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Os Fidalgos da Torre Sarah BeirÆo ROMANCE PORTO EDITORA, LDA. - Rua da F brica, 90-pORTO EMP. LITERµRIA FLUMINENSE, LDA.-Rua da Madalena, 145- LISBOA LIvRARIA ARNAlDO, LDA. - Rua de JoÆo Machado, 9 - COIMBrA Obras de SARAH BEIRÇO: SERåES DA BEIRA - 3.a edi€ÆO (COntOS) CENAS PORTUGUESAS v AMoREs No CAMPo - 7.a edi‡Æo (romance) OS FIDALGOS DA ToRRE - 5.a edi‡Æo ii

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Os Fidalgos da Torre

Sarah BeirÆo

ROMANCE

PORTO EDITORA, LDA. - Rua da F brica, 90-pORTO

EMP. LITERµRIA FLUMINENSE, LDA.-Rua da Madalena, 145-LISBOA

LIvRARIA ARNAlDO, LDA. - Rua de JoÆo Machado, 9 - COIMBrA

Obras de SARAH BEIRÇO:

SERåES DA BEIRA - 3.a edi€ÆO (COntOS)

CENAS PORTUGUESAS v

AMoREs No CAMPo - 7.a edi‡Æo (romance)

OS FIDALGOS DA ToRRE - 5.a edi‡Æo ii

SOLAR DA BOAVISTA - 4.a ediۮO >

S•zINhA - 3.a edi‡Æo

SURPRESA BENDITA - 4.a edi‡Æo

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ALvoRADA - 3.a edi‡Æo

PROMETIDA

UM DIVàRCIO

TRIunfo - 2.a edi‡Æo

DESTINOS

A BIrrA

I

NÆo tem pretensäes liter rias o que ides ler. Apontamentos ligeiros de casos que observei, de vidas que decorreram com todos os cambiantes que os acontecimentos imprimem ao figurino moral de cada um.

Gente da Beira, de alma antiga, alguns que a voragem do tempo arrebatou h muito, outros que vivem ainda, sadios, vigorosos, que verÆo nestas p ginas a sua hist¢ria.

Ao reconhecerem-se, talvez nÆo gostem. Digo pouco do muito que merecem.

Que me perdoem; tive apenas o intuito de deixar por escrito, para que os nÆo esque‡am, gestos que foram exemplos edificant¡ssimos, que podem aproveitar aos vindouros.

NÆo vÆo os tempos de molde para rasgos filantr¢picos - dizem -, pois, apesar disso, repetem-se bastas vezes na prov¡ncia onde se passou o que vou contar.

Ali vivia uma modesta fam¡lia muito considerada por todas as pessoas do s¡tio.

NÆo eram pobres. Tinham boas fazendas, onde o Francisco Moreira moirejava de sol a

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sol, para que … mulher e aos filhos nÆo faltasse

a aben‡oada fartura do que a terra dava.

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A companheira auxiliava-o o mais poss¡vel, governando a casa e fazendo milagres de economia.

Tinham um grande rebanho de ovelhas, a fonte mais abundante para o equil¡brio das finan‡as. A activa Ana fazia os queijos, os requeijäes, fiava a lÆ, ajudada pela mo‡a, e tecia ela pr¢_ pria a sarago‡a para o fato do homem e dos

dois filhos. Ainda a mesma teia dava a saia e a roupinha da soldada da serva e uma andaina para o mo‡o que lidava com os bois.

Viviam com muita decˆncia e abastan‡a. Nunca a Ana Moreira p“s um cƒntaro … cabe‡a, nem cesta, fosse do que fosse.

Possu¡am uma vasta propriedade - as Fragas - que, no decorrer dos anos e inesperados acontecimentos, se transformou numa autˆntica maravilha, visitada e admirada por quantos vinham … linda aldeia da Murta.

Era ali que o Francisco Moreira passava os dias a cavar, a cavar, desde o romper de alva at‚ noite cerrada.

Para l , ia bem vestido e bem cal‡ado. Uma vez na quinta, metia apressado para a casita onde guardavam as ferramentas e onde se acoitavam da chuva, tirava os sapatos, enfiava os p‚s nuns velhos tamancos e substitu¡a o fato

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por outro muito esfrangalhado em que a terra imprimira p£stulas de mau car cter, que nÆo desapareciam nem com gua a ferver e sabÆo.

O criado nÆo parava tamb‚m, ora agarrado … rabi‡a, enquanto o amo dobrava a leiva onde o arado nÆo chegava, ora noutra faina para bem amanhar o campo.

O almo‡o trazia-o a rapariga, sempre a horas, sempre apetitoso.

A senhora Aninhas caprichava em ser a primeira a despachar o quartel, nÆo fosse bater o meio-dia na torre sem a cachopa ter chegado ao seu destino.

Os dois pequenos, apenas com um ano de diferen‡a, andavam muito arranjadinhos, muito limpos, mas sem luxo, bem entendido.

Eram aplicados e inteligentes.

O professor, desde que eles entraram para a escola, nÆo fazia senÆo gab -los.

- Os teus rapazes hÆo-de ir longe, Francisco; deves mand -los seguir os estudos.

- Aonde havia de ir buscar o necess rio para isso, senhor Martins?

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"Bem sabe que tenho pÆo para comerem, e tudo que d a terra, gra‡as a Deus, mas a respeito de cobres... nem um real.

"Se o bra‡o me cansa, nÆo sei que ser . Sem o arranjo da mÆe - a minha Ana ‚ uma abelha-mestra -, nÆo nos pod¡amos governar. Talvez at‚ houvesse fome l em casa.

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- Cessa com as lam£rias, homem, que nÆo te posso valer.

- As terras nÆo dÆo nada, ‚ uma mis‚ria.

- Deixa ir os rapazes para a frente, que nÆo te arrepender s.

- E logo dois ! Nem vendendo tudo quanto temos poderia formar um, senhor professor...

- NÆo pintes o quadro tÆo negro. Manda-me o mais velho para Coimbra, em passando o exame.

Na tarde em que teve lugar esta conversa, o Moreira veio para casa apreensivo. NÆo conversou como era costume. Encostou-se … mesa, cismador.

A Ana observava-o, alarmada; metia conversa sem conseguir arranc -lo … sua absorvente preocupa‡Æo.

Vendo que nada adiantava desta forma, resolveu atac -lo directamente.

- Que tens tu, Francisco? Aconteceu-te alguma desgra‡a?

- NÆo, mas tenho a cabe‡a em gua de tanto pensar; nÆo sei que tratos hei-de dar … vida.

- Credo! EntÆo s¢ agora ‚ que a vida te d pena, depois de tantos anos de casado?

- � que venho de casa do senhor professor...

- E da¡? Os pequenos vÆo mal? - interrogou a pobre mulher, aflita.

- L isso nÆo; diz que nÆo podem ir melhor.

- EntÆo?

- Que sÆo tÆo inteligentes... que...

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- Ah! Francisco... louvado seja o Senhor...

E a boa Ana, entusiasmada, passou os bra‡os … volta do pesco‡o do homem, numa expansÆo de transbordante alegria.

- O pior - disse o Francisco, deixando-se inebriar pelo contentamento da consorte - ‚ que o senhor Martins quer que eles continuem os estudos, que sigam carreira, e onde vamos n¢s buscar com que formar dois rapazes?

A Ana caiu na dolorosa realidade.

- Tens razÆo, nÆo pode ser... - concordou, desolada.

- Diz ele que form ssemos um e o outro que podia ir para o com‚rcio e auxiliar o irmÆo.

"Deus me livre de tal. Ou ambos ou nenhum.

"TÆo bom ‚ o Manuel como o Crist¢vÆo, como havia de ajudar um a subir a grandes alturas deixando o outro em baixo?

"NÆo quero nem era poss¡vel.

"Por que razÆo havia de ser um doutor e o outro ficar para a¡ amarrado … terra, agarrado … enxada, toda a vida, como eu, farto de pÆo, mas amassado com o suor do seu rosto, as mÆos cheias de calos, como as minhas, que o outro se envergonharia de apertar?

"Tanta canseira, de sol a sol, para ser abastecido de couves e batatas, sempre sem dinheiro, como os pobres de Cristo!

"NÆo, Ana, nunca consentirei nessa desigualdade. SÆo os filhos da minha alma, os filhos do

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nosso amor, a quem quero como se fosse um s¢; nÆo tenho ƒnimo para fazer excep‡äes.

- EntÆo que resolves?

- FicarÆo para a¡, como o pai e como o av“, mas sem que os distinga. Para serem felizes, nÆo ‚ for‡oso estudarem.

"A mim tamb‚m ningu‚m me mandou para a Universidade e gra‡as a Deus nunca faltou a paz nesta casa.

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"Vou falar com o senhor Martins, e digo-lhe isto mesmo - afirmou decidido, erguendo-se.

- Que pena! - dise a Ana, como quem fala consigo.

Nisto abre-se a porta do quarto dos pequenos e aparece o Manuel.

Tinha doze anos feitos e a gravidade de um adulto.

- Pai, ouvi a sua conversa e quero agradecer-lhe.

"Podia escolher um de n¢s, era a sua vontade, nÆo t¡nhamos mais que cumprir as suas ordens.

"Mas eu nÆo gostaria que mais tarde se arrependesse de nÆo ter formado um dos seus filhos.

"Venho pedir-lhe que mande o Crist¢vÆo estudar. � mais fraco, nÆo pode trabalhar como eu.

A mÆe abra‡ou-se a ele, a chorar.

- Meu rico filho!

O pai, puxando-o a si, beijou-o, sem dizer uma palavra.

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Uma l grima indiscreta denunciou a sua como‡Æo:

- Se o pai me der licen‡a - continuou o Manuel, muito ufano do seu rasgo -, embarco para a µfrica e ganharei para ajudar os estudos de meu irmÆo.

- Isso nÆo - protestou a mÆe. - Antes sem sabedoria, que eu separar-me deles, Francisco.

- Olha, filho - disse o pai, ainda sob a influˆncia da mais profunda emo‡Æo -, eu sabia que tinha criado quem me honrasse a mem¢ria, mas nunca julguei que os vossos sentimentos fossem tÆo nobres.

"Estou certo que teu irmÆo nÆo aceitar esse oferecimento e o meu dever ‚ recus -lo tamb‚m.

" �s muito menino para ires ganhar a vida; morrerias antes de teres realizado o teu desejo.

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- NÆo, pai, a minha vontade ‚ firme; h muito que tenho este pensamento. Basta-me uma carta de recomenda‡Æo para o senhor conde da Torre, e ver como tudo consigo.

- Filhinho, meu amor! - murmurava a Ana, desvanecida com o procedimento do pequeno e aterrada com a perspectiva de uma pr¢xima separa‡Æo.

Foi nesta altura que apareceu o Crist¢vÆo.

Ficou espantado com aquele concili bulo em que todos lhe pareceram comovidos.

- Anda c - disse-lhe o pai. E exp“s-lhe pormenorizadamente as inten‡äes do irmÆo.

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O Crist¢vÆo olhou-o, surpreendido, e, como se de repente a crian‡a de onze anos se transformasse na mais ponderada criatura, num impulso irresist¡vel atirou-se aos bra‡os do Manuel, as l grimas a correrem-lhe em fio.

- NÆo, nÆo consinto que v s trabalhar para mim.

"Eu vou contigo, nÆo quero estudar mais.

O pai tomou a palavra e produziu uma arenga memor vel.

Nem ele presumia sequer da orat¢ria de que dispunha.

- Filhos, nunca vos escondi as dificuldades da vida. Sabeis tÆo bem como eu os meios de que dispomos. S¢ trabalhando muito tenho podido governar o barco sem dar … costa.

"Mandei-vos para a escola e vejo com a maior satisfa‡Æo que fostes muito al‚m do que eu esperava.

" � o senhor professor que, vendo a vossa aplica‡Æo, tem o maior empenho em vos ver seguir uma carreira bonita.

"Como nÆo possu¡mos recursos para estudarem ambos, e eu nÆo tenho ƒnimo para injusti‡as, ficareis como o vosso pai a amanhar honradamente a terra que d o pÆo.

"Com sa£de, todos seremos felizes.

A cena terminou sem que o Manuel pronunciasse mais uma palavra.

O Crist¢vÆo abra‡ou-se a ele como que a

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pedir-lhe conselho e amparo. Queria ler-lhe na alma o que os l bios se obstinavam em calar.

A Ana retomou a lida da casa com maior afÆ, a pensar na beleza moral das duas crian‡as a quem dera o ser.

Þntimamente, fazia projectos.

Sorria-lhe a ideia de ter um filho doutor.

Mas o outro?

Logo o horizonte da sua felicidade se entenebrecia ao ver o Manuel a moirejar para ajudar o irmÆo a subir.

Antes ali, todos juntos, que vˆ-los partir, poss �velmente para sempre.

A ruminar no mesmo assunto, o Francisco abalou para a fazenda mais preocupado que nunca.

Nesse dia, nas Fragas, a enxada erguia-se-lhe nas mÆos como um brinquedo, faiscando ao sol r£tilo, dobrando a leiva pesada, sem o fatigar.

NÆo via o que fazia.

Estava contente e triste.Se cavando, cavando sem fim, com aquele vigor enorme que sentia, com aquela for‡a que o dominava, pudesse mandar os filhos para Coimbra...

Mas logo, olhando o torrÆo ingrato, voltava a amarfanh -lo a d£vida.

A terra nÆo dava nada...

Os sal rios caros... se metesse gente ficaria a pedir.

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Depois o milho rendia pouco e nÆo havia quem o comprasse.

Frutas... apodreciam para l , se as nÆo davam...

Hortali‡as... se iam ao mercado, tinham de as vender por tuta-e-meia, para nÆo voltarem para casa.

Havia mais quem vendesse que quem comprasse...

Que vida, que vida!...

Antes os rapazes sa¡ssem burros, que nÆo

teria pena de os deixar para ali a fossar nos campos, como ele, por toda a vida.

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O criado estava at¢nito. Em todo o santo dia -o amo nÆo lhe disse uma palavra! Parecia outro! ...

Quando a mo‡a trouxe o quartel, abeirou-se dela … socapa para a interrogar.

- à Rita, que houve l por casa?

"O patrÆo anda assombrado.

"Ainda hoje me nÆo deu fala.

- Se houve, nanja que eu desse f‚. Mas nÆo te v s sem resposta, que a senhora Aninhas tamb‚m parece que viu bruxa! ·s vezes topo-a a rir sozinha... e da¡ a nada vejo-a com as l grimas a bailarem-lhe nos olhos e ela a disfar‡ar limpa-as sorrateiramente com a ponta do avental...

"Ali h coisa. Olha que eu sou mais fina do que pensam... nÆo me comem as papas na cabe‡a sem eu dar por ela.

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- Que diabo seria aquilo?

O Francisco chegou, amesendou-se no banco tosco, enquanto a criada estendia a toalha de estopa morena, ainda por curar.

- Deita-me pouco caldo.

- Homessa agora! A panela vem cheia, chega bem. Vossemecˆ est com fastio?

- NÆo me apetece.

-Andar a chocar algumas maleitas? J -por a¡ ca¡ram … cama uns poucos com elas.

"Tenha cuidado com as soalheiras das can¡culas.

O patrÆo mexia e remexia as ber‡as, sem dar resposta.

- Vossemecˆ est doente?

"Quer que v chamar a senhora Aninhas?

- Cala-te, rapariga; a doen‡a que eu tenho nÆo se cura com rem‚dios da botica.

- Abren£ncio! EntÆo nÆo havera de curar? !

"E se eu lhe fizesse um ch…zinho de limonete?

- NÆo; deixa-me em paz.

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- Se calhar deitaram-lhe algum quebranto.

"H tanto mal de inveja neste mundo! NÆo fazem senÆo reparo no bom viver de cada um...

O Francisco pouco entrou no caldo e nem tocou no conduto.

Ergueu-se e foi sentar-se ao fundo da latada que ia dar ao po‡o.

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Os dois servos, ao verem a atitude desusada do amo, ficaram pasmados!

- Que dianho ter ele? - interrogou o Z‚.

- Se calhar infernizou-se contigo...

- Livra! Nem uma nem duas em toda a santa manhÆ. Nunca se cavou tanta terra... Vi-me doido para o acompanhar. Parecia que trazia Satan s nas unhas.

- Que seria? - ruminava a Rita, preocupada.

Arreliava-a o nÆo poder satisfazer a crescente curiosidade.

Sentaram-se a comer, os dois, tagarelando ao mesmo tempo, a ver se descortinavam o motivo daquele estado de inquieta‡Æo do amo.

O Z‚, depois da refei‡Æo, estendeu-se na relva a tomar a sesta, enquanto a Rita ia lidando a arrumar na cesta o trem do jantar.

- Est tanto calor... nem me apetece ir apanhar a comida para o vivo.

- Se tivesses quem fosse por ti era melhor.

"O patrÆo hoje nÆo est de mar‚. Calha-te bem quando tem um carrego de talos arranjado...

- Bem me podias vir ajudar...

- E quem me faz as minhas obriga‡äes? Tu cuidas-me dos bois?

- Olh'agora a grande coisa! Est s para a¡ de perna estendida...

- Pudera... desde a madrugada a puxar a uma enxada...

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- E tu pensas que para uma pessoa aqui chegar a horas tem descanso?

"Olha que as voltas de uma casa sÆo piores que o servi‡o de fora.

- Bem me fio eu nessa...

- Anda comigo, nÆo- sejas madra‡o.

O Z‚ espregui‡ou-se, abriu ruidosamente a boca e ergueu-se.

- Sabia-me bem agora uma soneca. Se eu fosse rico, passava a vida a dormir.

- Que gosto.. . Deus me livre.

"Tomara que nunca me desse o sono.

"Tu hoje fartas-te de fazer cera... o patrÆo parece esquecido de tudo...

Por uma raleira da latada viam o Francisco com a cabe‡a encostada …s mÆos, numa atitude de alheamento completo.

- Que lhe subiria ao miolo? Nunca o vi assim...

- Se ele ensandecia ‚ que era um servi‡o... Os filhos por criar...

- Hum!... J se nÆo perdiam. .. tˆm olho vivo... espertos como ratos.

Foram continuando a conversa enquanto o Z‚ arralou o milho e a Rita apanhou as couves para a ceia, algum feijÆo que estava a perder-se e as ma‡Æs que o vento deitara ao chÆo.

Armou a cesta como um castelo, pegou na rodilha e interrogou o companheiro:

- NÆo sei se lhe diga alguma coisa se nÆo.

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- O melhor ‚ deix -lo estar assim muito tempo.

"Se lhe d outra freima para cavar, prega comigo no outro mundo pela certa.

- Pode reparar, e como anda de m catadura...

"Pouco custa uma pessoa falar bem.

- Senhor Francisco - gritou de onde estava -, quer algum recado para casa?

O patrÆo estremeceu, como se acordasse de um sonho.

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- NÆo, podes ir embora. Olha, vai ao fundo da regada e leva meia d£zia de pˆssegos que l deixei.

- NÆo precisa mais nada?

- Vai com Deus.

- At‚ logo, senhor Francisco.

O Z‚ ajudou-lhe a p“r a cesta … cabe‡a e foi com ela at‚ ao pessegueiro temporÆo.

- O homem nÆo anda bom.

"NÆo me tenho, em chegando a casa, que nÆo conte tudo … senhora Aninhas.

"O mal trata-se enquanto ‚ tempo.

- Sabes que mais, rapariga? Se fosse a ti, calava-me.

"Pode ser que eles andem azedos um com o outro e eu sempre ouvi dizer: entre homem e mulher nÆo metas a colher.

II

Os dois irmÆozitos Moreiras reuniram-se e tiveram uma larga conferˆncia.

O Manuel, como se o ano que o diferen‡ava do irmÆo lhe desse uma grande superioridade, disse:

- Ouve, Crist¢vÆo, o pai tem razÆo, nÆo nos podia mandar estudar. NÆo tem posses. Anda sempre a cavar, a cavar, para nÆo termos fome. � uma vida negra.

- A gente pode ir para l ajud -lo.

- Eu j pensei o que havemos de fazer.

"Tu, que ‚s somenos, vais para doutor, que aquilo h -de dar pouco que fazer. Estudas muito, muito, para acabares depressa. Depois h s-de ser juiz, como o sr. dr. Tovar. Sentas-te na cadeira, todo importante, e come‡as: Meus senhores, eu quero fazer justi‡a, nÆo gosto nada de meter as pessoas na cadeia e para isso basta que sejam bons.

- Nunca hei-de prender ningu‚m, Manuel.

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- A mÆe muito h -de gostar de te ver com aquele balandrau que o senhor juiz veste quando vai para as audiˆncias.

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- Mas eu nÆo quero andar com tal vestimenta. Parece de mascarados.

- NÆo digas isso; at‚ fica muito bem.

- Ora me dÆo ares de padres, ora de mulheres.

- � bonita a valer.

"Est combinado; o senhor professor ensina-te quanto sabe, depois ala para Coimbra, que se f z tarde.

"Eu vou por esse mundo … volta com os pretos; hei-de mandar tanta bagalho‡a que nem o pai h -de cavar mais.

- Deixa-me ir contigo; ganhamos ambos, voltamos mais depressa, ‚ melhor.

- NÆo sejas teimoso, que ‚ feio; faz o que te digo, que eu arranjarei o preciso para tudo.

Estava quente.

O Manuel, de papo para o ar, em cima da cama, fazia projectos, determinava a vida.

O Crist¢vÆo, ajoelhado junto dele, a cara apoiada nas mÆozitas, escutava-o estarrecido.

- Hoje vou falar com o senhor professor para ele me ajudar; hei-de ir para µfrica.

- NÆo tens pena de nos deixar?

- Tenho, mas como ‚ para bem de todos vou contente.

- EntÆo como h s-de casar com a Mariazinha? Vais-te embora...

- Ora essa! Assim ‚ que ‚ bem.

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"Ela ‚ rica e fidalga, j se vˆ que nÆo me havia de querer sendo pobre.

"Do que ela gosta ‚ de massa.

"Temos tempo de falar nisso.

"Agora vai conversar com a mÆe para ela nÆo desconfiar.

"Toma sentido, nÆo repetes nem uma palavra do que eu te disse.

Ergueu-se e p“s a boina.

- Vamos … vida. Ainda hei-de ser algu‚m...

- Ora! Se calhar esqueces isso tudo.

- Vais ver...

Na sala grande encontraram a senhora Aninhas a dar volta …s rimas de feijÆo seco que … noite seria debulhado … lareira.

- Precisa que a ajude, mÆe? - interrogou o Manuel.

- NÆo, filhinho, o trabalho nÆo ‚ grande.

"Quero que estas r‚stias de sol acertem nos feijäes. Logo, estalam mal se lhes toque.

- EntÆo vou aos p ssaros; o Crist¢vÆo que fique a fazer-lhe companhia.

- NÆo ‚ necess rio. Leva-o contigo; todo se regala de ir girar pelos montes.

- Que venha; mas ele ‚ pequeno... fica para tr s.

A Ana sorriu.

- Ai, filho... quando tu fores velho, olha que ele nÆo h -de ser muito mo‡o... Levas-lhe s¢ doze meses de dianteira...

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- Mas eu sou forte e ele ‚ fraco...

- S¢ se for por isso.

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"Ide com Deus, ter com vosso pai …s Fragas, que vai ficar todo satisfeito de vos ver.

- Vamos para onde houver tralhäes.

Os dois sa¡ram.

J fora do p tio, o Manuel interrogou o irmÆo.

- Gostavas de ir comigo a casa do senhor professor?

- Gostava; mas onde havemos de deixar as costilhas? Se ele nos via com elas pregava-nos uma sarabanda...

- Escondemo-las em casa da Ros ria Mouca.

Muito a par, vestidos de igual, quase da mesma altura, era interessante observar as duas crian‡as, dois homens pequenos, encarando a vida com a maior sensatez.

Quantos sonhos naquelas cabecitas inexperientes, quantas decep‡äes lhes prepararia o futuro...

Ficava talvez a um quil¢metro a casa do mestre. Um pouco recuada da rua, escondida entre ac cias viridentes, era ao mesmo tempo escola e habita‡Æo.

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Ao lado, um pequeno jardim onde o Martins passava as horas que lhe cresciam das suas ocupa‡äes.

Era uma pessoa de bem, muito considerado por todos.

Estacionara em professor prim rio depois de ter feito os preparat¢rios m‚dicos. Para nÆo sacrificar a fam¡lia, desistiu do curso.

Vivia com a £nica irmÆ que restava do numeroso rancho. Ambos se dedicavam …s crian‡as que frequentavam a escola, como se fossem filhos.

Foi ali que os dois irmÆos o foram encontrar.

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Ao ver os pequenos, ficou admirado.

- Ol‚! EntÆo que bom vento vos traz por c ? Tendes saudades da aula e do mestre?

- Bons dias, senhor professor, passou bem?

- Vou andando com a gra‡a de Deus, enquanto nÆo chega o dia da partida definitiva. Os vossos pais como estÆo?

- Bons, muito agradecido, senhor professor.

- Viestes entÆo fazer-me uma visita? Muito bem, folgo imenso de vos ver.

O mais velho, com a boina nas mÆos, nem atava nem desatava.

O Crist¢vÆo, acocorado na relva, em frente do mestre, o olhar cintilante, estava morto por contar tudo.

- O Manuel queria dizer-lhe uma coisa.

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sim? EntÆo diz l essa grande novidade.

- Ontem - come‡ou o pequeno -, quando estava no quarto a ler o livro que o senhor professor me deu, ouvi uma conversa do meu pai.

- Escutaste? Pois isso nÆo ‚ ac‡Æo que se fa‡a.

- Ouvi sem querer; ele falava tÆo alto...

- E depois?

O Crist¢vÆo, sem poder conter-se, explodiu:

- Agora ‚ que ‚ o mais bonito.

- O pai estava muito arreliado.

"Dizia que o senhor professor queria que a gente estudasse, mas que ele nÆo tinha o bastante, que nÆo podia. Que ou haviam de seguir os dois ou nenhum.

- E tu que pensaste?

- Falei com o pai e disse-lhe que mandasse estudar o Crist¢vÆo, que era mais novo e mais fraco. Que eu iria ganhar a vida.

O velho professor puxou o chap‚u para tr s, e com ambas as mÆos encostadas ao castÆo polido da bengala, nÆo despregava os olhos do rapazito, enlevado...

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Ganhar a vida, aquele garoto de doze anos...

A surpresa tolhera-lhe a voz. Pois ainda havia nos tempos correntes quem tivesse aqueles sentimentos? Era assombroso!

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O Crist¢vÆo, na mesma atitude, quebrou o silˆncio.

- Eu quero ir com ele, senhor professor.

O Martins, perplexo, nÆo atinava com uma palavra.

- Ele nÆo sabe o que diz, ‚ uma crian‡a; o que eu quero ‚ que o senhor Martins me ajude a convencer o meu pai.

- Oh! rapaz, isso ‚ que eu nÆo fa‡o.

"Como dem¢nio queres tu, desse tamanho e dessa idade, ir por esse mundo al‚m?

" � preciso cresceres, seres um homem forte para arrostares com as canseiras que te esperam, e nÆo vencer s se nÆo tiveres resistˆncia.

"NÆo serei eu quem aconselhe teu pai a deixar-te partir em tÆo verdes anos, … aventura, sem conhecimentos nem protec‡Æo.

- Levava uma carta para o senhor conde.

"Ele ‚ muito bom. Uma vez, quando c esteve, encontrou-me com o pai, puxou-me as orelhas e disse: Anda l , Francisco, que este fedelho nÆo te h -de envergonhar as barbas. Ainda h -de ser algu‚m.

- Pois sim, mas ‚ cedo para nÆo desdizeres o senhor conde. Tens muito tempo.

- Os que sÆo grandes come‡aram como eu, tamb‚m foram pequenos. Pelas suas alminhas, senhor professor, pe‡a ao meu pai que me deixe ir.

- Est s tonto!

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"Tu pensas que a µfrica ‚ como as Fragas, onde h melros a cantar e coelhos que por pouco te nÆo vˆm comer … mÆo? Aquilo ‚ mais s‚rio... os leäes urram como se fossem troväes, as panteras devoram as pessoas num pice, os crocodilos com uma rabanada derrubam as

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criaturas e engolem-nas como rebu‡ados, as cobras comem um boi de uma vez... Tu fazes l ideia do que sÆo terras de µfrica!... Para aquela medonha bicharia eras um pastel de massa tenra.

"NÆo, nÆo me pe‡as para convencer teu pai; era mandar-te para a morte e isso seria de uma grave responsabilidade com que eu nÆo posso nem quero arcar.

- EntÆo vou ter com a senhora condessa, pe‡o-lhe uma carta e parto sem dizer nada.

- Manuel - disse o Martins, endireitando-se, com aspecto severo -, tenho estado a falar contigo como um homem de tino; espero que nÆo percas a minha estima, dando um passo no ar.

- � urgente que eu v ganhar alguma coisa, senhor Martins.

- Que diabo queres tu fazer sem teres for‡as para trabalhar?

- O senhor disse sempre que eu fazia contas como ningu‚m...

- NÆo ‚ o bastante para granjear a vida.

- EntÆo nÆo posso ir fazer as do senhor conde

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- Sempre me sa¡ste de uma for‡a! Nada direi a teu pai, sem falar com a senhora condessa. Depois se resolver tudo.

Os dois pequenos despediram-se.

O bondoso Martins, com o chap‚u derrubado sobre os olhos para evitar os £ltimos raios do sol a sumir-se na serra, seguiu-os com a vista at‚ desaparecerem na volta da estrada.

E assim ficou a meditar.

Veio dar com ele a irmÆ, quase ao escurecer, ao chegar da horta.

- H -de fazer-te bem o relento... J sabes a noite que vais passar com o reumatismo...

- Nem dava pelo tempo, de tal forma me impressionou um caso que acaba de passar-se.

Contou-lhe o que ouvira dos pequenos.

- Sabes o que te digo, JoÆo? Que o rapaz tem ju¡zo para dar e vender.

"Doutores h mais que a praga.

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"Em que queres tu que eles se ocupem? Questäes h poucas e melhor fora que nÆo houvesse nenhumas.

"Um homem formado ‚ um embara‡o. NÆo pode deitar a mÆo a tudo, que parece mal.

"Deixa-o ir para a µfrica, que pode fazer fortuna.

"O senhor conde ‚ um exemplo.

"O pai legou-lhe um grande nome... E da¡? Nem vint‚m...

"A casa empenhada, a senhora condessa a

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trabalhar como uma moira, mas sem poder levantar cabe‡a.

"Lembra-se de ir para a µfrica, foi como a gra‡a de Deus.

"Medrou e … volta dele tudo cresceu.

"Deixa-o ir, JoÆo, deixa-o ir. � inclina‡Æo do rapaz e pode ser a fortuna de todos.

- Talvez tenhas razÆo.

O velho mestre ergueu-se apoiado … bengala e entrou em casa.

A mo‡a j tinha o lume aceso para a ceia.

Chegaram-se … lareira.

III

Os condes da Torre eram os representantes de uma das mais nobres fam¡lias da regiÆo.

O vetusto pal cio, no cora‡Æo da Beira, fora sempre o centro onde se reunia a fina flor da aristocracia provinciana.

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Por v rias vezes se hospedara no imponente solar a fam¡lia reinante, quando, em ca‡adas, se embrenhava pelo centro do Pa¡s, ou quando, em manobras militares, ia at‚ ao alto das montanhas.

Guardava-se na nobre vivenda, como preciosa rel¡quia, uma cama em que dormira D. JoÆo V, baixelas que haviam servido em banquetes oferecidos a D. Jos‚ e a Dona Maria II.

Todo esse fausto levou, como ‚ de uso, a uma decadˆncia financeira alarmante.

As d¡vidas aumentavam com a acumula‡Æo de juros.

O conde nÆo tivera coragem para diminuir as despesas nem para reduzir a criadagem a quem deviam grossas quantias de soldadas em atraso.

Tinham apenas um filho varÆo e duas meninas,

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duas formosuras, criadas na maior grandeza, sem saberem donde vinha o indispens vel para custear aqueles enormes gastos.

Sempre a eterna hist¢ria das casas de prov¡ncia, quando nÆo tˆm … frente um bra‡o forte para dirigir o barco, para manobrar o leme, no mar encapelado e tormentoso da vida agr¡cola.

O conde morreu novo, ralado de penas por nÆo poder sustar a marcha da sua grandeza e das suas tradi‡äes, para o abismo.

Ficou a condessa, a lutar com aquela situa‡Æo dif¡cil, sem atinar com a sa¡da.

Chamou os filhos, para lhes contar o estado em que se encontravam.

O mais velho tinha entÆo vinte anos, e as irmÆs uma catorze e outra quinze.

O rapaz era inteligente e culto.

Livre de preconceitos, aprendera nos livros que a verdadeira aristocracia est no trabalho.

Nunca pudera expandir-se no tempo do pai, mas sentia o naufr gio pr¢ximo.

Agora, por‚m, era diferente.

Tinha de tomar uma resolu‡Æo en‚rgica.

Ao alvitre da mÆe, para venderem terras do imenso condado, saldando assim algumas d¡vidas cujos juros absorviam todo o rendimento, respondeu, decidido:

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- NÆo, minha mÆe, nÆo se vende nada. Reduzem-se as despesas ao m¡nimo; os criados terÆo de produzir o bastante para o seu soldo

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e alimenta‡Æo. Os que nÆo quiserem sujeitar-se ao novo regime, vÆo-se embora.

"Minha mÆe dirige a casa com o seu raro crit‚rio. e eu vou para µfrica.

- Que ideia, filho! O clima e a falta de prepara‡Æo nÆo podem deixar-te tirar resultado.

- Tenho uma grande f‚ e uma enorme for‡a de vontade.

Nada o demoveu.

Com boas cartas de recomenda‡Æo e algum

dinheiro, que um velho amigo da casa lhe emprestou, partiu.

Conseguiu primeiro um lugar insignificante

na Alfƒndega, nada em harmonia com a sua linhagem, mas nÆo se impressionou com isso.

Tinha j certo o pÆo de cada dia, o que lhe dava esperan‡as de um futuro melhor.

A primeira luta a travar foi consigo, para adquirir h bitos de trabalho que nÆo possu¡a.

¶nimo nÆo lhe faltava.

Come‡ou a comerciar em pequena escala, mas com tanto ˆxito que, dentro em pouco, podia mandar … mÆe o suficiente para pagar os juros das avultadas importƒncias que deviam.

Caminhava a passos agigantados.

A sua maneira leal encantava. Preferiam-lhe a casa para todas as transac‡äes.

O solar da Torre, contra a expectativa de muitos, ia-se livrando de encargos, pouco a pouco.

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A condessa eliminou feitores.

Dirigia e vigiava tudo com a maior actividade.

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Levantava-se cedo, e acompanhava a lida agr¡cola com inexced¡vel energia.

Ningu‚m diria que era a mesma senhora, que sempre se alheara das fainas da terra, conservando na aldeia h bitos elegantes, recebendo visitas, dedicando-se … m£sica e …s letras com entusiasmo.

Impelida pelas circunstƒncias, sentiu de repente uma for‡a de vontade incr¡vel, uma perseveran‡a capaz de remover montanhas de dificuldades.

De manhÆzinha, com uma capa grossa e uma manta na cabe‡a, seguia pelos caminhos da quinta, alcatifados de caramelos, a estalarem sob os seus passos ligeiros.

Chegava junto dos trabalhadores quase sem eles darem por isso.

Desbarretavam-se, respeitosamente, e a poda, a empa ou a descava seguia sob a sua inteligente direc‡Æo.

O povo mal conhecia a fidalga antes da morte do marido.

Pouco sa¡a, a nÆo ser a visitar os doentes pobres. A missa, ouvia-a na capela do pal cio.

Ficaram surpreendidos ao verem-na descer da sua torre de marfim … vida activa da administra‡Æo da sua casa.

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A admira‡Æo que tinham pela sua beleza e bondade transformou-se em verdadeiro culto.

Aquela serenidade, aquele senso, a inteligˆncia com que essa mulher superior encarou o lance cr¡tico e empreendeu tomar sobre os ombros tÆo pesado fardo em conjuntura tÆo embara‡osa, deixou-os perplexos.

Era uma fam¡lia privilegiada.

Um exemplo para os da mesma categoria, incentivo para os outros, e consola‡Æo para muitos que nÆo se conformavam com a fatalidade.

As duas filhas desenvolveram-se naquele ambiente de luta contra as velhas usan‡as, que ordenavam nÆo descer a trabalhos que amarfanhassem pergaminhos, que finalmente mandavam sofrer priva‡äes mas com altivez e resigna‡Æo.

Ajudavam a mÆe com todo o entusiasmo.

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Alguns anos de exaustiva canseira, e o solar da Torre estava desempenhado, gra‡as ao esfor‡o da nobre senhora e ao que de µfrica o Antoninho enviava com a maior regularidade.

Adquirira uma ro‡a e constava que enriquecera.

As saudades obrigavam a condessa a instar pela vinda do filho. Era de mais aquele ex¡lio que podia prejudicar-lhe a sa£de.

Anuiu ao pedido.

IV

A Mariazinha ficou sendo o tesouro da av¢ e das tias.

Era a boneca amimada, o entretenimento constante das senhoras.

Logo que teve entendimento, come‡aram a fazer a rvore do Natal para a divertir.

Armavam um pinheiro no trio do pal cio, e ali se reunia a crian‡ada dos sub£rbios.

Havia ceia para todos.

Os pobrezinhos levavam ainda uma pequena merenda e embrulhos com fatos. Os outros, brinquedos e bolos.

Foi numa destas grandes fun‡äes que o Manuelzinho viu, pela primeira vez, de perto, a fidalguinha.

Contava quatro primaveras.

Era linda! Os cabelos, um montÆo de oiro fino.

Olhos negros, enormes, a iluminarem um rosto delicado e expressivo.

Um anjo, como deviam ser os do C‚u - pensava o garoto.

O Manuel, com o seu fato de sarago‡a nova, mal amanhado, ficou boquiaberto.

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Parecia-lhe uma santinha das que estavam no altar.

Apetecia-lhe beij -la e abra‡ -la doidamente. Mas... muito encolhido, com o Crist¢vÆo pela mÆo, nÆo se atrevia a mexer-se.

O pior foi quando a senhora Dona Leonor, a filha mais nova da condessa, quis que a pequenada dan‡asse … volta da rvore.

A Mariazinha batia as palmas e ria, ria satisfeit¡ssima.

- Que est s tu aqui a fazer, metido ao canto com o teu irmÆozito? - perguntou Maria Leonor, carinhosamente. - Vem dan‡ar com a menina, anda. Tu de um lado, o Crist¢vÆo do outro, para ela nÆo cair.

O rapazito ficou muito atrapalhado.

Quando sentiu na sua a mÆozita mimosa da fidalguinha, passou-lhe pelo corpo um calafrio, e teve a impressÆo de que aquela mÆo delicada o ia prender para toda a vida.

Pegou-lhe com infinitas precau‡äes com receio de a magoar.

A pequenita sorriu-lhe, confiante, e a dan‡a prosseguiu animadamente.

O Crist¢vÆo ria …s escƒncaras, enquanto o irmÆo, muito s‚rio, corado como uma romÆ, nÆo via senÆo a sua linda companheira, entregue aos seus cuidados, ao seu cavalheirismo.

Quando Dona Maria Leonor veio dar-lhe bolos,

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nÆo queria aceitar, nÆo tinha tempo, completamente absorvido com a Mariazinha.

Carregava com aquele precioso fardo at‚ se irem embora. Sa¡a com um pesar enorme. Parecia-lhe que ia partir para muito longe! S¢ da¡ a um ano havia outro serÆo igual, em que teriam uma noite como aquela.

Para a aula passava sempre pelo condado. Era uma grande volta, mas que lhe importava?

Quando o Crist¢vÆo come‡ou a ir com ele, dizia-lhe: - Vamos pela eira, que ‚ mais perto.

- Ora, ‚ um s¡tio feio, e n¢s na Torre vemos os paväes, as galinhas-da-¡ndia e flores; tu nÆo gostas?

- Se gosto... e a Mariazinha anda sempre no jardim...

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- � verdade; se n¢s pud‚ssemos ir brincar com ela...

Isso, por‚m, era um sonho que s¢ tomava foros de realidade no Natal.

Todo o ano o Manuel levava a fazer projectos, a espreitar pelas grades, l para dentro, o grande parque, os lagos, todo aquele cen rio grandioso que o mergulhava em profundas reflexäes.

Avistava …s vezes a princesinha dos seus sonhos a saltar, a brincar com os cÆes, a dar biscoitos aos cisnes brancos, a atirar migalhas aos pardais, que ca¡am em chusma perto dela.

Se os lobrigava, vinha a correr conversar com

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eles, apesar do aborrecimento da velha inglesa que a acompanhava.

Queria por for‡a que viessem para a quinta, e presenteava-os com rosas e rebu‡ados, se calhava trazer alguns no bolso do bibe.

O Moreirita dava voltas … imagina‡Æo para lhe oferecer uma lembran‡a.

Tratou de fazer um piÆo, muito apilarado com a ferreta bem metida para se apanhar … unha.

Quando a Mariazinha, uma tarde o viu rodopiar vertiginoso na mÆo dele, ficou delirante.

