100
JOÃO ANTÔNIO DA COSTA FERNANDES JÚLIO CÉZAR COSTA POLÍCIA INTERATIVA: A DEMOCRATIZAÇÃO E UNIVERSALIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA Monografia apresentada ao Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo e à Diretoria de Ensino da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo como requisito para conclusão do I Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da PMES, sob a orientação da Professora Vanda de Aguiar Valadão. .

Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

  • Upload
    hahanh

  • View
    220

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

JOÃO ANTÔNIO DA COSTA FERNANDES JÚLIO CÉZAR COSTA

POLÍCIA INTERATIVA: A DEMOCRATIZAÇÃO E UNIVERSALIZAÇÃO

DA SEGURANÇA PÚBLICA Monografia apresentada ao Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo e à Diretoria de Ensino da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo como requisito para conclusão do I Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da PMES, sob a orientação da Professora Vanda de Aguiar Valadão.

.

Page 2: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Vitória 1998

TERMO DE APROVAÇÃO

A Banca examinadora aprovou esta monografia

tendo-lhe atribuído nota: 10,0 (DEZ)

MAJ QOC PMES PEDRO DELFINO

DR. LUIZ FERRAZ MOULIN

PROFESSORA VANDA DE AGUIAR VALADÃO

Page 3: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Agradecimentos

Ao Senhor Deus, que nos deu todas as condições para a conclusão deste trabalho.

Para nossas esposas, filhos e nossos pais, pela paciência e compreensão que sempre tiveram conosco.

A todos os amigos e amigas pela coragem em nos apoiar.

Em especial, à Professora Vanda de Aguiar Valadão, que brilhantemente nos orientou e que também possui em suas veias o sangue da grande família policial militar.

Page 4: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .......................................................................... 07 CAPÍTULO I A MILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA E AS SUAS CONSEQÜÊNCIAS PARA A SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL ...................................

13

1. A Polícia na Era Moderna ......................................................................... 13

2. A Estrutura Policial no Brasil de 1.530 a 1.831 ........................................ 15

3. As Origens das Atuais Polícias Militares .................................................. 19

4. A Militarização da Polícia no Século XX ................................................... 22

5. A Polícia no Estado Getulista ................................................................... 25

6. O Início da Democratização Brasileira ..................................................... 26

7. O Regime de 64 e a utilização do Aparelho Policial ................................. 28

8. A Nova Constituição e a Polícia ............................................................... 31

9. A Polícia em Crise e as Perspectivas de Soluções .................................. 33

CAPÍTULO II OS DIREITOS HUMANOS E O PAPEL DA POLÍCIA EM REGIMES DEMOCRÁTICOS .................................................................................

37

1. Os Princípios Universais dos Direitos Humanos para a Ordem

Democrática ...................................................................................................

37

2. Os Direitos Humanos no Brasil – Ausência de Cidadania ......................... 44

3. A Polícia e os Direitos Humanos sob a Ótica da Normatização

Institucional .....................................................................................................

53 3.1 O CÓDIGO DE CONDUTA PARA POLICIAIS ................................................................. 56 3.2 PRINCÍPIOS BÁSICOS SOBRE O USO DE FORÇA E ARMAS DE FOGO ............... 58 3.3 A CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA ......................................................................... 62 3.4 A PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO DO

BRASIL ....................................................................................................................................

64

Page 5: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

4. Exigências Democráticas no Campo da Segurança Pública ..................... 66 4.1 O POLICIAMENTO REPRESENTATIVO ......................................................................... 68 4.2 O POLICIAMENTO CORRESPONDENTE ÀS NECESSIDADES E EXPECTATIVAS

PÚBLICAS ...............................................................................................................................

69 4.3 O POLICIAMENTO RESPONSÁVEL ............................................................................... 74 4.4 APONTANDO SOLUÇÕES .............................................................................................. 78

CAPÍTULO III UM NOVO MODELO PARA O ORGANISMO POLICIAL BRASILEIRO ................................................................................

80 1. Entendendo a Necessidade de Mudança do Modelo Atual de

Segurança Pública .........................................................................................

80 1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 80 1.2 FATORES INTERVENIENTES NO DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO

INTERATIVO ..........................................................................................................................

82 1.3 CONCEITOS INDISPENSÁVEIS PARA O ENTENDIMENTO DO PROCESSO

INTERATIVO ..........................................................................................................................

83 1.4 CARACTERÍSTICAS DO MODELO INTERATIVO DE POLÍCIA ................................... 85 1.5 O MÉTODO INTERATIVO – MODALIDADES DE INTERAÇÃO .................................... 93

2 CONCLUSÃO ............................................................................ 97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................

98

Page 6: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

1 INTRODUÇÃO

Sonhar com um modelo de sociedade igualitária, onde a lei e a

ordem sejam verdadeiramente a expressão da vontade e necessidade do

universo da população é preciso.

Ousar conceber uma nova forma de fazer polícia, de acordo com o

modelo igualitário de sociedade, numa sociedade estruturada hierarquicamente

é desencadear uma difícil batalha.

Implementar um novo modelo para o organismo policial brasileiro,

que seja conforme os princípios democráticos expressos na Constituição, e que

conseqüentemente atenda ao padrão dos direitos humanos é vencer.

O troféu da vitória é a Polícia Interativa, uma evolução do princípio

da comunitarização da polícia, que tem como registro de seus primórdios no

mundo o modelo inglês.

Conforme o estudo de Ribeiro (1993), na Inglaterra, até o início do

século XIX cabia à própria comunidade delegar a alguns de seus membros a

tarefa de organizar a segurança do grupo.

Com a evolução econômica e social do povo inglês, foi necessária a

criação de uma força regular para a preservação da ordem pública, sendo que

coube ao então Ministro do Interior “Sir” Robert Peel, em 1829, a organização

da Polícia Metropolitana de Londres, a conhecida “Scotland Yard”.

Segundo a concepção do próprio Peel, a polícia deveria ser

organizada militarmente, com hierarquia e disciplina rígidas, porém voltada

Page 7: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

para a proteção dos cidadãos e para a prevenção do crime, e ainda com a

investidura civil dos policiais.

A criação da “Scotland Yard”, deu incício à comunitarização da

polícia, dentro do que se chamava à época de “Commutting Police”, ou modelo

de ação comunitária, daí advindo a figura do “Bobby”1 londrino.

Já neste século em 1948, a implementação dos chamados “team

police” ou policiamento em equipe, na cidade de Aberdeen na Escócia, passou

a servir como modelo para a setorização das atividades policiais nas

comunidades, denominando-se este modelo de “polícia comunitária”, que

atualmente tornou-se referencial de aplicação do policiamento em várias partes

do mundo; e que no Brasil foi introduzido no início da década de 80, pela

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, na ocasião comandada pelo

Coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, a partir do modelo norte americano.

A comunitarização da polícia no Estado do Espírito Santo, como um

sistema oficial e formal, iniciou-se em 13 de novembro de 1985, com a edição

do Decreto nº 2.171, autorizando a criação dos Conselhos Comunitários de

Segurança no território capixaba. Neste mesmo ano, a Polícia Militar do

Espírito Santo criou, através da Diretriz nº 02/85 – 3ª Seção do Estado Maior

da Polícia Militar, o Programa de Interação Comunitária, denominado de

“Pacto”, como forma de proporcionar condições de execução das disposições

contidas no Decreto já mencionado.

1 Termo usado para denominar os policiais da Scotland Yard, criada por Sir Robert Peel em 1829.

Page 8: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Em 1987, através da Fundação Pedroso Horta, passa a ser discutido

o “Sistema de Policiamento Modular”2, que haveria de ser a espinha dorsal do

Policiamento Comunitário, e base para a implantação da nova mentalidade nos

serviços prestados pela Polícia Militar do Espírito Santo, à sociedade capixaba.

Em 1988, a Polícia Militar do Espírito Santo, inicia o processo de

Policiamento Comunitário, nas cidades de Alegre e Guaçuí, com a criação do

primeiro Conselho Comunitário de Segurança do Espírito Santo em Alegre e

ativando o policiamento a pé, através de duplas de policiais militares nos

bairros da cidade de Guaçuí, utilizando-se um contigente específico que para lá

foi transferido para iniciar o processo de interação com a sociedade através do

Policiamento Comunitário.

Em 1989, a nova Constituição Estadual, consagra a participação da

sociedade civil na formulação das políticas públicas de segurança, trazendo

assim em definitivo, a participação popular, como instrumento de controle e

incrementação das ações dos órgãos estaduais, encarregados da Segurança

Pública.

Em julho de 1991 é implantado na cidade de Guaçuí-ES, o POP-

Com3, semente que germinaria quatro anos depois, naquele que seria o projeto

mais inovador no campo de polícia ostensiva no Espírito Santo.

2 Modelo tático de ocupação territorial usado pela Polícia Militar, basicamente idêntico ao “team police” originado em Aberdeen na Escócia em 1948, consistindo na construção de um posto de policiamento, de onde seria distribuído os policiais numa área geográfica. 3 POP-Com – nome técnico do projeto de Policiamento Ostensivo Produtivo Comunitário, desenvolvido

Page 9: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Nos meados de 1992, a Polícia Militar do Espírito Santo, estrutura

um sistema pioneiro e moderno de reciclagem profissional, denominado de

“Instrução Modular”. Tal sistema concebido experimentalmente a princípio, foi

efetivado, e tornou-se a mola mestra da filosofia adotada no “Projeto de Polícia

Interativa”, que visa preparar o segmento militar, dando-lhe todas as condições

de conhecimento técnico para o desempenho da atividade profissional. Este

processo foi exteriorizado, através da frase “a operacionalidade anda a

reboque da instrução”, de autoria do Coronel Carlos Magno da Paz Nogueira,

ex-Comandante Geral do Polícia Militar do Espírito Santo.

Em 1994, o Capitão Júlio Cézar Costa reinicia o processo de

interatividade entre a Polícia Militar, Comunidades, Poderes Públicos e Clubes

de Serviços, visando à implantação de uma mentalidade de polícia ostensiva,

que na época, nas palavras do Prefeito Dr. Luiz Ferraz Moulin, seria a “polícia

de Guaçuí, o exemplo de uma polícia cidadã, a exportar-se para todo o País”.

Por iniciativa da Loja Maçônica Liberdade e Luz de Guaçuí, e ainda

dos representantes da Sub-seção da OAB, do Rotary Clube, do Lions Clube e

finalmente da Associação Comercial, em dezembro de 1994, é criada a

Comissão de Estudos para formalização do Conselho Interativo de

Segurança(CISEG), sendo tal conselho empossado pelo Coronel Comandante

Geral da Polícia Militar do Espírito Santo, em solenidade festiva na Câmara

Municipal de Guaçuí, por ocasião do I Encontro Estadual sobre Polícia

Interativa, ocorrido em 26 de janeiro de 1995.

Várias reuniões antecederam à formalização do CISEG, permitindo

assim, que Guaçuí fosse a primeira cidade capixaba, a dar cumprimento ao

na cidade de Guaçuí, após ser idealizado pelo Capitão Júlio Cézar Costa.

Page 10: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

mandamento constitucional, que autoriza a participação da sociedade na

formulação das políticas públicas de segurança, pois desde o seu nascedouro,

a participação comunitária na formulação das questões locais de segurança

pública, trilhou pelo caráter democrático e isento, da eclética participação de

todos os segmentos da sociedade.

Com ascensão ao Comando Geral da Polícia Militar do Espírito

Santo, em janeiro de 1995, do Coronel Polícia Militar Alvim José Costalonga,

incentivador da mudança de mentalidade na Corporação, a Polícia Interativa

ganha corpo e motivação. Logo três dias depois de assumir o Comando Geral,

o Coronel Alvim, determina a realização em Guaçuí do “I Encontro Estadual

sobre Polícia Interativa”, sob os auspícios do 3° Batalhão de Polícia Militar,

através da 2ª Companhia, sediada naquela cidade. Durante a realização do

“I Encontro Estadual sobre Polícia Interativa”, a Polícia Militar do Espírito Santo,

com a presença de seu Comandante Geral, e de representação de toda a sua

oficialidade, adota a Polícia Interativa como uma meta a ser atingida. Nesse

ínterim, o Governador do Estado, Dr. Vítor Buaiz, ao tomar conhecimento do

projeto sobre a Polícia Interativa e verificar que era sobretudo um projeto

inovador, que mudaria a face da segurança pública no Estado, através da

participação das comunidades, adota-o e o inclui em sua plataforma de

governo, vindo juntamente com a Prefeitura Municipal de Guaçuí e outras

entidades, a patrocinar a realização em agosto de 1995, em Guaçuí, do I

Fórum Nacional sobre Polícia Interativa, que contou com a presença do Dr.

Nelson Jobim – então Ministro da Justiça, além dos representantes das

Polícias Militares do Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Minas Gerais e Paraná.

Page 11: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Em dezembro de 1995, no hotel Luxor Regente em Copacabana,

Rio de Janeiro, durante o I Seminário Internacional sobre Polícia Comunitária,

patrocinado pelo Governo Federal e pelo Movimento Viva Rio4, o sistema

capixaba de Polícia Interativa destacou-se dentre os demais modelos

apresentados naquele colóquio. A partir de tal evento, o projeto de Polícia

Interativa passou a ser também plataforma do Governo do Presidente

Fernando Henrique Cardoso, através de sua inclusão no Plano Nacional dos

Direitos Humanos – PNDH, decretado em 13 de maio de 1996.

Assim, esse trabalho é o resultado de uma pesquisa bibliográfica

que leva ao entendimento do modelo e do arcabouço ideológico policial

adotados no Brasil, ingressando nos princípios que fundamentam o Estado

Democrático e nas exigências dos padrões dos Direitos Humanos para o

policiamento e das organizações policiais; apresentando finalmente o sistema

de polícia interativa adotado na Polícia Militar do Espírito Santo como um

modelo que atende à exigência da nova ordem constitucional brasileira e

internacional dos direitos humanos.

4 Organização não governamental que atua na área de estudos sobre Segurança Pública no Brasil.

Page 12: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

CAPÍTULO I

A MILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA E AS SUAS

CONSEQÜÊNCIAS PARA A SEGURANÇA PÚBLICA

NO BRASIL.

1. A POLÍCIA NA ERA MODERNA.

O fim da idade média e a diluição do pensamento absolutista que a

sustentava, adicionado às conquistas do novo mundo, originaram as bases

primárias para o surgimento de um Estado público em contraposição ao Estado

privatista da era feudal, ou da Monarquia patrimonialista.

À época, a estrutura de dominação exigia um aparato sustentador,

basilar, e que externalizasse a visão dos que detinham o poder sobre a grande

massa que precisava ser controlada, como fundamento para o suposto alcance

do governo estável.

Entretanto, em 1505, na cidade de Florença organizava-se o 1º

Conselho de Gestão da Polícia que a Literatura noticia. Maquiavel foi

incumbido de organizar a milícia para o cerco de Pisa, sendo que os milicianos

iriam substituir os mercenários. Como Chanceler dos Nove, órgão responsável

pelo comando da milícia, Maquiavel estrutura a força policial para uma atuação

eminentemente de caráter militar (MAQUIAVEL : 1996).

É notório, que a força miliciana nascia para guerrear, portanto desde

a sua gênesis, era substantivamente uma organização militar, que atuaria na

Page 13: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

defesa e nos interesses do governante, e não necessariamente dos súditos

deste. Aqui indubitavelmente nasce a concepção militar de polícia.

A militarização do elemento humano da polícia, era fator

preponderante na época, visto que a sociedade estava em processo de

transformação.

Ter o aparato de segurança sob o controle direto do governante era

necessário e a melhor forma de conseguir tal objetivo era militarizar a milícia,

que seria a força permanente de dominação, uma vez que, a manutenção de

um exército belicista, tornar-se-ia por demais onerosa em tempos de paz. A

milícia atuava no policiamento e quando necessário guerreava também.

O século XVI traz para a Europa novas esperanças. As descobertas

de terras no novo mundo, o atingimento por via marítima do extremo sul do

continente africano e também da Índia, eram conquistas que serviriam para a

mudança do “status quo” da Europa Ocidental.

O século XVI – século de profundas transformações na estrutura

social, também foi palco da reforma religiosa. O Mundo abria as suas portas

para os novos tempos. Viriam posteriormente os grandes contratualistas, o

Iluminismo e tantos outros movimentos que iniciaram mudanças na face sócio,

política e econômica da humanidade.

“O movimento social caminhava a passos largos para o rompimento da velha estrutura do absolutismo monárquico. O desiderato por participação nos destinos de suas nações, tornavam as pessoas ávidas por alterações que lhes possibilitassem o atingimento de direitos sociais e políticos, originando o Estado Social de Direito. Apenas em 1760 o termo polícia começava a ser usado na França, seguindo o seu significado atual” (MORAES, 1986).

Page 14: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A Revolução Francesa foi o grande marco. O lema da Igualdade, da

Fraternidade e da Liberdade expande-se para todo o Mundo. Enfim a

humanidade soltava a sua voz e simbolicamente dava o brado anunciando o

limiar de uma nova época, que seria consubstanciada na busca pelo respeito

aos direitos inalienáveis da pessoa humana.

No final do século XVIII, os acontecimentos históricos na França

gerariam novas expectativas, que multiplicar-se-iam a partir do continente

europeu para todo o mundo, favorecendo o surgimento de novos ideais na

sociedade, e habilitando os homens para uma fase nova em suas relações com

o aparelho do Estado.

