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  • o la o-5 e a

    I CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ . O F E N M E N O DO LUGAR

    O nome do ter ico n o r u e g u s Christian Morberg-Schulz est intimamente ligado adoo de uma fenomenologia da arquitetura. Desde os primeiros estudos realiza-dos na d c a d a de 1960 at seu livro, Architecture: Meaningand Place (1988), Nor-berg-Schulz vem desenvolvendo uma in terpre tao textual e pictrica das ideias de Martin Heidegger (1889-1976), baseando-se sobretudo no ensaio do f i lsofo a l e m o "Construir, habitar, pensar". Em Intentions in Architecture iS&), Norberg-

    I Scfiulz usou a l ingustica, a psicologia da p e r c e p o (Gestalt) e a fenomenologia para construir uma teoria abrangente da arquitetura. .A obra foi publicada pouco antes do livro de Robert Venturi Con^olexiclsde e co'itra

  • lica e ttil das j u n e s . Esses aspectos contribuem para realar a qualidade potica que na

    opinio de Heidegger essencial para o habitar.

    Norberg-Schulz, levado por sua grande a d m i r a o por Robert Venturi, identifica-o

    equivocadamente com a fenomenologia, por causa do interesse recente do arquijeto na

    "parede entre o interior e o exterior". Depois de Aprendendo com Las Vegas, restam pou-

    cas dvidas de que Venturi e seus colaboradores e s t o mais interessados na superf c ie (o

    "galpo decorado") do que em q u e s t e s espaciais, como lugares delimitados.

    1 ir.thonv Pi'.v D rTc>nirv of Ph'lo^oo^^\ ed revsada Nova York: St M5rtn's Press.

    1984. p 157.

    CflBISTIAN NORBERG-SCHULZ

    O fenmeno do lugar Nosso mundo-da-vida cotidiana consiste em "fenmenos" concretos. Compe-se de pessoas, animais, flores, rvores e florestas, pedra, terra, madeira e gua, cidades, ruas e casas, portas, janelas e moblias. E consiste no sol, na lua e nas estrelas, na passagem das nuvens, na noite e no dia, e na mudana das estaes. Mas tambm compreende fen-menos menos tangveis, como os sentimentos. Isto , o que nos "dado" o "contedo" de nossa existncia. Rilke escreveu que: "Quem sabe no estamos aqui para dizer: casa, ponte, fonte, porto, jarra, rvore frutfera, janela, - no mximo, pilar, torre".' Tudo o mais, seiam tomos e molculas, nmeros e todos os tipos de "dados", so abstraes ou ferramentas construdas para atender a outros propsitos que no a vida cotidiana. Atualmente, muito comum confundir as ferramentas com a realidade. : >

    As coisas concretas que constituem nosso mundo dado se inter-relacionanide modo complexo e talvez contraditrio. Alguns fenmenos, por exemplo, podem compreender outros. A floresta compe-se dc rvores e a cidade feita de casas. A

    "iaisagem" um fenmeno muito abrangente. De maneira geral, pode-se dizer que alguns fenmenos formam um "ambiente" para outros. U m termo concreto para fa-lar em ambiente lugar. Na linguagem comum diz-se que atos e acontecimentos tm lugar. Na verdade, no faz o menor sentido imaginar um acontecimento sem refern-cia a uma localizao. evidente que o lugar faz parte da existncia. Ento, o que se quer dizer com a palavra "lugar"? claro que nos referimos a algo mais do que uma localizao abstrata. Pensamos numa totalidade constituda de coisas concretas que

    possuem substncia material, forma, textura e cor. Juntas, essas coisas determinam uma "qualidade ambiental" que a essncia do lugar. Em geral, um lugar dado como esse carter peculiar ou "atmosfera". Portanto, um lugar um fenmeno qualitativo

    "total", que no se pode reduzir a nenhuma de suas propriedades, como as relaes espaciais, sem que se perca de vista sua natureza concreta.

    A experincia diria nos diz, ademais, que aes diferentes exigem ambientes dife-rentes para que transcorram de modo satisfatrio. Em consequncia disso, as cidades e as casas consistem em uma multiplicidade

  • Uma noite de inverno Quando a neve cai na janela E os sinos noturnos repicam longamente, A, mesa, posta para muitos, E a casa est bem preparada. H i quem, na peregrii\ao, Chegue ao portal da senda misteriosa. Florescncia dourada da r\'orc da misericrdia. Da fora fria que emana da terra. O peregrino entra, silenciosamente, Na soleira, a dor petrihca-se, Ento, resplandecem, na luz iiicondicional, Po e vinho sobre a mesa.'

    No pretendo reproduzir a penetrante anlise de Heidegger sobre o poema, mas apenas chamar a ateno para umas tantas propriedades que iluminam o tema deste ensaio. Em geral, Trakl emprega imagens concretas que todos conhecemos a partir da vida co-tidiana. Ele fala de "neve", "janela", "casa", "mesa", "porta", "n'ore", "soleira", "po e vinho", "escurido" c "luz" e define o homem como um "peregrino". Mas essas ima-gens trazem implcitas estruturas mais gerais. Em primeiro lugar, o poema distingue entre um lado de fora e um lado de dentro. O lado de fora apresentado nas duas primei-ras linhas da primeira estrofe e compreende tanto elementos naturais como fabricados pelo homem. O lugar natural est presente na neve caindo, que sugere o inverno, e na referncia ao anoitecer. O prprio ttulo do poema "situa" tudo nesse conte.xto natural. Mas um anoitecer de inverno no apenas um ponto no calendrio. Presena concreta, tambm vivido como um conjunto de qualidades, ou, em geral, como um Stimmung, um "temperamento ou carter", que tbrma o pano de fundo dos atos e acontecimentos. No poema, essa qualidade est presente na neve fria, gelada, macia, silenciosa, que bate na janela e esconde o contorno dos objetos ainda reconhecveis no lusco-fusco. A pala-vra "cai" induz ainda a uma impresso de espao, ou melhor, a sugesto da presena da terra e do cu. Com um mnimo de palavras, Trakl d vida a todo um ambiente natural. Mas o exterior, o lado de fora, tambm possui propriedades criadas pela mo do ho-mem. L est o sino que toca ao anoitecer, ouvido em toda parte, que torna o "lado de dentro", o "privado", parte de uma totalidade "pblica" abrangente. O sino vespertino, entretanto, mais que um artefato prtico, um smbolo, que relembra os valores co-muns nos quais se fundamenta essa totalidade. Como diz Heidegger, "o repicar do sino ao anoitecer chama os homens, como mortais, presena do divino"."