Queria tamb‚m vesti-lo com a bara‡a, e atir -lo; mas as suas mÆos pequeninas nÆo tinham ainda for‡a para tÆo dif¡cil opera‡Æo.

Um dia, deu-se um acontecimento raro.

O Manuel agarrou uma rola!

O seu pensamento voou logo para a fidalguinha da Torre. Iria de manhÆ, antes da aula, espreitar pela grade. Se a avistasse com a inglesa, acenava-lhe e ela viria ao encontro dele.

A mestra tamb‚m havia de gostar - pensava, satisfeito.

Assim foi.

Enfiou o fato de cotim, lavado, e a¡ vai ele direito ao condado, sem dizer nada a ningu‚m.

Nem de prop¢sito! A pequenita saltava atr s de uma bola, enquanto a velha filha de Albion lia com absorvente aten‡Æo O Para¡so Perdido.

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Aquela inglesa esgrouviada tornara-se a sombra negra do pequeno.

Era preciso conquistar-lhe as simpatias.

Resolveu, pois, dirigir-se a ela.

- Senhora Miss! - chamou de longe - fa‡a o favor de c vir.

A sisuda mestra estava com vontade de fazer ouvidos de mercador, mas a disc¡pula ‚ que nÆo esteve de acordo. Correu para ele, alegremente.

O rapazito, muito contente, mostrou-lhe, de fora, a rola agachada na boina, com a cabecita nervosa a mirar inquieta os actores da cena.

- Abra a porta, Miss, quero ver o que o Manuel traz ali.

Pela primeira vez a professora permitiu aquela transgressÆo.

- Onde a apanhaste?

- No pomar; ela at‚ gostou que eu a trouxesse … Mariazinha.

- Disse-to?

- NÆo foi preciso, porque eu percebi.

- A menina nÆo tem gaiola... - disse a Miss - nÆo a pode guardar.

- NÆo faz mal, ela nÆo precisa de estar presa; vem comer … mÆo; ‚ muito mansa.

A fidalguinha quis pegar-lhe, e... caso curioso, a rolita sentiu-se tÆo feliz, tÆo amimada, que nÆo fez o menor esfor‡o para se libertar.

Sobre a mesa de m rmore do jardim serviram-lhe uma refei‡Æo de trigo.

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Foi a £nica vez que o Manuel faltou … aula. Esqueceu tudo...

NÆo aceitou bolos, nÆo quis comer nada.

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A Mariazinha entendia que nÆo o devia deixar partir sem lhe dar um brinde que ela considerasse de valor; ofereceu-lhe a bola, o brinquedo que mais apreciava.

O Manuel ficou doido.

Escondeu de todos aquela aventura.

A mÆe e o mestre, surpreendidos com a ac‡Æo, ficaram verdadeiramente alarmados.

O Crist¢vÆo foi s¢, o que nunca sucedera.

Era tarde quando o estudantinho apareceu em casa, todo sorridente.

- Amor da minha alma, que susto me causaste!

A pobre Ana nÆo teve ƒnimo de o repreender.

- O que te aconteceu, filhinho?

- Nada... estive em casa da Mariazinha. - O quˆ? Foste para a Torre?

- Tinha de ir levar-lhe a rola.

- Ai os meus pecados!. . à rapaz, tu ensandeceste... Que mania te deu com a menina...

"Come‡as cedo e mal...

"NÆo olhes para tÆo alto, que te cegas.

O pequeno embatucou, mas ia pensando:

- Sim, sim, n¢s veremos.

- O que julgar o senhor Martins? ! ..

- Diga-lhe que estive doente.

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- E o Crist¢vÆo? NÆo vˆs que j agora contou que nÆo sab¡amos de ti...

- Desculpo-me que fui …s cerejas e que... tive uma dor de barriga tÆo forte que nÆo pude ir.

E atirando-se ao pesco‡o da mÆe: "Pela sua sa£de, nÆo diga nada ao pai, nÆo?

- Tomara eu que ele nem sonhasse... Teu irmÆo o informar .

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O melhor seria meter-se na cama para lhe fazer crer que realmente estava incomodado.

Era uma mentira salvadora, que o livraria dos a‡oites do pai e da repreensÆo do mestre.

- Mas nunca mais te metas noutra, ouviste?

- Se calhar nÆo torno a apanhar outra rola...

Correu para o quarto, nÆo fosse o irmÆo aparecer.

Cobriu-se com os cobertores, abra‡ado … bola que beijou com fervor.

E assim germino— naquela alma infantil um amor dominante, que havia de o acompanhar toda a vida.

A bondosa Ana observava, com a sua perspic cia feminina, a loucura, como ela lhe chamava, que meteria o filho num beco sem sa¡da.

Um desastre! Uma vida perdida!

Nunca a fidalguinha se dignaria olhar para ele. Santo Deus... Nem pensar em tal.

Mas logo, em muta‡Æo r pida de ideias, a preocupa‡Æo era substitu¡da pela alegria.

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- Olhem que passo este!. .

"NÆo estava eu a pensar que se tratava de gente grande, sem me lembrar que ele tem nove anos...

Quando o Crist¢vÆo chegou, ficou admirado com a s£bita enfermidade do irmÆo.

- Que disse o senhor Martins?

- Para o Manuel faltar... nÆo pode ser coisa de pouca monta...

Correu para o quarto e abra‡ou-se ao suposto doente.

- Est s muito mal?

O garoto, que nÆo sabia fingir, correspondeu …quela ternura dizendo-lhe ao ouvido: - Eu j estou bom.

Quis meter-se tamb‚m entre a roupa, a fazer-lhe companhia.

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Ao levant -la, deparou com a bola e um grito de admira‡Æo saiu-lhe espontƒneamente dos l bios:

O Manuel agarrou-lhe a cabe‡a com as mÆos, e, muito baixinho, pousando-lhe os l bios na orelha, bichanou-lhe: - Foi a Mariazinha.

- Onde a viste?

- Passei l , e como eu estava mal...

Ocultou-lhe o epis¢dio da rola e os demais pormenores que lhe fizeram esquecer tudo, at‚ a aula do senhor Martins.

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O Crist¢vÆo mirava e remirava aquele mimo, encantado.

- Isto ‚ para brincar, nÆo ‚?

- Sim, mas esta ‚ para se ver, porque pode estragar-se.

- Ela nÆo ter outra?

- Sei l !... Que pergunta!...

- Se calhar d -me uma igual pelo Natal.

O Manuel nÆo ficou contente com a ideia de o irmÆo ser obsequiado da mesma forma.

Queria s¢ para si aquele regalo, aquela deferˆncia.

V

A vida ia correndo, cheia de perip‚cias deste g‚nero, tornando o filho mais velho do Moreira no mais feliz dos mortais, at‚ que o incidente dos estudos o determinou a ir para a µfrica.

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A amizade de Mariazinha crescia com a idade, e o afecto dele, enraizado e cada vez mais retra¡do, aumentava de forma a nÆo deixar d£vidas em quem o conhecesse.

A mÆe, com a sua fina intui‡Æo, previa naquilo tudo um grande desastre.

O pequeno j nÆo falava na fidalguinha, mas nem um dia deixava de passar no condado.

Aos onze anos era ponderado como se tivesse trinta.

VI

Ao outro dia da visita dos irmÆozitos Moreiras, pela volta das cinco horas, mestre Martins vestiu o fato novo, camisa engomada como uma t bua, punhos duros como ferro, gravata com o seu alfinete de ametista, chap‚u muito escovadinho, bengala de castÆo de prata, e disse … mana Teresa:

- Vou at‚ … Torre. NÆo sei o que isto dar ! Parece-me asneira gra£da, mas... nÆo quero arcar com a responsabilidade de tolher o futuro ao rapaz.

- Vai com Deus. NÆo tenhas receio. O Mundo fez-se para os homens. Quem se encosta a boa rvore, boa sombra colhe.

- Veremos, veremos o que resultar desta trapalhada.

Estava uma tarde esplˆndida. TÆo sossegada, tÆo calma, como se todo o movimento da Natureza tivesse parado.

As ac cias, cobertas de flor, espalhavam um aroma delicad¡ssimo.

Cantava uma mulher na v rzea numa toada triste.

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. Os melros assobiavam, alegres, saltando de ramo em ramo.

O velho Martins ia tÆo preocupado, que nem dava pelas belezas da paisagem nem correspondia …s sauda‡äes afectuosas das pessoas que topava.

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J avistava a grande torre do pal cio, a sobressair ao de cima da verdura densa das magn¢lias e dos cedros, dominando a planura da quinta.

Sem dar por isso, encontrou-se em frente do solar.

Todas as semanas ia prestar homenagem …s fidalgas, tomando ch , e algumas vezes ficando para o jantar. Nunca, por‚m, sentira aquele embara‡o, aquela impressÆo.

Que diabo! Era necess ria coragem. Tinha de ouvir o parecer da senhora condessa. O que ela dissesse era uma escritura.

Exporia tudo … ilustre senhora para ela decidir. Era a maneira de alijar o peso que sentia esmag -lo.

Puxou o cadeado da sineta.

Apareceu o Jer¢nimo, misto de jardineiro e guarda-portÆo. Setenta anos bem conservados e felizes.

Nunca conhecera outros paträes. Era considerado como pessoa de fam¡lia.

- Ora viva o senhor Martins!

- Boa tarde, Jer¢nimo, como vai isso?

- Vamos andando com a gra‡a do Senhor. NÆo o fazia hoje por c ...

51

- Tens razÆo, as minhas visitas enfadam. Mas... tinha urgˆncia de falar com a senhora condessa.. .

-Essa agora!... O senhor Martins ‚ sempre bem-vindo. Nunca esquecem quem ensinou a ler os meninos.

- Tenho ensinado tantos! Guardo um livro com os nomes de quantos dei a exame.

- Tamb‚m l devem estar os meus.

- Com certeza.. . e quantos mais!...

"Toda a vida nisto...

"J me podia aposentar, mas falta-me o ƒnimo.

"NÆo posso passar sem eles.

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"SÆo os meus filhos... creio que todos me querem bem.

- Pudera...

"O senhor Martins tem sido a Providˆncia desta terra.

"NÆo ‚ s¢ o mestre, ‚ o conselheiro e o amigo.

"Bem sei o que tem feito por todos!

- NÆo digas isso, homem.

"SÆo eles os credores da minha gratidÆo. Sem a sua companhia, o que seria a vida para mim

- Esses que por a¡ estÆo bem, ao senhor o devem. Foi a Providˆncia deles!

- Se assim fosse... - e mudando de tom - Olha l , e de µfrica tˆm vindo not¡cias?

- Em todos os paquetes. Com a ajuda do Alt¡ssimo, tudo corre bem.

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- E a senhora condessa?

- Parece uma rapariga! Sempre a vigiar tudo. Bem se diz que uma mulher ‚ a escora de uma casa!

"Muitas como ela, e o Mundo estaria direito.

"Se o senhor conde velho vivesse... Deus me perdoe se nisto ofendo a sua mem¢ria, pois era uma santa criatura, mas j nÆo havia eira nem beira do condado...

"Nosso Senhor tudo faz pelo melhor...

"Chamou-o a Si, porque, a respeito de direc‡Æo, nÆo fazia coisa com coisa.

Estavam ao p‚ da entrada alpendrada.

Subiram; o Jer¢nimo introduziu o mestre numa vasta quadra opulenta e severa, com duas amplas portas abrindo sobre o terra‡o.

Ao centro, uma mesa enorme, de torneados, coberta de revistas portuguesas e estrangeiras.

Era o op¡paro manjar do Martins. Dessedentava os olhos naquela fonte de not¡cias frescas

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vindas de toda a parte. Atirava-se a elas com

gula.

Que r pido lhe corria o tempo ali.

Ouviu passos ligeiros, e a condessa apareceu.

Ainda f ormosa e elegante, cabelos todos brancos num rosto que se conservava fresco.

A simpleza da vida campestre imprimira-lhe … fisionomia uma deliciosa serenidade.

- Estou encantada com a sua visita, senhor Martins.

53

- Minha senhora, como passou Vossa Ex.a?

- Vou vivendo... Quando se chega … minha idade j se anda por favor neste mundo...

"Quer vir antes para o terra‡o?

"Est tÆo ameno...

- A senhora condessa manda.

- Adoro esta luz doirada, o cheiro dos campos, a chilreada deliciosa das avezitas em cata

de poiso...

- � muito agrad vel...

- Tendˆncias romƒnticas, que a gente tem

de calar a certa altura da vida...

"NÆo assentam bem senÆo na mocidade; se

n¢s, os velhos, nos manifestamos, cai-nos o rid¡ culo em cima inexor…velmente.

" � doloroso envelhecer, meu amigo...

"Como se os gostos delicados nÆo se apurassem com os anos...

"Mas deixemos as coisas tristes e vamos ao que importa.

"O que o traz por c ?

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- Um conselho e um pedido, senhora condessa.

- Duas coisas ao mesmo tempo nÆo ser

muito?

- Vossa Ex.a ‚ tÆo generosa que estou certo de

ser atendido.

- S¢ se nÆo estiver na minha mÆo o que deseja...

54

O Martins narrou minuciosamente o que se passara com o filho do Moreira.

A fidalga ouviu-o, interessad¡ssima.

- E que pensa o mestre de tudo isso?

- Que o rapaz promete muito e seria pena perder-se uma energia, neste canto, onde nÆo h possibilidade de desenvolver uma grande actividade com ˆxito...

"Mas... nÆo me manifestei sem ouvir o parecer de Vossa Ex.a. Se for de opiniÆo que o pequeno parta, vinha solicitar para o incluir no n£mero dos protegidos desta casa.

A condessa ficou um momento irresoluta.

- � grave o que me pede.

"Deverei aventurar-me a dar um conselho, em circunstƒncias tÆo extraordin rias?

"O Manuelzito ‚ uma crian‡a, que direi eu?

quase um beb‚...

"Atir -lo para um clima in¢spito nÆo ser um

crime?

- Quebrar-lhe as asas nÆo ser outro, senhora condessa?

"Por isso ‚ que nÆo quis a responsabilidade de tÆo arriscado passo, que pode lev -lo ao triunfo ou … morte.

- Tem razÆo; ‚ um acontecimento tÆo imprevisto, que nÆo pode ser observado de ƒnimo leve.

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"O mestre diz que ele ‚ um talento...

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- E um car cter, minha senhora; demonstrou-o a resolu‡Æo que tomou.

- Sacrificar-se pelo irmÆo, ‚ £nico nos tempos correntes.

"Aqui, atrofia-se, amarrado … terra-mÆe, onde

por mais que trabalhe nunca passar da cepa torta.

"Olhe, mestre, eu decido-me num instante.

"Manda-se para a µfrica.

"Vou escrever ao Ant¢nio para o amparar, para lhe servir de pai, para o guiar.

- Que grande obra a de Vossa Ex.a!

- Sou a sua colaboradora e nada mais.

"O outro que siga os estudos...

"O Francisco ‚ remediado, mas eu sei bem o que sÆo estas medianias da Beira. Quase pobreza.

"Se o ano ‚ mau... nem vinho, nem milho, nem azeite, nem batatas... nada.

"Ficam tÆo pobres como os que nÆo tˆm coisa alguma,

"Precisa portanto de aux¡lio.

"O mestre diz-lhe que tem umas economias, que lhas empresta, e eu vou-lhe passando para as mÆos o preciso para o garoto estudar, se for esperto como o mais velho...

- Isso ‚. Quando o irmÆo disse que desejava ir para a µfrica, ganhar para ele, desatou a chorar, porque queria acompanh -lo.

"Foi para mim um espect culo singular ver o Manuel a fazer de pessoa grande, a consol -lo:

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"Tu nÆo vˆs que ‚s pequeno? que nÆo podes ainda tratar da vida?

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- Tem na verdade muita gra‡a; especialmente quando se sabe que diferem um do outro apenas um ano!

"Pois bem, o problema est resolvido.

"Fale com os pais, que tratem do enxoval quanto antes, nÆo vale perder tempo.

- Ser a sorte dele.

- Seja o que for; nÆo lhe contrariemos a voca‡Æo.

Ergueu-se e despediu-se do Senhor Martins a quem muito respeitava; e a quem a distinta Senhora se habituara a ouvir em todos os transes dif¡ceis, havia largos anos.

- Quem sabe, mestre, se estaremos lan‡ando as primeiras pedras para um grande edif¡cio?

VII

O Francisco, preocupad¡ssimo, foi para a fazenda cedo, como era costume.

NÆo deu palavra … companheira, nÆo via nem ouvia ningu‚m.

Era imposs¡vel esquecer a atitude do filho... Com doze anos!... Aquilo era um portento ! Tem o pensar de um homem!

O mestre Martins nÆo o encontrou em casa.

A mulher queixou-se-lhe da apoquenta‡Æo do companheiro.

- NÆo parece o mesmo, senhor professor.

"As falas do pequeno entraram-lhe no cora‡Æo.

"Toda a sua m goa ‚ nÆo ser rico para os mandar estudar ambos.

"E lembrar-se a gente que h tanto patetinha por l , a consumir dinheiro aos pais sem proveito nenhum...

- Deus tudo faz pelo melhor, Ana; o teu rapaz ainda h -de ser pessoa importante.

- Faltam as posses, senhor Martins.

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" � como quem corta as asas a um passarinho... que quer voar...

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- Vou at‚ …s Fragas conversar um tudo-nada com o Francisco.

- � uma esmola que lhe faz, a ver se lhe tira da cabe‡a aquela cisma.

- At‚ logo, Ana.

- Adeus, senhor Martins. Nosso Senhor lhe pague os favores que est cont �nuamente a fazer-nos.

- Ora adeus!... NÆo falemos nisso.

O sol, a declinar, doirava suavemente as fran‡as do arvoredo.

NÆo bulia uma folha.

As avezitas pipilavam pelos ares.

Aqui e al‚m ouvia-se a voz rude de um camponˆs chamando os filhos ou gritando ao gado.

O velho professor tomou pela canada ensil veirada que ia dar …s Fragas.

Entrou no enorme carvalhal deserto.

Olhou em todas as direc‡äes.

Avistou o mo‡o a lavrar uma leira.

- à Z‚!

O rapaz estacou e os bois mansos e n‚dios

voltaram a cabe‡a para o lado de onde ia a voz.

- Ora viva o senhor Martins!... - e, sem se importar com a lavoura, largou a rabi‡a e veio a correr ter com o seu antigo professor.

"Bem-vindo seja; nÆo o esperava agora por c , mestre.

- Vim por a¡ al‚m espairecer...

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"Lembrou-me de dar dois dedos de cavaco ao teu amo.

- Ainda bem, senhor Martins, a ver se o distrai. NÆo sei o que ele tem, que nÆo parece o mesmo... NÆo fala, nÆo dirige o trabalho. Parece que lhe subiu alguma coisa ao miolo...

"Eu nem sabia o que havia de fazer!... Meti

o arado ao chÆo grande, enquanto nÆo destina

outra coisa.

- Onde est ele?

- Eu pergunto … Rita, que talvez o enxergasse por a¡.

Introduziu dois dedos na boca e deu trˆs assobios.

- Que ‚ l ? - respondeu de longe a mo‡a.

- Aonde p ra o patrÆo?

Sem articular uma s¡laba, apontou-lhe a casa.

- J sei; vou ter com ele.

Atravessou o prado, deu uma volta pela horta, cortou pelo pomar, entrou no denso t£nel que formava a parreira, direito … porta.

O Francisco estava logo … entrada, sentado num banco, com a cabe‡a apoiada …s mÆos.

NÆo deu por ele.

- Homem! Que medita‡Æo ‚ essa? Dar-se- o caso de estares fazendo versos?

O Moreira ergueu-se rapidamente.

- Por aqui, a estas horas, senhor Martins?

- � cedo para te ma‡ar e... tarde para te ajudar?

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- Como nÆo ‚ costume... estranho.

- SÆo f‚rias, amigo... tamb‚m tenho direito a umas horas de folgan‡a...

"Venho palestrar contigo um pouco...

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"Que diabo tens tu? Est s desfigurado...

- H dois dias que nÆo durmo, mestre...

"Sempre no pensamento a ac‡Æo do rapaz...

"Trago c dentro um peso...

"Isto de a gente tolher o futuro a um filho...

- Qual tolher nem meio tolher. ..

"Para diante ‚ que ‚ o caminho. � exactamente por causa disso que eu aqui estou.

- Ora essa!...

- Sim senhor... O pequeno vai para a µfrica.

- Daquela idade, senhor Martins?

- Claro; ‚ de meninos que melhor se aclimam, que se habituam a trabalhar, a lutar.

- Hei-de deixar ir a crian‡a ao deus-dar ?

- Quem te diz isso, criatura? Vai entregue a pessoa que o saiba orientar e educar; que fa‡a dele um homem como deve ser.

- Quem est para aturar fedelhos?

- Algu‚m que possui uma nobre alma, que nÆo hesitou em dedicar-se … fam¡lia, a quem os filhos desta terra devem tudo...

- O senhor conde! - exclamou o Francisco, com a fisionomia subitamente transfigurada por uma alegria interior.

- Pois nÆo sabes que nunca criatura alguma

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se lhe dirigiu a implorar protec‡Æo que nÆo fosse bem sucedida?

- Bem sei, senhor Martins, mas h coisas que a gente se nÆo atreve a pedir.

- Certos amigos, mesmo sem lhes encomendarem o sermÆo, encarregam-se de tudo.

O Francisco fixou-o, surprendido, interrogando-o com o olhar.

- A primeira pedra foi lan‡ada.

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"A senhora condessa quer que ele v .

"Agora ‚ tratar de preparar a fatiota e bonda de tristuras que fazem mal ao f¡gado.

- E o Crist¢vÆo?

- Marcha para Coimbra logo que fa‡a exame; ‚ a vontade do irmÆo e a minha. Algumas economias que tenho hÆo-de ir remediando, at‚ que comece a vir dinheiro de µfrica.

- Aceito o seu oferecimento, senhor Martins, fazendo-lhe uma hipoteca.

"As terras nÆo dÆo para pagar uma d¡vida.

"Amparando os juros, j me dou por satisfeito.

"Se o rapaz se formar, que indemnize o irmÆo.

O Martins desatou a rir.

- Sim, eles depois l farÆo contas.

"Afinal, ‚s um homem de sorte. Um filho milion rio, outro doutor... Que mais queres tu?

- � tudo obra sua, mestre. Pensa que nÆo sei o que lhe devo?

- Deixa-te disso e vamos andando, que o

62

sol j abalou para outras paragens e eu de noite nÆo sei andar.

O Francisco correu a mudar a andaina do trabalho e voltou num instante. Parecia outro. Puseram-se a caminho.

Ca¡ra sobre a terra aquela melancolia envolvente do crep£sculo.

O poente estava ainda em chama. Nesse fundo rubro sobressa¡a o arvoredo em recortes miudinhos, como folhas de feto espalmadas num herb rio colossal.

As coisas iam perdendo as formas definidas. Fugia a luz e a sombra crescia, crescia,a cerrar-se na noite.

Caminhavam ao lado um do outro, desviando as silvas e os carvalhi‡os que emaranhavam a azinhaga.

Iam vis �velmente satisfeitos. O Moreira levava no olhar a chama ardente de uma grande esperan‡a. O Martins formava castelos grandiosos. Antevia j um futuro brilhant¡ssimo aos dois disc¡pulos.

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- Pena tenho eu de estar tÆo adiantado em anos! J nÆo vejo os pequenos instalados na vida como desejava.

- NÆo pense tal, mestre; h -de viver muito tempo para contentamento de todos n¢s.

- � tarde, amigo... ‚ tarde...

"Quem muito andou, pouco espera de andar.

" � ordem do Mundo.

VIII

Foram r pidos os preparativos para a partida do Manuel.

A mÆe sentia uma m goa pungent¡ssima, mas uma f‚ cega no triunfo do filho.

Tinha um exemplo vivo que a encorajava.

Animava-o constantemente.

O Manuel nÆo carecia de est¡mulo. Trazia consigo um sonho lindo que lhe enchia a alma.

A fidalguinha era a for‡a viva que o impelia, que lhe dava alento, o centro em volta do qual girava constantemente o pensamento do pequeno.

Voltaria rico, eis o que o preocupava, e entÆo ser-lhe-ia f cil, supunha, casar com ela.

Uma ausˆncia tÆo prolongada ‚ que lhe entenebrecia os dias.

Desabafava com o irmÆo. Se ela o esquecesse... Se aparecesse outro com quem casasse?

Ca¡a entÆo em pesada e amargosa tristeza.

O Crist¢vÆo, quase a chorar, tentava consol -lo.

- NÆo tenhas medo. .. eu direi … Mariazinha quanto lhe queres...

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"E... se algum se aproximar, dou-lhe uma co‡a, que ele desanda, sem olhar para tr s.

Os dois, satisfeitos com esta sa¡da her¢ica, desataram a rir perdidamente.

Depois faziam e desf aziam planos com uma rapidez extraordin ria.

- Olha que eu, afinal, antes quero que tu sejas m‚dico.

"O senhor doutor Carvalho j est velho e cansado; podes vir a substitu¡-lo.

"Se a Mariazinha adoecer, vais vˆ-la e mandas-me dizer o que ela tem.

"NÆo quero que leves dinheiro.

"H s-de fazer exactamente como o nosso

m‚dico, ouviste?

"Quando o pai lhe pergunta quanto ‚, päe-se a rir: - Ora, ora, nÆo falemos nisso; manda-me uma perdiz no tempo da ca‡a.

- Ele bem sabe que o pai nÆo ‚ ca‡ador...

- � s¢ para nÆo dizer que nÆo ‚ nada. ..

O Crist¢vÆo ficou calado... Depois de um silˆncio que o levara a cogitar numa ideia sem atinar com a sa¡da, disse resoluto:

- Olha l , ¢ Manuel, e eu com quem hei-de casar?

- Tu ainda ‚s pequeno; temos tempo de pensar nisso. Eu depois mando-te dizer.

65

A vida corria serena, em preparativos e conjecturas, quando veio a resposta do conde.

A fidalga mandou logo chamar o Martins.

Foi recebido alegremente.

- NÆo venha com cara de caso, que tudo vai …s mil maravilhas.

"O meu filho ‚ um bom; sempre pronto a proteger os que querem trabalhar.

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"Ora oi‡a.

Leu-lhe as passagens que o interessavam.

"O que me diz, minha mÆe, ‚ bem extraordin rio. Mande-me o pequeno, que pode vir a ser um grande homem.

Quando se encontra uma decisÆo tÆo firme numa crian‡a, . ‚ de esperar um sucesso.

Que venha no primeiro paquete.

Estou com curiosidade de ver essa "avis rara.

O mestre Martins que nÆo pense mais no assunto.

Ser um filho adoptivo, j que estamos lesados com a perda da Mariazinha".

O mestre ergueu-se, como se estranha mola o impelisse. ,

Estava louco de contente e em brasas para ir comunicar ao Francisco e … mulher a boa nova.

Tinham de aproveitar a companhia de um

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empregado do conde, que viera ao continente e partia da¡ a quinze dias.

O fidalgo dava instru‡äes minuciosas.

"Quando o Almeida for … Torre despedir-se, levar o rapazito.

Evitam-se assim embara‡os ao Francisco, que sem ter ido nunca a Lisboa, se veria seriamente atrapalhado.

- � admir vel o meu filho!

"Lembra-se de tudo. , .

"Desculpe esta vaidade de mÆe, mas tenho um grande orgulho no meu Antoninho.

- NÆo ‚ s¢ Vossa Ex.a que deve estar £fana com o brilhante descendente que Deus lhe deu; somos todos n¢s, os filhos desta terra, os filhos da Beira, que nos sentimos engrandecidos por termos nascido na mesma aldeia em que veio ao Mundo um homem que honra a fam¡lia e a P tria.

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Uma l grima de alegria deslizou pela face de Dona Maria Joana. NÆo tentou escondˆ-la. Era tÆo natural o seu desvanecimento...

O Martins correu a casa do Moreira.

A boa Ana nÆo p“de conter-se. Desatou a chorar como uma Madalena.

- M‚stre, desculpe a minha fraqueza. Mas... custa muito ver partir um inocente, Deus sabe se para nunca mais voltar...

- NÆo penses nisso, mulher; o teu filho caminha direito … felicidade.

67

"Pena seria vˆ-lo seguir para a guerra.

"Mas para a ·frica, com tÆo boa protec‡Æo!

"enxuga o pranto, criatura, que em poucos anos chorar s de alegria ao vˆ-lo regressar rico e ditoso. H -de ser o amparo da fam¡lia e de muitos necessitados. Ver s.

A pobre mÆe abriu os olhos deslumbrada pela visÆo desse lindo futuro.

As l grimas secaram num instante.

- Deus o oi‡a. .. O senhor tem sido o nosso anjo bom...

Francisco confrangeu-se, mas dominou-se.

Manuel delirou.

- Hei-de mandar tanto, que o pai nunca mais h -de trabalhar nas fragas.

"Quando vier, trago um macaco ao mestre.

- Oh! Traze antes uma preta. Sempre ajuda em casa. Para macaco c estou eu.

Passaram r pidos os £ltimos dias.

O Francisco quis ir agradecer … senhora condessa. Ao mesmo tempo o pequeno ia despedir-se.

enntraram a Maria com a mestra. Correu para eles.

- EntÆo, queres ir para ao p‚ do pap . E nÆo esperas pela festa do Natal?

O Manuel, tÆo corajoso, senpre que se falava

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na partida, sentiu-se oprimido; um n¢ na garganta nÆo lhe deixava articular uma palavra, e, sem se poder conter, come‡ou a solu‡ar.

O pai, todo consternado por aquela inesperada atitude, consolou-o.

- Ainda est s connosco, filhinho. Se consenti nisto foi para te fazer a vontade.

A Mariazinha, muito triste, olhava o seu amigo.

Sem saber porquˆ, come‡ou a chorar tamb‚m.

O pequeno, quando lhe viu correr as l grimas, abra‡ou-se a ela, beijando s“fregamente aquele doce pranto que se vertia por ele.

Era o pacto indissol£vel, o selo fatal de um amor nascido no ber‡o, sabia Deus para que tormentosa existˆncia.

- NÆo v s.

- Tem de ser, Mariazinha - respondeu Manuel, mais animado.

"De l hei-de mandar-lhe um papagaio muito lindo.

- NÆo quero que me mandes nada. Vem depressa para brincares comigo.

- Se Deus o ajudar, h -de voltar, menina, - disse o Francisco, sensibilizado com a ternura da fidalguinha pelo filho.

Pela cabe‡a perpassou-lhe um sonho a que a sua sensatez e lealdade cortou as asas rapidamente.

- O Manuel e eu vimos agradecer … avozinha

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todos os favores e ao mesmo tempo despedir-se.

A pequenita correu adiante a avisar a condessa.

Foram recebidos com a maior afabilidade.

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O Francisco penhoradissimo, nÆo atinava com as palavras para exprimir a sua gratidÆo.

Todo confuso, sentia ali, nÆo sabia Explicar a razÆo, uma irresist¡vel vontade de chorar.

- Av¢ eu posso dar-lhe o meu livro de hist¢rias para ele ler pelo caminho?

- D , meu amor d ; ser uma recorda‡Æo tua.

A pequena voou a buscar o presente que lhe dep“s nas mÆos.

- para te lembrares de mim.

- Mesmo sem o livro, nÆo esquecia a Mariazinha.

- Tens razÆo. Os verdadeiros amigos sÆo assim.

A fidalga fez uma eloquente prelec‡Æo ao futuro africanista, que a ouviu interessado.

O Francisco ia disfar‡ando como podia as l grimas teimosas, sempre a bailarem-lhe nos olhos.

No dia seguinte, o Manuel partia para essa longa viagem, de onde s¢ voltaria tarde, se lograsse vencer as asperezas do clima.

IX

Estava um dia esplendoroso, daqueles em que a Natureza desdobra todas as galas com majestosa opulˆncia.

Era uma aleluia deslumbrante. Os prados floridos como jardins! Um perfume delicioso, emanando da terra, estonteava...

Festa pagÆ em que a passarada, doida de amores, tomava parte importante, cantando, cantando, em renhido desafio.

Em casa do Moreira, todos se ergueram cedo.

A mÆe, esmagada pelas saudades, mas sem querer dar parte de fraca, preparou a £ltima refei‡Æo que iam comer juntos, antes da partida do filho, quem poderia dizer se nÆo seria definitiva?

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Mas era preciso arredar negros press gios, para o pequeno nÆo esmorecer, nem perder aquela f‚ ardente, aquela certeza de triunfar que o dominava e alentava.

O pai andava escondido pelos cantos, para encobrir a sua m goa.

Os dois rapazitos no quarto, muito consternados, faziam rec¡procas recomenda‡äes.

72

- Tu disfar‡adamente, passas todos os dias na Torre. Vˆs se consegues ver a Mariazinha, para depois me contares tudo nas cartas.

- E dou-lhe saudades tuas?

- NÆo; primeiro vˆs se ela te pergunta por mim.

Ficou tudo combinado.

Foi triste e silencioso o almo‡o, para o qual a Ana escolheu cuidadosamente os pit‚us mais em harmonia com o gosto do filho que partia.

Estavam quase a terminar, quando apareceu um criado da condessa, para o Manuelzinho ir sem demora, que j estavam os cavalos atrelados.

Levantaram-se de afogadilho.

Fechou-se o ba£, … pressa, e a Rita abalou com ele … cabe‡a.

A Ana nÆo teve coragem de ir acompanhar

o viajante. Queria chorar … vontade, gritar a sua

dor de mÆe, naquela d£vida angustiosa que a torturava, a prop¢sito do futuro do pequeno.

Abra‡ou-se a ele como louca.

- Filho da minha alma, que Deus te acompanhe, amor do meu cora‡Æo! Criar-te para te perder... Senhor, que destino o meu...

O Manuel, en‚rgico como um homem feito, as l grimas a desmentirem-lhe a bravura, consolava-a.

- Hei-de voltar depressa.. . e rico.. . ver .

- SÆo horas, Manuel; tu assim o quiseste... vamos.

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O garoto desprendeu-se corajosamente dos bra‡os da mÆe.

A Ana atirou-se para cima da cama, a solu‡ar.

- Perdido.. . perdido para sempre o meu rico filhinho. ..

Pelo caminho, quase a correr, tristes como a noite, nÆo trocaram uma palavra.

A Rita arrumara o ba£ junto ao cocheiro, que j nÆo parecia contente com a lentidÆo das despedidas.

- Iam tardando, disse-lhes o Jer¢nimo; o administrador do senhor conde j estava em brasas.

Esperaram ao fundo do alpendre.

Apareceram as filhas da condessa e a Mariazinha com a mestra.

Todas queriam saudar o her¢i, que ousadamente partia em cata da fortuna.

Depois chegou a fidalga, conversando animadamente com o gerente da casa do filho.

Fizeram subir o Francisco e o Manuel.

O Crist¢vÆo escondeu-se detr s do muro.

- Anda c , Manuelzito - chamou a condessa. E dirigindo-se ao administrador: "Confio aos seus cuidados este homem de doze anos.

" � um valente. Quer ir ganhar dinheiro para o irmÆo se formar.

"Que me diz a este produto da nossa terra, senhor Almeida?

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O administrador afagou o pequeno, que estava muito comovido com as despedidas.

- H -de ser algu‚m.

"Tem boa pinta.

" � assim, de meninos, e com esta for‡a de vontade, que vencem.

"SÆo horas, minhas senhoras.

Beijou a mÆo …s fidalgas, abra‡ou a Mariazinha, e trepou gil para a carruagem.

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O Francisco, muito esmorecido, de chap‚u na mÆo, implorava: - O pequeno h -de cometer muitas faltas, pe‡o a Vossa Ex.a para o desculpar...

"‚ tÆo novito...

- Descanse, homem, fica ao meu cuidado

"creia que ter em mim um bom amigo.

As donas da casa abra‡aram o futuro africanista.

Chegou a vez da Mariazinha.

Foi para o Manuel o mais doloroso transe.

As l grimas dos dois confundiam-se numa ternura que a todos impressionou.

O Jer¢nimo quase teve de meter o corajoso emigrante na carruagem, ao colo.

Os cavalos escarvavam fogosos.

Um estalido seco do pingalim e puseram-se em marcha, numa arrancada violenta para um trote forte.

- Adeus, adeus, filhinho!

Ele j o nÆo podia ouvir.

75

Via-se apenas a mancha alvadia de um len‡o, como asa a adejar, a adejar...

Foi esbatendo, at‚ se sumir de todo.

S¢ entÆo, deram pelo Crist¢vÆo detr s do muro, a chorar como um chafariz.

- Olhem o pequenito! - exclamou Leonor surpreendida.

Correram para ele, encheram-no de mimos.

Os solu‡os arqueavam-lhe o peito, como se fosse estalar-lhe.

- Eram tÆo amigos, senhora condessa...

"Vossa Ex.a nÆo faz ideia, como se fosse uma s¢ alma em dois corpos...

"Agora, sozinho... esmorece-me...

O Crist¢vÆo, que ainda nÆo tinha articulado uma palavra, explodiu num grito lancinante:

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"Pai, deixe-me ir com ele!..."

Todos ficaram enternecidos.

A condessa disse … neta: "Vˆ se distrais o irmÆo do teu amiguinho. - A pequenita, ainda com as faces orvalhadas, levou-o consigo e murmurou-lhe esta enorme consola‡Æo:

- Vamos escrever-lhe uma carta.

X

Foram de uma tristeza infinda os tempos que se seguiram … partida do Manuel.

Parecia vazia aquela casa onde dantes dominava, sem se fazer sentir, a inteligˆncia daquela crian‡a de not vel precocidade.

A mÆe chorava …s escondidas do marido. Este fugia para as Fragas, onde ningu‚m o veria fraquejar.

Que intermin veis dias antes de virem not¡cias!

Como correria a viagem?

A pobre crian‡a sem um beijo, ele que fora criado num ambiente de ternura!

A saudade trazia-os sucumbidos.

O Francisco abordava o Jer¢nimo, a ver se na Torre teriam recebido alguma nova.

- Homem, nÆo pode ser... A bem dizer que ainda nÆo chegaram.

- Tem razÆo. Esta ƒnsia... esta inquieta‡Æo... NÆo como, nÆo durmo, nÆo sossego nem posso trabalhar.

"Se o rapaz me leva caminho, eu endoide‡o, Tio Jer¢nimo.

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- Qual carapu‡a !. . . Daqui a nada, desata a mandar para a¡ caf‚ e dinheirama, que vocˆ fica podre de rico.

- Bem me importa a mim com o dinheiro. ..

De Lisboa, o Almeida escreveu uma longa carta … condessa, descrevendo o ocorrido.

A coragem do pequeno vacilara ao perder de vista a aldeia onde deixava todos os que lhe eram caros e as melhores recorda‡äes da infƒncia.

"... P“s-me a mÆo no bra‡o, sufocado: - escrevia - Mande parar, pelo amor de Deus... Quero ir para a minha casa, nÆo posso mais...

Fixei-o, admirado.

- Essa ideia nÆo parece do rapaz sensato que todos me gabaram tanto!

"NÆo tinhas vergonha de aparecer na tua terra, sem levares ao fim o teu empreendimento, depois de teres dado tanto que falar?...

- NÆo pensei que custasse tanto...

"Eu morro pelo caminho.

- NÆo morres, nÆo. J passei por esses transes e estou aqui.

Finalmente o comboio, paisagens novas, o movimento, foram-no distraindo pouco a pouco, sem todavia o alegrarem.

Escrevo j do navio.

Agora est a olhar o mar e as gaivotas, estarrecido.

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O ®Lusitƒnia¯ parte de madrugada.

Mando pois as £ltimas sauda‡äes a Vossa Ex.a.

O Manuel tamb‚m escreveu, cheio de tristeza, mas incutindo a todos o ƒnimo que lhe ia faltando nessa hora ansiosa.

O Jer¢nimo contou tudo ao Moreira, que ficou desolado.

Da µfrica, as primeiras not¡cias foram do conde … mÆe.

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Trazia dentro uma cartita do Manuel para a fam¡lia.

O pequeno enjoara - contava -, chegara abatido e nost lgico.

"... Umas penas sem fim, naturais nesta idade. Aos vinte anos, senti-me sucumbido, que far este com doze...

� um beb‚... esqueceram-se de mandar o biberÆo...

Enfim, c me vou conf ormando com o papel de ama-seca.

O Almeida est encantado.

O rapazito conquistou um grande ambiente de simpatia.

Vou mandar-lhe ensinar linguas.

� inteligente, e tem uma ideia tÆo exagerada da sua situa‡Æo, que nos faz rir.

Janta connosco … mesa.

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� timido e delicado, respeitoso e observador.

A mat‚ria-prima parece-me de esplˆndida qualidade. Espero um resultado igual … esperan‡a.

Eram estas as boas novas.

O Martins rejubilou quando a fidalga lhe deu a carta.

Claro que transmitiu quase integralmente aos pais o que ouvira.

Os meses iam correndo e diluindo aquela imensa e desoladora m goa.

As not¡cias eram tÆo boas, que a alegria voltou tranquilizante a casa do Moreira.

O Crist¢vÆo recebia cartas muito ¡ntimas do irmÆo.

