OCUPAÇÃO E USO DE ESPAÇOS URBANOS EM JOÃO DO RIO E BAUDELAIRE

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  • 8/19/2019 OCUPAÇÃO E USO DE ESPAÇOS URBANOS EM JOÃO DO RIO E BAUDELAIRE

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    Bruno Faccini Santoro – NUSP 4938664

    OCUPAÇÃO E USO DE ESPAÇOS URBANOS EM JOÃO DORIO E BAUDELAIRE

    Universidade de São Paulo

    Faculdade de Filosofa, Letras e Cincias !u"anas

    #ela$%es Liter&rias Brasil'Fran$a

    Pro() *le+andre Beiano

     -ul.o ' /012

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    O presente trabalho tem por objetivo contrastar uma crônica de João do Rio e

    um poema em prosa de Charles Baudelaire para determinar de que forma os dois

    autores abordam temas relacionados à ocupação do espaço urbano nas grandes

    metrpoles! especialmente em relação às camadas de renda mais bai"a# $ais

    especificamente! a an%lise ser% feita sobre Les Veuves! publicado no jornal La

     presse em &aris no dia '()*+),+-' e O velho mercado, publicado na Gazeta de

    Notícias! no Rio de Janeiro em ,-)*'),.*+# &ara facilidade de refer/ncia! os dois

    te"tos estão dispon0veis em ane"o#

    &rimeiramente! 1 feita um coment%rio a respeito das relaç2es entre jornalismo

    e literatura! dado que os dois te"tos foram publicados em peridicos de grande

    circulação em suas 1pocas! sem no entanto seguir o esquema de reportagem

    objetiva e dita imparcial que atualmente se associa à imprensa# &osteriormente 1

    feita uma an%lise individual de cada um dos te"tos! tanto em seus aspectos

    formais e sua relação com o suporte no qual foram publicados! quanto em n0vel de

    conte3do# 4inalmente! são traçadas as relaç2es entre as duas produç2es!

    ressaltando5se seus pontos de apro"imação e de diferença! levando5se em conta

    que o trabalho de João do Rio ocorre algumas d1cadas posteriormente ao de

    Baudelaire e foi por este inspirado#

    $e6er 7,..'8 analisa o desenvolvimento do folhetim na imprensa brasileira!

    descrevendo primeiramente o g/nero na imprensa francesa do s1culo 9:9# ;la

    toma como definição inicial de feuilleton o espaço no final da primeira p%gina do

     jornal! em que se apresenta um te"to de assunto potencialmente fr0volo e não

    necessariamente relacionado às not0cias daquela data# &osteriormente! o

    ? nas palavras da autora passa a caracteri@ar romances

    publicados de forma seriada# A autora traça um panorama da evolução deste

    g/nero at1 culminar na crônica brasileira! a qual 1 vista

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    nossa cultura! aliada ao tom mais descontra0do! compondo te"tos

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    e fato! o poema afirma inicialmente que a presença de vi3vas pobres! em

    luto ou não! 1 em geral mais triste do que a de ricas devido à sensação de

    incompletude! de aus/ncia# O narrador indaga ao leitor o que seria pior! a solidão

    completa ou aquela das senhoras acompanhadas por um filho que não pode

    verdadeiramente ser uma companhia# ;le conta ter acompanhado uma velha

    solit%ria que! afastada da confusão! se sentara para ouvir um espet%culo de

    m3sica#

    ;m seguida! ele descreve que a situação geral de concertos p3blicos! em que

    os pobres ficam restritos aos lugares mais distantes! enquanto os mais ricos tem a

    oportunidade de aproveitar plenamente# ;m uma ocasião espec0fica! o narrador 

    percebeu uma vi3va com apar/ncia nobre mas que provavelmente passava por 

    necessidades financeiras! se vendo obrigada a economi@ar alguns trocados para

    conseguir uma condição melhor para seu filho pequeno# A questão que o autor se

    colocara anteriormente! a respeito do tipo de solidão mais triste! não 1 respondida