    Os dois versos seguintes apresentam o "lado de dentro", descrito como uma casa que d abrigo e segurana por ser fechada e "bem-preparada". Mas h uma janela,

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    uma abertura que nos faz sentir o interior como complemento do exterior. Dentro da casa h um ltimo ponto focal, a mesa que est "posta para muitos". Em torno da mesa, as pessoas se renem; ela o centro, e mais que qualquer outra coisa constitui o "de dentro". No se diz muito sobre o carter desse interior, mas de todo modo ele est presente. Sabemos que iluminado e clido, e contrasta com o frio e o escuro do lado de fora, e seu silncio prenhe de sons latentes. Dc modo geral, o interior um mundo de coisas compreensveis, onde a vida de "muitos" tem lugar.

    As duas estrofes seguintes aprofundam a perspectiva. Aqui sobressai o significado dos lugares e das coisas, e o homem apresentado como um peregrino que chega pela "senda mi.sterio.sa". Em vez de ficar na segurana da ca.sa que fez para si mesmo, ele vem de fora, do "caminho da vida", que tambm representa a tentativa do homem de "orientar-se" num ambiente desconhecido dado. Mas a natureza tem um outro lado: ela oferece a graa do crescimento e da florescncia. Na imagem da rvore "dourada", terra e cu se unem formando um mundo. Pelo labor do homem o mundo trazido para o interior como po e vinho, por meio dos quais o interior se "ilumina", isto , adquire significado. No fossem os frutos "sagrados" do cu e da terra, o interior estaria "vazio". A casa e a mesa recebem e renem, e trazem o mundo para "perto". Habitar uma casa significa habitar o mundo. Mas esse habitar no fcil, tem de ser al-canado por caminhos escuros e uma soleira separa o dentro do fora. Representando a "brecha" entre a "alteridade" e o sentido manifesto, a soleira concretiza a dor que

    "se petrifica". Assim, na soleira que o problema do habitar se torna presente.^

    O poema de Trakl ilumina alguns fenmenos essenciais de nosso mundo-da-vida e, em particular, as propriedades fundamentais do lugar. Primeiramente, ele indica que toda situao a um s tempo local e geral. O anoitecer de inverno que o poema descreve obviamente um local, um fenmeno nrdico, masis sugestes de um "in-terior" e um "exterior" so gerais, assim como os sentidos relativos a essa distino. Dessa forma, o poema concretiza propriedades bsicas da existncia. Falo aqui em

    "concretizar" no sentido de transformar aquilo que genrico, "visvel", isto , em uma situao local, concreta. C o m isso o poema se move numa direo oposta do pensamento cientfico, pois, enquanto a cincia parte do "dado", a poesia nos remete s coisas concretas, desvendando os sentidos inerentes ao mundo-da-vida."

    Alm disso, o poema de Trakl faz uma distino entre elementos naturais e elemen-tos fabricados pelo homem, com o que sugere um ponto de partida para uma "feno-menologia do ambiente". Os elementos naturais so, evidentemente, os componentes principais do dado, e os lugares costumam ser definidos em termos geogrficos. Cabe insistir, porm, que "lugar" significa mais do que uma localizao. A literatura atual sobre a "paisagem" contm vrias tentativas de descrio de lugares naturais, mas essa prtica usual nos parece, mais uma vez, excessivamente abstrata, porque se baseia em consideraes "funcionais", ou mesmo "visuais".' Precisamos mais uma vez recorrer

  • ajuda da filosofia. Heidegger estabelece uma primeira distino fundamental entre os conceitos de "terra" e cu", quando afirma: " A terra o que sustenta ser\'indo, flores-cendo e dando frutos, espalhando-se em rochedo e gua, abrindo-se em plantas e ani-mais [...1 O cu o caminho arqueado do sol, o curso das vrias luas, da cintilao das estrelas, das estaes do ano, da luz e do crepiisculo do dia, das sombras e dos clares da noite, da clemncia e da inclemncia do tentpo, das nuvens errantes e do azul pro-fundo do espao celeste [...1".' Como muitos achados fundamentais, a distino entre terra e cu pode parecer trivial. Mas sua importncia se revela quando acrescentamos a definio de Heidegger do "habitar": "o modo como voc , eu sou, o modo como os homens so na terra, habitar [...]". Mas "na terra" j traz em si o sentido de "sob o cu"." Heidegger tambm chama de mundo o que fica entre a terra e o cu, e diz que

    "o mundo a casa onde habitam os mortais".'- Em outras palavras, quando homem capaz de habitar, o itrundo se torna um "interior".

    Em geral, a natureza forma ampla e extensa totalidade, um "lugar", que, de acordo cora as circunstncias locais, possui uma identidade peculiar. possvel definir essa identidade, ou "esprito", nos termos concretos, "qualitativos", que Heidegger em-prega para caracterizar o cu e a terra, e devemos partir dessa distino fundamental. Com S.S0, podemos obter uma compreenso existencialmente relevante do conceito de paisagem, que cabe preservar como principal designao dos lugares naturais. Mas a paisagem comporta lugares subordinados e tambm "coisas" naturais, como a "r-vore" de Trakl. O significado do ambiente natural se "condensa" nessas coisas.

