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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 5935 OBJETOS EM LEI: PROVIMENTO MATERIAL DA ESCOLA CATARINENSE (1892 A 1919) 1 Amanda Brunetta Cividini 2 Vera Lucia Gaspar da Silva 3 Danielly Samara Besen 4 Introdução A presente proposta visa a apresentar reflexões com base em um mapeamento sobre o provimento material desenhado para a escola primária e normal catarinense, a partir da análise de documentos que compõem a legislação do ensino do período de 1892 a 1919. Esses documentos foram localizados em acervos, graças aos investimentos que o grupo de pesquisa 5 tem feito para compreender os projetos de escolarização da infância a partir da leitura de sua materialidade. A escolha do período se deve às iniciativas de consolidação e difusão da escola primária, na esteira da aprovação de leis de obrigatoriedade de ensino para a infância, o que alimenta também a organização da escola normal, a instituição que deveria formar mão de obra qualificada para o ensino primário. Acompanhando estudos que se ocupam em refletir sobre a cultura material escolar, temos um conjunto de indicativos que merecem atenção. Trata-se de conexões entre as exposições universais, as leis de obrigatoriedade do ensino e a organização de museus pedagógicos 6 , que, de algum modo, propõem uma estrutura material para a escola. Intentos 1 Artigo abrigado no projeto de pesquisa “Objetos em viagem: provimento material da escola primária nos países ibero-americanos (1870-1930)” com financiamento da CAPES, CNPq e FAPESC. 2 Graduanda em Pedagogia e bolsista de iniciação científica na linha de História e Historiografia da Educação, sob a orientação da professora doutora Vera Lucia Gaspar da Silva. Integrante do grupo de pesquisa “Observatório de práticas escolares”. E-mail: amandacividini@gmail. com 3 Professora Associada da UDESC. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: vera. gaspar. udesc@gmail. com 4 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Sociologia e História da Educação. Integrante do grupo de pesquisa “Observatório de práticas escolares”. E-mail: daniellysamara@hotmail. com 5 Trata-se de um conjunto de trabalhos ocupados com a cultura material escolar, atualmente agregados ao projeto de pesquisa “Objetos em viagem” Algumas produções do grupo, assim como de outros pesquisadores dedicados ao tema, estão disponíveis no blog S. E. Cultura Material Escolar, acessível pelo endereço http://seminarioculturamaterialescolar. blogspot. com. br/. 6 Sobre esta questão, sugerimos a leitura do ensaio "Objetos de Utilidade Prática para o Ensino Elementar: Museus pedagógicos e escolares em debate", de autoria de Vera Lucia Gaspar da Silva e Gizele de Souza, apresentado no IV Seminário Internacional Cultura Material e Patrimônio de Ciência e Tecnologia, realizado no Museu de Astronomia e Ciências Afins em dezembro de 2016. Trabalho disponível em http://www. mast.

OBJETOS EM LEI: PROVIMENTO MATERIAL DA ESCOLA … · difusão da escola primária, ... moderna e mais adequada para a universalização do ensino elementar”, ... O aparecimento,

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 5935

OBJETOS EM LEI: PROVIMENTO MATERIAL DA ESCOLA CATARINENSE (1892 A 1919)1

Amanda Brunetta Cividini2

Vera Lucia Gaspar da Silva3

Danielly Samara Besen4

Introdução

A presente proposta visa a apresentar reflexões com base em um mapeamento sobre o

provimento material desenhado para a escola primária e normal catarinense, a partir da

análise de documentos que compõem a legislação do ensino do período de 1892 a 1919. Esses

documentos foram localizados em acervos, graças aos investimentos que o grupo de

pesquisa5 tem feito para compreender os projetos de escolarização da infância a partir da

leitura de sua materialidade. A escolha do período se deve às iniciativas de consolidação e

difusão da escola primária, na esteira da aprovação de leis de obrigatoriedade de ensino para

a infância, o que alimenta também a organização da escola normal, a instituição que deveria

formar mão de obra qualificada para o ensino primário.