Respondia com in£meros pormenores, dando conta de todos os epis¢dios ocorridos na terra e especialmente das vezes que via a Mariazinha de longe ou de perto.

"Se me avista ao portÆo, corre para mim e pergunta sempre se tive carta.

Ela tamb‚m te quer escrever, mas ainda nÆo sabe.

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Ontem deu-me muitos bolos e uma pena de pavÆo para te mandar, porque queria que te lembrasses dela.

Disse-lhe que estivesse descansada, que nunca a esquecerias".

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No mesmo paquete em que o rapazito mandava estas novas animadoras, o Martins, amigo e confidente, escrevia de bem diversa maneira...

Sempre o conselho amigo e prudente, como se se dirigisse a um homem feito.

"NÆo te prendas a sonhos, que desaparecem ao acordar.

Vˆ a realidade como ela ‚.

Trabalha e vence, mas nÆo olhes para muito alto. S¢ as guias podem fitar o Sol".

XI

O Manuel nÆo sentiu na µfrica a desola‡Æo de um emigrado.

Era acarinhado por todos; pessoa de fam¡lia muito querida; um fen¢meno de quem se esperava tudo.

O conde achava engra‡ad¡ssimo aquele exemplar de doze anos com o racioc¡nio de um adulto.

Deu-lhe mestres, como ao filho, de quem come‡ou logo a ser companheiro e amigo.

Aproveitando a rara aptidÆo do garoto, mandou-lhe ensinar contabilidade.

Dentro em pouco era aproveitado para ajudar o guarda-livros.

;

A condessa nÆo sabia explicar porquˆ, pressentia que protegia uma pessoa leal.

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O pequeno era um topa-a-tudo, em quem confiavam absolutamente.

Logo de princ¡pio o patrÆo lhe estabeleceu um ordenadozito para o estimular.

O Manuel delirou. Podia mandar alguma _ coisa … fam¡lia e isso enchia-o de orgulho.

O conde observava-o com a maior aten‡Æo.

O Manuel habituou-se a comunicar-lhe todas ,

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as suas ideias, a tomar-lhe o conselho para as mais insignificantes coisas.

NÆo tinha intermedi rios.

Quando recebia o dinheiro, ia logo ter com o protector.

- Mando tudo a meu pai, senhor conde?

- NÆo, guardas um bocadinho para ti. Ser a base do teu futuro.

- Quando tiver muito, o que fa‡o, senhor conde?

- vais-te embora.

- Eu posso enriquecer depressa?

- NÆo tÆo rapidamente como desejar s, mas com certeza com mais facilidade do que os que nÆo querem nem sabem trabalhar.

- Depois, arranjo uma grande casa nas Fragas, falo a muita gente para o meu pai nÆo se fatigar. Corto as silvas da canada e fa‡o uma estrada para l irem os amigos, de carro.

Eram horas divertid¡ssimas para o conde ouvindo o rapazito riscar a linha do futuro com a seguran‡a de quem espera um fim brilhante.

"- Que extraordin rio bom senso! - dizia … mulher, contando-lhe as conversas que tinha com ele.

"Que desconsola‡Æo que o nosso Pedro nÆo seja assim...

- � muito crian‡a, deixa-o gozar.

"H tempo para ter canseiras.

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-�quase da idade do Manuel... mas que ; diferen‡a !..

"NÆo estuda, nÆo atende a nada... Assusta-me a ¡ndole do nosso filho.

"Pressinto que protegendo esta crian‡a, trabalho, sem o saber nem calcular, para o Pedro.

- NÆo ‚ de crer. Tem os teus exemplos. A quem havia de sair extravagante?

- Sei l .

- NÆo estragues as horas felizes com esses agoiros tenebrosos.

"O Manuel ser um grande homem, uma satisfa‡Æo para ti, que fazes dele o que ‚ e o que h -de vir a ser, Ver s. mas Pedro saber singrar por si.

- Tem crescido sem compreender as dificuldades, e olha que isso ‚ p‚ssimo para quem queira fazer carreira brilhante.

XII

O tempo correra!

A fortuna do conde multiplicara-se extraordinariamente.

O Manuel estava um belo rapaz com os seus dezoito anos feitos.

Criado no seio de uma fam¡lia distint¡ssima, tinha maneiras delicadas, como se lhe corresse nas veias sangue aristocr tico.

Caso estranho, Pedro era a completa ant¡tese dele.

NÆo conseguiam nunca interess -lo pelo estudo; gostava de aventuras galantes, no que se

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manifestou com rara precocidade.

Manuel desviava-o quanto poss¡vel do abismo para que o via caminhar …s cegas, mas nem tudo podia evitar.

Todos poupavam ao conde o desgosto de saber a rota desvairada que o rapaz seguia.

O Manuel, mais que ningu‚m o encobria.

Pedro, por‚m, abusava. O facto de o conde o ter protegido era um argumento com que o obrigava a tudo quanto queria.

- Tu nÆo podes negar-me seja o que for.

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"O que o pai te fez vale mais do que isso.

- Tem razÆo, mas a moeda ‚ diferente. Acedendo aos seus pedidos, nÆo correspondo … maneira bondosa como seu pai me recebeu e tratou.

- Olha, Manuel, falemos claro: o que te pe‡o ‚ meu; se nÆo disponho dele hoje, como desejo, disporei amanhÆ.

" � um adiantamento apenas.

"Al‚m disso, tu, com essa apregoada inteligˆncia, podes muito bem fazer sair uns contos de r‚is, sem ningu‚m dar por isso.

- Pedro, nÆo tem o direito de me falar dessa forma.

"Pode pedir-me o que ‚ meu, o que tenho ganho na casa de seu pai, o que devo … imensa generosidade dele, pode mesmo exigir-me o sacrif¡cio da minha vida, se for preciso para evitar um desgosto … fam¡lia a quem sou grat¡ssimo, mas obrigar-me a desviar um real da caixa, isso

nunca.

- Ficam-te bem essas tiradas briosas, e a dizer a verdade, a linha que tens seguido impäe-tas.

"H s-de concordar que os excessos de honestidade sÆo muito ma‡adores!...

O Manuel estava indignado.

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Afinal, tinha colaborado inconscientemente naquela obra, encobrindo ao pai os desvarios sempre crescentes do filho.

Pedro vivia … grande, jogava, metia-se em pƒndegas com amigos, e ultimamente uma bailarina

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de uma companhia de revista fizera extravasar a ta‡a.

Contra¡a d¡vidas; gastava, num momento, a pensÆo que o pai lhe estipulara; pedia a conhecidos, a amigos da fam¡lia, que ocultavam ao conde tudo para o nÆo mortificarem.

- Meu caro, arranja-te como quiseres; preciso de dez contos amanhÆ. Se os nÆo tiver, dou um tiro nos miolos.

O Manuel tinha vontade de esmagar aquele estroina, de lhe gritar, com todo o poder da sua voz, que tivesse ju¡zo. Mas o que devia ao pai...

Estava l¡vido. Numa resolu‡Æo r pida, como todas as que tomava nas grandes crises, disse-lhe, severo:

- Ter esse dinheiro, mas juro-lhe por tudo quanto prezo na vida que ‚ o £ltimo.

"SÆo os restos das minhas economias. Se pensar um dia em exigir mais, ver como ‚ f cil acabar com situa‡äes desgra‡adas.

"Pedro, arrepie caminho, que ainda ‚ tempo... Pense em sua mÆe...

- Ai, filho, deixa-te de sermäes.

"O gastar uns magros vint‚ns com a pessoa que amo em nada prejudica a estima pelos meus.

"SÆo coisas absolutamente … parte.

"O pai mesmo deve gostar que eu seja rapaz, como ele naturalmente foi.

- O senhor conde teve sempre a pondera‡Æo cavalheiresca de uma pessoa de idade. Levou os

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melhores anos da vida a trabalhar para salvar a casa quase perdida. Tem-lho ouvido tantas vezes como eu.

- Francamente, tu pareces-me parvo.

"Se o pai se mortificou, foi para que os descendentes passassem regaladamente.

"Seria de um mau gosto, incompat¡vel com a ‚poca presente, que eu me esgotasse a moirejar como ele e como tu.

"Meu caro, a linda Elsa espera-me.

"Obrigado e... nÆo penses em tristezas. Olha que o amor ‚ a £nica coisa boa no Mundo...

Abalou, assobiando alegre, meteu-se no carro e partiu a toda a velocidade.

O Manuel deixou-se cair numa cadeira, sucumbido. Afinal, o in£til era ele...

Viera para enriquecer, e pouco a pouco via desaparecer tudo...

Adorava os condes, e... afei‡oando-se ao filho, sacrificando-se por ele, nÆo obstava que se afundasse em lama a verg“ntea de uma das mais ilustres fam¡lias da metr¢pole...

Sonhos... os seus belos sonhos, dia a dia se iam desfazendo sem esperan‡a.

Depois de anos de exaustiva canseira, voltaria ao torrÆo natal tÆo pobre como viera.

Agora que se sentia cumulado de considera‡äes, era que a roda come‡ava a desandar.

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Para que aceitara o posto de administrador-geral, vago pelo regresso do Almeida a Lisboa?

Tinha ainda nos ouvidos as palavras do homem que sempre o distinguira com a sua amizade leal.

- "O Manuel fica a substituir-me, senhor conde.

"Pode confiar nele como em mim.

"Sabe fazer-se respeitar como uma criatura de idade.

"Al‚m disso, est a par de todo o movimento".

Assim sucedeu... e o Manuel evocava os bons resultados daqueles primeiros meses de experiˆncias. A casa realmente prosperava... mas ele...

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NÆo, nÆo podia pensar nisso. Tinha de aguentar a tormenta. Estava escrito.

Havia muito tempo que nÆo comunicava ao patrÆo o progresso das suas economias.

"Com certeza tem projectos de se estabelecer; nÆo lho posso levar a mal - pensava o conde.

" � justa a sua aspira‡Æo.

"Irei ao encontro dela, para o deixar … vontade.

- Manuel - disse-lhe um dia -, deves ter o teu pec£lio muito aumentado, tens com certeza delineado a tua vida, tomado uma orienta‡Æo nova, o que eu acho natural¡ssimo; surpreende-me apenas a tua falta de franqueza.

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O juvenil administrador empalideceu, como se responsabilidade de grave culpa impendesse sobre a sua cabe‡a.

- Senhor conde, sei quanto lhe devo e acredite que nÆo sou um ingrato...

- Mas isso nÆo impede que queiras estabelecer-te; crˆ que me tem surpreendido o teu silˆncio sobre o futuro.

- O futuro?... Mas est delineado, sem variantes.

"Vossa Ex.a educou-me, concedeu-me o honroso lugar que tenho e que sinceramente sinto que nÆo merecia.

"Estarei na sua casa enquanto de mim carecer.

"Vossa Ex.a deu-me o exemplo de trabalho, que calou na minha alma profundamente.

- Estabelecendo-te terias maiores proventos.

- Que me importa esse problem tico lucro?...

"Pelo amor de Deus, senhor conde, se os meus servi‡os lhe nÆo desagradam, nÆo falemos mais nisso.

"Em tendo o bastante para mandar a mesada aos meus...

- Felizmente recebes um ordenado que te d para acumulares bastante. Com o teu feitio econ¢mico...

O Manuel corou intensamente...

- Que se passar no ¡ntimo do rapaz?pensou o conde, intrigado...

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NÆo insistiu e, mudando de assunto, continuou:

- Quis tirar a prova real … tua dedica‡Æo. Estou satisfeito.

"Se na vida nÆo tivesse outra recompensa de algum bem que tenho feito... bastavam-me as tuas palavras para me sentir feliz.

"Fazes-me orgulho - e estendeu-lhe a mÆo leal.

Manuel, comovid¡ssimo, inclinou-se sobre essa mÆo protectora e beijou-a com o maior respeito.

O conde puxou-o a si num impulso irresist¡vel e abra‡ou-o enternecido.

- Porque nÆo me deu Deus um filho assim?...

XIII

Uma sombra, por‚m, persistia no esp¡rito do fidalgo.

"Que motivo o levar a ocultar-me onde coloca o dinheiro?

Desabafava com a condessa.

- H com certeza algum mist‚rio na sua vida, nÆo te parece?

- � melhor nÆo quereres saber...

"Alguns amores... ‚ tÆo natural...

"Bem vˆs que nÆo iria confessar-te um passo que certamente reprovarias...

- Preciso informar-me; o Manuel ‚ muito novo, nÆo vÆo por a¡ abusar da sua situa‡Æo!.

- Tem o senso de um velho ajuizado... nÆo receies nada...

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Um dia que o protegido saiu para fora da cidade, em servi‡o, o conde, depois de os empregados terem abandonado os escrit¢rios, entrou fechando-se por dentro.

Dirigiu-se … secret ria do administrador.

Sabia que o Manuel tinha uma escrita para os seus haveres.

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Conhecia tamb‚m o s¡tio onde ele deixava a chave das gavetas.

Cautelosamente, como se fosse fazer um furto, sentou-se na cadeira dele.

A chave l estava.

Tirou-a, olhou-a um momento, como quem teme uma s‚ria decep‡Æo, e... num movimento r pido meteu-a na fechadura.

Tudo na maior ordem.

L estava o livro vermelho, com o r¢tulo imponente - Os meus haveres.

Abriu. . .

Encontrou a nota dos pap‚is de cr‚dito comprados por indica‡Æo dele...

E na outra p gina, em letra miudinha - vendidos...

Foi folheando, com crescente e alarmante surpresa... sempre a mesma palavra: vendidos...

Nem um restava.

No fim, um pacotinho de notas vermelhas da casa banc ria onde tinha realizado as opera‡äes...

- O rapaz joga... - saiu-lhe dos l bios, alto, em tom amargurado.

"Est perdido...

"Isto ‚ mais s‚rio do que se pensa...

" � novo de mais... nÆo pode ser...

"Que pena... que pena...

Desde esse dia o Manuel foi vigiado h¢ra a hora.

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O conde aparecia inesperadamente onde ele estava. Foi aos Bancos saber as opera‡äes que ele tinha efectuado.

Tinha vendido, por sinal sem esperar melhor oportunidade, mas... apesar disso fez uma boa transac‡Æo - informou o amigo do conde.

- O seu gerente ‚ admir vel... Muitos lho invejam...

- Realmente tem dado provas extraordin rias... - confirmou.

Þntimamente, por‚m, a d£vida tomou-lhe o esp¡rito, e o conceito em que o tinha foi fortemente abalado.

Voltava a confidenciar … companheira o tormento em que se debatia.

- Queres que eu lhe diga alguma coisa?

- Seria da pior pol¡tica.

"Tenho de descobrir, custe o que custar.

Os aposentos de Pedro e do Manuel eram num pavilhÆo, separado do pal cio pelo jardim.

A¡, estavam independentes e •ptimamente instalados.

O luxo do quarto do filho da casa era no de Manuel substitu¡do por uma nota alegre e de bom gosto que a todos maravilhava.

O conde ia l , uma vez ou outra, cavaquear com o pupilo.

Pedro era raro estar em casa.

Depois do jantar, nesse dia; conversaram uns instantes e sa¡ram.

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- NÆo vos demorais um pouco

- Vou falar com uns amigos, pai...

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- Eu tenho de escrever; h depois de amanhÆ paquete - disse o Manuel.

- Tens razÆo.

Da janela, viu-os atravessar o jardim, pararem um momento, trocarem algumas palavras

que nÆo p“de ouvir, e depois de um gesto desabrido de Pedro, Manuel ficar parado, a olh -lo...

enquanto o avistou...

Voltou para junto da condessa preocupad¡ssimo.

- NÆo te sai do pensamento essa ideia. ..

- Se te parece... o homem em quem tenho depositado uma confian‡a ilimitada.

- Nem todos tˆm o teu ju¡zo. . . Coisas da mocidade... nÆo ligues importƒncia...

- Essa ‚ boa !. . Tenho de ligar. . .

"Bem vˆs que o que nÆo governa o seu dinheiro, dificilmente pode dirigir o alheio.

- Duvidas do Manuel?

- Preciso saber o que ele faz ao que ganha.

"Compreendes que h um ano a esta parte os seus lucros tˆm sido qualquer coisa de importante, que nÆo ‚ vulgar ganhar um fedelho que ainda nÆo tem vinte anos.

- NÆo pode ser, o Manuel era incapaz de dar um passo em falso.

- Mas entÆo que fez ao ordenado, pois vendeu

99

absolutamente tudo que eu lhe tinha indicado que comprasse?

"H um grande mist‚rio na sua vida.

"Comigo nÆo brincam. NÆo admito que abusem da minha generosidade.

"NÆo tenho descanso. Vou terminar com isto.

"Perderei algumas noites, mas serei eu o pol¡cia secreto.

"S¢ em mim, afinal, posso ter seguran‡a.

"Come‡arei hoje.

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"o Pedro j saiu, o amigo nÆo deve tardar a segui-lo.

Vestiu um casacÆo, por causa do relento.

"NÆo esperes por mim.

"Pressinto que o vou apanhar hoje na ratoeira.

- Deixa l a mocidade folgar - aventou a condessa.

- Tudo tem limites... Vamos ter a certeza do que se passa.

Desceu a escada do jardim, cautelosamente, atravessou-o e foi meter-se num maci‡o de verdura.

Dali observava tudo sem ser visto.

No gabinete de Manuel havia luz.

"Lˆ ou trabalha - pensou.

"mais cauteloso.

Correu uma hora de silˆncio completo.

Pela cabe‡a do conde passavam mil suposi‡äes. Haveria mulher, ou jogo?

100

Se o Manuel o enganara, estava certo que tinha acabado a seriedade no Mundo.

Ouviu um arrastar de cadeira... passos; abriu-se a janela, e o rapaz olhou ansioso a noite negra, a noite triste... Fez um gesto de desalento e voltou para dentro.

Da¡ a pouco apagou-se tudo!

"- Quer sair agora - presumiu D. Ant¢nio Alvito no esconderijo.

Nada... um silˆncio absoluto...

Outra hora se escoou na mesma monotonia enervante.

Depois a luz acendeu-se e apareceu o Manuel, de pijama, interrogando a escuridÆo com vis¡vel ansiedade.

pelo Mundo a perturbar a serenidade de quem quer ganhar o que precisa...

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Uma catilin ria caiu, impetuosa, sobre coristas, actrizes e todo o g‚nero de mulheres que se permitem vida fora dos moldes impostos pelos bons costumes.

Estava fulo!

A silhueta do protegido desapareceu de novo.

Voltava ao gabinete de trabalho - deduzia, pela claridade que se deslocava.

Era madrugada, quando o rodar de um carro lhe chamou a aten‡Æo.

101

O portÆo abriu-se impetuosamente e Pedro atravessou ligeiro o jardim.

Entrou, sem fechar a porta.

O conde saiu do esconderijo, coseu-se com a parede at‚ ao pavilhÆo.

Ouviu-o falar alto e com arrogƒncia.

Podia entrar sem darem por ele.

Um reposteiro forneceu-lhe ¢ptimo abrigo...

A conversa continuava em tom irritado.

- Que mania de te arvorares em mentor! Quem te encomendou o sermÆo?

"O pai paga-te para trabalhares e nÆo para te intrometeres na vida ¡ntima da sua fam¡lia.

- Pedro, repare no que diz.

"O muito que devo a seu pai ‚ que me leva a velar por si.

- dedique-se …s ro‡as, e nÆo ‚ pouco.

"Afinal, ‚s um atrevido, como todos os tipos sa¡dos das camadas inferiores.

- NÆo lhe mere‡o o insulto, mas desculpo-lho como todos os vexames que se tem lembrado de me impor como obriga‡Æo.

"Agora, por‚m, meu amigo, esbarrou com o imposs¡vel.

"Gastou tudo que era meu; vendi h poucos dias as £ltimas inscri‡äes que possu¡a, para o senhor extravaganciar. Concluiu a sua obra.

"NÆo tente de forma alguma mover-me a tocar nos capitais de seu pai.

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102

"Nunca o conseguir .

"Prefiro dar um tiro na cabe‡a.

- Imbecil! ... E pensas tu que eu acreditava que um menino de dezanove anos pudesse ter ganho tanto dinheiro honradamente?!

- Pedro...

- Roubaste, roubaste o meu pai em teu proveito e negas ao filho uma porcaria indecente, que ele nunca notaria como nÆo deu pelo roubo.

Pedro, triunfante, julgando ter ganho a partida, saracoteou-se, fanfarrÆo:

- A mim, nÆo iludes tu.

Ao voltar-se, deu com a figura do pai, im¢vel como uma est tua, no limiar da porta.

Saiu-lhe do peito um ah! de extraordin rio espanto.

O Manuel, aniquilado, nÆo deu pela presen‡a do conde senÆo quando lhe ouviu a voz.

- E ‚s tu o meu filho!... o herdeiro do meu t¡tulo e do meu nome honrado!...

" �s tu o futuro representante de uma das mais nobres fam¡lias portuguesas?!

"Fazes-me corar de indigna‡Æo e vergonha!

"Ousas insultar o brioso rapaz que tudo sacrificou para nÆo delatar essa vida insensata em que tens consumido os teus dias?

"LadrÆo, o Manuel...

103

"Positivamente, tu nÆo ‚s meu filho, ‚s um monstro, uma aberra‡Æo, um erro da Natureza.

"Porque nÆo te fiz passar a vida amarga dos que trabalham para ganhar o sustento?

Pedro, vexado, curvou a cabe‡a como um criminoso.

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" �s ainda bastante mo‡o para te poderes escapar … minha tutela.

"Numa casa de correc‡Æo ‚ o teu lugar, cabe‡a louca, opr¢brio dos nossos antepassados.

"Eu nÆo merecia este castigo.

"Porque escolheste o Manuel para v¡tima?

"At‚ nisso foste cobarde.

"Os vadios tˆm tamb‚m os seus brios.

"Tu... desgra‡adamente perdeste tudo...

O Manuel, de p‚, muito p lido, olheiras profundas at‚ meio das faces, nÆo sabia como serenar a exalta‡Æo do protector.

- Senhor conde, todos n¢s temos na vida horas negras, em que nÆo se resiste a tenta‡äes irreflectidas...

- Onde estÆo as tuas horas insensatas? Onde estÆo os teus erros?

- Eu sou pobre.

- Oh! mas riqu¡ssimo de sentimentos...

- Senhor conde, bem sabe quanto o estimo.

"Se esta amizade sem limites me desse direito

104

a uma recompensa, a um favor enorme, eu pedia o perdÆo para seu filho.

" � muito novo, h -de arrepiar caminho; ‚ ainda tempo.

- Casa de correc‡Æo, casa de correc‡Æo ‚ o que posso conceder...

"NÆo falemos mais nisso.

E, sem esperar mais solicita‡äes, desapareceu.

Um silˆncio acabrunhante pesava como chumbo sobre os dois rapazes.

Pedro nÆo ousava levantar a cabe‡a.

Sentia-se esmagado pelo procedimento de Manuel, a quem tÆo cruelmente injuriara.

"Sou um canalha, pensava, mas nÆo tinha coragem de lhe pedir desculpa.

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O orgulho estava em guerra aberta com um natural fundo de bondade que as m s companhias nÆo conseguiram destruir.

O amigo atentou nele serenamente.

Decidiu-se a p“r cobro a tÆo desagrad vel situa‡Æo.

Caminhou para ele, pegou-lhe numa das mÆos a escaldar.

- Escute...

Pedro ergueu os olhos, espantado, como se acordasse de um mau sonho.

- Entendo que este triste epis¢dio deve ser o ponto final da sua vida anterior.

"NÆo se fala mais no passado.

"Tenha coragem para encetar um per¡odo

105

diferente, que a todos fa‡a esquecer estas rajadas da mocidade.

- Tu nunca me perdoar s.

- � essa a maior ofensa que pode fazer-me.

"O prazer que sentirei vendo o seu procedimento futuro ser a minha maior consola‡Æo.

- E o pai?

- Havemos de mostrar-lhe que se regenerou, que lhe gira nas veias o sangue nobre e en‚rgico de uma fam¡lia nobil¡ssima.

- E ela... Manuel, como h -de ser?...

- Tudo se arranjar de forma a nÆo haver descontentes.

- Elsa adora-me, tu compreendes...

Manuel sorriu sem dizer uma palavra.

- Duvidas...

- NÆo... mas se o Pedro quer, eu arrumo-lhe o assunto. Vida nova, vida nova, meu caro.

"Deixe-se guiar por mim"

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- E o que te devo?

- NÆo falemos nisso.

Passeou agitado no gabinete.

Junto da janela, arredou a cortina e viu luz no escrit¢rio do conde.

- � preciso ir sossegar seu pai. Eu nÆo tardo.

XIV

Umas pancadas leves na porta de entrada arrancaram o conde ao marasmo inconsciente em que o prostrara a cena que surpreendera.

Ele, tÆo forte em todas as crises que atravessara, sentia-se agora absolutamente incapaz de resistir …quela tremenda punhalada da sorte.

O pal cio estava mergulhado no mais profundo silˆncio.

Veio ele abrir a porta; os criados estavam h

muito deitados.

- �s tu?. . Tinha o pressentimento de que virias...

"Precisava de te ver, de te falar... de te pedir perdÆo...

- Senhor conde, por caridade, nÆo me fa‡a; arrepender de ter vindo...

;

- Sim, sim, eu sou muito culpado, Manuel.

"Afinal, ainda nÆo tinha atingido bem toda a beleza moral do teu car cter.

Manuel sorriu...

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- NÆo falemos no que nÆo interessa; eu sou como toda a gente que cumpre o dever, e nada mais.

- O dever fica muito longe do que tu fizeste.

O fidalgo passeava nervos¡ssimo; o Manuel, em p‚, junto da secret ria tentava seren -lo.

- Um canalha... um canalha...

"Tu nÆo podes compreender esta horr¡vel dor

de pai.

" � como se v¡ssemos ruir a obra que consider vamos monumental.

"Um filho... ‚ a esperan‡a, o futuro, a continua‡Æo da nossa vida...

" � tudo para quem tem amor de fam¡lia.

"Perdˆ-lo ‚, por assim dizer, ver desaparecer quanto constitu¡a o maior interesse da existˆncia.

"Antes, mil vezes antes, ele tivesse morrido...

- Pedro vai mudar.

- Tu, com essa amizade por mim, foste o seu c£mplice...

"Meu pobre Manuel - continuou em tom brando -, como todos te pagam mal tamanha abnega‡Æo! a tua incompar vel bondade...

"At‚ eu estava j pronto a acusar-te... Vˆs

como o mundo ‚?...

- O senhor conde tem toda a razÆo, eu tive a culpa.

"A princ¡pio exigia-me pequenas quantias e prometia-me emendar-se.

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"Eu queria apenas evitar, a quem tanto devo, o menor desgosto.

"Depois, j o nÆo pude sustar.

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"Queria mais e mais; nÆo vinha nunca ao escrit¢rio; eu nÆo o podia acompanhar para lhe evitar certas companhias, e assim foi cair nas garras dessa aventureira.

"O desastre foi medonho!

"Nada chegava; ‚ uma criatura bela, segundo dizem, um autˆntico vampiro. Tem custosas exigˆncias e compreendeu que o terreno era bom para manobrar.

"NÆo foi poss¡vel desvi -lo do abismo...

"Por mim, tinha apenas um pensamento fixo: poupar ao senhor conde esta sensaboria.

"Pensava, e penso, que aquele estouvamento h -de passar.

"Pedro ‚ muito novo, paga o seu tributo … mocidade e depois tudo correr bem.

"Como um caso estranho … minha vontade trouxe a Vossa Ex.a o conhecimento desta ocorrˆncia, a meu ver sem importƒncia, tive uma ideia e vinha comunicar-lha.

"A Companhia que trouxe essa mulher partiu, e ela ficou como sanguessuga a aproveitar a oportunidade que era de molde a favorecˆ-la.

"Se Vossa Ex.a quer, eu procuro-a, proponho-lhe um contrato. Abalar mediante uma soma que se estipular.

- E ela concordar ?

110

- Exponho-lhe o caso.

"Pedro nÆo tem dinheiro; elucido-a sobre a situa‡Æo econ¢mica dele.

"Aceitar tudo; compra-se-lhe a passagem e liquida-se a questÆo.

- Seria magn¡fico.

- Pedro est abatido, aproveita-se a depressÆo em que se encontra.

- �s admir vel, rapaz... Bem-haja quem patrocinou a tua vinda.

Manuel sorriu.

- Aben‡oada a hora em que conheci esta fam¡lia.

Olhou o rel¢gio.

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- � quase manhÆ, senhor conde.

"Era bem Vossa Ex.a repousar.

- E tu?

- Eu j nÆo posso, para entrar no escrit¢rio a tempo.

- ·s nove horas estarei contigo. Pretexta-se qualquer neg¢cio e tu vais tratar disso.

"E ele, esse desgra‡ado, que nÆo me apare‡a.

"NÆo tenho por enquanto disposi‡Æo para o ver.

E Manuel saiu.

O conde ficou-se abismado em profundas reflexäes.

"Que car cter, que sensatez! Este, sim, ‚ que ‚ o meu descendente.

111

O filho do conde continuava amarfanhado. NÆo mudara de posi‡Æo.

- Pedro! EntÆo? � preciso dormir.

- NÆo posso, a cabe‡a parece que me estala.

- Deixe-se de tolices... Vida nova!

"Pe‡a perdÆo a seu pai e nÆo se pensa mais no passado.

- Ele nunca mais me estimar .

- Um arrependimento sincero vale por uma vida irrepreens¡vel.

Elucidou-o sobre o plano projectado.

- Elsa adora-me, nÆo partir sem mim.

Manuel deu uma gargalhada.

- Ing‚nuo, ing‚nuo. No dia em que lhe faltar o dinheiro, acaba o amor.

"Vamos fazer a experiˆncia.

"Daqui a horas teremos resolvido o grande problema.

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"Agora v -se deitar e durma um sono reparador.

Pedro ergueu-se e, num impulso irresist¡vel de crian‡a mimada, abra‡ou-se ao amigo, a chorar comovidamente.

- E tu, Manuel, querer s perdoar-me?

- Ora, ora, nÆo falemos nisso; tratemos do futuro com energia e vontade.

"O passado ‚ um cad ver.

XV

Os empregados ficaram at¢nitos ao darem com o conde, logo de manhÆ, no seu gabinete.

Que haveria?

A secret ria do Manuel estava vazia..

O patrÆo, de vez em quando, sentava-se na cadeira do administrador.

Dava grandes mostras de impaciˆncia e preocupa‡Æo. ·s vezes chegava … janela e cravava na rua o olhar ansioso.

Eram quase horas de fechar, sem que tivesse a menor not¡cia.

Pedro ficara de cama. Era o melhor partido a tomar para nÆo alarmar a mÆe.

Deram cinco horas.

A impaciˆncia do conde crescia. Passeava, inquieto, nos grandes escrit¢rios agora vazios.

Era muito tarde quando o Manuel chegou. Vinha com ar feliz.

- EntÆo?

- Tudo corre como desejamos.

"A mulher o que quer ‚ dinheiro.

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114

"Just mos, regateei, como se tratasse com uma peixeira, e... j lhe comprei a passagem para Lisboa.

"Venho directamente da agˆncia.

- Bravo, Manuel! �s extraordin rio!

- NÆo ‚ da mesma opiniÆo a senhora Dona Elsa, que quase me insultou... Teve um ataque de f£ria. Para a serenar foi necess rio exceder-me em boas maneiras... e exageradas promessas.

"NÆo estava com meias medidas. Queria casar com o Pedro.

- Sim senhor! ... Essa ‚ de primeira ordem! Mas em que ficou?

- Em partir no pr¢ximo vapor, se lhe derem trinta contos.

- Dava-lhe cem para a ver a tantas l‚guas daqui quantos os centavos dessa soma.

"Bom, temos o barco em boas guas, gra‡as a ti, Manuel.

"Agora ser s tamb‚m a alma boa a trazer ao

bom caminho quem tÆo extraviado dele tem

andado.

- Creio firmemente na modifica‡Æo de Pedro.

" � um bom, impulsivo e impression vel.

"Eu ‚ que fui um fraco. Devia ter agido doutra maneira.

"Apoderou-se de mim um pƒnico horr¡vel

115

com a ideia de o senhor conde poder adivinhar o que se passava.

"Queria poupar-lhe um dissabor e... foi pior.

"Tenho de pedir-lhe mil perdäes; a inten‡Æo era boa.

- NÆo est mal... Sacrificas-te, sofres quantas afrontas o senhor meu filho se lembrou de te infligir... e ainda tenho de perdoar?

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"Pobre rapaz!... NÆo te auxiliei com o intuito de te fazer v¡tima dos meus. Quero-te para amigo e desejo que prosperes. Assim ‚ que est certo.

Pedro era agora vigiado com o maior cuidado.

O conde nÆo o perdia de vista e pedia com insistˆncia ao Manuel para o nÆo abandonar.

Quando o terreno ‚ bom, nÆo ‚ dif¡cil fazˆ-lo produzir bem.

Os resultados tinham sido ¢ptimos.

Elsa desaparecera, e o rapazinho foi, insensivelmente, perdendo o h bito das m s companhias.

Sem dinheiro, deixou de ser o amigo solicitado e indispens vel para as est£rdias caras.

No dia dos anos do Manuel, festejado como os da fam¡lia, o conde ofereceu-lhe uma pasta elegante.

116

Dentro, todos os pap‚is que ele tinha negociado para dar ao filho.

Quis o acaso que, guiado pelos documentos de venda encontrados na gaveta do administrador, pudesse ir … casa compradora onde estavam ainda os n£meros vendidos.

Manuel, quando deu com o conte£do da pasta, fez-se l¡vido.

- Senhor conde... eu nÆo posso nem devo aceitar este dinheiro... NÆo ‚ justo.

- E achavas razo vel que eu admitisse o teu preju¡zo? Basta o que sofreste! ...

E abra‡ou-o enternecidamente, carinhosamente, como a um filho muito querido.

O Manuel estava comovid¡ssimo.

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- � o dia dos teus anos; aproveitei-o, para, aqui, no seio da minha fam¡lia, que tem sido a tua, repetir a observa‡Æo que h dias te fiz.

"Est s novo, e tens j , gra‡as … tua orienta‡Æo, um capital que poucos se gabam de possuir na tua idade.

"Deves ter sonhos, aspira‡äes. Toda a gente os tem.

"O facto de te ter recebido na minha casa nunca pode ser um obst culo a que sigas a tua rota.

"Responde-me lealmente: queres estabelecer-te?

O Manuel, que o olhava com a maior aten‡Æo e curiosidade, tomou um ar grave, tÆo imperioso

117

que o protector quase se arrependeu de haver falado daquela forma.

- Senhor conde, a insistˆncia num assunto que julguei para sempre posto de parte, leva-me a crer que ‚ Vossa Ex.a o descontente com os meus servi‡os.

"Permita-me tamb‚m que uma vez tenha uma s‚ria exigˆncia.

"Desejo que seja franco para comigo.

"NÆo me quer … frente da sua casa? Sairei sem que a minha gratidÆo diminua a mais insignificante parcela.

"Aqui tem o meu pedido.

- Tenho neste momento um grande desgosto, Manuel: que tu nÆo sejas meu filho.

"Pois o meu presente de anos nÆo ‚ restituir-te o que era teu.

"NÆo to dar, seria sancionar um roubo. E bem sabes que isso nÆo est no meu car cter.

"Hoje mesmo se vÆo assinar as escrituras em que tu ficas meu s¢cio.

Manuel estremeceu.

- Senhor conde... eu nÆo consinto...

- Tem de ser; mais dia menos dia vou-me embora e tu ficar s a governar o barco, tratando dos meus neg¢cios; seria um feroz ego¡smo que eu nÆo tenho; associando-te a mim,

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h , claro, um grande fundo de interesse, porque sei a quem confio a minha fortuna, mas deixa-me dar-te

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esta nota de... recompensa, de pr‚mio aos teus servi‡os.

"Aceitas a missÆo, nÆo ‚ verdade?

- Senhor conde... eu nÆo sei exprimir-lhe o que sinto.

"Tudo me parece inexplic vel.

"A razÆo, por‚m, diz-me que eu devo ficar, a zelar a sua casa, mas nÆo permitindo esse rasgo de generosidade.

- � a vontade de meu marido, deve ser a tua, Manuel - interveio a condessa, que o adorava.

- A partida de Vossa Ex.a corresponde para mim a um pesado luto.

"Vim, pobre exilado, em busca da sorte e encontrei carinho, bem-estar, protec‡Æo, tudo quanto se pode desejar.

"Agora s¢... serei como o barco sem leme...

E num gesto en‚rgico:

"Mas fico, custe o que custar.

"Tenha a certeza, senhor conde, que por si e

pelos seus darei a vida.

- Grande amigo - disse o fidalgo, comovido, uma l grima furtiva a rolar ousada pelas faces calmas.

"Como ‚ consolador proteger uma alma assim!

"Sabia antecipadamente o que ias responder-me. Sentia-o, adiv inhava-o. ..

"Tu nÆo ‚s deste s‚culo, Manuel.

" �s uma excep‡Æo.

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- Vossa Ex.a exagera. Eu sou como os outros como a grande maioria.

"Cumpro o meu dever e nada mais.

- Deveres... deveres! Quem sabe a significa‡Æo dessa palavra na hora que passa?

"Conhe‡o, por experiˆncia, como todos cumprem as suas obriga‡äes, como interpretam as ordens.

"Claro que nÆo sei ainda quando ser a nossa partida definitiva; estes meses quero que os v s

passar junto dos teus, matar essas grandes saudades de tantos anos!

"Pensas que nÆo adivinho o desejo ardente que tens de ver o torrÆo natal?

"Nunca me pediste para ir!...

"Muito mais te admiro; muito mais ganhaste no meu conceito.

- Meu grande amigo, meu querido protector. Como hei-de agradecer-lhe tantos benef¡cios?

- Continuando a ser o homem de sempre, de quem me orgulho, como da obra mais perfeita da minha vida.

"E aqui tens o teu presente de anos.

Manuel, comovid¡sssimo, nÆo sabia como exprimir a sua gratidÆo.

Assim acabou aquele dia de surpresas, depois de uma ‚poca de tremenda intranquilidade.

XVI

Da¡ a pouco tempo, Francisco Moreira recebia inesperadamente um telegrama anunciando a vinda do filho no primeiro paquete.

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Foi um alvoro‡o em casa e em toda a aldeia.

A vida tinha mudado muito durante aqueles anos.

Os Moreiras viviam sem dificuldades. O Francisco j nÆo cavava de sol a sol nas Fragas. A Ana passava mais confort…velmente.

O Crist¢vÆo andava em Coimbra frequentando com distin‡Æo a Universidade.

NÆo tinha necessidade das economias do Martins, gra‡as … generosidade do conde.

Na terra tudo corria com a mesma regularidade calma, sem incidentes que alterassem a pacatez provinciana.

Enquanto a Mariazinha nÆo soube escrever, foi o Crist¢vÆo o intermedi rio entre ela e o irmÆo.

Mandava-lhe perguntar tudo o que fazia e dava-lhe conta do que por c se passava.

122

Quando soube ligar as letras, foi do Manuel que se lembrou logo.

Voaram para ele as suas primeiras manifesta‡äes epistolares, que ele l ao longe guardava como preciosas rel¡quias.

· maneira que se iam desenvolvendo, a correspondˆncia intensificava-se.

Eram j trocas de impressäes de duas almas que se entendiam e buscavam ansiosas o mesmo ideal de beleza.

Maria Joana era inteligente.

A vida de prov¡ncia dava-lhe tempo para uma cultura s¢lida, que o Martins orientava sabiamente.

A biblioteca do solar da Torre era ¢ptimo manancial para adquirir conhecimentos.

A neta da condessa tinha curiosidades liter rias que os meios de que dispunham lhe deixavam satisfazer amplamente.

Mandava ao seu amigo os livros dos melhores autores, dando e pedindo o parecer sobre eles.

Estabeleciam interessantes pol‚micas que eram o mais saboroso passatempo dos dois.

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O Manuel enviava-lhe lindos presentes. Mimos delicad¡ssimos que da Öndia, da China e da Alemanha chegavam …s costas africanas, onde o dinheiro abunda.

A condessa observava interessada aquela amizade que nem o tempo nem a distƒncia logravam arrefecer...

123

"Queira Deus, queira Deus, nÆo degenere em paixoneta este afecto que me parece j fundamente enraizado!....

Mas logo a confian‡a absoluta no car cter de Manuel serenava o seu esp¡rito momentƒneamente alarmado com um casamento tÆo desigual.

"Isto de preconceitos - pensava - ‚ uma tolice.

"A verdadeira aristocracia ‚ a da honestidade e a da inteligˆncia.

"Mas v a gente escapar-se ao jugo at vico da selec‡Æo de castas.

"Onde encontraria ela um marido como o Manuel?...

"NÆo pode ser - segredava-lhe o orgulho de ra‡a.

"Nem ela desceria nunca a unir-se ao filho do Francisco Moreira...

Logo, por‚m, o bom senso protestava.

"Que tem afinal o homem?...

" NÆo ‚ rico... Ora... esse ‚ o mal de muitos fidalgos de linhagem.

"Honrado como poucos...

"Que ideias me ocorrem, meu Deus... SÆo duas crian‡as que nunca mais se viram... Quando se encontrarem ‚ poss¡vel que tenham um grande desapontamento e o mal est cortado pela raiz.

