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Obras públicas, irmandades leigas e ornamentação de igrejas na Vila de Santa Maria de Baependi, 1814-1856. Maria Cristina Neves de Azevedo (UFOP) 1 Resumo: A Vila de Santa Maria de Baependi, localizada no sul de Minas, foi criada por Alvará régio no ano de 1814. Nas primeiras décadas do século XIX, ocorreram intervenções que apresentaram uma nova configuração para seu espaço. Pretende-se refletir sobre as intervenções e transformações operadas no espaço que compunha a sede e Termo da Vila de Santa Maria de Baependi, a partir dos processos de urbanização, criação de irmandades leigas e a edificação, reforma e ornamentação de prédios religiosos. Estas intervenções podem corroborar uma intenção de alteração da paisagem local e dos espaços de convivência, fossem profanos ou sagrados. PALAVRAS-CHAVE: Baependi; Espaço urbano; Paisagem cultural Abstract: The village of Santa Maria de Baependi, located in southern Minas Gerais, was created by royal Charter in the year 1814. In the first decades of the nineteenth century, there were interventions that showed a new configuration for your space. It is intended to reflect on the interventions and transformations in space that made up the seat and Terms of Santa Maria de Baependi Vila, from urbanization processes, creating lay brotherhoods and the construction, renovation and decoration of religious buildings. These interventions may confirm an intention to change the local landscape and living spaces, whether sacred or profane. KEY-WORDS: Baependi; Urban space; Cultural landscape 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, sob orientação do Dr.º Francisco Eduardo de Andrade.

Obras públicas, irmandades leigas e ornamentação de ... · Localizado no sul de Minas Gerais, o arraial de Baependi foi erigido em Vila por Alvará expedido em 19 de julho de 1814

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Obras públicas, irmandades leigas e ornamentação de igrejas naVila de Santa Maria de Baependi, 1814-1856.

Maria Cristina Neves de Azevedo (UFOP)1

Resumo:

A Vila de Santa Maria de Baependi, localizada no sul de Minas, foi criada porAlvará régio no ano de 1814. Nas primeiras décadas do século XIX, ocorreramintervenções que apresentaram uma nova configuração para seu espaço.Pretende-se refletir sobre as intervenções e transformações operadas no espaçoque compunha a sede e Termo da Vila de Santa Maria de Baependi, a partir dosprocessos de urbanização, criação de irmandades leigas e a edificação, reformae ornamentação de prédios religiosos. Estas intervenções podem corroboraruma intenção de alteração da paisagem local e dos espaços de convivência,fossem profanos ou sagrados.

PALAVRAS-CHAVE: Baependi; Espaço urbano; Paisagem cultural

Abstract:

The village of Santa Maria de Baependi, located in southern Minas Gerais, wascreated by royal Charter in the year 1814. In the first decades of the nineteenthcentury, there were interventions that showed a new configuration for your space.It is intended to reflect on the interventions and transformations in space thatmade up the seat and Terms of Santa Maria de Baependi Vila, from urbanizationprocesses, creating lay brotherhoods and the construction, renovation anddecoration of religious buildings. These interventions may confirm an intention tochange the local landscape and living spaces, whether sacred or profane.

KEY-WORDS: Baependi; Urban space; Cultural landscape

1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, soborientação do Dr.º Francisco Eduardo de Andrade.

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Localizado no sul de Minas Gerais, o arraial de Baependi foi erigido em

Vila por Alvará expedido em 19 de julho de 1814. Sua ascensão na hierarquia

urbana estava inserida no contexto de ampliação de vilas na Capitania de Minas

Gerais quando foram instituídas sete novas sedes administrativas, entre os anos

de 1789 e 1814 (FONSECA, 2003, p. 41). A alteração do status urbano impôs a

implantação dos instrumentos da administração pública o que implicava na

construção de prédios e símbolos que formalizassem a nova jurisdição

administrativa.

A iniciativa de ordenação da sede da vila, com vistas à melhor

acomodação dos moradores e daqueles que por ali passaram a transitar,

apresentam evidências que permitem vislumbrar aspectos da experiência social

vivenciada pelos indivíduos ali fixados. São indicativos destas experiências as

transformações urbanas promovidas na vila como a construção de calçadas, de

um aqueduto, a reforma de pontes e a melhoria de estradas.

Concorrem com esse movimento a crescente edificação, reforma e

ornamentação, de capelas e igrejas – na sede e freguesias que compunham o

seu termo – e a confirmação de compromissos de irmandades leigas,

principalmente de Nossa Senhora do Rosário e da Boa Morte. Estes aspectos

parecem favorecer a leitura das transformações que estavam em curso naquela

região, na primeira metade do século XIX.

O foco deste estudo volta-se para a reflexão acerca da conformação do

espaço da vila de Baependi, delimitando como área geográfica as freguesias

que compuseram seu Termo original. Este recorte foi estabelecido em

decorrência da identificação de obras do pintor Joaquim José da Natividade em

capelas e igrejas inseridas no espaço consagrado para a constituição da nova

unidade.

