Federal de Ensino Superior: Problemas e Alternativas “.Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 23, ano 8MARTINS, Carlos Benedito – “Caminhos e descaminhos das Universidades Federais”.Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 23, ano 8

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OS ESTUDOS DA PERFORMANCE E AS METODOLOGIAS EXPERIMENTAIS EMSOCIOLOGIA DA ARTE

João Gabriel L. C. Teixeira*

Resumo: Trata-se de reflexão sobre o uso de metodologias experi-mentais em pesquisas sobre sociologia da arte levadas a cabo naUniversidade de Brasília. Procura-se descrever os procedimentosutilizados bem como alguns dos resultados obtidos em experiênciasdesenvolvidas ao longo das duas últimas décadas. Demonstra como odiálogo entre as ciências sociais e as artes pode beneficiar a constru-ção de uma estética cognitiva que visa acentuar as afinidades entre osdois campos do conhecimento.

Palavras- chave: performance, metodologia, sociologia

1 –Apresentação1 –Apresentação1 –Apresentação1 –Apresentação1 –Apresentação

A reflexão aqui relatada na verdade começou no final da décadade 80 quando se avaliaram preliminarmente os resultados de projeto de pes-quisa pedagógica no ensino de sociologia através do teatro desenvolvidocom alunos de graduação no Departamento de Sociologia da Universidadede Brasília, onde o autor leciona.

Essa avaliação encontra-se descrita com algum detalhe em outrotrabalho1, valendo ressaltar, para os atuais propósitos, a descoberta entãorealizada de que a principal contribuição pedagógica do projeto era a deproporcionar aos alunos uma experiência vivenciada de variados temas ecampos do conhecimento sociológico, através da encenação de espetácu-los teatrais.

* Professor Doutor do Departamento de Sociologia e Coordenador doNúcleo de Estudos sobre a Performance (TRANSE) da Universidade de Brasília.E- mail: [email protected]

1 Teixeira, 1998

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TEIXEIRA, J. G. L. C. Os estudos da performance e...

Com a intenção de delinear uma teoria que destacasse as múlti-plas relações que se podem estabelecer entre sociologia e teatro, elaborou-se a exegese de uma vertente sociológica denominada de análisedramatúrgica2, através da qual chegou-se ao campo dos estudos daperformance, conforme desenvolvidos no Departamento pertinente da Uni-versidade de Nova Iorque, onde Richard Schechner 3despontava como seuprincipal criador e estimulador.

Percebeu-se que os estudos da performance permitiam a aberturade um imenso campo experimental que transcendia aos limites do conheci-mento sociológico, através da absorção de “insights” e informações propor-cionadas pelas diversas contribuições do domínio das ciências sociais, se-jam da antropologia, da etnografia, etnometodologia, do interacionismo sim-bólico, das artes em geral, da etnomusicologia, da psicanálise e da arquitetu-ra, etc.

A partir da criação do TRANSE (Núcleo de Estudos sobre aPerformance) na Universidade de Brasília, em 1995, foram produzidas duasmontagens de espetáculos performáticos dentre outras atividades. O primei-ro. intitulado de “Danação Malandra”, realizado em 1997, versou sobre arelação entre malandragem e identidade nacional. O segundo intitulado de“Mulheres Brasílicas”, realizado em 2000, versou sobre a condição femininano Brasil. Estas duas experiências encontram-se detalhadas em outros traba-lhos4 .

Para efeito desta reflexão, porém, acentua-se, no primeiro espetá-culo, a experimentação em canto e dança que marcavam os sambas dasdécadas de 30 e 40, encenados enquanto números performáticos (os sambaseram “performatizados”, por assim dizer).

Em “Mulheres Brasílicas” intentou-se a montagem de um espetá-culo itinerante que cultivava a prática de um teatro sagrado, inclusive pelautilização de mitos e rituais ancestrais da cultura brasileira, de modore(tradicionalizado). Somente visando à realização desta montagem, o TRAN-SE proporcionou a participação de estudantes e pesquisadores em 6 Ofici-nas diferenciadas: dramaturgia, criação plástica, danças circulares brasilei-ras, musicalização, preparação corporal e arte da performance.