Com o seu natural bom humor, arredou do esp¡rito esse teimoso pensamento para ler o telegrama do filho, anunciando a vinda do Manuel.

124

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A fidalguinha delirou com a not¡cia.

A av¢ espiava-a.

Tranquilizou-se ao ver a franca expansÆo da neta, sem o menor constrangimento.

"NÆo, nÆo era amor o que ela sentia.

"Se o fosse, esconderia aquela ruidosa alegria, aquela explosÆo de entusiasmo.

"Nada havia a temer.

"Era imprudente qualquer observa‡Æo que fizesse acordar nela um sentimento novo.

Mariazinha estava nesta altura uma linda rapariga de dezasseis anos, alta, esbelta como a av¢ e as tias.

Vivendo sempre num ambiente de bondade, ignorava que houvesse no mundo vileza, cobardia, trai‡Æo.

NÆo sabia ocultar o que sentia, nem precisava de o fazer.

As cartas para o Manuel eram encantadoras.

Todos conheciam aquela ass¡dua correspondˆncia, todos a liam, se queriam, e ningu‚m se lembrou jamais de a interpretar … maneira de id¡lio.

Aquilo era um entretenimento, uma conversa de amigos, que todos podiam ouvir.

No dia em que veio a not¡cia da pr¢xima chegada do filho do Moreira, Maria surpreendeu-se v rias vezes abstracta, olhando sem ver.

Era a primeira vez que tal lhe acontecia.

Afinal, a volta do Manuel preocupava-a.

125

M…l se lembrava dele... partira h tanto tempo. . .

Queria reconstituir-lhe a fisionomia... mas as reminiscˆncias falhav am. NÆo podia... e entÆo confrangia-se. .

O Manuel era... um mito.

Fantasiara um ser dotado de todas as perfei‡äes, .a quem se dedicara, a quem se sentia presa.

Teve uma revolta ¡ntima.

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Tudo o que fizera fora um disparate.

Sabia l como ele estaria... Um homem... mas como? Alto, baixo, bonito ou horripilante?.

Desesperava-se em conjecturas, verificando perturbada que fosse como fosse f�sicamente, essa criatura de moral perfeit¡ssima, a quem todos estimavam e consideravam, nÆo lhe era indiferente.

Mas... se ele fosse horr �velmente feio, e lhe aparecesse queimado pelo sol africano, esverdinhado pelas biliosas, enfiado num fato branco muito engomado, como certos brasileiros que ela conhecia.

Que mania a de nunca lhe ter mandado um retrato, tendo ela enviado tantos...

Havia para isso uma razÆo forte, que come‡ava a preocup -la.

Neste matutar absorvente, levou toda a manhÆ e toda a tarde.

NÆo p“de estudar, nÆo p“de ler, e para que

126

a nÆo obrigassem a tocar, resolveu meter-se na cama inventando umas ligeiras dores de cabe‡a.

- Que aborrecimento! .. . Que terror se apoderou de mim... ligando tanta importƒncia … figura do rapaz...

Depois, lembrava-se do Crist¢vÆo.

- Se for como o irmÆo... ‚ simp tico... e elegante... tem uma voz bonita.

Nessa persuasÆo serenou e adormeceu tranquilamente.

Foi tÆo profundo o sono, que s¢ acordou ao meio-dia.

Receavam j que estivesse doente. A alegria voltou-lhe e uma f‚ como se tivesse a certeza de se nÆo haver enganado nas suas suposi‡äes.

XVII

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No mesmo dia, em casa do Moreira, parecia tudo doido.

Logo que recebeu o telegrama, correu, desorientado, a casa do Martins.

Os que o encontraram, naquela atitude, sem chap‚u, e tÆo desconcertado, ele o homem sereno e ponderado, perguntavam ansiosos:

- Que lhe aconteceu, senhor Francisco?

- Vem a¡ o meu Manuel - respondia, sem parar.

A not¡cia espalhou-se num instante.

O professor, sentado … porta do jardim a espreitar o Sol, na sua cadeira de verga, quando o viu naquela postura, sobressaltou-se.

- Que tens tu, Francisco? Vens desfigurado.

- Leia, leia, mestre...

O velho ajeitou os ¢culos e pegou no telegrama: "Sigo primeiro paquete - Manuel.

Com uma alegria imensa a animar-lhe a fisionomia, bradou:

-D c esses ossos, homem! Bravo!... Temos festa rija...

"Ainda bem que Deus me nÆo levou sem o abra‡ar.

"Mas que diabo de resolu‡Æo foi esta?...

128

"Na £ltima carta, nem esperan‡as dava de vir tÆo cedo...

- NÆo sei, senhor Martins. . .

E logo, sombreando-se-lhe o parecer:

"...A nÆo ser que o meu pequeno esteja doente... e o senhor conde ache conveniente mand -lo a ares...

"que queira espairecer.

"Depois, segundo me consta, o senhor conde vem para o ano, e como o rapaz ‚ o bra‡o direito dele... manda-o agora.

- Se assim for...

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- Pois que h -de ser? A mania que vocˆs tˆm de estragar as horas luminosas com inven‡äes tr gicas...

- Tem razÆo, meu amigo.

O Martins, ent£siasmado com a nova, p“s-se a divagar.

- O receio que eu tive ao vˆ-lo partir...

"O ˆxito excedeu toda a minha expectativa.

- � verdade, mestre... e a si devemos tudo.

- Cala-te, lisonjeiro. Que podia a minha boa vontade, se o Manuel nÆo sa¡sse de boa tˆmpera, Se a mat‚ria-prima nÆo fosse de ¢ptima qualidade?

"Que seria, tamb‚m, se nÆo encontrasse no seu caminho algu‚m de alma generosa, aberta a todos os empreendimentos simp ticos?

129

"O triunfo de Manuel foi devido a uns poucos de factores que se conjugaram para o mesmo

fim.

"A vontade do indiv¡duo enfraquece se nÆo

encontra ambiente que o ampare; sucumbe se a

luta ‚ violenta e o lutador ‚ fraco.

"Os primeiros passos sÆo os mais custosos.

"Desbravar o carreiro, por onde se h -de

prosseguir...

- Foi esse amparo, esse aux¡lio, o mais importante, que ele deve ao senhor Martins, ao querido mestre, que al‚m de lhe ensinar as letras o guiou na vida, o que eu nÆo sabia fazer.

"Formou-lhe a alma e o cora‡Æo.

"Deve-lhe tudo.

- Tinha nas veias sangue puro. Atavismos. Sabe-se l de que long¡nquos antepassados se herdam certas virtudes ou defeitos?!

"Os meus ensinamentos, em terreno ruim, nada produziriam.

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"Tens o exemplo na terra que amanhas.

"D s iguais cuidados …s courelas pedregosas das encostas que aos prados, e vˆ l se produzem o mesmo milho.

- Tem razÆo, mestre; mas sem amanho tamb‚m a terra boa nÆo dar nada.

- Sim senhor, muito bem dito.

"Sais-me fil¢sofo … £ltima hora...

"Este canto ‚ aben‡oado... Produz surpresas... agrad veis...

130

"Ora muito bem... dentro em pouco a¡ temos o nosso her¢i.

"Hoje ‚ quinta-feira; vou … Torre, como ‚ costume, tomar ch .

"Por l hei-de saber grandes novidades.

"Aparece amanhÆ.

"Se estivesse a tarde bonita, iria at‚ …s Fragas. ..

"Mas este maldito reum tico...

O Francisco ergueu-se com pouca vontade de partir.

Sentia-se tÆo bem junto do amigo...

Viu, por‚m, que era urgente ir tratar dos preparativos para a recep‡Æo.

O tempo passava sem se dar por isso.

Naturalmente a vinda do Manuel coincidia com as f‚rias da P scoa.

Era ouro sobre azul, por causa do Crist¢vÆo.

- J se vˆ que conto com o senhor Martins para o festim da chegada. NÆo me atrevo a pedir para ir … esta‡Æo...

- NÆo era preciso o teu convite; j tinha no programa o associar-me a tudo.

O Francisco agradeceu, muito comovido, e l foi vida.

Em casa, a Ana perdera a habitual serenidade. Dava ordens e contra-ordens. Perdia o s¡tio das coisas, andava para tr s e para a diante, sem fazer nada.

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131

Quando viu o homem aparecer, ainda com o telegrama na mÆo, como trof‚u de gl¢ria, pela primeira vez, depois de tantos anos de casada, teve um irreprim¡vel assomo de c¢lera.

- Realmente, Francisco, nÆo esperava isto de ti.

"Abalar, sem mais nem menos, deixando-me sozinha com esta babil¢nia, sem saber para onde me hei-de voltar...

"NÆo te lembras que tem de vir o caiador alvear a casa, que tens de falar a um carpinteiro para desempenar estas portas que nÆo fecham, que tens de p“r vidros nas janelas que os tˆm partidos?.

"Nada te d pena, alma do Senhor, e eu que me lembre de tudo... sem ter quem me ajude em nada.

- Oh! mulher, descansa. Temos muito tempo. Olha que o rapaz nÆo vem pelo fio... como o telegrama. Ainda ele nÆo embarcou...

- Guarda tudo para a £ltima hora, que h -de ser bonito...

"Quem me dera ter um g‚nio assim...

"Tu bem sabes a rala‡Æo que se passa para arranjar qualquer coisa...

"Aqui nÆo ‚ nenhuma cidade.

"Meu rico filhinho, se c o apanho ainda julgo que ‚ mentira.

A labuta continuou sem tr‚guas at‚ ao £ltimo dia.

XVIII

Amanheceu deslumbrante de esplˆndidas claridades o dia vinte de Abril.

Na aldeia nÆo se falava senÆo no regresso do Manuel.

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- Como viria? - interrogavam-se mutuamente.

- Da µfrica... torrado como caf‚ - alvitrava um.

- Naturalmente cheio de toleima. ..

- Est rico, nÆo deve falar a todos. H -de querer parecer mais que os outros.

- Pouco h -de viver quem nÆo h -de ver.

Havia mal escondidas invejas, comprazendo-se em aventar hip¢teses sem nenhum fundamento.

O conde pedira … mÆe que proporcionasse ao Manuel todo o conforto, que suprisse o que faltasse em casa dos pais.

"O seu recomendado, mÆe, tudo merece.

" � um car cter quanto lhe fizermos, ser pouco, comparado ao muito de que ‚ credor.

"Creia que nÆo exagero.

"O Manuel deve estranhar a falta das comodidades que aqui tem.

134

"Gostava que lhas remediassem tanto quanto possivel.

O Martins levou a not¡cia de que iria … esta‡Æo o autom¢vel da condessa.

Os pobres pais deliraram.

Em que conta tinham o filho!...

Logo de manhÆzinha a faina era desusada em casa do Francisco.

As camas todas tafuis, com os seus travesseiros de rendas largas, colchas garridas, tecidas pela melhor tecedeira da regiÆo, com esquisitos lavores de lÆ num fundo de linho.

Toalhas nos lavat¢rios, quase todas de renda, que s¢ tinham servido nos alegres domingos de P scoa para o folar do senhor prior.

Duas cozinheiras de fama lidavam na prepara‡Æo do jantar, que devia ser servido logo ap¢s a chegada do viajante.

O Manuel viria com o irmÆo, com quem se encontrara na capital.

O pai, o senhor Martins e o senhor prior tinham ido … esta‡Æo.

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Toda a manhÆ a Ana levou num desassossego. Estremecia se ouvia o trote de um cavalo na rua. At‚ o dem¢nio do burro do moleiro, carregado de taleigos, a fizera dar uma corrida tal que ia torcendo um p‚.

- Arrenego-o eu, criatura! Logo hoje, . havia de vir a esta hora com o jerico.

135

- Venho todos os dias, a senhora Aninhas bem sabe...

- � verdade, ‚; o meu filho ‚ que nÆo chega todos os dias de µfrica, nem vem a cavalo... Eu nem ando em mim.

- Deus lho traga em bem, senhora Aninhas. At‚ amanhÆ.

- NÆo, homem, vocˆ almo‡a c .

"Hoje, gra‡as ao Alt¡ssimo, h a¡ fartura para todos.

"Arrume o animal e entre.

NÆo ‚ f cil descrever-se o alvoro‡o da chegada.

MÆe e filho prenderam-se num abra‡o intermin vel.

- Amor da minha alma!...

"Meu rico filho!...

· volta, havia l grimas em todos os olhos.

A aldeia em peso estava em frente da casa do Francisco.

Homens, mulheres, velhos e novos queriam ver e abra‡ar aquele portento.

As crian‡as adiantavam-se de boca aberta e ar pasmado.

Uma, descalcita e rota, agarrada …s saias da mÆe, nÆo desfitava o Manuel...

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- Päe ali os teus olhos, filho... Aquele ‚ um exemplo... O que ele tem feito … fam¡lia...

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"Todos … grande, tudo pelo pulso dele.

Uma pequerrucha, abafada pelo ajuntamento, gritava: "MÆe, eu tamb‚m o quero ver...

- Que lindo! - dizia uma - Quem acreditar que esteve no sertÆo?!

- � verdade... vem mais claro que os de c ...

- E que bem-parecido! A bem dizer que mete o irmÆo num chinelo.

- Ele ‚ que parece o doutor!

A casa estava cheia de gente.

Quase nÆo o deixavam respirar.

- Vamos ao jantar, mulher - bradou o Francisco -, lembra-te que o nosso filho h -de trazer vontade.

- � verdade, ‚ verdade, meu amor... Que fome deves sentir!

Os grandes da terra tinham o seu lugar … mesa.

O senhor Martins … direita do antigo disc¡pulo; … esquerda o senhor prior; depois, o regedor e os amigos mais ¡ntimos.

Os recados ferviam, dos que nÆo podiam vir.

Chegavam tabuleiros de doces, a‡afates de frutas e bilhetes.

A boa Ana estava doida de contente.

Da Torre veio um portador, com bolos finos,

137

pudins e outras guloseimas que a Ana colocava na mesa, deslumbrada.

Enfim, no seio da fam¡lia!...

O Manuel estava satisfeit¡ssimo.

Tudo aquilo lhe parecia um sonho.

Encontrava os velhos amigos quase na mesma. NÆo havia altera‡äes sens¡veis a notar.

Como era bom sentir-se acarinhado por todos !

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Que deliciosa recompensa para esses largos anos de ex¡lio, aquele calor de afectos...

No meio de todo este entusiasmo comunicativo, nÆo lhe passava da mente a ideia dominadora, a d£vida mortificante; ƒnsia e receio do que seria o encontro com Maria.

Tinha pressa de a ver... e temia uma desilusÆo...

Como seria recebido?

Como estaria a formosa menina, que deixara de oito anos, linda como um anjo?

Pelos retratos, via que o tempo tinha aperfei‡oado aquela obra-prima, e o irmÆo descrevia-lha como uma deusa.

Devia ser boa e generosa como a fam¡lia.

Mas... que impressÆo lhe faria ele?

Quanto mais se aproximava o momento de a ver, mais o temia.

O jantar nÆo tinha fim.

Os brindes sucediam-se em rajadas de orat¢ria.

138

O saboroso "porto a todos tinha desembara‡ado a l¡ngua.

Longas tiradas de r‚t¢rica, donde fora banida a gram tica como estorvo … influˆncia desmedida de adjectivos que atiravam ao Manuel como chuva de flores.

Velhos e mo‡os viam tudo cor-de-rosa.

NÆo havia uma nuvem no c‚u, para os que ali reunidos, a solenizar a chegada do africanista, discursavam com eloquˆncias demost‚nicas.

O Crist¢vÆo, quando viu que o entusiasmo dos convivas permitia a fuga sem ser notada, escapou-se da mesa e fez sinal ao irmÆo para o seguir.

A vozearia continuou, sem que ningu‚m desse pela falta do orago do dia.

Foram para o quarto.

Um suave perfume de alfazema emanava das roupas da cama.

O Manuel sentou-se naquele trono farfalhudo onde ia dormir ap¢s tantos anos de ausˆncia.

Acendeu um cigarro e dispunha-se a conversar.

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Pela janela aberta de par em par entrava uma aragem branda, toda impregnada de aromas campesinos.

Estendia-se-lhe ante os olhos deslumbrados o cen rio antigo, onde dera os primeiros passos da vida.

139

Prados verdes, arvoredo copado e, l ao longe, a furar por entre aquele mar de exuberante vegeta‡Æo, a torre do condado, como castelo medievo.

O olhar do Manuel vagueou um instante, detendo-se no ponto alvadio que indicava a vivenda senhorial.

O Crist¢vÆo observava-o e descobriu o ponto que o atra¡a.

- NÆo vais hoje … Torre?

- Devo ir... mas... tenho medo...

- Medo de quˆ? Onde est o valente que todos louvam e aclamam, que abalou. por esses mares fora em cata de fortuna?

- Crist¢vÆo, tu nÆo podes compreender o que se passa em mim neste instante belo e horr¡vel.

"A incerteza do que me espera lacera-me as carnes como um cil¡cio.

"A minha cabe‡a ‚ um vulcÆo. NÆo me deixa fixar em coisa alguma.

"Oh! tu nÆo podes entender este estado de alma, porque nunca amaste.

- Ai, nÆo!... Tenho-me fartado de ter namoros.

- Isso nÆo ‚ amor, Crist¢vÆo.

"O amor ‚ bem diverso.

" � uma for‡a estranha, a que obedecemos cegamente.

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" � um poder oculto que nos manda marchar de encontro ao imposs¡vel, com a convic‡Æo de triunfar.

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"Foi por ela, por essa crian‡a loira e linda, que teve uma influˆncia decisiva na minha vida, que eu parti.

"Por ela, s¢ por ela, que tenho sacrificado o melhor tempo da mocidade, numa az fama exaustiva, com um £nico fim: vencer para lhe agradar.

" Por ela, s¢ por ela, que aos vinte anos quase me sinto fatigado.

"E crˆ que s¢ por ela vivo e s¢ para ela vivo.

"Entendes a grandeza deste amor intenso, absorvente, dominador, que desde a infƒncia me prendeu?

"Pois ‚ assim que eu lhe quero.

"Podes avaliar a indecisÆo, o temor que sinto, ao cabo deste lidar insano, de topar a indiferen‡a, uma delicadeza reservada, uma amabilidade que gele, por vir apenas das praxes estabelecidas e nÆo do cora‡Æo.

- Que diabo, as cartas parecem-me transparentes como o mais puro cristal...

- S¢ leio nelas todo o afecto de uma irmÆ para um irmÆo, toda a franqueza, toda a lealdade... mas... compreendes que tudo isso ‚ pouco para o muito que eu preciso, para o imenso que desejo, para satisfazer esta paixÆo que j nÆo ‚ menina e que ora me d energias espantosas,

141

que a mim mesmo surpreendem, ora desalentos que me nÆo deixam reagir.

"Crˆ que a situa‡Æo ‚ grave.

- Deixa-te de tolices, homem! Vai hoje mesmo e j .

"NÆo h como as resolu‡äes repentistas.

"Nem pareces tu, com essas hesita‡äes.

"Sai pelo quintal, que eu entretenho esta gente.

- Tenho receio de a ver, Crist¢vÆo.

O irmÆo teve uma explosÆo de riso.

- Pois olha que nÆo mete medo a ningu‚m.

" � uma formosura.

"Mas nÆo te assustes... nÆo a ver s, por certo.

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"NÆo te espera agora e ter ido, como costuma, … quinta da Granja, para casa dos av¢s.

Crist¢vÆo foi buscar-lhe o chap‚u, p“s-lho na cabe‡a e quase o empurrou pela escada do quintal.

- Anda l , meu cobardalhÆo.

"Amedronta-te mais uma mulher que os elefantes dos tr¢picos...

O Manuel, quase … for‡a, sentiu-se na rua, enquanto o irmÆo cantarolava: "llons, enfants de sa Patrie, le jour de gloire est arriv‚..."

- Cala-te, por Deus...

- Bonne chance, meu bravo.

E veio para dentro, a correr, para que nÆo dessem pela falta do festejado.

XIX

O Manuel seguiu pelo caminho que anos antes percorria diariamente quando ia … escola.

Ia profundamente impressionado...

Tudo tÆo seu conhecido...

Nada mudara.

Algumas rvores mais altas... um muro caiado de novo... Mais abaixo um outro esboroado pelo tempo.

Um silˆncio... aquele silˆncio majestoso que acorda no fundo da alma as recorda‡äes que dormitavam.

A tarde estava linda! Serena e transparente.

Cruzaram com ele alguns garotos que o olharam admirados, saudando-o, surpresos.

Era a gera‡Æo nova, os que tinham crescido na sua ausˆncia.

· beira da estrada os eucaliptos haviam medrado prodigiosamente.

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A encosta fronteira estava completamente arborizada, quase escondendo a capelita da Senhora da Agonia, que morava no alto do monte.

144

Os olhos iam descobrindo essas belezas naturais que se desenrolavam numa opulˆncia magn¡fica naquele torrÆo privilegiado.

Os jasmins e as glic¡nias dependuravam c para fora tufos floridos, ricos de cor e perfume, como se engalanassem as paredes para a passagem de alguma procissÆo.

Que delicadeza de tons!

Os cedros colossais, da parte de dentro, contrastavam com esta suave tonalidade, emprestando ao quadro um fundo escuro.

Foi andando.

Cada vez relentava mais o passo.

Que horr¡vel timidez o fazia estremecer como se o amea‡asse um perigo de morte.

Estava em frente do portÆo que raro acaso deixara entreaberto.

Entrou. Estava no solar da Torre.

Parou um instante.

NÆo bulia uma folha.

Os paväes passeavam imponentes pelas leas desertas. As caudas ro‡agantes davam-lhes ares senhoriais...

Pombos arrulhavam, enamorados, inflando os papos e arrastando as asas.

Era o parque da bela adormecida.

Foi andando subtilmente.

Parecia-lhe um crime perturbar aquela serenidade id¡lica da natureza.

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Sonhava e nÆo via.

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O velho leÆo, o cÆo de guarda, estendido na relva, rosnou sem se mover.

Agitou as orelhas e ergueu-se de um pulo, nada tranquilizador.

Mas logo, como se o passado se lhe erguesse na frente de s£bito, agitou a cauda festivo, atirando-se ao rec‚m-chegado, nas mais expressivas demonstra‡äes de carinho.

Manuel ficou aterrado:

A lembran‡a da velha amizade com o molosso destruiu r…pidamente todo o temor.

O cÆo correu para o antigo caramanchÆo, como que a indicar-lhe o caminho.

Manuel avistou a mancha clara de um vulto de mulher.

- Se fosse ela!

O cora‡Æo batia-lhe agitado.

Continuou em passos lentos e cautelosos.

A pessoa estava de costas, lendo sossegadamente.

Manuel p“de admirar a silhueta escultural da leitora.

O LeÆo, por‚m, achou conveniente anunci -lo. Ia e vinha, numa impaciˆncia louca, para despertar a aten‡Æo de quem nÆo dava por ele.

Vendo que nÆo surtiam efeito os infrut¡feros esfor‡os, resolveu usar outro estratagema. P“s as patas no rega‡o da dona, e com o focinho atirou-lhe o livro ao chÆo.

146

- LeÆo! Que malcriado! Isso nÆo se faz, ouviu?

Ergueu-se, sacudiu o vestido e apanhou o livro.

Ia sentar-se de novo, quando notou nÆo estar s¢.

Um "ah!, misto de admira‡Æo e surpresa, escapou-se-lhe dos l bios.

- Mariazinha! - disse Manuel, perplexo

perante a beleza extraordin ria da adorada

amiga de inf ƒncia.

- Manuel! - exclamou, tornando-se rubra.

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- Como chegou aqui, sem eu dar por isso?

- J me nÆo trata por tu?... - disse, tomando nas suas a mÆo delicada que se lhe estendia cordialmente.

- Que alegria!. . Se soubesses como te esperava ansiosa!

- Minha querida amiga... nÆo esqueceu o

selvagenzito que eu era?

- Nunca... Manuel... nÆo era poss¡vel.

"Sabes que guardo religiosamente o teu primeiro presente?...

- NÆo me recordo.

- Um piÆo, que fizeste com todo o esmero.

- Ah!... Quanto lhe agrade‡o!

- Lembras-te da rolinha que me deste?

"Viveu at‚ h bem pouco tempo.

"Creio que morreu de saudades... tuas.

147

- De saudades pensei eu que acabava sem tornar a ver a dona dela...

- Se assim fosse... hav¡amos de nos encontrar no outro mundo...

"Deus nÆo gosta de separar os grandes amigos...

- NÆo podia ser; a amizade d alento, d vigor, d vida.

- Mas conta, que novas me trazes dos meus?

- àptimas, Mariazinha, estÆo de magn¡fica sa£de.

- Quando vˆm, sabes?

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- Definitivamente, no pr¢ximo ano. Por isso vim agora.

- Tu vais ficar na µfrica eternamente?

- Alguns anos mais... nem sei. Seu pai manda... Todavia necessito arranjar o bastante para viver desafogado no futuro.

-Que pena!... Preferia que nÆo fosses...

- Devo substituir o senhor conde. ..

- Oh... mas isso ‚ imposs¡vel... nunca mais voltarias...

- Assim seria, se ele o exigisse; se para bem de todos for preciso o meu sacrif¡cio, nÆo hesito.

- NÆo tinhas pena?... - disse em voz sumida que mais parecia uma censura.

- Por Deus, Mariazinha, nÆo me fale nisso, que me tiraria a for‡a para prosseguir na rota que tracei.

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"As saudades mortificam, mas... se junto delas se aninha a f‚, a cren‡a num futuro compensador, em horas, em segundos que valem uma existˆncia de sofrimento, tudo se d por bem empregado.

"Esperan‡as, sÆo por assim dizer o combust¡vel que alimenta a m quina humana; sem esse divino apoio, pararia fatalmente.

"H por vezes incertezas... d£vidas que dilaceram a alma... escurecem o horizonte... de tal maneira, que nÆo se vˆ um palmo adiante de n¢s...

- Nunca se deve perder a confian‡a, Manuel. Eu nunca a perdi.

"Tinha a certeza de que chegarias, e ainda mais, tÆo meu amigo como no tempo em que me trouxeste a rola e o piÆo.

- Nem um dia a esqueci, minha doce amiga, farol que me guiava e em que eu tinha os olhos postos, deslumbrado.

"Eram as suas cartas o est¡mulo e o vigor para nÆo esmorecer.

- Se mo tivesses dito, ter-te-ia escrito mais vezes.

- O que eu lhe pe‡o ‚ que continue a dar-me as suas consoladoras not¡cias quando eu for de novo para longe de si.

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- Prometo-te que nunca deixarei de tas dar, aconte‡a o que acontecer.

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- Nunca? - interrogou, fitando-a significativamente.

- Juro-to.

- Obrigado, minha querida amiga.

Maria Joana estendeu-lhe a mÆo, que ele beijou comovido.

- Agora, vamos - disse, sorrindo.

"O LeÆo ‚ capaz de ter ido contar … av¢ que est s aqui... e ela pode reparar.

Seguiram, ao lado um do outro, pelas leas desertas que levavam ao pal cio.

Manuel ia recordando o passado.

Evocava as risonhas noites de Natal que o traziam preocupado todo o ano.

Via a Mariazinha, loira e linda como um bambino de Rubens, a tagarelar com ele.

O prazer que sentia ao transpor o majestoso portÆo do solar onde morava a dona dos seus amores. ..

O tempo, no seu rolar vertiginoso, nÆo alterara o aspecto das coisas.

S¢ ela, a linda fada que o encantara, se transformara numa formos¡ssima donzela.

Junto do alpendre, o LeÆo, que os precedera, veio esper -los, agitando a cauda festivamente.

- Eu nÆo te dizia, que este bisbilhoteiro foi dizer quanto viu e ouviu? Queres ver como as tias aparecem j e a av¢?. .

De facto, passado um instante, surgiram Leonor e Maria da Gra‡a, ao cimo da escada.

150 SARAH BEIRAO

- O Manuel! - exclamaram ao mesmo tempo numa explosÆo de j£bilo.

Este curvou-se gentilmente diante das duas senhoras, de quem tinha as mais gratas recorda‡äes.

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A condessa acorreu ao alarido.

Recebeu-o de bra‡os abertos, como a um filho estremecido.

Mariazinha explicou como se tinham reconhecido sem apresenta‡Æo.

- Ai, filha, para isso nÆo era necess rio ter inventado a p¢lvora... sabias que o Manuel tinha chegado... os visitantes aqui nÆo abundam...

A condessa passou logo a querer saber por mi£do como estavam o filho, a nora e o neto.

A tarde passou rapidamente nessas informa‡äes que deleitavam a bondosa senhora.

Depois as aten‡äes voltavam-se para ele...

Parecia imposs¡vel, como do pequenito acanhado que partira oito anos antes, se fizera o rapagÆo gentil e airoso que ningu‚m reconheceria.

- Que maravilhosas transforma‡äes produz o tempo nos novos e que destro‡os nos velhos...

- A senhora condessa nÆo faz a mais pequena diferen‡a.

"Quem chega de fora ‚ que pode avaliar.

"Vossa Ex.a est exactamente como quando parti.

- NÆo sejas am vel at‚ esse ponto.

151

"Agrade‡o-te a consola‡Æo, mas falemos de ti, que ‚ mais interessante.

"As cartas de meu filho dizem quanto se pode dizer de bom.

- Favores do senhor conde, minha senhora, que eu nÆo mere‡o, creia.

Com uma mod‚stia que j nÆo estava em uso, narrou como passara aqueles longu¡ssimos oito anos.

Como se instru¡ra, devido … imensa bondade do protector.

- Tudo o que eu fizer pelo senhor conde, minha senhora, nada ‚ perante o imenso que lhe devo.

"Se necessitasse da minha vida, podia dispor dela livremente.

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- Que bela qualidade a juntar …s muitas que possuis, Manuel.

"A gratidÆo passou de moda, quase ningu‚m a compreende j .

"O meu filho semeou em bom terreno.

"Sinto-me satisfeit¡ssima por ter colaborado nesta bela obra.

"Agora, que vens fatigado desse trabalho exaustivo, precisas aproveitar o tempo divertindo-te, correndo o nosso lindo Portugal de l‚s a l‚s, para levares uma grande bagagem de recorda‡äes.

- O meu maior empenho ser estar junto da fam¡lia e dos amigos. Adoro a minha aldeia.

152

- Talvez j te custe a habituar a este meio...

- H -de custar-me mais, partir de novo.

"Tinha tÆo profundas saudades...

"Lembrava-me de tudo, senhora condessa.

"A Lua parecia-me menos bela e o Sol menos brilhante em µfrica.

"A imagina‡Æo tem um poder criador assombroso.

"Enfeita as reminiscˆncias vagas, como se f“ssemos em verdade grandes artistas.

"Nunca vi terra que mais falasse ao meu cora‡Æo, que o cantinho onde nasci.

- Tem gra‡a... julguei que te tivesses desprendido por completo da nossa Beira.

"Os que emigram cedo desenra¡zam-se. Tomam outros amores.

- NÆo se perdem as primeiras afei‡äes.

"Onde pass mos a primavera da vida, a¡ ficamos amarrados, por brandos la‡os, mas... que nunca se desfazem.

- curioso! Olha que eu tamb‚m, depois de grandes e lindas viagens, sentia sempre o desejo ardente de voltar ao meu ninho bem-amado.

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- Quanto tempo te demoras, Manuel?perguntou Maria Leonor.

- Trago seis meses de licen‡a, minha senhora.

- EntÆo nÆo passas c o Natal? - interrogou Mariazinha.

- O senhor conde disse-me: ficas trˆs meses

153

em casa e outros trˆs passeias. Mas eu prescindo de sair daqui.

- O prazo ‚ prorrog vel... - disse a condessa, sorrindo.

"Vou escrever nesse sentido ao Ant¢nio.

- NÆo devo ser exigente.

"NÆo perderei um instante destas horas felizes que tarde voltarei a gozar.

- Tencionas permanecer muito tempo em µfrica? - inquiriu Maria da Gra‡a.

- S¢ o senhor conde poderia responder a Vossa Ex.a.

"Se ele quiser que fique a substitu¡-lo, ‚ poss¡vel que o meu desterro seja por toda a vida.

" � indispens vel deixar l pessoa de absoluta confian‡a para lhe zelar os interesses.

- Sacrificas-te, sem hesitar?

- NÆo ‚ sacrif¡cio, ‚ dever, senhora condessa.

"Eu reconhe‡o quanto lhe devo.

"Quando fui daqui, um selvagenzito, vestido como um labrego, sem saber coisa alguma, o senhor conde nÆo teve o menor escr£pulo em me abrir os bra‡os, em me sentar … sua mesa elegante, junto da sua fam¡lia.

"Orientou-me, deu-me os mesmos mestres que ao Pedrinho, e nunca a sua grande alma, o seu grande cora‡Æo desdenharam o pequeno modesto, nunca a sua nobreza se vexou de trazer ao lado, como se fosse parente, o insignificante filho do Francisco Moreira.

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154

A condessa sentiu uma l grima orvalhar-lhe a face.

As filhas curvaram-se atentas sobre revistas que nÆo viam, para ocultar a como‡Æo.

Maria Joana, a mais impressionada de todas, fingiu espreitar pela janela qualquer coisa que muito a interessava.

- Tens razÆo, o meu filho ‚ um santo. A ele devemos tudo.

"Tu sabes, Manuel, sabe-o toda a gente, a situa‡Æo angustiosa em que fic mos depois da morte de meu marido.

"O condado esteve em risco de ir … pra‡a.

"O Ant¢nio, ningu‚m o ignora tamb‚m, sacrificou heroicamente a sua mocidade e partiu s¢, sem protec‡Æo, sem nada, a nÆo ser uma f‚ inabal vel, uma energia de ferro, uma coragem sem limites.

"Lutou, venceu, salvou-nos, triunfou.

"Oh! que todos perdoem esta vaidade de mÆe. NÆo posso ocultar que tenho por ele um verdadeiro culto, uma admira‡Æo extraordin ria.

"Acolheu-te, aconselhou-te, protegeu-te, tens razÆo de ser grato.

"Mas tu, Manuel, eras tamb‚m de tˆmpera excepcional.

"Possuis qualidades e virtudes que nÆo sÆo frequentes.

"Tens retribu¡do briosamente quanto ele fez por ti.

155

"Sei como te considera.

"Reconhecem-no todos que te sabem o gerente geral e s¢cio da sua enorme casa.

- Honra que eu nÆo mere‡o, senhora condessa.

"Espero, no entanto, desempenhar o meu cargo de forma a nunca desmerecer no seu conceito.

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"Eu nÆo sei bem se o senhor conde j avaliou at‚ onde vai a minha dedica‡Æo, o meu infinito reconhecimento.

- � bom nÆo exagerares - disse, sorrindo - e vamos agora ao mais importante.

"Meu filho insiste, nas cartas que nos trouxeste, o que ali s nÆo era preciso, porque era essa a nossa ideia, para que sejas nosso h¢spede durante a tua estadia na Beira.

"Tens os teus aposentos preparados.

"Creio que nÆo nos recusar s esse prazer...

- Oh! senhora condessa... nÆo sei como agradecer tanta bondade...

"Mas bem vˆ que era imposs¡vel.

"Meus pais nÆo se conformavam.

"Minha pobre mÆe vai viver para mim estes meses que passam como o vento.

- Podias ir l todos os dias, e ficares connosco - alvitrou Mariazinha.

- Certamente - apoiaram as tias.

"Era bem para n¢s todas.

156

"Temos tanto que perguntar-te dos nossos

queridos ausentes...

- Virei aqui sempre que Vossas Ex.as queiram.

- O nosso gosto seria que nÆo sa¡sses de c .

A tarde correu r pida, contando epis¢dios de

µfrica, a sua grande amizade pelo Pedrinho.

- � um c bula, o meu neto - disse a condessa, longe de presumir os excessos do futuro titular.

- � muito crian‡a. Com os anos compreender melhor a vida.

- Tu ‚s tÆo crian‡a como ele e...

- Por Deus, senhora condessa - disse, interrompendo a fidalga -, nÆo compare.

"Pedro ‚ rico, nÆo precisa trabalhar.

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"O meu caso ‚ absolutamente diverso.

"Sou pobre, tinha de ajudar meus pais e de formar meu irmÆo...

- A fortuna ‚ caprichosa, Manuel.

"Grande era a nossa casa, e baqueou, apenas porque faltou mÆo firme para a governar.

"Quem pode prever o futuro?

"S¢ uma coisa resiste aos embates violentos do destino, sÆo as qualidades morais, a for‡a de vontade que vence todos os obst culos e que ergue o lutador … maior altura.

"Foi essa coragem que impeliu o meu filho e que o levou ao ˆxito.

" � essa chama ardente que atrai os predestinados, que te guiou a ti e que pressinto h -de levar-te longe.

157

"Muito pouco h -de viver quem te nÆo vir rico, Manuel.

- NÆo tenho grandes aspira‡äes, senhora condessa.

"Domina-me apenas um desejo. Ser £til a quem me protegeu, a quem me amparou e instruiu. O resto ‚ secund rio.

"A felicidade nÆo consiste na riqueza; tamb‚m se vive bem, modestamente.

- Decerto; mas o dinheiro d conforto, e olha que nÆo h felicidade completa sem ele.

"Fala-te a experiˆncia, Manuel.

"Eu sei os transes medonhos por que passei, com os meus filhos pequeninos e a tormenta a bramir furiosa … minha volta.

"Foi horr¡vel.

"Por isso eu prego sempre as teorias novas.

"O trabalho, £nica via que conduz … vit¢ria.

"Nunca, por maior que seja a fortuna, devemos deixar de vigiar os nossos bens, de dirigir, para que nunca uma surpresa desagrad vel nos colha desprevenidos.

- Tem razÆo, senhora condessa; al‚m disso, o trabalho ‚ uma enorme distrac‡Æo. Quando nos envolvemos nesse labirinto, nem tempo h de pensar em tristezas.

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- Felizmente, nÆo as tens no teu activo, nÆo ‚ verdade?

- Quem as nÆo tem, senhora Dona Leonor?. .

- Ora... ‚ preciso nÆo confundir com umas

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saudadezitas que h muito se tinham esbatido. O tempo tudo apaga.

- Sempre vivas, como se ontem tivesse partido...

- �s um rapaz admir vel, uma verdadeira

// Excep‡Æo. iuruia a crcs uc vviiai aia niiia.

"Tenho pena que combinassem tudo de forma a teres de voltar para µfrica.

"Que bela companhia nos farias...

"Habitu mo-nos a considerar-te da fam¡lia...

- Muito obrigado, senhora condessa.

"Nunca esquecerei o que devo a Vossa Ex.a.

Ergueu-se, para se retirar.

- EntÆo j vais embora?

- Vim sem dizer nada, deixando a casa cheia de convidados.

"NÆo deram pela minha sa¡da, mas com tamanha demora, j agora julgaram que me perdi...

"Como se eu nÆo conhecesse isto a palmos...

- Tens razÆo em quereres ir, mas h s-de deixar-nos a promessa de vires amanhÆ jantar connosco.

- Vossa Ex.a manda.

Maria Joana e as tias acompanharam-no familiarmente at‚ ao alpendre.

O Manuel, visivelmente emocionado, perdera a natural verbosidade.

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O LeÆo, agitando a cauda, seguiu-o at‚ ao portÆo.

XX

O africanista era o homem do dia.

NÆo se falava noutra coisa.

Todos os grandes da terra e dos arredores o vieram cumprimentar, com a maior considera‡Æo.

Os pais nÆo cabiam em si de contentes.

NÆo podia, pois, dispor do tempo como desejava.

Vinham busc -lo das povoa‡äes pr¢ximas, de carro, para almo‡ar, para jantar, para tomar ch , para toda a ordem de manifesta‡äes de simpatia, que pouco ou nada o interessavam, mas que nÆo podia recusar.

Era um exemplo que os pais de fam¡lia queriam apresentar aos da mesma idade, como est¡mulo, a obrig -los a seguir pela mesma vereda.

Aos que tinham filhas casadoiras sorria a expectativa de vir a ser genro.

A tudo isso o Manuel correspondia com a m xima gentileza, mas sem entusiasmo.

Nos passeios matinais, como em menino, era certo passar pelo condado.

160

Muitas vezes avistava ao longe o vestido alvadio da fidalguinha, mas... nem ousava cumpriment -la.

Ficava alegre para todo o dia, e … tarde ou … noite ia … Torre indispensavelmente, onde todos o esperavam com ansiedade.

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Sempre com a Mariazinha ‚ que menos falava. Caso curioso, cada vez se sentia mais acanhado diante dela. Quanto mais perto estava, mais afastado se julgava.

Tamb‚m a notava menos comunicativa que no primeiro encontro.

A alegria come‡ou a fugir-lhe. Uma preocupa‡Æo constante a empanar-lhe a felicidade.

O velho Martins observava-o com muita aten‡Æo.

- Rapaz... cuidado... O cora‡Æo ‚ mau conselheiro.

"Depois... ·s vezes d -lhe na tineta de ter asas e... agora o vereis...

"Abala como um foguete...

- NÆo h perigo, mestre; o meu foi sempre um servo humilde da razÆo.

"A cabe‡a domina os meus actos.