2. A ESTRUTURA POLICIAL NO BRASIL DE 1530 a 1831.

O território pátrio como sabemos foi colonizado pelos Donatários das

capitanias hereditárias. Portugal não possuindo condições de explorar as terras

que estavam distante, optou pelo, já na ocasião conhecido, sistema de

Capitanias Hereditárias, onde a forma de colonização ocorria com recursos

próprios de portugueses afortunados que recebiam as donatarias em

possessão hereditária, e nela implementavam as suas formas indômitas de

administração, recebendo para tal a permissão legal do Rei, inclusive na

administração das funções de polícia, iniciando-se no Brasil a dominação

privada sobre uma causa pública, como é o mister da segurança pública. Na

ocasião a definição do que era público tornava-se irrelevante visto que o

propósito de Portugal era assumir o domínio sobre a empresa oriunda da

Page 15: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

descoberta de tão vasto território, e as ações típicas de polícia estavam

também por estatuto régio nas mãos dos senhores donatários, conforme

indicações abaixo:

“Pelos documentos existentes, a idéia de polícia no Brasil nasceu em 1530 quando D. João III resolve então adotar o sistema de capitanias hereditárias, outorgando a Martins Afonso de Souza uma carta régia para estabelecer a administração, promover a justiça e organizar o serviço de ordem pública, como melhor entendesse, nas terras que conquistasse no Brasil” (AZKOUL : 1998 : 09-10).

Ocupando as capitanias, para expurgar quaisquer ameaças de

franceses, holandeses e outras nações que viessem a intentar a criação de

benfeitorias no território continental do Brasil, os fidalgos portugueses que as

explorariam, indispensavelmente teriam que constituir forças de defesa, que

direcionassem as suas ações para a proteção da propriedade contra as

invasões estrangeiras e também contra a ação dos nativos, visto que eram

estes também elementos desestabilizadores, e que colocavam em perigo o

domínio geográfico e econômico do poder português.

Na repartição das terras, os Donatários cediam as sesmarias para

aqueles cidadãos portugueses que possuíssem condições financeiras para

prosseguir no processo de colonização. Estes, denominados de sesmeiros,

deveriam prestar ao donatário da capitania os seus serviços em caso de

invasões internas ou externas. Criava-se assim um vínculo entre o sesmeiro e

o donatário, haja visto que o primeiro sempre que necessário e na defesa da

empresa colonizadora atuaria em apoio, com a sua força miliciana, constituída

para a manutenção do seu patrimônio e dos seus interesses.

Page 16: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Evidenciada está que durante o período das capitanias hereditárias

a incipiente ordem pública esteve sempre nas mãos dos detentores do poder

econômico, transcedendo assim a despreocupação com a segurança pública,

que tinha contornos de segurança privada pelo modo e finalidade como era

gerida.

“O aparato de segurança com o advento da instituição da colônia em substituição ao sistema de capitanias hereditárias passa a ser composto basicamente por três forças: - Tropas de 1ª Linha ou Corpos Permanentes; - Tropas de 2ª Linha ou Corpos Auxiliares ou Milícias; e - Tropas de 3ª Linha ou Ordenanças (PIETÁ : 1997 : 16).

Pareceu interessante a Portugal constituir o sistema de defesa do

Brasil Colônia, seguindo o modelo que vigia na Europa na época. Assim as

Tropas de 1ª Linha constituíam-se do Exército com tropas pagas a soldo pela

Coroa, integradas por portugueses que exerciam a função de controle e defesa

da vasta possessão territorial pertencente a Portugal, e que agiam sob as

ordens diretas dos prepostos portugueses no Governo Geral do Brasil.

As tropas de 2ª e 3ª linhas não eram Corpos Regulares, mas sim um

conjunto de pessoas que por delegação do poder concedente, promoviam nas

emergentes vilas as tarefas de segurança pública:

“No período colonial , não havia um corpo de polícia regular. Para o policiamento, grupos de vinte moradores, com o nome de quadrilha, ordenados por juízes e vereadores, podiam durante três anos prender malfeitores, vadios, indivíduos de má fama e os estrangeiros. Deviam agir de forma preventiva contra os prostíbulos, casas de jogos, receptadores de objetos roubados alcoviteiras e feiticeiras. Um corpo policial só se fez presente com a vinda de D. João VI ao Brasil” (CANCELLI : 1993 : 34).

Page 17: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A caracterização do modelo policial no Brasil Colônia, trazia como

elementos a discriminação, a vinculação das milícias às tropas regulares e a

atuação não no controle da ordem pública, mas sim naquilo que interessava ao

domínio português estabelecer.

Em 13 de maio de 1809, através de ato de D. João VI, é criada, na

cidade do Rio de Janeiro, a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, com o

objetivo de promover o policiamento das ruas da Côrte e ainda de combater o

contrabando e o descaminho, ambos crimes que afetavam as finanças do

tesouro real, assim no texto seguinte, constata-se a edição de uma prática já

conhecida em Portugal, que era constituir uma força militar policial.

“...sendo de absoluta necessidade prover a segurança e tranqüilidade desta heróica e mui leal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro cuja população e tráfego consideravelmente se aumentará todos os dias pela afluência de negócios inseparável das grandes Capitais; e havendo mostrado a experiência que o estabelecimento de uma Guarda Militar de Polícia é o mais próprio não só para aquele fim de boa ordem e sossego públicos mas ainda para obstar danosas especulações de contrabando que nenhuma outra medida nem as mais rigorosas leis proibitivas tem podido coibir. Sou servido criar uma Divisão Militar da Guarda Real da Polícia desta Corte, com a possível semelhança daquela que tão reconhecidas vantagens estabeleci em Lisboa, a qual se organizará, na conformidade do plano que este abaixo assinado pelo Conde Linhares, do meu Conselho de Estado, Ministro Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e de Guerra” (ALMANAQUE DA PMERJ : 1980).

A criação, no início do século XIX, da Divisão Militar da Guarda Real

de Polícia e da Intendência de Polícia do Brasil, ambas por D. João VI, inseria

no aparato público do Brasil, a gênesis da dicotomia policial, visto que as

instituições criadas nasciam com características bem definidas, ou seja uma de

natureza militar e a outra de natureza civil.

Page 18: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Embora amorfos, os órgãos policiais no Brasil, durante cerca de

duas décadas ainda, conviveram com o modelo colonial das tropas de 2ª linha

e das ordenanças, visto que somente em 1831, o Ministro Diogo Antônio Feijó

imporia uma nova modelagem para o aparelho de segurança pública do país.

3. AS ORIGENS DAS ATUAIS POLÍCIAS MILITARES.

Após a proclamação da independência, passa a existir entre os

idealistas brasileiros e o remanescente poder português abrigado na Côrte e

principalmente no Exército, sérias disputas pelo domínio político do novaz

Império, sendo que com a abdicação de D. Pedro I, estas rusgas se

consolidam e a Regência Trina, órgão governativo do momento, impõe drástica

redução dos efetivos militares, conforme o estudo de Faoro (1987) evidencia:

“Antes de 1831 o exército consumia dois terços do orçamento e se compunha de 30.000 homens. Logo depois do 7 de abril, os efetivos se reduziram à metade, com o máximo legal de 10.000 em 3 de agosto de 1831”.

A política de Feijó, Ministro da Justiça durante a Regência Trina

Permanente, era de enfraquecimento do poder militar do exército colonial que

transcendeu a proclamação da independência. Ao enérgico padre interessava

revigorar o sistema de segurança do Império através de um outro modelo

gestor e para tal, criou, em 18 de agosto de 1831, a Guarda Nacional, com o

propósito de contrapor-se ao Exército. Entretanto, logo após, reiterou a criação

das Guardas Municipais Permanentes, em Lei de 10 de outubro de 1831,

Page 19: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

sendo a descentralização do serviço de segurança, uma constatação clara,

conforme faz sugerir Souza (1986 : 10) na transcrição seguinte:

“A Lei de 10 de outubro de 1831, reguladora do funcionamento das Guardas Municipais Permanentes, era o respaldo legal necessário para as decisões a nível de governos provinciais quanto à criação de seu corpo próprio. Assim ditavam os seus artigos básicos: Art. 1º - O Governo fica autorizado para crear nesta cidade um Corpo de Guardas Municipaes voluntários a pé e a cavallo, para manter a tranquilidade pública, e auxiliar a justiça, com vencimentos estipulados, não excedendo o número de seiscentos e quarenta pessoas, e a despesa anual a cento e oitenta contos de réis. Art. 2º - Ficam igualmente autorizados os Presidentes em Conselhos para crearem iguaes corpos, quando assim julguem necessário, marcando o número de praças proporcionado”.

A Guarda Nacional que se estruturou com o enfraquecimento do

Exército, foi inspirada na ordem liberal da França, mas estava vinculada às

velhas Milícias e Ordenanças.

De acordo com Pietá (1997 : 03), as Guardas Municipais

permanentes, com atividades de polícia, entretanto com estruturação militar,

seguiriam no curso da história como instituições das províncias, porém com

forte vínculo e utilização pelo poder central, inclusive em eventos belicistas

como foi a guerra do Paraguai.

A constituição das Guardas Municipais, diferentemente do sistema

adotado pela Guarda Nacional, era mais flexível, pois o recrutamento era

baseado no voluntariado.

Embora formatada militarmente, a atuação das então Guardas

Municipais era voltada para a manutenção da ordem pública na incipiente

sociedade urbana no Brasil.

Page 20: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A utilização da força pública como elemento dominador, atendia aos

dispositivos de poder aos quais estava ligada a classe dominante. Na

manutenção do regime escravocrata, discriminador e arbitrário se fazia mister a

atuação sistêmica de um poder judiciário dependente e de uma polícia sectária,

visto que agiam em conformidade com os estatutos legais já em desuso no

mundo civilizado da época, senão vejamos:

“A polícia das cidades, em obediência a dispositivos legais, agia no sentido de prender qualquer escravo ou negro que andasse sem documento onde se provasse o seu direito à livre circulação. A menor suspeita, o negro era encarcerado” (COSTA : 1989 : 315).

Ainda como elementos intimidadores das questões libertárias e

ideológicas, a justiça e a polícia se compunham para manterem o “status quo”

da velha aristocracia em contraposição à crescente população que lutava por

seus direitos e anseios de cidadania. A utilização bastarda da força física pelas

elites dominantes para aquietar os descontentes é descrita por Costa (1989 :

315) nos seguintes termos:

“As violências cometidas pelos senhores continuavam a encontrar, em certos casos, o apoio da polícia. A polícia e a justiça não impediam as arbitrariedades dos Senhores; seus membros recrutados entre as categorias dominantes ou à sua clientela, colaboravam para a manutenção do regime”.

As Guardas Municipais, criadas a imagem e semelhança do

Exército, como forças de infantaria e com estruturas estanques de oficiais e

praças, atuariam durante todo o 2º Império na defesa da aristocracia

escravocrata, em conjunto com a Guarda Nacional, tendo desenvolvido ainda

mais a militarização de seus efetivos após a participação na Guerra do

Page 21: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Paraguai, sem qualquer preocupação com a especialização nas atividades civis

de segurança pública, que naquele tempo não eram vistas como prioritárias,

pois percebemos que a violência, praticada por essas forças, continuava sendo

o grande argumento e resposta das causas da segurança pública no Brasil.

As violências praticadas de modo usual pela polícia demonstravam

que o açoitamento era o instrumento de preservação dos interesses

econômicos dos proprietários, e por esta via trafegavam as questões da

segurança pública.

Findo o Império, a polícia nenhuma mudança sofreu, pelo contrário,

tornou-se mais militarizada, vez que a República brasileira nasceu contaminada

pelo vírus do regionalismo dominante, exteriorizado nas pretensões dos

Estados de São Paulo e Minas Gerais, que, desde o início, travaram uma

incessante disputa pelo domínio do poder central, e certamente sem o aparato

bélico e militar das Guardas Municipais, agora transformadas em Forças

Públicas Estaduais, nenhum êxito teriam obtido nas suas intenções de

dominação do cenário político nacional.

4. A MILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA NO SÉCULO XX.

Proclamada a República no Brasil, não demorou quase nada para

que as velhas oligarquias manifestassem os seus anseios pelo poder. Nascida

a partir de uma conspiração do poder militar, e desde cedo influenciadas pelos

Estados mais poderosos: São Paulo e Minas Gerais, a jovem República

manifestaria um de seus aspectos mais marcantes que foi a militarização das

Page 22: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

polícias estaduais, através da vinda a nosso país de missões militares do

Exército francês em São Paulo (1905), patrocinada pelo então Governador

daquele Estado Dr. Jorge Tibiriçá, que solicitou do então Ministro das relações

exteriores – Barão de Rio Branco, o auxílio para o cumprimento de seu

desiderato, e ainda, em Minas Gerais (1912) com a chegada de uma missão do

Exército suíço.

Como pólos irradiadores de doutrina e conhecimento técnicos-

profissionais, à época, as polícias de São Paulo e Minas Gerais viriam a

influenciar na militarização das demais polícias, visto que a partir dos

ensinamentos oriundos de tais polícias, é que as demais se estruturariam.

É sabido que os Governadores partiram para a criação de

verdadeiros exércitos regionais, tendo para isto inclusive a permissão do

Governo Central, conforme constata Souza (1986 : 22):

“Aos Estados concedia-se, inclusive, a liberdade de se armarem militarmente, através de suas forças policiais [...] – as polícias militares sempre foram olhadas, pelo Exército como uma ameaça à União ...”.

As missões militares estrangeiras desempenharam no início do

século XX a tarefa de consolidar o pensamento militarizante dos gestores do

poder político nos locais onde atuaram, pois com o estabelecimento da

República, e o fim do Estado unitário, tornou-se possível o fortalecimento dos

Estados mais bem aquinhoados, despertando o interesse pelo domínio político

nacional.

Page 23: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A revolução constitucionalista de São Paulo em 1932 é emblemática

neste sentido. Os políticos paulistas inconformados com os rumos da política

nacional, que impedira a ascensão de um representante de São Paulo, Júlio

Prestes, à Presidência da República, desencadearam uma grande propaganda

contra o Governo Federal, na qual se destacou a reivindicação pela

convocação imediata da Constituinte.

A revolução constitucionalista de 1932 teve na força militar estadual

a sua base de sustentação para o atingimento das pretensões políticas daquele

momento histórico visto que a força pública, hoje Polícia Militar do Estado de

São Paulo, possuía condições de desestabilizar o regime político instalado,

pois sozinha detinha mais meios e equipamentos bélicos do que a própria

Força Terrestre Nacional ou seja o Exército Brasileiro.

Finda a Revolução de 1932, o poder central estabeleceria, a partir

da edição de normas legais, e em 1934 através da própria Constituição da

República, mecanismos de controle federal sobre as Instituições Policiais

Militares dos Estados, passando a controlar o armamento, o crescimento do

efetivo e por fim institucionalizando a instrução militar do Exército nas já

militarizadas polícias estaduais.

Como atividade estatal de natureza civil, a segurança pública era

somente de forma adjetiva uma atribuição das polícias militares, visto que

substantivamente todo o adestramento dos integrantes das polícias militares

sempre se conduziu pela doutrinação belicista e guerreira, inclusive de forma

estrutural, quando se manteve uma férrea da hierarquia e uma férrea disciplina

que mais se assemelhava aos procedimentos de um campo de guerra.

Page 24: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

5. A POLÍCIA NO ESTADO GETULISTA

Como representante da facção política caudilhista do eixo sul do

Brasil, Getúlio Vargas assume o Governo Brasileiro, sustentado por castas da

sociedade civil e militar, ambas descontentes com os rumos que tomou a

República Velha, e sobretudo influenciados pela severa crise financeira de

1929, que abalou as estruturas econômicas mundiais.

Os propósitos revolucionários e democráticos, a partir de 1937 são

abandonados por Getúlio Vargas, que demonstrando o seu outro lado, intenta

perpetuar-se no poder, promovendo o surgimento do denominado Estado

Novo, período este que vai de 1937 a 1945 e que se estabeleceu através das

perseguições sistemáticas a quaisquer ideologias que não derivassem do

pensamento getulista.

“Getúlio Vargas veio como resultado do estado de ausência das liberdades, veio para acabar com as oligarquias, mas levou-nos para um regime onde as liberdades públicas desapareceram totalmente, para um estado policial” (DONNICI : 1984 : 57).

Qualquer projeto político anti-democrático tende a escudar-se em

um amplo sistema legal de repressão, e assim a capilaridade territorial da

polícia contribui para a sua utilização instrumental na realização do desiderato

pela manutenção do poder. No Estado Novo não foi diferente.

As Polícias Militares, sob o controle constitucional do poder federal,

desde 1934, foram indubitavelmente empregadas para atuarem em defesa do

Estado que houvera sido imposto, direcionando as suas ações para o

fazimento da polícia política do regime de Vargas5, quando tornou-se explícita

5 Getúlio Dornelles Vargas – Ditador do Brasil de 1930 a 1945.

Page 25: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

a supressão dos mais lídimos direitos dos cidadãos, entre os quais o direito de

divergir, de se contrapor e de pensar livremente.

Amparado pela ascensão do nazifacismo, o período getulista serviria

como laboratório para a formação desviante da polícia brasileira, que já

militarizada, não profissional em sua área específica de atuação, ou seja a

segurança pública, demonstraria mais tarde toda a sua aptidão para voltar a

atuar como a atriz principal da triste novela do “Brasil ame-o ou deixe-o”6, que

foi legada ao povo, agora novamente asfixiado, pela repressão do Regime

Ditatorial de 1964.