    de forma definitiva#

    O te"to não foca e"plicitamente a situação urbana de &aris durante as

    reformas de Gaussmann# Contudo! h% alguns elementos importantes em relação

    ao uso do espaço p3blico# O primeiro deles 1 a utili@ação do jardim p3blico como

    ponto de ref3gio para aqueles que j% não tem grandes esperanças! demonstrando

    uma sociedade ainda não completamente impregnada pelo individualismo que

    leva os indiv0duos a cada ve@ mais se fecharem em si mesmos# &or outro lado! na

    descrição da senhora ouvindo o espet%culo de m3sica com o filho j% h% uma

    sugestão da ampliação das desigualdades sociais e consequente perda do direito

    de aproveitar os pra@eresH 1 necess%rio pagar para ter acesso aos melhores

    lugares! ou contentar5se com a periferia#

     A sensação que se tem ao final da leitura 1 de amargura! triste@a contida!

    solidão! abandono# Ião se trata de uma den3ncia social populista! de um grito

    desesperado por ajuda às pobres vi3vas! mas sim uma constatação de um

    sofrimento que seria praticamente inevit%vel#

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    &assemos agora à an%lise geral do segundo te"to# O velho mercado 1 uma

    crônica publicada na p%gina da Ka@eta de Iot0cias! sem indicação e"ata de

    rubrica# &ercebe5se um tom mais liter%rio pelo subt0tulo

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    ;le fa@ uma recapitulação histrica da locali@ação do $ercado desde a

    fundação da cidade! concluindo que o lugar onde ele estava ultimamente instalado

    era recente! de ,+M-! NIão h% um s1culo ainda?# A relativamente curta duração

    desse per0odo j% 1 suficiente para causar saudosismo no narrador# Al1m disso!

    percebe5se como o dinamismo das reformas no pa0s perif1rico tende a ser maior!

    destruindo5se constantemente a histria e tentando5se fundar um novo e

    promissor pa0s a todo instante# A problem%tica de propriedade fica registrada em

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    para pintar um panorama geral# Io entanto! como foi destacado anteriormente!

    tamb1m nela 1 poss0vel encontrar algumas marcas de literatura mais cuidada!

    diferentemente de uma mat1ria jornal0stica escrita às pressas apenas para ocupar 

    espaço#

    Outro distanciamento acontece com relação ao foco no indiv0duo ou no

    ambiente# O poema em prosa descreve as impress2es do narrador em relação a

    personagens espec0ficas! as quais! pela aus/ncia de descrição detalhada! podem

    ser entendidas como representantes de tipos gen1ricos# &or outro lado! a crônica

    demonstra uma preocupação com a estrutura f0sica! com o cen%rio em

    transformação# Baudelaire não critica e"plicitamente as reformas urban0sticas

    como João do Rio fa@! apenas aponta uma situação de e"clusão e elitismo# &or 

    fim! o poema em prosa 1 mais focado no fim da vida! no luto e na solidão!

    enquanto a agitação fero@ e a mudança são temas de maior importDncia para a

    crônica#

    e fato! um dos pontos em comum entre os te"tos est% justamente na

    descrição da tensão entre ricos e pobres! utili@ando um mesmo espaço mas com

    intenç2es e aç2es diferentes# Os privil1gios dos ricos se manifestam em condiç2es

    mais confort%veis e menos esforço! seja na &aris do s1culo 9:9 ou no Rio de

    Janeiro do 99# 4isicamente pr"imos a eles mas separados por barreiras

    intranspon0veis! h% uma outra parte da sociedade com os quais eles parecem não

    interagir# O contraste entre ricos e pobres descrito na crônica na passagem 1tincelante

    fournaise int1rieure?8#

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     Apesar das descriç2es da correria da vida mundana presentes na crônica! que

    foram contrapostas ao ambiente mais soturno das vi3vas nos jardins parisienses!