"Nunca tive medo dos impulsos de rapaz, que nunca experimentei.

"Fa‡o sempre o que entendo e quero.

161

- Vˆ l ... nÆo blasones muito de forte, que podes fraquejar como os outros.

- Estou habituado a vencer maiores perigos.

- Podias afastar-te um pouco mais... Vejo-te, por‚m, a atear com prazer a chama que h -de devorar-te...

- NÆo receie nada... Sei viver com os meus pensamentos... com os meus sonhos. Esses ao menos sÆo livres para regalo dos que nÆo possuem outra riqueza. Transpäem barreiras, precip¡cios, o espa‡o infinito e livre para voarem.

"NÆo conhecem ra‡as, religiäes nem categorias.

" � ainda um grande bem para a humanidade.

- NÆo estou de acordo... mas que fazer? Submeter-me ao teu crit‚rio.

"Tu possuis uma cabe‡a tÆo bem organizada, gestos tÆo nobres, que tens o direito de orientar os outros e nÆo os outros de te fazerem a mais ligeira observa‡Æo.

- Obrigado, mestre - disse o Manuel, sorrindo -, gue bom conceito faz de mim... Espero nunca desmerecer essa lisonjeira aprecia‡Æo.

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- Deus te fa‡a feliz, meu querido Manuel, e te desvie da senda que, ao atrair-te como um Sol deslumbrador, te pode precipitar em fundo abismo.

"Cautela, amigo, enquanto ‚ tempo.

- � tarde, mestre... muito tarde.

- O futuro pertence a Deus, filho.

"A tua felicidade ser a minha...

162

"Bem sabes quanto te quero... mas vejo tudo tÆo atrapalhado... Uns projectos que, francamente, me nÆo agradam.

"Se o senhor conde vem definitivamente, tu vais por l ficar toda a vida?

"Com os diabos..: medita bem nisso.

"Um ex¡lio perp‚tuo!...

"Para a µfrica vÆo os degredados, e tu nÆo cometeste nenhum crime...

- O dever, senhor Martins, ‚ por vezes um juiz austero, para nÆo dizer um tirano.

"Depois, quando a sociedade se habitua a ver em n¢s certos princ¡pios e qualidades... temos de nos aguentar no dif¡cil papel de prod¡gios... o que por vezes ‚ bem custoso...

E, com uma convic‡Æo que nÆo admitia d£vidas, continuou, a fisionomia iluminada por um grande ideal de beleza:

"Meu caro mestre, creia que hei-de vencer...

"Ser uma luta titƒnica, mas sem combates nÆo pode haver her¢is.

- Confesso-te que cada vez te entendo menos !

"Se compreendes que est s a prender-te cada vez mais, porque nÆo te afastas?

"O que queres fazer?

- Nada.

- � pouco, deves concordar.

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"NÆo atino com a sa¡da do beco em que te meteste.

163

- Meu querido amigo, o desfecho deste id¡lio plat¢nico ‚ simples.

"A Mariazinha h -de casar um dia; ‚ natural... ‚ certo.

- E tu?

- Eu ficarei sempre dedicado e vigilante para acudir de pronto, se alguma cat strofe financeira lhe suceder.

"Serei capaz de tudo... at‚ de morrer por ela.

- Mas se a sua amizade por ti se transformasse em amor? Que farias?

- NÆo sei. NÆo se pode responder, sem reflectir, a tÆo imprevista hip¢tese.

"Isso nunca se d , senhor Martins.

XXI

Estava para breve a solenidade do orago da terra.

O m rtir SÆo SebastiÆo, cravado de setas, ia sair processionalmente da sua capelinha, e correr as ruas da aldeia.

Eram de estrondo os preparativos.

O Manuel teve de compartilhar do entusiasmo geral, de contribuir para a retumbƒncia da festa com a sua energia e com o seu dinheiro.

Traziam-no numa lida a que nÆo podia airosamente furtar-se, apesar de absolutamente contr ria ao seu feitio pacato.

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Havia um grande bodo aos pobres, no solar da Torre. A Mariazinha e as tias andavam preocupad¡ssimas. O Manuel tornou-se o seu mais ass¡duo colaborador. Estava em contacto permanente com as senhoras, que o obrigaram a entrar na comissÆo.

A cada instante tinha de ir ao condado inscrever mais um nome que havia escapado ao rol dos pobres, dar conta de alguma incumbˆncia de que fora encarregado.

166

No solar da Torre trabalhava-se activamente nos fatitos que iam ser distribu¡dos no grande dia.

A maior surpresa seria o orfeÆo infantil organizado e dirigido pelas fidalgas.

Os ensaios constitu¡am para todos um enorme divertimento.

Ao piano, Maria Leonor; mestre Martins, que era tamb‚m h bil m£sico, regia; Maria da Gra‡a, Mariazinha e o Manuel, como auxiliares, para manterem na ordem a pequenada.

A condessa assistia sempre, porque, dizia, nÆo podia perder aquele espect culo.

As crian‡as da terra e das imedia‡äes andavam loucas de contentes.

Foga‡as e anjinhos seriam vestidos na Torre, o que imprimia ao acto desusada elegƒncia.

Entre a Mariazinha e o Manuel estabeleceu-se uma intimidade nova, uma confraterniza‡Æo, uma completa comunhÆo de pensamentos, um …-vontade, que mais parecia ter arredado toda a ideia de amor.

Manuel andava tÆo feliz, que nem pensava.

Todos sabiam que, se nÆo estava em casa, era certo no condado, o que a ningu‚m surpreendia.

Nunca mais se falou nas projectadas viagens do jovem africanista.

A condessa, que tanto o aconselhara a ir correr mundo, para conhecer os grandes centros,

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bebendo ideias novas, calava-se, agora, evitando tudo quanto pudesse acordar esse plano.

Receava ver partir o amigo dedicado, que fazia, por assim dizer, parte da fam¡lia, que quebrara a monotonia da vida de aldeia, que trouxera ao velho pal cio desusada alegria e anima‡Æo.

Apoiava, portanto, calorosamente, todos os alvitres que pudessem prendˆ-lo, interess -lo, fazˆ-lo esquecer a abalada para esse decantado passeio que nÆo gostavam de ver realizar.

Viviam o presente, saboreando-o com prazer.

Chegou finalmente o dia por tantos esperado.

Logo de manhÆzinha, estrugiram foguetes anunciando a alvorada.

Todos se ergueram cedo. Era mister acudir aos £ltimos preparativos.

NÆo havia ningu‚m que nÆo tivesse os seus h¢spedes.

Viam-se correrias de casa para casa, pedindo tachos, assadeiras, onde coubessem cabritos e os cordeiros guardados para a festa.

Perto dos fornos cheirava a leitäes assados.

O arroz-doce, todo enfeitado de canela, tinha as honras nos banquetes modestos.

Os homens passavam, de fatos novos, apressados, para irem esperar a m£sica. Agrupavam-se no largo da fonte, espreitando o caminho por onde ela deveria aparecer.

168

O rapazio, delirante, guinchava, saltava, piruetava, num desassossego.

- L vem, l vem! - gritavam ao mesmo tempo dezenas de vozes.

Acabava de surgir, na volta da estrada, um grupo caminhando aceleradamente.

Um jerico transportava o bombo monumental.

Uma mulher trazia … cabe‡a um ba£ de folha com a papelada.

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Um morteiro estrugiu, formid vel, assustando os p ssaros, que fugiam desorientados pelo espa‡o, em cata de poiso seguro.

Os m£sicos formaram, e o jumento rapidamente ficou aliviado da atroadora carga.

Uma forte pancada no bombo foi o sinal para come‡ar a marcha.

As janelas encheram-se num momento. Nas ruas, as mulheres, de mangas arrega‡adas e aventais enfarinhados, faziam alas.

Corriam grupos das transversais onde nÆo passava a filarm¢nica.

O juiz da irmandade mandava parar em frente das casas que mais tinham contribu¡do para a fun‡Æo.

Todos se descobriram, quando, ao chegarem … casa do administrador, irrompeu o hino nacional, rufado com estrondo, soprado com todo o vigor de que dispunham os pulmäes sadios dos serranos tocadores.

169

As mÆos calosas, de lidar com o arado, enfiadas em grandes luvas de malha branca, apertavam os instrumentos luzidios, com carinho, e marchando ao ritmo da m£sica, os artistas campesinos bamboleavam o corpo e a cabe‡a, com marcial imponˆncia.

· porta do Moreira, a pessoa mais em evidˆncia na terra naquela ocasiÆo, o mordomo fez um sinal convencionado; e organizados em c¡rculo tocaram uma das mais importantes varia‡äes do seu vast¡ssimo report¢rio.

Solenemente, tirou o chap‚u, ergueu-o a toda a altura do bra‡o e clamou em voz altissonante:

- Viva o senhor Moreira!...

O p£blico secundou-o vibrantemente.

Centenas de vozes gritaram:

- Viva!... Viva!... - Viva o Manuel Moreira... o grande africanista!...

- Viva o mano doutor!...

- Viva ... Viva!...

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- Viva a senhora Aninhas!...

- Viva!... Viva!...

A pobre mulher nÆo se p“de conter e desatou a chorar.

- Manda entrar, manda entrar! - dizia o Francisco Moreira, desorientado.

"Mulher, eu quero obsequiar esta gente.

- D -se-lhes tudo, homem.

170

O Francisco desceu num instante as escadas, caindo comovido nos bra‡os do dirigente.

- Obrigado, meu amigo; eu nÆo merecia esta manifesta‡Æo...

"Quero que entrem... - e distribu¡a apertos de mÆo e abra‡os a torto e a direito, pelo mestre da m£sica e pelos executantes daquela mimosa pe‡a que o emocionara profundamente e lhe deixara a cabe‡a azoada.

- Muito agradecido, senhor Moreira, ‚ como se aceit ssemos, mas agora nÆo pode ser...

...Era o que faltava. Um copo de vinho branco, das minhas Fragas, faz bem ao peito.

E sem atender a desculpas, obrigou-os a entrar.

A Rita e as ajudantes da boda apareceram com copos e garrafas em tabuleiros.

Numa mesa, estavam bolos … farta.

- Que gente tÆo cavalheira - apreciavam os m£sicos, saboreando gulosamente deliciosos nacos de fof¡ssimos pÆes-de-l¢.

O Manuel e o Crist¢vÆo tiveram de vir agradecer aquela homenagem, que lhes era prestada na pessoa do pai.

O mestre deu, finalmente, ordem de marcha, e todos, de bon‚ um pouco … banda, limpando os bei‡os …s costas das mÆos, deixaram pesarosos a hospitaleira casa, recome‡ando a soprar com mais ardor um repenicado ordin rio, que embasbacou

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os ouvintes, para seguirem em direc‡Æo … igreja.

Passavam magotes de povo, de fatos novos ou domingueiros.

Quase todos apressados, nÆo fossem perder a missa cantada pelas crian‡as, que as fidalgas da Torre tinham ensaiado.

Era o n£mero que despertava maior interesse.

Os meninos a cantar no coro, era coisa que na terra nunca se tinha visto.

No condado tinham dado fatos a todos, de forma que as mÆes andavam radiantes.

Ia ser de truz a festa, abrilhantada por aquela revoada de pombas brancas.

O grupo foi da Torre para a igreja, que j estava … cunha quando ele apareceu.

Houve um murm£rio de admira‡Æo.

Entravam depois as elegantes, com vestidos da £ltima moda, feitos expressamente para aquele dia.

Ouviu-se finalmente o guizalhar da carruagem das fidalgas.

As quatro senhoras atravessaram a multidÆo, que se arredou respeitosa.

Seguiram para o coro, onde a crian‡ada as esperava.

- Benza-as Deus! Que formosas! - bichanavam as mulheres.

- A senhora condessa parece uma rainha...

172

- e as meninas ningu‚m diz que nÆo sÆo todas irmÆs.

Principiou a missa.

Quando se ouviram aquelas vozes pequeninas, afinadas e doces, uma emo‡Æo geral dominou a assistˆncia.

Eram anjos do C‚u!

Os solos estavam a cargo da Mariazinha.

Cantou a Ave-Maria deliciosamente.

Os coros foram amparados por Maria Leonor.

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O entusiasmo atingiu o auge.

Havia l grimas de como‡Æo em todos os

olhos.

Quando terminou a solenidade, as senhoras

beijaram as pequenitas e distribu¡ram-lhes rebu‡ados.

Estavam satisfeit¡ssimas com o resultado.

As mÆes esperavam-nas ao fundo das escadas, felizes por tÆo retumbante sucesso. Beijavam-nas enternecidas e agradeciam …s fidalgas, com a maior gratidÆo.

Algumas pequenas entendiam que deviam voltar para a Torre, para continuarem os ensaios. Estavam l tÆo bem!

Todos riam da engra‡ada pretensÆo.

As pessoas gradas rodearam as autoras da linda ideia, felicitando-as pelo ˆxito extraordin rio do orfeÆo.

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Lentamente, dirigiram-se para a carruagem, acompanhadas por todas.

Iam-se despedindo.

- O senhor Martins vai almo‡ar connosco, nÆo vai, av¢?

- Assim o espero - respondeu a condessa, interrogando o mestre com um olhar.

- Vossa Ex.a manda, e eu obede‡o.

- E tu, Manuel, fazes-nos tamb‚m companhia, nÆo ‚ verdade?

- Teria imenso gosto nisso, mas... meu pai nÆo se conformava...

O Francisco Moreira, que ouviu a conversa, acudiu, sol¡cito:

- Vossa Ex.a ordena; o que entender ‚ o que se faz.

- O que nÆo desejo ‚ contrari -lo, Francisco.

- Fica-me ainda o outro, excelent¡ssima senhora.

- Tem gra‡a... estava para pedir ao Crist¢vÆo para acompanhar o irmÆo...

O Moreira ficou meio esmorecido, mas nÆo protestou.

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A condessa compreendeu o pesar do pobre pai.

- Bem, vamos a arranjar tudo de forma que ningu‚m fique descontente.

"Os seus rapazes almo‡am ambos consigo e irÆo jantar connosco.

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"Est bem assim?

O Francisco Moreira agradeceu, radiante, a am vel ideia de lhe deixar os filhos, que tanto desejava presidissem … mesa dos seus convidados.

Sentia-se orgulhoso de apresentar os dois rapazes, que eram apontados como exemplo e honra da terra.

As senhoras partiram finalmente, por entre as sauda‡äes daquele povo a quem a ilustre fam¡lia estimava e protegia carinhosamente.

A Mariazinha, linda como uma visÆo, deslumbrava sempre que aparecia.

O Manuel, cada vez mais apaixonado, nÆo podia desfitar a carruagem que levava a dona dos seus amores.

Os grupos dispersaram-se.

Cada qual com os seus convidados seguiu para casa.

Cheirava a leitäes assados, a pÆo cozido...

Vinham das cozinhas emana‡äes do a‡£car queimado no leite-creme.

Boda farta em cada lar.

Alegria franca em cada cora‡Æo.

XXII

O povo apinhava-se no adro.

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Os anjinhos, com grandes asas de tarlatana salpicadas de lantejoulas, esperavam, pela mÆo dos pais, que se organizasse a procissÆo.

O juiz da irmandade ia e vinha, numa az fama, para que tudo corresse bem.

Havia opiniäes diversas sobre a ordem por que os andores deviam sair. Discutia-se acaloradamente. Azedavam-se os ƒnimos.

- Que diabo! Vocˆ at‚ nisto ‚ birrento!gritava um influente.

"A Senhora da Piedade tanto se lhe d ir mais atr s como mais adiante.

- Mas eu ‚ que nÆo vou nessa.

"Tenho de zelar os interesses da santa.

"Cada qual ocupa o lugar que pertence … sua categoria.

O senhor prior teve de intervir, para apaziguar os g‚nios assomadi‡os dos membros da junta. ,

Calaram-se, mas a roerem-se l por dentro.

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Se pudessem, mesmo ali nas bochechas do m rtir SÆo SebastiÆo se esmurrariam com gana.

Pelas janelas desdobravam-se, … pressa, as velhas colchas de damasco, que dormiam todo o ano nos antigos ba£s de couro enfeitados de pregaria amarela, perfumadas de alfazema, serpÆo e nardo.

Nas casitas pobres, estendiam nas varandas e nos estreitos postigos cobertas de chita garrida e len‡¢is com largas rendas e entremeios feitos … candeia nos longos seräes de Inverno.

A procissÆo come‡ou a mover-se.

· frente, o rapazio com o fogueteiro.

Depois, a grande bandeira de damasco vermelho.

Os andores com as diferentes imagens em tronos de rosas, com a disposi‡Æo que o senhor prior indicara, sem atender aos caprichos de ningu‚m.

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Sob o p lio, a figura majestosa do velho p roco impunha respeito. Ca¡am-lhe bem as vestes sacerdotais.

Apesar de levar nas mÆos o vaso sagrado, ia lan‡ando olhares perscrutadores, nÆo fossem alterar as ordens que dera, aquelas ovelhas pouco mansas, sempre prontas a quer‚lar por tudo e por nada.

De todas as casas atiravam flores sobre o p lio, sobre os andores, sobre as cabe‡as calvas

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dos irmÆos, que sorriam agradecidos e contentes de tanta gentileza.

O Francisco Moreira, entre os dois filhos, tÆo inchado, que, diziam os invejosos, parecia levar o rei na barriga, marchava imponente.

Iam ao lado dos grandes da terra.

Tudo aquilo tinha novidade para o Manuel, apesar de muito visto na meninice, quando ia com os camaradas junto do homem dos foguetes.

Como o espect culo era diferente, observado de outra posi‡Æo!

Oito anos decorridos, haviam esbatido as cores, dilu¡do os tra‡os das recorda‡äes de antanho.

Que pitoresco, que colorido, que delicadeza, que sabor tinham para ele estas cenas de aldeia...

E, sob aquele sol ardente, ia desfolhando as p ginas do passado, que lhe parecia tÆo distante j . Observava o presente e interrogava o futuro que cada vez se lhe afigurava mais enigm tico.

Uma esp‚cie de bruma densa obstinava-se em nÆo lhe deixar enxergar nem uma nesga do horizonte em que se esbo‡asse o amanhÆ.

A procissÆo passava junto aos muros do condado.

No mirante, sob um dossel de rosas, estavam as senhoras, encostadas ao parapeito coberto com delicado manto de perfumadas glic¡nias.

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Mariazinha afogava as mÆos em p‚talas de rosas, que atirava aos punhados.

Sobre os dois irmÆos choveram flores e sorrisos amigos.

Crist¢vÆo ria, satisfeit¡ssimo.

Manuel corava e descorava; fez uma ligeira cortesia e desviou o olhar.

- Que mania ! - monologava, �ntimamente indignado - Que triste figura hei-de fazer sempre! Que perturba‡Æo quando a vejo!..

"Ningu‚m presume o que eu sinto; porque hei-de desviar a vista de onde mais grato me seria demor -la?

Bendita serenidade a da indiferen‡a!...

XXIII

Foi animad¡ssimo o jantar no solar da Torre.

Amigos, parentes, o Manuel, o Crist¢vÆo e o velho Martins.

Havia grande alegria; ditos de esp¡rito, recorda‡äes de outros tempos, mantiveram os convivas em constante boa disposi‡Æo.

Depois do jantar, improvisaram um baile, a fazer horas para o fogo, que ningu‚m queria perder.

O juvenil africanista estava na berlinda! Todos desejavam conversar com ele, observar aquele fen¢meno, que por si se erguera, levando no mesmo impulso toda a fam¡lia.

- Merece a considera‡Æo geral - afirmava solenemente um velho parente da casa. - � um car cter, uma inteligˆncia e, o que nÆo ‚ vulgar, um po‡o de virtudes.

O Manuel agradecia, penhorado, as palavras elogiosas de quem nÆo era pr¢digo delas, como o nobre primo dos condes.

A condessa resolveu nÆo ir ao fogo.

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Que fossem os novos e os que tivessem ainda restos de verduras para expor ao relento da noite.

"O meu reumatismo, excitado pela longa invernia, nÆo me permite essas extravagƒncias.

As senhoras da mesma idade ficaram radiantes; s¢ iam para nÆo serem desmancha-prazeres.

Passariam a noite a jogar o xadrez, junto do fogÆo, se sentissem frio.

Os morteiros estoiravam j com estampidos formid veis.

Os foguetes riscavam a noite, assobiando e deixando atr s larga esteira de pingentes doirados, ou largando estrelas cintilantes que se espalhavam vertiginosamente.

A gente mo‡a resolveu ir a p‚.

Se fosse precisa a carruagem para algu‚m que fraquejasse no regresso, mandavam-na pedir.

Era muito mais divertido fazer o curto trajecto a conversar, a rir, a contar coisas alegres.

- O Manuel vai a chefiar o rancho - recomendou a condessa.

"Tem senso para dar e vender.

- Entregar o comando a um dos mais novos ‚ grande desconsidera‡Æo para n¢s - protestaram todos.

"NÆo pode ser.

- Conformai-vos; ele tem a experiˆncia que vale por largos anos de vida.

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Partiram.

As ruas do trajecto estavam guarnecidas de mastros vestidos de buxo, com vistosas bandeiras nas extremidades.

De uns aos outros, fios de arame, com garridos baläes pendurados, alumiando o caminho.

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Perto do arraial a ilumina‡Æo era mais profusa, a ornamenta‡Æo mais brilhante.

Havia um povol‚u imenso.

Junto … igreja, tinham armado uma esp‚cie de alpendre, com bancos reservados …s senhoras.

Via-se de l perfeitamente o fogo, e estavam abrigados da aragem da serra.

A m£sica tocava no coreto, com vibrante entusiasmo.

Os camponeses dan‡avam e cantavam sem descanso.

As senhoras passeavam em grupos, acompanhadas pelos cavalheiros conhecidos ou amigos de fam¡lia.

Trocavam-se amabilidades, que iam um pouco al‚m das banalidades indiferentes.

A alegria dava asas ao amor e eloquˆncias que noutro lugar seriam consideradas atrevidas.

O foguet¢rio estrugia nos ares.

Ia come‡ar a primeira pe‡a de fogo preso.

Cada um procurava, … pressa, posi‡Æo para ver o melhor poss¡vel.

O rodopiar vertiginoso das rodas a arder, espargindo uma chuva miudinha e luminosa,

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atirando de vez em quando um morteiro que ia estalar … distƒncia, mantinham a multidÆo em constante hilaridade.

O movimento acelerava-se, enla‡avam-se as luzes, multiplicavam-se as cores, fuzilavam relƒmpagos, e o bailado de fogo constante, vertiginoso, ia at‚ ao fim sem esmorecimento, acabando com uma tremenda detona‡Æo que atroava os ares.

O povo aplaudia delirantemente.

Agora era a boneca, num rodopiar cont¡nuo, a atirar ao p£blico estrelas multicores, a deixar cair das mÆos cornuc¢pias de rosas de oiro soltando da corola p‚talas incandescentes que clareavam a noite como uma aurora boreal.

A imagina‡Æo do afamado pirot‚cnico satisfazia cabalmente as aspira‡äes dos mais exigentes.

Ouviam-se gritinhos quando as fa£lhas ca¡am sobre os fatos.

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Alarmes, corridas, pretextos para delicadezas, para encetar conversas que frequentemente se transformavam em aferrados namoros.

Os garotos ansiavam pela pe‡a final.

- "O castelo, esse, sim, d estoiros que parece que rebenta o Mundo!.

E riam, antegozando essa inferneira barulhenta que amea‡ava a seguran‡a de todos com os seus violentos ribombos.

Nos intervalos funcionava a quermesse, onde

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as meninas se revezavam na venda das prendas, cujo produto era para os pobres.

· volta de cada uma, reuniam-se os respectivos admiradores.

As fidalgas da Torre eram sempre as que mais vendiam.

A Mariazinha, sem nenhum esfor‡o, tinha o saquinho a abarrotar.

O fogo estava quase no fim.

As senhoras refugiaram-se todas no alpendre, com o receio das diabruras do castelo, sempre pronto a bombardear a assistˆncia.

Era prudente porem-se em guarda.

Come‡ou o tiroteio desenfreado.

O povo folgava, o perigo divertia-o.

As mulheres escondiam-se na igreja. Outras metiam-se para o pinhal, aonde nÆo podiam chegar os terr¡veis proj‚cteis.

O rebuli‡o era geral, perante aquele estrepitoso troar de canhäes.

Da corda luminosa, desprendiam-se de vez em quando foguetäes que abalavam espavoridos pelo espa‡o, indo apagar-se l ao longe na escuridade do c‚u, tombando depois, cad veres dessa vida ef‚mera, que riscara na noite negra brilhante traject¢ria.

Todos estavam satisfeit¡ssimos com o h bil fogueteiro.

Aquele, sim, que levava a palma aos de Viana!

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Estalou o £ltimo morteiro; ca¡ram agonizantes as derradeiras fa£lhas.

Mas, de s£bito, ao apagar-se o castelo, notou-se do lado oposto um clarÆo fant stico, como se o C‚u estivesse a arder.

- Fogo!... Fogo!... - exclamaram centenas de bocas, aflitivamente.

O pƒnico tolheu um instante todos os movimentos.

Aquele p£blico, que casquinara entusiasmado vendo bailar numa roda-viva os bonecos de fogo, contorcia-se agora em arrepios de dor, em esgares horripilantes, doloridos, indescrit¡veis.

- µa! µgua!

"Acudam … casa do JoÆo da Adissa, que est em chamas!

Ouviu-se um grito imenso, que cortava o cora‡Æo, dominando o alarido, ferindo a sensibilidade de cada um, como navalha afiada.

- Os meus filhos... meu Deus!

"Quem salva os meus filhinhos? !...

Era o clamor da mÆe, espavorida, aterrada, voando para as chamas como louca.

As mulheres abalaram em cata de vasilhas para acarretarem a gua.

Surgiram escadas como por milagre.

,. O silˆncio era agora impressionante.

Todos agiam calados.

Apenas os estalidos do fogo, e os animais no est bulo, aos urros tremendos.

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Uma ou outra voz pedia por monoss¡labos imperiosos: "µgua! "Um machado!...

Ao clarÆo das chamas, um vulto trepou gil, enfiando heroicamente por uma janela do pr‚dio a arder.

- O Manuel ! O Manuel ! - bradaram, sufocados de espanto, os que assistiam …quele espect culo imprevisto.

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- Ai, Deus do C‚u, que se vai matar!...

Outras escadas se arrumaram ao pr‚dio acabado de construir.

O calor era abrasante mesmo c fora.

- Arrombem as portas aos animais! - alvitraram.

Correram homens para o lado do p tio.

Algumas senhoras pediam socorro, outras tinham quase perdido os sentidos e l estavam no alpendre assistidas pelas demais.

A Mariazinha, sem soltar uma palavra, de olhar esgazeado, fitava as labaredas a atearem-se, a crescerem, como se a casa estivesse cheia de aguarr s.

Algu‚m ordenava com voz forte:

- Firmem a escada. Aparem em cobertores as crian‡as, se as puder salvar.

Um vaiv‚m sem fim de mulheres acarretava gua, que lan‡avam … fornalha, sem nenhum resultado.

Exala‡äes irrespir veis.

Os que junto ao muro tentavam sustar a

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marcha do fogo j se nÆo podiam aguentar no seu posto.

O Manuel, por‚m, nÆo aparecia.

Ningu‚m ousava dizer o que pensava, mas todos o julgavam perdido.

Os peitos comprimiam-se angustiosamente.

Olhos perscrutadores interrogavam o horr¡vel vulcÆo.

O pai dos pequenos, por quem Manuel arriscara a vida, tombara fulminado por aquela tr¡plice desgra‡a.

Ao clarÆo rubro do incˆndio, viu-se assomar … escada a figura ol¡mpica de um homem, a quem a hora, as circunstƒncias e o lugar davam aspecto sobrenatural.

Trazia nos bra‡os as duas crian‡as sem sentidos.

R pido como o pensamento, mas ofegante, atordoado pelo fumo e pelo calor, sem poder firmar-se, gritou com voz estranha, como se

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viesse do Al‚m:

- Segurem... : Estava quase asfixiado.

Mil bra‡os se estenderam.

Os petizes tombaram nos cobertores.

A figura do Manuel sobressa¡a nas chamas, como um bronze admiravelmente esculpido.

Largou os rapazitos, precisamente quando as chamas atingiam a varanda.

Saltou para o lado exterior da sacada, mas

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o fogo, correndo atr s dele numa f£ria, fez-lhe largar precipitadamente os ferros quase em brasa.

Um grito horroroso, sa¡do de mil bocas como se fora uma s¢, fez estremecer c‚u e terra.

Veio estatelar-se pesadamente sobre os festeiros.

Foi um momento de pƒnic• atroz!

Todos se apinharam … volta do her¢i, absorvendo-lhe o ar que era necess rio para o fazer voltar … vida, se nÆo estivesse morto.

- Acudam! Acudam ao salvador dos meninos! - clamavam desorientados, sem saber que rumo dar ao infeliz agonizante.

NÆo havia for‡as.

A fatalidade imobilizara todos.

A pobre mÆe, a quem ele restitu¡ra os filhos, numa toada dolorosa em que se lia toda a m goa de nÆo poder sacrificar-se por quem roubara … morte as vidas da sua vida, suplicava: "Salvem-no, salvem-no !...

Mas o povo nÆo atinava com o rumo a seguir.

Comprimia-se, em in£til curiosidade, apertando o c¡rculo em que o Manuel jazia numa atmosfera de forno, onde sucumbiria fatalmente, se uma voz imperiosa se nÆo impusesse.

Imprevistamente, como a Providˆncia, abrindo caminho entre aquele povol‚u imbecilizado pelo terror, passou a condessa da Torre.

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- Afastem-se! - disse com firmeza.

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" � preciso deixar respirar quem corre perigo.

Retiraram-se um pouco mais para tr s.

Mandou colocar o Manuel sobre o colchÆo que preventivamente trouxera na carruagem.

E ela pr¢pria amparou a cabe‡a da v¡tima, com mil cuidados.

- Todos o julgavam morto.

P“s-se em marcha o l£gubre cortejo.

Quatro homens conduziram o desgra‡ado.

S¢ a voz da condessa se ouvia, dando ordens, mandando estacionar quando o presumia necess rio.

Ningu‚m pronunciava uma palavra.

O pobre pai seguia atr s, arrastando-se, apoiado ao Martins.

A mÆe perdera os sentidos. As vizinhas e amigas encarregaram-se de a levar para casa.

O arraial, onde todos folgavam havia pouco, era agora um campo deserto, alumiado tragicamente pelo incˆndio.

Toda aquela aglomera‡Æo rumorosa e festiva se incorporara no sinistro pr‚stito, deixando as chamas … solta consumar a sua obra de devasta‡Æo.

O desventurado que, no pr‚dio a arder, gastara o produto de vinte anos de exaustiva canseira, chorava como uma crian‡a.

As meninas da Torre acompanhavam a condessa, num abatimento impressionante.

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Percorrido parte do caminho, um boquejo enorme fez erguer o t¢rax do que julgavam perdido.

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A fidalga mandou parar, pensando que era o £ltimo suspiro do protegido.

- VÆo chamar o senhor doutor - ordenou.

Algu‚m partiu em vertiginosa carreira, em cata do cl¡nico.

Os boquejos repetiam-se, espa‡ados mas dolorosos como o findar de uma cruciante agonia.

Sabia-se que o doente ia para a Torre. Ningu‚m o perguntara, porque o nÆo duvidavam.

, Com a maior lentidÆo, chegaram ao condado.

Todos desejavam prestar servi‡os, ajudando a preparar o aposento onde poss �velmente o Manuel iria expirar.

Apareceu o m‚dico.

Queriam-no seguir at‚ junto do moribundo.

- NÆo est morto - disse, quase falando consigo -, mas...

Em mangas de camisa, come‡ou a taref a de lhe dar ar.

Erguiam-lhe os bra‡os em movimentos r¡tmicos. As massagens continuavam ininterruptas.

Uma hora de luta com a morte conseguiu arrancar-lhe um gemido.

Punham-lhe constantemente compressas de gua a ferver sobre o cora‡Æo quase a parar.

- Manuel! Manuel! - chamava a condessa,

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que quis assistir a tudo, receosa de ele acabar sem o socorrer na £ltima hora.

O pobre rapaz abriu finalmente os olhos.

- NÆo vejo...- foram as suas primeiras palavras.

Ficaram petrificados quantos o ouviram.

- Salvo... mas cego, em plena mocidade...

"Antes a morte...

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O doutor Seabra nÆo abandonava o seu posto. Tinha a fronte coberta de camarinhas e a camisa colada ao corpo.

A condessa interrogava-o com o olhar.

NÆo respondia; a cada instante podia dar-se o desenlace fatal.

Havia no pal cio um movimento cont¡nuo, para que nÆo faltasse nada.

Ningu‚m pensava em si; recusavam bra‡os para nÆo prejudicar o andamento das coisas.

A mÆe das crian‡as salvas nÆo arredava p‚.

Tinha junto de si os dois inocentes, como trof‚us de gl¢ria do her¢i prostrado.

Havia na sua fisionomia uma expressÆo esquisita. Alegria, dor, ansiedade, ego¡smo...

Estavam ali os seus meninos que apertava contra o peito s“fregamente, mas nÆo ousava saborear essa alegria, vendo o filho da Ana, tÆo amado como os dela, a sofrer, a debater-se com a morte,. talvez irremediavelmente perdido, por causa dos seus...

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Deus nÆo havia de permitir uma tal iniquidade!

Com as l grimas a bailarem-lhe nos olhos, na mais mortificada das atitudes, rezava, rezava alto, sem se importar que a ouvissem, num recolhimento profundo, pedindo ao Alt¡ssimo, com todas as veras da sua alma dolorida, que acudisse ao salvador dos seus filhos.

No quarto do enfermo foi proibida a entrada.

O pal cio, por‚m, estava invadido por uma aglomera‡Æo atormentada, que se oferecia, que queria auxiliar, que queria prestar servi‡os.

Quando o m‚dico assomou … porta, congestionado, ofegante, todos os olhos se fixaram nele; esperavam uma palavra que seria uma senten‡a.

- � melindros¡ssimo o seu estado - disse, respondendo a mudas interroga‡äes.

"Todo o silˆncio ‚ pouco.

"Pode sobrevir uma febre cerebral e o desenlace ser fatal e r pido.

O Francisco, que se tinha conservado a um canto, sem alento, caiu de joelhos diante do facultativo, enrodilhado na m goa imensa de ver perdido aquele filho que era a luz dos seus olhos.

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- Salve o meu pobre Manuel, senhor doutor!

- NÆo estou aqui para outra coisa - respondeu, erguendo-o carinhosamente.

"Enquanto h vida, h esperan‡a.

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" � mo‡o e forte.

"Veremos se resiste … violˆncia do embate.

Todos queriam ficar.

- O melhor ‚ retirarem-se - aconselhou.

O Francisco olhou-o emparvecido, implorando que abrisse para ele uma excep‡Æo.

Toda a actividade se sumira perante a desoladora perspectiva da iminente desgra‡a.

O homem forte estava ali, m¡sero farrapo humano, torturado, humilde, mais infeliz que um mendigo sem pÆo.

- Sim, fica, pobre pai; mas nÆo aqui.

"Pelo teu filho cuidarei como se fosse meu.

"O Crist¢vÆo ‚ um grande ajudante. E a senhora condessa... uma segunda mÆe.

- Meus Deus... que grandes almas... que amigos... A fidalga ‚ uma santa... e Nosso Senhor h -de ouvi-la.

"A mim nÆo, que sou pecador...

- H -de atender-nos a todos, Francisco. . .

"Todos n¢s lhe queremos muito, havemos de trazˆ-lo … vida.

- Senhora condessa - disse o pai dos pequenos salvos - deixe-me Vossa Ex.a ficar a mim. Sou eu que tenho obriga‡Æo de velar por ele.

"Os meus filhos estariam em cinza a esta hora, e nem eu nem minha mulher resistir¡amos.

- Tens razÆo; entendo que deve ser grato ao teu cora‡Æo ficar prestando, quem sabe se

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a £tima homenagem, a quem nÆo hesitou em expor-se pelos teus pequeninos.

Todos andavam em bicos de p‚s.

O doente ca¡ra numa modorra assustadora. Respira‡Æo dif¡cil, entrecortada e incerta.

Passaram o resto da noite num sobressalto.

Rompeu o dia; ao p lido crep£sculo matutino, todos se surpreenderam desfigurados.

O choque fora violent¡ssimo.

Passaram uns instantes … sala cont¡gua.

A Mariazinha, num estado de consterna‡Æo pat‚tico, quando percebeu que o Manuel estava s¢, entrou subtilmente pela porta do corredor e abeirou-se do leito. - - Manuel, meu querido amigo ! - disse baixinho, como o murm£rio de uma prece.

O doente pressentiu-a, adivinhou-a.

- Mariazinha! morro... j nÆo a posso ver...

E uma l grima enorme rolou pelas faces que o fumo escurecera como se estivessem carbonizadas.

- H s-de melhorar - disse, apertando-lhe a mÆo.

"Tem f‚... nÆo fales... eu vou rezar … Nossa Senhora por ti; ver s como ela faz o milagre.

Ouviu passos e escapou-se pela mesma porta, sem ru¡do.

Era tempo. O Seabra e a condessa aproximavam-se.

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- Dorme - disse o cl¡nico, sem presumir que Manuel o ouvisse -, este sono ‚ reparador.

- H esperan‡as, doutor?

- Todas, minha senhora, enquanto h vida.

"A mocidade sadia ‚ um auxiliar poderos¡ssimo da ciˆncia.

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Afastaram-se um pouco.

Junto da janela, continuaram o col¢quio em voz sumida, que Manuel nÆo podia escutar.

- O pai nÆo deve continuar aqui - disse a fidalga -, mortifica-se e... se houvesse um desenlace...

- Resistindo esta noite, h noventa por cento de probabilidades de o salvar.

- Fica cego, doutor?

- � prov vel que nÆo. No entanto ‚ cedo para fazer um progn¢stico.

O Martins abriu a porta de mansinho.

Ardia ainda uma lƒmpada, que mais triste tornava o ambiente.

O velho mestre, alquebrado, o olhar amortecido, fixou o antigo disc¡pulo enternecidamente.

Depois, dirigindo-se ao facultativo, a limpar as l grimas que nÆo podia conter:

- Meu querido amigo, o pai pede por miseric¢rdia que o deixem vir receber o £ltimo suspiro do filho. Est num estado lastimoso...

O doutor Seabra, retomando a habitual serenidade, respondeu:

195

- Fique vocˆ, Martins, que eu vou cortar com todos os pedidos.

"Aqui s¢ deve permanecer quem possa ajudar-nos, e o Moreira encontra-se num abatimento que s¢ nos viria prejudicar.

"A senhora condessa d licen‡a?

- V , doutor; as suas ordens tˆm de ser cumpridas rigorosamente.

Nas salas cont¡guas conservava-se a gente grada da terra. Senhoras, homens, todos queriam ajudar.

O Moreira abra‡ou-se a ele:

- Senhor doutor, por caridade, deixe-me ver o meu santo filho.

"Queria que ele morresse nos meus bra‡os e depois acabarei com a vida.

"NÆo posso mais.

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- Coragem. Quem fala aqui em morrer?

"Havemos de salv -lo. Tenha esperan‡a.

- Em quˆ? Se os vejo partir...

"A mÆe para l est , perdida; se me falta, Senhor, que ser de mim?

- NÆo h -de acontecer tal!

"Vou j vˆ-la, e... a ciˆncia e os seus cuidados... hÆo-de restituir-lhe a sa£de.

Entrou no quarto, observou o doente, que continuava dormitando, deu algumas ordens prevendo hip¢teses, e voltou a juntar-se ao Moreira. - Vamos.

196

Romperam por entre a multidÆo p lida, abatida, sem comer nem dormir, que passara a noite a p‚ firme, esperando, amargurada, not¡cias, temendo a cada momento que o desditoso expirasse.

Todos se dirigiram ao cl¡nico, comovidamente, para saberem o estado do doente.

- � cedo para dar uma resposta segura.

"A luta ‚ tremenda... mas... esperemos...

"H -de reagir...

A Ana estava num del¡rio espantoso.

Queria levantar-se, ir acudir ao fogo.

Descobria-se sem cessar, gritando com desespero:

- Meu querido filhinho!

"L caiu nas chamas... µgua... gua... apaguem o forno...

"Ai o meu Manuel... todo queimado...

NÆo era poss¡vel segur -la.

Uma for‡a herc£lea, que ningu‚m atribuiria a corpo tÆo franzino, impelia os que a seguravam, para longe.

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O m‚dico receitou um calmante. Pachos de gua na fronte a escaldar.

Pouco depois sossegou, e uma sonolˆncia

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cortada por bastos estremecimentos substituiu o del¡rio agitado em que se debatia.

- Todo este estado se modificar quando souber que o filho est melhor.

"A salva‡Æo dela ‚ a vida do Manuel.

XXIV

- Morreu? - interrogavam, atribuladas, centenas de pessoas, aglomeradas … entrada do condado, ao Jer¢nimo, mais triste que um cipreste.

O pobre homem mastigava em seco, a ver se escondia as l grimas que teimavam em mostrar a sinceridade do seu sentir; nÆo podia falar.