Essa montagem é digna de nota também porque definiu pratica-mente as concepções de performance que o Núcleo passou a adotar. Ou

2 Borreca 19933 Schechner 1985, 1988, 1990 e 1993.4 Teixeira 2000 e Teixeira 2002, respectivamente.

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TEIXEIRA, J. G. L. C. Os estudos da performance e...

seja, privilegiou-se a concepção de performance enquanto linguagem artís-tica, como manifestação cultural e a idéia de performance no quotidiano.Essas três concepções contemplavam as variáveis conceituais do campo daperformance mais em voga e sua escolha se mostrou bastante operacionalpara condução de uma série de atividades desenvolvidas pelo/no Núcleo apartir de então.

Não obstante, constatou-se que essas concepções não são exaus-tivas nem conclusivas. É preciso que se leve em conta, nesta reflexão, queperformance, em última análise, conforme afirma Taylor5, é um termo queconota simultaneamente um processo, uma prática, uma episteme, um modode transmissão, uma realização e uma maneira de intervir no mundo e, por-tanto, suplanta amplamente as possibilidades de significação encontradasem seus sinônimos: teatralidade, ação, espetáculo e representação.

Essa conotação ampliada, por assim dizer, é encontradiça commaior freqüência e nitidez nos experimentos estéticos estimulados por talteoria. Ou seja, é a partir desses experimentos que se constrói a citadaepisteme. Nesse intuito, a teoria da performance informa o substrato sócio-cultural ao mesmo tempo em que utiliza práticas e técnicas artísticas, nabusca do sensível no real e vice-versa. Argumenta-se que a esse processodialógico pode-se atribuir a denominação de experiência vivenciada ou vivida.

2- As metodologias experimentais e a sociologia da arte2- As metodologias experimentais e a sociologia da arte2- As metodologias experimentais e a sociologia da arte2- As metodologias experimentais e a sociologia da arte2- As metodologias experimentais e a sociologia da arte

Esta reflexão foi catalisada pela descoberta recente de que, nasociologia de língua francesa, já se podem identificar pelo menos três soció-logos da arte que utilizam declaradamente metodologias experimentais dife-renciadas em suas pesquisas: Leenhardt, Henion e Mervant-Roux.6 O pri-meiro trabalhando sobre a produção do eu nas imagens, o segundo experi-mentando o pragmatismo de certas práticas musicais e a última cultivando asobrevivência da arte e cultura populares.

Embora esses trabalhos ainda não tenham logrado divulgaçãosuficiente para exercer alguma influência no desenvolvimento recente dasociologia da arte francesa, de qualquer forma vale a pena o registro dosmesmos, tendo em vista que a sociologia “mainstream” jamais admitiu ante-

5 Taylor 20036 Leehardt (s/data), Hennion, 1993 e Mervant-Roux, 2004.

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TEIXEIRA, J. G. L. C. Os estudos da performance e...

riormente que a mesma pudesse vir a se tornar uma ciência experimental(“gente não é cobaia”) ou que pudesse utilizar-se dos métodos experimen-tais proporcionados pelas experiências artísticas informadas pelos estudosda performance.

Essa possibilidade encontra-se presente não apenas nas monta-gens dos espetáculos como nos eventos acadêmicos realizados e que gera-ram várias publicações em que a preocupação experimental é marcante. Ver,por exemplo, a última coletânea organizada pelo Núcleo7, a partir de seminá-rio nacional realizado sobre a temática do “patrimônio imaterial, performancecultural e (re)tradicionalização” em que o experimentalismo aparece com cer-ta relevância.

Ora, segundo Vera Zolberg8, uma característica que parece defini-tiva nas metodologias empregadas pelos sociólogos das artes em seus estu-dos é o uso necessário e ostensivo da observação participante, em que odistanciamento e o antietnocentrismo estejam mesclados e, ao mesmo tem-po, limitados pelas características subjetivas próprias dos objetos artísticos,ou seja, que os seus componentes estéticos estejam sempre considerados eexplicitados, mesmo quando importando procedimentos de outras discipli-nas.