Acompanhando estudos que se ocupam em refletir sobre a cultura material escolar,

temos um conjunto de indicativos que merecem atenção. Trata-se de conexões entre as

exposições universais, as leis de obrigatoriedade do ensino e a organização de museus

pedagógicos6, que, de algum modo, propõem uma estrutura material para a escola. Intentos

1 Artigo abrigado no projeto de pesquisa “Objetos em viagem: provimento material da escola primária nos países

ibero-americanos (1870-1930)” com financiamento da CAPES, CNPq e FAPESC. 2 Graduanda em Pedagogia e bolsista de iniciação científica na linha de História e Historiografia da Educação, sob

a orientação da professora doutora Vera Lucia Gaspar da Silva. Integrante do grupo de pesquisa “Observatório de práticas escolares”. E-mail: amandacividini@gmail. com

3 Professora Associada da UDESC. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: vera. gaspar. udesc@gmail. com

4 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Linha de pesquisa: Sociologia e História da Educação. Integrante do grupo de pesquisa “Observatório de práticas escolares”. E-mail: daniellysamara@hotmail. com

5 Trata-se de um conjunto de trabalhos ocupados com a cultura material escolar, atualmente agregados ao projeto de pesquisa “Objetos em viagem” Algumas produções do grupo, assim como de outros pesquisadores dedicados ao tema, estão disponíveis no blog S. E. Cultura Material Escolar, acessível pelo endereço http://seminarioculturamaterialescolar. blogspot. com. br/.

6 Sobre esta questão, sugerimos a leitura do ensaio "Objetos de Utilidade Prática para o Ensino Elementar: Museus pedagógicos e escolares em debate", de autoria de Vera Lucia Gaspar da Silva e Gizele de Souza, apresentado no IV Seminário Internacional Cultura Material e Patrimônio de Ciência e Tecnologia, realizado no Museu de Astronomia e Ciências Afins em dezembro de 2016. Trabalho disponível em http://www. mast.

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governamentais afinados com as políticas de organização dos estados mesclam-se a uma

indústria emergente, que vê na escola possibilidades de expansão. Não menos importantes

são as prescrições higienistas que defendem ambientes adequados, higienizados, confortáveis

e equipados.

Buscando dar inteligibilidade às reflexões, este trabalho foi organizado em três partes.

Na primeira, intitulada Das Fontes, expõem-se ao leitor os documentos analisados para o

trabalho. Na segunda, Reforma de 1911: o discurso da modernização do ensino, levantam-se

alguns indícios da reforma e se alerta para o fato de que o discurso legal nem sempre se

materializa como realidade. Na terceira, Dos Objetos, investiga-se o provimento material

previsto nos documentos de 1914 e 1916, destinados, respectivamente, a grupos escolares e

escolas reunidas.

Das Fontes

Como base empírica para este trabalho, foram consultados vários documentos,

particularmente aqueles produzidos pelo estado. Obviamente, eles trazem o registro

produzido pelos governos, e, para o caso da legislação, suas intencionalidades. É importante,

porém, reconhecer que são indícios importantes, já que tiveram força política para compor

leis e seus desdobramentos. Os documentos analisados são: Regimento Interno para as

Escolas Públicas de Instrucção7 Primária do Estado de Santa Catharina, de 1892;

Regulamento Geral da Instrucção Pública de Santa Catharina, aprovado pelo decreto 348 de

1907; Regimento Interno dos Grupos Escolares, aprovado pelo Decreto n. 588, de 22 de abril

de 1911; Regimento Interno dos Grupos Escolares, aprovado pelo Decreto n. 795, de 2 de

maio de 1914; Regulamento das Escolas Reunidas, regulamentado pelo Decreto n. 929, de 5

de abril de 1916; Regulamento da Escola Normal, aprovado pelo Decreto n. 1205; Relatório

do Governo de 1912; Relatório de Governo de 1914; mensagem apresentada ao Congresso em

1911 e Synopse do Governador, apresentada ao Congresso em 1914.