    Os elementos do ambiente criado pelo homem so, em primeiro lugar, todos os "assentamentos" de diferentes escalas, das casas s fazendas, das aldeias s cidades, e, em segundo lugar, os "caminhos" que os conectam, alm dos di\'ersos elementos que transformam a natureza em "paisagem cultural". Quando os assentamentos es-to organicamente integrados ao seu ambiente, supe-se que so pontos focais onde a qualidade peculiar do ambiente se condensa e "explica". Heidegger afirma que: "as casas particulares, as aldeias, as cidades so construes que retinem dentro delas e em torno delas esse entre multiforme. As construes trazem a terra, como paisagem habitada, para perto do homem e, ao mesmo tempo, situam a intimidade da vizi-nhana sob a vastido do cu".'^ Logo, a propriedade bsica dos lugares criados pelo homem a concentrao e o cercamento. Os lugares so literalmente "interiores", o que significa dizer que "retinem" o que conhecido. Para cumprir essa funo, os lugares contm aberturas atravs das quais se ligam com o exterior. (A bem dizer, s um interior pode possuir aberturas.) Alm disso, as construes se ligam s suas vizinhanas porque repousam sobre o solo e se elevam para o cu. Finalmente, os ambientes criados pelo homem incluem artefatos ou "coisas" que servem de focos internos e sublinham a funo de reunio do assentamento. Nas palavras de Heideg-ger: "the thing things world" ["a coisa reine o mundo"], onde a palavra "thinging"

    usada em seu sentido original de "reunir", e, mais adiante, ele acrescenta: "Only what conjoins itself out of world becomes a tliing" ["S o que se rene fora do mundo chega a ser coisa"].'*

    Essas observaes introdutrias fornecem vrias pistas sobre a estrutura dos lu-gares. Algumas j foram estudadas pelos filsofos e oferecem um excelente ponto de partida para uma fenomenologia mais completa. Demos um primeiro passo com a dis-tino entre fenmenos naturais e fenmenos fabricados peio homem. U m segundo passo representado pelas categorias terra-cu (horizontal-vertical) e fora-dentro. Estas categorias tm implicaes espaciais, mas o conceito de "espao" reaparece aqui no como uma noo essencialmente matemtica, mas como uma dimenso existen-cial.'" Um ltimo passo especialmente importante dado pelo conceito de "carter". O carter determinado por como as coisas so, e oferece como base de nossa anlise os fenmenos concretos do mundo-da-vida cotidiana. S assim podemos compreender de modo cabal o genius loci, isto , o "esprito do lugar" que os antigos reconheciam como aquele "outro" que os homens precisam aceitar para ser capazes de habitar."* O conceito de genius loci refere-se essncia do lugar.

    A ESTRUTURA DO LUGAR '

    A anlise at aqui realizada sobre o fenmeno do lugar leva-nos a concluir que a estru-tura do lugar deveria ser classificada como "paisagem" e "assentamento" e analisada por categorias como "espao" e "carter". Enquanto "espao" indica a organizao tridimensional dos elementos que formam um lugar, o "carter" denota a "atmosfera" geral que a propriedade mais abrangente de um lugar. Em vez da distino entre espao e carter, podemos partir de um conceito amplo, aomo o de "espao vivido".'" No nosso caso, entretanto, mais prtico distinguir espao de carter. Organizaes espaciais similares podem ter cunhos muito diferentes conforme o tratamento con-creto dos elementos que definem o espao (ou/rwif-ri). A histria das formas es-paciais bsicas j recebeu novas caracterizaes."' Por otitfo lado,4eve-seassiaakT que a organizao espacial impe certos limites a essas interpretaes e-que os dois conceitos - espao e carter - so interdependentes.

    O conceito de "espao" certamente no novo na teoria da arquitetura, mas pode ter muitos significados. A literatura corrente distingue dois usos: o s p a o c^cao geo-metria tridimensional, e espao como campo perceptual." Entretanto, nenhum deles satisfatrio, porque so abstraes a partir da totalidade intuitiva tridimensional da experincia cotidiana, que podemos chamar de "espao concreto". Na realidade, as aes concretas das pessoas no tm lugar num espao isotrpico homogneo, mas ocorrem em um espao que se caracteriza por diferenas qualitativas, como "em cima" e "embaixo". Muitas tentativas j foram feitas na teoria da arquitetura para definir o

  • espao em termos qualitativos concretos. (Siegfried) Giedion distingue "exterior" de "interior" como fundamento de uma concepo grandiosa da histria da arquitetura.-" Kevin Lynch investiga mais a fundo a estrutura do espao concreto, introduzindo os conceitos de "nodo" ("marco"), "baliza", "caminho", "borda" e "distrito" para in-dicar os elementos que embasam a orientao das pessoas no espao.-' E Paolo Por-toghesi define o espao como um "sistema de lugares", o que d a entender que o conceito tem razes em situaes concretas, embora possam ser descritos por mtodos matemticos.-- Esta ltima concepo compatvel com a afirmao de Heidegger de que "os espaos recebem sua essncia dos lugares e no 'do espao'".-' A relao inte-rior-exterior, que um aspecto principal do espao concreto, sugere que os espaos poauciu giaub variados de extenso e cercamento. Enquanto as paisagens se diferen-ciam por terem extenses variveis, mas basicamente contnuas, os assentamentos

    : so entidades muradas entre fronteiras. Portanto, assentamento e paisagem mantm entre si uma relao de figura-fundo. De modo geral, tudo o que fica encerrado se manifesta como "figura" contra o vasto fundo da paisagem. O povoamento perde sua identidade quando tal relao se corrompe, da mesma forma como a paisagem perde

    . sua identidade de ampla extenso. Em um contexto maior, tudo o que fica encerrado se torna lun centro que pode exercer a funo de "foco" para seu entorno. O espao se estende a partir do centro com graus variveis de continuidade (ritmo) e em diferen-tes direes. Naturalmente, as direes principais so a horizontal e a vertical, isto , as direes da terra e do cu. Portanto, centralizao, direo e ritmo so importantes propriedades do espao concreto. Por ltimo, deve-se mencionar que os elementos naturais (como as montanhas) e os assentamentos podem agrupar-se ou formar fei-xes, com graus diversos de pro.Kmidade.