    1 importante ressaltar que os fatos descritos são memrias do narrador# A

    sensação de saudade antecipada! justificada pelas demais reformas que j%

    haviam alterado ine"oravelmente a paisagem carioca! não est% distante da dor 

    contida das vi3vas! ela apenas não 1 reforçada durante a maior parte da crônica!

    com e"ceção dos par%grafos de abertura e encerramento# Os dois te"tos

    compartilham de um saudosismo! subentendido em Baudelaire e e"pl0cito em

    João do Rio! de saudades de tempos melhores e que não irão retornar#

    ;m resumo! os dois te"tos utili@am formas diferentes para tratar a questão da

    e"clusão social e do direito de ocupação dos espaços p3blicos que tende a ser 

    negado às camadas mais bai"as# A cr0tica à desigualdade social se torna ainda

    mais um mero e"erc0cio retrico no caso brasileiro! em que os leitores são

    primordialmente da prpria elite# Os acontecimentos e ambientes descritos são

    intensamente urbanos! em acordo com o meio mais prop0cio à circulação de

     jornais e portanto com maiores probabilidades de causar interesse ao leitor m1dio#

     Assim! apesar de não se poder negar a qualidade art0stica e o apuro est1tico!

    tamb1m 1 preciso lembrar as press2es econômicas associadas à publicação dos

    te"tos em jornais#

    BIBLIOGRAFIA

    BA;A:R;! C# &etits poEmes en prose# La presse! &aris! '( ago# ,+-'#4euilleton de la presse! p#,

    O R:O! J# O velho mercado F not0cia sentida# Gazeta de notícias! Rio deJaneiro! ,- fev# ,.*+# p#

    $;;R! $# Sol%teis e vers%teis# e variedades e folhetins se fe@ a chronica# :nCAI:O! Antonio# A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformaçõesno Brasil# Campinas! Q&H ;ditora da nicampT Rio de JaneiroH 4undação Casa deRui Barbosa! ,..'#

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    ANEXO 1 – LES VEUVES

    Sauvenargues dit que dans les jardins publics il est des all1es hant1esprincipalement par l>ambition d1çue! par les inventeurs malheureu"! par les gloires

    avort1es! par les coeurs bris1s! par toutes ces Dmes tumultueuses et ferm1es! enqui grondent encore les derniers soupirs d>un orage! et qui reculent loin du regardinsolent des jo6eu" et des oisifs# Ces retraites ombreuses sont les rende@5vousdes 1clop1s de la vie#

    C>est surtout vers ces lieu" que le poEte et le philosophe aiment diriger leursavides conjectures# :l 6 a là une pDture certaine# Car s>il est une place qu>ilsd1daignent de visiter! comme je l>insinuais tout à l>heure! c>est surtout la joie desriches# Cette turbulence dans le vide n>a rien qui les attire# Au contraire! ils sesentent irr1sistiblement entraUn1s vers tout ce qui est faible! ruin1! contrist1!orphelin#

    n oeil e"p1riment1 ne s>6 trompe jamais# ans ces traits rigides ou abattus!dans ces 6eu" caves et ternes! ou brillants des derniers 1clairs de la lutte! dansces rides profondes et nombreuses! dans ces d1marches si lentes ou sisaccad1es! il d1chiffre tout de suite les innombrables l1gendes de l>amour tromp1!du d1vouement m1connu! des efforts non r1compens1s! de la faim et du froidhumblement! silencieusement support1s#

     Ave@5vous quelquefois aperçu des veuves sur ces bancs solitaires! des veuvespauvres V Wu>elles soient en deuil ou non! il est facile de les reconnaUtre# >ailleurs

    il 6 a toujours dans le deuil du pauvre quelque chose qui manque! une absenced>harmonie qui le rend plus navrant# :l est contraint de l1siner sur sa douleur# eriche porte la sienne au grand complet#