Entende-se a organização do espaço, seja urbano ou rural, nos âmbitos

sagrado e profano, como expressão material e simbólica do jogo de poder entre

os diferentes grupos que compunham esta sociedade. Neste sentido, as

alterações promovidas na paisagem local estariam impressas na dinâmica

demográfica, produtiva e social da vila e seu termo.

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Partindo desta premissa, pretende-se refletir sobre as intervenções e

transformações operadas no espaço que compunha a sede e Termo da Vila de

Santa Maria de Baependi, na primeira metade do século XIX, a partir do conceito

de paisagem cultural – entendido como a ação de um grupo social/cultural sobre

uma paisagem natural (CORREA, 1998, p. 8-9).

A retomada do conceito de paisagem geográfica, na década de 1970, veio

atrelada a uma nova composição que percebe a paisagem nas várias dimensões

simultâneas que a compõem (morfológica, funcional, histórica, espacial e

simbólica). Interessa a este estudo duas destas dimensões: a histórica, como

produto da ação humana ao longo do tempo, e a simbólica, portadora de

significados, valores, crenças, mitos e utopias (CORREA, 1998, p. 7).

Como um jogo de escalas, pretende-se estabelecer um diálogo com

instâncias mais abrangentes relacionando – quando possível – intervenções nos

espaços local e regional. A proposta que ora se apresenta possibilita a reflexão

sobre a formação do sul de Minas, reafirmando sua importância na organização

de uma economia diversificada, baseada em relações diversas de trabalho e

propriedades com características múltiplas (GRAÇA FILHO, 2002).

A Vila de Santa Maria de Baependi

A sede da vila de Baependi, estabelecida “nas margens meridionais do rio

do mesmo nome”, localizava-se geograficamente pela latitude de 22º 9’ e

longitude de 33º 25’, distando “da vila da Campanha, a leste, 14 léguas, de

Mariana 55, e do Rio de Janeiro 64” (RAPM, 1908, p. 625). Denominada como

Vila de Santa Maria de Baependi (APM: SG, Cx. 91, Doc. 18) sua ascensão na

hierarquia urbana contou com a mobilização dos moradores de sua freguesia e

da de Pouso Alto, que enviaram requerimento ao Príncipe Regente solicitando

“erigir o Arraial em Vila”, como se pode atestar em certidão emitida pela Mesa do

Desembargo do Paço, em 29 de julho de 1814 (AMP: SG, Cx. 91, Doc. 23).

O tamanho, o aspecto físico das localidades e o sustento de seus

moradores eram critérios a serem observados nas solicitações de ereção de

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vilas e cidades (FONSECA, 2003, p. 46), o que se confirma no documento

enviado à Sua Majestade. A extensão do terreno – que conferia riqueza e

dignidade aos povoados (CASTRO, 2015, p. 4) –, a fertilidade de suas lavouras

somada a diversidade de suas criações e a existência de minas de ouro

viabilizavam o sustento dos “seus próprios nacionais, e habitantes, como aos

estrangeiros” (AMP: SG, Cx. 91, Doc. 23).

A fronteira com as Províncias de São Paulo e Rio de Janeiro (ver Fig. 1)

seriam, segundo os suplicantes, motivadoras de crimes e insultos que ocorriam

“em partes remotas, e apartadas da Justiça” tendo como consequência os vícios

e a indolência do “povo grosseiro” (AMP: SG, Cx. 91, Doc. 23). Estes pontos

demostravam a necessidade da instalação de Justiça mais próxima destes

povoados. Asseveraram que o aumento da população, do comércio, da

agricultura e da lavoura – pelo encurtamento da distância percorrida para a

solução de seus negócios –, traria benefícios tanto para os moradores destas

freguesias quanto para a Fazenda Real.

Para sediar a nova unidade administrativa foi indicado o arraial de

Baependi – por sua centralidade em relação aos demais arraiais que

compuseram o Termo – e por possuir “terreno mais aprazível, e formoso, sadio”

(AMP: SG, Cx. 91, Doc. 23). A “formosura” da terra, vila ou das ruas significava

“um ideal de urbanismo de programa” (FONSECA, 1997, p. 93) que daria a

conhecer “a boa ordem com que estão dispostas a polícia2 e a cultura dos seus

habitadores” (LAVEDAM, 1926 apud FONSECA, 1997, p. 93). Tais preceitos

remontam à visão iluminista de que o cuidado com a conformação do espaço

citadino estaria diretamente relacionado ao “nível de civilidade de seus

habitantes” (FONSECA, 1997, p. 89)

O Termo foi constituído pelos territórios da freguesia da sede, além das

freguesias de Pouso Alto e de Aiuruoca “cuja reunião já existe no que respeita à

administração da Justiça Eclesiástica” (AMP: SG, Cx. 91, Doc. 23). A

uniformização das divisas civis e eclesiásticas foi argumento utilizado na

2 Para o sentido do termo polícia no século XVIII, Claudia Damasceno Fonseca recorreu averbete do dicionário do jesuíta Raphael Bluteau onde é entendido como a “boa ordem que seobserva e as leis que a prudência estabeleceu para a sociedade humana nas cidades”.