    Todas as propriedades espaciais mencionadas so de natureza "topolgica" e cor-respondem aos famosos "princpios de organizao" da teoria da Gestalt. As pesquisas de Piaget sobre a concepo de espao das crianas confirmam a importncia existen-cial desses princpios.-' Os modos geomtricos de organizao somente se desenvol-vem mais tarde na vida para atender a necessidades especiais e geralmente so vistos como uma definio mais "exala" de estruturas topolgicas bsicas. O cercamento topolgico converte-se ento em crculo, a curva livre

  • 110 caso da tecnologia, que atualmente considerada ura moio banal de satisfazer de-mandas prticas. Contudo, o carter do lugar depende de como as coisas so feitas, e , por isso mesmo, determinado pela realizao tcnica (a "construo"). Heidegger obser\'a que a palavra grega tchiie significava uma "re-velao" criativa {Enthergeii) da verdade e pertencia posis, isto , ao "fazer".-' Uma fenomenologia do lugar deve, ento, abordar os mtodos bsicos de construo e suas relaes com a articulao formal. Somente dessa maneira a teoria da arquitetura poder ter uma base verdadei-ramente concreta. , ; ,

    A estrutura do lugar se expressa em totalidades ambientais que incluem os as-pectos do espao e de seu carter. Esses lugares so chamados de "pases", "regies",

    "paisagens", "assentamentos" e "construes". E isso nos traz de volta a "coisas" con-cretas do mundo-da-vida cotidiana do qual partimos c nos relembra as palavras de Rilke: "Quem sabe no estamos ns aqui para dizer [...)" Assim, ao classificar lugares, deverainos usar palavras como "ilha", "promontrio", "baa", "floresta", "bosque", ou "praa", "rua", "ptio", "cho", "parede", "teto", "telhado", "janela", "porta".

    Por isso, lugares so designados por substantivos e isso implica dizer que os con-sideramos "coisas [reais] que e.^cistem", que o sentido original da palavra "subs-tantivo". O espao, como um sistema de relaes, indicado por preposies. No dia-a-dia, raramente falamos sobre "espaos", mas sobre coisas que esto "acima" ou "abaixo", "antes" ou "atrs" umas das outras, ou usamos preposies como "de",

    "em", "entre", "sob", "sobre", "para" "desde", "com", durante". Todas essas prepo-sies indicam relaes topolgicas do tipo mencionado acima. Por fim, o carter indicado por adjetivos, conforme j dissemos. Um carter uma totalidade complexa e um adjetivo sozinho no pode dar conta de mais de um aspecto dessa totalidade. Muitas vezes, porm, o carter to ntido que uma s palavra suficiente para captar sua essncia. Como se v, a prpria estrutura da linguagem cotidiana confirma a an-lise que fizemos do lugar.

    Pases, regies, paisagens, assentamentos, construes (e seus lugares secund-rios) formam uma srie dotada de uma escala que diminui gradativamente. Designa-mos os degraus nessa escala de "nveis ambientais"."' No "topo" da srie, encontramos os lugares naturais mais abrangentes, que "contem" os lugares criados pelo homem nos nveis "inferiores". Estes possuem a funo de "reunir" e "focalizar" a que.nos referimos acima. Em outras palavras, o homem "recebe" o ambiente e faz convergir para ele as construes e as coisas. Desse modo, as coisas "explicam" o ambiente e evi-denciam o seu carter. Esta a funo bsica do detalhe em nosso ambiente.^' Isso no significa, porm, que os diferentes nveis tenham a mesma estrutura. Alis, a histria da arquitetura mostra que isso raramente acontece. Os assentamentos vernaculares geralmente tm uma organizao topolgica, embora as casas particulares possam ser rigidamente geomtricas. Nas grandes cidades, no difcil encontrar reas orgaiti-

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    zadas de forma topolgica no interior de uma estrutura geomtrica etc. Voltaremos mais adiante a esses problemas especficos de correspondncia estrutural; por ora, preciso dizer algumas palavras a respeito do principal "degrau" na escala de nveis ambientais: a relao entre lugares naturais e lugares criados pelo homem.

    Os lugares construdos pelo homem se relacionam com a natureza de trs formas bsicas. Em primeiro lugar, o homem deseja fazer a estrutura natural mais exata. Isto , ele quer visualizar seu "modo de entender" a natureza, dando "expresso" base de apoio existencial que conquistou. Para tanto, ele constri o que viu: onde a natureza insinua um espao delimitado, constri uma rea fechada; onde a natureza .se mostra

    "centralizada", ele erige um Mal [marco];'- onde a natureza indica urna direo, ele faz um caminho. Em segundo lugar, o homem tem de simbolizar seu modo de entender a natureza (inclusive ele mesmo). A simbolizao implica "traduzir" para outro meio um significado experimentado. Por exemplo, um determinado carter natural tra-duzido em uma construo cujas propriedades de algum modo o exprimem." O ob-jetivo da simbolizao libertar o significado da situao imediata, por meio do que se torna um "objeto cultural", que pode fazer parte de uma situao mais complexa ou transferir-se para outro lugar. Finalmente, o homem precisa reunir os significados aprendidos por experincia a fim de criar para si mesmo uma imago mundi ou um microcosmo, que d concretude a esse mundo. A reunio desses significados depende, claro, da simbolizao e pressupe uma transposio de sentidos para um lugar, que por isso assume o carter de um "centro" existencial.

    Visualizao, simbolizao e reunio so aspectos do processo geral de fixar-se num determinado lugar; e habitar, no sentido existencial da palavra, depende dessas funes. Heidegger ilustra o probleina com a meno ponte, "construo" que visualiza, sim-boliza e liga, e faz do ambiente um todo unificado. Heidegget>escreve o seguinte:

    A ponte se estende lpida e forte sobre o rio. Ela no junta as margens que j existem, as margens que surgem como margens somente porque a ponte cruza o rio. a ponte propriamente dita que faz com que as margens fiquem uma defronte da outra. pela ponte que um lado se ope ao outro. Tampouco as margens correm ao longo do rio como faixas de fronteira indiferentes da terra firme. Com as margens, a ponte leva ao rio as duas extenies de paisagem que se encontram atrs delas. Pe o rio, as margens e a terra numa vizinhana recproca. A ponte junta a terra, como paisagem, em torno do rio.^'' ^ -

    Heidegger tambm descreve o que a ponte junta e assim revela seu valor como sm-bolo. No podemos nos estender aqui sobre esses detalhes, mas eu gostaria de salien-tar que a paisagem como tal obtm seu valor por intermdio da ponte. Antes dela, o significado da paisagem estava "oculto" e a construo da ponte lhe retira o vu.