Segundo a mesma autora, pelo fato mesmo de haver re-nascidonos anos 60, sob o signo dos movimentos sociais alternativos, da liberaçãosexual, do feminismo etc. a sociologia da arte surgiu com necessidade deressaltar a dimensão humana por algum tempo esquecida pela sociologia 9: aestética. É preciso ressaltar, no entanto, que os sociólogos da arte precisamatentar sobre o caráter subjetivo de muitas das características de seus obje-tos de estudo, sendo capazes de construir abordagens específicas e diferen-ciadas para atender a essas especificidades.

Essa necessidade, por sua vez, encontra espaço fértil para seuflorescimento no caráter dialógico encetado pelo experimentalismo inerenteaos estudos da performance. Estes, ao tempo em proporcionam o substratointelectual que provoca a reflexão sobre questões sócio-culturais concretas,perseguem as linhas artísticas, tornando público o produto alcançado ebuscando uma platéia com a qual inter-agir.

7 Teixeira et al, 20048 Zolberg 19909 Abordagem iniciada por Durkheim no Année Sociologique no final do

século XIX, desenvolvida por Bastide (1977) e recuperada recentemente por Sebbah(2005).

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Há que se fazer referência também aos experimentos realizados emsala de aula durante o oferecimento de disciplina optativa sobre arte e soci-edade aos alunos de graduação da universidade em que textos acadêmicos10

sobre estudos da performance e da psicanálise são re-interpretados pelosalunos através de encenações e manifestações estéticas variadas. Essesexperimentos mais tarde passaram a compor colagens de performances apre-sentadas ao público no final do curso.

Outros exemplos e desdobramentos práticos do experimentalismonos estudos da performance podem ser encontrados em relatório sobre asatividades do TRANSE relatado em Teixeira11. Essas atividades fizeram partedo elenco das contribuições do TRANSE em diversos festivais de arte eeventos acadêmicos dos estudos da performance, nacionais e internacio-nais.

Culminando os exemplos sobre o que se deseja denominar comoexperiência vivida menciona-se o recurso metodológico empregado por dou-torando12 em sociologia da Universidade de Brasília em sua pesquisa detese. Neste caso, o que aconteceu foi a experimentação sentida no própriocorpo do pesquisador da extensão física das técnicas empregadas nas acro-bacias ensinadas na Escola Nacional de Circo onde o mesmo se matriculoucomo estratégia de aproximação aos alunos e professores da mesma.

3- Os Estudos da Performance e a (Re)tradicionalização3- Os Estudos da Performance e a (Re)tradicionalização3- Os Estudos da Performance e a (Re)tradicionalização3- Os Estudos da Performance e a (Re)tradicionalização3- Os Estudos da Performance e a (Re)tradicionalização

Também durante a realização das oficinas de musica e dança as-sociadas à montagem de “Mulheres Brasílicas” começou-se a notar que oNúcleo estava fomentando concomitantemente um processo artístico e cul-tural que na época denominou-se de re(tradicionalização). Referindo-se aesse processo Garcia13 explica que

... a relação entre os grupos ou segmentos citadinos com as tradições –folguedos, cantos e danças advindos principalmente do nordeste brasileiro– tem-se configurado para além do ato de consumir e de apreciar como

10 Entre os textos mais explorados, citam-se Geertz ,1978; Evreinoff,1976; Goffman, 1973 e FREUD, 1907.

11 Teixeira, 1998 A12 Veiga de Almeida, 200413 Garcia 2004: 117

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TEIXEIRA, J. G. L. C. Os estudos da performance e...

espectadores e interpretes. (...) existe também um desejo patente devivenciar, difundir, reverenciar e defender a continuidade e a transmissãodessas tradições...