    Wuelle est la veuve la plus triste et la plus attristante! celle qui traUne à sa mainun bambin avec qui elle ne peut pas partager sa r/verie! ou celle qui est tout à faitseule V Je ne saisX :l m>est arriv1 une fois de suivre pendant de longues heuresune vieille afflig1e de cette espEce T celle5là roide! droite! sous un petit chDle us1!portait dans tout son /tre une fiert1 de stoYcienne#

    ;lle 1tait 1videmment condamn1e! par une absolue solitude! à des habitudesde vieu" c1libataire! et le caractEre masculin de ses moeurs ajoutait un piquantm6st1rieu" à leur aust1rit1# Je ne sais dans quel mis1rable caf1 et de quelle façonelle d1jeuna# Je la suivis au cabinet de lecture T et je l>1piai longtemps pendantqu>elle cherchait dans les ga@ettes! avec des 6eu" actifs! jadis brZl1s par leslarmes! des nouvelles d>un int1r/t puissant et personnel#

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    ;nfin! dans l>aprEs5midi! sous un ciel d>automne charmant! un de ces ciels d>o[descendent en foule les regrets et les souvenirs! elle s>assit à l>1cart dans un

     jardin! pour entendre! loin de la foule! un de ces concerts dont la musique desr1giments gratifi le peuple parisien#

    C>1tait sans doute là la petite d1bauche de cette vieille innocente 7ou de cettevieille purifi1e8! la consolation bien gagn1e d>une de ces lourdes journ1es sansami! sans causerie! sans joie! sans confident! que ieu laissait tomber sur elle!depuis bien des ans peut5/tre P trois cent soi"ante5cinq fois par an#

    ne autre encoreH

    Je ne puis jamais m>emp/cher de jeter un regard! sinon universellements6mpathique! au moins curieu"! sur la foule de parias qui se pressent autour del>enceinte d>un concert public# >orchestre jette à travers la nuit des chants de f/te!

    de triomphe ou de volupt1# es robes traUnent en miroitant T les regards secroisentT les oisifs! fatigu1s de n>avoir rien fait! se dandinent! feignant de d1guster indolemment la musique# :ci rien que de riche! d>heureu" T rien qui ne respire etn>inspire l>insouciance et le plaisir de se laisser vivre T rien! e"cept1 l>aspect decette tourbe qui s>appuie là5bas sur la barriEre e"t1rieure! attrapant gratis! au gr1du vent! un lambeau de musique! et regardant l>1tincelante fournaise int1rieure#

    C>est toujours chose int1ressante que ce reflet de la joie du riche au fond del>oeil du pauvre# $ais ce jour5là! à travers ce peuple v/tu de blouses et d>indienne!

     j>aperçus un /tre dont la noblesse faisait un 1clatant contraste avec toute latrivialit1 environnante#

    C>1tait une femme grande! majestueuse! et si noble dans tout son air! que jen>ai pas souvenir d>avoir vu sa pareille dans les collections des aristocratiquesbeaut1s du pass1# n parfum de hautaine vertu 1manait de toute sa personne#Qon visage! triste et amaigri! 1tait en parfaite accordance avec le grand deuil dontelle 1tait rev/tue# ;lle aussi! comme la plEbe à laquelle elle s>1tait m/l1e et qu>ellene vo6ait pas! elle regardait le monde lumineu" avec un oeil profond! et elle1coutait en hochant doucement la t/te#

    QinguliEre vision P \ A coup sZr! me dis5je! cette pauvret15là! si pauvret1 il 6 a!

    ne doit pas admettre l>1conomie sordide T un si noble visage m>en r1pond#&ourquoi donc reste5t5elle volontairement dans un milieu o[ elle fait une tache si1clatanteV]

    $ais en passant curieusement auprEs d>elle! le crus en deviner la raison# agrande veuve tenait par la main un enfant comme elle v/tu de noir T si modique

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    que fZt le pri" d>entr1e! ce pri" suffisait peut5/tre pour pa6er un des besoins dupetit /tre! mieu" encore! une superfluit1! un jouet#