  • A ponte liga o Ser a uma certa "localizao" que podemos chamar de um "lugar". S que esse lugar no existia como entidade antes da ponte (embora sempre houvesse muitos "stios" ao longo da margem do rio em que o lugar poderia surgir), mas se faz presente com e como ponte.'-' : ; < ,, >,

    O propsito existencial do construir (arquitetura) fazer um stio tornar-se um lugar, isto , revelar os significados presentes de modo latente no ambiente dado.

    A estrutura de um lugar no fixa e eterna. normal que os lugares mudem, s vezes muito rapidamente. Isso no significa, porm, que o genius loci necessariamente mude ou se extravie. Mais adiante veremos que fer lugar pressupe que os lugares conservem suas identidades durante determinado perodo de tempo. Stabilitas loci uma condio necessria para a vida humana. Como ento essa estabilidade com-patvel com a dinmica da mudana? Deve-se assinalar, primeiramente, que qualquer lugar deveria ter a "capacidade" de receber diferentes "contedos", naturalmente den-tro de certos limites.* U m lugar que s prprio para certos fins logo se torna intil. Segundo, bvio que se pode "interpretar" um lugar de diferentes maneira.s. Ka ver-dade, proteger e conservar o genius loci implica concretizar sua essncia em contextos histricos sempre novos. Poderamos dizer tambm que a histria dc um lugar deve-ria ser sua "auto-realizao". O que, a princpio, eram simples possibilidades reve-lado pela ao humana, iluminado e "conservado" em obras de arquitetura que so ao mesmo tempo "velhas e novas".'' Assim sendo, um lugar comporta propriedades que tm um grau varivel de invarincia.

    A concluso geral que o lugar o ponto de partida e o objetivo de nossa investi-gao estrutural; no incio, o lugar se apresenta como um dado, espontaneamente vi-vido como uma totalidade e, ao fim e ao cabo, ele surge como um mundo estruturado, iluminado pela anlise dos aspectos do espao e do carter.

    O ESPRITO DO LUGAR

    Genius loci um conceito romano. Na Roma antiga, acreditava-se que todo ser "inde-pendente" possua um genius, um esprito guardio. Esse esprito d vida s pessoas e aos lugares, acompanha-os do nascimento morte, e determina seu carter ou (;ssn-cia. At os deuses tinham seus genius, o que bem ilustra a natureza fundamental do conceito." O genius denota o que uma coisa , ou o que "ela quer ser", para usar uma expresso de Louis Kahn. No precisamos nos estender aqui na histria do conceito de genius e sua relao com o daimon dos gregos. Basta assinalar que os antigos viviam seu ambiente como constitudo de caracteres definidos. Principalmente, os antigos re-conheciam a suma importncia de entrar em acordo com o genius da localidade onde viviam. Em tempos passados, a sobrevivncia dependia de uma boa relao com o lugar.

    tanto num sentido fsico como psquico. No Egito antigo, por exemplo, o campo era no somente cultivado de acordo com os fluxos e refluxos do rio Nilo, mas a estrutura mesma da paisagem servia de modelo para o traado dos edifcios "pblicos" que de-viam dar uma sensao de segurana por simbolizarem uma ordem ambiental eterna."

    No curso da histria, o genius loci tem se mantido como uma realidade viva, ape-sar de nem sempre ser designado por esse nome. Artistas e escritores buscam inspi-rao no carter local e tendem a "explicar" tenmenos da vida cotidiana e da arte por referncia a paisagens e ao contexto urbano. Goethe, por exemplo, afirmoi: " claro que o olho educado pelas coisas que v desde a infncia e, por isso, os pin-tores venezianos enxergam tudo com mais clareza e alegria do que outros povos".* Em 1960, Lawrence Durrell escreveu: " medida que voc vai conhecendo a Europa, saboreando lentamente seus vinhos, queijos e as qualidades peculiares dos diferentes pases, comea a perceber que o determinante mais importante de qualquer cultura , no fim de tudo, o esprito do lugar".'" O turismo moderno cotnprova que as pessoas tm grande interesse pela experincia de diferentes lugares, embora, ao que parece, esse tambm seja um dos valores em declnio nos dias de hoje. O fato que, durante muito tempo, o homem moderno imaginou que a cincia e a tecnologia haviam-no libertado da dependncia direta dos lugares.'- Mas essa crena logo se revelou ilusria

    - de repente, surgiram, como tenebrosa nmesis, a poluio e o caos ambiental, devol-vendo ao problema do espao sua verdadeira relevncia. , ,}>...

    Usamos a palavra "habitar" para nos referirmos s relaes entre o homem e o lugar. Para entender melhor o que esta ltima palavra significa, vale a pena retomar a distino entre "espao" e "carter". Quando o homem habita, est simultaneamente localizado no espao e e.xposto a um determinado carter ambiental. Denominarei de "orientao" e "identificao" as duas funes psicolgias implicadas nessa con-dio.*' Para conquistar uma base de apoio existencial, o homem deve ser capaz de orientar-sc, de saber onde est. Mas ele tambm tem de identificar-se com o ambiente, isto , tem de saber como est em determinado lugar.

    O problema da orientao tem recebido considervel ateno por parte da lite-ratura terica recente sobre planejamento e arquitetura. Devemos citar novamente a obra de Kevin Lynch, cujos conceitos de "nodo", "caminho" e "distrito" indicam as estruturas espaciais bsicas que so objetos da orientao das pessoas. A percepo de uma inter-relao entre esses elementos forma uma "imagem ambiental", sobre a qual Lynch afirma: "Ter uma boa imagem ambiental confere ao indivduo uma importante sensao de segurana emocional"." Assim, todas as culturas criaram "sistemas de orientao", ou seja, estruturas espaciais que facilitam o desenvolvimento de uma boa imagem ambiental. "O mundo pode organizar-se em torno de um conjunto de pontos focais, ou fragmentar-se em regies indicadas por nomes prprios, ou articular-se por caminhos fixados na l embrana" .Esses caminhos geralmente se baseiam ou derivam

  • de uma dada estrutura natural. Quando o sistema frgil, a pessoa tem dificuldade de formar aquela imagem e se sente "perdida". "O medo de se perder decorre da ne-cessidade caracterstica do organismo vivo de orientar-se em seu entorno."*' Eviden-temente, estar perdido justo o oposto do sentimento de segurana que distingue o habitar. A qualidade ambiental que protege o ser humano de perder-se denominada por Lynch de "imagibilidade", que designa "aquela forma, cor ou organizao que facilita a formao de imagens mentais vividamente identificadas, fortemente estru-turadas e de grande utilidade do ambiente".*" O que Lynch pretende acentuar que os elementos componentes da estrutura espacial so "coisas" concretas, dotadas de

    "carter" e de "significado". Mas Lynch se limita a analisar a funo espacial desses elementos e, por conseguinte, nos lega um entendimento fragmentrio do habitar.