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questão do rearranjo territorial ocorrido no sul de Minas, na década de 1840,

quando a vila da Campanha da Princesa propunha a criação de uma nova

província e os moradores da Comarca do Sapucaí reivindicavam sua anexação

à Província de São Paulo (CASTRO, 2015, p. 15).

A visualização da espacialidade territorial da vila de Baependi, e a

identificação da alteração das hierarquias urbana e eclesiásticas das localidades

no tempo, estão presentes em dois mapas. Estes registram, especificamente, a

vila da Campanha da Princesa – onde constam as freguesias de Baependi,

Aiuruoca e Pouso Alto compondo o seu Termo – e a freguesia de Pouso Alto.

O mapa da vila da Campanha permite identificar a natureza fronteiriça de

Baependi que, ao ser erigida, possuía território contíguo à serra da Mantiqueira,

margeando as Províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, sendo área de

confluência de estradas e caminhos por onde transitavam pessoas e

mercadorias, em direção à Corte.

(...) com a queda da produção de ouro na parte central de Minas Gerais,ocorrida na segunda metade do século XVIII, são as áreas periféricas dacapitania que são ocupadas por mineiros e fazendeiros, e é sobretudo em suaparte meridional que se formam dezenas de novos arraiais (FONSECA, 2003,p. 41).

O segundo registro, em escala reduzida, apresenta a circunscrição da

freguesia de Pouso Alto, já inserida no território da vila de Santa Maria de

Baependi, seus caminhos, capelas filiais e limites.

Capelas e ornamentação de igrejas

O registro cartográfico da vila da Campanha (Fig. 1) permite entender a

“igreja [como] o foco e o elemento polarizador dos agrupamentos mineiros, em

termos não somente sociais, mas também, (...): espaciais” (FONSECA, 1997, p.

69). A confluência dos interesses senhorial, régio e eclesiástico encontra-se

impresso na conformação territorial – e na configuração da paisagem local –

com a representação da administração secular pelos edifícios religiosos.

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Nesse sentido, apresenta-se graficamente o enraizamento do Estado “nas

práticas costumeiras de poder dos coloniais e nas instituições basilares das

comunidades, como as capelanias” (ANDRADE, 2005, p. 1).

Figura 1 – Detalhe indicando a localização das freguesias de Baependi, Pouso Alto e Aiuruocaintegrantes do Termo da Vila de Santa Maria de Baependi. Mapa de toda a extensão daCampanha da Princeza, feixada pelo Rio Grande, e pelos registos, que limitão a Capitania deMinas. Francisco de Sales. AHU (n. 263/1170). Foto Laura Castro e Paulo Cintra – ProjetoResgate.

É perceptível o grande número de capelas que a freguesia de Aiuruoca

continha, antes mesmo de integrar o termo da vila de Baependi. Segundo

Francisco E. Andrade, no século XVIII, o grande número de capelas filiais era

resultado da “adaptação às condições sociais e econômicas de Minas Gerais”

(ANDRADE, 2007, p. 158). A freguesia de Aiuruoca contou com o registro de

suas capelas filiais o que pode indicar “um investimento simbólico, religioso,

político e econômico (...) nos pontos estratégicos e de passagem das rotas

mercantis” (ANDRADE, 2007, p. 165) empreendidos pelos seus moradores.

No mapa não foram inseridas as capelas do Rio Verde, do Favacho e da

Piracicaba – filiais de Baependi – e as de Nossa Senhora do Carmo e do

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Espírito Santo filiais da matriz de Pouso Alto. No texto Memórias Históricas da

Província de Minas Gerais foram todas mencionadas como capelas curadas

(RAPM, 1908, p. 626). Conclui-se que passaram à dimensão pública pelo

aumento do número de assistentes e pela realização de cerimônias regulares

(ANDRADE, 2007, p. 158).

A freguesia de Pouso Alto (Fig. 2) foi representada em documento

cartográfico pertencente ao acervo do Arquivo Público Mineiro, com datação

(incerta) para 1738. Mesmo com a alteração de escala, registrando este

documento uma área mais circunscrita, podem ser visualizados indícios de

alterações promovidas neste espaço. Numa primeira visada é possível contestar

a notação cronológica já que Baependi (na parte superior, direção Norte) é

indicada como vila, o que impõe a fatura do mapa em data posterior à 1814.

Fig. 2 – Mapa topográfico da freguesia de Pouso Alto e seus contornos. APM – SC 001, s.l., 1738(data incerta).