    ;t elle sera rentr1e à pied! m1ditant et r/vant! seule! toujours seule T car l>enfant est turbulent! 1goYste! sans douceur et sans patience T et il ne peut m/me

    pas! comme le pur animal! comme le chien et le chat! servir de confident au"douleurs solitaires#

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    ANEXO 2 – O VELHO MERCADO

     Acabou de mudar5se ontem a praça do $ercado# Iaquele abafado e sombriodia de ontem era um correr de carregadores! carroças e carrinhos de mão pelos

    squares rentes ao &harou" levando as mercadorias da velha praça abandonadapara a nova instalação catita do largo do $oura e! ao passo que a0 uma vida aindadesnorteada estridulava e enchia de ru0do o sil/ncio do sinistro largo! na alegre ebonacheirona praça ia uma desolação de abandono! com as casas fechadas e oarrastar de utens0lios para o meio das ruas sujas#

     A mudançaP Iada mais inquietante do que a mudançaP ^ porque leva a genteamarrada essa esperança! essa tortura vaga que 1 a saudade# Aquela mudançaera! entretanto! maior do que todas! era uma operação de cirurgia urbana! erapara modificar inteiramente o Rio de outrora! a mobili@ação do prprio estômagoda cidade para outro local# Wue nos resta mais do velho Rio antigo! tão curioso etão caracter0sticoV ma cidade moderna 1 como todas as cidades modernas# Oprogresso! a higiene! o confort%vel nivelam almas! gostos! costumes! a civili@ação1 a igualdade num certo poste! que de comum acordo se julga admir%vel e! assimcomo as damas ocidentais usam os mesmos chap1us! os mesmos tecidos! omesmo andar! assim como dois homens bem vestidos hão de fatalmente ter omesmo feitio da gola do casaco e do chap1u! todas as cidades modernas t/mavenidas largas! squares! mercados e pal%cios de ferro! vidro e cerDmica# Ascidades que não são civili@adas são e"ticas! mas quão mais agrad%veis# Ião h%avenidas! h% outras coisas e quem vinha ao Rio go@ava o interesse de uma cidadediferente das outras e tão curiosa no seu novo feitio! como 1 Loledo na sua

    maneira! como 1 o &orto! como o são algumas das cidades da :t%lia! onde aindanão entrou o progresso! que estende logo um cais! destri vinte ruas e solta sobreas ru0nas um automvel#

    O Rio! cidade nova ^ a 3nica talve@ no mundo ^ cheia de tradiç2es! foi5sedelas despojando com indiferença# e s3bito! da noite para o dia! compreendeuque era preciso ser tal qual Buenos Aires! que 1 o esforço despedaçante de ser &aris! e ru0ram casas e estalaram igrejas! e desapareceram ruas e at1 ao mar sepuseram barreiras# esses escombros surgiu a urbe conforme a civili@ação! comoao carioca bem carioca! surgiu da cabeça aos p1s! o refle"o cinematogr%fico do

    homem das outras cidades# 4oi como nas m%gicas! quando h% mutação para aapoteose# Samos tomar caf1V OhP filho! não 1 civili@adoP Samos antes ao ch%P ; talqual o homem! a cidade desdobrou avenidas! adaptou nomes estrangeiros! comeuà francesa! viveu à francesa#

    Q a praça do $ercado ainda resistia# A praçaP ;ssa velha bonacheirona queera o ventre do Rio! levara a escolher o seu local muitos s1culos# ;m milseiscentos e sessenta e tantos! a rua da Wuitanda era da Wuitanda Selha! porque

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    l% se instalara a praça# &ouco depois! a rua da AlfDndega era Wuitanda do$arisco! porque l% a praça tentara o $ercado# ; nos tempos do Brasil colônia! apraça! j% se apro"imando do seu lugar! ficava por tr%s da CDmara e incomodavanos seus pal%cios os vice5reis! porque desprendia muito mau5cheiro#