Para compor este trabalho, desse conjunto optamos por explorar mais a fundo o

Regimento Interno dos Grupos Escolares de 1914 e o Regulamento das Escolas Reunidas, de

1916. A escolha se justifica por ser este período posterior à reforma do ensino de 1911, com a

qual se redesenhou a inscrição da instituição escolar em território catarinense, e documentos

que tratam de escolas destinadas a diferentes segmentos da população, em geral organizada

br/hotsite_anais_ivspct_2/pdf_02/16%20%2011%20Trabalho%20VeraGaspar%20e%20GizeleSouza. pdf. Acesso em: 19 mar. 2017.

7 Para este trabalho, optou-se por manter a grafia original dos documentos.

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em comunidades urbanas e rurais. A fim de relacionar o estabelecido na legislação com as

condições de funcionamento das escolas e por entender que “a análise da legislação

isoladamente não é suficiente” (FARIA FILHO, 1998, p. 123), utilizaremos quatro

documentos como interlocutores: Relatório de Governo de 1912; Relatório de Governo de

1914; mensagem apresentada ao Congresso em 1911 e Synopse do Governador, apresentado

ao Congresso em 1914.

Reforma de 1911: o discurso da modernização do ensino

Optamos por utilizar a legislação escolar de Santa Catarina e documentos que

registram, em parte, rotinas da escola, como os relatórios, com o objetivo de situar o leitor a

respeito do que era encontrado na legislação para os diferentes tipos de escola e o que de fato

constituía sua materialidade. Trabalhamos, neste artigo, na perspectiva de Faria Filho (1998,

p. 99), buscando “empreender um duplo movimento, que é compreender a legislação como

fonte e, ao mesmo tempo, como objeto de minhas investigações”.

Ao estudar a cultura material da escola, devemos atentar também para o cenário

histórico em que se inseriam esses provimentos materiais, para não atribuir significados

estranhos à época:

A profusão de materiais escolares e a sua diversidade relacionam as novas teorias pedagógicas com o desenvolvimento de tecnologias de produção desses materiais escolares com vista a atender um mercado em expansão. É preciso, pois, ver nos objetos escolares algo mais que um utilitarismo insignificante. Eles manifestam um certo modo de entender e praticar o ensino, além de instituírem um discurso e um poder; eles informam valores e concepções subjacentes à educação e são tomados às vezes como possibilidade e limite do processo ensino-aprendizagem. Compreendem, pois, um aspecto significativo da cultura escolar (SOUZA, 1998, p. 223).

O discurso político do período estudado se caracteriza por apelo à escolarização de

todas as crianças (inclusive de camadas populares) através da escola pública, gratuita e

obrigatória, que se encontrava em expansão, conforme é possível conferir na Mensagem ao

Congresso de 1911: “Este facto pungente e desolador é, por si só, bastante para justificar

qualquer sacrificio que o Estado haja de fazer para dar ao povo aquillo de que elle mais

precisa, porque é o maior bem que se lhe póde dar – a instrucção” (SANTA CATHARINA,

1911, p. 28).

Apesar de anunciar a intenção de ofertar a instrução a todos, visto considerá-la o bem

maior, é preciso estar atento às “armadilhas discursivas” e não reportar tais diretrizes à

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crença de um acesso irrestrito da população à escola. Neste sentido, concordamos com a

análise de Faria Filho, que alerta:

Não se pode negar, por exemplo, que boa parte de nossa legislação reflete uma preocupação acentuada com a escolarização das crianças das camadas populares. Se eu desfizer de uma certa teoria segundo a qual esse discurso é apenas ideológico e, portanto, usado “para enganar as camadas populares com verniz de igualdade”, poderei configurar um importante e inovador lugar para o entendimento de nossa história da educação (FARIA FILHO, 1998, p. 102).