Discorrendo sobre a performance como método de estudo sobrea cultura popular, Travassos14 esclarece sobre esse movimento/processo:

As rodas finais das performances, quando todos se dão as mãos paracantar e dançar, representam o desejo de preservação do espírito dafesta popular. De fato, as apresentações culminam invariavelmentenum momento musical animado que contagia a platéia e a faz cantar edançar. Mesmo os espetáculos que se desenrolam num palco terminamassim, reunindo quem tinha sido separado – os artistas”que representavame os “espectadores” diante deles. Instala-se ali uma comunitas fugaz doscultores das tradições.

Mas o que é esse processo de praticar, além de conhecer, as artespopulares, senão mais que um exemplo da “praxeologia” que se encontraimplícita nas possibilidades de experimentação em sociologia da arte? Note-se que essa “praxeologia”, no entender de Brown15, é um dos componentesnecessário à formulação de uma estética cognitiva, estratégia capaz de cons-truir uma poética sociológica, reduzindo as incompatibilidades existentesentre a sociologia e as artes.

Não se trata o mesmo experimento (re)tradicionalizado não maisque um desdobramento eficiente da valorização das performances cultu-rais16 enquanto formas eficazes de emulação de uma identidade cultural even-tualmente perdida? Não seria a mesma apenas uma re-edição do mito doeterno retorno do reprimido?

É bom que se afirme, porém, que nesse contexto saber, compreen-der e praticar não implica em tornar-se nativo, pois re(tradicionalizar) não écopiar ou imitar, porém, realizar, ao mesmo em que se apreende o rito, umatradução e atualização da prática cultural. O importante nesse contexto é oprocesso de enraizmento ou reenraizamento ensejado, em circunstânciasconcretas de desemprego crônico, migrações desenfreadas e de globalizaçãocultural.

14 Travassos 2004:11315 Brown 197716 Turner 1982

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Outro risco que se apresenta é que essa re-(tradicionalização) nãopode significar necessariamente a espetacularização das manifestações cul-turais populares, inseridas na escala pasteurizante das mega-festas e dosmega-shows. Nada mais destituído de interesse e de identificação do queuma manifestação artística popular apresentada fora de seu espaço culturalou mediatizada.

4 - Considerações Finais4 - Considerações Finais4 - Considerações Finais4 - Considerações Finais4 - Considerações Finais

Esta reflexão, entre outras conclusões, leva à consideração deque o experimentalismo aqui defendido pode estreitar, como queria Brown17

as afinidades existentes entre arte e ciência, ou mais precisamente, entre artee sociologia, colaborando na criação de uma estética cognitiva propícia aodesenvolvimento de uma poética para a sociologia, além de arejar as suaslógicas de investigação.

Em princípio, argumenta-se que o saber sociológico se beneficia-ria sobremaneira do empreendimento estético no sentido de expandir aspossibilidades de previsão e prognóstico sobre as transformações sociais.Nisbet18, por exemplo, chama a atenção para a maior capacidade das artes emgeral em insinuar certas antecipações e profecias sobre o desenvolvimentodas sociedades humanas.

Turner19, a seu tempo, sugeriu que essas performance culturaisrevelam o caráter mais profundo, genuíno e individual de cada cultura. Gui-ado pela crença em sua universalidade e relativa transparência, Turner20

propunha que os povos poderiam se compreender melhor através de suasperformances culturais.

Por outro lado, é bom que se esclareça que o que está se preconi-zando é a expansão das possibilidades da lógica da descoberta, por oposi-ção à lógica da demonstração, também constitutiva do saber sociológico,mas que necessita de uma abordagem diferenciada para a sua consecução.Nesse sentido, as artes se beneficiariam desse diálogo com a sociologia no

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_____________________ “Mulheres Brasílicas: Performance e Retradicionalização”in Mulheres Brasílicas, 2002. TRANSE/Departamento de Sociologia/Universidade deBrasília, Brasília.TURNER, Victor. From Ritual to Theatre, 1982, New York, PAJ Publications.VEIGA DE ALMEIDA, Luiz Guilherme. Ritual, Risco e Arte Circense: O homem emsituações limite. Dissertação de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologiada Universidade de Brasília, março de 2004.ZOLBERG, Vera. Constructing a Sociology of the Arts. Cambridge University Press,New York, 1990.