    Q em ,+M- 1 que ela se abeirou do cais &harou" e l% fi"ou as primeirasestacas das primitivas cabanas# Ião h% um s1culo ainda# Alguns homens que aviram começar ainda vivem# $as esses setenta anos bastaram para fa@/5la ums0mbolo! na sua força! na sua originalidade! no esp0rito de coesão! e na vidaprpria dos seus habitantes# O local fora durante muito tempo motivo de discussãode propriedade! mas a gente de l% sempre viveu como numa praça sua! no fortedo estômago! organi@ando festas! batendo5se contra a pol0cia! incendiando5se!continuando#

    Wuem não sentiu a influ/ncia da praça! quem não palpou aquela pletora de

    vidaV Ia praça havia a abundDncia! a rique@a! a mis1ria e a vagabundagem# Aolado de rapa@olas que mourejavam desde pela madrugada entre montanhas devegetais e ru0nas sangrentas de carne! rastejando por entre as fortunas feitas àsbraçadas no desencai"otar das cebolas e dos alhos! viviam e morriam com fomegarotos esqu%lidos! vagabundos estranhos! toda a vasa do crime! do horror e daprostituição! bem id/ntica à vasa cheia de detritos da velha doca e da rampa#Ioite e dia aquela gente! que tinha um calão prprio e vivia separada da cidade!labutava e era uma sensação esquisita sentir5lhe os v%rios aspectos#

    OhP os aspectos da praçaP Qeria preciso pertencer a todas as classes sociaispara apreend/5los e enfei"%5los# _s primeiras horas da noite! quando ainda h% noc1u alguma lu@ dei"ada pelo sol! as casas de pasto com a crua iluminação do g%s!os botequins baratos! as casas de louças! as barracas de frutas e de aves! asbancas de pei"e! suando! gesticulando! gritando# Ia rampa desciam por pranchastipos herc3leos carregando cai"2es! os cai"2es passavam para outras cabeças ehavia! ininterrupta! uma corrente viva de trabalho e"austivo! enquanto pelasbodegas comiam outros em mangas de camisa! mais calmos e j% prsperos! ou decamisa de meia! suando e saud%veis! entre o farisa0smo dos ciganos à cata decoisas gr%tis e o bando de malandros parasitas! desde o garoto do recado aomendigo falso#

    epois tudo era sombra! escuridão! obscuridade complacente e umaatmosfera feita de relentos de co@inha! do cheiro das aves! da maresia da vasa!dos animais! das couves em montanhas! toda uma orquestração impalp%vel decheiros afrodis0acos! espalhando uma vaga! indi@0vel lu"3ria# Gomens que nuncasentiram o mal de viver! nem o mal moral da d3vida! nem a dor f0sica! dormiamquase nus nos paralelep0pedos! sobre as soleiras das portas! e não havia cantoescuso em que não se encontrasse uma criatura a roncar ^ ou gente de labuta!

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    ou gente parasita# Ia sombra! indecisamente sombras delineavam5se e naatmosfera pesada de tantos cheiros um rumor sutil! feito de mil rumores desuspiros! de roncos! de pios! de grunhidos! e"citava ainda mais#

     _ meia5noite! por1m! começavam a chegar os vendedores! as carroças de

    verduras das hortas distantes e as faluas pesadas do outro lado da ba0a# Ospropriet%rios! os compradores caminhavam sempre com um pau@inho na mão! àguisa de bengalaT os outros! carroceiros! dei"avam a carroça e recostavam adormir mais um pouco# ; o trabalho começava da descarga da quitanda! ligava5sedas faluas para a rampa outra corrente humana! na alegria dos homens ^ ;h!Jos1! eu j% carreguei tr/sP A apostar como eu levo maisP ^ uvidoP ; em cadauma! enquanto o chefe dirigia a colocação por ordem! os cestos de tomates comos cestos de tomates! os molhos de salsas com os molhos de salsas! semprehavia o NespirituosoN encarregado de di@er graça! ou o pequeno vagabundo que àsve@es trabalha mais que os outros para matar o tempo#