Acenava negativamente com a mÆo.

At‚ mesmo ao fundo do jardim tinha receio, nÆo fosse o enfermo sofrer reca¡da, acordar da modorra que o poderia salvar ou... de que talvez nÆo acordasse mais.

- E a mÆe? - perguntava por sua vez.

- Ainda vive, e o senhor doutor espera acudir-lhe.

- Deus nos valha.

"E da casa? NÆo escapou nada?

- Nem os alicerces... tudo estalou!

"Os bois sa¡ram; algu‚m arrombou a porta; mas muito queimados.

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- Porque seria que a Senhora da Piedade nÆo obstou a esta fatalidade?

- NÆo andamos em gra‡a, tio Jer¢nimo... Deus l sabe...

- Ora... sabe... sabe... e se sabe tanto, devia pensar que nÆo era justo tirar a vida a quem a arriscou para salvar os inocentes. Nosso Senhor …s vezes tamb‚m faz cada uma...

- Eu tenho f‚ em que nem a mÆe nem o filho hÆo-de morrer.

- H sortes...

"Aquele desventuroso, vinte anos por esse mundo fora, longe da fam¡lia, passando Deus sabe como, para num instante ver ir tudo pelos ares!

- Que destino!

- Esta maldita mania dos fogos-de-artif¡cio, tamb‚m devia acabar.

- Eu, se fosse administrador do concelho, proibia tudo o que fosse foguet¢rio.

"Sempre ouvi dizer que com o lume nÆo se brinca.

- C na terra j basta para exemplo.

"O ano passado, a tia Zefa, queimada por se lhe pegar o fogo … saia, com uma bomba.

- E h trˆs anos - lembrou outro -, o desafortunado Rafael, com a mÆozita esfacelada pelo morteiro que apanhou, julgando que nÆo estava aceso.

- de mais, nÆo pode continuar.

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"N¢s, os da freguesia, devemos unir-nos todos, p“r os p‚s … parede para acabar com este divertimento de vez.

- Eu, quando vejo um foguete no ar - disse uma mulher -, tremo como varas verdes...

"Prego os olhos nele e rezo, rezo … Nossa Senhora para lhe assoprar l do C‚u, nÆo venham os dem¢nios causar dano a quem anda a tratar da sua vida.

- Os mordomos ‚ que tˆm a culpa. Podiam ter posto cobro a isto h muito.

- Numa terra onde nÆo existem bombeiros - preleccionou um padeiro chegado da capital - nÆo h direito de fazer arraiais destes.

- SÆo horas do diabo.

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"Olhe que …s vezes at‚ uma vela pode pegar fogo... - disse uma rapariga das mais afamadas bailadeiras do s¡tio.

" � o que tem de ser.

- Tens medo que acabem os bailaricos. Olha que as dan‡as nunca deram pÆo - resmungou uma mulher de certa idade, que no seu tempo tinha feito o que tinha podido...

- Elas podem dan‡ar mesmo sem fogo.

"A mocidade precisa divertir-se, tia J£lia.

"Vocˆ j se esqueceu de quando era menina?.

A cavaqueira prolongou-se at‚ que, chamados pelas suas ocupa‡äes quotidianas, foram desaparecendo, um a um.

200

Os dias corriam em alarmante ansiedade.

O doente parecia querer acordar daquela prostra‡Æo, quando sobrevinham terr¡veis ataques de dispneia que de novo agravavam o mal.

Recuperara a vista, o que deu a toda a gente uma enorme satisfa‡Æo.

O JoÆo da Adissa, como cÆo fiel, nÆo sa¡a do pal cio. Queria fazer tudo, nÆo deixava que outrem fosse buscar os rem‚dios, nÆo consentia que pessoa alguma antes dele informasse o Moreira.

As senhoras revezavam-se a velar pelo pobre doente.

A Mariazinha exigiu o seu quinhÆo. Queria tamb‚m prestar o seu concurso para ajudar a salvar o amigo.

Sentava-se perto do leito, em incans veis vig¡lias.

Uma noite, lia junto dele.

Manuel dormia sossegadamente. A respira‡Æo era mais regular, o aspecto tranquilizador.

Deixou cair o livro.

Come‡ou numa escrupulosa auto-observa‡Æo.

Afinal, se o Manuel morresse, a vida perdia para ela todo o interesse.

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Sem a sua afei‡Æo, sem aquela ternura quase

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comovente, porque era tudo para ela, nÆo queria viver.

- Seria amor? - interrogava-se.

E se fosse?... como encararia a fam¡lia esse bem-querer?...

"Escusavam de saber...

"Um afecto pode viver escondido na alma e no cora‡Æo.

"Que tinham os outros com isso?i

Estava mergulhada nestas profundas reflexäes, quando Manuel abriu os olhos.

Fixou-a com surpresa, como quem se vˆ inesperadamente ante uma visÆo deslumbradora.

- Mariazinha!...

- Manuel... est s melhor?

- Gostaria de morrer agora, junto de si...

- Ingrato... nÆo tinhas pena de me dar esse desgosto?...

- Desculpe, mas talvez fosse prefer¡vel.

- NÆo digas isso; como querias que eu vivesse sem a tua amizade?

"Agora, que est s salvo, ‚ que te apetece morrer? Manuel, isso nÆo se diz nem se pensa.

- Melhor... ‚ uma infelicidade...

- Oh! NÆo blasfemes, que Deus pode castigar-te.

- Dar-me a vida. .. ‚ matar-me, Mariazinha... pois nÆo vˆ, nÆo compreende que nunca mais poderei estar junto de si como agora estou?...

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- Ora essa !.. . E porque nÆo?

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- � generosa a sua frase, admitindo a possibilidade de uma aproxima‡Æo. Mas tudo nos separar quando eu me erguer daqui. O tempo, a distƒncia... e a vida... Vou partir... talvez para sempre.

- Mau agoiro, amigo... Acordaste tr gico!

"Teremos, a encurtar a distƒncia, as not¡cias que tonificam, que dÆo sa£de e alegria.

- NÆo ‚ o bastante, minha querida amiga; quando uma grande afei‡Æo nos absorve e domina, quando ‚ a razÆo de ser da existˆncia, quando por ela ser¡amos capazes de tudo...

"Mariazinha, nÆo sei se deliro, se estou no uso das minhas faculdades mentais; perdoe a este louco, que vai falar-lhe … beira do t£mulo.

"Eu quero, antes de morrer, confessar-lhe o meu grande amor.

"Amo-a, amo-a; desde os seus primeiros anos, vive comigo esta paixÆo que, bem vˆ, nÆo ‚ menina j .

"NÆo desenra¡zam com facilidade as velhas plantas presas … terra.

"Depois desta confisÆo, que pode atirar-me ao abismo, precipitando-me na morte, ou fazer o milagre de me salvar para viver abra‡ado … minha cruz, eu desejaria desaparecer, minha adorada amiga; deixe-me morrer assim, a contempl -la.

Mariazinha escutava-o, comovida.

203

- NÆo te dei nunca o direito de duvidares de mim, Manuel.

"Tamb‚m eu te quero muito.

"Percebi-o h bem pouco...

"Sentia que a afei‡Æo por ti nÆo era vulgar...

"Quando te julguei perdido, notei que a vida j nÆo tinha para mim nenhum encanto.

"Confrangi-me contrariada.

"Porque nÆo continuar¡amos como amigos apenas, como quando foste para a µfrica?...

- Era tarde, minha gentil amiga.

"Foi porque a amava que eu parti.

"Era por si que eu me instru¡a e lutava.

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"Se nÆo fosse esse grande amor, eu teria ficado aqui, a lidar na terra, como meu pai, como toda a fam¡lia.

"Sentia-me pequeno ao p‚ de si, e entÆo uma ambi‡Æo desmedida guiava-me os passos, levava-me como uma for‡a impulsora a vencer todos os obst culos.

- Meu grande amigo, como nÆo havia de corresponder-te!

"NÆo, nÆo era poss¡vel deixar de querer-te muito.

- Mariazinha, sabe que est alimentando esperan‡as que tˆm de morrer fatalmente?

"Sonhos... sonhos perdidos...

"Castelos que uma aragem derrubar !

"Entre n¢s, entre este afecto imenso, que brotou no ber‡o e que s¢ a tumba lograr aniquilar,

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interpäe-se o destino, o horr¡vel fantasma, com as conven‡äes sociais, as castas, que nos afastam e que hÆo-de tentar asfixiar esta paixÆo.

- Que tˆm os outros com os nossos sentimentos?

- Tˆm tudo, minha vida, meu £nico bem; sÆo eles, os indiferentes, os que mandam, os que se impäem.

- S¢ a minha fam¡lia teria o direito de intervir, e essa, tu bem sabes que te quer como filho.

- NÆo, nÆo ‚ assim; a sua fam¡lia, que eu estimo como se fosse a minha, a quem devo tudo quanto sou, gosta de mim, sinto-o bem, tenho disso sobejas provas.

"Eu sou o zelador da sua casa, a pessoa de confian‡a, o amigo capaz de dar a vida por todos; mas nä dia em que ousasse ir mais al‚m, seria considerado um intruso, um ambicioso, que pretendia entrar na fam¡lia conquistando um lugar, tornando-se indispens vel.

"Minha linda amiga, como est iludida!

- EntÆo que pretendes fazer?

- Ador -la, am -la eternamente, sacrific r-me em tudo para a ver ditosa.

- E eu?

- A Mariazinha... h -de ser feliz.

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"Ter a certeza que perto ou distante haver um bra‡o leal, um cora‡Æo que por si far tudo, algu‚m que beijar a terra onde poisar os p‚s.

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- Obrigada, Manuel; eu preferia que todos soubessem que nos amamos; mas se tu prevˆs que desse conhecimento nos poderia vir alguma fatalidade maior, continuaremos como at‚ aqui.

"NÆo desfalecer nunca a nossa afei‡Æo.

- H -de viver, enquanto eu viver. E se a Mariazinha um dia casar...

- Oh! Manuel, creio que nÆo te mere‡o essas palavras.

"Seremos um do outro, ou morreremos solteiros.

"Pela minha parte, juro-te por tudo quanto h de mais sagrado.

Manuel tomou-lhe as mÆos, e pela primeira vez lhas beijou apaixonadamente.

- Agora, queria morrer, meu amor. Foi a hora mais jubilosa da minha vida.

Ouviram-se passos no corredor.

O doente fechou os olhos e Mariazinha pegou apressadamente no livro.

A porta abriu-se de mansinho, e a figura esguia do Martins, mais curvada, mais pergaminhado o rosto expressivo, desenhou-se nas meias-tintas daquela noite de emo‡äes.

- Dorme? - interrogou, baixinho.

- Tranquilamente, como vˆ, senhor Martins.

- SÆo horas de a Mariazinha ir repousar.

"NÆo posso consentir que aqui continue mais tempo. Repare que ainda nÆo dormiu uma noite desde que o Manuel adoeceu. � muito, ‚ de mais!

206

- Deixe-me ter esta alegria. Bem sei que se a av¢ soubesse ficava alarmada.

"Mas,. bem vˆ, eu sou a amiga de infƒncia do Manuel... Parece-me que depois dos pais somos n¢s que temos maiores direitos.

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"NÆo ‚ verdade?

- Pois eu tamb‚m penso dessa forma, mas nÆo me conformo com este excesso.

"Pode adoecer, e depois que diriam?

":: "Que pensaria a senhora condessa que confia em mim absolutamente, que julga que sou eu s¢ a vigilar?

"Isto ‚ exorbitar, Mariazinha.

- Olhe senhor Martins, a minha av¢ nunca reprovou uma boa ac‡Æo, e eu creio que nenhum de n¢s ‚ capaz de proceder mal.

- Mesmo o Manuel, se sonhasse que o seu sono tem sido velado por si... nÆo ficaria contente.

- O mestre guarda segredo, e eu tamb‚m... Ele nunca ter conhecimento do que se passou...

O velho professor andava cada vez mais preocupado com a ternura crescente dos seus juvenis amigos.

- Isto nÆo vai bem... isto nÆo vai bem... - ruminava, passando a mÆo pela testa.

207

- Deixo-lhe o meu lugar, mestre; vou-me deitar.

- Daqui a pouco ‚ manhÆ... Ai, mocidade, mocidade... a quantas extravagƒncias levas.

- Boa noite... e... at‚ logo.

O Martins ajeitou-se na cadeira que a Mariazinha deixara vaga.

Tinha na fronte uma ruga profunda, ind¡cio de grande preocupa‡Æo.

- Fiz mal - magicava - em aceder ao seu pedido.

"Se ele acordava e a via...

"NÆo, nÆo pode ser, tenho de p“r ponto a este id¡lio plat¢nico.

"Eu a querer apagar a chama... sou afinal o primeiro a ate -la...

Abeirou-se muito do Manuel e notou que a respira‡Æo nÆo era de quem dormia.

Alarmou-se!

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Quando se curvava mais a tomar-lhe o pulso, o doente abriu os olhos.

- Estavas acordado, Manuel?

- Queria que o nÆo estivesse?

- Responde: nÆo tens estado a dormir?

- NÆo se assuste, meu amigo. Deixe-me gozar ao menos estes r pidos momentos.

- Manuel... tu sabes?

- Tudo, querido mestre.

"Ouvi a sua conversa e sei que um anjo tem velado o meu sono.

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"Se eu tivesse acabado numa dessas horas venturosas! Por caridade, deixem-me morrer agora.

"Sinto-me feliz; creia que sou a pessoa mais afortunada da Terra.

O olhar brilhava-lhe, como se o fosse acometer um acesso de febre.

O Martins estava sucumbido. Tinha-a arranjado bonita!

Que trabalhos!.. E se a senhora condessa descobria a conspira‡Æo?!

Havia de julgar que ele protegia aqueles amores que sempre se esfor‡ara por acabar.

Manuel adivinhou-lhe as ideias.

- NÆo receie nada.

"NÆ o deixarei mal colocado. A Mariazinha pensa como eu. Tem a abnega‡Æo de uma santa. Ningu‚m pode censurar um amor que nada exige e tudo d .

"Viveremos como at‚ aqui, bons e leais amigos.

- Falaram no assunto?

- Naturalmente.

"Sei que a Mariazinha corresponde … minha paixÆo, e isso ‚ para mim a suprema ventura.

"O resto nÆo representa coisa alguma.

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- Manuel, Manuel! Oxal que eu nÆo tenha de me arrepender de haver consentido em a deixar ficar aqui.

"Afinal... ‚ a eterna hist¢ria de os meninos dominarem os velhos.

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- NÆo tenha medo. O seu disc¡pulo ‚ um homem de car cter, sabe-o bem.

As melhoras do Manuel acentuavam-se dia a dia, com geral contentamento da fam¡lia da Torre, de amigos e conhecidos.

Quando se levantou pela primeira vez, todos festejaram o acontecimento, reunindo-se no quarto dele, num ch ¡ntimo.

Manuel estava satisfeit¡ssimo.

"Era de mais a ma‡ada que estava dandodisse um dia … condessa.

"Devia ir para casa.

- Est s aborrecido de seres nosso h¢spede?

- Oh! senhora condessa, por Deus, nÆo me diga isso, mas... bem vˆ que ‚ quase um abuso.

- Olha, Manuel, o meu filho queria que ficasses connosco.

"Recomendou-mo com o maior empenho.

"Tu nÆo quiseste...

"NÆo foi bem. O destino protestou e aqui tens, como ele te obrigou a aceitar, ainda que contrariado, a nossa hospitalidade.

- Como hei-de agradecer, como corresponder a tanta gentileza

- Deixando-te estar nesta casa at‚ … partida. NÆo ‚ pequeno sacrif¡cio...

- Meu Deus, que generosa protectora! Que

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inspira‡Æo a minha ao lembrar-me, ainda pequeno, de me acolher a tÆo ben‚fica sombra...

- Quem me diria a mim, Manuel, ao ver-te partir, tÆo crian‡a, que serias para meu filho o amigo leal, o companheiro dedicado de meu neto!

"Somos n¢s os devedores, nÆo o duvides.

"Nunca retribuiremos a tua dedica‡Æo.

- Apenas um dever, minha senhora.

- Oh! mÆe, nÆo acha que devemos fazer uma festa quando o Manuel estiver bom?prop“s Maria da Gra‡a.

- O que quiseres, filha. Elaborem o programa, que eu antecipadamente o aprovo.

O Manuel entrou em franca convalescen‡a.

Todos os dias ia para o parque passar umas horas de repouso prescritas pelo m‚dico.

As senhoras faziam-lhe companhia.

Havia sempre conversa animad¡ssima.

O Martins era certo.

O cl¡nico vinha tamb‚m sempre que os afazeres lho permitiam.

- Afinal, Manuel - disse-lhe uma tarde o mestre -, o teu desastre veio beneficiar muita

gente.

- O que diz?

- Se nÆo fora a tua enfermidade, nÆo ter¡amos n¢s, os velhos, os ma‡adores, a ousadia de

vir importunar esta ilustre fam¡lia e nÆo gozar¡amos estas tardes felizes de ameno cavaco.

"· quelque chose malheur est bon.

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- EntÆo o senhor Martins nÆo podia aparecer sem o Manuel?

- Podia, realmente, mas... nÆo me atrevia a vir todos os dias.

- Em conclusÆo - interveio Maria Leonor -, entendo que deves prolongar a tua convalescen‡a o mais poss¡vel. N¢s tamb‚m j nÆo prescindimos destes instantes de palestra.

Mariazinha nÆo se expandia, mas sentia-se felic¡ssima.

Se a vida fosse sempre assim.

Que importava que nÆo gostassem do casamento, que nÆo consentissem nele?

A sua imagina‡Æo nÆo concebia ventura maior.

Quando o Manuel teve licen‡a para dar os primeiros passeios, foi ainda pela quinta que fez as suas pequenas excursäes, acompanhado pelas donas da casa.

Eram deliciosas essas digressäezitas.

·s vezes ficavam s¢s, Maria e ele.

Nunca falavam na partida, que se ia aproximando com extraordin ria rapidez.

Viviam o momento presente, com uma alegria infantil, com um entusiasmo, com uma f‚, como se contassem que o milagre surgisse de se desfazerem todos os obst culos que dificultavam a realiza‡Æo das suas aspira‡äes.

- Mariazinha - disse-lhe um dia o Manuel -, sinto-me completamente curado, e longe de

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estar alegre, cresce em mim a tristeza como se o mal se agravasse.

- O quˆ? Preferias estar de cama?

- NÆo o duvide... Vejo que corre a vapor o tempo que passamos juntos. E agora quase se impäe a minha ida para casa dos meus.

- Mas a av¢ disse que nÆo te deixava sair, que o pai lhe tinha recomendado isso especialmente, e que tu nunca o contrarias?

- Confesse, nÆo lhe parece demais?

- NÆo... sinto que deves demorar-te aqui o m ximo para bem de todos n¢s.

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"O pai diz sempre nas cartas que te quer como filho.

"Que todos te devem estimar como se o fosses.

"Bem vˆs - continuou, rindo - que eu nÆo posso nem devo fugir …s suas ordens.

Manuel nÆo p“de deixar de sorrir.

Þntimamente sofria; parecia-lhe um abuso de confian‡a a sua paixÆo, desinteressada, pela filha do seu grande protector.

Lutava consigo para tranquilizar a consciˆncia alarmada, o cora‡Æo num alvoro‡o permanente, numa alegria imensa por sentir-se correspondido, mas triste por saber irrealiz vel o seu lindo sonho de toda a vida.

- "Acima de tudo o dever.

"O meu h -de ser cumprido, antes que para isso tenha de sacrificar a vida.

XXV

Tinha expirado o prazo das f‚rias do Manuel.

Ningu‚m falava na partida, para nÆo estragarem a felicidade dos £ltimos dias.

Uma carta do conde dizia-lhe que prolongasse quanto quisesse a estadia na aldeia, e que passeasse um pouco.

Ali se tinha metido, sem um divertimento, sem ter feito uma pequena viagem.

"Antes de voltares a estes trabalhos a fanosos, vai at‚ Paris.

Tu j nÆo ‚s um pobre.

Manuel leu a carta …s senhoras.

A condessa concordou.

- Sim, tamb‚m me parece indispens vel que v s espairecer.

"Afinal, a maior parte do tempo estiveste doente...

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"Uma sensaboria.

Manuel ia a dizer-lhe que tinham sido os seus dias mais agrad veis, mas soube conter-se e substituir por um lugar comum de cortesia a expansÆo que estivera prestes a explodir.

- Vais, Manuel?

214

- Daqui s¢ para µfrica, minha senhora.

Mariazinha, que conservara a cabe‡a baixa durante a discussÆo que tanto a interessava, ergueu os olhos lindos num agradecimento mudo que nÆo haveria palavras que traduzissem.

- Eu acho ¢ptima a tua resolu‡Æo, Manuel - disse Maria da Gra‡a -, ao menos podemos divertir-nos ainda uns dias.

"Vou escrever a meu irmÆo, dizendo-lhe que partiste para Paris, seguindo as suas indica‡äes, e que por l te demoras uns dois ou trˆs meses.

- Muito bem. E esses trˆs meses devem ser bem aproveitados, nÆo lhe parece, mÆe?

"podemos fazer umas excursäes pelo Pa¡s, aonde nunca fomos e tanto desejar¡amos ir.

- O teu plano ‚ admir vel, Maria Leonor; tratem das malas e nÆo percam tempo.

"Ireis v¢s duas, a Mariazinha, o Manuel e o Martins.

- Oh! mÆe, o Martins nÆo! que ma‡ada. J nÆo nos pode acompanhar nessas caminhadas aos s¡tios mais pitorescos que project mos.

"Os quatro chegam bem, nÆo te parece, Manuel?

- Vossas excelˆncias mandam. Mas, se nÆo fosse importuno, lembrava para ir tamb‚m o meu irmÆo.

- Sim, sim, o Crist¢vÆo ‚ ¢ptimo companheiro.

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Aproveitariam as f‚rias da P scoa, a ‚poca mais bela para passeios.

Elaboraram o roteiro da viagem.

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Dali ao Bu‡aco, Luso e Curia; estacionariam em Coimbra mais demoradamente, vendo os monumentos da Lusa Atenas com vagar.

Dariam um salto … Figueira; iriam ao Norte, parando em Aveiro. Depois o Minho, o lindo jardim de Portugal.

Decorridos alguns dias, punha-se em movimento o alegre rancho.

Mocidades saud veis e inteligentes, em tudo encontravam pretexto para manifesta‡äes de j£bilo.

Mariazinha sentia-se completamente feliz. Tinha uma liberdade relativa, nÆo sentia os olhos perscrutadores da av¢ a penetrarem como sondas at‚ ao mais ¡ntimo da sua alma.

As tias nem reparavam nela. Folgavam e riam, como se fossem todos da mesma idade.

Crist¢vÆo auxiliava o id¡lio, entabulando conversa com as outras senhoras, de forma que o Manuel e a Mariazinha pudessem entender-se … vontade.

Nunca a terra se lhes mostrou tÆo bela. O mar parecia cantar-lhes deliciosas can‡äes de amor.

Uma Primavera exuberant¡ssima trouxera aos campos uma flora‡Æo magn¡fica.

O Sol, ainda pouco ardente, colaborava naquele

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conjunto delicioso, entoando hinos … vida e … felicidade.

Como era linda a Natureza em cada minuto renovada, em cada segundo d¡ferente e mais formosa!

Extasiaram-se ante as planuras sem fim do oceano murmurante.

Mariazinha quedou-se pensativa, a olhar a imensidÆo das guas que em breve a separariam do bem-amado.

Uma nuvem de tristeza empanou-lhe o brilho do olhar.

- Em que pensa, Mariazinha?

- Sei l ... que dentro em pouco o mar que te trouxe h -de levar-te e... quem sabe se para sempre, Manuel.

- NÆo me tire a coragem, minha amiga.

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"Vivamos estes instantes fugazes, possivelmente os melhores da nossa vida.

"Quem sabe o que o destino nos prepara?

"NÆo vale a pena ver escuro quando tudo brilha radiosamente em volta de n¢s.

- Tens razÆo. alguma coisa fica e isso ‚ tudo, a certeza de um grande afecto...

- Sim, como nÆo ‚ frequente encontrar.

"Tem sido ele a for‡a que me guia, o amparo nos transes dif¡ceis.

"Sem ele, eu nada faria, creia.

" � ele que me alumia o caminho, ‚ a esperan‡a a sorrir-me, ainda mesmo quando a razÆo

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me diz que nÆo devo esperar nada a nÆo ser, e isso ‚ tudo para mim, o seu amor, a sua afei‡Æo, minha adorada amiga.

- Aonde se meteram estes contemplativos? Vamos a ver se nÆo se atiraram romƒnticamente …s ondas, hipnotizados pelo azul do mar... - gritou, pela escada do forte de Santa Catarina, Maria da Gra‡a, que parara com os dois companheiros a ver a capelita.

- Sim senhor, aqui se ficam a ver as gaivotas a boiar e as toninhas a mostrarem o dorso escuro … tona d gua.

- Realmente est vamos observando aquela fila de aves de arriba‡Æo.

"Creio que sÆo patos; nÆo sÆo Crist¢vÆo?

- Sem d£vida, pelo tamanho e pela organiza‡Æo do voo em fila indiana.

- Bom, mas nÆo vamos permanecer aqui eternamente a mirar Buarcos, o farol e a serra da Boa Viagem! - disse Leonor.

O galhofeiro grupo p“s-se em movimento e dentro em pouco almo‡ava com voraz apetite num fresco hotel do Bairro Novo.

O itiner rio era a cada hora alterado. Propunham novos projectos que ningu‚m ousava contrariar.

NÆo renunciaram a uma excursÆo … serra da Boa Viagem. Marcaram-na para essa tarde. O dia estava explˆndido.

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- � um regalo ver como de ano para ano a

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mata se desenvolve! - iam observando pelo caminho.

- A mÆe diz que se lembra perfeitamente de tudo isto ser esburgado e pedregoso.

- E as dunas, ¢ Manuel, repara como estÆo revestidas de pinheiros.

- � belo este aproveitamento, senhora Dona Leonor. A riqueza do Pa¡s est nas suas florestas. O nosso rei lavrador teve uma larga visÆo do fomento nacional.

- Sou da tua opiniÆo - respondeu Maria da Gra‡a -, a agricultura ‚ a nossa principal fonte de receita; nÆo dev¡amos desviar a aten‡Æo dela, mas... todos fogem do campo...

"A cidade atrai como um ¡man.

- � necess rio preparar o camponˆs, orient -lo, protegˆ-lo, de forma a que a vida se nÆo torne numa incerteza, num mart¡rio.

- Tens razÆo: governar um povo ‚ conseguir o seu bem-estar e a remunera‡Æo equitativa do esfor‡o despendido.

"A terra deve ser o ber‡o alegre e o jardim florido. � bom tamb‚m que nÆo haja pretensäes tolas.

"A Maria Rita, nÆo se lembra, tia? fugiu para Lisboa na mira de usar vestidos e chap‚us como as senhoras.

- Tu ainda nÆo assististe a nenhum casamento na nossa aldeia, depois de vires?

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- NÆo, senhora Dona Maria da Gra‡a.

- Pois isso agora constitui um espect culo.

"Todas querem ir de v‚u, de flor de laranjeira e vestido branco...

- As lavradeiras?

- Sim, as que trabalham no campo.

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- Oh! mas isso tira todo o encanto aos trajes regionais.

"NÆo h nada mais interessante que os costumes, e enfim, a etnografia dos povos.

- Tudo isso est perdido, Manuel; caminhamos a passos agigantados para uma miscelƒnea confusa e antip tica.

- � a mania de todos pretenderem parecer o que nÆo sÆo - continuou o Crist¢vÆo.

O Atlƒntico, ao longe, muito azul, vinha dobrando as vagas que galopavam, debruadas de arminhos, em direc‡Æo … praia.

Algumas levantavam a farta cabeleira que o vento desenrolava e quebravam na costa docemente, beijando com paixÆo as areias prateadas.

- Pensava-se dantes que nÆo era f cil fazer agricultura … beira-mar. Hoje transformam-se os areais em matas copadas. � uma obra not vel!

Voltaram a embrenhar-se na sombra densa das ruas bem cuidadas.

Pararam junto do chafariz de guas cristalinas, ouvindo a alegre sinfonia da passarada.

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Regressaram … cidade quando a tarde ia caindo.

Havia perfumes delicados pelo ar transparente.

O mar mandava rajadas de maresia.

Calaram-se a ouvir a voz da Natureza.

A Mariazinha e o Manuel sentiam-se mais que nunca presos indissoluvelmente.

NÆo falavam. Os olhos encontravam-se e entendiam-se.

A eloquˆncia dessa linguagem muda!

A brisa do oceano fez respirar fundo o rancho de gente mo‡a.

Quando entraram no centro, as luzes salpicavam a terra como estrelas tombadas do espa‡o.

- O mar neurasteniza-me! - exclamou Leonor. - Se aqui continuasse muito tempo, podiam contar que entrava para um convento de carmelitas. Que tristeza!

- Vamos embora, senhora Dona Leonor.

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"A nossa digressÆo ‚ apenas para nos divertirmos; ficando um contrariado, os outros nÆo podem estar bem.

Na manhÆ seguinte partiram para Coimbra.

Visitaram os pontos de vista mais belos, antes de se meterem nos museus.

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Ainda nessa tarde, subiram ao Vale do Mondego, para ver aquele formoso panorama.

Coimbra erguia-se imponente, acastelada!

L no alto, a torre da Universidade.

Em baixo, o Mondego, deslizando mansamente por entre laranjais.

Ao longe, a encosta de olivedos e pomares, polvilhada de casitas brancas, como pombas aninhadas.

- � maravilhoso este quadro!

- Tive sempre a impressÆo de que a Lusa Atenas ‚ o canto mais lindo do mundo.

- Para mim tamb‚m, senhora Dona Maria da Gra‡a; estou aqui h uns poucos de anos e nunca fui capaz de passar com indiferen‡a pelo Penedo da Saudade, pelo Alto da Conchada, por tudo que faz desta pequena terra uma maravilha, nÆo s¢ sob o ponto de vista art¡stico como pelas belezas naturais.

- � tamb‚m a preferida pela nossa mÆe.

Desceram vagarosamente, aproveitando a tarde para visitar a Quinta das L grimas e a das Canas.

Na Lapa dos Esteios, quedaram-se cismadores, lendo os versos dos grandes poetas portugueses.

O rio, de guas serenas, mais parecia um lago.

Nem um murm£rio!

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- Que silˆncio! � impressionante!

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"Este cen rio, este perfume, esta luz coada pela verdura tenra, ‚ tudo quanto possa imaginar-se de mais po‚tico! - disse Manuel.

Vieram encantados.

· noite, deambularam pelas ruas e vaguearam pelo parque.

Havia en‚monas nos canteiros e jacintos alvadios de aroma delicado.

As rosas come‡avam a vestir as sebes, a trepar pelos arames, sorrindo aos passeantes.

A Lua pairava no espa‡o, muito branca, desenhando no solo herb rios caprichosos e abrindo, nas guas do Mondego, rutilante caminho de luz. - Pararam sobre a ponte, extasiados.

Santa Clara dominava a outra banda, majestosamente.

Terra de lendas e de hist¢ricas passagens.

Evocaram a Rainha Santa e a formosa Inˆs.

Recolheram fatigados de emo‡äes, saciados de beleza.

Todos ca¡ram em profundo sono, excepto os namorados.

Esses velaram.

Sentiam-se felizes, mas uma sombra densa toldava-lhes o horizonte da ventura. NÆo viam nada no futuro, a nÆo ser um amor seguro, calmo, mas sem esperan‡as.

- Ningu‚m desconfiar da nossa afei‡Æo, Manuel? - perguntou Mariazinha, quando seguiam

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… janela do comboio, admirando a paisagem, no trajecto para Aveiro.

- Deus nos livre, minha adorada amiga.

"Este bem-querer seria, para todos, considerado um crime.

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"Nunca me sujeitaria a essa severa aprecia‡Æo. Antes desaparecer.

- E nÆo pensas em mim?

- Oh! minha amada! Se nÆo penso em mais ningu‚m desde que me entendo!

"Se vivo por si e para si!

"Mas acima do amor h a dignidade, o dever, que me impäe um caminho diverso do indicado pelo cora‡Æo.

"Horas amargas tem a vida, sofrimentos cru‚is, quando se traz na alma um grande ideal e temos a certeza que nunca se converter em realidade!

- Parecem-me excessivos os teus escr£pulos. Nota que todos te querem como filho e te estimam cordialmente.

- Tenho disso a absoluta certeza, Mariazinha; nunca um instante o duvidei.

"H simplesmente um obst culo que vejo e reconhe‡o.

"Eu sou o empregado de confian‡a de seu pai... mas um empregado.

- NÆo ‚s justo: hoje ‚s um s¢cio.

- Essa generosidade excessiva ‚ uma agravante para os meus escr£pulos.

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- Tu exageras; sei que o pai te deve imenso, tens sido o seu bra‡o direito.

- Veria como me retirava toda a estima no dia em que ousasse pretender-lhe a filha.

"NÆo se iluda, minha ing‚nua amiga.

"NÆo esque‡o que sou o modesto filho do Francisco Moreira.

"As categorias sociais influem muito no esp¡rito de quase toda a gente.

- Meu pai ‚ superior a essas ninharias e minha av¢ tem provado mil vezes o seu desprendimento pelos pergaminhos.

- Mudaria de opiniÆo tratando-se da neta, e eu preferia morrer, a que me julgassem o que nÆo sou.

"Sacrifico-a? Tamb‚m nÆo quero que assim seja.

"Um dia, h -de aparecer algu‚m, de igual jerarquia, que a deslumbre.

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"Se casar, ficarei igualmente seu amigo.

"NÆo lhe hei-de querer mal por isso.

"Que poderia esperar, que poderia oferecer-lhe em troca da sua abnega‡Æo?

"O meu cora‡Æo, o meu car cter, o que sou, o que valho?

"A sociedade nÆo olha para essas bagatelas. Exige um nome brilhante pelos seus antepassados.

"Nada valem os que se erguem por si.

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"Parentes e amigos diriam apenas: "Como desceu a filha dos condes da Torre!..."

- NÆo h ningu‚m, entre a nossa parentela, que te iguale.

- NÆo nos enganemos, minha doce amiga.

"Parto e deixo-a livre de compromissos.

"NÆo se prenda comigo; tenha s¢ a certeza que a hei-de amar enquanto vivo for.

- Para que me falas em coisas tristes?

"Deixa-me ao menos ter esperan‡a no futuro e a alegria enorme de saborear o presente.

"Quem sabe as voltas que o Mundo dar ...

Um silvo agudo anunciou a proximidade da esta‡Æo.

Os trˆs, que conversavam animadamente, invadiram as janelas.

- C estamos na Veneza portuguesa.

O movimento nÆo era grande.

Tomaram um carro e dirigiram-se … cidade que nenhum do grupo tinha visitado ainda.

Largaram as malas no hotel e partiram para as proximidades das guas.

A tarde declinava.

O sal, em pirƒmide, sobressa¡a aqui e al‚m.

Passavam bateiras, conduzidas … vara, nos canais estreitos.

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A ria desdobrava-se enorme! Espelho colossal em que o c‚u se mirava.

- Como isto ‚ belo!

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- E, afinal, Aveiro nÆo ‚ um lugar de turismo; poucos visitam esta maravilha.

- H muito que fazer sobre a propaganda de Portugal.

"Tu, Crist¢vÆo, podias, com os da tua gera‡Æo, empreender essa campanha benem‚rita.

- Oh! filho, que ma‡ada!

"Perdia o meu tempo e o meu latim.

"Quem se importaria com o que dissesse um desconhecido acad‚mico.

"Depois, tu bem sabes que eu sou um in£til, …s sopas do irmÆo.

"NÆo tenho tempo a perder.

"Quero acabar o curso e agarrar-me ao trabalho. Preciso compensar-te, auxiliar-te; quero pagar-te a minha enorme d¡vida.

Manuel abra‡ou-o a rir.

- As nossas contas estÆo saldadas.

"O que eu tenho ‚ teu.

"Bem vˆs que sou um pobre celibat rio, tu ‚s a minha fam¡lia.

"Os pais faltam, e tu, pela ordem natural, ter s mais longa vida.

"Constituir s o teu lar e eu ficarei o tio ditoso dos pimpolhos que hÆo-de chamar-te pai.

- EntÆo tu nÆo tencionas casar, Manuel?" interrogou Leonor.

- NÆo, minha senhora - respondeu, convicto.

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- � boa! Parece-me prematura essa afirma‡Æo categ¢rica.

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- NÆo mudarei de opiniÆo.

- Querem ver que temos aqui um asceta que ir pregar aos peixinhos nos t¢rridos areais africanos?!...

- Podia pregar aos negros... mas nem para isso tenho jeito.

"Penso …s vezes, ao fazer uma rigorosa auto-observa‡Æo, que, sendo uma criatura inofensiva, nÆo tenho pr‚stimo para nada.

"Positivamente sou um in£til, Dona Leonor.

- O que tu querias era uma coisa que eu agora nÆo estou disposta a fazer - um elogio.

"Mas tem a certeza que, se tivesses a desgra‡a de morrer do desastre de que ainda est s meio convalescente, quem te fazia o necrol¢gio era eu.

"Como sabes, fui sempre antiplumitiva, mas ao ver perder tÆo vigorosa mocidade, sentia-me de tal sorte abalada que at‚ era capaz de deitar soneto.

- Muito obrigado, minha senhora.

- NÆo tens de quˆ.

"E olha que o prometido ‚ devido; se calhar ires diante de mim, conta com a minha palavra.

" � a £nica coisa para que tenho jeito.

- Oh! filha, mas tu, que eu saiba, s¢ fizeste o paneg¡rico do nosso cÆo terra-nova e da rola que o Manuel trouxe … Mariazinha.

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- Um cÆo, uma rola, ou um homem, sÆo seres viventes, cuja perda nos pode emocionar com a mesma intensidade.

"Com certeza senti mais profundamente a morte do LeÆo do que sentiria a de qualquer parvo que nÆo tivesse o seu entendimento, a sua dedica‡Æo, a sua ternura.

"A sensibilidade de cada um vibra com diversas causas.

"Ningu‚m sabe o que produz o choque que faz chispar a fa£lha do talento.

"A tendˆncia que sinto para este g‚nero de literatura faz-me crer que a minha inteligˆncia deve estar paredes meias com o g‚nio!

- Presun‡Æo e gua benta...

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- Cada um toma a que quer, minha cara irmÆ.

"Ainda ‚ um dos grandes regalos da vida.

Dois dias depois seguiam para o Porto, onde fizeram quartel-general.

Dali irradiaram para a P¢voa, Foz, Vila do Conde.

Visitaram tudo quanto a Invicta tem de interessante.

Passaram uma tarde no Museu Teixeira Lopes.

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Mergulharam a vista nas maravilhas desse santu rio de Arte.

Sa¡ram deslumbrados.

No dia seguinte partiram para Braga.

Subiram ao Bom Jesus; extasiaram-se perante a paisagem ub‚rrima do jardim de Portugal.

Os pƒmpanos viridentes revestiam as ramadas emoldurando os campos vi‡osos, onde a Primavera exuberante estendia um lind¡ssimo tapete de policromia bizarra.

Sentiam-se todos bem-dispostos.

A beleza da terra comunicava-se …s almas, dissipava nuvens, dava aos esp¡ritos aquela alegria de viver que nÆo deixa lobrigar as trag‚dias deste Mundo.

Resolveram seguir para Viana.

- O tempo convida-nos a prolongar o passeio.

- O pior ‚ o Crist¢vÆo, que talvez quisesse passar os £ltimos dias de f‚rias com os pais.

- O Manuel, senhora Dona Maria da Gra‡a, ‚ neste momento a minha preocupa‡Æo.

"Quero estar com ele todos os instantes dispon¡veis.

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"Vai partir, e eu fico, como menino mimento, a gastar o que ele ganha, sacrificando a mocidade.

- NÆo fales assim, homem, que me comoves, e eu nÆo quero estragar estas horas felizes.

"Trabalhamos todos, uns de uma forma, outros de outra.

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"Pelo amor de Deus, nÆo teimes em fazer-me her¢i.

"Arrepia-me a notabilidade.

"Quero passar na vida obscuramente.

Pelo caminho a conversa continuou animad¡ssima, interrompida de onde em onde para admirarem um golpe de vista mais pitoresco, um jardim mais florido, um grupo de mo‡as em trajo garrido, como papoilas lou‡Æs a emprestarem ao quadro todo o vigor de tons, toda a riqueza multicor da indument ria minhota.

Tomaram aposentos em Santa Luzia.

Manuel, l de cima, exclamou, ofuscado:

- Eu nÆo saio daqui!

"NÆo pode haver na terra panorama mais vasto, mais belo, nem mais variado.

- Como isto ‚ lindo! - expandia-se Mariazinha.

"O mar atrai-me!

"Porque seria que o pai nunca me quis levar para a µfrica?

- Para nÆo seres engolida por algum leopardo guloso, minha tolinha.

- Ora! As feras andam s¢ no mato. Eu nÆo ia ca‡ar.

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- Realmente nÆo tinhas saudades nossas, ingratatona?

- Se tinha!.. Mas a minha mÆe, assim longe, nem me quer tanto.