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O SONO DO MUNDO

Márcio Bilharinho Naves*

Referindo-se ao isolamento em que se encontrara após o início desuas descobertas, Freud dizia pertencer àqueles que “perturbaram o sonodo mundo”. Talvez seja este o sentido mais profundo do trabalho científico,o de não se deter frente ao estabelecido, ao consagrado, o de não se conten-tar com as formas aparentes, o de ir além dos limites, da prudência, o de“perturbar o sono do mundo”. É preciso educar o olhar para que ele possaverdadeiramente ver, para que possamos fazer aquilo que melhor nos define:somos aqueles, em nossa atividade de pesquisa, que vêem o que não podeser visto. A atividade científica dos nossos alunos, desde a graduação, temeste sentido tão peculiar, de “correção” do olhar, para que nos seja permitidopenetrar no “laboratório secreto” do mundo.

Também Marx “perturbou o sono do mundo”, ao apreender aratio dos processos sociais e históricos, ao revelar as condições do domíniode classe sob o capital, possibilitando, assim, à massa trabalhadora formularuma estratégia para a sua emancipação. A pesquisa no domínio das ciênciashumanas pode, portanto, ter um sentido de verdade e de libertação, confor-me a célebre frase de Gramsci, de que a verdade é sempre revolucionária, masela pode igualmente ser um bloqueio ao conhecimento do real, produzindouma representação imaginária das relações sociais. Foi nas universidadesque Freud encontrou o silêncio e a hostilidade, e foi dos professores “cate-dráticos” que Marx recebeu a “refutação” de sua teoria. A investigaçãocientífica tem, assim, que enfrentar, muitas vezes, a enorme força doconservadorismo moralista e dos interesses das classes possuidoras.

Tomemos um exemplo, oriundo do campo jurídico, para constatar-mos a extraordinária capacidade que a ciência possui para “dar conta” doobjeto pesquisado.

* Professor do Intituto de Filosofia e Ciências Humanas da UniversidadeEstadual de Campinas.

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NAVES, M. B. O sono do mundo

A ideologia jurídica nos quer fazer crer que os chamados “direitoshumanos” são formas jurídicas eternas e universais, que a liberdade e aigualdade são constitutivas do próprio homem, são a sua “essência”, a pon-to de a ninguém ser franqueado renunciar à sua liberdade. Porém, uma pe-quena pergunta parece perturbar a serenidade desta construção dogmática:por que, durante séculos, a liberdade e a igualdade não foram reconhecidaspelo homem, e porque apenas em um determinado e preciso momento dahistória, não quinhentos anos antes ou quinhentos anos depois, essas cate-gorias podem finalmente aparecer a nós com a força de uma evidência? As“explicações” (que são tudo, menos uma explicação) provindas do repertó-rio idealista ou empiricista são absolutamente incapazes de responder a essasimples questão.

Se nos voltarmos, entretanto, para o cap. IV de O capital, deMarx, veremos ali a elucidação desse mistério na explicação científica daconstituição da relação de capital. De fato, neste texto, Marx nos mostra quepara ocorrer o surgimento da sociedade burguesa é necessária uma condi-ção absoluta, é preciso que se verifique um processo de expropriação dotrabalhador direto, é preciso que esse trabalhador se constitua como homemlivre, num duplo sentido, por um lado, livre das condições da produção,especialmente dos instrumentos do trabalho e, por outro lado, livre no sen-tido de que ele possa dispor de si mesmo, possa vender a sua força detrabalho. Assim, torna-se possível o surgimento da relação de capital, quevincula, em uma unidade contraditória, o proprietário das condições da pro-dução e o proprietário da força de trabalho por meio de um ato de vontade enão por meio da violência direta. Nas palavras de Marx:

O intercâmbio de mercadorias não inclui em si e para si outras relaçõesde dependência que não as originadas de sua própria natureza. Sob essepressuposto, a força de trabalho como mercadoria só pode aparecer nomercado à medida que e porque ela é oferecida à venda ou é vendidacomo mercadoria por seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é aforça de trabalho. Para que seu possuidor venda-a como mercadoria, eledeve dispor dela, ser, portanto, livre proprietário de sua capacidade detrabalho, de sua pessoa. Ele e o possuidor de dinheiro se encontram nomercado e entram em relação um com o outro como possuidores demercadorias iguais por origem, só se diferenciando por um ser compradore o outro, vendedor, sendo, portanto ambos pessoas juridicamente iguais.A segunda condição essencial para que o possuidor de dinheiro encontreno mercado a força de trabalho como mercadoria, é que seu possuidor,ao invés de poder vender mercadorias em que seu trabalho se tenhaobjetivado, precisa, muito mais, oferecer à venda como mercadoria sua

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própria força de trabalho, que só existe em sua corporatividade viva.Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisaencontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercadorias,livre no duplo sentido de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua forçade trabalho como sua mercadoria, e de ele, por outro lado, não temoutras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisasnecessárias à realização de sua força de trabalho.1

Nas sociedades pré-burguesas a exploração do trabalhador dire-to se dá por meio da coerção extra-econômica, portanto, durante muitosséculos, a dominação de classe pressupôs a existência de vínculos de su-bordinação pessoal, tornando o homem dependente de outro homem, nãosendo ele livre para dispor de si próprio, não podendo oferecer a sua própriacapacidade de trabalho como mercadoria no mercado. Por isso, a liberdade ea igualdade não eram reconhecidas, nem percebidas como “necessárias” àcondição humana.

É precisamente quando as relações de produção capitalistas vãose constituindo, que a liberdade e a igualdade aparecem como se fosseminerentes à própria natureza do homem. A emergência das categorias daliberdade e da igualdade faz com que o homem se transforme em um sujeitode direito, o homem - qualquer homem - passa a ser dotado da mesma capa-cidade jurídica “universal”, “abstrata”, podendo realizar atos jurídicos, cele-brar contratos. Uma vez investido de personalidade, o homem, agora sujeitode direito, pode vender seus atributos, seus predicados, de tal sorte quepodemos dizer que a liberdade do homem é o seu livre consentimento: omomento mais elevado de realização da liberdade é o momento em que ohomem manifesta a sua vontade de dispor de si mesmo por tempo determina-do através de uma troca de eqüivalentes. Como diz Edelman:

... o direito para respeitar e tornar real a faculdade de alienação de simesmo que é reconhecida a toda pessoa física, deve pôr a pessoa humanaem termos de propriedade. A estrutura mesma do sujeito de direito... étão somente a expressão jurídica da comercialização do homem.2

1 Karl Marx, O capital, São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 285-286,287.

2 Bernard Edelman, Histoire et vie privée, in La persone en danger,Paris, Puf, 1999, p. 140.

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Podemos perceber, assim, a importância decisiva que isso tempara a constituição e reprodução contínua do capitalismo pois o capitalexige a presença do homem livre, que possa vender a sua força de trabalho,porque ele se funda numa relação de assalariamento (em uma relação livre) enão na coerção direta sobre o trabalhador.

Este exemplo, dentre tantos outros, revela a capacidade de pene-tração no real, de desfazimento da trama ideológica que recobre as relaçõessociais, possibilitada pela utilização do método científico, assim como ovínculo da ciência com a luta social. Este exemplo pode ser uma fonte deinspiração para que nossos alunos se envolvam com a pesquisa e comecema trilhar os caminhos árduos, mas gratificantes do trabalho científico.

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25ª REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA

Data: 11 a 14 de junho 2006Local:Universidade Católica de Goiás – www.ucg.brAv. Universitária, 1.069 – Setor Universitário 33605019 – 33605085Universidade Federal de Goiás – www.ufg.brPraça Universitária, s/n – Setor UniversitárioContato:ABA – Associação Brasileira de AntropologiaCentro de Filosofia e Humanas – Universidade Federal de Santa

CatarinaCampus UniversitárioTrindade – Florianópolis, SCCEP 88049-900Telefone/fax: (48) 331-8209E-mail: [email protected] correspondência:Cx Postal 5155CEP: 88.040-970Florianópolis, SC

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AOS AUTORES

A Revista Sociedade em Estudos é um periódico de publicaçãosemestral que objetiva divulgar a produção do conhecimento acadêmico, apublicação de resultados de pesquisas realizadas por alunos de graduação erecém formados (até três anos após a conclusão do curso).