No Arquivo Histórico Municipal de Baependi encontram-se documentos

que permitem ratificar esta informação. Entre os anos de 1827 e 1830, foram

produzidos documentos onde estão registradas solicitações para a elevação das

capelas filiais, que integravam as freguesias da vila, a curato. Em 1827, uma

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ordenação do bispo diocesano para “curar de Direito e interinamente” quatro

capelas que pertenciam às freguesias de Pouso Alto e Aiuruoca, assinada pelo

padre Antônio Rodrigues Afonso, aponta que esta determinação antecedia a

resolução imperial (AHMB: Cx. 9, Doc. 128)

Em nova requisição ao Bispo, no ano de 1829, foi solicitada provisão para

curar as capelas já indicadas em documento anterior, com a inclusão de mais

duas, integrantes das freguesias de Aiuruoca e Baependi. A requisição baseava-

se na “precisão que tem de Juízes de Paz” (AHMB: Cx. 9, Doc. 271) as ditas

capelas.

A confirmação do patrimônio da capela filial do Carmo – na freguesia de

Pouso Alto – foi datada em 14 de setembro de 1830 constando não ter havido

“prejuízo dos rendimentos Paroquiais” (Constituições da Bahia, livro 4, título 9) e

ter sido “conforme os interesses dos moradores” (AHMB: Cx. 9, Doc. 166). A

delimitação feita pela Câmara de Baependi foi mantida, como se atesta pela

anuência da comissão delegada para este negócio (AHMB: Cx. 9, Doc. 166).

Os documentos citados reforçam a ideia do exercício do poder político

atribuído às capelas por concentrarem “os procedimentos regulares da justiça

civil ou eclesiástica” e abrigarem em seu espaço “tensões e embates cotidianos

(...) durante as missas, ofícios dos sacramentos e festividades” (ANDRADE,

2005, pp. 3-4).

Dentre as capelas que figuram na solicitação para o estabelecimento de

curato, a de São José do Favacho – que teve sua origem como capela particular

em fazenda do mesmo nome e era filial da matriz de Baependi – pode ser

representativa da constituição de capital simbólico. As cerimônias ali realizadas

tiveram como seu principal capelão o padre Francisco Antônio Junqueira3

(ANDRADE, 2008, p. 258, nota 22). A família Junqueira alcançou, na primeira

metade do século XIX, proeminência na administração local, representatividade

política e acumulou fortuna com a produção e comércio de gêneros de

abastecimento e a criação de cavalos (ANDRADE, 2008).

3 Atuou como coadjutor na matriz de Baependi, no ano de 1803 e, como sacerdote na ermida de SãoTomé das Letras, no ano de 1824, cujo patrimônio foi constituído por seu pai e a obra arquitetônica edecorativa financiada por seu irmão Gabriel Francisco, o futuro Barão de Alfenas.

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Como núcleo de assistência espiritual, e mecanismo de configuração de

poder, as capelas não restringiam seu atendimento ao ‘pasto espiritual’

doméstico contribuindo para a construção e a representação da hierarquia social

da localidade onde estava inscrita. Nessa perspectiva, as missas – e todos os

ofícios do calendário litúrgico – assumiam papel político disciplinar (ANDRADE,

2007, p. 155).

Na realidade, o capelão (e principalmente o pároco) era peça importante nojogo de poder local ou familiar e sabia usar o capital religioso e simbólico quedetinha. (...) as capelas marcavam o espaço e ajudavam a compor as linhas deforça entre os pobres, poderosos e autoridades régias, especialmente nasfronteiras dos territórios coloniais. Articulando-se aos núcleos de povoamento,as igrejas distinguiam-se na paisagem rústica do entorno e qualificavam osmoradores (ANDRADE, 2007, p. 166)

Como bem aponta Francisco E. Andrade as igrejas, e seus ornamentos

arquitetônicos e decorativos, eram utilizadas como critérios na qualificação

urbana que, por conseguinte, enobrecia seus moradores. Nesse sentido, as

edificações eclesiásticas revelam a mútua influência entre as hierarquias urbana

e social já que “as qualidades e os títulos das aglomerações podiam ajudar as

elites locais a obter honras e privilégios (FONSECA, 2003, p. 43).

Interessante refletir sobre os posicionamentos e as alegações feitas pelos

representantes das localidades nos momentos de alteração das funções e

hierarquias urbanas, que são reveladoras da subjetividade desses critérios. Ao

pleitear o título de cidade, a vila de São João del-Rei – cabeça da comarca do

Rio das Mortes – afirmava ser bem assentada, ter ruas regulares, possuir

edifícios nobres com “bem ornados templos”, em sitio saudável e bem

localizado.

Importante ressaltar que a constituição do Patrimônio das capelas e

matrizes, se feita em terras, interferia diretamente na paisagem e no traçado dos

arraiais. As determinações das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia

proibiam a ereção de edifícios de particulares no entorno dos templos e

impunham a decência, a localização em “lugar alto” e o distanciamento de

“lugares imundos e sórdidos” (FONSECA, 1997, p. 72) para a ereção dos

templos.