6. O INÍCIO DA DEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA.

Findo o estado autoritário imposto durante década e meia por

Getúlio Vargas, a nação brasileira influenciada pela vitória sobre o nazifacismo

na Europa, vê soprar agora os ventos democráticos em nosso país-continente.

Democratizar um país que já há quase 4 séculos e meio era

governado por regimes não participativos, onde a cidadania e os demais

direitos advindos desta condição não eram assegurados à população,

requereria o estabelecimento de um novo pacto político que consolidasse e

legitimasse a pretensão democrática.

6 Expressão cunhada pelos Ideólogos do Regime de 1964.

Page 26: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A Constituição de 1946, talvez o mais democrático de nossos

estatutos políticos, inseria a disposição para a busca de uma sociedade livre e

democrática, redefinindo, neste contexto, o papel das polícias.

“Pela primeira vez orientou-se as Polícias militares dos Estados para o exercício de sua atividade fim , compreendida como sendo a segurança interna e a manutenção da ordem” (SOUZA : 1986 : 46).

De 1946 a 1964, as organizações policiais brasileiras encetaram ou

priorizaram o atendimento das demandas de segurança pública, pois o regime

político estabelecido, embora em desequilíbrio institucional constante, não

direcionou as ações do Estado para os aspectos políticos-ideológicos, e se

houve a repressão neste período, era simplesmente um desdobramento de

hábitos adquiridos no passado pela polícia e não política do governo central.

As razões anti-democráticas dos arautos de nosso nacionalismo não

permitiriam a continuidade do regime constitucional de 1946, fazendo crer ao

nosso povo, nas mobilizações dos primeiros anos da década de 60, que os

rumos políticos tomavam formatos que nos impossibilitariam de viver em

estabilidade e em paz na sociedade. Destas formulações foi criada a ambiência

popular, para a protagonização por setores políticos tradicionais e de direita,

objetivando a ruptura da ordem constitucional e o estabelecimento do regime

militar, período este de perseguições ideológicas e do cerceamento da

cidadania novaz e ainda incipiente naqueles tempos.

Page 27: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

7. O REGIME DE 64 E A UTILIZAÇÃO DO APARELHO

POLICIAL.

O Brasil grande, decantado já na descoberta por Pero Vaz de

Caminha, em sua carta ao Rei de Portugal, “terra em que se plantando tudo

dá”, viveria a partir de 64 o seu período de áureo nacionalismo. A causa e a

defesa do Estado, sobrepunham-se ao Estado Democrático de Direito. O

perigo do comunismo, segundo afirmavam as Autoridades, era real, assim

imperiosa se tornava a utilização de instrumentos fortes e que servissem para a

contenção de quaisquer desvios políticos ideológicos que colocassem em

perigo a segurança nacional.

A restrição de direitos e a sistematização do aparelho do Estado

para a consecução repressiva, não passariam longe da polícia, pelo contrário,

tal Força enraizada no território nacional, seria manietada, despersonalizada,

sem comando próprio, e assim controlada de Brasília, estaria a serviço da

segurança nacional, sendo a mola mestra de toda a realização das atitudes

repressivas e anti-democráticas impostas pelo Regime Militar.

“O desrespeito ao homem, à sua vida e à sua dignidade foram o modo pelo qual se afinaram os instrumentos repressivos, com um saldo triste e lamentável de direitos espezinhados e conspurcados” (BICUDO : 1978).

A polícia, historicamente serviçal dos mandatários do poder, sem

diretrizes profissionalizantes na área de segurança pública, que deveria ter sido

sempre o seu mister, foi e continua sendo co-responsável pelas mazelas da

insegurança pública neste país, haja visto que a sua utilização real não é

compatível com as sua destinação legal; o formato militar existente há séculos

Page 28: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

não habilitou a polícia para reagir contra o atentado à ordem democrática, pois

como refém de um sistema antigo, repetitivo e perverso, a polícia brasileira foi

utilizada pelos mandatários golpistas para fazer sofrer a nação brasileira,

infelizmente.

O recrudescimento do autoritarismo exigia uma super estrutura de

repressão, a fim de preservar o Regime que se auto impunha. O Governo

Militar, após a edição de vários Atos Institucionais, da falsa promulgação da

Constituição de 1967 e da decretação do famigerado 667/697, enseja, com isto,

viabilizar as polícias militares, que estariam respaldadas através do aparato

legal de poder para atuarem na repressão ideológica, passando o

direcionamento das ações de segurança pública, para a defesa da ordem

política interna.

Os DOI-CODI8 e outros órgãos basilares do regime autoritário não

teriam tido tanto vigor se não fossem a capilaridade e o empenho do aparelho

policial, auxiliados pela falsa idéia de que o regime em vigor era legítimo, pois

tendia a defender-nos do perigo vermelho e da hecatombe comunista.

A reação da sociedade civil não demoraria a vir à tona, passeatas,

seqüestros de agentes diplomáticos e também a luta armada foram as atitudes

de auto-defesa social para restaurar o regime democrático de direito.

“No Governo Médici foram seqüestrados o Cônsul japonês Nobuo Okuchi, o Embaixador alemão Von Holleben, o Embaixador suíço Giovanni Buder, todos trocados pelos opositores ao regime, que entendiam uma mudança do sistema pela violência. Com isso, aumentava-se a repressão” (DONNICI : 1984 : 77).

7 Decreto Lei 667/69 que reestruturou as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares, durante o regime militar, e que ainda encontra-se em vigor. 8 DOI-CODI – Destacamento de Operações e Informações – Comando de Operações de Defesa Interna, órgão criado durante o Regime Militar do período de 1964 à 1985.

Page 29: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Na atuação repressiva sistêmica a tais movimentos originados e

amparados por setores diversos da sociedade, houve a ação onipresente da

polícia, que adequada àquela realidade, treinava os seus efetivos para uma

ação guerreira e anti-subversiva, enquanto as formulações das políticas

públicas de segurança pública eram deixadas aos setores burocratizados do

aparelho repressor estatal.

“Pelo artigo 21 do Decreto-Lei 667, todas as atividades das Polícias Militares no Brasil passaram a ter o crivo do Estado-Maior do Exército, através da Inspetoria Geral das Polícias Militares, numa situação que perdura até hoje (1980)” (DONNICI : 1984 : 193).

O aumento do êxodo rural, acarretando o inchaço das grandes

cidades brasileiras, os acontecimentos de transformação da economia mundial

e o desvirtuamento da função da polícia, que destarte, já não eram coisas

novas, foram apenas alguns dos fatores condicionantes do aumento das ondas

de criminalidade e violência a partir do final da década de 50.

“Com o início da escalada dos crimes contra o patrimônio, iniciado na década de 50, começa então a chamada criminalidade aquisitiva violenta, primeiro com furtos (violência à coisa), passando, anos mais tarde, para os roubos (violência à coisa e à pessoa). Simultaneamente, a polícia brasileira entrou, na década de 50, o que vem permanentemente até hoje, numa deterioração funcional de tal ordem, que deixou de ser uma instituição confiável, protegendo tão somente aos ricos, usando de violência contra os pobres, deixando de assegurar e garantir os direitos humanos” (DONNICI : 1984 : 65).

O desgaste causado pela longevidade do regime militar, o

surgimento de condições para o retorno ao Estado Democrático de Direito, e a

insatisfação popular, que em célebres manifestações demonstrava a sua

Page 30: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

recusa à continuidade do regime político iniciado em 1964, fez com que novas

perspectivas fossem idealizadas pela sociedade brasileira, originando o retorno

à normalidade democrática e por conseqüência a revisão de todos os nossos

tratados políticos, no que fez consubstanciar o Congresso constituinte de 1986,

e posteriormente, a Constituição de 1988, que como um de seus princípios

fundantes, trouxe o respeito à dignidade humana e à vida, estes um verdadeiro

paradoxo para a polícia violenta e militarizada, ainda existente no Brasil.

8. A NOVA CONSTITUIÇÃO E A POLÍCIA.

Embora avançada em alguns pontos, entre eles o da cidadania, a

carta constitucional de outubro de 1988, retrocedeu no item da segurança

pública, pois ainda persiste em manter a vinculação das instituições policiais

dentro do título reservado à “Defesa do Estado e das Instituições

Democráticas”, mesmo título onde estão inseridos o Estado de Defesa, o

Estado de Sítio e as Forças Armadas. Observa-se que os constituintes

vinculam as forças policiais a primazia da defesa do Estado, como sempre

ocorreu, dedicando adjetivamente uma função policial a tais órgãos

encarregados da segurança pública. Contreiras (1998 : 54-55) faz importantes

observações sobre esse período, assinalando entre outros fatos, o “lobby” que

se formou quando do debate constituinte a respeito do lugar da polícia na

ordem constitucional:

Page 31: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

“O Coronel Sebastião Ferreira Chaves foi ao Congresso em 1988 e tentou convencer alguns parlamentares a mudar o sistema policial dos Estados. Sua Maior frustração foi causada pela reação do Deputado Ulysses Guimarães. Apresentei meu projeto ao Deputado, mas ele disse que já não podia mudar nada porque tinha um compromisso com o General Leonidas Pires Gonçalves, Ministro do Exército do governo Sarney”.

Segundo encontra-se conceituada no Manual de Instrução Modular9

(Polícia Militar do Espírito Santo, 1997), “segurança pública é a garantia que o

Estado presta a nação contra quaisquer óbices que não sejam de natureza

ideológica”. Por essa definição podemos depreender que o ordenamento das

instituições policiais existentes atualmente, deveria estar desvinculado das

questões de defesa do Estado, pois a vetorização conceitual nos induz a

pensar que a mão de direção das ações de segurança pública é para a nação e

não para o Estado como nos impõe o mandamento constitucional.

A militarização da polícia militar acontece no texto constitucional, a

partir do instante em que se estabelece a investidura militar e não civil dos

servidores que integram os quadros das milícias estaduais. É contraditória, que

a investidura pessoal seja militar e a destinação institucional de polícia seja

civil. Essa contradição está estampada no artigo 42º e no artigo 144º, 5º e 6º

parágrafos do texto constitucional:

“Art. 42.: São servidores militares federais os integrantes das Forças Armadas e servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal os integrantes de suas polícias militares e de seus corpos de bombeiros militares. Art. 144.: A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

9 Sistema de Requalificação Profissional introduzido na Polícia Militar do Espírito Santo, a partir de 1992.

Page 32: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

I – (...) II – (...) III – (...) IV – (...) V – polícias militares e corpos de bombeiros militares. § 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. § 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios” (Constituição Federal Brasileira, 1988).

O modelo brasileiro é contraditório e contraproducente, pois diverge

da visão moderna de polícia ao nível mundial, ao inverter o sentido da função

civil da segurança pública, engessando a estrutura e ainda o lado

comportamental dos integrantes das polícias militares, que a bem da verdade

são militares e não policiais, como a destinação constitucional da polícia faz

supor.

9. A POLÍCIA EM CRISE E AS PERSPECTIVAS DE

SOLUÇÕES.

Há muito se fala da ineficiência da polícia brasileira, e em particular

da militar. No debate nacional, as reclamações da população neste mister

nunca encontraram eco entre os nossos mandatários, às vezes, por força da

dita tradição política brasileira, mas também pelo fato das polícias militares, em

especial, possuírem um forte lobby na estrutura de poder neste país. Como um

dos maiores policiólogos brasileiros da atualidade, o Coronel Jorge da Silva,

Oficial da Reserva da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, em sua

Page 33: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

conhecida obra “O Controle da criminalidade e da segurança pública na nova

ordem constitucional”, mostra a dificuldade da mudança na polícia, quando

afirma que:

“A polícia com saudade dos velhos tempos da tortura e da truculência institucionalizada, incapaz de profissionalizar-se e trabalhar técnica e cientificamente (aliás, a polícia será a última a reconhecer que a força bruta não é mais o remédio eficaz dos velhos tempos...)” .

O fato é que, como vimos, a Polícia Militar permanece reticente às

mudanças, parecendo possuir um futuro estável e intocável, diante das

transformações sociais que hoje são constantes e irrecuáveis.

As mudanças estéticas surgidas a partir do fim do regime militar, não

são suficientes para uma nova modelagem do aparelho policial, haja visto que

os reclamos societários exigem algo mais dos órgãos encarregados da

preservação da ordem pública. Nada adiantarão programas táticos como: os

Núcleos de Segurança Comunitária em Pernambuco, os PM Box em Belém do

Pará, o Policiamento Modular no Paraná, o Policiamento Discreto no Rio

Grande do Sul, os Postos de Policiamento Ostensivo em Minas Gerais, e a

atual Polícia Comunitária em São Paulo, entre outros, se a filosofia e a

estratégia policial não se afinarem com os novos tempos, onde o valor da

participação democrática, sobrepuja-se aos ditames positivistas do

ordenamento militar, que de forma dúbia intenciona ações de aproximação com

as comunidades, entretanto mantém como no caso do Espírito Santo, a

formação dos policiais militares, calcada em conceitos militaristas, ocasionando

através do condicionamento pavloviano, o que temos chamado de robotização

do policial.

Page 34: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Constatação feita por um grupo de professores da Universidade

Federal do Espírito Santo, no estudo intitulado “A Função Social da Polícia

Militar” comprova que os procedimentos de formação do elemento humano da

Polícia Militar capixaba, ainda nos dias atuais, estão aquém de sua verdadeira

destinação, que é a de ser um ativista social, um mediador de conflitos,

permanecendo o velho paradigma da repressão e do combate à criminalidade,

como se denota a transcrição do texto seguinte:

“O policial é treinado, preferencialmente, para as operações de confronto armado, semelhante a uma guerra, que requer do sujeito um preparo físico adequado além de um controle tático e de armamento” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Caderno de Pesquisa. n. 5. Vitória : UFES, 1996).

Direcionada em toda a sua existência secular para ações dirigidas

no modelo militar, percebe-se a olhos nus, que a Polícia Militar, encontra-se

agonizante pelo seu despreparo técnico policial, sequer conseguindo contribuir

para o controle efetivo da criminalidade e do aumento da sensação de

segurança da sociedade.

Nenhuma organização policial no mundo, conseguiu resultados

contra a criminalidade, sem antes voltar-se para uma remodelação sistêmica,

envolvendo os conceitos filosóficos, estratégicos, táticos e técnicos que as

nortearam. A Polícia Militar brasileira continua como sempre foi: corporativista,

militarizada e tática. Eric Hobsbawn, em sua célebre obra “A Era dos extremos”

nos ensina que: “O futuro não pode ser apenas uma continuação do passado.

O mundo corre risco de implosão ou explosão. Temos que mudar”.

Page 35: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Em decorrência das mutações sofridas pelo ambiente social, a

modelagem cartesiana, verticalizada e de baixa densidade democrática que

ainda persiste nas estruturas das Polícias Militares do Brasil, tende a evoluir

pela pressão social, para um sistema mais aberto, participativo e inovador,

adotando como vetores para a sua realização a comunitarização, a

cidadanização e a humanização, sendo que a gestação de tal sistema de

segurança pública, começa a ser moldada entre nós, a partir da experiência

exitosa, de polícia interativa, iniciada em Guaçuí-ES, no ano de 1994.

É de capital importância compreender o impacto das realidades

organizacionais sobre a capacidade de desempenho, sobretudo quando tais

realidades (burocracia, complexidade, estruturas hierárquicas, ideologia militar)

interpõem-se no caminho da mudança, e impedem a realização das exigências

democráticas no campo da segurança pública.

Page 36: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

CAPÍTULO II

OS DIREITOS HUMANOS E O PAPEL DA POLÍCIA

EM REGIMES DEMOCRÁTICOS

1. PRINCÍPIOS UNIVERSAIS DOS DIREITOS HUMANOS PARA

A ORDEM DEMOCRÁTICA.

Existem muitos significados para o termo “democracia”, assim como

existe uma diversidade de formas de governos democráticos. Como o presente

capítulo trata de direitos humanos e polícia, o termo democracia será entendido

em um sentido bastante amplo e das maneiras em que ele foi expresso em

diversos instrumentos de direitos humanos.

A liberdade e a igualdade são dois valores universais que se

traduzem em princípios básicos, dos quais emanam todos os direitos humanos.

Foi baseado nesses valores que a humanidade veio consolidando ao longo da

sua história o reconhecimento de que todo e qualquer ser humano é dotado de

dignidade, inerente à sua condição humana.

Este reconhecimento resultou na concepção de direitos civis,

políticos, econômicos, sociais e culturais, fundados nos princípios de igualdade

e liberdade. A expressão mais notória desta grande conquista é o artigo 1º da

Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948; que

dispõe o seguinte:

Page 37: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados como estão de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

Neste contexto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um

marco, resultante de longa luta, conquista e construção perpetradas ao longo

da história constitucional do ocidente, como pode ser verificado em vários

antecedentes.

Foi na Inglaterra onde emergiu o primeiro documento significativo

que estabelece limitações de natureza jurídica ao exercício do poder do Estado

Monárquico frente aos seus súditos: a Magna Carta de 1215, a qual, junto com

o “habeas corpus” de 1679 e o “Bill of Rights” de 1689, podem considerar-se

como precursores das modernas declarações de direitos. Estes documentos

não se fundem em direitos inerentes à pessoa, são conquistas da sociedade.

No lugar de proclamar direitos de cada pessoa, se enunciam melhor direitos do

povo. Mais do que o reconhecimento de direitos inalienáveis da pessoa frente

ao Estado, o que estabelecem são deveres para o Governo (IIDH : 1994).

