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ISBN 978-972-37-2050-1
79507.10
9 7 8 9 7 2 3 7 2 0 5 0 1
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António R
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A I
António Ramos RosaOBRA POÉTICA I
edição de Luis Manuel Gasparposfácio de Silvina Rodrigues Lopes
À FELICIDADE VIVA
Qual é a cor que dou à pedra imóvelao animal, à forma que suspeitosob a água sem lastro? Uma figuracomo um círculo pura e grande espaço,um esforço alegre, ó inviolável página!
Não há terror nem surpresa, reconheçoa ausência, um sorriso de começo,uma vontade de ajudar talvez a flor,ou antes a raiz, o gérmen, o romperdas folhas e corolas, largas faces,que são mãos e punhos desatados,ao rosto de ar, à felicidade viva!
António Ramos Rosa
OBRA POÉTICAi
ASSÍRIO & ALVIM
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António Ramos Rosa
OBRA POÉTICAI
posfácio de
Silvina Rodrigues Lopes
A S S Í R I O & A L V I M
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13viagem através duma nebulosa
De escadas insubmissasde fechaduras alertade chaves submersase roucos subterrâneosonde a esperança enlouqueceude notas dissonantesdum grito de loucurade toda a matéria escurasufocada e contraídanasce o grito claro
◆
Não posso adiar o amor para outro séculonão possoainda que o grito sufoque na gargantaainda que o ódio estale e crepite e ardasob montanhas cinzentase montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraçoque é uma arma de dois gumesamor e ódio
Não posso adiarainda que a noite pese séculos sobre as costase a aurora indecisa demorenão posso adiar para outro século a minha vida
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14 obra poética i
nem o meu amornem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração
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O FUNCIONÁRIO CANSADO
A noite trocou-me os sonhos e as mãosdispersou-me os amigostenho o coração confundido e a rua é estreitaestreita em cada passoas casas engolem-nossumimo-nosestou num quarto só num quarto sócom os sonhos trocadoscom toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagadoum funcionário tristea minha alma não acompanha a minha mãoDébito e Crédito Débito e Créditoa minha alma não dança com os númerostento escondê-la envergonhadoo chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregadoSou um funcionário cansado dum dia exemplarPorque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
Soletro velhas palavras generosasFlor rapariga amigo meninoirmão beijo namorada
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15viagem através duma nebulosa
mãe estrela músicaSão as palavras cruzadas do meu sonhopalavras soterradas na prisão da minha vidaisso todas as noites do mundo uma noite só compridanum quarto só
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Sujei o teu nomepara me libertar de tio sujo foi sombrateu nome esqueci-o
O sujo era feridae eu falso cantavaNão reconheci a minha vozAi que deserta liberdade
Preso de novoque rede tamanhade laços e vozesUm eco talvezUm eco incessante
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a Alberto de Lacerda
A ciência das cançõeso saber alegrea vitória dos olhos sobre o rostoo calmo suporte dum entusiasmo perpétuoa tua nova medida que te pesa no futuro
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16 obra poética i
o pequenino grão de fogo sob a cinza de vários anossustentando esta aurora ainda por nascerdedos que desenhados fazem o gestoda fluida pressão fraternal
Brusco passado liso no lago dum momentoque se renova incessanteó brilhante segredo exteriorque ninho mais claro que o meu corpo em repousoliberto de todas as esperas desesperadaspassado futuroo mesmo círculo calmoque o rubro núcleo do desejo libertoirradia
◆
TERTÚLIA
Não encontro casacasa onde estarAi amigo senta-tefala-me de ti
Não encontro amiganão encontro amigoSe não tenho casacomo ser amigo?
Os meus estão longee não têm casaA natureza é longeA uma mesa de café
somos quatro quatro quê?
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17viagem através duma nebulosa
◆
a João Rui de Sousa
Para um amigo tenho sempre um relógioesquecido em qualquer fundo de algibeira.Mas esse relógio não marca o tempo inútil.São restos de tabaco e de ternura rápida.É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.
◆
SÍLABAS
Sílabas.O álcool de Dezembro é frio e rouco.O cigarro amarga. É um cigarro clínico.Sílabas.Com sílabas se fazem versos.
O tampo da mesa é liso.Uma colher é uma forma complexafamiliar e deliciosa.Um copo é nítidocomo um criado sem servilismo.Uma mulher condensa-seno olhar do poeta.Um corpo. Duas sílabas.O dinheiro à justa. A gola da gabardinapara tapar a nucae os ouvidos.Sílabas.