    Mesmo assim, a anlise de Lynch uma contribuio essencial para a teoria do lugar. A importncia de seu livro decorre ainda do fato de seus estudos empricos sobre a estrutura urbana concreta confirmarem os "princpios gerais de organizao" da percepo, definidos pela psicologia da Gestalt e pelas pesquisas sobre psicologia infantil de (Jean) Piaget.*'

    No querendo reduzir a importncia da orientao, preciso ressaltar que habi-tar pressupe, antes de tudo, uma identificao com o ambiente. Embora orientao e identificao sejam aspectos de uma relao total, esses fatores mantm certa in-dependncia no interior da mesma totalidade. Sem dvida, uma pessoa capaz de orientar-se bem sem se sentir profundamente identificada; ela se safa sem sentir-se

    "em casa". E possvel sentir-se "em casa" sem conhecer a fundo a estrutura espacial do lugar, isto , o lugar percebido por ter um carter genericamente agradvel. O sentimento profundo de ser do lugar pressupe que as duas funes psicolgicas este-jam plenamente desenvolvidas. Nas sociedades primitivas, at os menores detalhes do meio so conhecidos e significativos, constituindo estruturas espaciais comple-xas.*^ As sociedades modernas, porm, concentram toda a ateno quase exclusivamente na fiino "prtica" de orientao, enquanto a identificao deixada ao acaso. Em con-sequncia disso, a alienao tomou o lugar do verdadeiro habitar, no sentido psicol-gico. Existe, portanto, uma urgente necessidade de compreender melhor os conceitos de "identificao" e de "carter".

    "Identificao" significa, para os fins destaanlise, ter uma relao "amistosa" com determinado ambiente. O homem nrdico tem de se relacionar bem com o nevoeiro, a neve e os ventos gelados; tem de gostar do rudo da neve rangendo sob seus ps quando sai para passear, tem de sentir a poesia de estar envolto pelo nevoeiro, como Herman Hesse, que escreveu: "estranho, caminhar no nevoeiro! Solitrio cada ar-busto e pedra, uma rvore no enxerga a outra, todas as coisas esto ss f...]". O rabe, por sua vez, tem de ser amigo da infinita imensido do deserto de areia e do sol escaldante. Isso no quer dizer que seus assentamentos no devam proteg-lo contra

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    Y

    as "foras" da natureza: um assentamento humano no deserto visa principalmente excluir a areia e o sol. O que queremos dizer que o ambiente vivido como portador de um significado. [Otto Friedrich) BoUnow escreveu com bastante propriedade que, "lede Stimmung ist Obereinstimmung", isto , todo carter consiste em uma corres-pondncia entre o mundo externo e o mundo interno, entre corpo e alma.'' No caso do homem urbano moderno, a relao amistosa com um ambiente natural limita-se a relaes fragmentrias. Em vez disso, ele tem de identificar-se com coisas fabrica-das pelo homem, como ruas e casas. O arquiteto norte-americano de origem alem, Gerhard Kallman, certa vez contou uma histria que ilustra bem essa situao. Ao vi-sitar sua cidade natal, Beriira, no final da Segunda Guerra Mundial, depois de muitos anos de ausncia, ele quis rever a casa em que crescera. Como era de esperar, tratando-se de Berlim, a casa tinha desaparecido, e Kallman se sentiu um pouco perdido. De re-pente, ele reconheceu o desenho tpico das caladas: o cho em que brincava quando criana! E teve a forte sensao de, enfim, voltar para casa.

    Essa histria nos mostra que os objetos de identificao so propriedades con-cretas do ambiente e que as pessoas geralmente desenvolvem relaes com elas du-rante a infncia. A criana cresce em espaos verdes, marrons ou brancos; passeia ou brinca na areia, na terra, na pedra ou no mu.sgo, sob um cu nublado ou sereno; agarra e levanta coisas duras e macias; ouve rudos, como o som do vento balanando as folhas de uma certa espcie de rvore; tem experincias do calor e do frio. assim que a criana toma conhecimento do ambiente e elabora esquemas perceptuais que determinam todas as suas ftituras experincias.'- Os sistemas perceptuais se compem de estruturas universais, inter-humanas, e tambm de estruturas condicionadas pela cuhura e determinadas pelo lugar. evidente que todo ser humano precisa possuir tanto sistemas mentais de orientao como de identificao.'

    A identidade de uma pessoa se define em funo dos sistemas de pensamento de-senvolvidos, porque so eles que determinam o "mundo" acessvel. Esse fato con-firmado pelo uso corrente da linguagem. Quando uma pessoa quer declarar quem , geralmente diz: "Sou nova-iorquino" ou "Sou romano". Isso tem um significado bem mais concreto do que dizer: "Sou arquiteto" ou, ento, "Sou um otimista". Ns enten-demos que a identidade das pessoas , em boa medida, uma funo dos lugares e das coisas. Heidegger disse: "Wir sind die Be-Dingen"Por isso, importante no s que nossa ambincia possua uma estrutura espacial que facilite a orientao, mas tambm que esta seja constituda de objetos concretos de identificao. A identidade humana pressupe a identidade do lugar.

    Identificao e orientao so aspectos essenciais do estar-no-mundo do homem. Enquanto a identificao a base do sentimento de pertencer, a orientao a fun-o que o torna capaz de ser aquele homo viator [homem peregrino] que faz parte de sua natureza. Caracteristicamente, o homem moderno, por muito tempo, deu ao

  • peregrino um papel de honra. Ele desejou ser "livre" e conquistar o mundo. Hoje comeamos a compreender que a verdadeira liberdade pressupe um sentimento de pertencer e que "habitar" significa pertencer a um lugar concreto.