- A tua mÆe ‚ a nossa; al‚m disso, j nÆo tens muito que esperar.

"Daqui a um ano a fam¡lia estar reunida.

"E creio que para sempre.

- E tu, irmÆo, ficas exilado toda a vida?

- Assim ser , se for preciso.

- O pai nÆo era capaz de te sacrificar.

Todos fixaram a Mariazinha, surpreendidos. NÆo costumava manifestar-se nunca.

Leonor, sem a desfitar, respondeu:

- E quem te disse que era para o Manuel um sacrif¡cio continuar em µfrica?

A filha do conde fez-se rubra e articulou com vis¡vel embara‡o:

- Ningu‚m. Mas presumo que nÆo se deve estar em µfrica como em Paris ou Londres.

- Certamente, mas h uma diferen‡a; …s grandes capitais da Europa vai-se para dissipar o que frequentemente se ganha com esfor‡o em paragens in¢spitas.

"·s vezes nem reflectem, os que se vÆo divertir, que despendem num dia o que leva anos a granj ear.

"NÆo pertence a esse n£mero o nosso querido Manuel, que se meteu na aldeia, como se ela encerrasse todas as maravilhas do Mundo.

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- Era natural, senhora Dona Leonor.

"Vim por tÆo pouco tempo, que um minuto passado longe dos meus considerava-o uma perda irrepar vel.

"Estava cheio de saudades. i Crist¢vÆo poisou um olhar significativo em Mariazinha, que baixou o seu, corada como uma romÆ.

- Tens razÆo; todavia, se estivesse no teu lugar, verias o giro que eu dava por esse mundo al‚m.

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"NÆo falhava um saltinho …s capitais civilizadas e aos pa¡ses orientais.

"Gostaria de visitar o JapÆo e a China, a Öndia e o Egipto.

- Viajar s¢... sem ter com quem trocar impressäes, ‚ desagrad vel.

" � vaguear como um mudo, solit rio no meio da multidÆo.

"Eu prefiro a tudo o conv¡vio ameno da fam¡lia e das pessoas amigas.

- Este meu irmÆo nÆo ‚ da ‚poca; cada vez o admiro mais.

- Todos n¢s te apreciamos imenso, e talvez por te sentires tÆo acarinhado nÆo tenhas a necessidade que todos experimentam de percorrer novas paragens.

Os £ltimos dias de f‚rias passaram como por encanto em terras do Norte, que s¢ as filhas da condessa conheciam.

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Voltaram … Murta, depois de trinta dias bem aproveitados.

Todos esperavam ansiosos a chegada do grupo.

Havia cartas de µfrica.

O conde nÆo falava na partida do s¢cio, mas dizia-se abatido, adoentado.

"Logo que o Manuel chegue, fazemos as malas e vamos - escrevia o fidalgo.

- � um aviso, senhora condessa, para eu fazer as minhas.

" � tempo. Tenho abusado espantosamente da bondade do senhor conde.

"Seguirei no primeiro paquete.

- NÆo me parece sangria desatada.

"Mais um mˆs ou dois nÆo alterar a marcha dos neg¢cios...

- Devo ter feito falta, ‚ indispens vel que regresse.

Mariazinha estava l¡vida.

Leonor notou-lhe a como‡Æo.

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Crist¢vÆo ficou impressionad¡ssimo.

Fez-se um silˆncio embara‡oso.

A condessa cortou-o corajosamente:

- Afinal, noites e noites de cavaco ameno, dias de conversa intermin vel e deliciosa, que n¢s tanto apreci mos, e nunca nos disseste os teus projectos, o que vais fazer no futuro.

- Trabalhar, minha senhora.

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- Sim, bem sei, mas nÆo ficas eternamente em µfrica.

- Ficarei, se o senhor conde assim o desejar.

- Tu nÆo ‚s um escravo.

- Mas nÆo sou tamb‚m um ingrato.

A pr¢xima abalada do Manuel a todos tirou a alegria.

O serÆo nÆo se animou. Nenhuma das senhoras quis tocar. Estavam todos desolados.

- Entendo - continuou a condessa - que deves vir pelo menos de dois em dois anos.

- Depois tudo se combina.

"Neste momento ‚ indispens vel que v .

Foram r pidos os preparativos.

O Martins nÆo largava o disc¡pulo quando era poss¡vel encontr -lo s¢.

- Estou muito velho, Manuel; receio bem nÆo tornar a ver-te.

"Cada vez me d mais cuidado a tua vida.

"Vejo-te completamente amarrado a um sonho que nÆo sei aonde te levar .

- A parte alguma; j notou em mim o alvoro‡o das grandes paixäes?

- NÆo, e tanto pior.

"O amor deve ser frio para ser duradoiro.

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"o teu assim ‚. Agarras-te com vigor a esse afecto e nÆo o abandonas.

"H s-de morrer por ele, se o destino nÆo se apiedar de ti.

"Manuel, Manuel ! Tenho medo da tua serenidade.

- NÆo se assuste, mestre, hei-de sempre honrar o seu nome, mostrar que soube aproveitar as suas li‡äes.

- Vais em muito piores circunstƒncias do que vieste.

"Quando chegaste... sabias que tinhas uma doce amiga que nÆo te esquecera, e hoje... tens a certeza que o teu amor ‚ correspondido.

- � o que me faz viver.

"Sinto-me tÆo venturoso!

- E nÆo pensas na pobre menina, a quem hÆo-de apresentar noivo de nome igual ao dela?

"Poder resistir a imposi‡äes da fam¡lia, se lhas fizerem?

- Resiste. Tenho tanta confian‡a nela como em mim.

- Mas entÆo vÆo ficar assim, a amar-se indefinidamente?

- E acha pouco? O amor ‚ tudo... o resto quase nada.

"E viverei satisfeito. E se um dia, mesmo que seja no fim da jornada, pudermos unir os nossos destinos, quando j nÆo contrariarmos ningu‚m, havemos de casar.

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"Aqui tem o que eu penso, o que eu sinto.

- Que fil¢sofo! �s extraordin rio, rapaz!

- NÆo diga isso; sou como toda a gente de brios e de bem.

- Uma not vel excep‡Æo... nÆo ‚s deste s‚culo.

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XXVI

Manuel foi recebido pelo conde e pela fam¡lia com entusiasmo.

Pedro estava mais sereno.

Uma rigorosa vigilƒncia do pai, a falta de dinheiro para esbanjar; o desaparecimento de alguns amigos que o induziam e arrastavam por mau caminho, tudo contribuiu para uma regenera‡Æo completa.

Deviam seguir todos quanto antes para a metr¢pole, mas preocupava-os a atitude do Manuel, que nÆo parecia o mesmo.

Procurava a solidÆo, falava pouco, mergulhava-se em silˆncios profundos, ca¡a em abstrac‡äes que denunciavam um estado de esp¡rito anormal.

O conde notava esta mudan‡a extraordin ria, conferenciava com a mulher, sem descobrirem o motivo de tÆo s£bita transforma‡Æo.

Resolveu-se a condessa a interrog -lo.

- Mas nÆo h nada de novo, minha senhora.

"Ningu‚m se deve surpreender que nÆo aceite com indiferen‡a a partida de Vossa Ex.a.

"Deixei a fam¡lia na minha aldeia, e vim

238

encontrar outra aqui, tÆo generosa, tÆo boa, que me convenci que era minha.

"Agora, s¢... nÆo sei que ser de mim!

- Tens de casar, constituir s o teu lar e fica resolvido o problema.

- NÆo casarei nunca, senhora condessa -. respondeu com firmeza.

- Santo Deus! Querer s tu ser frade?

"Ou andarÆo por a¡ amores mal correspondidos?

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Manuel corou, e sorriu com amargura.

- NÆo me enganei; temos paixÆo, pela certa.

- Que lembran‡a... nÆo sou dado a esse g‚nero de desporto..

"NÆo podia ser mal correspondido o que nÆo existe.

- Tu nÆo falas verdade, Manuel.

"N¢s, as mulheres, temos um sexto sentido, que nos faz ver claro em muitos mist‚rios.

"Essa observa‡Æo nÆo falha.

"Ainda que o nÆo queiras confessar, sei, compreendo que sofreste um violento abalo.

"NÆo me julgas digna de uma confidˆncia, como se fosse tua mÆe?

Manuel, perturbad¡ssimo, beijou comovidamente a mÆo da desvelada protectora.

- Senhora condessa, minha santa amiga, que havia de confiar-lhe?

"Se eu nÆo sinto mais que uma saudade

239

imensa pelos que deixei e pelos que me vÆo deixar?

"A minha afectividade nÆo se conforma com a solidÆo.

"A senhora condessa j pensou no que ser esta casa quando eu ficar s¢?

- Tens razÆo.

"NÆo vejo, de momento, como remediar o mal.

- "Alvitrei o casamento.

"Repeles essa sugestÆo com energia.

"NÆo sei, nÆo atino com outro meio para dissipar as nuvens que toldam o teu horizonte.

- Essa tristeza h -de passar.

"Necessito familiarizar-me com ela.

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"O tempo far o milagre.

Pedro, por seu turno, observava o amigo. Queria descobrir o que o trazia tÆo outro dos tempos idos.

- � curioso... nÆo sei porquˆ, todos se preocupam com o meu estado ps¡quico, quando...

- Porque est s diferente, porque nÆo ‚s o mesmo.

"Lˆ-se na tua fisionomia uma inquieta‡Æo constante.

"Qualquer coisa que ocultas com o m ximo cuidado.

- Vejo que me ‚ imposs¡vel mostrar o que

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sinto. Devo esconder a m goa que me causa ver ausentar os que me sÆo caros.

"Tenho entÆo de me mostrar alegre, de fingir?

- NÆo ‚ s¢ isso... conhe‡o-te bem. Olha para mim muito s‚rio, sem me desfitar. Assim.

"Jura-me agora que nÆo amas ningu‚m.

- Com franqueza, est a tornar-se inquisitorial; pe‡o-lhe que me deixe. Sinto-me mal, nÆo tenho coragem para aguentar as suas brincadeiras.

- Oxal que eu me engane...

"Creio que atino aonde tens o pensamento.

- NÆo ‚ dif¡cil a adivinha‡Æo.

"Ando num tal alheamento, que nem sei pensar; por outra, nem posso pensar.

- Veremos quem decifra o enigma - disse, abra‡ando-o.

"Os mist‚rios do cora‡Æo, amigo.

"A uns, atiram-nos para o abismo, como me ia acontecendo a mim.

"Outros... salvam-se... se algu‚m tem a sorte de passar no momento oportuno para lhe deitar a mÆo.

" � uma questÆo de acaso.

- O Pedro est hoje sentencioso.

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"NÆo lhe conhecia a tendˆncia.

"Deve cultivar o g‚nero, que ‚ interessante, menos comigo.

241

"Procure outro exemplar para os seus estudos psicol¢gicos.

- NÆo leves o caso para outro rumo.

"O pai ‚ cego; quanto mais perto est , menos vˆ!.. De longe observa-se melhor.

- Por favor, amigo, nÆo se ocupe de mim.

"Todos n¢s temos dias alegres e tristes.

"Influˆncias atmosf‚ricas.

"Tudo passa; depois, admiramo-nos de nos termos amofinado com o que nÆo tem valor algum.

XXVII

Meses depois, o conde da Torre partia com a fam¡lia para o continente.

Manuel ficou sucumbido.

Pareceu-lhe intoler vel o trabalho.

Sentiu-se um condenado, um exilado perp‚tuo.

Procurava a solidÆo, e essa solidÆo esmagava-o.

NÆo comia, dormia mal e compreendia que tinha de reagir.

- Que homem sou eu, que nÆo sei resistir a um abalo forte?...

Havia, por‚m, uma preocupa‡Æo constante a afligi-lo:

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O ficar em µfrica toda a vida... sem um amigo leal, sem uma pessoa querida, sem a esperan‡a de melhores dias...

Sim, aquele amor era um beco sem sa¡da. Consolava-o e amofinava-o, torturava-o e animava-o.

Por seu turno, Mariazinha havia de perder a sua mocidade sem ver realizada a aspira‡Æo que desde a infƒncia lhe absorvia o pensamento?

244

Tudo isto o entristecia, o aniquilava.

As cartas eram cada vez mais melanc¢licas, mais enternecedoras.

Tentava, em vÆo, insuflar-lhe ƒnimo:

- HÆo-de vir melhores dias, amigo. Deus nÆo dorme.

Mas como acabar aquela penosa situa‡Æo, se nem um mem outro tinha coragem para confessar o que sentia?

E se tivessem esse rasgo, o que pensaria toda a gente?

Esse plano tinha de ser posto de parte.

A chegada do conde alterou a pacatez habitual da Torre.

Multiplicavam-se as digressäes, faziam-se viagens, havia mais intensa vida de sociedade.

Mariazinha viu rodopiar … sua volta um formigueiro de apaixonados.

Apareceu de tudo nessa turba. Os ambiciosos, os vaidosos e os amorosos a valer.

Aquela singeleza cativava.

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Estava absolutamente fora de moda o seu feitio simples, por isso mais apreciado.

Sorria a todos os galanteios, mas ningu‚m lhe notava a mais ligeira preferˆncia.

Os pais observavam essa frieza e estranhavam-na.

245

- invulner vel …s setas de Cupido!

"Curiosa forma de pensar a da nossa filha!

"N¢s nÆo somos eternos e a primavera passa depressa...

Leonor era a £nica que nÆo se surpreendia com a atitude da sobrinha.

Cada vez se convencia mais do grande amor que desde meninos prendia os dois amigos.

O assunto era discutido em fam¡lia.

A mÆe resolveu abord -la sobre o caso.

Enumerou os pretendentes, a ver se entre eles algum alvoro‡ava o cora‡Æo da filha.

- Parecem-me todos patetas, mÆe; eu nÆo acredito em nada do que eles dizem.

- Tamb‚m nÆo deves ser tÆo incr‚dula. Algum ser sincero.

- � poss¡vel, mas nÆo me interessam. O melhor ‚ nÆo falarmos nisso.

- No entanto, h entre os rapazes que te fazem a corte alguns que sÆo excelentes partidos.

"NÆo os rejeitariam as mais exigentes.

- Eu nÆo quero casar; que os aproveitem as outras.

"H tantas raparigas solteiras!

- Oh! filha... mas ‚ a ordem do mundo. Tu nÆo queres ir para um convento?

- Certamente que nÆo... mas que pressa tem a minha querida mÆe de me ver partir?

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"NÆo foi bastante passar tantos anos longe de si?

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"NÆo gosta de me ter aqui?

Estas cenas repetiam-se frequentemente, com o mesmo resultado.

Os neg¢cios de µfrica prosperavam.

A casa desenvolvia-se.

A sa£de do Manuel ‚ que fraquejava.

Caminhava a passos agigantados para uma formid vel neurastenia.

O m‚dico, amigo do Manuel e do conde, andava preocupado.

- Vocˆ tem de mudar de vida, ou acaba num manic¢mio.

"NÆo se pode viver s¢ a trabalhar.

"Precisa um pouco de distrac‡Æo.

"O seu estado nÆo ‚ tranquilizador.

" � imposs¡vel que por a¡ nÆo ande paixoneta.

Manuel riu com vontade.

- Por alguma preta, doutor?

"Bem vˆ que nÆo sou atreito a impressäes violentas.

- SÆo os mais calmos os mais propensos a elas...

"E contra esse mal... o do cora‡Æo, h apenas um rem‚dio, que j conheciam os antigos... banhos de igreja...

- Tenho medo de me constipar.

- Pois drogas... nÆo conhe‡o de efeito seguro.

Manuel definhava, e o m‚dico achou prudente avisar o conde.

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"O seu protegido, depois da vossa partida, tem-me dado s‚rios cuidados.

Por imposi‡Æo dele, nÆo tenho dito nada.

Resolvi revelar o segredo hoje, porque o rapaz vai de mal a pior.

NÆo tem lesÆo, nÆo lhe vejo mal de que o trate, mas o facto ‚ que est p lido e magro.

Lembrei-me que fosse alguma paixÆo, daquelas que, na mocidade, tˆm o condÆo de fazer os maiores estragos, mas tive de p“r de parte tal hip¢tese, porque protesta enŠrgicamente contra ela.

Devem ser saudades da familia a que se habituou a considerar dele.

Nunca mais ningu‚m o viu sorrir nem aparecer em parte alguma.

De casa para o escrit¢rio e dali para casa. Tem ido …s ro‡as, quando lhe reclamam a presen‡a, e nada mais.

Tudo prospera, com a ordem e a regularidade que este rapaz consegue em tudo em que se mete".

O conde ficou apreensivo; ao almo‡o nÆo falou noutra coisa.

Mariazinha empalideceu mortalmente; fugiu-lhe o sorriso dos l bios.

Leonor viu tudo.

Pedro, a quem a atitude da irmÆ nÆo passou despercebida, disse … queima-roupa:

248

- Na tua carta o Manuel nÆo fala na sua doen‡a?

- NÆo - respondeu friamente.

Todos os olhares convergiram para ela.

- O que tens, filha?.. - interrogou a mÆe, alarmada.

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- Nada, nÆo tenho nada.

A tensÆo de nervos foi tÆo violenta que as l grimas soltaram-se-lhe numa crise irreprim¡vel.

Saiu da mesa, seguida pela mÆe e pelas tias, numa excita‡Æo inexplic vel.

- A doen‡a do Manuel comoveu-a - disse a condessa ao filho.

- Estranharia o contr rio, minha mÆe. Amigos de infƒncia...

- Se essa afei‡Æo que vem do ber‡o se transformasse em amor... era uma fatalidade...

- NÆo penso assim.

"O Manuel, se nÆo ‚ um aristocrata pelo nascimento, ‚ de uma nobreza rara pelas ac‡äes.

" � um car cter. Confio nele como em mim.

- Pois sim, mas compreendes... a tua filha, que j foi requestada por dois titulares... seria um desaire se se inclinasse para ele.

- Nenhum dos pretendentes … mÆo da sua neta, mÆe, vale um calcanhar do Manuel.

"Se ele desejasse ser meu genro, agradeceria

a Deus essa felicidade.

"Mas nÆo; o Manuel nÆo ‚ um amoroso.

"Nunca se lhe conheceu uma inclina‡Æo.

249

- Porque desde o ber‡o estava inclinado.

" � um sintoma de que h muito tinha sido apanhado nas malhas do amor...

"Tu nÆo percebes nada do cora‡Æo humano.

"Esteve c doze meses.

"Dizias-lhe que fosse a Paris, a Londres... pois nÆo se desprendeu daqui.

- A mÆe notou que ele amava a Mariazinha?

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- NÆo. O Manuel ‚, acima de tudo, de uma correc‡Æo impec vel.

"NÆo h nada que o desvie do dever.

"Digo-te mais: preferir morrer, a que algu‚m surpreenda o seu segredo.

"Nunca seria capaz de quebrar aquele silˆncio.

- Tamb‚m eu o conhe‡o, minha mÆe; talvez melhor ainda.

"O caso, por‚m, nÆo admite d£vidas.

"Paixoneta de parte a parte, o rapaz viu-se s¢... esmoreceu.

"Vamos ver se o fazemos falar.

Leonor chegava neste instante.

- Uma crise de nervos... mocidades.. .

- H nervos em todas as idades, filha - disse a condessa.

- Mas nÆo h amores senÆo na primavera, minha mÆe.

- Ora!... Quantas vezes, no outono, Cupido se diverte a atirar setas por a¡.

- Mas nÆo acertaram nunca.

250

"Dois velhos apaixonados nÆo h ; s¢ se vem de longe esse bem-querer.

- O cora‡Æo nÆo envelhece, Leonor; h sempre a mesma sensibilidade.

"Olha, Ant¢nio, ou eu me engano muito ou a tua filha est fortemente inclinada. :: - Mas outros sonhos, outras ambi‡äes.

- Parece-te?

- Tenho a certeza.

"J tinha desconfiado h muito.

"O Manuel foi sempre para ela, eu nem sei bem o quˆ!... o amigo leal, a perfei‡Æo, o ideal.

"A longa ausˆncia, durante a qual mantiveram uma ass¡dua correspondˆncia, cimentou essa profunda estima.

"Havia apenas a recear o encontro, em que o f¡sico podia destruir toda a obra moral.

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"Creio que ela receou esse momento.

"O Manuel nunca lhe tinha mandado o retrato.

"Deslumbraram-se, amaram-se mais profundamente, mais intensamente.

"Era de esperar.

"Ningu‚m mo disse, creio mesmo que eles nunca o confessaram um ao outro.

"H , por‚m, uma linguagem que nÆo mente nem ilude, ‚ a dos olhos.

251

"E essa percebia-a eu, como quem lˆ em grossos caracteres uma inscri‡Æo numa l pide.

- NÆo me entristece a not¡cia.

"A Mariazinha nÆo podia ter noivo mais a meu gosto.

- Se nÆo fosse a fam¡lia... - repisou a condessa.

- Ora, minha mÆe! A verdadeira aristocracia ‚ a da honra, do dever cumprido.

"E, depois, o que ‚ a nobreza? Em que assenta? De que prov‚m? Em que se firma?

"Um feito her¢ico, praticado por um ascendente, galardoado com largueza por um rei, e a¡ temos a origem de um brasÆo de uma fam¡lia, que …s vezes vem arrastando de gera‡Æo em gera‡Æo, Deus sabe quantos in£teis e, o que ‚ pior, faltos de brio e de dignidade.

"Os brasäes do Manuel come‡am nele e come‡am bem.

"Tem valor de sobra para fundar uma dinastia de briosos cavaleiros. portanto nÆo necessitas do parecer de ningu‚m.

- Sabe a minha mÆe a grande dificuldade?

- NÆo.

- � arrancar-lhe o segredo, que ele guarda como o avarento o seu tesouro.

- NÆo me parece.

- A mÆe nÆo conhece o Manuel como eu.

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"Tem o seu brio e um entranhado amor-pr¢prio.

"Nunca se sujeitaria a ser julgado como um ambicioso vulgar.

"Se o Pedro fosse como ele...

- O teu filho est muito melhor.

"Pagou o seu tributo … mocidade. Era natural.

- Onde est esse tributo pago pelo Manuel?

"Trabalhando com toda a energia, com todo o ardor.

" � assim que eu compreendo a vida, minha adorada mÆe.

- E foi assim que procedeste, dando um exemplo edificant¡ssimo que h -de aproveitar a muitas gera‡äes.

- O destino foi injusto, nÆo permitindo que a semente frutificasse no meu sangue e germinasse num estranho humilde que me seguiu como a s¢mbra, sem arredar um passo.

- A mat‚ria-prima era de primeira qualidade, Ant¢nio.

- Gente de bem, estes Moreiras, agarrados … terra, honrados, trabalhadores!

- E inteligentes. Repara na carreira brilhante do Crist¢vÆo.

" � urso em todas as cadeiras.

"Vai a lente, ver s.

"E tudo isso, filho... a ti o devem.

253

- Oh! mÆe... por quem ‚, nÆo me atribua os feitos dos outros!...

"Seria um a‡ambarcador de gl¢rias que me nÆo pertencem.

"NÆo fa‡a como o pai Moreira, que quer por for‡a que as virtudes dos filhos sejam devidas a mim.

- Como ele vˆ bem! ... � ele que tem razÆo, Ant¢nio.

"Tens sido o anjo tutelar da fam¡lia e desta terra.

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O conde ergueu-se e foi abra‡ar a condessa.

- NÆo falemos mais nisso.

"Vamos ver em que param os nervos da Maria.

"Ai mocidade... mocidade...

XXVIII

A situa‡Æo ia tomando um aspecto pouco agrad vel no solar da Torre.

Mariazinha definhava a olhos vistos, conservando-se na mesma atitude reservada.

Aguardava numa ƒnsia, num nervosismo, not¡cias de µfrica, e essas vinham para ela sempre animadoras, porque Manuel ocultava cuidadosamente o que sofria.

As cartas do cl¡nico ‚ que nÆo tinham a mesma cor.

O conde resolveu escrever directamente ao Manuel, abordando o assunto.

NÆo demorou a resposta.

Explicava que, efectivamente, tinha sentido um abalo profund¡ssimo com a sa¡da de todos.

O contr rio, parecia-lhe, ‚ que os devia surpreender.

"NÆo me apetece passear; tambem ‚ natural - escrevia - o senhor conde sabe que pesa sobre os meus ombros uma responsabilidade muito maior.

NÆo tenho tempo nem disposi‡Æo para divertimentos.

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Mariazinha sentia, a par de uma grande saudade, a d£vida sobre o estado f¡sico do seu grande amigo

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O conv¡vio ¡ntimo, durante tantos meses, arraigou a paixÆo que de meninos enraizara.

Tinha de haver coragem, como o Manuel lhe insinuava nas cartas enormes que escrevia.

"Antes morrer, meu amor, que fazerem de mim um conceito errado, aqueles a quem devo tudo.

"NÆo ‚ her¢i s¢ o que expäe o corpo no , campo da batalha.

" �-o tamb‚m o que sabe resistir nobremente aos impulsos violentos do cora‡Æo...

NÆo havia que sair dali.

Aquela afei‡Æo seria uma rel¡quia que ambos saberiam guardar; estava jurado.

- Porque nÆo me deixas ver as cartas do teu amigo, Mariazinha?

- NÆo lhe devem interessar, tia Leonor.

"O Manuel nÆo faz literatura.

- Mesmo assim, tinha uma enorme curiosidade de as ler.

- SÆo tÆo singelas...

- Confessa que h uma razÆo mais forte que te for‡a a guard -las com tanto carinho.

257

Maria corou intensamente.

- Esse rubor ‚ a confissÆo do delito.

"Parece-me que andas por caminho errado...

"Teu pai gosta muito dele.

"Creio mesmo que teria gosto em...

- NÆo continue, tia; o pai aprecia o Manuel como um bom feitor; mesmo um s¢cio honesto; mas no dia em que se lembrasse de ser seu genro... nÆo acredite que o tolerasse.

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- Fazes um p‚ssimo conceito de teu pai!disse a condessa mÆe, que entrara sem ser notada pelas duas.

Mariazinha ergueu-se, precipitadamente.

- NÆo ‚ bonito escutar - disse Leonor, risonha.

- Minha av¢! Minha querida av¢... perdoe...

- Pobre crian‡a... como se amar fosse um crime...

"Todos n¢s adoramos o Manuel.

" � necess rio que ele fale a teu pai.

- NÆo se atreve.

"Fez-me jurar que jamais revelar¡amos esta ternura que vem de longe...

- Queres ver que temos de ser n¢s a pedir a mÆo dele?!...

- NÆo fa‡a tro‡a, minha av¢.

"Deixe-nos viver assim.

" � quanto basta para sermos felizes.

- Tolinha... como sabes pouco da vida!...

"O Manuel para l , numa melancolia incr¡vel;

258

tu aqui, p lida, desfigurada, como se te pesasse na consciˆncia grave pecado.

"NÆo pode ser.

"A mocidade quer-se alegre como a Primavera.

"Deixa as tristezas para os da minha idade.

"Vou encarregar-me de aplanar as dificuldades.

- NÆo lhe digam nada, para nÆo ficar zangado comigo.

- Descansa, meu amor, tudo h -de correr pelo melhor.

Maria caiu nos bra‡os da av¢, lavada em l grimas.

As grandes alegrias e as grandes tristezas tˆm as mesmas manifesta‡äes.

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Havia a lutar com os preconceitos da sociedade.

O Manuel era para todos um exemplo, e se nÆo tivesse parentes seria a felicidade plena.

A ideia, por‚m, de verem a Mariazinha ter de chamar pai ao pobre Francisco Moreira, e mÆe … Ana, causava-lhe arrepios.

Mas... que importava a ascendˆncia, se ele

259

Possu¡a a alma antiga dos grandes cavaleiros de outra idade.

O combate travava-se no ¡ntimo de cada membro da il—stre fam¡lia da Torre.

O conde, esp¡rito moderno, transigente, conhecendo melhor que ningu‚m o car cter do protegido, a quem queria como filho, andava satisfeit¡ssimo.

O Martins, o ¡ntimo da casa, o confidente do fidalgo, foi ouvido.

Uma noite, no escrit¢rio, sentado … secret ria, uma luz velada a dar ao ambiente um aspecto severo, o mestre em frente, numa ampla poltrona, pareciam seriamente apreensivos.

- Meu amigo - come‡ou -, tenho de ouvir o seu conselho, a sua opiniÆo sincera e leal, como tenho feito em todos os transes mais ou menos complicados da minha vida.

- Escuto-o, como sempre, e oxal o parecer de um velho, com os p‚s na sepultura, possa ser-lhe £til.

"De que se trata?

- De minha filha.

- Da sa£de dela, nÆo ‚ verdade?

"Tamb‚m tenho notado, nos £ltimos meses, uma certa mudan‡a.

- Exactamente.

"NÆo ‚ s¢ mudan‡a, ‚ um abatimento que me inquieta.

- O cora‡Æo?

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260 SARA BEIRÆO

- Talvez; ‚ nesse ponto que o quero consultar.

"O mestre conhece o mundo; h bil psic¢logo, rapidamente descobre o ponto atacado por certos males que os m‚dicos nÆo sabem curar.

"Falemos claro, e sem rodeios; que pensa do Manuel e da Mariazinha?

- A pergunta ‚ realmente estranha!

"Penso o melhor poss¡vel, pois se a ambos quero como se fossem meus filhos.

- Desfoquei a pergunta.

"Queria saber o que pensa daquela estima que os prende desde os primeiros anos.

- Creio que nada a poder destruir.

"H la‡os que nem o tempo nem a distƒncia

logram desatar.

"A semente caiu em bom terreno, e foi fortalecida por uma luta que triunfou.

"Nem a ausˆncia conseguiu arrefecer esse bem-querer.

- Uma grande amizade?

O Martins ficou calado.

O conde fixou-o com insistˆncia.

- NÆo ‚? - continuou, sem o desfitar.

O mestre contraiu a fronte, fincou as mÆos

descarnadas nos bra‡os fofos da poltrona, e engoliu em seco.

- Duvida?

- NÆo - respondeu com firmeza.

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- Como se explica o seu embara‡o na resposta?

- Olhe, meu filho, nunca nesta casa usei de outro sistema que a franqueza e a sinceridade.

"Para continuar no mesmo caminho, tinha de dizer que o Manuel nÆo tem amizade … Mariazinha.

O conde endireitou-se, estupefacto.

- O que me diz?

- O que sente nÆo ‚ amizade, Antoninho; ‚ amor, ‚ paixÆo, e tÆo forte, tÆo violenta, que o leva a tudo.

O conde sorriu sem sombra de contrariedade.

- J o tinha suspeitado.

- E agora? Vai desprez -lo por isso?

- Que mal me conhece, meu amigo!

- O que estou a revelar-lhe, reputo-o um crime, de que sinto a consciˆncia abalada.

"Nunca o Manuel me autorizou a aludir a esse afecto, que tem sido a luz que o tem guindado ao ˆxito.

"Foi esse grande amor que o fez partir, que o ergueu a toda a altura a que pode aspirar um modesto filho do povo.

"Julga, por‚m, que alguma vez pensou em realizar o seu sonho? Nunca.

"Sempre que se abeirava de mim, lhe pregava, com este feitio de dar conselhos, mesmo sem mos pedirem: Cautela, Manuel, nÆo te prendas

262

tÆo seriamente. Est muito alto o teu ideal, nÆo poder jamais ser um facto.

"Respondia-me: "O meu cora‡Æo ‚ um servo humilde. Obedece-me sem protestar.

"Ningu‚m tem nada com o meu platonismo.

"Posso amar a quem muito bem entender.

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"Mas que caia no rid¡culo, que me preste a ser julgado severamente pelos que tˆm direito de o fazer, nÆo tema.

"Acima de tudo, o que o cavalheirismo me impäe.

"O meu nome h -de morrer como nasceu.

"Obscuro, mas honrado".

- � espantoso!

- Obra sua, Antoninho.

- Oh! nÆo diga isso; mestre.

"Se assim fosse... se eu tivesse o poder de moldar caracteres, como os oleiros o barro, o que nÆo teria feito do meu Pedro!

"O Manuel nasceu assim.

"Se a Ana nÆo fosse a mulher honesta que n¢s sabemos, podia supor-se que ele descendia de algum nobre da Na‡Æo! - disse sorrindo.

- � pundonoroso - continuou o Martins.

"NÆo receie nunca que tenha pretensäes que julga poderem ofender os brios das pessoas a quem deve tudo.

"Tranquilize-se, Antoninho:

O conde recostou-se na poltrona, apoiou o queixo na mÆo, e ficou-se a cismar.

263

O Martins estava embara‡ado.

- Para que diabo delatei o que nÆo ‚ meu?

"Falo de mais, nÆo h d£vida - pensava.

"Quem sabe o resultado que isto dar ?

Depois de uns momentos de vis¡vel contrariedade, deu um estalo com os l bios ressequidos e decidiu-se.

- Sabe quanto o estimo e a toda a sua fam¡lia.

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"NÆo ignora tamb‚m quanto quero ao Manuel.

"Poder calcular a minha m goa, o meu sofrimento, se o que acabo de lhe confiar, sem que algu‚m me encomendasse o sermÆo, pudesse influir no seu esp¡rito para que o rapaz deca¡sse no seu conceito.

O conde levantou-se, perplexo.

- � o mestre Martins que assim me fala?

"Conhece-me de ontem?

"Que flagrante injusti‡a!

"NÆo lha merecia, confesso.

- Perdoe.

"Eu sei, eu sei bem como ‚ generoso com as faltas dos outros.

Ergueu-se, a custo, de mÆos estendidas para o antigo disc¡pulo.

Ca¡ram nos bra‡os um do outro, comovid¡ssimos.

- Falta?! Mas onde est a falta, mestre?

- Sonhos, sonhos, amigo!

264

"Os pobres tˆm obriga‡Æo de refrear os sentimentos.

"A Mariazinha est num plano alt¡ssimo, nÆo devia o Manuel ousar, e... nÆo ousou.

- Mestre, estou j cansado de tantas alturas, de tantas distƒncias que nos separam, quando apenas existe esse abismo entre duas categorias sociais quando a indignidade o abre.

"Sei que o Manuel ama a minha filha; sei que ‚ correspondido com ardor.

"Sei mais que juraram guardar esse segredo at‚ … morte, exigˆncia do Manuel, para que ningu‚m julgue que ‚ um ambicioso vulgar.

"Chega a ser hero¡smo no tempo presente.

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"Admiro o gesto sublime daquele a quem quero tanto, para nÆo dizer mais, que a meu filho.

"Louvo-o entusiasticamente.

"Mas... o eterno mas que se interpäe em todas as delibera‡äes da vida.

"Vejo a Mariazinha definhada, triste, sem a alegria pr¢pria da sua idade.

Vai adoecer gravemente, pressinto-o.

"As paixäes fazem estragos profundos na mocidade.

"Se a minha filha morresse... nÆo me consolaria nunca.

"Sacrific -la a um orgulho de castas, vale a pena?

265

"Era o seu conselho, amigo, que eu queria tomar.

- � muito grave o que me pede, e bem vˆ que nÆo posso ser bom juiz nessa causa.

"Trata-se de duas crian‡as que eu adoro, que por assim dizer vi nascer, a quem ensinei as primeiras letras; sÆo meus filhos espirituais.

"O meu cora‡Æo nÆo pode ver conveniˆncias nem preju¡zos aristocr ticos.

"Desejo a felicidade deles, e para lha dar, se isso estivesse nas minhas mÆos, saltaria por cima de tudo.

"Para que pede o meu parecer, Antoninho?

- Que faria no meu caso?

- NÆo hesitava um minuto - deixava-os casar.

"Mas eu sou eu; que as minhas palavras nÆo tenham a menor influˆncia no seu ƒnimo.

"Deus me livre de contribuir para um facto que mais tarde lhe trouxesse qualquer aborrecimento, de que finalmente viesse a arrepender-se.

- At‚ hoje, nunca me arrependi das minhas decisäes, e ainda me nÆo sa¡ mal.

"Bem; vamos ao que importa.

"Suponhamos que eu estou de acordo com esses amores; como convencer aqu‚la extraordin ria criatura a dirigir-se-me? Como?

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- Conhe‡o-o bem; nÆo o far nunca.

"Preferir morrer.

266

O conde ergueu-se e come‡ou a passear, atravessando o aposento de lado a lado.

O Martins tamb‚m estava enleado.

- Mestre, quem me diria a mim, na minha posi‡Æo, passe a imod‚stia, com uma filha que ‚ um amor, que tem tido os pretendentes mais nobres e ilustres, que havia de ser eu a solicitar a mÆo do Manuel, como um favor, para essa filha tÆo requestada!

"Como o mundo ‚!

- Sim... que ele aborde esse tema, nÆo acredito.

"NÆo ‚ capaz.

- Como resolver este problema, nÆo me dir ?

- NÆo sei, nÆo sei.

- Vou … µfrica e talvez o obrigue a falar.

" � o £nico meio.

O Martins ficou para jantar.

O conde, depois de se fixar num plano, voltava … alegria habitual.

As indecisäes, as incertezas, a d£vida sobre o caminho a tomar, tornavam-no macamb£zio.

Quando o viam nessa m disposi‡Æo, todos sabiam que alguma coisa de grave o preocupava.

Geralmente, nÆo o interrogavam.

… noite, comunicou … mÆe a sua delibera‡Æo.

- NÆo me demoro, mas hei-de obrigar aquele teimoso a confessar-me que ama a nossa Mariazinha.

"Que ela nem sonhe o meu projecto.

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Sem que ningu‚m pudesse prevenir o Manuel, o conde determinou uma viagem a Lisboa. Dali seguiria para a µfrica, pretextando um caso urgente que era mister combinar quanto antes.

Partiu.

S¢ a mÆe, a mulher e o Martins estavam na posse desse mist‚rio.

Quando souberam, na aldeia, da resolu‡Æo do conde, especialmente os Moreiras, ficaram penalizados.

Queriam mandar ao filho saudades de viva voz, porque as que as cartas levavam nÆo tinham o mesmo sabor.

- Paciˆncia; ao menos que o fidalgo fosse e viesse com felicidade. Deus havia de estar com ele, que bem o merecia.

XXIX

O conde desembarcou, festejado por todos.

Manuel, como era de prever, nÆo estava no cais.

Havia muitos empregados da casa a quem recomendou que nÆo dissessem nada, pois queria surpreender o amigo.

Assim foi.

Apareceu nos escrit¢rios sem ser esperado.

- O meu s¢cio? - interrogou, em voz baixa.

- Est no gabinete, senhor conde.

Atravessou corredores; chegou … frente da porta onde o antigo pupilo trabalhava.

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Abriu-a lentamente.

Manuel nÆo deu por ele.

Estava afogado em papelada.

Magro, desfigurado, de uma palidez impressionante.

A pena girava, numa actividade em perfeita contradi‡Æo com o aspecto de quem a movia.

Quando, passados segundos, p“s de parte a folha que preenchera, levantou a cabe‡a e viu no limiar da porta a figura sorridente do conde.

270

ergueu-se, passou a mÆo pelos olhos, como quem duvidava da realidade.

O Fidalgo deu uma gargalhada estridente.

Ca¡ram nos bra‡os um do outro, com a efusÆo, com o carinho, com o entusiasmo de pai para filho.

- Meu caro protector!

- Meu caro Manuel!

E afastando-o de si um pouco:

- Mas isto que ‚?

"Est s transtornado, homem!

- NÆo ‚ nada, isto passa.

"O que eu quero saber ‚ o que o traz por c , a que devo este prazer.

- NÆo te entra na cabe‡a que pudesse vir matar saudades?

Manuel sorriu, incredulamente.

- Ingrato... que mal compreendes o muito que te quero!

- Oh! senhor conde, pelo amor de Deus! Eu sei quanto lhe devo.

- Mau! mau! A eterna hist¢ria!

"Se alguma coisa me deveste, h muito que sald mos contas.

- Isso nunca.

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- Vamos ao que importa; deixa-me olhar para ti.

Sentou-se em frente do Manuel, fixando-o com insistˆncia.

271

- NÆo pareces o mesmo! Tens tido as febres?

- Ora! ... Logo vi, sugestäes do doutor.

"Eu nunca estive melhor.

"Pesei-me ainda ontem, acusava nÆo sei quantos gramas a mais.

- A balan‡a nÆo estava boa!

Entraram neste momento v rios amigos e conhecidos para cumprimentarem o rec‚m-chegado.

Foram convidados para jantar.

Nesse dia nÆo tiveram um momento para falar sobre o objectivo que determinara a viagem.

O conde era madrugador.

O disc¡pulo seguia-lhe o exemplo.

No dia imediato, levantou-se de manhÆzinha, para dar uma volta antes de entrar o pessoal.

Passou pelo quarto do Manuel e viu as janelas abertas de par em par.

- Bons dias! - gritou de fora, apoiando-se ao peitoril e investigando o interior.

O s¢cio ergueu-se da escrivaninha onde trabalhava.

- J a p‚, senhor conde!

- E tu! NÆo est s tamb‚m nessa faina?

- � o h bito... Que havia de fazer nesta solidÆo?...

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Encaminhou-se para a porta, por onde o titular entrou com ar sombrio.

Poisou o chap‚u sobre uma pequena mesa e sentou-se numa ampla cadeira, os dedos tamborilando uns nos outros.