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18 obra poética i
◆
O TEMPO CONCRETO
O tempo durocom estas unhas de pedraeste hálito pobrede órgãos esfomeadosestas quatro paredes de cinza e álcooleste rio negro correndo nas noites como um esgoto
O tempo magroem que minhas mãos divididasnitidamente separadas e caídasao longo dum corpo de cansaçopedem o precipício a hecatombe clarao acontecimento decisivo
O tempo fecundodos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febresrepassadas no travesseiro igual das noites e dos diasdas ruas agrestes e pequenas da mágoafamiliar e precisa como uma esmola certa
O tempo escuroda peste consentida do vício proclamadoda sede amarfanhada pelas mãos dos amigosda fome concreta dum sonho proibidoe do sabor amargo não sei de que remorso
O tempo ausentedos olhos dum desejo de claras cidadesem que acenamos perdidos às soluções erguidascom vozes bem distintas de cadáveres opressorescom gritos sufocados de problemas supostos
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19viagem através duma nebulosa
O tempo presentedas circunstâncias ferozes que erguem muros reaisdos fantasmas de carne que nos apertam as mãosdas anedotas contadas num outro mundo de cafése das vidas dos outros sempre fracassadas
O tempo dos sonhossem coragem para poder vivê-loscom muralhas de mortos que não querem morrercom razões demais para poder vivercom uma força tão grande que temos de abafarno fragor dos versos disfarçados
O tempo implacávelonde jurámos de pé viver até ao fimmaiores do que nós ser todo o grito nupureza conquistada no seio da vida impuraum raio de sol de sangue na face devastada
O tempo das palavrasnuma circulação sombria como um poçode ecos incontroladosde timbres inesperadoscomo moedas de sangue cunhadas numa noitedemasiado curta e com luar demais
O tempo impessoalem que fingimos ter um destino qualquerpara que nos conheçam os amigos forçadospara que nós próprios nos sintamos humanose este fardo de trevas esta dor sem limitesa possamos levar numa mala portátil
O tempo do silêncioem que o riso postiço dos fregueses da vidafinge ignorá-lo enquanto soluçamos
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20 obra poética i
de raiva de razão reprimida revoltae os senhores de bom senso passeiam divertidos
O tempo da razãoem que os versos são soldados comprimidosque guardam as armas dentro do coraçãoque rasgam os seus pulsos para fazer do sanguea tinta de escrever duma nova canção
◆
VIAGEM ATRAVÉS DUMA NEBULOSA
a Raul de Carvalho
Noite rã oblíquaó toda olhos à flor da névoao trilo move-se perde-se repete-se pisca como a estrelinhao hálito da luaorienta-me numa nebulosade constelações tranquilas
Que aéreo e estático silêncioharmonia de pálpebras e pupilasa redondez das estrelas foi feita para minhas mãos navegadorasa poalha cintilante e fluidados céuscorre no meu sangueondas e barcas contradançamsubstituem-se umas às outras
Os grandes animais silenciosos da terrasonham com um pássaro de barro
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21viagem através duma nebulosa
a memória reencontra o seu palácio de homem a torre emerge do menino
Além mais para além que calma de naviossobre um porto sem nome sobre um caisqualquertransporto por contágio o sonho da raparigaà janela do mundoo adolescente que fui encontra a sua noivaque sortilégio de mãos e tranquila voz antigade inexplorados sonhosque confiança interplanetáriame leva para além dos contactos visíveischego ao limite onde a aurora ainda dorme
Os rios torceram-me todas as hesitaçõesas montanhas reacenderam toda a minha coragemsobre ventres de grávidas fêmeas silenciosas retomei o gosto de distribuir meus sonhos nova moeda de futuros seres os lisos cavalos da bruma lançam-me a rosa do seu bafo escuro é bem o cheiro da madrugada
Sobre todos os mortos de que me nutro em segredo desenha-se a rapariga da revolta do sola tradição de seus braçosé uma carícia de futuro presente sangrando em cada poro17 milhões de mortos comprovam a grávida linha ascensional
Todos os jovens mortoscorrem no fogo cadente das tuas veias consteladasó eterna raparigao rumor que faz a amizade
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22 obra poética i
através dos países submersoso sussurro claro germinando da descoberta incessante eis o ritmo do teu coração
Dia a dia o teu grávido ventre se estende planíciedia a dia os homens te forjam na consciência renovando-sedormes agora a tua cabeleira de horizontes o fulvo ondear do teu corpo de bandeira acena-nos um novo passo em cada espera forçada as sombras do martírio as mil e uma moscas do carnaval pútrido em vão tentam sugar o cadáver que resiste o cadáver que resistenão chegam a formar a sombra que oculte o esplendor que ressalta em cada face humilde
O arsenal do estupro lento as orquestras do caos os benfeitores dos monstrosem vão tentam amortecer o dinamismo da paisagem as máquinas delicadas dos turistas acenam bom senso em vão
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A redondez das estrelas é um apelo às minhas mãosas minhas mãos navegadoras correm em arrepios teu corpo em formaçãoDeito-me no horizonte tudo se faz mais claro
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