É importante ressaltar que, durante o período aqui destacado, ocorreu uma grande

reforma no ensino catarinense, que se anunciava portadora de preceitos da pedagogia

moderna, os quais deveriam ser introduzidos no ensino público do estado, que “é o que se

póde imaginar de mais atrazado” (SANTA CATHARINA, 1911, p. 27). A reforma introduz um

novo tipo de escola que, segundo Valdemarin e Souza (2011, p. 12), era “considerada

moderna e mais adequada para a universalização do ensino elementar”, visto que se

anunciava como solução dos problemas educacionais e proporcionaria a construção da nação

ao formar o cidadão republicano. A reforma instituída em 1911 teve como articulador o

professor paulista Orestes Guimarães, que havia vivenciado a reforma do ensino levada a

efeito em São Paulo. Essa reforma criou os grupos escolares, “novo typo de escola, que

optimos resultados tem dado em S. Paulo, Minas e outros Estados” (SANTA CATHARINA,

1911, p. 30).

Dos objetos

Durante o período investigado pouco se notou diferença nas prescrições acerca do

provimento material da escola considerando os documentos consultados. Entre os aspectos

materiais - edifício, uniforme, livros, cartilhas, material de escrita – uma das menções mais

recorrentes é quanto ao mobiliário.

O aparecimento, uso, transformações e desaparecimento dos objetos escolares são reveladores das práticas educacionais e suas mudanças. Como foi assinalado anteriormente, a escola primária renovada pressupôs a utilização de uma imensa quantidade e variedade de materiais escolares (SOUZA, 1998, p. 224).

No intuito de representar visualmente os artefatos prescritos para a composição das escolas

localizados na documentação, optamos por organizar quadros ilustrativos. O quadro abaixo foi

elaborado para registrar uma espécie de cronologia desta composição.

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QUADRO 1

MAPEAMENTO DO PROVIMENTO MATERIAL DA ESCOLA

Fontes: Regimento Interno para as Escolas Públicas de Instrucção Primária do Estado de Santa Catharina de 1892;

Regulamento Geral da Instrucçao Pública de Santa Catharina de 1907; Regimento Interno dos Grupos Escolares de 1911; Regimento Interno dos Grupos Escolares de 1914; Regulamento das Escolas Reunidas de 1916 e Regulamento da Escola Normal

de 1919.

Sabe-se que durante o final do século XIX e o início do século XX estava em efervescência o

movimento higienista8, que buscava "cuidar da saúde e higiene da população", com o argumento de

modernizar o País.

8 Sobre o tema sugerimos a leitura do artigo de Heloisa Pimenta Rocha e José Gonçalves Gondra “A escola e a

produção de sujeitos higienizados”, publicado na Revista Perspectiva (Florianópolis, v. 20, n. 2 jul. /dez. 2002. p. 493-512. Disponível em https://goo. gl/pSjLjJ. Acesso em: 20 mar. 2017.

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Uma das formas de realizar essa modernização foi através do que Gustavo Rugoni de Sousa

nomeou de “mobiliário em movimento”, um conjunto de prescrições que as inovações da indústria

transformariam em produtos:

A ideia de movimento vem justamente dessas inovações: das curvas dos assentos e bancos para melhorar o conforto, do ajuste da altura das carteiras, bancos e mesas para melhor acomodar seus usuários, dos movimentos de engrenagens e parafusos que permitiam que as poltronas girassem, subissem e descessem, das gavetas que passaram a abrir em diferentes sentidos (RUGONI DE SOUZA, 2015, p. 192).

Dados como este indiciam que o aparato material concebido para a escola deveria ser

portador das mais avançadas invenções humanas, o que, como nos ensina Martin Lawn9, é

também uma forma de educação.

Buscando dados que ilustrem esta questão, destacamos, do Regimento Interno para

as Escolas Públicas de Instrucção Primária do Estado de Santa Catharina, de 1892, uma

tabela com medidas definidas por idade. Nota-se, portanto, uma preocupação com o conforto

dos estudantes, aspecto considerado fundamental para a boa aprendizagem, possível de se

materializar com as invenções tecnológicas.