O Manuel ficou em p‚ em frente dele.

- Pois, meu caro amigo, previno-te que isto nÆo pode continuar.

"Ou tu pensas a s‚rio na tua sa£de, ou entÆo, vejo o barco dar … costa.

"Compreendes que nÆo se faz uma viagem … µfrica por gosto.

"Alguma coisa de grave me trouxe aqui.

- NÆo vejo a razÆo de tantas preocupa‡äes das pessoas que me estimam.

"O doutor... certamente quem deu o sinal de alarme, sabe muito bem que, fisicamente, estou ¢ptimo.

- Pois o principal motivo da minha vinda foi o saber do teu estado.

- Oh! senhor conde, mais essa d¡vida que nunca poderei pagar.

- NÆo me agrade‡as, porque nÆo foi s¢ essa a razÆo que me decidiu a vir.

"Precisava falar contigo sobre um projecto grav¡ssimo que me traz apreensivo, e para a efectua‡Æo do qual necessito ouvir-te.

O filho do Moreira escutava-o interessado.

O conde, sem o desfitar, continuou:

- Sabes que a Mariazinha vai casar?

273

Manuel fincou as mÆos na escrivaninha, para nÆo cair.

Abriu a boca para falar, e nÆo p“de articular uma palavra.

Os olhos esgazearam-se-lhe, e uma palidez mortal cobriu-lhe o rosto.

Teve medo de o ver cair.

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O conde correu para ele, arrependid¡ssimo do ardil imaginado para a confissÆo que desejava.

Um suor gelado escorria-lhe da fronte.

- Que ‚ isso, Manuel? O que tens?

- Nada, nÆo ‚ nada; costumo ter estes desfalecimentos de quando em quando.

"Creia que preferia morrer...

"Senhor conde, se ‚ meu amigo, se me estima como sei, como tantas provas me tem dado, deixe-me... acabar.

O peito erguia-se-lhe num arfar violento, em convulsäes nervosas, arrepiantes.

O fidalgo tocou.

Apareceram os empregados.

- Chamem o m‚dico! - gritou alarmado.

Prestaram-lhe todos os cuidados poss¡veis.

Quando o cl¡nico chegou, a grande crise tinha passado.

Estava tranquilo, mas semimorto.

Os olhos fecharam-se-lhe; apenas uma respirasÆo branda mostrava que vivia.

274

O facultativo e o conde recolheram-se um instante ao gabinete cont¡guo.

- NÆo deve ser nada de cuidado. Uma impressÆo violenta, e a¡ tem o resultado.

- O Manuel est fraco.

"Tem uma vida cenob¡tica que briga com os seus poucos anos.

"NÆo pode ser, tem de mudar.

"Creio que uma conversa s‚ria lhe restituir a alegria de outros tempos.

O dia, por‚m, correu numa inquieta‡Æo constante. Gelo na fronte permanentemente.

De noite entrou em del¡rio.

Queria levantar-se, falava no rev¢lver...

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- Quero morrer, quero morrer - era o que lhe entendiam.

- Que ideia tÆo desastrada a minha! - desabafou o conde. - Venho para lhe dar sa£de e... trago-lhe a morte.

"Salve-mo doutor, se nÆo quer que me atormente um remorso eterno.

As horas arrastavam-se com uma lentidÆo esmagadora e o mal nÆo dim¡nu¡a.

NÆo conseguiam debelar-lhe a febre.

- Se ficava louco, era ainda pior que a morte!-confidenciou um dia o cl¡nico ao conde.

- Foi um abalo moral que lhe causei, com inten‡Æo bem diferente.

275

- Narrou-lhe por mi£do o ocorrido e a ideia que o inspirara.

- Fez bem em me elucidar.

"SÆo in£teis as drogas quando temos o meio de o curar sem elas.

"Aproveitaremos a primeira ocasiÆo para falar de sua filha; vamos tentar, sem perda de tempo.

Entraram no quarto.

O doente dormitava, como de costume.

- EntÆo, amigo? NÆo vais ficar aqui eternamente...

O doente sorriu com tristeza, entreabriu os olhos, que cerrou de novo, sem dizer uma palavra.

- Quando chega o paquete da Europa?interrogou o conde.

- Talvez amanhÆ ou depois - respondeu o m‚dico. - Queria not¡cias, nÆo ‚?

- Sim, devo tˆ-las, nÆo em resposta …s minhas, que ainda nÆo receberam, mas tenho a certeza que escrevem.

Os dois observavam atentamente.

Manuel estremeceu, e voltou-se, como quem nÆo quer ouvir.

- A Mariazinha deve estar uma linda rapariga! Daqui a pouco na idade de casar.

- Na idade est ... mas nÆo lhe vejo jeito.

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- Porquˆ? Deve ter pretendentes em abundƒncia...

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- Tudo quanto pode lisonjear a vaidade de uma mulher, e ainda a ambi‡Æo.

"Mas... o que quer? At‚ hoje tem recusado quantos partidos lhe tˆm aparecido.

- Alguma paixoneta... As raparigas tˆm disso.

- Se assim fosse, teria a franqueza de mo confessar, porque eu nÆo creio que a minha filha se inclinasse senÆo para um car cter, para um homem de bem, escolha que eu nunca contrariaria.

- Quem sabe?

"Havia de querer sempre pessoa da sua jerarquia.

Manuel nem respirava.

- Engana-se; nunca os pergaminhos me prenderam.

"Para mim, a maior nobreza sÆo as ac‡äes de cada um.

"Creia, doutor, que a vida ‚ isto.

O enfermo agitou-se, abriu os olhos, como se pela primeira vez visse o dia.

- Tenho tanta sede...

- Belo sintoma e desejo bem simples de satisfazer.

Tomou o copo das mÆos do conde, e bebeu, bebeu at‚ ao fim.

- Estarei salvo?

- De quˆ?

- Da morte, meu querido amigo.

277

Os dois deram uma gargalhada franca.

- Que fantasia! Julgaste-te em perigo de vida?

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"NÆo creias que alcan‡asse loiros com a tua cura.

" �s um malade imaginaire... E bem sabes que esses nÆo dÆo honra ao assistente.

O Manuel, c•m os bra‡os fora da roupa, o olhar brilhante, ouvia-o com interesse.

- A quantos estamos hoje, senhor conde?

- Sei l ... com a tua doen‡a... perdi a tramontana, rapaz.

- A vinte e cinco - respondeu o doutor.

- AmanhÆ chega o vapor, nÆo ‚ verdade?

- Se nÆo houver nenhum atraso.

Os dois nÆo despregavam os olhos dele, maravilhados com a s£bita transforma‡Æo.

Entreolharam-se, entenderam-se.

- Est livre de perigo - pensaram.

- Bom - disse o cl¡nico -, amanhÆ … mesma hora, c estarei, se hoje nÆo tiver tempo.

- Quando poderei levantar-me?

- Isso ‚ contigo. Quando sentires for‡as para o fazer.

- � bom nÆo precipitar os acontecimentos.

"O Manuel est fraqu¡ssimo, pode ter uma reca¡da e... ‚ homem ao mar.

"Bonda de sustos.

278

Nessa tarde, quando regressou do escrit¢rio, encontrou o Manuel sentado numa poltrona.

- Bravo!

- Estou muito melhor; especialmente, o que me alegra ‚ sentir vontade de viver.

- E porque nÆo havias de tˆ-la?

- NÆo sei; caprichos doentios, que a gente nÆo pode explicar.

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"O pensamento humano ‚ uma m quina, um moto-cont¡nuo, como o tempo, como tudo que a natureza impele, sem que a ciˆncia ou a coragem consigam p“r-lhe um travÆo.

- ·s vezes a for‡a de vontade evita muitos males.

"Querer ‚ poder, Manuel.

"Tu est s hoje melhor; a tua convalescen‡a, para nÆo dizer cura, foi tÆo r pida como a queda num estado grav¡ssimo, que me inquietou tÆo fortemente que tive quase receio de cair tamb‚m.

"Foi portanto uma questÆo nervosa.

"O que a determinou?

- NÆo sei, nÆo sei, nÆo me recordo.

- Manuel, tu nÆo falas verdade.

"A tua doen‡a teve uma causa moral que eu nÆo ignoro.

"NÆo ‚ preciso ser muito inteligente para adivinhar o motivo que te prostrou.

279

- Senhor conde, pe‡o-lhe, nÆo me fale em nada.

- Mas se eu nÆo vim … µfrica senÆo para definir situa‡äes, para me orientar. _

"Para saber de ti.

- De mim?! Mas se sabe tudo... se me guiou sempre, se nunca dei um passo sem ouvir o seu parecer...

"Bem vˆ que nÆo ignora nenhum pormenor da minha vida.

- Mas nÆo conhe‡o nada do teu cora‡Æo.

Manuel corou, sob o olhar investigador do conde.

- Esse... coitado, nunca se manifestou, creio que nem possuo esse ¢rgÆo...

- NÆo mintas.

"Para que ocultas o que sentes, a quem te quer como pai?

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- Senhor conde, meu grande amigo, nÆo me interrogue, deixe-me viver assim.

"Bem vˆ, cada qual pode ter as suas ¡ntimas aspira‡äes, os sonhos sÆo livres e deles ningu‚m tem de nos pedir explica‡äes.

"Se sÆo arrojados, o p£blico nÆo deve julgar-nos, quando sabemos reprimir todas as exterioriza‡äes, quando os nossos actos nÆo desmintam a rectidÆo que os mestres, aqueles a quem tom mos por modelo, nos indicam, nÆo por palavras, mas por ac‡äes.

280

"O mestre, neste caso, sabe quem ‚; o disc¡pulo tamb‚m ‚ seu conhecido.

"Nunca o hei-de envergonhar, aconte‡a o que acontecer.

- Orgulho-me do aluno, que excedeu o professor.

"Se uma como‡Æo impetuosa te aniquilasse, nÆo supäes que algu‚m sucumbiria contigo?

"Se uma fatalidade, consequˆncia de uma sensa‡Æo inesperada, das que sÆo raras como a flor do loto, te roubasse a vida, nÆo te lembrarias da desola‡Æo em que ficaria quem se te tivesse dedicado com paixÆo?

- S¢ as almas g‚meas se entendem. Quando se desse um caso extraordin rio, como esse, ambos compreenderiam que a maior consola‡Æo que existe ‚ o dever cumprido.

"Eis tudo.

- Cada vez te admiro mais, cada vez te quero mais entranhadamente.

"Mas ao que nÆo estou disposto ‚ a ver v¡timas … minha volta.

"Quero que a alegria continue em todos que estimo.

- Tenho a certeza que ningu‚m sofre; eu por mim sinto-me bem.

- Como explicas o fen¢meno de tombares sem sentidos ao falar-te no pr¢ximo casamento da Mariazinha?

- A surpresa... nÆo esperava! ...

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- Que te importava que casasse ou nÆo a minha filha?

- NÆo devia importar, mas o senhor conde bem sabe que somos amigos desde a infƒncia.

Nunca lho ocultei.

- Quantas amizades tenho eu, e jamais me aconteceu perder os sentidos, cair com uma febre intensa ao anunciarem-me os seus respectivos casamentos.

- Uma questÆo de temperamento.

- NÆo, uma questÆo de sentimento.

O Manuel passou a mÆo pela fronte, onde as camarinhas borbulhavam.

- Senhor conde, parece determinado a arrancar-me do peito o que jurei levar para a sepultura.

"Se amar a sua filha ‚ um crime, mande-me matar, que ainda lhe ficarei reconhecido.

O conde, muito grave, em frente dele, escutou-o sem o desfitar.

- Foi s¢ para te ouvir essa confissÆo que vim … µfrica.

"NÆo necessito esconder-te que tenho o maior prazer que entres na minha fam¡lia.

O pobre rapaz ergueu-se de olhar esgazeado:

- Senhor conde!

- Meu pobre amigo!

Ca¡ram nos bra‡os um do outro.

Manuel nÆo p“de conter as l grimas. Solu‡ava como uma crian‡a.

282

- NÆo devo aceitar o seu sacrif¡cio, nÆo quero, nÆo posso. A Mariazinha est de acordo comigo.

- Mas nÆo come, nem dorme.

- E depois, que diriam de mim?

"Que me introduzi na sua casa com o intuito de enriquecer.

- Uma s¢ pessoa teria o direito de te censurar e essa sente-se orgulhosa da sua obra.

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"Vim aqui s¢ para te obrigar a revelar esse amor que tanto trabalho tem dado a esconder.

"O caso ia saindo s‚rio; o meu estratagema deu um resultado que eu, francamente, nÆo esperava.

Ouviram-se os passos familiares de algu‚m que entrava; era o m‚dico.

- Boa tarde! EntÆo o meu doente?

- Estou curado; o senhor conde...

- Fiz um diagn¢stico muito mais acertado que vocˆ...

"Temos homem!

"Aposto que nÆo torna a dizer-lhe: Deixe-me morrer, doutor.

- Que lhe receitou, amigo? posso saber o medicamento, para aplicar, a outros?

- Banhos de... igreja.

- Havia por a¡ id¡lio, sem que o suspeit ssemos?

- Ora se havia! Mocidade sem amor ‚ como o caldo sem sal.

283

"Participo-lhe que vou ter outro filho. O Manuel vai casar com a Mariazinha.

- Parab‚ns! Nunca encontraria homem mais digno dela.

"Manuel ‚ um rapaz …s direitas.

O m‚dico jantou nesse dia com o conde.

Celebraram-se os esponsais com afectuosos brindes, na maior intimidade.

Era necess rio combinar como se havia de realizar o casamento.

O conde ficava ainda uns meses para deixarem tudo regularizado.

Partiriam juntos para a metr¢pole, onde os preparativos estariam prontos para se efectuar a cerim¢nia.

Os noivos fariam uma larga digressÆo pela Europa.

Depois viriam fixar residˆncia, por alguns anos, em µfrica.

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- Como eu, exactamente como eu. Mais tarde irÆo para junto de mim com um rancho de netos.

"Algum Manuel h -de aparecer para casar com a tua filha primog‚nita.

"E oxal que te nÆo dˆ tanto trabalho a fazer desembuchar!

"Saiu-me de uma for‡a, este menino!

Chegou o correio, que abriram alvoro‡adamente.

284

Escrevia a condessa ao filho:

"A Maria continua a definhar.

"Resolve a situa‡Æo sem demora".

Pelo mesmo paquete dizia ela ao Manuel:

"NÆo te preocupes comigo.

"Serei sempre digna do teu amor, do teu procedimento, que compreendo e admiro.

"NÆo ‚ sacrificio, ‚ dever, e o dever cumprido ‚ a maior satisfa‡Æo que existe".

Manuel leu esta parte em voz alta.

- H -de concordar, doutor, que faz orgulho ter uns filhos assim!

A nova depressa se espalhou.

O s¢cio do conde tinha as simpatias gerais, de forma que todos ficaram alegr¡ssimos.

Combinaram nada dizer para a aldeia da Murta.

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Apenas a condessa e o Martins estavam ao facto de tudo.

A vinda do Manuel constituiria uma enorme surpresa.

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Este saboreava antecipadamente o grande contentamento que ia dar … noiva da sua alma, … que o prendera para sempre desde a primeira vez que a vira.

Apressaram-se os trabalhos, para que a ausˆncia dele nÆo causasse o menor transtorno.

S¢ entÆo o conde percebeu as primeiras distrac‡äes do futuro genro.

A ventura perturbara-lhe a serenidade.

- Ai, rapaz! NÆo se ‚ impunemente noivo da mulher mais bonita da Beira.

- Do mundo, pe‡o-lhe para rectificar.

"A Mariazinha ‚ um anjo.

- Estamos plenamente de acordo.

"Vamos dar-lhe uma grande alegria.

"S¢ minha mÆe e o Martins, os maiores colaboradores desta obra, sabem da tua ida.

"Vou combinar para nos esperarem em Lisboa. Precisam respirar o ar das cidades os que tanto tempo estÆo metidos na aldeia.

"VirÆo minhas irmÆs, minha mulher, o Pedro e a Mariazinha.

- Que felicidade, senhor conde!

- Tudo merecem uns noivos de tal quilate.

- A Mariazinha... Eu nÆo valho nada.

O conde estendeu-lhe a mÆo que Manuel beijou comovido.

- Vales tudo; tenho a certeza de que a

minha filha nÆo poderia fazer escolha mais

acertada.

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"Criei-te; ‚s o meu filho espiritual, a minha maior obra, o meu orgulho.

"Mas se a mat‚ria-prima nÆo fosse de ¢ptima qualidade, eu nada conseguiria.

- Quando o exemplo ‚ grande, todos tˆm de o seguir.

"Quem se afoitaria a nÆo cumprir o seu dever quando o viam observar rigorosamente por quem, pela posi‡Æo, pelo nascimento, pela inteligˆncia, por tudo, em suma, podia abster-se de uma vida modelar?

"O senhor conde prestou um alto servi‡o ao seu pa¡s desenvolvendo as col¢nias, engrandecendo a sua terra pela riqueza que lhe levou, e mais ainda e sobretudo, pelo impulso que lhe deu com a li‡Æo do trabalho.

- Homem, olha que este elogio m£tuo est tomando quase uma fei‡Æo rid¡cula.

"NÆo envergonhamos o nosso burgo, eis tudo.

"Os outros que nos sigam na peugada e... a vida correr bem para todos.

XXX

Mariazinha recebeu sem alvoro‡o a ordem do pai para o irem esperar a Lisboa.

Andava deprimida, melanc¢lica, sem energia para nada.

Em vÆo tentavam distra¡-la.

Ficava largas horas no parque, a ler, a maior parte do tempo de livro na mÆo, absorta, sem ver nem ouvir, num alheamento de tudo preocupante.

Nunca mais veria o Manuel! - era o que presumia.

Como havia de vir alguma vez, abandonando as fazendas, a casa do pai, que era, por assim dizer, um estado dentro de outro estado?

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Tinha de resignar-se, e assim faria.

Leonor vinha …s vezes surpreendˆ-la nestes marasmos.

- coragem, mulher... olha que o Diabo nem sempre est atr s da porta.

"Quem sabe o que o destino vos reservar ?

- NÆo falemos em coisas tristes, tia Leonor.

"Eu ainda me nÆo queixei.

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"H uma ventura superior a todas na vida: ‚ a de sabermos que o nosso amor ‚ correspondido.

"O resto nÆo vale nada.

- Nem todos se satisfariam com esse platonismo.

"H quem seja mais exigente.

- Esses sÆo muito mais desgra‡ados.

"Eu perten‡o ao n£mero dos ditosos.

"Um amor compreendido ‚ a maior felicidade na terra.

- Que poesia, filha... quem me dera os teus anos e as tuas ilusäes!...

- Tia Leonor, nÆo brinque com o mais belo dos sentimentos.

"Creia que o sabermo-nos amadas ‚ tudo para uma alma afectiva.

"A materialidade, a realiza‡Æo dos sonhos pode fazer tombar o ideal, e at‚ produzir decep‡äes.

- Pois, querida, a tua cara desmente esses princ¡pios.

"Se est s assim tÆo conformada com a sorte que Deus te deu, nÆo percebo esse abatimento, essa tristeza, esse depauperamento f¡sico, consequˆncia de sofrimento moral.

- Quem lhe disse que eu sofro?

- H coisas que nÆo precisam de ser ditas.

"Compreendem-se ao primeiro golpe de vista.

"Pelas teorias expostas, pox essa feli‡idade

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descrita com tanto entusiasmo, tu devias andar alegre como uma alvorada; a rir constantemente, traduzindo assim o bem-estar interior de que falas.

- A tristeza nÆo exprime sempre sofrimento.

"Pode ser motivada pela saudade.

" � muito diferente.

ha rica Mariazinha! Muito custa a confissÆo sincera dos nossos mais ricos sentimentos...

A tarde passou, e como esta as que se seguiram at‚ irem esperar o conde.

Foi por uma fresca manhÆ de Abril que partiram para Lisboa.

pedro, ao volante, para mais uma vez mostrar a sua per¡cia de ex¡mio automobilista.

Almo‡aram em Leiria.

A condessa desejava que a filha visse as magnificˆncias arquitect¢nicas da Batalha.

·s duas horas estavam em frente do grandioso monumento.

Mariazinha ficou maravilhada!

Apesar de ter visto imensas fotografias, nÆo p“de furtar-se …quela sensa‡Æo de surpresa, de deslumbramento, que se sente perante o que ‚ belo.

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A nave central, de rara imponˆncia, com as suas filas de colunas elegant¡ssimas, a vastidÆo dessa extraordin ria obra de arte contribuiu para impressionar vivamente os viajantes, em especial a que pela primeira vez a visitava.

Entraram na Capela do Fundador.

Mariazinha quis subir as escadas, para ver melhor as est tuas jacentes de D. JoÆo I e de Dona Filipa de Lencastre, dormindo serenamente ao lado um do outro o sono eterno.

Os filhos em volta, como se nem a morte lograsse desuni-los.

D. Pedro, D. Henrique, D. JoÆo, D. Fernando e D. Duarte l estavam fazendo guarda de honra aos pais, que tÆo nobremente souberam ocupar o seu lugar.

- Deviam ser muito amigos, minha mÆe.

- Certamente; foi not vel a sua ac‡Æo e eu creio que sem amor nÆo se podem conceber tÆo altos empreendimentos.

- Foi ele que mandou construir esta catedral?

- Sim, para comemorar a gloriosa batalha de Aljubarrota, que lhe assegurou o trono.

- Nasceu com sorte o Mestre de Avis, querida Mariazinha.

- Teve tamb‚m grandes colaboradores, Leonor. D. Nuno µlvares Pereira, o valente que, aos 24 anos, … frente de um punhado de homens,

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venceu esse enxame castelhano que invadiu o Pa¡s.

- Foi na v‚spera da festa da Assun‡Æo da Virgem, e da¡ o atribu¡rem esse facto prodigioso a um milagre.

- Por isso se ficou chamando o majestoso templo, de Santa Maria da Vit¢ria.

"E para aqui vieram o rei e a rainha, como preito ao local em que foram consagrados os seus destinos.

- Devia fazer-lhes companhia D. Nuno.

- Sou da tua opiniÆo, filha.

- Amigos na vida e na morte.

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- Oh! MÆe, vamos jazer neste ambiente tumular todo o dia?

- Tens razÆo, Pedro, h tanto que ver. .

Passaram de novo ao interior da igreja.

Ao fundo, grandes frestas de vitrais esguios davam … nave tonalidades de sonho.

Os arcos das ogivas cruzavam-se nas alturas, como se quisessem abra‡ar o C‚u.

Entraram no Claustro onde as rendas de pedra ca¡am em sanefas delicad¡ssimas.

Vinham gravar no lajedo desenhos miudinhos que o sol avivava com r£tilas claridades, como se do espa‡o chovesse um polvilho de brilhantes.

Havia rosas lindas no jardim!

A fonte murmurava docemente; orvalhando as avencas mimosas.

- Entremos na Casa do Cap¡tulo, a ver se

292

a Mariazinha descobre a figura de Afonso Domingues.

- Foi o arquitecto da Batalha.

- Construiu esta ab¢bada soberba que j havia ca¡do e sob a qual morreu.

- Que grandes artistas, e que grandes almas!

- Os tempos eram outros.

"NÆo se dispersavam tanto em frioleiras e inutilidades.

"Sabes, filha, o cinema, o autom¢vel, esta vida a galope, nÆo deixa fixar ningu‚m em coisa alguma.

"Acabaremos por nÆo ter her¢is, nem artistas, nem personalidade.

- Creio que a minha mÆe preferia a liteira ao autom¢vel?

- Claro, pelo menos era menos perigoso.

- E quantos dias levar¡amos para ir esperar o pai?

- Os que fosse preciso; mas ter¡amos a certeza de chegar, ao passo que assim...

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- Faz num dia o que lhe levaria um mˆs.

- Mais vale um ano … ponte que nunca a casa, Pedro.

- Parar ‚ morrer, minha mÆe; vamos, que esta atmosfera trist¡ssima torna a Maria mais melanc¢lica do que veio.

"O que ela precisa ‚ de respirar, de ver alegres horizontes, coisas novas, que a deslumbrem e distraiam.

Apressaram a visita art¡stica; detiveram-se nas Capelas Imperfeitas uns instantes, e sa¡ram.

Ficaram-se ainda a olhar a mole imensa,

aquela montanha de granito e m rmore, a contar …s legiäes que passam a grande vit¢ria de 14 de Agosto de 1385.

293

As agulhas esguias sobressa¡am no espa‡o, como setas que partissem em demanda do infinito, em demanda do Sol, em demanda de Deus!

- Como nos sentimos pequenos perante tanta imponˆncia, tia Leonor.

- Tens razÆo. Aperta-se-me o cora‡Æo ao pensar que hoje j se nÆo conceber nada tÆo belo, nem se levar a cabo nada de semelhante.

- Oh! minha mÆe, assim nÆo chegamos hoje a Lisboa! - disse Pedro, no ar por se meter a caminho.

Acomodaram-se rapidamente e o auto rodou pela charneca rida, onde se feriu a formid vel batalha.

Iam todos silenciosos, naquele recolhimento que sugere e a que obriga uma visÆo deslumbradora.

- Pedro, tem paciˆncia, temos de parar uns minutos em Alcoba‡a; quero que tua irmÆ veja o Mosteiro.

- Se a mÆe a mete por conventos, tem freira em casa dentro em pouco.

- NÆo te assustes. Hei-de ser freira quando tu fores frade.

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- EntÆo pode mostrar-lhe todos os mosteiros do mundo. Vamos l depressa.

Come‡aram a aparecer os vinhedos de Alcoba‡a, pƒmpanos viridentes, fortes, prometedores de rica colheita. Arvoredo bem cuidado vestindo a terra f‚rtil.

Entraram na vila.

Pararam em frente do monumento.

Subiram as escadarias e entraram pelo p¢rtico principal; abriu-se ante os olhos ofuscados dos visitantes a grande nave, floresta de colunas que os s‚culos robustecessem como aos velhos

robles das montanhas.

Custava a olhar para as c£pulas soberbas da grande f brica da Real Abadia de Santa Maria de Alcoba‡a.

Detiveram-se ante a graciosa ornamenta‡Æo da porta da sacristia, foram … Casa dos Reis, …s capelas da Charola e por fim visitaram o t£mulo de D. Pedro e Dona Inˆs.

- MÆe, d -me vontade de ajoelhar.

- Foram reis mas nÆo foram santos, filha.

- O amor, quando ‚ grande, tem qualquer coisa de divino.

- Cupido nÆo pode canonizar os seus sect rios.

- NÆo folgues com coisas s‚rias, Pedro.

"NÆo h nada mais respeit vel que uma afei‡Æo profunda.

- Quem te disse que a nÆo respeito.

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- Que imponente devia ser o acompanhamento de Coimbra para aqui!

- Que formid vel estopada!

Calcule: por caminhos de cabras... com a pobre Inˆs …s costas...

- Se estivesse um þ dia como hoje, era agrad vel. . .

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- Especialmente se viessem num bom autom¢vel, como n¢s, e por estradas arranjadinhas de novo.

- Este Pedro ‚ um materialÆo! "NÆo se interessa pela arte, nem vibra perante as grandes emo‡äes que abalam a humanidade.

- o produto do s‚culo. Velocidade, vida agitada... eis tudo.

- NÆo exagere, tia Gr ‡a, talvez ainda me veja inclinado a valer.

- espero verificar esse facto tantas vezes quantos forem os encontros com mulheres bonitas.

- Que barbaridade! Como se eu fosse um cata-vento.

"Se ainda temos algum mosteiro a visitar, podemos desistir de ir hoje dormir a Lisboa.

"E o navio chega amanhÆ...

- J entendi. vamos embora - disse a condessa, saudosa de se desprender daqueles lugares de m¡stica beleza, de grandiosidade e opulˆncia.

Entraram no carro, desta vez com a ideia fixa de s¢ se deterem na capital.

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A paisagem corria como um ‚cran, variad¡ssima; rica de tons, rica de vegeta‡Æo.

Ao longe, fraguedos a aproximarem-se do mar, com SÆo Martinho do Porto … vista, na sua concha muito azul debruada de espumas.

Na baixa enorme, retalhos de pinheirais, sobressaindo no verde delicado das searas ainda a despontar.

- Quanto mais agrad vel nÆo seria determo-nos aqui e al‚m para ver bem o Pa¡s...

- Se viesses de comboio tamb‚m o mandarias parar? �s muito ma‡adora, Mariazinha!

Era noite cerrada quando chegaram a Lisboa.

Telefonaram para a Companhia. O vapor

atracava …s seis da manhÆ.

- Ia apostar em como nÆo ‚s capaz de te

levantar …s cinco para ir esperar o pai.

- Veremos, Pedro, veremos.

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Jantaram e pouco depois recolheram-se aos respectivos aposentos.

Vinham fatigad¡ssimas da jornada e a madrugada do dia seguinte nÆo era nada animadora.

Mariazinha passou a noite acordada.

A viagem, as evoca‡äes de tudo quanto vira, perturbaram-na.

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Quando bateram … porta do quarto, foi ela a primeira a responder.

As tias dormiam profundamente.

- Ia jurar que estavas de vela.

- � verdade. Estranho sempre a cama. ..

- Qual hist¢ria!... �s uma m gica!

"Isto nÆo pode continuar. Vou contar tudo … tua mÆe.

- Tudo o quˆ?

- A bom entendedor meia palavra basta...

- NÆo dˆ importƒncia ao que a nÆo tem, tia Leonor.

- Tu ver s o que vai suceder...

Era tempo; a condessa abriu a porta, j pronta para sair.

- EntÆo, vamos?

- ·s suas ordens, mamÆ.

"Vˆ que a nÆo fizemos esperar?

- Bem sabia, meu amor, que ‚s sempre pontual.

Meteram-se num t xi e abalaram para a Rocha do Conde de àbidos.

A manhÆ estava fria.

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Grandes farrapos de nuvens esvoa‡avam no espa‡o amea‡ando chuva.

Come‡aram a chegar ao cais os que vinham dar as boas-vindas a pessoas de fam¡lia ou amigos.

Havia uma alegria ardente em todos os rostos.

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Aproximavam-se carros farejando aluguer remunerador.

Andavam os empregados numa faina.

O Adamastor estava … vista e, nÆo se sabia porquˆ, parara.

Todos sacavam os bin¢culos, a ver se descobriam na tolda os que lhes interessavam.

Os passageiros, aglomerados, pareciam um grande formigueiro, uma massa compacta e escura de que era imposs¡vel distinguir formas.

- Eu j vejo o pai!

- NÆo ‚ poss¡vel, Pedro; nÆo gracejes.

A visita terminou - informou um empregado -, o navio vai atracar.

Efectivamente, o colosso come‡ou a mover-se.

Viram-se centenas de len‡os no ar.

Os viajantes saudavam a P tria, porque os parentes nÆo os podiam diferen‡ar ainda.

As gaivotas bailavam delirantes em volta do enorme barco.

Os que esperavam, aglomeravam-se … beira do paredÆo, com grave risco de mergulharem na gua.

Realmente, a figura elegante do conde debru‡ava-se na tolda, de ¢culo em punho, agitando o len‡o.

Todas as vibra‡äes do sentimento humano

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pareciam concentrar-se naquele momento de infinita alegria.

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MÆes que esperavam os filhos, esposas que aguardavam os maridos, noivas que suspiravam pelos escolhidos da sua alma, todos ali, unidos pela mesma expectativa de entusiasmo, de d£vida, de receio, de ang£stia, comprimiam-se, irmÆos na felicidade ou na decep‡Æo.

Quem poderia adivinhar o que o destino reservava a cada um?

O colosso encostou imponente, rentinho … muralha.

O conde pediu ao Manuel para nÆo se mostrar; queria ver o efeito que fazia na fam¡lia o seu inesperado aparecimento.

Ouviam-se nomes pronunciados ruidosamente, expressäes de j£bilo, sem que ningu‚m se importasse com o p£blico que os observava.

A ponte baixou, e os que esperavam precipitaram-se numa confusÆo indescrit¡vel para dentro do navio, caindo nos bra‡os amigos dos viajantes.

Chegou a vez do conde.

A mulher, os filhos e as irmÆs entraram apressados.

Quando a Mariazinha se desprendeu do pai, levou a mÆo ao peito, duvidando do que via.

- Manuel! - exclamaram todos a um tempo,

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como se a inesperada ocorrˆncia os movesse na mesma admira‡Æo.

O que se passou entÆo nÆo se descreve.

Risos, l grimas, abra‡os, apertos de mÆo fora do protocolo, calorosamente trocados, efusivamente correspondidos.

Acomodaram-se em dois carros.

- Deixa ir a mocidade … vontade, e n¢s, Mariana, ficaremos assim melhor para noivar!

A boa disposi‡Æo, uma alegria expressiva transparecia da fisionomia da Mariazinha, sem tentar ocult -la.

- Como foi isto, Manuel? Explica-nos tudo! - perguntava Leonor, j a caminho do hotel.

- O senhor conde que diga.

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"Foi um sonho, e quando os sonhos sÆo agrad veis a gente tem medo de acordar.

- O caso ‚ que todos n¢s fic mos radiantes. Este Manuel ‚ um perigo, tem o dom de conquistar...

"Temos de partir rapidamente para a Murta, senÆo... as meninas de Lisboa sÆo capazes de o raptar.

- NÆo h perigo - disse o africanista, muito s‚rio, trocando com Mariazinha um olhar eloquent¡ssimo.

- Eu tamb‚m gostava mais de ir, por causa da av¢.

- L est s tu com medo que te roubem a amizade do Manuel.

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A filha dos condes fez-se rubra.

- A Mariazinha ‚ incapaz de me julgar tÆo mal como o Pedro.

- Eu!... EntÆo nÆo querem l ver?! A ingratidÆo ‚ o pior veneno que pode infiltrar-se na humanidade...

"E passo eu a vida a quebrar lan‡as por este lun tico! ...

"O mundo est perdido, amigo...

Chegaram … porta do hotel.

Manuel, gentilmente, ajudou a descer as senhoras.

Mariazinha foi a £ltima.

A mÆo dela poisou na dele com uma leveza de p‚tala; teve desejos de a levar aos l bios, mas mais uma vez se conteve.

Pouco depois chegavam os condes.

Foram num instante aos respectivos aposentos.

A condessa ficou rapidamente ao facto de tudo e satisfeit¡ssima com a naturalidade com que os acontecimentos se tinham passado.

- O Manuel nÆo tem ordem de dizer nada. Portanto, antes do almo‡o, vamos dar esse alegrÆo … nossa filha.

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"NÆo h que fiar na palavra de namorados; se nÆo nos apressamos... nÆo sei o que suceder .

Desceram ao salÆo, …quela hora completamente deserto.

J ali encontraram Pedro e Manuel.

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- As tias e a tua irmÆ, Pedro?

- EstÆo a p“r p¢-de-arroz. Daqui a uma hora ainda c nÆo estarÆo.

- Vai cham -las.

NÆo foi preciso.

As trˆs senhoras j vinham no corredor.

- Sabe bem um pouco de cavaco antes de irmos para a mesa.

Sentaram-se em amplos maples.

- EntÆo, Mariazinha, como vÆo as tuas tristezas?!

- Eu estou alegr¡ssima, pai!

- Bem vejo... mas como nÆo te deixei assim, estranho.

- EntÆo nÆo devia estar contente com a sua vinda?

- � natural... e muito me satisfaz a -tua ternura filial.

"Mas no que tu ainda nÆo reparaste foi nos cabelos brancos de teu pai.

"As cÆs, meu amor, tornam-nos s bios, nÆo da ciˆncia que se estuda nas retortas, nos laborat¢rios, nos livros, mas da que d a experiˆncia.

"Um cabelo branco representa quase sempre decep‡äes, desenganos, li‡äes colhidas … custa de muitos anos de observa‡Æo.

- Voltas fil¢sofo das terras de µfrica, Ant¢nio! - notou Leonor.

O conde sorriu.

- Talvez.

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- A que carga de gua vem o sermÆo? , "NÆo estamos na Quaresma...

- Vem a prop¢sito de dizer … minha filha que nem foi a minha ausˆncia que a melancolizou, nem a minha chegada que lhe deu aquela alegria exuberante.

- Ingrato! Tu ‚s um ingrato, irmÆo.

- Diz antes que sou um psic¢logo.

"Mas vamos ao que ‚ mister esclarecer.

"Eu parti sem explicar a razÆo que me for‡ava a uma viagem que nÆo tinha nenhuma vontade de fazer.

"Um caso urgente me impelia a essa decisÆo precipitada.

"Algu‚m corria perigo de vida no continente africano, algu‚m a que eu queria como filho, porque o era, de facto, espiritualmente.

"NÆo hesitei.

"Fui encontrar o Manuel abatido, desfigurado, como se lhe pesasse na consciˆncia grave culpa.

"O que teria?

"Claro que, conhecedor dos males que atacam a mocidade, atribu¡-o a penas de amor.

"Vasculhei em volta, nÆo encontrei deidade capaz de o prender.

"Pensei, ruminei e vejo que tinha os mesmos sintomas da Mariazinha.

" Escalpelizemos o mal.

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"Meti a sonda e dei com o ponto vulner vel..,-- .

"Abriu muito os olhos, empalideceu espantosamente e percebi que tombaria se nÆo se segurasse … mesa pr¢xima.

"Estava decifrado o enigma; mas o pior foi que o Manuel resolveu cair com uma febre que o teve …s portas da morte.

"Ia-me custando cara a experiˆncia.

"NÆo havia forma de o fazer voltar … vida.

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-NÆo nos mandaste dizer nada!

- Para quˆ? Seria agravar a situa‡Æo.

"Resolvemos, de comum acordo, o m‚dico e eu, p“r de parte as drogas e usar outro artif¡cio.

"Come‡ mos em grandes e ¡ntimas conversas a falar da Maria.

"A princ¡pio nÆo atendeu.

"Numa ocasiÆo em que a febre diminu¡ra um pouco, not mos que nos escutava.

"Quando percebeu que a Maria nÆo ia casar,

abriu os olhos...

"Escusado ser dizer que come‡ou nesse dia

a convalescen‡a, que foi r pida.

"E aqui tens, Mariazinha, como fui … µfrica

para trazer o teu noivo.

- Oh meu pai!

Caiu nos bra‡os do conde, a chorar e a rir.

305

- Eu bem sabia o que tu trazias no cora‡Æo, meu grande misterioso.**

"E nunca foste capaz de mo confessar!disse Pedro, abra‡ando o amigo.

- Isto vem de meninos, Manuel.

"Felicito-me pelo sobrinho que o meu irmÆo nos traz.

- Muito obrigado, senhora Dona Leonor.

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- Querido Manuel, nÆo podia haver maior consola‡Æo para a minha alma de mÆe, maior seguran‡a, que encontrar um genro como tu.

" �s meu filho pelo cora‡Æo.

"NÆo sei distinguir a qual dos trˆs quero mais.

- Senhora condessa, devo-lhe tudo. Foi, de facto, a minha segunda mÆe.

Os esponsais festejaram-nos com exuberante alegria, nesse almo‡o intimo, numa sala particular do hotel.

Pela primeira vez, o Manuel ficou ao lado da Mariazinha.

Dec•rreram felic¡ssimos os dias que passaram em Lisboa.

A viagem foi magn¡fica.

Seguiram em dois autom¢veis.

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O Manuel conduzia o que adquirira na capital e. que lhe serviria para alguns passeios na lua-de-mel.

Na Murta eram aguardados com impaciˆncia.

A condessa mandou fazer ilumina‡äes no terra‡o.

O povo, espontƒneamente, armou arcos nas ruas.

Quando apareceram ao longe, estrugiram girƒndolas de foguetes.

O Martins, encostado ao seu bengalÆo, l estava fora da vila, … frente do povo que vinha esperar os viajantes.

O Moreira, doido, nÆo sabia o que fazia nem o que dizia.

H horas na vida que se nÆo descrevem.

A alegria suprema, como a mais profunda m goa, tˆm no seu antagonismo alguma coisa que se toca.

Ningu‚m pode exprimir exactamente a inten sidade do seu sentir, quando ‚ grande, quando ultrapassa os limites da banalidade.

Page 215: visionvox.com.br¦o_Fid… · Web viewOs Fidalgos da Torre. Sarah BeirÆo. ROMANCE. PORTO EDITORA, LDA. - Rua da F brica, 90-pORTO. EMP. LITERµRIA FLUMINENSE, LDA.-Rua da Madalena,

Algum tempo depois, realizava-se na antiqu¡ssima capela do solar da Torre o casamento da Mariazinha com o escolhido da sua alma.

As rendas do vestido, o v‚u precioso, envolviam a sua figurinha delicada tornando-a et‚rea.

Todos tinham o parecer feliz.

NÆo havia para ningu‚m a grande inc¢gnita sobre o futuro dos noivos.

- Alma antiga, h -de fazˆ-la ditosa, senhor conde. Por este me responsabilizo eu - bichanava o Martins enquanto o padre latinizava o acto, l'igando para sempre aqueles que desde a infƒncia se compreendiam e amavam.

Desse casal, unido pelo amor, continuou a descendˆncia dos nobres fidalgos da Torre.

FIM

Digitaliza‡Æo e Arranjo

Amadora, Mar‡o de 1997