    :a a madrugada em fora! e à lu@ das estrelas ou sob a chuva a cena serepetia# A um certo momento! os vendedores de pei"e e de ostras aquartelavamcom as latas enferrujadas e os cestos! acendendo cotos de vela a iluminar emderredor# efronte sempre abria uma casa de pasto# ;ra a hora em quebordejavam b/bados! à espera do bote! as blusas vermelhas dos fu@ileiros navais!era a hora em que apareciam os seresteiros para tomar vinho branco e comer ostras! era a hora em que! à sa0da dos bailes carnavalescos! paravam tipiastransbordantes de mulheres alegres e de rapa@es divertidos para o fim da orgia#

    ^ Samos comer ostras no $ercadoV

    Wuem não teve esta pergunta lament%vel uma ve@ na sua vidaV

    Wuando! por1m! os retardat%rios davam por si! j% no c1u se fi@era a transfusãoda lu@ e era a aurora que abria sobre o mar e sobre as coisas como uma grandecasa! a renovação da vida# ; tudo parecia acordar! fervilhar! brilharT aves! animais!escamas de pei"es! latas! pratos! homens! p%ssaros! numa grita infrene! que tinhada Arca de Io1 e de uma aluvião de leil2es# Apagando os mendigos! apagando osgarotos! apagando o sono misterioso! entrava a grande massa dos compradores!sa0am as levas dos vendedores ambulantes! todos na grande agitação que d% a

    compra da vida! enquanto homens saud%veis brandiam machados em cepossangrentos! montes de verduras desapareciam em caba@es! pei"es rolavam! cãesladravam! aves cacarejavam e! doirando tudo! alindando tudo! o sol cobria a ru0nasrdida das barracas! envolvia as faluas e a sujeira da doca! arrastava pelo mar arede de lhama de oiro de sua lu@#

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    ; era assim at1 ao meio5dia em que sempre havia tempo para uma palestra eum descanso em todos os m3ltiplos ramos dessa babel do estômago#

    Wuantas vidas se passaram ali! sem outro desejo! naquela apoteose deabundDncia que fechava o apetite e devia dar sa3deV Wuantas lutas! quantas

    intriguinhas! quantas discuss2es! quantos combates! porque a gente da praçasempre foi valenteV Wuantos limitaram as festas aos coretos da apa! comornamentaç2es! leil2es de prendas e outros brincos primitivosV Wuantos tiveramaqueles quatro port2es como os port2es de uma cidadela que não se sentiaV###

    Com essas tristes refle"2es dei"ei o novo $ercado pela velha e amada praça#Gavia! como eu! muito cavalheiro a arma@enar na retina pela 3ltima ve@ atopografia do $ercado# ; o $ercado era desolador# O quadril%tero onde paravamas carroças de verdura estava deserto# A parte central! onde havia bancas depei"e! frutas! casas de cebolas e de louças tamb1m deserta e junto ao chafari@

    seco um soldado de ar triste# &elas ruas estreitas! uma ou outra casa ainda abertaa carregar os utens0lios para o novo edif0cio! onde ningu1m dorme e às de@ horasfecha# Io mais! portas batidas! port2es de grade mostrando a ru0na vasta dasparedes e o anseio intermin%vel de mudança# &aramos enfim na rampa# Algunshomens conversavam em mangas de camisa# &ara eles era imposs0vel dei"ar deaproveitar a rampa# $as a doca estava quase va@ia# Q! amarrada a um dosgrossos e gastos argol2es de ferro! uma falua balouçava# ;ra a 3ltima# ali aminutos ela partiria! dei"ando abandonada a velha bonacheirona antiga! cujahistria j% tinha de legenda# ;ra a derradeira# A atmosfera estava carregada# ;!al1m da falua tão cansada e triste! arabescando o hori@onte de treva! um bando

    de corvos em c0rculos conc/ntricos alastrava um pedaço do c1u#

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