QUADRO 2 MEDIDAS DE BANCOS E MESAS DE ACORDO COM A IDADE DAS CRIANÇAS

Fonte: Regimento Interno para as Escolas Públicas de Instrucção Primária do Estado de Santa Catharina de 1892.

Outro aspecto bastante recorrente na documentação que se refere às edificações que

deveriam servir de abrigo e sede para o desenvolvimento das atividades educativas é

ilustrado na mensagem abaixo:

A construcção de edifícios apropriados ao funcionamento dos estabelecimentos de instrucção primaria é condição essencial do exito da

9 Sobre o tema, sugerimos a leitura do artigo de Martin Lawn, "Uma pedagogia para o público: o lugar de objetos,

observação, produção mecânica e armários-museus", publicado na Revista Linhas (Florianópolis, v. 14, n. 26, jan. /jun. 2013. p. 222–243. Disponível em https://goo. gl/X3BX3U. Acesso em: 19 mar. 2017.

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incipiente reforma. Em predios imprestaveis, sem ar, sem luz e sem hygiene a escola continuará a ser o que ainda hoje é – o terror das creanças.

Quem conhece os predios em que funccionam muitas das escolas públicas da Capital, pode avaliar das condições de installação das do interior do Estado (SANTA CATHARINA, 1911, p. 34).

A denúncia de precárias condições de funcionamento dos prédios escolares anuncia

nas entrelinhas um "modelo ideal": arejado, iluminado, um lugar confortável no qual as

crianças deveriam desejar permanecer - uma espécie de paraíso, contrapondo-se ao terror,

"uma instituição promotora de saúde e de civilidade", como registra Gustavo Rugoni de

Souza (2015, pg. 192). Da mesma forma que para o mobiliário, era importante a:

Proporcionalidade entre a estatura do aluno e o mobiliário e adequação entre os materiais de ensino e os alunos de uma classe parecem traduzir-se numa só e mesma preocupação: a de repensar a escola e os objetivos do trabalho pedagógico em função das características infantis e, por outro lado, de modelar o corpo e a "alma" da criança por meio da ação da escola (ROCHA; GONDRA, 2002, p. 503).

Intentando visualizar a entrada e saída de artefatos na escola, seguimos uma

metodologia já operada em outros trabalhos10, dando destaque a alguns "grupos de

artefatos", organizando-os em: utensílios da escrita; mobília; material de higiene; materiais

visuais, sonoros e táteis para o ensino; organização/escrituração escolar e, por fim,

ornamentos.

10 Esta categorização segue a sistemática adotada pelo Grupo Temático G2 – “Cultura Material Escolar:

investigações comparadas sobre a escola graduada (1870-1950)”, apresentada no trabalho intitulado “Percursos e recursos de uma experiência formativa em pesquisa sobre Cultura Material Escolar”, de Vera Lucia Gaspar da Silva e Gizele de Souza, publicada no livro “História da Escola Primária no Brasil: investigações em perspectiva comparada em âmbito nacional” (Aracaju, Editora EDISE, 2015, p. 471-493).

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QUADRO 3 PROVIMENTO MATERIAL DAS ESCOLAS DIVIDIDO POR CATEGORIAS

Fontes: Regimento Interno para as Escolas Públicas de Instrucção Primária do Estado de Santa Catharina, de 1892;

Regulamento Geral da Instrucçao Pública de Santa Catharina, de 1907; Regimento Interno dos Grupos Escolares, de 1911; Regimento Interno dos Grupos Escolares, de 1914; Regulamento das Escolas Reunidas, de 1916, e Regulamento da Escola

Normal, de 1919.