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Quando o arraial de Campanha peticionou à rainha a sua elevação à vila,

os representantes da cabeça da comarca deram parecer contrário alegando a

ausência de “igreja decente”. Continuaram afirmando que, mesmo com a

existência de boas lavras na localidade, “pouco ou nada cuidam no ornato dela”

(FONSECA, 2003, p. 49). O “número e a riqueza das igrejas eram aspectos de

grande importância na avaliação das povoações” (FONSECA, 2003, p. 49)

contando como critério para o enobrecimento local e como espaço cênico e

teatral de persuasão. Os templos deveriam ser bem ornamentados “para lisonja

do gosto, agrado da vista, recreio da vontade” (PEREIRA, 1728, p. 7 apud

ANDRADE, 2007)

O recurso de desqualificação da câmara de São João del-Rei tinha por

objetivo evitar a emancipação do arraial em função da “redução considerável do

termo da cabeça de comarca” (FONSECA, 2003, p. 49). Foram inúmeras as

negociações que levaram a termo, literalmente, a ereção de Campanha em vila

e a delimitação de seu território de jurisdição.

Baependi não fugia à regra. Em momento coevo à sua emancipação,

ocorriam as primeiras obras de reforma e ornamentação interna da igreja matriz,

com orago dedicado à Nossa Senhora de Montserrat. Esta tendência não se

restringe a sede da Vila, sendo identificável em alguns dos distritos que

integravam o seu Termo. Assim foi nos distritos do Turvo (Andrelândia) e do

Livramento (Liberdade), onde as capelas possuem obras decorativas com

confirmação de autoria atribuída ao pintor Joaquim José da Natividade

(ARAÚJO, 2001).

Pintor, dourador, policromador e encarnador sua atuação na comarca do

Rio das Mortes foi significativa. Além das igrejas aqui mencionadas, seu legado

é composto por obras em uma dezena de templos localizados na região. A

tabela abaixo tem por objetivo orientar a temporalidade de sua atuação, mesmo

que de maneira inconclusa.

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Tabela 4 – Quarta visita Pastoral – Comarca do Rio das Mortes

Data Obra Localidade Andamento das obras

1824

Pintura Turvo, Prados, Conceição daBarra

Prontas

Altares e retábulosTurvo, Prados, Conceição daBarra, São Tomé, Lavras,Liberdade e Carrancas

Pintados e dourados

Altares e retábulos Baependi e Bom Sucesso Pintados de branco

Altares Liberdade Sem tratamento

Tabela 1 – Elaboração a partir do manuscrito das Visitas Pastorais. TRINDADE, 1998, pp. 189-255.

A concomitância na realização das obras de ornamentação dos templos

permite compreender as possibilidades de relação entre os processos de

construção e decoração de igrejas com o estabelecimento de distinção e

hierarquia social na experiência mineira, entre a segunda metade do século

XVIII e as primeiras décadas do século XIX.

A localização de tal processo propõe que o estabelecimento de uma rede

complexa de produção de obras arquitetônicas, de ornamentação - e,

paralelamente, a aquisição de imaginária religiosa – possa ser pensada como

representativa das relações e dinâmicas internas a uma sociedade em que a

acumulação de riquezas favoreceu a afirmação social e política de setores

ligados à produção agropastoril.

Nesse sentido, visou-se a compreensão dessa área da produção artística

como representação de distinção social, no que toca à hierarquização implícita

aos processos de sua produção e alteração. A representação é aqui entendida

como forma de apropriação simbólica das diferentes formas de leitura e

recepção dos textos (escritos ou imagéticos), produzidos por indivíduos e grupos

sociais ali presentes e objetivou “identificar o modo como as configurações

inscritas nos textos (...) construíram representações aceites ou impostas do

mundo social” (CHARTIER, 1990, p. 24) levando em conta

um espaço de trabalho (...) que situa a produção do sentido, a ‘aplicação' dotexto ao leitor como uma relação móvel, diferenciada, dependente dasvariações, simultâneas ou separadas, do próprio texto, da passagem àimpressão que o dá a ler e da modalidade da sua leitura (silenciosa ou oral,

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sacralizada ou laicizada, comunitária ou solitária, pública ou privada, elementarou virtuosa, popular ou letrada, etc) (CHARTIER, 1990, p. 24)

Desta maneira, é viável o estabelecimento da compreensão do texto a

partir de sua apropriação em múltiplos significados formados por diferentes

experiências. A ereção de capelas e igrejas pode ser entendida, nesse sentido,

como o estabelecimento de lugares privilegiados, com maior ou menor destaque

para os prédios religiosos, fosse nas áreas rurais ou urbanas, alterando a

paisagem local.

Nesse sentido, foi possível a compreensão da inserção dos prédios

religiosos como símbolos de poder expressos na paisagem servindo ao

“propósito de reproduzir normas culturais e estabelecer os valores de grupos

dominantes por toda uma sociedade” (COSGROVE, 1998, p. 106) em uma longa

duração.