As primeiras manifestações concretas de direitos individuais, com

força legal, fundadas sobre o reconhecimento de direitos inerentes ao ser

humano que o Estado está no dever de respeitar e proteger, a encontramos

nas Declarações de Independência Norte Americana e Ibero-americana, assim

como na Declaração da Revolução Francesa. Por exemplo, a declaração de

independência de 4 de julho de 1776 afirma que todos os homens foram

criados iguais, que foram dotados pelo criador de certos direitos inatos; que

Page 38: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

entre esses direitos deve colocar-se em primeiro lugar a vida, a liberdade e a

busca da felicidade; e que para garantir o gozo desses direitos os homens

estabeleceram entre eles Governos cuja justa autoridade emana do

consentimento dos governados. No mesmo sentido a Declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1784, reconhece que os homens

nascem e permanecem livres e iguais em direitos e que as distinções sociais

não podem estar fundadas senão na utilidade comum.

É desta forma que o tema dos direitos humanos, mais

especificamente o dos direitos individuais e das liberdades públicas ingressou

no Direito Constitucional.

Os princípios fundamentais que constituem a legislação moderna

foram concebidos ao longo da história da humanidade. No entanto, foi somente

neste século que a comunidade internacional tornou-se consciente da

necessidade de desenvolver padrões mínimos para o tratamento de cidadãos

pelos Governos. De acordo com o princípio da tripartição funcional do

Governo, nas funções judiciária, legislativa e executiva, a Polícia é um

componente orgânico da função executiva do Governo. Assim torna-se

necessário contextualizar os direitos humanos para que se possa explicar o

papel que os policiais devem desempenhar para promovê-los e protegê-los.

Isto pede a explicação da origem, situação, âmbito e finalidade dos direitos

humanos. Os policiais devem ser levados a compreender como o direito

internacional dos direitos humanos afeta o desempenho individual do seu

serviço, sobre as conseqüências das obrigações de um Estado perante o

direito internacional para a lei e a prática nacionais.

Page 39: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Um direito é um título. É uma reivindicação amparada legalmente,

que uma pessoa pode fazer para com outra. Os direitos humanos são títulos

legais que toda pessoa possui como ser humano. São universais e pertencem

a todos, rico ou pobre, homem ou mulher. Esses direitos podem até ser

violados, mas nunca podem ser retirados de alguém.

Os direitos humanos são direitos legais – isso significa que eles

fazem parte da legislação. Existem inúmeros instrumentos internacionais que

garantem os direitos específicos e que proporcionam a compensação caso os

direitos sejam violados. Além disso, os direitos humanos são protegidos pelas

constituições e legislações nacionais da maioria dos países do mundo.

O reconhecimento da inalienabilidade de tais direitos implica

limitações no alcance das competências do poder público. Desde o momento

em que se reconhece e garanta na Constituição que há direitos do ser humano

inerentes à sua condição humana, anteriores e superiores ao poder do Estado,

se está limitando o exercício deste, o qual lhe está vedado afetar o gozo pleno

daqueles direitos.

O poder não pode licitamente ser exercido de qualquer maneira,

mas, concretamente, deve ser exercido a favor dos direitos da pessoa e não

contra elas. Isto supõe que o exercício do poder deve sujeitar-se a certas

regras, as quais devem compreender mecanismos para a proteção e garantia

dos direitos humanos. Esse conjunto de regras que definem o âmbito do poder

e o subordinam aos direitos e atributos inerentes à dignidade humana é o que

configura o Estado de Direito.

Page 40: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

O Estado Democrático é associado a dois ideais significativos para a

polícia: o regime da lei e a promoção dos Direitos Humanos. Encontramos

disseminado em diversos instrumentos internacionais de Direitos Humanos,

direitos que indicam o sentido do regime democrático.

Os policiais detêm poderes conflitantes em relações aos Direitos

Humanos. Embora a sua principal função seja a de promover e proteger os

direitos humanos e liberdades fundamentais, as condições peculiares ao

exercício de seus deveres fazem deles infratores potenciais dos próprios

direitos que deveriam manter e apoiar. Esta situação paradoxal é suscitada

pelo acúmulo de poderes e prerrogativas legais delegados aos policiais, a fim

de habilitá-los aos cumprimento de suas tarefas e deveres. Entretanto, o abuso

ou mau uso dos mesmos é freqüente por toda a parte. Captura e detenções

ilícitas ou arbitrárias, falsificação de provas, emprego excessivo da força, maus

tratos a pessoas detidas e torturas são apenas alguns dos muitos exemplos de

práticas ilícitas e inaceitáveis, correntes em nossos dias, dentro e fora da

instituição policial.

Os direitos humanos implicam obrigações a cargo do Governo. Ele é

responsável em respeitá-los, garanti-los e satisfazê-los. Por outro lado, em

sentido estrito, só ele pode violá-los. As ofensas à dignidade da pessoa podem

ter diversas fontes, porém nem todas configuram, tecnicamente, violações dos

direitos humanos.

Nem todo abuso contra uma pessoa, nem toda forma de violência

social são tecnicamente atentados contra os direitos humanos. Podem ser

crimes, inclusive gravíssimos, porém se é mera obra de particulares, não será

Page 41: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

uma violação dos direitos humanos. No dizer de Uprimy (1993), só o Estado

viola os direitos humanos.

A responsabilidade pela efetiva vigência dos Direitos Humanos

incumbe exclusivamente ao Estado, que possui também entre suas funções

primordiais a prevenção e a punição de toda classe de delitos.

O Estado moderno se define pelo monopólio legítimo que detém da

força, da coação física, com isso procurando evitar os perigos para a

convivência social que resultam da multiplicação de poderes armados privados.

Mas os riscos desse monopólio da violência em termos de opressão ao

indivíduo e à sociedade obrigam a submeter a violência estatal a regras que

asseguram os direitos dos cidadãos.

As tentativas de submeter a violência estatal a regras e controles

que garantam os direitos da população constituem o objetivo mais conhecido e

tradicional do movimento dos Direitos Humanos.

A polícia, como materialização da força que o Estado monopoliza, é

destinada à preservação da ordem, e desta forma tem como incumbência atuar

no contexto do Estado para que esta ordem seja mantida, que os direitos

decorrentes da ordem vigente sejam garantidos, e os cidadãos possam deles

usufruir.

Entre os Direitos, que cabem a polícia proteger, inclui-se sobretudo

os direitos civis, vertente indissociável da idéia e da natureza dos direitos

humanos, que são direitos não apenas dos cidadãos do Estado, mas de

qualquer pessoa que estiver em seu contexto. Estes direitos, que são padrões

Page 42: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

internacionais, comprometem legalmente os Estados signatários dos vários

tratados, trazem implicações para as políticas e as práticas de policiamento.

De maneira geral, desde que um Estado cumpra com suas

obrigações de acordo com o Direito Internacional, como o faz não diz respeito

ao Direito Internacional. Em alguns casos, no entanto, os Estados

concordaram em cumprir com suas obrigações de maneira específica.

Freqüentemente é este o caso na área dos direitos humanos, onde os Estados

assumiram a responsabilidade de fazer com que certas condutas (por

exemplo, tortura e genocídio) sejam crimes, e de puni-las por meio de seus

sistemas jurídicos nacionais.

O Direito Internacional vincula todos os Estados. O Estado é

responsabilizado caso o direito internacional seja violado por um de seus

agentes ou instituições. A responsabilidade dos Estados também abrange a

função de assegurar que seus Governos, suas constituições e suas leis os

possibilitem a cumprir suas obrigações internacionais, não podendo alegar

qualquer disposição em sua Constituição ou Legislação como escusa para

furtar-se a cumprir com suas obrigações perante o Direito internacional.

Já está firmemente estabelecido que Estados podem ser

responsabilizados tanto por atos ilícitos civis quanto criminais. A

responsabilidade existe não somente em casos onde o próprio Estado é o

perpetrador, mas também em situações onde a conduta de uma pessoa ou

órgão pode ser imputada ao Estado. A conduta de um órgão Estatal será

considerada, perante o Direito Internacional, como um ato desse Estado. Em

relação aos atos cometidos por funcionários públicos, se os atos em questão

Page 43: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

forem executados na capacidade oficial (pública) da pessoa, independente da

sua natureza ou legalidade, então o Estado é responsável por tais ações. Isto

deixa bem claro que, no tocante aos policiais, suas ações, quando executadas

em capacidade oficial, são imputáveis ao Estado. Desta forma, o Estado tem a

obrigação de tentar remediar as conseqüências do ato, com reparação, através

de retribuição e indenização em relação aos danos sofridos pela parte

lesada.

A existência do Estado Democrático de Direito, e o respeito por ele,

origina uma situação onde direitos, liberdades, obrigações e deveres estão

incorporados na lei para todos, em plena igualdade, e com a garantia de que as

pessoas serão tratadas eqüitativamente em circunstâncias similares, assim

como protegidas contra interferência ilegal ou arbitrária nos seus direitos e

liberdades por outrem, inclusive por agentes estatais.

A liberdade é, sem dúvida, conquista inigualável no Brasil

democrático atual, mas ela sozinha não é, porém suficiente para assegurar ao

país a plenitude do Estado Democrático de Direito. A polícia é o setor mais

importante deste processo, pois é dela que flui a garantia ou não do usufruto e

gozo de grande parte dos Direitos Humanos.

2. OS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL – AUSÊNCIA DE

CIDADANIA.

Se, por ventura, um alienígena aportasse no Brasil e desejasse

conhecer que país é este, e tivesse escolhido como primeiro referencial

verificar a Constituição vigente, certamente teria certeza de ter aportado num

Page 44: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Estado Democrático maravilhoso, quase perfeito no tocante ao ideal e aos

princípios que fundamentam uma democracia.

Para focar a sua busca e aprofundar conhecimentos em torno da

mesma, elegeu os direitos civis, no específico interesse de saber sobre as

normas constitucionais e os remédios jurídicos oferecidos pelo Estado, com

vistas a garantir a vida e a integridade física dos cidadãos, para o que,

considerou interessante verificar também a proposição político-institucional

para as forças de segurança pública.

Após estudar a Constituição e verificar que, através de diferentes

artigos, o Estado brasileiro compromete-se a dar garantias individuais e

coletivas aos cidadãos e aos estrangeiros residentes no país, como a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade. Ao nosso alienígena parecia não restar dúvidas de estar ele

diante de um Estado que adota em seu corpo de leis aqueles direitos

consensuados internacionalmente como inalienáveis direitos do homem.

Curioso, o nosso alienígena procura saber mais. Quer agora saber

que medidas concretas o Governo brasileiro vem adotando para que a letra da

lei não seja morta. É nesse momento que ele se depara com um impresso da

Presidência da República, contendo um discurso do atual Presidente da

República, Fernando Henrique Cardoso, proferido em setembro de 1995, por

ocasião das festividades de comemoração da Independência nacional. Após

uma leitura atenta, percebeu que nesta ocasião o Presidente falou com

entusiasmo da apaixonante luta pela liberdade e pela democracia tantas vezes

travada pela sociedade brasileira ao longo de sua história. Percebeu,

Page 45: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

sobretudo, que ao falar sobre este tema, o Presidente definiu a atualidade

desta luta cunhando-a com o nome “Direitos Humanos”. Literalmente, disse o

Presidente: “no limiar do século XXI, a luta pela liberdade e pela democracia

tem um nome específico: chama-se direitos humanos”.

Desconfiado, nosso alienígena procurou meios de conferir se este

tinha sido somente um exercício de retórica do presidente ou se estava ele

realmente disposto a dar centralidade aos direitos humanos, tornando-os fonte

de inspiração e diretriz política principal, condutora de atos concretos do poder

executivo no país. Foi quando encontrou, nos arquivos da Secretaria de

Comunicação Social da Presidência da República, um documento contendo

proposições bastante concretas para o desencadeamento de ações de curto,

médio e longo prazos, na área da garantia, promoção e proteção dos direitos

humanos. Estas proposições, fazem parte do Programa Nacional de Direitos

Humanos, lançado pelo Governo Federal em 13 de maio de 1996, e visam

assegurar, entre outros, o direito de ir e vir sem ser molestado; o direito de ser

tratado pelos agentes do Estado com respeito e dignidade, mesmo tendo

cometido uma infração; o direito de ser acusado dentro de um processo legal e

legítimo, onde as provas sejam conseguidas dentro da boa técnica e do bom

direito, sem estar sujeito a torturas ou maus tratos; o direito de exigir o

cumprimento da lei e, ainda, de ter acesso a um Judiciário e a um Ministério

Público que, ciosos de sua importância para o Estado democrático, não

descansem enquanto graves violações de direitos humanos estejam impunes,

e seus responsáveis soltos e sem punição, como se estivessem acima das

normas legais.

Page 46: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Entretanto, ao ler o prefácio, assinado pelo Presidente, e a parte

introdutória a este Programa, o alienígena percebeu que algo de muito sério

ocorria neste país, que a situação de violação aos direitos humanos no Brasil

atingiu limites perigosos, que a falta de segurança das pessoas e o aumento da

escalada da violência era múltipla e perversa. O programa então, pelo que

assinalou o Presidente, seria um instrumento através do qual se esperava

estancar a banalização da morte e obstar a perseguição e discriminação contra

os cidadãos.

Que fatos marcam o cotidiano desta sociedade que dão motivos

inadiáveis para implementação de um programa desta natureza? Para buscar

resposta a esta pergunta, nosso alienígena percebeu que para saber e de fato

conhecer que país é este, não poderia se ater somente às informações

transmitidas pelos documentos oficiais do governo. Era preciso buscar em

outras fontes. Consultou então o Relatório sobre a situação dos Direitos

Humanos no Brasil, elaborado pela Comissão Interamericana de Direitos

Humanos (CIDH)10.

Nesse relatório, a Comissão identificava como principais problemas

do Brasil quanto aos direitos humanos os seguintes:

- A administração da Justiça, inclusive o Ministério Público;

- os grupos de extermínio;

10 A publicação de relatórios sobre a situação dos direitos humanos é prática corrente em diversos países do mundo. Esses relatórios têm diversas origens, podendo ser feitos e apresentados por organizações internacionais, organizações não-governamentais, nacionais ou estrangeiras, e pelos próprios governos. Pretende-se através deles fornecer informação periódica e sistematizada a respeito do tema, de modo a servir de subsídio para entidades governamentais e particulares com responsabilidades quanto a defesa e implementação desses direitos.

Page 47: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

- a violência urbana e rural e a falta de segurança das pessoas;

- a discriminação racial;

- a situação da população indígena;

- a violência contra os ocupantes de terras rurais não exploradas;

- a violência contra mulheres;

- a violência policial e sua impunidade, e a tortura como meio de

investigação;

- o sistema penitenciário;

- a competência dos tribunais militares para julgar delitos comuns

cometidos por policiais estaduais (“militares”);

- a situação de servidão forçada dos trabalhadores rurais.

Entre estas múltiplas formas de desrespeito e violação aos direitos

humanos, uma chamou a sua atenção de forma particular: a violência policial.

No capítulo dedicado a este tema, nosso alienígena constatou que a polícia no

Brasil foi repetidamente acusada de violar de maneira sistemática o direito das

pessoas e de que há um sistema11 que assegura a impunidade dessas

violações. A Comissão considerou que efetivamente há uma história de

práticas violatórias da polícia.

A Comissão por anos vem sendo informada pela imprensa e por

Organizações não-governamentais da atuação violenta das Polícias Estaduais,

especialmente da Militar, acusada de atuar violentamente tanto no exercício de

11 Este Sistema inclui desde a chamada “lei do silêncio”, segundo a qual, as testemunhas oculares se negam a esclarecer as circunstâncias dos fatos presenciados por temor a possíveis represálias; a ineficácia do controle externo da atividade da polícia pelo Ministério Público; a Justiça Militar Estadual como foro privativo para o julgamento dos membros da Polícia Militar e sua conseqüente ação corporativa.

Page 48: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

suas funções como fora dele. Um argumento comumente usado pelas Polícias

Militares sobre as acusações que lhes são feitas sobre as múltiplas mortes que

ocasionam é que estas são decorrentes de confronto com criminosos,

ocasionadas em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever. Embora

seja certo que em muitos Estados há um clima de violência delinqüente, há

provas de que a reação da polícia não só excede os limites do legal e

regulamentar ,mas, em muitos casos, os funcionários policiais usam de seu

poder, organização e armamento para atividades ilegais.

Em 1994, dados parciais de 14 Estados revelam que ocorreram

6.494 homicídios de todos os tipos e que, para cerca de metade deles, há

atribuição de responsabilidade. Destes últimos, 8% são atribuídos a policiais

militares e outros 4% a “esquadrões da morte”12. Analisando Estado por

Estado, são encontradas importantes diferenças: acusam-se policiais como

responsáveis em 17% dos casos de homicídios em Alagoas. Em 6% a 9% dos

casos no Amazonas, Amapá, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio

de Janeiro e Rio Grande do Sul; e em 5% ou menos dos casos no Ceará,

Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Roraima e Sergipe.

Segundo informações recebidas pela CIDH, grande número dessas

mortes não são causadas por ação da Polícia no estrito cumprimento do dever.

Muitas vezes, essas mortes estão relacionadas com as chamadas “execuções

12 De acordo com a CIDH, os esquadrões da morte ou grupos de extermínio foram estabelecidos por antigos Oficiais da Polícia a fim de combater o crime, consistindo suas ações em matar os criminosos considerados mais perigosos. Seus membros são conhecidos como justiceiros.