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A partir dos dados registrados no quadro acima, optamos por comparar os

documentos de 1914 com os de 1916, referindo-se, o primeiro, aos grupos escolares, e o

segundo, às escolas reunidas. O intuito foi acompanhar o movimento que se segue à Reforma

do Ensino de 1911 e identificar como eram prescritos os aspectos materiais para escolas

destinadas a crianças com diferentes origens. No documento de 1914, há um capítulo com

seis páginas, destinado ao mobiliário escolar. Esse capítulo, além de descrever o que cada

classe deveria ter, conta com instruções de conservação do mobiliário e como o diretor

deveria proceder para a compra de novos materiais. O documento de 1916 reserva um

capítulo ao mobiliário e ao prédio escolar, com apenas duas páginas. O capítulo diz o que

cada classe deve conter e como deve ser a estrutura do prédio.

As diferenças entre as escolas isoladas e os grupos escolares já estavam anunciadas no

Relatório do Governo de 1912. Ao falar sobre a reforma, em mensagem ao Congresso, em

1911, Vidal Ramos, governador do estado, diz ser necessário “estabelecer uma fiscalização

technica e administrativa real e constante” (SANTA CATHARINA, 1911, p. 28). Esta

informação diverge do conteúdo registrado no Relatório de Governo de 1912, apresentado

pelo tenente-coronel Caetano Vieira da Costa, então secretário geral da União. Nesse

documento, ele afirma que as escolas isoladas não recebiam tal fiscalização, nem o

treinamento adequado aos professores, além de estarem com material e mobiliário defasado.

O secretário atribui parte da dificuldade em efetivar a reforma do ensino ao professorado:

“[...] tambem o professor não faz grande empenho em receber o novo material adoptado, cujo

uso vem aumentar-lhe trabalho, banindo os commodos processos a que estava habituado”

(SANTA CATHARINA, 1912, p. 54).

Quanto ao mobiliário, o destinado às escola isoladas era aquele que sobrava quando se

fazia troca nos grupos escolares dos grandes centros. Caetano Vieira da Costa atribui isso à

falta de verba, o que se coloca como um problema se o confrontarmos aos ideais difundidos,

pelos quais a escola deveria “imprimir no espírito dos alumnos o amor ao trabalho, à ordem,

ao asseio”. Este aspecto era considerado necessário para o bom andamento dos programas, o

que não era possível numa escola precária, na qual, acreditava-se, o aluno ficaria

desmotivado. Em outra passagem, o secretário geral da união anuncia que não se poderia

esperar das escolas isoladas o mesmo que dos grupos escolares. Escreve:

E’ evidente que considerar-se-á em situação inferior na distribuição do ensino pelo Estado, o alumno que não conseguir matricula no grupo escolar, onde, pelas próprias condições de instalações e selecção dos professores, é evidente que melhor que nas escolas isoladas (SANTA CATHARINA, 1912, p. 63).

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Como já tem sido destacado em produções da área, os grupos escolares criados com a

Reforma de 1911 recebiam mobiliário importado; tinham prédios amplos e reformados para

sua instalação; contavam com museus, áreas de recreação, gabinetes para diretores e

professores, etc. As inaugurações eram feitas com festas para as quais a comunidade política

e "influente" de Santa Catarina era convidada:

Estes prédios foram estrategicamente criados em pontos de grande visibilidade social, cravando no imaginário uma idéia de escola que não alcançou um conjunto mais geral da população, mas teve força para seduzi-la. Estas instituições sociais funcionaram como vitrines, mas expunham um produto que não estava à venda; deveria ser reverenciado, admirado, mas estava disponível para poucos (GASPAR DA SILVA, 2006, p. 344).

A oferta dos grupos escolares estava condicionada, de acordo com a Lei nº 846, de 11 de

outubro de 1910, aos municípios que oferecessem prédios adequados ao seu funcionamento.

É interessante notar, nesse contexto, os limites do projeto modernizador de formação do

cidadão republicano. A oferta da escolarização primária obrigatória era restrita aos que

tinham entre 7 e 14 anos, que residissem dentro de um perímetro de dois quilômetros onde

houvesse escola pública, sob pena de multa aos responsáveis11. Nas palavras da Synopse de

1914: “E’ essa a única obrigatoriedade possível em um paiz novo como o nosso, de população

disseminada e em que os Estados, a cargo dos quaes ficou o ensino primario, não têm

recursos sufficientes ao estabelecimento de escolas por toda parte” (SANTA CATHARINA,

1914, p. 143).