Todas as paisagens possuem significados simbólicos porque são o produto daapropriação e transformação do meio ambiente pelo homem. O simbolismo émais facilmente apreendido nas paisagens mais elaboradas – a cidade, oparque e o jardim – e através da representação da paisagem na pintura, poesiae outras artes (COSGROVE, 1998, p. 108. Grifo nosso).

A identificação dos trabalhos de decoração interna dos templos, nas

primeiras décadas do século XIX, se apresentou como expressão inerente à

transformação dessa paisagem à serviço de uma realidade que se

complexificava, na medida em que a própria sociedade se ampliava

numericamente e se diversificava com a presença de diferentes atores sociais.

Tais igrejas podem ser apreendidas como expressão do privilégio social

em diferentes aspectos: pelo lugar de destaque na topografia local, ao serem

elevadas à condição de matriz de uma nova freguesia ou como referência de

origem para os arraiais e vilas. A construção do espaço é, então, percebida

como expressão e simbolismo de poder e relaciona-se diretamente à estrutura

hierárquica (FONSECA, 2003, p. 43) da sociedade.

Irmandades leigas de pretos e pardos

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O levantamento realizado por Caio César Boschi em sua obra Os leigos e

o poder, que aborda aspectos relativos às irmandades leigas em Minas Gerais,

aponta um interessante panorama. A concentração do registro de Livros de

Compromisso de irmandades nesta região, nas primeiras décadas do século

XIX, pode revelar o aumento da concentração de negros e pardos, se

considerarmos a filiação, pela cor, àquelas de orago dedicado à Nossa Senhora

do Rosário e Nossa Senhora da Boa Morte.

O gráfico abaixo apresenta a tendência dos registros mais antigos para

compromissos dessas irmandades na comarca do Rio das Mortes. Como se vê,

a grande maioria passou a existir nas duas primeiras décadas do século XIX,

com exceção da cabeça da comarca e outras quatro freguesias, que já

possuíam irmandades em datas anteriores.

Além de São João del-Rei, que teve o estabelecimento do compromisso

de sua irmandade de Nossa Senhora do Rosário no ano de 1708, as freguesias

de Itaverava (1743), São José del Rei (1773), Conceição da Barra (1783) e o

arraial de Lagoa Dourada (1793) – filial de Prados – tiveram seus compromissos

registrados na segunda metade do século XVIII.

Fugiram à regra da maior parte das freguesias da comarca que, seguindo

a tendência encontrada na vila de Santa Maria de Baependi, tem suas

irmandades erigidas entre os anos de 1800 e 1820, na primeira metade do

século XIX.

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Gráfico 1 – Elaboração a partir dos dados coletados na obra Os leigos e o poder. (BOSCHI,1986, pp. 214-224)

A criação de irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte nas freguesias

de Aiuruoca e Baependi em períodos contíguos, especificamente em 1814 e

1815, concorre com o desmembramento destas freguesias do termo da Vila de

Campanha da Princesa. Poucos anos depois, foram registradas a criação de

irmandades de Nossa Senhora do Rosário (1820), devoção que agregava

majoritariamente negros, tanto na sede da vila quanto nas freguesias de

Aiuruoca e Pouso Alto, que compunham seu Termo.

Estes dados são significativos e podem refletir o deslocamento da

população para a região sul de Minas. Ligado a fatores econômicos, como o

fomento à produção e o consumo de serviços mecânicos, este movimento

demográfico teria condicionado naquela parte das Minas uma concentração de

mão-de-obra – principalmente de pardos e negros livres e libertos – nos

povoados da região. Essa informação pode ser comprovada pelas listas

nominativas (APM: MP, Cx. 08, Doc. 09 (1838); MP, Cx.13, Doc. 07 ao 16, 1831-

1832)4, onde aparecem para as freguesias de Pouso Alto e Aiuruoca grande

4 As listas nominativas para o período da década de 1830 revelam a predominância de oficiais mecânicospardos e negros, fossem eles livres, forros ou cativos. Importante indicar a existência de exames de oficiaismecânicos, a partir da década de 1820, registrada em Autos da Câmara da Vila de Baependi, além dacriação de uma Comissão para a “louvação” das obras públicas em curso.

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presença de fogos com pardos livres e libertos exercendo atividades associadas

à agricultura e ofícios mecânicos.

Uma segunda possibilidade, é que em período concomitante ocorreu a

ereção das vilas de Campanha, Baependi e Jacuí, levando ao deslocamento de

pessoas para a ocupação de cargos nos juízos locais.

Para este segundo fator não consegui comprovação, sendo uma hipótese

que não deve ser ignorada, já que isso implicaria o movimento de contingente

cativo ou livre junto às famílias. Estes aspectos em conjunto, parecem favorecer

a leitura das transformações que estavam em curso naquela região, na primeira

metade do século XIX. É nesse período que estas ocorrências se concentram o

que justifica uma busca mais pormenorizada.