Page 49: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

extrajudiciais”13, decorrentes da participação de membros da Polícia Estadual

em grupos de extermínio, que têm como alvo, inclusive, adolescentes e

crianças.

Chama a atenção da Comissão que, embora o normal em

enfrentamentos armados seja que haja uma proporção muito maior de feridos

do que mortos, no período de maio de 1995 até fevereiro de 1996 no Rio de

Janeiro, por exemplo, o número de civis mortos pela Polícia Militar em

enfrentamentos foi mais de três vezes o número de civis feridos pelos mesmos.

Isso demonstraria um excesso de uso de força e inclusive, um padrão de

execuções extrajudiciais pela polícia.

O nosso alienígena ficou estarrecido, confuso e não mais entendia

em que país estava, em razão da incompatibilidade absoluta entre os princípios

que fundamentam um Estado Democrático, como imprimido na Constituição, e

a realidade vivida pela população desse Estado. O alienígena percebeu que

apesar de estar assegurada na Constituição brasileira a garantia de um amplo

campo de direitos para promover e elevar o status de cidadania do nacional, a

realidade concreta de vida de grande contingente da população brasileira,

sobretudo a mais pobre, está marcada pela negação e violação sistemática de

seus direitos, pela não cidadanização de meios e recursos indispensáveis para

promoção da dignidade humana e pela presença de um tipo de “sociabilidade

insociável” que a cada dia faz mais vítimas.

13 Entende-se por execução extrajudicial a morte de pessoas suposta ou sabidamente criminosa, intentada por agentes policiais, normalmente praticada pelos esquadrões da morte, como forma de conter a prática delituosa, eliminando os criminosos, matando-os, ou ainda, de impedir o esclarecimento de crimes ou delitos diversos que envolvem policiais civis e/ou militares, prática que no jargão policial é denominada de “queima de arquivo”.

Page 50: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Após investigar e chegar a constatações pouco animadoras sobre as

possibilidade dos direitos humanos no Brasil, nosso alienígena concluiu que os

tempos mudaram, mas a polícia brasileira não mudou. Fazendo uma análise

comparativa entre a realidade de hoje e aquela que vigorou durante os 21 anos

de ditadura militar, percebeu que no Brasil do período de março de 1964 a

março de 1985, as principais violações de direitos humanos estavam

associadas ao governo militar. A atuação repressiva sistêmica que envolveu

efetivos das polícias no combate e repressão a todo e qualquer movimento

coletivo ou individual de resistência e oposição ao regime, para o que se

admitia o uso de técnicas covardes, cruéis e degradantes para se obter

confissões do “inimigo”. O período inaugurado a partir de meados da década

de 80 é marcado pela redemocratização do país e pela promessa das elites

políticas de por fim ao “entulho autoritário” e as práticas de arbítrio extralegal

de violência e discriminação contra o cidadão. Com os governos civis eleitos

pelo voto popular, se inaugura no país uma nova postura em matéria de

direitos humanos que põe em marcha um processo de reconhecimento da

importância das iniciativas multilaterais de controle das violações a esses

direitos. Tal postura vem permitindo ao país se tornar Estado-parte das mais

importantes e significativas Convenções e Tratados internacionais na área da

observância e proteção desses direitos. No plano interno o processo

constituinte possibilitou à sociedade brasileira um debate rico sobre questões

de interesse nacional e a Constituição aprovada em 1988 tem sido considerada

um marco da história constitucional brasileira, ao mesmo tempo que verifica-se

um esforço do governo brasileiro de adequar as leis e instituições nacionais às

Page 51: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

exigências traçadas pelos documentos internacionais dos quais o Brasil é

signatário.

Entretanto, apesar de todas estas iniciativas e realizações servirem

de alento entre aqueles, que, como o nosso alienígena, compartilham da

opinião segundo a qual a agenda dos direitos humanos é significativa para o

equacionamento de questões sérias que sobressaltam o gênero humano no

tempo presente bem como para a revalorização ética, jurídica e política da vida

em sociedade, apesar disto, claro está também que os governos civis no Brasil

não estão sendo capazes de impedir o agravamento da violência e o

desrespeito aos direitos humanos impetrados por forças instaladas no interior

do aparelho estatal.

A violência e a arbitrariedade oficial grassa no seio da sociedade

brasileira e, entre seus promotores, a polícia brasileira ganha destaque.

Sentindo-se impotente para interferir numa realidade na qual está na condição

de forasteiro, o nosso alienígena foi embora. Deixou para cada brasileiro o

seguinte recado: cabe à sociedade brasileira a superação deste estado de

coisas. Cada cidadão deve juntar-se com aquele que está a seu lado para,

através da reunião de todas as forças interessadas, construir um Estado e uma

sociedade que ofereça condições eqüitativas a seus cidadãos, promova a

pacificação social e resgate o gênero humano do caminho da violência e da

barbárie.

O quadro de graves violações dos Direitos Humanos num país é a

prova da carência de cidadania, que em essência é o direito de viver

decentemente, cujo conceito complementa e interage com o conceito de

Page 52: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

democracia, a qual por sua vez complementa e interage com o conceito de

direitos humanos.

No alerta de Giovanni Sartori, o problema da democracia começa

com a primeira refeição diária. Indo mais longe, pode-se dizer que no Brasil o

problema da democracia, para aqueles que foram destituídos da condição

humana, é o de ter assegurada sua integridade física para poder fazer a

primeira refeição (Universidade de São Paulo : 1993).

A verdadeira democracia, aquela que implica o total respeito aos

direitos humanos, está ainda bastante longe no Brasil. O cidadão brasileiro na

realidade não usufrui da cidadania que lhe é garantida nos instrumentos legais

do Estado.

3. A POLÍCIA E OS DIREITOS HUMANOS SOB A ÓTICA DA

NORMATIZAÇÃO INSTITUCIONAL.

A lei e a ordem , assim como a paz e a segurança são questões de

responsabilidade do Estado. A maioria dos Estados escolheu incumbir as

responsabilidades operacionais desta área a uma organização policial, seja ela

civil ou militar.

As funções das organizações policiais, independente de suas

origens, estrutura ou vinculação, estão geralmente relacionadas a três

atividades básicas:

Page 53: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

- Preservação da ordem pública;

- prestação de auxílio e assistência em todos os tipos de

emergência; e

- prevenção, detecção e desvendamento do crime.

Aos policiais é concedida uma série de poderes que podem ser

exercidos para alcançar os objetivos legítimos da lei: entre aqueles mais

conhecidos e utilizados estão a prisão e a autorização para empregar a força

quando necessário, inclusive a utilização de armas de fogo. A Autoridade legal

para utilizar a força – incluindo a obrigação de empregá-la quando inevitável –

é exclusiva à organização policial.

Além dos poderes supra-citados, os policiais são investidos de

vários outros para o cumprimento eficaz de seus deveres e funções. Alguns

desses poderes estão relacionados à prevenção e detecção do crime, como a

autorização para proceder busca e apreensão, entrada em lugares, localidades

e casas onde crimes foram cometidos ou vestígios destes foram deixados;

busca de provas e o seu confiscamento para instruir o processo judicial; a

captura de pessoas e apreensão de objetos relativos a um crime cometido ou a

ser cometido. Cada um desses poderes é definido claramente pela lei e deve

ser exercido somente para fins legais.

A relação entre o direito internacional por um lado e o exercício da

função policial por outro – baseada no direito interno – pede uma explicação.

Para os objetivos deste trabalho, o direito internacional dos direitos humanos

Page 54: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

pode ser dividido em instrumentos com “força legal”14 e instrumentos “sem

força legal”15.

O direito dos tratados cria obrigações legais aos Estados-partes,

fazendo com que adaptem a legislação nacional para assegurar a plena

conformidade com o tratado em questão, assim como adotar e/ou modificar as

políticas e práticas relevantes. Os policiais formam um grupo de funcionários

do Estado dos quais se espera que observem as exigências do tratado no seu

trabalho diário. No caso dos instrumentos “sem força legal” no direito

internacional dos direitos humanos, eles podem ser comparados com as

normas administrativas que existem em todos os órgãos policiais. Apesar de

não possuírem um caráter vinculativo estritamente legal, o seu teor tem

especial importância na prática policial, e por isso o seu cumprimento é

altamente recomendado.

Os diversos instrumentos do direito internacional dos direitos

humanos trazem disposições fundamentadas nos princípios de humanidade,

respeito pela vida, liberdade e segurança pessoal, assim como disposições

especiais para a proteção de grupos vulneráveis, como as crianças e mulheres.

Existe ainda uma gama de direitos humanos e padrões humanitários

internacionais que se referem especificamente aos policiais, enquanto agentes

estatais. Nesse aspecto, esses direitos e padrões precisam ser conhecidos e

atendidos, uma vez serem essenciais para que o policial possa desempenhar

suas funções em conformidade com o papel destinado à organização policial

14 Por exemplo, direito dos tratados. 15 Inclui diretrizes, princípios, códigos de conduta, etc.

Page 55: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

no contexto do Estado. É sobre alguns desses instrumentos e padrões que

falaremos a seguir.

3.1 O Código de conduta para policiais.

As práticas policiais devem estar em conformidade com os princípios

da legalidade, necessidade e proporcionalidade. A questão da ética policial tem

recebido alguma consideração nos instrumentos internacionais de direitos

humanos e justiça criminal, de maneira mais destacada no Código de Conduta

para os Encarregados da Aplicação da Lei (CCEAL)16. A resolução da

Assembléia Geral da ONU que estabeleceu o CCEAL declarou que a natureza

das funções policiais na defesa da ordem pública e a maneira como essas

funções são exercidas, possui um impacto direto na qualidade de vida dos

indivíduos, assim como da sociedade como um todo. Ao mesmo tempo que

ressalta a importância das tarefas desempenhadas pelos policiais, a

Assembléia Geral também destacou o potencial para o abuso que o

cumprimento desses deveres acarreta.

O CCEAL consiste de oito artigos. Não é um tratado, mas pertence à

categoria dos instrumentos que proporcionam normas orientadoras aos

Governos sobre questões relacionadas com direitos humanos e justiça criminal.

É importante notar que esses padrões de conduta deixam de ter valor prático a

não ser que o seu conteúdo e significado, através de educação, treinamento e

acompanhamento, passem a fazer parte da crença de cada policial

individualmente.

16 O CCEAL foi adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua resolução nº 34/169, de 17 de dezembro de 1979.

Page 56: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

O artigo 1º estipula que os policiais devem sempre cumprir o dever

que a lei lhes impõe, servindo a comunidade e protegendo todas as pessoas

contra atos ilegais. No comentário do artigo é disposto que o serviço à

comunidade deve incluir particularmente a prestação de serviços de assistência

aos membros da comunidade que, por razões de ordem pessoal, econômica,

social e outras emergências, necessitam de ajuda imediata.

O artigo 2º requer que os policiais, no cumprimento do dever,

respeitem e protejam a dignidade humana, mantenham e defendam os direitos

humanos de todas as pessoas.

O artigo 3º limita o emprego da força pelos policiais à situações em

que seja estritamente necessária e na medida exigida para o cumprimento do

dever.

O artigo 4º estipula que os assuntos de natureza confidencial em

poder dos policiais devem ser mantidos confidenciais, a não ser que o

cumprimento do dever ou a necessidade de justiça exijam estritamente o

contrário.

O artigo 5º reitera a proibição da tortura ou outro tratamento ou pena

cruel, desumano ou degradante.

O artigo 6º diz respeito ao dever de cuidar e proteger a saúde das

pessoas privadas de sua liberdade.

O artigo 7º proíbe os policiais de cometer qualquer ato de corrupção,

devendo também oporem-se e combaterem rigorosamente esses atos.

O artigo 8º trata da disposição final, exortando os policiais mais uma

vez a respeitar a lei e o código de conduta. Os policiais são incitados a

Page 57: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

prevenirem e se oporem a quaisquer violações da lei e do código. Em casos

onde a violação do código é ou está para ser cometida, os policiais devem

comunicar o fato aos seus superiores e, se necessário, a outras Autoridades

apropriadas ou organismos com poderes de revisão ou reparação.

3.2 Princípios básicos sobre o uso de força e armas de fogo.

Os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo

(PBUFAF)17 apesar de não constituir um tratado, o instrumento tem como

objetivo proporcionar normas orientadoras aos “Estados-membros na tarefa de

assegurar e promover o papel adequado dos policiais. Os princípios

estabelecidos no instrumento devem ser levados em consideração e

respeitados pelos Governos no contexto da legislação e da prática nacional, e

levados ao conhecimento dos policiais, assim como de Magistrados,

Promotores, Advogados, Membros do Executivo e Legislativo e do público em

geral.

O preâmbulo deste instrumento reconhece ainda a importância e a

complexidade do trabalho dos policiais, reconhecendo também o seu papel de

vital importância na proteção da vida, liberdade e segurança de todas as

pessoas. Ênfase é dada em especial à eminência do trabalho de preservação

da ordem pública e paz social; assim como à importância das qualificações,

treinamento e conduta dos policiais. O preâmbulo conclui ressaltando a

importância dos Governos nacionais levarem em consideração os princípios

inseridos neste instrumento, com adaptação de sua legislação e prática

17 Adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a prevenção do crime e o tratamento dos infratores, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1990.

Page 58: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

nacionais. Além disso, os Governos são encorajados a manter sob constante

escrutínio as questões éticas associadas ao uso da força e armas de fogo.

De acordo com o instrumento em análise, os Governos e

organismos policiais devem assegurar-se de que todos os policiais:

- Sejam selecionados por meio de processos adequados de

seleção;

- tenham as qualidades morais, psicológicas e físicas adequadas;

- recebam treinamento contínuo, meticuloso e profissional. E que

a aptidão para o desempenho de suas funções seja verificada

periodicamente;

- sejam treinados e examinados com base em padrões

adequados de competência para o uso da força; e

- só recebam autorização para portarem uma arma de fogo

quando forem especialmente treinados para tal.

Na formação profissional dos policiais, os Governos e organizações

policiais devem dedicar atenção especial:

- Às questões de ética policial e direitos humanos;

- às alternativas ao uso de força e armas de fogo, incluindo a

solução pacífica de conflitos, o conhecimento do comportamento

das multidões e os métodos de persuasão, negociação e

mediação com vistas a limitar o uso da força e armas de fogo.

Page 59: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

No cumprimento de suas funções, os policiais, na medida do

possível, devem aplicar meios não violentos antes de recorrer ao uso da força

e armas de fogo. O recurso às mesmas só é aceitável quando os outros meios

se revelarem ineficazes ou incapazes de vir a produzir o resultado esperado.

Sempre que o uso legítimo de força e armas de fogo for inevitável, os policiais

deverão:

1º - Exercer moderação no uso de tais recursos e agir na proporção

da gravidade da infração e do objetivo legítimo a ser alcançado;

2º - minimizar danos e ferimentos e respeitar e preservar a vida

humana;

3º - assegurar que qualquer indivíduo ferido ou afetado receba

assistência e cuidados médicos o mais rápido possível e que os familiares

sejam notificados o mais depressa possível, bem como comunicando

imediatamente o incidente aos seus superiores.

Os Governos deverão assegurar que o uso arbitrário ou abusivo da

força e armas de fogo pelos policiais seja punido como delito criminal, de

acordo com a legislação em vigor. A regra é no sentido de que os policiais não

devam usar armas de fogo contra indivíduos. Admite-se apenas quatro

exceções:

1º - Em legítima defesa, contra uma ameaça iminente de morte ou

ferimento grave;

2º - para impedir a perpetração de crime particularmente grave que

envolva séria ameaça à vida;

Page 60: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

3º - para efetuar a prisão de alguém que esteja praticando uma

conduta delituosa que envolva séria ameaça à vida e resista à autoridade dos

policiais;

4º - para impedir a fuga de uma pessoa que esteja colocando em

risco sério a vida.

Em qualquer caso, o uso da arma de fogo contra pessoas só será

legítimo quando outros meios menos extremos se revelem insuficientes para

atingir tais objetivos e o uso letal intencional só poderá ser feito quando for

estritamente inevitável para proteger a vida.

Quando o policial estiver respaldado numa das quatro exceções

anteriormente descritas, ainda assim deverá cumprir as exigências que devem

anteceder a decisão de efetuar o disparo da arma de fogo, que são as

seguintes:

1ª - Identificar-se claramente como policial;

2ª - avisar prévia e claramente a respeito da sua intenção de

recorrer ao uso de arma de fogo;

3ª - dar um tempo suficiente para que tal aviso seja levado em

consideração.

Tais procedimentos obrigatórios que devem anteceder ao disparo de

arma de fogo só serão dispensados quando representarem um risco indevido

para os policiais ou acarrete para terceiros um risco de morte ou dano grave,

ou seja claramente inadequado ou inútil dadas as circunstâncias do fato.

Page 61: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Os Governos e as organizações policiais deverão assegurar que os

oficiais superiores sejam responsabilizados, caso tenham ou devam ter tido

conhecimento de que policiais sob seu comando estão, ou tenham estado, a

recorrer ao uso ilegítimo da força e armas de fogo, e caso os referidos oficiais

não tenham tomado todas as providências ao seu alcance a fim de impedir,

reprimir ou comunicar tal uso. Também deverão assegurar que não seja

imposta qualquer sanção criminal ou disciplinar a policiais que se recusarem a

cumprir uma ordem no sentido de usar força e armas de fogo em desacordo

com os princípios já descritos, até mesmo porque o cumprimento de ordens

superiores não constituirá justificação quando for manifestamente ilegítima e o

executor tenha tido oportunidade razoável de se recusar a cumprir essa ordem.