Nesta perspectiva, vamos analisar o provimento material para a escola primária

catarinense, num quadro que engloba o dualismo entre o modelo escolar, caracterizado pelo

grupo escolar (ilustrativo da modernidade pedagógica e pelo ensino graduado), e, de outro

lado, o ilustrado pela escola isolada, que abarcava a educação multisseriada. Além de uma

análise maniqueísta, objetivamos expressar as diferenças de projetos: o primeiro, destinado a

alguns, e o outro, responsável pela escolarização da grande massa da população. Na categoria

mobília, as especificidades de cada modelo se tornam evidentes. Enquanto para os grupos

escolares se previa a aquisição de carteiras higiênicas12, para as escolas isoladas propunha-se

a aquisição de bancos-mesas inclinados, um para cada seis alunos. Muito mais do que foi

descrito como mobiliário, são as ausências que demonstram as distinções entre cada modelo.

11 A multa instituída pelo documento poderia variar de 10$000 a 20$000 aos responsáveis, mas poderia ser

abrandada se fosse comprovada a frequência em escola particular ou em casa própria” (Santa Catharina, 1914a, p. 143).

12 Segundo Rugoni de Souza (2015), a carteira escolar, como parte do mobiliário da escola moderna, deveria estar adequada aos preceitos de higiene com vista às indicações do método de ensino intuitivo e como dispositivo de controle da disciplina em sala de aula.

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Assim, ao observamos os utensílios de escrita, chama-nos atenção a escassez de instrumentos

previstos para as escolas reunidas. Enquanto para os grupos escolares foram elencados vários

utensílios (lápis, tinteiro duplo, penas, tinteiros, limpa-penas, porta-canetas, dois quadros

negros parietais), para aquelas é descrito apenas o uso da régua.

Cabem aqui algumas indagações: Como se dava o processo de aquisição da escrita nas

escolas reunidas? Que utensílios eram utilizados? O fato de não serem listados não

significava que não poderiam ser localizados; todavia, acreditamos ser possível entender que

tais instrumentos eram portadores de uma modernidade pedagógica, sendo, assim, mais

possível serem descritos como elementos dos grupos escolares. O mesmo se pode dizer dos

elementos referentes à organização escolar. Para as escolas reunidas, foi traçado apenas o

uso do relógio como ferramenta de controle do tempo, diferentemente dos grupos escolares,

cujo tempo seria medido por intermédio do relógio, do quadro de horário e do livro de

chamada.

Outro aspecto que nos salta os olhos são os materiais visuais, sonoros e táteis para o

ensino. Não localizamos prescrições para os grupos escolares; todavia, para as escolas

reunidas foram especificados: mapa do Brasil, mapa do estado e o Quadro de Parker.

Acreditamos que esses utensílios fossem fundamentais para o método de ensino intuitivo,

sobretudo, o Quadro de Parker, utilizado para o ensino da matemática. Se, como

suspeitamos, esse quadro constituía ferramenta para o ensino intuitivo, por que tal quadro

não estaria marcado como elemento dos grupos escolares? É provável que fizessem parte da

materialidade dos grupos escolares, como é possível observar a partir do porta-mapas

indicado no item mobília.

Esses apontamentos indicam que ainda há um caminho de pesquisa a ser trilhado a fim

de aprofundar se de fato tais objetos foram adquiridos, se a composição da sala era a descrita

em regulamento, se a distinção entre as escolas reunidas e os grupos escolares era

efetivamente a que está prevista em lei. Assim, ainda é preciso investigar um conjunto de

fontes que vão tratar do processo de aquisição dos objetos escolares.

Referências

FERBER, Luíza Pinheiro. “Um mal necessário”: as escolas isoladas urbanas no projeto político republicano (Santa Catarina, 1911-1928). Florianópolis, 2015. p. 73-107.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

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Fontes consultadas

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ISSN 2236-1855 5947

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