Paisagem urbana: arrematação de obras públicas

A paisagem urbana diz respeito ao processo de produção social e coletiva

do espaço enquanto categoria histórica, “(...) e lugar para a leitura do

ajuntamento dessa coletividade como uma experiência social de significados

muito próprios” (CUNHA, 2002:20). Já seus aspectos urbanísticos dizem

respeito

à materialidade das povoações (...) [como a] delimitação e a gestão dosrossios, (...), o direito de utilização das nascentes, o sistema de adução d’água,a abertura, a regularização, a pavimentação e a conservação das ruas epraças, o financiamento e a construção de pontes e chafarizes”. (FONSECA,2012, p.90)

As alterações empreendidas nos espaços das novas vilas nem sempre

eram imediatas (FONSECA, 1997, p. 80). No caso de Baependi, as primeiras

ações registradas dizem respeito à instalação do Pelouro, “na praça que se acha

junta a Igreja Matriz da mesma Vila” (RAPM, v. 1, fasc. 3, 1896, p. 432) em 13 de

outubro do mesmo ano de sua criação. No ano seguinte, em Acordão datado de

11 de abril de 1815, foram compradas casas para servirem de Cadeia, ao

Capitão Joaquim Ferreira de Sá, pelo valor de 800 mil réis (AHMB: Doc. Avulso,

1820).

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Neste mesmo ano, foi realizada a procissão do Corpo de Deus5 para a

qual foram produzidas “uma imagem de São Jorge” e feita “a pintura de 3

escudos e varas, além de paramentos” pelo mestre Manuel Pereira dos Santos

Roque. Em 1816, Manuel P. S. Roque, “homem que vive de sua arte” (AHMB:

Cx. 19, Doc. s.n., f. 1) dirigiu representação à Câmara da Vila cobrando o

pagamento pelo serviço prestado.

Como não se encontrava na vila para receber o pagamento constituiu

como seu procurador o Capitão Francisco Xavier da Fonseca com “poderes

[para] receber passar recibos públicos ou particulares” (AHMB: Cx. 19, Doc. s.n.,

f. 3v) sendo seu representante junto à Câmara. O movimento de Manuel Roque6

sugere que estava envolvido em algum trabalho naquele momento.

As obras de ornamentação de capelas e igrejas na região ocorreram

nesse mesmo período apontando, como possibilidade interpretativa, que o

artista estivesse envolvido nessa demanda. Pode-se cogitar que a mão-de-obra

existente naquelas paragens estava sendo absorvida pelas obras em curso, e

estas não foram em quantidade insignificante (Tabela 1). Sua ausência reforça,

por outro lado, a ideia da circulação dos profissionais dedicados às artes da

pintura, talha e escultura, que não se fixavam ou costumavam estabelecer lojas

nos arraiais e vilas onde residiam.

Dez anos após ser elevada à condição de vila, Baependi adequava suas

vias para melhor deslocamento dos moradores e passantes. Fazia-se

necessário “assegurar, dentro das cidades, a livre circulação do ar, das pessoas,

dos carros e das águas” (FONSECA, 1997, p. 99). No Livro de arrematação das

rendas e obras públicas (1814-1838) da Câmara, foram identificados

documentos referentes às arrematações voltadas para o calçamento das ruas,

5 A procissão do Corpo de Deus fazia parte das cerimônias civis da cidade, deduz-se então, que pelaelevação do arraial de Baependi à Vila, no ano de 1814, a procissão possa estar relacionada aolevantamento do Pelouro e posse das autoridades locais.6 Ao artista foi atribuída a fatura de diversas imagens em Baependi. Além da imagem de São Jorge, umCristo Crucificado que se encontra na Sacristia da Matriz e, uma imagem processional da Assunção. Oartista era filiado à Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte e a ele foi encomendada a fatura da santa.

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com o planeamento dos trechos necessários, e a construção e reforma de

pontes no termo e sede da vila, além da construção de um aqueduto7.

Nas descrições, mesmo que mais gerais, foram encontrados dados sobre

o material, as condições para a execução das obras e o valor a ser pago. Nestes

registros não constam o estabelecimento de prazo para a entrega das obras. Foi

recorrente para uma mesma prestação de serviço, a arrematação dos lanços

pelos mesmos profissionais sem a indicação se estes eram ou não mestres.

No ano de 1824, em período concomitante à criação das irmandades de

negros e pardos, e da reforma e ornamentação da igreja matriz, o Alferes

Antônio Luiz Cardoso se comprometeu com a realização da “fatura de cada uma

braça de calçada de pedra boa de maneira que se não desmanche” (AHMB:

Livro de Arrematação das rendas da Câmara e Obras Públicas, 1814 – 1838, f.

48v)

Fazer as calçadas na vila de Baependi não era coisa assim tão simples. É

o que se percebe pelas queixas proferidas pelo Alferes, indicando os prejuízos

que teve pelo baixo valor da arrematação. Essa, talvez, seja a justificativa para

um novo pregão com condições mais detalhadas e valor diverso daquele

estipulado no primeiro edital. No ano seguinte, foi feito novo lançamento de

arrematação, como consta do auto publicado em 04 de setembro de 1825

(AHMB: Livro de Arrematação das rendas da Câmara e Obras Públicas, 1814 –

1838, f. 51v-52v).