A responsabilidade caberá a ambos.

3.3 A Convenção contra a tortura.

A proibição da tortura é absoluta e não abre exceções. Não há

situações em que a tortura pode ser legal, nem existem possibilidades para

uma defesa legal, com êxito, de atos de tortura. Até nos casos de emergência

pública que ameace a vida das nações não permite uma derrogação da

proibição da tortura18. A confirmação da proibição da tortura encontra-se nas

Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais de 1977, os

quais banem a tortura em qualquer forma de conflito armado.

18 Artigo 4º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

Page 62: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A proibição da tortura faz parte do Direito Internacional costumeiro,

sendo incluída em diversos instrumentos internacionais19. A Convenção Contra

Tortura (CCT) contém disposições que enfatizam a responsabilidade pessoal

dos policiais – e novamente confirma que não se pode usar como justificativa

de tortura ordens superiores ou circunstâncias excepcionais20.

Os Estados signatários da CCT são exortados a incluir a proibição

da tortura nos currículos de formação de policiais, assim como regras ou

instruções relativas ao cumprimento de seus deveres.

Para os efeitos da CCT, o termo tortura significa “qualquer ato pelo

qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é intencionalmente

infligido a um indivíduo com o fim de obter dele ou de uma terceira pessoa

informações ou confissão, punindo-o por um ato que ele ou uma terceira

pessoa tenha cometido ou se suspeite ter cometido, ou intimidando-o ou

coagindo-o ou a uma terceira pessoa ou por qualquer razão com base em

discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é infligido por,

a instigação de, ou com o consentimento ou aquiescência de um funcionário

público ou outra pessoa atuando no exercício de funções oficiais”. Exclui dor ou

sofrimento apenas resultante, inerentes ou conseqüência de sanções legais.

19 Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 5º); Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 7º); Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 5º). 20 Convenção Contra Tortura (art. 2º).

Page 63: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

3.4 A Proteção aos direitos humanos no ordenamento

jurídico do Brasil.

A Carta da Organização das Nações Unidas, efetivamente, tornou

os direitos humanos uma questão de interesse internacional. A própria

Organização das Nações Unidas considera a promoção e a proteção dos

direitos humanos como uma de suas finalidades principais. A promulgação de

uma infinidade de instrumentos internacionais relacionados aos direitos

humanos tem a intenção de clarificar quais são as obrigações relativas aos

direitos humanos dos Estados membros da Organização das Nações Unidas.

Além de seus compromissos internacionais de caráter universal

sobre a promoção e respeito aos direitos humanos, o Brasil se compromete a

cumprir as obrigações e garantias decorrentes da Carta da OEA que em

relação aos direitos humanos, consubstanciam-se na Declaração Americana

dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos

Humanos.

De acordo com a Constituição Federal, todos os tratados e

convenções em que o Brasil é Estado-parte são de aplicação imediata no

ordenamento interno do país. Essa executoriedade imediata dos

compromissos internacionais no âmbito dos direitos humanos faz com que

estes sejam diretamente aplicados, sem que seja necessário adotar

previamente medidas legislativas, administrativas ou de outra natureza. Isso

decorre do artigo 5º da Constituição, nos seus parágrafos 2º e 1º,

respectivamente, que rezam o seguinte:

Page 64: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

A Constituição de 1988, atualmente vigente, representa no campo

dos direitos humanos importante avanço, resultando na mais ampla carta de

direitos humanos que a história do país registra. Em seu título I, “Dos direitos e

garantias fundamentais”, a Constituição vigente faz constar a “dignidade da

pessoa humana” e a “prevalência dos direitos humanos” entre os princípios

essenciais em que se fundamenta a República Federativa do Brasil, na

qualidade de Estado Democrático de Direito. Abriga também um enorme

elenco de direitos humanos que transcendem a própria Declaração Universal.

São direitos individuais, do cidadão, do nacional, do trabalhador, cujo cerne

encontra-se inscrito no caput do artigo 5º:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade à igualdade, à segurança e à propriedade...”.

O passo de maior conseqüência na normatização institucional dos

direitos humanos no Brasil certamente foi a adoção do Programa Nacional de

Direitos Humanos21. Foi um marco de referência claro e inequívoco do país

com a proteção e promoção dos direitos humanos.

Neste contexto, o papel da polícia é importante, pois pode contribuir

de maneira significativa para o desenvolvimento econômico e social da

21 Instituído através do decreto federal nº 1.904, de 13 de 1996.

Page 65: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

sociedade, como protetora e garantidora do usufruto dos direitos civis e como

facilitadora e garantidora dos direitos políticos. Para tal é necessário apenas

que todas as ações que envolvem o policiamento sejam eficazes, mas

rigorosamente legais.

A eficácia da polícia é reforçada pelo apoio da população para

quem ela presta serviços. O fundamento do apoio do público à polícia é o

seu controle, através das instituições e processos políticos de natureza

democrática e o respeito pelos Direitos Humanos por parte da força policial,

hoje expressados pelas ações de supervisão civil da polícia.

4. EXIGÊNCIAS DEMOCRÁTICAS NO CAMPO DA

SEGURANÇA PÚBLICA.

As organizações policiais brasileiras são na sua totalidade sistemas

fechados, estritamente hierárquicos. A sua estrutura, assim como o seu

sistema de patentes e também o seu arcabouço ideológico adota o sistema

militar. Operam normalmente obedecendo uma cadeia rígida de comando, com

separações estritas de poder e autoridade, na qual o processo de tomada de

decisões é feito de cima para baixo. A capacidade deste tipo de organização

policial em responder a estímulos externos fica limitada a respostas

padronizadas, demonstrando pouca, ou nenhuma antecipação proativa dos

desenvolvimentos atuais e futuros que não se encaixem no sistema. A

organização policial como um sistema fechado tem dificuldades em estabelecer

e manter relações eficazes com o público. Também tem dificuldades em

Page 66: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

determinar os desejos, as necessidades e as expectativas do público em dado

momento.

Os índices de criminalidade e violência são alarmantes. Os índices

de solução de crimes e credibilidade nas organizações policiais são

decepcionantes, assim como o são os esforços dirigidos para o

desenvolvimento e a implantação de táticas para uma prevenção mais eficaz

do crime. Não resta dúvida de que a forma como as organizações policiais

estão distribuindo seus recursos materiais e humanos, e as decisões que

priorizam o apanhar criminosos, o tradicional jogo de bandido e polícia está

ultrapassado, pois esgotou a capacidade de responder as demandas da

sociedade.

É preciso buscar uma forma de “fazer polícia” dentro da ordem

democrática, como se deseja e é esperado pela sociedade. Acreditamos que a

Resolução nº 34/169 da Assembléia Geral das Nações Unidas, a qual adotou o

Código de Conduta para Policiais, mas que dispôs também especificamente

sobre o policiamento democrático, apresenta a alternativa que proporcionará as

condições de modelagem do como “fazer polícia” em conformidade com a nova

ordem.

No tocante ao policiamento democrático, a citada resolução dispõe

expressamente da seguinte forma:

“Assim como todas as instituições do sistema de justiça criminal, qualquer instituição policial deve ser representativa da comunidade como um todo, correspondente às suas necessidades e expectativas e responsável perante esta comunidade”.

Page 67: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Nesta disposição encontramos as três características fundamentais

do policiamento democrático: representativo, correspondente às necessidades

e expectativas públicas e responsável, as quais expressam o padrão

internacional dos direitos humanos nesta questão, e que serão explicadas a

seguir.

4.1 O Policiamento representativo.

A característica básica do policiamento representativo é a

certificação de que os policiais sejam suficientemente representativos da

comunidade a que servem. As minorias devem ser representadas

adequadamente dentro das instituições policiais, através de políticas de

recrutamento justas e não discriminatórias, e políticas feitas para permitir aos

membros desses grupos desenvolverem suas carreiras dentro das instituições.

Além disto, dentro de uma instituição policial, deve ser levado em

consideração, além da composição numérica, a composição qualitativa. Isto

significa verificar se além da existência de números adequados de policiais

representativos da população, com representação igual de homens e mulheres,

assim como a representação proporcional de minorias, os policiais têm a

vontade e a capacidade de realizar um policiamento democrático, tendo em

vista a promoção da cidadania22.

22 Em 1981, ocasião em que os autores deste trabalho fizeram o concurso público para ingresso na Polícia Militar do Espírito Santo, um dos quesitos constantes do Relatório de Investigação Social, procedido pelo serviço de informações da corporação (Polícia Militar/2) era se o candidato professava ideologia contrária ao regime. Há que ser ressaltado que o regime vigente era a ditadura militar. Se o agente responsável pela investigação indicasse positivamente, significava a contra-indicação e conseqüente eliminação do candidato do processo seletivo.

Page 68: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A vontade e capacidade de realizar um policiamento democrático é

baseada no princípio de que todas as pessoas são iguais perante a lei e têm

direito, sem discriminação, a igual proteção. Isto significa que as pessoas que

tiverem entendimento e forem movidas pelo sentimento de trabalhar em prol da

consolidação do modelo igualitário de sociedade, onde a lei seja expressão da

vontade popular e sua aplicação seja dirigida a todos, devem ser incentivada a

integrar os quadros da polícia. E nunca serem impedidas da investidura policial,

como em passado remoto era abertamente feito.

4.2 O Policiamento correspondente às necessidades e

expectativas públicas.

O policiamento correspondente às necessidades e expectativas

públicas significa que a polícia deve estar consciente das necessidades e

expectativas da população e corresponder a elas. Evidentemente, a população

necessita e espera que a polícia previna e desvende o crime e preserve a

ordem pública. Entretanto, estas necessidades e expectativas são

demasiadamente gerais. A polícia precisa também considerar as maneiras

pelas quais a população demanda que estes objetivos sejam atendidos e quais

as necessidades e expectativas específicas da população em um determinado

tempo e em uma determinada localidade.

Isto exige uma mudança gradual, partindo de um sistema fechado23

para um sistema mais aberto na área policial, com ênfase na descentralização

da organização e até mesmo na extinção da abundância de níveis funcionais

23 São sistemas nos quais a maioria dos processos decisórios é restrita à cúpula da organização.

Page 69: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

na sua estrutura. É preciso criar uma proximidade e entendimento mútuo entre

a população e a organização, partindo da premissa fundamental de que a

responsabilidade pela segurança pública não é só da polícia, mas

compartilhada entre o Estado e seus cidadãos.

As Organizações policiais, ou melhor, os funcionários responsáveis

por sua administração estratégica, só há pouco começaram a sentir o quanto a

capacidade e eficiência das mesmas são prejudicadas pelas estruturas

altamente burocratizadas e centralizadas. O incentivo à mudança deve-se mais

a uma crescente pressão (política) exercida de fora para dentro da

Organização, do que a uma convicção categórica de que a burocracia e os

sistemas hierárquicos são provavelmente características contraproducentes

num contexto dinâmico e sujeito a contínuas mudanças. Esta pressão parte de

instâncias políticas decisórias insatisfeitas com os níveis atuais de eficiência

apresentados pelas organizações policiais tradicionais. Por trás dessa

insatisfação, quase sempre haverá a reprovação da opinião pública, ao lado de

percepções e experiências desfavoráveis do desempenho da Polícia. O rápido

crescimento do mercado da segurança privada é um indicador seguro de que

as empresas do setor, na verdade, passaram a vender a proteção e a

segurança que os órgãos governamentais estão deixando de fornecer (Rover :

1998).

A crescente insatisfação experimentada pela sociedade ocasiona a

mudança das organizações policiais. Aos poucos, por toda parte, observa-se a

adoção em caráter experimental de estruturas descentralizadas e menos

burocratizadas de aplicação da lei. Novos conceitos de gerenciamento são

Page 70: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

adotados e testados. O velho estilo de tomada de decisões de cúpula dá lugar

aos conceitos de “auto-gestão” e “responsabilidade pelos resultados” que

implicam na distribuição de responsabilidades e créditos pelo desempenho da

função policial entre todos os planos funcionais da Organização. Conceitos

como o de “policiamento comunitário” são vistos com crescente entusiasmo.

O tipo e a qualidade dos serviços dependem da capacidade da

Organização policial para identificar e interpretar as demandas e necessidades

da comunidade a que serve. Isto implica em algo mais do que manter linhas

telefônicas de emergência para atender os pedidos de socorro de pessoas em

perigo. Requer o acesso a todas as camadas da população e ligações com

todos os setores da sociedade. Pressupõe, ao mesmo tempo, fácil acesso à

própria Organização policial e a existência de uma confiança mútua entre os

cidadãos e os policiais ao seu serviço. Este tipo de relacionamento não surge

espontaneamente, nem se consolida de um dia para o outro. Quando

estabelecido proporciona capacidade de antecipação e reação.

Capacidade de antecipação e reação significa a capacidade da

Organização policial de responder – de maneira reativa ou proativa – às

demandas e necessidades da sociedade. Assim definida, esta característica

encontra-se diretamente relacionada e condicionada ao padrão e à qualidade

efetiva dos serviços, baseado nas relações com a comunidade e as atividades

de inteligência policial. A maioria das organizações policiais têm baixa

capacidade para responder de forma proativa aos desenvolvimentos externos,

e, por conseguinte, limita-se a um gerenciamento à base de respostas reativas.

É por esta razão que a Polícia tende a concentrar o foco de suas atenções nos

Page 71: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

indivíduos em situações de perigo ou nos casos de infração da lei, situações

que obviamente exigem uma ação legal. As respostas proativas pressupõem

um foco muito mais amplo, procurando tomar em consideração os diversos

componentes que constituem a sociedade e determinam suas necessidades

em termos de aplicação da lei. Aspectos como situação e desenvolvimento

econômico, composição da população, grau de urbanização e dados

demográficos, cada um a seu modo, favorecem a compreensão das tendências

atuais e futuras de desenvolvimento da sociedade. Com base em tais

“insights”, pode se chegar a prognósticos úteis e precisos quanto aos futuros

desdobramentos na esfera da ordem e da segurança pública.

As estratégias preventivas que deveriam ser a grande mola

propulsora das organizações policiais, não constituem o ponto forte delas, não

sendo muito apreciadas ou valorizadas pelos policiais. Tem-se a impressão de

que os resultados da prevenção não podem ser verificados objetivamente,

dificultando a avaliação do valor das táticas isoladas. É difícil afirmar quantos

acidentes de trânsito poderiam ser evitados postando-se um guarda

uniformizado num cruzamento perigoso, ou quantos furtos são impedidos por

rondas policiais noturnas em áreas residenciais.

O requisito da capacidade de antecipação e reação deve tomar em

consideração as opiniões da comunidade e formular respostas proativas, com

preferência às reativas. A constatação de que a organização tradicional da

polícia constitui, na verdade, um obstáculo à aplicação proativa da lei, só muito

lentamente ganha terreno no interior das organizações policiais.

Page 72: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Deve ser considerado que tanto o crime como a segurança pública

tem dimensões diferenciadas (locais, municipais, estaduais, nacionais e

internacionais). A dimensão local parece ser a mais afinada com a articulação

e o desdobramento das Polícias Estaduais no Brasil, bem como as demandas

da comunidade, o que implica em repensar a maneira como vem trabalhando.

Não há como lidar com essas relações se a interação da polícia com a

comunidade não for estabelecida.

A prevenção, a detecção e o desvendamento do crime só tem

possibilidade de concretizar-se quando a polícia toma conhecimento. A polícia

só toma conhecimento de duas formas: diretamente, quando pessoalmente

está presente e indiretamente, quando alguém a informa.

Em nenhum lugar do mundo os efetivos policiais são suficientes

para ocupar todos os espaços públicos, além de ser considerável a quantidade

de infrações praticadas em espaços privados. Por isso a polícia deve

estabelecer um canal de informação fluindo da sociedade para ela. Só que

existe uma barreira que impede esse fluxo. Esta barreira é principalmente a

falta de confiança e descrédito nas resoluções dos problemas que cabem à

polícia responder. Devem ser estabelecidos mecanismos que eliminem essa

barreira e permitam o fluxo desejado de informações.

Se o cidadão conhece o policial, se a polícia atuar da forma

esperada e desejada pelo cidadão, se o cidadão passa a ter voz e vez, se o

cidadão for ouvido e seu desejo for atendido, fica estabelecido uma via de mão

dupla entre ele e a polícia, surgindo um elo de confiança e credibilidade.

Page 73: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

4.3 O Policiamento responsável.

O policiamento responsável é atingido de três maneiras principais:

legalmente, politicamente e economicamente. Assim como todos os indivíduos

e todas as instituições nos Estados onde a lei prevalece, a polícia tem que

prestar contas à lei. Ela deve prestar contas à população à qual serve, através

das instituições políticas e democráticas de Governo. Desta forma, suas

políticas e práticas de fazer cumprir a lei e manter a ordem, submetem-se ao

escrutínio público.

A polícia é responsável pelo modo pelo qual utiliza os recursos que

lhe são alocados. Isto vai além do exame minucioso de suas principais funções

policiais, e é uma forma de controle democrático sobre todo o comando, a

gerência e a administração de uma instituição policial.