A Revista Sociedade em Estudos aceita trabalhos inéditos ou queainda não tenham sido publicados em outros periódicos nacionais, ou quetenham sido publicados em periódicos de língua estrangeira. Os artigosrecebidos serão analisados e, se estiverem de acordo com as normas parapublicação e os princípios que norteiam a revista, serão encaminhados paraapreciação e pareceres. Cada artigo será apreciado por pareceristas (conse-lho consultivo). A decisão sobre a publicação caberá ao Conselho Editorial.

Em consonância com o projeto da revista, o espaço para a publi-cação de artigos obedecerá os seguintes critérios:

1) Todo o espaço da revista será para os artigos enviados porgraduandos (as), desde, é claro, que aprovados pelos pareceristas e ouenviadas as novas versões de acordo com as sugestões do parecer e noprazo determinado; cabe ao conselho editorial publicar artigos de gradua-dos ou não a qualquer momento que se torne necessário tal feito, serãofeitas também concessões especiais para textos de pesquisadores reconhe-cidos que escreverão a convite para a revista.

2) Esta proporção será aplicada desde que seja garantido o cará-ter da multidisciplinaridade da revista;

3) Todos os artigos serão enviados para pareceristas, garantindo-se o anonimato da autoria.

4) Os artigos com pareceres favoráveis não publicados, devido àlimitação da quantidade de artigos por edição, serão incorporados aos arti-gos recebidos para a edição seguinte (e isto, por apenas uma edição).

5) Não será publicado artigo do (a) mesmo (a) autor em ediçõesseguidas.

6) A chamada para artigos será realizada em edital através da pu-blicação do mesmo no número anterior da Revista Sociedade em Estudos etambém através do site www.sociedadeemestudos.ufpr.br

A Revista Sociedade em Estudos não veicula conteúdos racistas,sexistas ou que firam a integridade dos indivíduos. Ela se define enquantoespaço aberto, democrático, plural e crítico, sem concessão interesses de

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cunho partidário, ideológico ou de restrito sentido social. Seu objetivo nãoé doutrinar, mas divulgar e compartilhar idéias, favorecendo o debate demo-crático e o aprendizado permanente.

Os artigos publicados não expressam necessariamente as opini-ões do coletivo da revista. Os autores, considerados individualmente, sãoresponsáveis por suas opiniões e posições.

Os textos que não aprovados por pareceristas não serão devolvi-dos, caberá apenas a Revista avisar ao(s) autor(es) que tal texto não atendeas exigências ou a política editorial da Revista.

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ApoioAssociação Brasileira de Antropologia (ABA) - www.abant.org.br

Associação Paranaense de História (PR) - APAHhttp://www.geocities.com/apah_ufpr/

Curso de Especialização em Sociologia Política – CESP/UFPRwww.espsocpol.ufpr.br

Revista de História da Biblioteca Nacionalwww.revistadehistoria.com.br

Revista de Sociologia Política – RSP - http://www.scielo.br/rsocpCentro Acadêmico de Ciências Sociais (Gestão 2005-2006) – UFPR

www.ufpr.br/~cacsFundação Casa do Estudante do Paraná - CEU

www.ceupr.com.br

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS

1. Aspectos gerais1. Aspectos gerais1. Aspectos gerais1. Aspectos gerais1. Aspectos gerais

Para facilitar o trabalho de análise dos consultores, os textos en-viados para publicação deverão:

• ser digitados em editor de texto “word for windows” 6.0 ouposterior, fonte “Times New Roman”, tamanho 12, com espaçamento 1,5 cmentre linhas;

• os textos devem ser enviados para a sua apreciação exclusiva-mente em Português (Brasil), apenas o resumo deverá ter sua versão eminglês;

• a página deve estar configurada com margens de 2 cm e papelA-4;

• o tamanho dos artigos deve ter como limite 48 mil caracteres(com espaço e incluindo as notas de rodapé e bibliografia) ou 20 páginas, noformato indicado.