O pregão de venda especificava as exigências para a execução da obra.

Estas incluíam a fatura das calçadas e a intervenção nas ruas indicando a

existência de uma demanda crescente de livre circulação na vila, exigindo o

atendimento a uma população em frequente movimento e apontando um

processo de organização do espaço urbano, com a ampliação dos espaços de

sociabilidade e negócios. Nas condições constam:

7 O abastecimento de água potável para a sede da Vila não foi resolvido de maneira imediata, comdesdobramentos que alcançaram o início do século XX. A fatura do aqueduto foi questionada e a utilizaçãodeste serviço foi protelada até a compra de terreno, com mina de água, capaz de abastecer a população. Odocumento da compra do terreno pela municipalidade ainda não foi encontrado.

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aterrar as ruas nos lugares aonde se acharem com buracos feitos pelas águasque correm, e desaterrá-las aonde existirem barrancos e outros inconvenientesque obstam ao livre trânsito dos moradores e mais pessoas, e [corroído] eaplainá-las de maneira que fique a obra em perfeição (AHMB: Livro deArrematação das rendas....., f. 52. Grifo nosso)

A manutenção e ordenação da vila foi estipulada pelas Posturas

Municipais, datadas de 1823 e registradas no Livro de Despesas e Receitas da

Câmara (1822-1912). As posturas aparecem, no século XIX, como substitutivo

do controle anteriormente exercido pelas Câmaras e Coroa.

Nelas, misturavam-se considerações de ordem bem diversa, regulando desdeo modo de ‘fruição’ do logradouro comum dos moradores de cada distrito,como problemas de ‘trânsito público’, de ‘salubridade pública’, até chegar aoembelezamento das povoações do município, onde se faziam recomendaçõessobre a largura das ruas e se impunha que estas fossem retas (FONSECA,1997, p. 102).

Na proposição apresentada pela Câmara de Baependi, a referência à

ordenação da área urbana restringe-se à três itens. O primeiro deles diz

respeito, especificamente, à “manutenção das ruas limpas e varridas”, à retirada

dos monturos e dos formigueiros (AHMB: Livro de Receitas e Despesas da

Câmara Municipal de Baependi, 1822-1912, f. 43). As disposições de número 14

e 15, dizem respeito especificamente à obrigatoriedade de manutenção das

testadas das moradas “direitas, e limpas, e sem Regos” (AHMB: Livro de

Receitas e Despesas, 1822-1912, f. 44) e às licenças para a construção de

casas que deveriam obedecer à arruação existente. As multas eram variáveis e

incluíam, no caso de construção e retificação de casas, “botar abaixo a sua

custa” (AHMB: Livro de Receitas e Despesas, 1822-1912, f. 44).

Para a área rural, a postura de número 22, obrigava à “manutenção e

conserto das testadas das roças com os caminhos, pontes e retirada de

atoleiros” sob pena de prisão, multa e custas da manutenção pelo condenado

(AHMB: Livro de Receitas e Despesas, 1822-1912, f. 44v). As demais posturas

faziam referência ao estabelecimento e fiscalização de pesos e medidas, das

condições de salubridade dos gêneros vendidos na vila e termo, das licenças

para abertura de lojas e exercício de ofícios mecânicos. Aos almotacés, dirigiu-

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se o último item do registro que o obrigava à prestação de contas, com a entrega

das condenações efetivadas e os valores recolhidos.

Conclusão

É possível afirmar que a conformação do espaço da vila de Baependi, e

seu Termo, adequava-se à realidade do deslocamento do eixo demográfico e

produtivo para a comarca do Rio das Mortes. A municipalidade buscou ordenar e

orientar a convivência entre os habitantes de sua jurisdição, nas áreas urbana e

rural. Desse modo, o “espaço físico traduzia as necessidades sociais,

adaptando-se à vida coletiva que nela se encerraria” (FONSECA, 1997, p. 103).

A complexificação da sociedade, com a fixação de diferentes grupos

sociais na nova unidade, pode ser percebida pelas intervenções realizadas e

pelas demandas na abertura e configuração de espaços de sociabilidade,

fossem sagrados ou profanos.

Como controle e ordenação consciente, a intervenção humana pode ser

conhecida pelos indivíduos e grupos de uma dada sociedade e, através da

técnica – construtiva, de escolha e elaboração de materiais – e do gosto

artístico, a sociedade participa de forma ativa na alteração do ambiente, natural

e urbano.

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Arquivos consultados

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Arquivo Histórico Municipal de Baependi – AHMB

Livro de Arrematação das rendas da Câmara e Obras Públicas, 1814 –

1838

Livro de Receitas e Despesas da Câmara de Baependi, 1822 - 1912

Documentos Avulsos

Arquivo Público Mineiro – APM

Fundo: Seção Colonial

Fundo: Mapa de População

Fundo: Cartografia

Periódicos

Revista do Arquivo Público Mineiro