    A palavra "habitar" tem muitas conotaes que confirmam e iluminam nossa tese. Em ingls, a palavra dwell [habitar] deriva do noruegus antigo dvelja, que significa residir ou permanecer. De modo anlogo, Heidegger relacionou o alemo "wohnen" [morar, residir] a bleiben (permanecer] e skh mtjlialten [deter-se, ficar].^* O filsofo assinala que o gtico wuniaii significava "estar satisfeito", "estar em paz". A palavra em alemo para "paz", Friede, significa ser livre, isto , protegido do perigo e das ame-aas. Es.sa proteo obtida por um Umfriediaig. ou confinamento. Friede tambm se relaciona com zufrieden (contedo), Freund (amigo) e o gtico frijn (amor). Hei-degger usa essas relaes linguisticas para mostrar que habitar significa estar em paz num higar protegido. Acrescente-se que a palavra em alemo para habitar, Wobmmg, vem de das Gewohnte, o que conhecido ou habitual. As palavras "hbito" e "habitat" revelam uma relao anloga. Isto , o homem sabe ao que tem acesso por meio da morada. Com isso, voltamos ao Obereinstimmung ou a correspondncia entre o ho-mem e seu ambiente, e tocamos ento na raiz do problema do ato dc "reunir". Reunir significa que o mundo-da-vida se tornou gewohnt ou "habitual". Mas reunir um fenmeno concreto e isso nos conduz conotao final do "habitar". Mais uma vez Heidegger quem desvenda a relao fundamental, quando assinala que a palavra

    "construir" no ingls antigo e no alto alemo equivalente, buan, significava morar e estreitamente relacionada com o verbo ser. "Ento, o que significa ich bin [eu sou]? A antiga palavra bauen, com a qual tem a ver bin, responde: ich bin, du bist, quer dizer: eu habito, tu habitas. O modo como tu es e eu sou, a maneira pela qual ns, os seres humanos, somos na terra buan, o habitar.""'' Pode-se concluir que habitar significa reunir, juntar, o mundo como uma construo concreta, ou uma "coisa", e que o ato arquetpico de construir o Umfriedungou confinamento. A intuio potica de Trakl sobre a relao fora-dentro confirma isso e nos faz entender que o conceito de concretizao denota a essncia do habitar."^

    O homem habita quando capaz de concretizar o mundo em construes e coisas. J dissemos que a "concretizao" a funo da obra dc arte em oposio "abstra-o" da cincia.'" As obras de arte concretizam o que fica "entre" os puros objetos da cincia. Nosso mundo-da-vida cotidiana consse nesses objetos "intermedirios", e compreendemos que a funo essencial da arte reunir as contradies e complexi-dades do mundo-da-vida. Sendo uma imago mundi, a obra de arte ajuda o homem a habitar. [Friedrich] Hlderlin estava certo quando disse:

    Cheio de mrito, mas poeticamente, o homem Habita nesta terra."

    Esses versos dizem que os mritos do homem no contam muito se ele incapaz de habitar poeticamente, isto , de habitar no verdadeiro sentido da palavra. Heidegger afirma o seguinte: "A poesia no voa acima e sobrepuja a terra a fim de escapar dela e de pairar sobre ela. A poesia o que primeiro traz o homem para a terra, fazendo-o pertencer a ela, e as.sim trazendo-o morada".'" Somente a poesia, em todas as suas formas (e tambm a "arte de viver") d sentido vida humana, e o significado a ne-cessidade humana fundamental. '

    A arquitetura pertence poesia, e seu propsito ajudar o homem a habitar. Mas uma arte difcil. Fazer construes e cidades concretas no suficiente. A arquitetura c n m c n a existir quando "faz visvel lodo um ambiente", para citar uma definio Je Su-zanne Langer.^ Isso significa concretizar o genius loci. Vimos que isso acontece por meio de construes que renem as propriedades do lugar e as aproximam do homem. Logo, o ato fundamental da arquitetura compreender a "vocao" do lugar. Dessa maneira, pro-tegemos a terra e nos tornamos parte de uma totalidade compreensvel. O que se defende aqui no uma espcie de "determinismo ambiental". Apenas reconhecemos o fato de que o homem parte integral do ambiente e que ele somente contribui para a alienao e ruptura do ambiente quando se esquece disso. Pertencer a um lugar quer dizer ter uma base de apoio existencial em um sentido cotidiano concreto. Quando Deus disse a Ado:

    "Sers um fiigitivo e um peregrino na Terra","' ps o homem frente a frente com seu pro-blema fundamental: atravessar a soleira e reconquistar o lugar perdido.

    ["The Phenomenon of Place" foi extrado de Architectural Association Quarterly 8, n. 4,

    1976: pp. 3-10. Cortesia do autor e da editora.] . , / i s ! - ' . .a-.;;*!,:-. i 'i ;

    . ; i .

    t .R.M. Rilke, The DuinoHeges, I X Elegy. Nova York: i97i. ' 2.0 conceito de "mundo-da-vida cotidiana" foi criado por Husserl em The Crisis ofEuropean Scien- '

    ces and Tramcendemal Phenametiology, 1936. 3. Martin Heidegger, "Bauen Wohnen Denken"; Bollnow, "Mensch und Raum"; Merleau-Pont>',

    "Phenomenolog)' of Perception"; Bachelard, "Poetics of Space"; tambm L. Kruse, Rinmicbe Um-

    welt. Berlim; 1974. 4. Heidegger, "Language", in Albert Hofstadter (org.l, Poetry, Lariguage, Thought. Nova York; 1971.

    5. Traduo de Liliane Stahl. Ein Winterabend *' - > Wenn der Sdinee ans Fenster fllt, ' Lang die Abendglocke luter, ' - ' Vielen ist der Tisch bereitet v ' ' Und das Haus ist wohlbestellt. ' " ' Manchcr auf der Wanderschaft , .. , Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden.