A eficiência da Polícia depende, em larga medida, das qualificações

individuais dos Agentes, em termos de conhecimento, competência, postura e

conduta. A função policial não é de modo algum um processo de produção

mecânico com alternativas variáveis de controle de qualidade anteriores à

venda do produto acabado. O principal produto desta “indústria” são serviços. A

maioria destes serviços é prestada “no local”, fora dos limites de controle dos

funcionários com poderes de supervisão e/ou revisão. A “clientela” que

consome os seus serviços são cidadãos, elemento mais importante, a própria

essência do Estado contemporâneo. Os poderes e prerrogativas outorgados

pelo Estado à função policial são, na verdade, poderes e prerrogativas

exercidos por agentes individuais, em circunstâncias determinadas. A questão

de saber se deveria, por um lado, delegar a estes agentes responsabilidades e

Page 74: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

prerrogativas que, em última instância, poderão significar um poder de decisão

sobre a vida ou morte, enquanto, por outro lado, os mesmos não detêm quase

nenhuma autoridade ou poder de decisão dentro da própria Organização a que

pertencem, é um ponto polêmico.

Embora todas as Organizações policiais sejam, de uma forma ou de

outra, submetidas à fiscalização pública24, a maioria não se empenha em

estabelecer ou manter relações estruturadas com a comunidade a que servem.

Sabe-se que nem todas as operações policiais são executadas segundo a

forma prescrita. Com muita freqüência, o princípio de legalidade e, sobretudo,

os de necessidade e proporcionalidade são violados. Na maioria das vezes tais

práticas não são suscetíveis de verificação. No curso de uma investigação

criminal, por exemplo, os Agentes poderão obter informações valendo-se de

métodos e/ou meios que não se acham em estrita conformidade com os

princípios supracitados.

O registro, verificação e avaliação de desempenho equivaleriam a

uma espécie de contabilidade das práticas policiais. As organizações policiais

devem prestar contas ao Governo local e à comunidade como um todo, e suas

ações e práticas devem ser compatíveis com as leis nacionais e com as

obrigações assumidas pelo Estado perante o Direito Internacional dos Direitos

Humanos. A fim de facilitar a necessária fiscalização, a transparência das

organizações nas práticas policiais é imperativa.

24 A fiscalização pública se processa através da atuação institucional do Ministério Público, do Judiciário, das Corregedorias e Ouvidorias.

Page 75: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Três níveis de responsabilidade final precisam ser estabelecidos. O

primeiro nível é o da responsabilidade perante a comunidade internacional

pelas práticas policiais. Conforme o Direito Internacional dos Direitos Humanos,

os Estados podem ser individualmente responsabilizados por situações em que

se verifica, dentro de seus territórios, um padrão consistente de violações

graves e seguramente atestadas de direitos humanos, como disposto na

Resolução nº 1.503 (XI – VIII) do Conselho Econômico e Social da

Organização das Nações Unidas, de 27 de maio de 1970. Nos casos em que

se possa atribuir tal padrão de violações às práticas policiais, tais práticas

serão consideradas no âmbito internacional como atribuíveis ao Estado, e

pelas quais o mesmo pode ser responsabilizado. No caso de eventuais

violações dos Direitos Humanos que não configurem “um padrão consistente

de violações graves”, o Estado será ainda responsabilizado pelas mesmas.

Apenas os mecanismos de denúncia diferem.

O segundo nível é o da responsabilidade perante a sociedade das

organizações policiais por suas práticas. Os policiais deverão atuar dentro do

território do Estado em conformidade com a legislação respectiva e serão

responsabilizados perante ela. O desenvolvimento de estratégias e políticas de

atuação policial deverão envolver igualmente a organização policial, o Governo

local, a comunidade, o Poder Judiciário e o Ministério Público, os quais

deveriam empenhar-se por igual também na avaliação da implementação de

estratégias e políticas.

O terceiro nível, a responsabilidade interna das organizações

policiais, compreende a responsabilidade individual efetiva de todo policial em

Page 76: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

respeitar e observar rigorosamente os preceitos da lei. Esta responsabilidade

ultrapassa o simples conhecimento da legislação. Ela pressupõe requisitos de

postura e competência, os quais, aliados ao necessário conhecimento, poderão

garantir a aplicação imediata, adequada e oportuna da lei, sem distinção de

qualquer natureza. Os policiais prestar-se-ão, mediante os procedimentos de

relato e revisão, à supervisão, ao controle e à fiscalização de seus atos.

Os Oficiais superiores deverão proporcionar orientação aos seus

subordinados e impor medidas corretivas, sempre que as circunstâncias assim

exigirem. Se necessário, tais medidas poderão resultar em ação disciplinar ou

acusações criminais contra determinado funcionário. Outro aspecto da

responsabilização interna é o exame periódico de desempenho da função

policial em função das estratégias e políticas em curso. As conclusões de tais

avaliações contribuirão para assegurar o correto gerenciamento e

administração da organização como um todo.

Os três níveis de responsabilização não serão concebidos como

entidades separadas, mas antes como um todo coeso. Ao final do processo, a

responsabilidade final visa estabelecer garantias de que a prática policial será

compatível com os princípios de legalidade, necessidade e proporcionalidade.

É possível também conceber outros métodos informais ou formais

de responsabilização a um nível bem local, por exemplo, grupos de ligação

entre polícia e cidadãos, ou conselhos locais da comunidade interagidos com a

polícia para deliberar sobre as questões locais de segurança pública. Além

disso, esta forma de responsabilização é um meio pelo qual a polícia pode

tomar consciência das necessidades locais imediatas e corresponder a elas.

Page 77: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

4.4 Apontando a solução.

A aplicação da lei dá-se em um contexto dinâmico, onde os

enfoques e relações envoluem continuamente e adquirem crescente

complexidade. A Organização policial deverá, pois, por intermédio de seus

Agentes, desenvolver uma capacidade de adaptação e mudança, a fim de que

o sistema como um todo não se torne um obstáculo ao progresso da

sociedade. Somente assim os policiais estarão em condições de atender às

demandas e necessidades da comunidade e corresponder às expectativas que

esta depositou neles.

Qual o mecanismo que possibilita ao cidadão ser servido por uma

polícia de acordo com sua necessidade e expectativa, que possa deliberar

onde quer e como quer a polícia, que possa efetivamente exercer o controle

sobre ela e que ao mesmo tempo transforme esse mesmo cidadão em co-

responsável pela segurança e partícipe das relações que permitirão a polícia

ser mais eficiente e eficaz? Que mecanismo se indica para que o modo de

fazer policiamento seja conforme os princípios e padrões dos Direitos

Humanos, ao mesmo tempo sendo também instrumento de promoção e

proteção dos próprios Direitos Humanos? Pensamos que a resposta seja a

comunitarização da polícia. Então há que se conhecer os fundamentos da

denominada Polícia Interativa, seus pressupostos e a forma como sistematiza-

se e é implementada (Costa(2) : 1995) para sabermos se é ou não um modo de

fazer polícia de segurança pública conforme e para os Direitos Humanos.

Page 78: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Estamos convictos quanto ao fato de o processo de interação dar-

se-á a partir do conhecimento das verdades societais/policiais, que

possibilitarão a resolução proativa das demandas específicas da área de

segurança pública, esta sim, o maior dos objetivos da polícia moderna, cidadã

e participativa, e que a cada dia mais, gerida em parceria com a sociedade civil

organizada, contribui para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e

de suas molas mestras que são o respeito e a dignidade humana.

Page 79: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

CAPÍTULO III

UM NOVO MODELO PARA O ORGANISMO

POLICIAL BRASILEIRO

1. ENTENDENDO A NECESSIDADE DE MUDANÇA DO

MODELO ATUAL DE SEGURANÇA PÚBLICA.

1.1 Considerações iniciais.

Um dos grandes desafios das polícias como agências prestadoras

de serviços de segurança pública, no findar de mais um milênio, tem sido

definir estratégias para a concepção da atuação da polícia de modo mais eficaz

e constante.

É comum atribuir às Polícias a crescente e contínua sensação de

insegurança expressa pela população.

A imagem das polícias necessita de melhoria. É visível o clamor

público por mais segurança. O controle da criminalidade, cujas condicionantes

são sobretudo estruturais (no campo econômico e social), exige soluções que

ultrapassam a capacidade das polícias, quando estas não pautam as suas

ações operacionais pela solidariedade das comunidades.

Sem prejuízo das ações voltadas para o criminoso, é necessário que

as comunidades queiram e disponham de proteção contra a eclosão do delito.

Aqui, está a gênesis da Polícia Interativa, pois, entrosada com os estamentos

diversos da sociedade onde atua, a polícia deixa de ser a “polícia do

Page 80: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

aconteceu”, passando a direcionar as suas ações operacionais para ser “a

polícia do pode acontecer”, fazendo da proação o principal instrumento de

controle da criminalidade. A interação da polícia com as comunidades permite

que essas tomem consciência de que o crime não é problema só da polícia,

mas também de cada cidadão.

O desiderato da segurança pública é a garantia da ordem pública,

que se traduz pela convivência harmoniosa e pacífica da sociedade que deve

ser também fruto da consciência participativa de todo o estamento societal.

O modelo secular de polícia no Brasil, com pequena participação

comunitária, está ultrapassado e não reflete os anseios do cidadão. Conhecer

as características da função da polícia, bem como o ambiente externo de sua

atuação, constitui a condição primeira para a realização do processo de

interatividade na área de segurança pública.

A polícia interativa, como uma nova maneira de pensar na proteção

e socorro públicos, baseia-se na crença de que os problemas sociais,

condicionantes da criminalidade, em síntese, terão, cada vez mais, soluções

efetivas, na medida em que haja a participação das comunidades na sua

identificação, análise, proposta e implementação de ações conjuntas para a

busca de soluções.

As ações e operações policiais devem ser concebidas tendo como

alvo principal a população ordeira e não os infratores da lei; passando,

portanto, a priorizar a atuação pró-ativa da Policia como atenuante de seu

emprego repressivo. Tanto quanto possível, deve-se buscar a presença

permanente do policial junto a uma determinada localidade, dando-se

Page 81: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

preferência pelo emprego do policiamento preventivo, mais próximo e em

contato mais estreito com as pessoas, tornando-o mais visível e de mais fácil

acesso.

1.2 Fatores intervenientes no desenvolvimento do processo

interativo.

A percepção e a implementação das mudanças devidas para o

atingimento de uma nova modelagem das organizações envolvidas na

prestação de serviços de segurança pública, esbarram atualmente em alguns

óbices, entre os quais evidenciamos os que, ao nosso ver, são hoje os

principais fatores para a dificultação do processo interativo:

- O distanciamento das organizações integrantes do sistema

criminal da população socialmente menos favorecida;

- os hábitos seculares ainda muito enraizados nas instituições

policiais brasileiras que persistem em confundir pobreza com

marginalidade;

- a baixa profissionalização e instrumentalização do estamento

policial;

- o precário financiamento estatal das instituições policiais, o que

em alguns casos tem motivado a busca de recursos pela policia

junto às comunidades, ocasionando uma crescente “privatização”

dos serviços de segurança pública, através do privilegiamento de

comunidades mais bem aquinhoadas financeira e socialmente;

Page 82: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

- as comunidades se mostram receosas em servir de informantes

à Polícia, temendo o abandono e a conseqüente retaliação por parte

dos agentes marginais; e

- a falta de maturidade participativa, por parte de diversos

segmentos comunitários.

1.3 Conceitos indispensáveis para o entendimento do

processo interativo.

A compreensão de alguns conceitos elementares25 na área de

segurança pública e da interação participativa, levar-nos-á a visualização do

novaz processo de interface entre a sociedade civil organizada e os órgãos

encarregados da prestação dos serviços de segurança pública em nosso país,

assim vejamos:

a) Segurança Pública:

É a garantia que o Estado (União, Unidades Federativas e

Municípios) proporciona à Nação, a fim de assegurar a Ordem Pública, contra

violações de toda espécie, que não contenham conotação ideológica.

b) Ordem Pública:

Conjunto de regras formais, coativas, que emanam do ordenamento

jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais em todos os

níveis para estabelecer um clima de convivência harmoniosa e pacífica;

constitui, assim uma situação ou condição que conduz ao bem comum.

25 Conceitos constantes do Manual de Instrução Modular da Polícia Militar do Espírito Santo, edição de 1995, páginas 214 a 217.

Page 83: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

c) Preservação da Ordem Pública:

É o exercício dinâmico do poder de polícia26, no campo da

Segurança Pública, manifestado por atuações predominantemente ostensivas,

visando a prevenir e/ou coibir eventos que alterem a Ordem Pública – os

delitos – e a dissuadir e/ou reprimir os eventos que violem essa Ordem para

garantir sua normalidade.

d) Policiamento Ostensivo:

É a atividade de Manutenção da Ordem Pública executada com

exclusividade pela Polícia Militar, observadas as características, princípios e

variáveis próprias, que visem à tranqüilidade pública.

e) Tranqüilidade Pública:

É o estágio em que a comunidade se encontra num clima de

convivência harmoniosa e pacífica, representando assim uma situação de bem-

estar social.

f) Defesa Pública:

É o conjunto de medidas adotadas para superar antagonismos ou

pressões, sem conotações ideológicas, de forma que evite, impeça ou elimine

a prática de atos que perturbem a Ordem Pública.

Robert Trojanowicz e Bonnie Bucqueroux, em seu livro

“Policiamento Comunitário Como Começar?”, definem o seguinte conceito de

comunidade:

26 Poder de polícia é a prerrogativa que os cidadãos concedem ao Estado (no caso dos Estados democráticos, como o Brasil) de restringir o uso e o gozo de liberdades individuais em benefício do bem comum, sem no entanto desrespeitar direitos expressos nas leis (como o da inviolabilidade do domicílio, por exemplo).

Page 84: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

“Qualquer tentativa de definição do movimento do policiamento comunitário deve incluir necessariamente o que se entende pela palavra “comunidade” neste contexto. Embora à primeira vista possa parecer que uma definição de apenas uma única frase simples já seria suficiente, comunidade pode significar coisas muito diferentes para pessoas diferentes. A compreensão da comunidade é essencial para a prevenção e o controle do crime e da desordem, assim como do medo do crime. O controle social é mais eficaz a nível individual. Existe uma diferença bastante acentuada entre a comunidade geográfica e a comunidade de interesse – conceitos que facilmente se confundiam no passado, quando ambas as comunidades se misturavam para abranger a mesma população. Este fato é extremamente relevante para o uso de “comunidade” no policiamento comunitário porque o crime, a desordem, e o medo do crime podem criar uma comunidade de interesse dentro de uma comunidade geográfica. Assim, o uso da palavra “comunidade” em policiamento pode referir-se muitas vezes a entidades superpostas. É a comunidade de interesse gerada pelo crime, o que permite aos policiais uma entrada na comunidade geográfica. Após esta entrada, o policial e os residentes podem desenvolver estruturas e táticas elaboradas para melhorar a qualidade de vida, permitindo que seja criado e floresça um renovado espírito comunitário.”

1.4 Características do Modelo Interativo de Polícia27.

O processamento da interatividade entre a polícia e as

comunidades, faz-se exteriorizado através das seguintes características:

a) Comunitarização:

O objetivo do processo de interatividade entre a polícia e as

comunidades é efetivar a alteração dos hábitos de ambas as partes,

exsurgindo daí, as condições ideais para uma atuação conjunta e permanente

no ambiente social, o que denominamos de comunitarização, isto se dando no

exercício bipartite do controle da criminalidade.

27 Adaptado a partir dos parâmetros para a sistematização do modelo de polícia interativa, apresentados pela Polícia Militar do Espírito Santo, durante o I Encontro Estadual de Lideranças de Polícia Interativa, realizado em 18/10/98.

Page 85: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A fim de estabelecer uma seqüência lógica como catalizadora do

processo de comunitarização, entende-se que a adoção dos parâmetros

norteadores abaixo, torna-se indispensável para a obtenção do êxito na

formatação de um novo modelo de atuação da polícia com as comunidades:

Gestão participativa e prestação de contas:

A Resolução 34/169 de 17 de dezembro de 1979, expedida pela

Organização das Nações Unidas, estabelece como regramento para os países

associados que os seus estamentos policiais devem ser representativos da

comunidade e a esta de forma organizada, deverão prestar contas.

A Constituição do Estado do Espírito Santo, promulgada em 5 de

outubro de 1989, estabeleceu também em seu artigo 124, parágrafo único que:

“Fica assegurado, na forma da lei, o caráter democrático da formulação da política e no controle das ações de segurança pública do Estado, com a participação da sociedade civil”.

O estabelecimento de um órgão societal para, em parceria com a

polícia, formular políticas públicas de segurança pública, é imprescindível para

que seja exitoso o processo de comunitarização.

Os Conselhos Interativos de Segurança Pública, surgidos a partir de

Guaçuí/ES, são organizações não-governamentais, com personalidade jurídica

própria, formados pela sociedade civil organizada, e que recepcionam as

demandas populares na área da segurança pública, funcionando como

instrumentos de gestão democrática e participativa neste segmento, inovando,

pois constituem-se no fórum de supervisão e controle civil dos órgãos policiais

envolvidos no processamento da interação.

Page 86: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A formação, registro e os demais procedimentos legais para o

funcionamento dos Conselhos Interativos, seguem minimamente a seqüência

sugerida adiante:

- Reuniões comunitárias visando a congregação das pessoas que

estejam dispostas a participar do processo de interatividade entre a

comunidade e a polícia;

- Registro de atas, eleição da Diretoria Executiva, aprovação de

estatuto e regimento da associação ora em formação;

- Registro em Cartório, no Cadastro Geral de Contribuintes do

Ministério da Fazenda;

- Declaração da ONG28, como de utilidade pública nas esferas

municipal, estadual e federal; e

- Registro na Secretaria de Receita Federal, visando adquirir o

direito de emitir recibos aos contribuintes voluntários dos Conselhos

Interativos para abatimento nas declarações de Imposto de Renda.