• o texto deve ser enviado por e-mail, em mídia ou pessoalmen-te, formato Word em anexo.

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Livro

BABBIE, Earl. “Métodos de Pesquisas de Survey”. Belo Horizon-te : Ed. UFMG. 1999.

Capítulo de Livro

PERISSINOTTO, R. M. . Representation of Interest and StateAutonomy in the São Paulo Agro-Export Economy (1889-1930). In: RenatoMonseff Perissinotto. (Org.). Entrepreneurs, State and Interest Representationin Brazil. 1 ed. New York, 2003, cap. 1, p. 1-26.

Dissertação/Tese

CODATO, Adriano Nervo ; PERISSINOTTO, R. M. . The Stateand Contemporary Political Theory: Lessons From Marx. In: StanleyAronovitz; Peter Bratsis. (Org.). State Theory Reconsidered: Paradigm Lost.Minneapolis, 2002.

Artigos de Periódico

PAIVA, Denise; SOUZA, Marta Rovery & LOPES, Gustavo deFaria. “As percepções sobre Democracia, Cidadania e Direitos”. In: RevistaOpinião Pública, Vol X., no. 02, Campinas 2004. (p. 368-376).

Anais de Eventos

SOUZA, Nelson Rosário de ; PERISSINOTTO, R. M. ; FUKS,Mario . Participação e processo decisório em conselhos gestores de Curitiba.In: 4o Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política, 2004,Rio de Janeiro. 4o Encontro Nacional da Asssociação Brasileira de CiênciaPolítica, 2004. v. 1. p. 73-73

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Artigos de Jornal

PERISSINOTTO, R. M. ; CODATO, Adriano Nervo ; Silva, Ange-lo J. da ; Burmester, Ana M. . História e Memória. Curitiba: Gazeta do Povo,2002 (Organização de encarte comemorativo dos 90 anos da UFPR).

Documentos federais, estaduais e municipais

RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Educação e Cultura.Programa estadual de Sociologia – 1987/1990. Rio de Janeiro: SEEC-RJ,1987. Mimeografado.

VARGAS, Getulio. Proclamação ao povo brasileiro (Lida no Palá-cio Guanabara e irradiada para todo o país na noite de 10 de novembro de1937). In: A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, Vol.V: O Estado Novo (10 de novembro de 1937 a 25 de julho de 1938). p. 15-32.

Documentos eletrônicos

ZAVERUCHA, JORGE. Poder militar: entre o autoritarismo e ademocracia. São Paulo Perspec., Dez 2001, vol.15, no.4, p.76-83. ISSN 0102-8839. [artigo científico]. 2001. Disponível em: < http://www.scielo.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/> . Acesso em: 24 fev. 2006.

5. A5. A5. A5. A5. Avvvvvaliaçãoaliaçãoaliaçãoaliaçãoaliação

Os trabalhos serão avaliados por consultores, podendo ser apro-vados, devolvidos aos autores para eventuais alterações, que deverão de-volver o artigo reformulado num prazo máximo de 10 dias, ou não recomen-dados. A “Revista Sociedade em Estudos” deterá, entretanto, o direito depublicar, com exclusividade, nos dois primeiros casos. A veiculação em ou-tras revistas brasileiras poderá ocorrer após a publicação neste periódico,entretanto a fonte deverá ser citada.

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6. Responsabilidade6. Responsabilidade6. Responsabilidade6. Responsabilidade6. Responsabilidade

Os artigos publicados e as referências mencionadas nesta revistaserão de inteira responsabilidade de seus autores.

REVISTA SOCIEDADE EM ESTUDOSwww.sociedadeemestudos.ufpr.br

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Esta ♦ obra ♦ foi ♦ impressa ♦ na ♦ Gráfica ♦ Reproset ♦Curitiba ♦ PR ♦ Brasil ♦ em ♦ abril ♦ de ♦ 2006 ♦ para ♦a ♦ Editora Sociedade em Estudos