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  • Golden bliiht der Baum der Gnaden . . , Aus der Erde kuhlem Saft.j Wanderer tritt wiU lierein;

    Schmerz versteinerte die Schivclle. ' " ' Da erglnzt in reiner Helle ^ ' " ' ; > -Auf dem Tische Brot und Wsir^ ^ ' '

    6. Heidegger,op.dt,p. 1^ 9. ^ , , / , . , . . 7. Id. ibid., p. 204. , , 1 t i ,

    8. Christian Norberg-Schulz, "Symbolization", em Imentiom iit Arhitecture. Oslo e Londres: 1963. ; i : 9. Ver, porexemplo, J. .Appleton, Tlie Experience ofLandscape. Londres: 1975. . ^ 10. Heidegger, op.cit.,p. 149. , , ,,1 , ... , , '

    * r i " - - " , ^ 12. Heidegger, Hefre/ctTHiujfreuii/. Pfullingen: 1957, p. 13. ' 13. Id. ibid., p. 13. 14. Heidegger, op. cit., pp. 181-81.

    15. Norberg-Schulz, Bxistence, Space and Architecture. Londres e Nova York: 1971, onde adoto o con-ceito dc "espao existencial".

    16. Heidegger chama a ateno para a relao entre as palavras gegen (contra, contrrio) e Gegenii (ambiente, localidade).

    17. Foi o que fizeram alguns autores, entre os quais K. Graf von Diirckheim, E. Straus e O. F. BoU-now.

    18. Conipare-se com a distino de Alberti entre "beleza" e "ornamento". 19. Norberg-Schulz, op. cit., 1971, p. uss. ' i >' - t r ' ?

    20. S. Giedion, The Eternal Present: The Beginnings of Architecture. Londres; 1964-

    21. K. L>Tich, T/ie fmigo/r/ieCt)'. Cambridge: 1960. " 22. P. Portoghesi, LeInibizionideWArchitettura Moderna. Bari: 1975, pp. 88ss- '*;'.> .1, 23. Heidegger, op. cit., p. 18. 24. Norberg-Schulz, op. cit., 1971, p. 18. ' 25. Heidegger. op. cit., p. 154. "Presena a velha palavra para o ser." -., / , , ,i.a %f .suRJl M -S i 26. O. F. BoUnow, Das Wsen der Stimmungen. Franfurt am Mein; 1956. 27. Robert Venturi, Complexity and Contradiaion in .Arciiitectwe. Nova York; 1967, p. 88. 28. Id. ibid., p. 89. r

    29. Heidegger, "Die Frage nach der Technik", in Vortrge und Aufitze Pfullingen. 1954, p. 12. 30. Norberg-Schulz, op. cit., 1971, p. 27. 31. Id. ibid., p. 32.

    32. D. Frey, Grundlegung zu einer vergleichenden Kunstwissenschaft. Viena c Innsbruck: 1949, 33. Norberg-Schulz, op. cit., 1963. / , 34. Heidegger, op. cit., p. 152,1971.

    35. W. f. Richardson, Heidegger, Through Phenomenology to Thought. The Hague; 1974, p. 585.

    36. Para o conceito de "capacidade", ver Norberg-Schulz, op. cit, 1963. , 37. Venturi, op. cit.

    38. Paulys, Realencychpedie der Klassischen Alterumwissenschaft vii, I, coL, 1155SS. 39. Norberg-Schulz, Meaning in Western Architecture. Londres e Nova York; 1975, pp. 8oss. 40. Goethe, Italienische Reise 8, out. 1786.

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    o m o-a *^ c

    o.

    41. L. Durrell, Sprf of Place (Londres, 1969), p. 156-42. Ver M. M. Weber, Explorations into Urban Structure (Filadlfia; 1963), que fala de "uma esfera

    urbana sem lugares". 43. Norberg-Schulz, op. jit., 1963, em que utilizo os conceitos de "orientao cognitiva" e "orienta-

    o catctica". 44. Lynch, op. cit., p. 4. 45. Id. ibid., p. 7. 46. Id. ibid., p 125- ' ' ' " ' ' ' ' 47. Id. ibid., p. 9. 48. Para uma exposio mais detalhada, ver Norberg-Schulz, op. cit., 1971. 49. A. Rapoport, "Australian Aborigines and the Definition of Place", in P. Oliver (org.), Shelter, Sign,

    ytnbol. Londres; 50. Seltsam, im Nebet zu wandern! Einsam ist jedcr Busch und Sein, kein Baum sicht den anderen,

    jeder ist allein. 51. BoUnow, op. cit-, p. 39. 52. Norberg-Schulz, op. cit., 1963, PP- 4iss. 53. Heidegger, op. cit., 1971, p. 181. "Ns somos os 'coisificados'", os condicionados. 54. Heidegger, "Building Dwelling Thinking", in op. cit., 1971,146SS. - ^

    55. Id. ibid., p. 147- ' ' ' 56. Norberg-Schulz, op. cit-, 1963, p.iss, 68. , . . 57. Id. ibid., p. 168SS. . - , ' ,

    58. Full of merits, yet poetically, man ^ }^,Js,ih 1 Dwells on this earth. _ ?. , 59. Heidegger, op. cit., 1971, p. 2)8. , _ , . _ , i-60. S. Langer, Feeling and Form. Nova York; 1953. 61. Cdesii', cap. 4, versculo 2. ' ' "'

    CHRISTIAN NORBERG-SCHULZ . O PENSAMENTO DE HEIDEGGER SOBRE

    ARQUITETURA

    Esta lcida explicao de "O pensamento de Heidegger sobre arquitetura" c o n t m uma anlise linguistica de vrios escritos do fi lsofo, seguindo o interesse do prprio Heidegger pela etimologia das palavras de uso corrente. Em resumo, o ensaio desen-volve a crtica de Norberg-Schulz arquitetura moderna, que ele considera a origem de uma crise de significado por ter criado um ambiente diagramtico e funcionaiista

    . 1 que no favorece o habitar. Referindo-se a um "nsonsento de confuso e crise", Nor-berg-Schulz reconhece que o problema do significado na arquitetura foi abordado por outros autores e que alguns partiram da semiologia (estudando a arquitetura como sistema de signos convencionais), m t o d o que lhe parece inadequado para explicara disciplina. Ele prope como alternativa para compreender a arquitetura a leitura da fenomenologia heideggeriana.

    Norberg-Schulz afirma que o propsi to da arquitetura fornecer um "ponto de apoio existencial" que propicie uma "or ien tao" no espao e uma " ident i f icao" com o carter

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