Interação:

É o conjunto de procedimentos adotados simultaneamente pela

polícia e pela sociedade civil organizada, através dos Conselhos Interativos de

Segurança Pública, objetivando a consecução do processo de

comunitarização. A ação de reciprocidade entre a polícia e a comunidade

implica em compromissos quanto a implementação de um novo modelo de

gestão dos assunto pertinentes ao segmento da segurança pública que,

28 O Conselho Interativo de Segurança Pública, na forma surgida e aplicada em Guaçuí/ES é uma Organização não-governamental.

Page 87: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

implementado com efetiva parceria dos órgãos estatais e societais, almeja a

resolução preventiva dos problemas que afetam a ordem pública.

Fixação do Efetivo:

A experiência originária da cidade de Aberdeen na Escócia, com os

chamados “team policing” ou equipes de policiamento, comprovam que para

que se efetive a comunitarização da polícia, é necessária a aplicação do

exercício de policiamento com profissionais ambientados na circunscrição

social onde se desenvolve a parceria.

As partes devem se conhecerem, pois somente através dos contatos

pessoais de seus integrantes é que se obterá êxito no controle da

criminalidade, visto que policiar é sobretudo conhecer, investigar, obter

informações, entre outros tantos aplicativos.

O distanciamento do policial das pessoas na circunscrição em que

age, despersonifica o trabalho da polícia, tornando anônima a sua atuação no

seio da sociedade, gerando o desconhecimento das causas primárias da

criminalidade. A fixação de equipes e a sua permanente interação com os

diversos atores sociais constitui-se em fator de sucesso do trabalho realizado.

b) Cidadanização:

A polícia brasileira por seu “DNA histórico”29 só recentemente

despertou-se para a necessidade de inverter a mão de direção da sua atuação,

deixando de agir como uma instituição somente garantidora do Estado,

passando agora a valorar a segurança das pessoas, principalmente da grande

29 Expressão utilizada pelos Autores para justificar a falta de comprometimento com as causas sociais por parte da polícia, em virtude de seu processo de formação.

Page 88: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

massa popular, universalizando as suas ações de prevenção e o controle da

criminalidade.

Na concretização deste desiderato é importante que sejam

ressaltadas as seguintes ações:

Politização: a polícia não é um órgão autóctone como se idealizou

por muitos anos neste país. A interface com a sociedade civil organizada e o

estabelecimento do Estado Democrático de Direito motivam um novo perfil para

o policial, agora não mais um guerreiro, e sim um ativista social, intermediador

de conflitos.

Supervisão civil da polícia: os países democráticos após a 2ª Guerra

Mundial vêm buscando alternativas estratégicas e táticas para a melhoria dos

serviços prestados por seus organismos policiais, desenvolvendo-se o conceito

de que a sociedade civil organizada deve atuar no controle e na supervisão das

ações da polícia como forma de inibir os excessos e também como um meio de

melhorar a sua eficácia operacional.

Defesa dos Direitos Humanos: o respeito à vida e à dignidade do ser

humano, são premissas basilares para um modelo de polícia que se queira

implementar. No Brasil o desrespeito a integridade física das pessoas, não é

culpa só da polícia, mas também de um sistema criminal inoperante e sectário,

que com raízes históricas profundas na consciência daqueles que atuam no

sistema de poder, faz transcender a discriminação contra os mais humildes

social e financeiramente, quando se deseja cuidar da ordem pública de modo

seletivo, repressivo e autoritário como nos ensina em seu livro “Violência e

Racismo no Rio de Janeiro”, o eminente policiólogo – o Coronel da Reserva da

Page 89: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, Jorge da Silva, que diz:

“Cadeia no Brasil é só prá pobre, preto e prostituta, o que tem sido

confimado pelos diferentes censos carcerários".

Encontramos na Bíblia, a resposta do profeta João Batista30 aos

soldados de sua época, a cerca dos direitos humanos:

“E uns soldados o interrogaram também dizendo: e nós que

faremos? E ele lhes disse: a ninguém trateis mal nem defraudeis,

e contentai com o vosso soldo”.

A defesa dos direitos humanos começa pela polícia, que é a única

organização que se encontra totalmente capilarizada no território brasileiro, e

por isto é fator de intercessão do Estado com o cidadão.

c) Profissionalização:

Em desvio de função, a polícia brasileira, como já mostramos na

primeira parte deste trabalho, chega ao terceiro milênio ainda desqualificada

para a execução de seus principais mandatos que são: o cumprimento da lei e

a preservação da ordem pública, isto porque a formação patrocinada pelo

próprio Estado não tem permitido a profissionalização dos servidores policiais

com embasamento técnico-científico. O empirismo cotidiano ainda é prática na

força policial deste Brasil.

30 Evangelho de São Lucas – Cap 3:14.

Page 90: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

A implementação do modelo interativo de polícia exige que sejam

revistos os procedimentos, e que a polícia baseie cientificamente as suas

ações na prestação dos serviços de segurança pública, daí advindo a

necessidade de encetarmos as seguintes medidas:

Ênfase pró-ativa:

A prevenção constitui-se na melhor forma de se policiar.

Relacionando-se com todos os atores sociais de modo sistêmico e organizado,

os órgãos policiais atuarão antecedendo o acontecimento do fato criminal.

As ações centrífugas da polícia, ou seja do centro para as periferias

não são suficientes para o eficaz controle da criminalidade, pois servem

apenas como meros paliativos e por falta de continuidade não atuam na base

do fato criminal, a exemplo disto citamos que mesmo com as constantes

“blitzeens”31 a criminalidade tem aumentado substancialmente nas regiões

periféricas das grandes cidades.

A proação nas atividades da polícia deverá ter seu sentido mudado

para ações centrípetas, ou seja das regiões periféricas para o centro das

grandes cidades, uma vez que a efetiva atuação do policiamento ostensivo,

velado ou investigativo nas cercanias permite de forma continuada e

comunitária/participativa um melhor controle da criminalidade com a

conseqüente redução dos índices de crimes.

Para a realização da ênfase pró-ativa, enumeramos as seguintes

ferramentas utilizadas no modelo de polícia interativa desenvolvido em Guaçuí

31 Expressão que significa as operações policiais conhecidas também como batidas policiais.

Page 91: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

e em outros municípios que adotaram o modelo primaz ora evidenciado:

Reuniões Comunitárias com os diversos segmentos sociais.

Exemplo: Moradores, comerciantes, torcidas de futebol, camelôs,

etc.

Programa “Linha Aberta com a Comunidade”: evento semanal

realizado através de meio de comunicação (rádio, TV, etc.), que visa

manter a população informada sobre os principais eventos que

envolveram a atuação da polícia no setor em que se dá a interação.

Urnas Interativas: caixas coletoras tipo as dos correios, colocadas

em pontos estratégicos da cidade, visando captar as demandas

societais por segurança pública. Atuam como uma excelente fonte

de informações que, após analisadas, servirão para a facilitação do

trabalho operacional da polícia.

Serviços de Atendimento aos Cidadãos: constituem-se na

setorização territorial das ações táticas da polícia, atuando como

pontos referenciais para o atendimento às comunidades de forma

descentralizada, e que visam estabelecer a efetiva prática da

comunitarização da polícia.

Os Serviços de Atendimento aos Cidadãos também têm

por objetivo facilitar o acesso dos cidadãos à polícia, visto que

nestes lugares, procura-se de modo enfático atuar na resolução

preventiva dos problemas originados no dia-a-dia das comunidades,

e que por vezes pelo pequeno impacto são desprezados, mas que

funcionam como alimentadores do aumento da sensação de

Page 92: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

insegurança e de temor da sociedade.

Qualificação:

Dá-se de três formas:

1ª - Antecipada – conscientização interna e externa sobre o

processo interativo entre a polícia e as comunidades;

2ª - Contínua – visa consolidar e aprimorar os hábitos técnicos dos

servidores policiais; e

3ª - Periódica – intenta proceder a atualização profissional dos

servidores da polícia.

Valorização da Inteligência policial:

Os órgãos policiais destinar-se-ão ao eficaz controle da

criminalidade através da percepção de que o êxito da atuação policial depende

do conjunto de informações disponíveis que possibiliterm uma

operacionalidade racional.

1.5 O Método Interativo – Modalidades de Interação.

O programa de interação comunitária da Polícia Militar do Espírito

Santo, iniciado em Guaçuí, a partir de 1994, desenvolveu ineditamente o

método de interatividade, consubstanciado nas seguintes modalidades de

interação, destacando-se para compreensão didática, que estas serão

executadas de forma simultânea e sincronizada para o alcance dos resultados

esperados. Estas iniciativas concebidas como parte do processo contínuo de

Page 93: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

interação entre polícia e sociedade orientaram a definição de cinco etapas32 de

desenvolvimento (MUNIZ : 1996) (implantação e monitoramento) do programa

de polícia interativa, que são:

a – Interação Funcional. Nesta fase, o público alvo é a

própria corporação. Deve-se primeiramente, investir na

mudança das mentalidades operacional e administrativa,

aplicando políticas internas de valorização, capacitação,

aperfeiçoamento, reciclagem e melhoria das condições de

trabalho do policial. É indispensável o desenvolvimento de

um trabalho permanente de conscientização e disseminação

da filosofia comunitária, envolvendo toda a escala

hierárquica da polícia.

b – Interação Estratégica e Social. Consiste em mobilizar

recursos internos e externos à polícia, no intuito de promover

e consolidar a parceria com as comunidades e agências

públicas e civis – elemento essencial no processo de

comunitarização do provimento de ordem pública.

Recomenda-se o emprego de expedientes criativos para

sensibilizar e envolver as comunidades e suas lideranças

nas atividades do programa. Deve-se, ainda, fazer uso de

32 A concepção das etapas de desenvolvimento do programa de polícia interativa foi de autoria intelectual do Capitão Júlio Cézar Costa, que as fez publicar no documento intitulado “Diretrizes para a Implantação e Implementação da Polícia Interativa”, em 1995, através de publicação de Diretriz da 3ª Seção do Estado Maior Geral da Polícia Militar do Espírito Santo, que então serviu de base para a elaboração do texto apresentado pela Drª Jacqueline Muniz do ISER/Viva Rio, duranto o 1º Seminário sobre Segurança, Justiça e Cidadania, realizado sob o patrocínio do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas – PNUD/ONU e do Governo Federal, na cidade do Rio de Janeiro, em 28 e 29/11/96.

Page 94: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

dispositivos formais e informais que visem não só garantir e

ampliar a participação comunitária, como também estimular

o convívio social entre policiais e cidadãos.

c – Interação Financeira/Logística. Esta etapa ocupa-se

de inventariar os meios legais necessários para

institucionalizar os Conselhos Interativos de Segurança –

instâncias comunitárias deliberativas, responsáveis por

levantar os recursos financeiros necessários à realização

dos objetivos do programa; desenvolver estratégias

conjuntas com os órgãos de segurança; e fiscalizar suas

atividades.

d – Interação Complementar. Reporta-se a necessidade

de reforçar as iniciativas voltadas para a busca de

cooperação das agências municipais e estaduais

comprometidas – direta ou indiretamente – com o

provimento de ordem e segurança públicas. Trata-se de

ampliar os recursos públicos disponíveis, através da ação

coordenada com o poder local, a Polícia Judiciária e o

Ministério Público. Em harmonia com a necessária

descentralização das atividades de comando, recomenda-se

que esse trabalho cotidiano de interação seja realizado pelos

policiais responsáveis pelos setores ou sub-áreas

contempladas pelo programa.

Page 95: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

e – Interação Tática. Refere-se à alocação dos recursos

humanos e materiais disponíveis, para o exercício dos

serviços de polícia. Objetivando uma maior proximidade com

a população, sugere-se que as unidades operacionais

ultrapassem as fronteiras e se enraízem no interior das

comunidades. O corpo interativo (batalhão/superintendência

de polícia judiciária) deve ser dividido em núcleos interativos

(companhias/delegacias), e estes em células interativas

(pelotões, destacamentos, entre outros). Salienta-se que o

planejamento e a execução do policiamento ostensivo

devam orientar-se pelas estatísticas policiais e pelas

necessidades e expectativas das comunidades, expressas

nas reuniões do Conselho Interativo ou através de outras

formas de interação. Cabe ainda observar que o emprego

tático supõe que as etapas anteriores estejam concluídas ou

encontrem-se bastante adiantadas.

Page 96: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

2 CONCLUSÃO

De acordo com os parâmetros para sistematização do modelo

interativo de polícia, documento editado pela Polícia do Espírito Santo em

outubro de 1988, o Estado do Espírito Santo projetou-se como referência

nacional em ações na segurança Pública, com o novo modelo que a Polícia

Militar desenvolveu para a sua atuação, que foi popularizado sob o nome de

Polícia Interativa.

O modelo interativo de polícia caracteriza-se como uma nova

maneira de pensar na proteção e no socorro públicos; baseia-se na crença de

que os problemas sociais e as causas da criminalidade, terão soluções mais

efetivas, na medida em que haja participação das comunidades na sua

identificação, análise, proposta e implementação de ações conjuntas para a

busca de soluções.

A Polícia Interativa consiste no resgate da função originária da

Polícia. Ela é um mecanismo que certamente proporcionará ao Estado

Democrático ingressar no cerne que o justifica e representa a sua essência,

que é assegurar a toda e qualquer pessoa proteção e garantia dos direitos

reconhecidos e declarados como fundamentais.

Page 97: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZKOUL, Marco Antônio. A polícia e sua função constitucional. São Paulo :

Oliveira Mendes, 1998.

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. 86. ed. Rio de Janeiro : Imprensa Bíblica

Brasileira, 1996.

BICUDO, Hélio. O AI-5 e os direitos humanos. Jornal do Brasil. 10 dez.

1978.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF : Senado Federal, 1988.

CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência : a polícia da era Vargas.

Brasília : UNB, 1993.

COMPARATO, Fábio Konder. Direitos humanos e Estado. In FESTER,

Antonio Carlos Ribeiro (Org). Direitos humanos e estado. São Paulo :

Brasiliense, 1989.

CONTREIRAS, Hélio. Militares : confissões. Histórias secretas do Brasil. Rio

de Janeiro : Mauad, 1998.

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3. ed. Brasiliense, 1989.

COSTA(2), Júlio Cézar. Diretrizes para implantação e implementação da polícia interativa. Vitória : PMES, 1995.

Page 98: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

DONNICI, Virgílio Luiz. A criminalidade no Brasil. Meio milênio de repressão.

Rio de Janeiro : Forense, 1984.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder : formação do patronato político

brasileiro. 7.ed. Rio de Janeiro : Globo, 1987.

HOBSBAWN, Eric. A Era dos extremos. Rio de Janeiro : Nova Fronteira,

1991.

INSTITUTO INTERAMERICANO DE DERECHOS HUMANOS. Estudos

básicos de derechos humanos. Asdrúbal Aguiar Aranguren. San José,

C.R. : IIDH, 1994.

___. Estudos básicos de derechos humanos II. Kenneth Anderson. San

José, C.R. : IIDH, 1995.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo : Hemus, 1996.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Programa Nacional de Direitos Humanos.

Imprensa Oficial, 1996.

MORAES, Bismael B. Direito e polícia, uma introdução à polícia judiciária.

São Paulo, Revista dos Tribunais, 1986.

MUNIZ, Jacqueline. Programa do 1º seminário sobre segurança, justiça e

cidadania. Rio de Janeiro, 1995.

Page 99: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Comissão

Interamericana dos Direitos Humanos. Relatório sobre a situação dos

direitos humanos no Brasil. Secretaria Geral da OEA. Washington, DC,

1997.

PIETÁ, Elói. Crime e Polícia. 2. ed. São Paulo : Assembléia Legislativa, 1997.

POLÍCIA MILITAR DO ESPÍRITO SANTO. Manual de instrução modular. 3.

ed. Vitória : Imprensa Oficial, 1997.

___. Caderno de parâmetros para a sistematização do modelo de polícia interativa. Vitória : Imprensa Oficial, 1998.

POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Almanaque da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : PMERJ, 1980.

PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA. Gabinete de documentação e

Direito comparado. Compilação das normas e princípios das nações

unidas em matéria de prevenção do crime e justiça penal. Portugal,

Lisboa, 1995.

RIBEIRO, Brandino José de Mello. Organização policial face à evolução do

crime organizado no Brasil. Rio de Janeiro, 1993.

ROVER, Cees de. Direitos humanos e direito internacional humanitário

para forças policiais e de segurança. Comitê Internacional da Cruz

Vermelha, Genebra, 1998.

Page 100: Polícia Interativa: A Democratização e Universalização da

SILVA, Jorge da. Controle da criminalidade e segurança pública na nova

ordem constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense, 1990.

SILVA, Jorge da. Violência e racismo no Rio de Janeiro. Niterói : EDUFF,

1998.

SOUZA, Benedito Celso de. A Polícia militar na Constituição. Edição

Universitária de Direito. São Paulo, 1986.

TROJANOWICZ, Robert & BUCQUEROUX, Bonnie. Policiamento Comunitário : Como Começar?. Tradução de Mina Seinfeld de

Carakushansk. Rio de Janeiro : PMERJ, 1994.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Os direitos humanos no Brasil. Edição

final. KAHN, Túlio. Núcleo de Estudos da Violência e Comissão Teotônio

Vilela. São Paulo : NEV-CTU, 1993.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Caderno de pesquisas.

n. 5. Vitória : UFES, 1996.